existe auschwitz, não existe deus: sobre a (im ... · por excelência da conversão, em nossa...
TRANSCRIPT
1
Existe Auschwitz, não existe Deus: sobre a (im)possibilidade da testemunha autêntica nos
campos de concentração
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler1
1. Introdução
Nos propusemos nesse ensaio em analisar a (im) possibilidade da testemunha
autêntica a partir das contribuições realizadas por Agamben (2008) em O Que Resta de
Auschwitz. Inscrito dentro da proposta do intelectual italiano de escrever uma genealogia
do Homo Sacer, este livro procura pensar o acontecimento da Shoa enquanto paradigma
por excelência da conversão, em nossa modernidade, da política em biopolítica a partir do
estudo sobre a testemunha.
Em um primeiro momento discutiremos a problemática da arqueologia realizada
por Agamben (2008) acerca da testemunha compreendida como figura intrínseca aos
processos de problematização das formas de governo e dos estados de exceção,
responsáveis por converter a ideia do espaço festivo da polis em nómos.
Já o segundo momento é dedicado a explorar, a correlação entre o muçulmano –
o personagem abjeto dos campos de concentração – e as formas de subjetivação na
contemporaneidade elencando a possibilidade imediata de ruptura proposta por
Agamben (2008) da ideia de vergonha como categoria de uma possível reparação histórica
por parte dos sobreviventes em nome do fortalecimento de uma investigação voltada para
a substância ética de visualização das formas de performatividade do estado de exceção
na emergência de uma terra sem mal.
1 Bacharel em Psicologia pela UNESC. Mestre em Psicologia pela UFSC. Doutorando em Filosofia pela UNISINOS. Docente do Centro Universitário Estácio santa Catarina. Pesquisador vinculado ao grupo do CNPq Deleuze e Guattari: elos e ressonâncias sob liderança do professor Hélio Rebello Cardoso Júnior da UNESP de Assis. Membro do grupo de pesquisas Ética, Biopolítica e Alteridade sob liderança do professor Castor Bartolomé Ruiz da UNISINOS.
2
Nossas considerações são dedicadas a estabelecer uma análise sobre o papel dessa
substância ética na nossa sociedade em relação a sua interpretação do messianismo
paulino.
2. Agamben e a arqueologia da testemunha
O projeto longitudinal de O Que Resta de Auschwitz (AGAMBEN, 2008) consiste em
estabelecer uma correlação entre a vida nua uma forma específica de vida proveniente da
cultura grega – e a biopolítica como característica própria de nossas sociedades modernas.
Segundo aponta Gagnebin (2008), esse ensaio ocupa um papel intermediário e, ao mesmo
tempo singular na trajetória do intelectual italiano justamente por que O Que Resta de
Auschwitz (AGAMBEN, 2008) caracteriza-se como uma retomada de um projeto apresentado
em outros livros como Homo Saccer (Agamben, 2002) e Meios Sem Fins: notas sobre a política
(AGAMBEN, 2015). Todavia, poder-se-ia perguntar: qual a inovação do pensamento
agambeniano que se refere a sua porosidade textual? Num primeiro momento somos levados
a crer que suas problematizações giram em torno da compreensão da biopolítica como uma
estratégia nefasta que marca a história de nossa modernidade. Tomando Auschwitz como
objeto de análise Agamben (2008), trata de deixar claro que, na modernidade, os paradigmas
das leis e das normas conduziram a sociedade ocidental não ao espaço democrático da polis,
mas sim aos regimes totalitários formados pelo estado de exceção. Em suma, trata-se de
afirmar que o paradigma da razão orquestrado pela biopolítica não é o da vida comum, mas
sim os campos de concentração. Enfim, como nos lembra Agamben: “O campo é o espaço que
se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra” (AGAMBEN, APUD, GAGNEBIN,
2008, p. 09).
Contudo, desdobrada nessa análise da biopolítica encontra-se um outro projeto
correlativo referente a inauguração de um novo olhar em torno da tensa relação entre a
teologia e a política, principalmente no que se refere à interpretação empreendida por
Agamben (2008) em torno da epístola de Paulo aos romanos que gira em torno do seguinte
3
questionamento: o que resta? Sem sombra de dúvida, a pergunta em si já é carregada por
uma espécie de leitura messiânica do tempo e da história, pois ela vislumbra as condições de
possibilidade para que vislumbremos o que restou de Auschwitz – como se houvesse uma
espécie de ressonância desse macabro acontecimento nos nossos dias. Porém, essa
perspectiva desdobrasse em torno da possibilidade da própria contração do tempo e da
situação messiânica fazendo emergir o conceito benjaminiano de jetzeit ou tempo de agora
como lembra Gagnebin (2008).
