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1 IX Seminário Nacional Sociologia & Política Maio, 2018, Curitiba GT 06 Pensamento Social Exercício de comparação: a “periferia” e as “margens” como pontos de vista Maria Caroline Marmerolli Tresoldi

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IX Seminário Nacional Sociologia & Política

Maio, 2018, Curitiba

GT 06 – Pensamento Social

Exercício de comparação:

a “periferia” e as “margens” como pontos de vista

Maria Caroline Marmerolli Tresoldi

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Exercício de comparação: a “periferia” e as “margens” como pontos de vista

Maria Caroline Marmerolli Tresoldi1

Resumo: Lendo literatura e sociedade uma a partir da outra e fazendo das relações entre cultura

e política um ato de cumplicidade, Roberto Schwarz e Beatriz Sarlo se destacam no âmbito da

crítica literária e cultural de seus países, o Brasil e a Argentina, e no cenário mais amplo da

crítica “latino-americana”. Considerando a relevância teórica e metodológica de alguns de seus

ensaios para a crítica literária e para a sociologia, que se desdobram em destacadas reflexões

sobre a modernidade e o capitalismo qualificados como “periféricos”, o desafio empreendido

nesta comunicação, a partir de um esforço comparativo, é problematizar se a “condição

periférica” de países historicamente “dependentes” estrutura as interpretações sociais tecidas

pelos críticos, assumindo um sentido que não está restrito ao espaço social, mas se inscreve

também como desafio analítico para qualificar o moderno a partir de um ponto de vista diferente

daqueles fabulados na Europa Ocidental e no mundo anglo-saxão.

Palavras-chave: Roberto Schwarz, Beatriz Sarlo, Literatura e Sociedade, Condição Periférica,

Pensamento Social Comparado.

Introdução

Em julho de 2005, na terceira edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), o crítico

brasileiro Roberto Schwarz e a crítica argentina Beatriz Sarlo participaram da mesa “Um lugar

para as ideias”. Reconhecidos em seus países e no cenário da crítica internacional como

intérpretes incontornáveis das obras de Machado de Assis e de Jorge Luis Borges, escritores

chaves nas literaturas brasileira e argentina, os críticos compartilham a mesa na FLIP

justamente para falar sobre tais escritores. Em linhas gerais, tensionando com questões do

presente histórico os nexos de sentido entre compromisso intelectual e engajamento, literatura

e ideologia, intelectuais e política na periferia de um mundo globalizado, as falas de Schwarz e

de Sarlo retomaram temas e dilemas sociais formalizados esteticamente nos romances de

Machado de Assis, escritos principalmente no final do século XIX no Brasil, e nos contos e

ensaios de Jorge Luis Borges, escritos em diferentes momentos na Argentina do século XX.

No ano seguinte, em 2006, Roberto Schwarz publica na revista Novos Estudos Cebrap

o ensaio “Leituras em competição”, no qual acompanha a recepção crítica da obra de Machado

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas, onde

desenvolve o projeto de pesquisa “Olhares periféricos: crítica e sociologia no ensaísmo de Roberto Schwarz e de

Beatriz Sarlo”. O trabalho, que caminha para sua conclusão, recebeu financiamento da Fundação de Amparo à

Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected]

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de Assis no Brasil e no exterior. O ensaio, republicado em seu último livro Martinha versus

Lucrécia (2012), começa com uma epígrafe de Beatriz Sarlo, retirada de Jorge Luis Borges, un

escritor en las orillas (1993):

Este livro é resultado de quatro conferências que dei na Universidade

de Cambridge. (...) Ao falar ali, e em inglês, sobre Borges, tive uma sensação

curiosa. No âmbito daquela universidade inglesa, uma argentina falava de um

escritor argentino que hoje consideram “universal”. (...) A reputação mundial

de Borges purgou-o de nacionalidade (Sarlo, 2008, p.13).

O ensaio de Roberto Schwarz parte da impressão de que a recepção internacional da obra

machadiana, tal como assinala Beatriz Sarlo sobre a obra de Borges, constitui perdas

significativas, dentre as quais sua “nacionalidade”. O objetivo do crítico, então, é demonstrar a

complexidade e a tensão da dialética entre local e universal que compõem a tessitura da obra

machadiana, mas que nem sempre é ressaltada pela crítica especializada (seja brasileira ou

estrangeira). Se esse tema aparece de algum modo em ensaios anteriores do crítico brasileiro,

ele é reelaborado com novas questões, e a “paisagem” que Beatriz Sarlo constrói para Borges,

sugerindo que o escritor argentino pode ser lido a um só tempo como nacional e cosmopolita,

serve como ponto de partida para o crítico brasileiro.

Assim como Beatriz Sarlo, que escreveu parte de suas notas sobre Jorge Luis Borges

fora da Argentina (ou, mais precisamente, para um público não argentino), os primeiros ensaios

mais sistematizados de Roberto Schwarz sobre a obra machadiana são escritos em um exílio na

França, no contexto da ditadura militar brasileira, momento no qual desenvolve sua tese de

doutoramento, publicada no Brasil como Ao vencedor as batatas (1977). De certo modo, é

possível aventar como hipótese que o “desterro” de Beatriz Sarlo e de Roberto Schwarz de seus

contextos nacionais, jogam luz à originalidade dos escritores: a de formalizar no plano literário

a experiência social de suas nações “periféricas”.

A impressão de que a ironia, o humor e o sarcasmo da obra machadiana seriam

“brasileiros”, segundo Roberto Schwarz, não era uma visão corrente antes da segunda metade

do século XX. Em geral, a crítica literária brasileira procurava explicar a grandeza do clássico

sem relacioná-lo à vida e à literatura nacional. Nesse sentido, o escritor era considerado “o

maior”, mas “o menos brasileiro” dos escritores (cf. Schwarz, 2012b). Do mesmo modo, as

polêmicas leituras da obra de Jorge Luis Borges feitas pela crítica literária argentina, sugerem

que o fabulista pouco ou nada teria a ver com à história nacional e à tradição literária de seu

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país. Se, por um lado, Machado de Assis e Jorge Luis Borges ocupam posições um pouco

diferenciadas nos cânones de seus países, uma vez que o escritor brasileiro é considerado quase

uma unanimidade, enquanto Borges desperta “amor e ódio”, “denúncia e fascínio” em seu país,

para usar as expressões de Beatriz Sarlo (2003); por outro lado, em diferentes momentos da

recepção crítica de suas obras, eles foram considerados destacados escritores que pouco teriam

a ver com a vida nacional.

Partindo de diferentes polêmicas elaboradas pela crítica especializada nas obras de

Machado de Assis e de Jorge Luis Borges, Roberto Schwarz e Beatriz Sarlo desenvolvem

diferentes ensaios em que esses escritores são centrais, tais como: Ao vencedor as batatas

(1977) e Um mestre na periferia do capitalismo (1990), no caso do crítico brasileiro; e

Modernidade Periférica (1988) e Jorge Luis Borges, um escritor na periferia (1993), no caso

da crítica argentina. Tomando como objeto esses livros, a comunicação acompanha as leituras

que os críticos desenvolvem sobre as obras de Machado e de Borges, e a interpretação social

que tecem a partir e por meio desses escritores. Apresentando primeiro a leitura de Schwarz e,

na sequência, a de Sarlo, a última seção cruza as leituras dos críticos, apostando na hipótese de

que suas interpretações permitem visualizar uma variedade de respostas que escritores e

intelectuais fabularam acerca da “condição periférica” de países historicamente dependentes,

nos quais as referências importadas se combinam de diferentes modos às matérias locais.