Nesse sentido, aquilo que resta possui relação com os dejetos, com aqueles que,
segundo certa tradição judaico-cristã triunfarão algum dia e a semeadura de tal triunfo deve
ser objeto de análise dos intelectuais a partir da escuta das testemunhas. Mas, como ouvir,
de fato, uma testemunha que já não se encontra viva?
Uma vez que o resto, como lembra Agamben (2008) quebra a linearidade do tempo e
institui o kairós, quais seriam, precisamente as dificuldades provenientes da testemunha
autêntica fazer-se ouvir em meio as lembranças do horror? Essas seriam as perguntas as quais
Agamben (2008) se debruça no sentido de não penas procurar construir o papel fundante da
memória dos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, mas sobretudo para poder afirmar
que aquilo que aconteceu não faz parte do narrável.
Somente desta maneira, pode-se, segundo Agamben (2008), projetar uma analítica de
uma possível nova terra. Entretanto, é preciso que se pergunte: pode a ética se sobrepor
perante a história? De início segundo aponta Gagnebin (2008), deve-se ter em mente que, no
campo da filosofia moral a maioria de suas reflexões gira sempre em torno das leis e das
normas. Estas seriam, pois formas legítimas de reger a vida dos sujeitos, bem como sua
eventual aplicabilidade ou transgressão. Não é à toa que o grande imperativo da filosofia do
direito é: leis e normas existem para impor limites perante a ação humana. Ocorre que nos
campos de concentração as normas sofrem um profundo abalo, pois nesses locais todos os
prisioneiros tinham de conviver com a aleatoriedade e a arbitrariedade não havendo espaço
para tentar compreender a normatividade do espaço. O que restava era apenas tentar
sobreviver ou deixar-se consumir pela desesperança. A experiência dos campos de
4
concentração pode ser descrita como a própria ausência das normas. Sendo assim, Agamben
(2008) nos convida ao instigante desafio de instituirmos uma problematização do reino das
normas, saindo deste modo, das possibilidades de validação ou transgressão de qualquer ética
e moral para centralizarmos nossos esforços numa leitura sobre a biopolítica sendo que neste
caso, o campo de concentração operaria como um elemento imprescindível para se compor
uma análise arqueológica da prática testemunhal, pois todas as evidências deste macabro
acontecimento afastam, qualquer possibilidade de emissão de um juízo ético.
Não é por acaso que a grande figura lembrada por Agamben (2008) seja a de Primo
Levi. Para Agamben (2008) a narrativa de Levi constitui-se como algo muito mais potente do
que meramente uma prática memorialista, pois Levi (2013) evoca o passado a partir de uma
voz off que se apresenta a partir de sua neutralidade. Em livros como É Isto um Homem? (Levi,
2013), Os Afogados e os Sobreviventes (Levi, 1990) ou, Assim Foi Auschwitz (Levi & Benedetti,
2015), não se pode encontrar qualquer tentativa de sua parte de emissão condenatória. Na
realidade, Levi (2013) foge dessas categorias para empreender um olhar analítico sobre a
problemática a qual vivenciara narrando o horror sem saber precisar os motivos pelos quais
ele mesmo conseguira escapar com vida perante a morte de muitos outros.
Enquanto testemunha autêntica dos campos de concentração Levy segundo
argumenta Gagnebin (2008), procura não emitir nenhum juízo ético do que lhe acontecera.
Sendo assim, ele não julga os membros do sonderkommando nem os soldados nazistas. Ele
apenas relata a mais absoluta falta de critérios na hora de decidir quem seriam os afogados e
quem seriam os sobreviventes, e esse é o lado mais brutal da biopolítica: ela não se alimenta
de um perfeito enquadramento da moral e da norma, mas opera sobre a égide da morte e do
caos.
Encontramos nesse contexto o questionamento das possibilidades normativas como
uma tarefa política de Agamben (2008) no que corresponde a perspectiva dos estudos críticos
em torno dos campos de concentração. Sendo assim, podemos encontrar já nas primeiras
páginas de O Que Resta de Auschwitz (AGAMBEN, 2008, p. 19) a seguinte advertência
5
Graças a uma série de investigações cada vez mais amplas e rigorosas, entre as quais o livro
de Hilberg ocupa lugar especial, o problema das circunstâncias históricas (materiais,
técnicas, burocráticas, jurídicas...) nas quais ocorreu o extermínio de judeus foi
suficientemente esclarecido. Investigações futuras poderão lançar novas luzes sobre cada
um de seus aspectos, mas o quadro geral já se pode considerar estabelecido. Bem diferente
é a situação relativa ao significado ético e político do extermínio, ou mesmo à simples
compreensão humanado que aconteceu, a saber, em última análise, à sua atualidade.
Como podemos observar, essas primeiras palavras são dirigidas aos que procuram
encontrar em Agamben (2008), os indicativos de uma pesquisa histórica. A estes, o intelectual
italiano trata de deixar claro que as circunstâncias políticas sobre o aparecimento e o
desenvolvimento dos campos de concentração já foram suficientemente estudadas. O que
resta, neste caso seria inferir uma nova lacuna que recai, desta vez sobre o terreno da ética.
Articulando tal leitura com o conceito de biopolítica poder-se-ia perguntar: quais
seriam, exatamente, os contornos pelos quais as práticas de extermínio se desdobram nos
terrenos da ética e da política na atualidade? Uma das respostas possíveis seria a de que nosso
desafio consiste em deter-se em torno do significado do conceito de testemunha concebido
por Agamben (2008) como uma lacuna cuja implicação percorre os horizontes da história e da
ética uma vez que seu processo investigativo procura recorrer aos fatos detendo-se em torno
daquilo que jamais poderá vir a ser contemplado na sua totalidade pelos relatos das vítimas
enquanto limitar-se a narrar a partir dos julgamentos morais por parte dos sobreviventes.
Trata-se, portanto, de interrogar a história debruçando-se em torno do resto a fim de que seja
estudado o não-dito, ou aquilo que não costuma fazer parte do narrável.
Essas dificuldades nos colocam diante de dois desafios: quem seria, exatamente a
testemunha autêntica? E como alguém se torna uma testemunha autêntica? Agamben (2008)
não procura oferecer uma resposta consensual sobre tais questionamentos justamente
porque para ele para ele, a principal característica de uma testemunha seria a força que a
impele a sobreviver. Mas, por quais motivos deve, um sujeito diante de uma situação
arbitrária, como nos campos de concentração procurar sobreviver? Trata-se de uma questão
6
de vingança? Ou ainda uma questão de razão cômoda? Enfim, justificar para si mesmo e para
o outro a sua própria sobrevivência não é uma tarefa fácil.
É nesse contexto que Agamben (2008) retomará a figura de Primo Levi para afirmar
que ele possui uma outra relação com o que vivenciara em Auschwitz: tratava-se de prolongar,
por meio das palavras, tudo o que experienciava escrevendo vorazmente para que todos
pudessem ouvi-lo ao mesmo tempo em que encontrava-se dotado de um culpa terrível por
ter sobrevivido.
Seria então Primo Levi a testemunha perfeita? Para responder a essa pergunta
Agamben (2008) recorre ao latim para evidenciar o modelo de testemunha a qual O Que Resta
de Auschwitz (AGAMBEN, 2008) é escrito. Segundo ele, nessa língua existem dois termos para
designar o vocábulo testemunha. O primeiro seria testis e refere-se aquele que se põe como
terceiro durante um processo de litígio. Já o segundo é o supertestes; uma figura que
atravessou todas as fronteiras de um acontecimento e, ao retornar, pode dar seu testemunho
sobre o que lhe aconteceu. Primo Levi, segundo aponta Agamben (2008), pertence a essa
segunda categoria uma vez que seu relato não faz parte do julgamento moral sobre o que lhe
aconteceu. Trata-se, como dito anteriormente, elaborar o relato a partir da precisão dos fatos
não lhe cabendo julgar nada nem ninguém, sendo que sua porosidade discursiva flutua numa
espécie de nebulosa em que é difícil distinguir às vítimas dos carrascos e os carrascos das
vítimas. A lição presente neste modelo testemunhal consiste em fazer-nos pensar a
arbitrariedade do estado de exceção concebido como uma espécie de fraternidade da
abjecção. Essa seria, pois a possibilidade de se mostrar o absurdo da polis sem norma cuja
maior representação circularia sob a epígrafe de um romance kafkiano em que a qualquer
instante o sujeito pode ser processado, julgado e condenado pelas mãos da máquina
burocrática.