A literatura vista de perto: leitura de Machado de Assis

Nas obras complementares Ao vencedor as batatas (1977) e Um mestre na periferia do

capitalismo (1990), Roberto Schwarz dá continuidade às reflexões desenvolvidas por Antonio

Candido em Formação da Literatura Brasileira (1959), que sugerem que Machado de Assis

seria uma síntese do sistema literário brasileiro, uma vez que, percebendo os pontos fracos de

seus predecessores, combina a um só tempo a “cor local” e as “matérias universais”. Para

alargar a hipótese anunciada por Candido, o primeiro livro de Schwarz analisa o início do

romance brasileiro nas obras de José de Alencar e da primeira fase de Machado de Assis e, o

segundo livro, demonstra como a forma machadiana se alterou em uma “reviravolta”,

construindo um ponto de vista que permite uma profunda visão do Brasil oitocentista, com ecos

ainda na contemporaneidade.

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Para introduzir o estudo do início dos romances brasileiros, Schwarz problematiza,

nestes livros, não apenas a qualidade estética operada por Machado, mas também o que é a

“matéria local” que dá suporte à ficção. Isso implica, mais precisamente, tematizar os impasses

e os dilemas enfrentados pela sociabilidade brasileira após o processo de Independência (1822),

que produziram uma sensação de aparente contradição da modernidade que tomava forma no

país. Nessa sociabilidade, no argumento do crítico, combinavam-se as lógicas do ideário liberal

europeu (como a igualdade perante a lei), com uma sociedade composta por escravos e por

homens livres pobres que dependiam de favores da classe proprietária. Uma matéria local,

portanto, que se apresentava como “comédia ideológica”, integrando o Brasil à “ordem

moderna” por uma via de acesso marcada pelo escravagismo, pela exclusão, e tendo nas

relações de favor (e não nos direitos) uma “mediação quase universal” (Schwarz, 2012a, p.16).

Esse quadro, segundo a chave de leitura proposta pelo crítico, sugeria que o país estava

distante das nações civilizadas. Distantes, porém, ligado à ordem revolucionada pelo capital, na

medida em que oferecia as matérias primas para o mercado externo e consumia a manufatura

produzida por esse mercado. Isso sem falar nos ornamentos e nas instituições burguesas que

compunham a cor local. Diante disso, Schwarz argumenta que a ligação do país com o “mundo

moderno” se dava de modo pouco civilizado, aparentemente atrasado, mas com um atraso

fundado em ideias e instituições modernas, “o que naturalmente mostrava o progresso por um

flanco inesperado” (Schwarz, 2012d, p.37-42). É esse processo social nada óbvio que, segundo

Schwarz, transformou-se em forma literária na segunda fase da obra machadiana, que tem início

com o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880).

Com um imenso desnível em relação à ficção anterior (notadamente de José de Alencar)

e aos primeiros romances do escritor, Schwarz sugere que Memórias combina a um só tempo

“o direito à universalidade das matérias” e a preocupação de Machado de Assis em ser “homem

do seu tempo e do seu país”. Essa preocupação faz com que o escritor “capte e dramatize” o

movimento contraditório que conduz a estrutura social do Brasil na forma de seu narrador,

expressando a sociedade brasileira real, heterogênea e desigual (Schwarz, 2012d, p. 19). Mais

precisamente, o crítico argumenta que a preocupação de Machado se transforma em ousadia

literária, porque o escritor fluminense coloca em cena um narrador volúvel – que põe o figurino

do gentleman moderno, tira-o e volta a colocá-lo, – adotando uma posição “insustentável” de

dominação de classe no país, ao mesmo tempo de “aceitação comum”.

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A volubilidade e a desfaçatez do narrador machadiano, para Schwarz, figuram

justamente o capricho das elites (e também das instituições) brasileiras que, sem quererem abrir

mão do Ocidente progressista e culto (isto é, da norma), tampouco queriam abrir mão da prática

do favor e do trabalho escravo (isto é, da infração). Essa aparente ambivalência, conforme

demonstra o crítico, é perceptível na sucessão dos episódios comandados pelo narrador Brás

Cubas, que combinam situações fundadas tanto na escravidão e no clientelismo (e não por

acaso, o narrador-personagem aparece como “menino diabo” ao maltratar os escravos e como

“protetor” ao ajudar uma agregada velha), quanto na norma burguesa (pelas ideias que mobiliza

na ciência, na política e na autonomia do indivíduo burguês), situações que causam uma marca

negativa e a sensação de que algo está errado.