Neste sentido, o campo de concentração – à parte dos horrores que ainda provocam
nas pessoas com o mínimo de consciência – também pode ser lido com uma metáfora nas
quais as categorias éticas e jurídicas sofrem um profundo abalo, sendo que os personagens
estão entregues a toda forma de arbitrariedade possível.
7
Desdobrada nessa constatação encontra-se, portanto, o elemento ético presente no
contexto da testemunha autêntica colocado em evidência por Agamben (2008) ao resgatar o
conceito formulado por Levi (2013) de zona cinzenta. Na realidade, para o memorialista dos
campos de concentração a zona cinzenta seria um elemento ético por operar como uma
espécie de alquimia responsável por fundir várias categorias de um determinado
acontecimento desestabilizando todo campo da norma e da moral. Sendo assim, Levi (2015)
nos mostra que o sub-humano deve-nos interessar mais do que o humano. Ou seja, deve-se
trazer à tona as figuras infames que não retornaram, aqueles que ficaram de fora dos relatos
dos vencedores.
Para Agamben (2008), a zona cinzenta escapa a todas as diretrizes da norma e da
moral. Temos então Concentration contra Polis. O que parece ser o elemento mais potente de
O Que Resta de Auschwitz (AGAMBEN, 2008), não seria a emergência de uma luta da
civilização contra a barbárie – como bem pensaram a questão Adorno e Horkheimer – mas
sim a contextualização que nossa ética é uma paisagem em ruínas. Uma tumba enfeitada com
punhais e tumores onde repousam nossos piores demônios como escrevera René Char (1971).
3. A figura do muçulmano e a vergonha dos sobreviventes
Para Agamben (2008), o intestemunhável tem um nome: der Muselman. Aquele que
os livros escritos sobre os campos de concentração insistem em relegar a um segundo plano.
O muçulmano pertence, pois a zona cinzenta e sua simples presença na história faz solapar
qualquer modelo ou imperativo categórico da moral. O muçulmano é a lacuna do testemunho.
Segundo Castro (2013), a figura do muçulmano é resgatada por Agamben no sentido de
precisar os desdobramentos pelos quais o prisioneiro prostrado ao chão e abandonado sem
qualquer esperança representa a marca, o limite móvel entre o humano e o inumano e por
sê-lo torna-se emblemático no sentido de impor um questionamento radical sobre os limites
e alcances da ética e da moral na nossa sociedade. Na realidade, o muçulmano seria um
8
personagem espectral desprovido de qualquer compreensão sobre os valores intrínsecos a
ordem da moral vigente.
Esse outro, esse qualquer o qual fala Agamben (2008) deve ser compreendido como
uma metáfora, uma ilustração dos nossos dias. As constantes sombras desses humanos
prescritos e alheios a todo senso de moralidade que nos assombram à porta nos convidando
a bailar no espetáculo dos circos dos horrores do que Agamben (2004) chama de estado de
exceção. De certa forma, ele nos lembra que nós seremos muçulmanos um dia, pois o que
vivemos nos dias de hoje senão o reino da multiplicidade dos campos de concentração?
Nesse sentido, a leitura empreendida por Agamben (2008) corresponde a possibilidade
imediata de se perceber o muçulmano como uma categoria que coloca em suspenso o próprio
lugar pelo qual compreendemos o sentido da palavra humanidade não mais como o
fundamento da civilidade, como a estrutura da democracia, mas sim como categoria móvel
dos dispositivos da política convertida em biopolítica. Esse seria justamente o maior desafio
de se pensar uma epistemologia da ética na nossa contemporaneidade por conta dos
acontecimentos vivenciados nos campos de concentração. A esse respeito nos lembra
Agamben (2008, p. 76) que
O bem – admitindo-se que no caso faça sentido falar de um bem – que os sobreviventes
conseguiram pôr a salvo do campo não é, portanto, uma dignidade. Pelo contrário, que se
possam perder dignidade e decência para além de qualquer imaginação, que ainda exista
vida na degradação mais extrema – esta é a notícia atroz que os sobreviventes trazem do
campo para a terra dos homens. E esta nova ciência torna-se agora a pedra de toque que
julga e mede toda moral e toda dignidade. O muçulmano que é a formulação mais extrema
da mesma, é o guardião do umbral de uma ética, de uma forma de vida, que começa onde
acaba a dignidade. E Levi, testemunha dos submersos, fala em nome deles e é o cartógrafo
desta e nova terra ethica, o implacável agrimensor da Muselmannland (terra do
muçulmano).
Na verdade, essa imprecisão a qual pertence à figura do muçulmano ganha os
contornos de uma nova visibilidade quando ultrapassa-se o estado de exceção em nome da
9
emergência da terra sem mal. Contudo, é preciso destacar que se o campo é uma metáfora
da nossa sociedade o desafio seria, pois o de empreendermos os seguintes questionamentos:
vivemos ou não no próprio umbral das relações éticas? Perdemos ou não a capacidade de
vivenciarmos a totalização da experiência?
Conforme nos lembra Agamben (2008) a analítica sobre Auschwitz atesta não o
imperativo categórico da razão, mas sim uma condição ética de se pensar o desdobramento
de uma perspectiva ontológica capaz de desconstruir a fina película dos dispositivos
biopolíticos. Mas, correlacionar a experiência histórica do muçulmano com o interstício do
humano e do inumano implica também em problematizar-se a desqualificação da degradação
da experiência da subjetivação na sociedade ocidental uma vez que Agamben (2008)
considera à sobrevivência das vítimas das atrocidades cometidas no campo de concentração
não como o esplendor de um processo de resiliência como pensara Vitor Frankl (2015), mas o
mais profundo sentimento de vergonha. Vergonha por ter sobrevivido tendo que muitas vezes
abrir mão de qualquer ressonância de alteridade.
Em A Trégua, Levy (2010) relata a sua libertação de Auschwitz. Nesse livro
encontramos um sensível relato da cena de chegada dos soldados russos que, ao irem a seu
encontro, não o encontram contagiado pela alegria de estar salvo, mas sim fulminado pela
culpa de estar vivo. Vergonha de um justo, portanto perante a atrocidade e o horror.
Justamente, por conta desse efeito é que os sobreviventes jamais poderão advogar para si a
possibilidade de serem testemunhas autênticas de um acontecimento tão emblemático, mas
o mais grave dessa constatação é que nivelado ao processo de subjetivação dos sobreviventes
encontra-se a culpa e o ressentimento e, nesse, sentido a leitura de Agamben (2008) nos
convida a pensar: a vergonha é um problema de experiência ética ou um mero exame
minucioso de consciência? Provocativamente Agamben (2008) parece escolher a segunda
opção uma vez que sua análise demarca a própria inércia dos sobreviventes em relação as
suas experiências dramáticas vivenciadas no campo, pois segundo Agamben (2008), ao
sobrevivente do horror lhe é imputado à árdua impossibilidade de superar a vergonha. Em
10
um modelo de governo catastrófico como o do estado de exceção e da biopolítica o grande
emblema da subjetividade é: vivo, portanto sou culpado.
Embora deva-se ressaltar o caráter pessimista da leitura agembeniana em torno da
relação entre subjetividade e vergonha há que se lembrar que ele a faz justamente por
preocupar-se em analisar a culpa como categoria ética partindo do pressuposto de que a
vergonha seria uma espécie de entrecruzamento dos processos de subjetivação e do que
Agamben (2008) chama de dessubjetivação. Ou seja, um intenso jogo de tornar-se algo e, logo
em seguida, fazer-se desaparecer como sujeito do enunciado através do efeito paradoxal de
ser portador e exegeta dos jogos linguísticos, dos sentidos e dos significados, mas ao mesmo
tempo não conseguir remeter a aporia da transmissão de uma experiência da linguagem por
mais que ela seja evocada para narrar a catástrofe. Não podendo ser compartilhada a vivência
dos sobreviventes torna-se testemunha do inefável.
Deste modo, Agamben (2008) sinaliza o duplo efeito da testemunha atrelado a
analítica dos processos de subjetivação: de um lado, o sobrevivente que pode falar, mas não
encontra nada de interessante para dizer. De outro lado, o afogado, aquele que contemplou
a górgona e, portanto, teria muito a compartilhar, mas já não pode falar. Se optarmos pela
segunda função do papel testemunhal teremos de admitir, de acordo com Agamben (2008),
que é impossível estabelecer uma relação pensada como algo referente ao sujeito da
testemunha, dificultando, dessa maneira, rastrear a posição dessa figura na sociedade, na
história e na cultura. Emerge aqui a brilhante problematização empreendida por Agamben
(2008) ao construir uma importante analítica sobre a conjetura da biopolítica deslocando seus
efeitos das leituras que procuraram reparar a história, através do resgate das injustiças
cometidas em nome da efetivação sobre os desdobramentos da substância ética na nossa
contemporaneidade. Uma substância ética que não é mais voltada para o propagandismo
engajado realizado por alguns grupos, mas que procura simplesmente sinalizar as zonas de
imprecisão que compõem a performatividade do estado de exceção.
4. Considerações finais: o tempo que nos resta...
11
Em uma de suas aclamadas Teses Sobre a História Walter Benjamin (2012, p. 09)
aclama que
É conhecida a história daquele autômato que teria sido construído de tal maneira que
respondia a cada lance de um jogador de xadrez com outro lance que lhe assegurava a
vitória na partida. Diante de um tabuleiro, assente sobre uma mesa espaçosa, estava
sentado um boneco em traje turco, cachimbo de água na boca. Um sistema de espelhos
criava a ilusão de uma mesa transparente de todos os lados. De fato, dentro da mesa estava
sentado um anãozinho corcunda, mestre de xadrez, que conduzia os movimentos do
boneco por meio de um sistema de arames. É possível imaginar o contraponto dessa
aparelhagem na filosofia. A vitória está sempre reservada ao boneco a que se chama
“materialismo histórico”. Pode desafiar qualquer um se tiver ao seu serviço a teologia, que,
como se sabe, hoje é pequena e feia e, assim como assim, não pode aparecer a luz do dia.
Para além da constelação de interpretações possíveis acerca dessas preciosas palavras,
cumpre-se ressaltar que um dos projetos possíveis desenvolvidos por Agamben (2016) seria o
de justamente oportunizar o triunfo desse anãozinho corcunda o qual Benjamin (2012) chama
de teologia. E Agamben (2008), a partir da ressignificação das cartas escritas por Paulo,
procura explorar na nossa contemporaneidade a ideia de resto como elemento fundamental
de combate contra as arbitrariedades da biopolítica.
Nesse sentido, é correto afirmar que O Que Resta de Auschwitz caracteriza-se como
uma tentativa formulada por Agamben (2008) de estabelecer uma aproximação da teologia
com a política no sentido de pensar o resto como possibilidade messiânica a partir da própria
contração do tempo fazendo emergir o agora da cognoscibilidade, ou seja, o exato momento
pelo qual um instante converte-se num efeito de transformação radical ruptura histórica,
política e cultural. Nesse sentido, a leitura realizada por Agamben (2008) torna-se altamente
relevante para se construir uma problematização dos modos de vida na nossa sociedade a
partir da efetivação de uma terra sem mal.
12
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. ___. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. ___. O Que Resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. ___. Meios Sem Fins: notas sobre a política. Tradução: Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. ___. O Tempo que Resta: um comentário à Carta aos Romanos. Tradução: Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Tradução: Paulo Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 07-20. CASTRO, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência. Tradução: Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. CHAR, René. Recherche de la Base et du Sommet. Paris: Gallimard, 1971. FRANKL, Vitor. Em Busca de Sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução: N/D. Petrópolis: Vozes, 2015. GAGNEBIN, Jeane Marie. Apresentação. In: AGAMBEN, Giorgio. O Que Resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 09-18. LEVY, Primo. Os Afogados e os Sobreviventes. Tradução: Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: 1990. ___. A Trégua. Tradução: Marco Luchesi. Rio de Janeiro: Companhia de Bolso, 2010. ___. É Isto um Homem? Tradução: Del Re Luigi. São Paulo: Rocco, 2013. LEVY, Primo. BENEDETTI, Leonardo. Assim Foi Auschwitz. Tradução: Federico Carotti. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2015.