Ao apresentar o “espírito burguês” negativamente no narrador volúvel, de modo que a

volubilidade passa a marcar o efeito opaco da posição do Brasil no mundo moderno (como

elemento que confere cor local e sátira aos problemas que não são apenas nacionais), Machado

cria, de acordo com Schwarz, uma mimese negativa de caráter realista. Se não é um realismo

como o modelo europeu, já que as diferenças históricas impuseram mudanças à composição, o

romance machadiano não deixa de dar uma visão de conjunto da sociabilidade estabelecida na

periferia. Retrata, inclusive, o universo não burguês, que tem a função de dar tom crítico à cor

local, dimensão que foge ao recorte individualista da prosa do Realismo, sendo, portanto, “um

realismo com soluções antirrealistas” (Schwarz, 2012d, p.140).

Em linhas gerais, Roberto Schwarz sugere que a atitude de Machado, ao abusar do uso

impróprio das formas modernas por seu narrador, é astuta. Percebendo as ironias latentes da

situação que vivia, tratou de explorá-las sistematicamente, associando a estrutura romanesca,

com inspiração em diversos procedimentos – como a forma biográfica, a forma do romance

romântico e o naturalismo – às particularidades históricas do país. Compôs, assim, uma obra

singular, que interpreta o país em sua heterogeneidade, dependência, desigualdade e

especificidade diante do quadro geral traçado pelo capitalismo. Nessa interpretação, a

modernidade à brasileira não alimenta ilusões: “ela só lhe aumenta a miséria, pois, sem elogiar

o atraso, desqualifica o progresso de que aquele faz parte” (Schwarz, 2012d, p.185-186).

Recuperando os argumentos do crítico, chama atenção a interpretação social do Brasil

que é tecida a partir e por meio da obra de Machado de Assis. Publicados entre a década de

1970 e 1990, durante a ditadura militar e os anos que seguem o processo de transição

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democrática no Brasil, os ensaios do crítico apresentam uma reflexão do presente da sociedade

brasileira, ao extrapolarem o plano da formação nacional e questionarem os diversos nexos de

sentidos do “capitalismo periférico” no país, bem como os efeitos e as consequências da

“modernização conservadora” durante o regime militar e o processo de transição democrática

– processo que até hoje parece não ter se encerrado. Se na formação nacional a “modernidade”

ganhou contornos, por assim dizer, “inesperados”, já que a ligação do país como o “mundo

moderno” se faz mediante “o atraso social”, e no plano das relações sociais marcada pelo favor

como “mediação universal”, a modernização conservadora pela qual o Brasil passou nas últimas

décadas do século XX também contém, seguindo a leitura de Schwarz, a lógica “da norma e da

infração” figurados por Machado de Assis. Afinal, a volubilidade do narrador machadiano é

construída levando em conta a dualidade latente entre direitos (norma burguesa) e a prática do

favor (infração patriarcal).

Essas lógicas representam as ambivalências ideológicas das elites e das instituições

brasileiras, que ainda combinam arcaico e moderno, desigualdades e privilégios, repondo o

passado no presente. Se Machado de Assis construiu, como sugere o crítico, uma das

interpretações mais instigantes de seu tempo e para além dele, Schwarz também tece uma

incontornável interpretação do país, ressaltando os diferentes nexos de constrangimentos da

“condição periférica” ocupada pelo Brasil no mundo moderno, cujas consequências, apenas

mais óbvias, são as dificuldades dos processos de integração e de construção da cidadania por

meio da efetiva democratização dos direitos sociais. Trata-se de uma crítica dialética e negativa

do processo social brasileiro, sem desconsiderar o movimento mais geral da sociedade

contemporânea.

Marginal no centro e cosmopolita nas margens: leitura de Jorge Luis Borges

Despertando “amor e ódio”, “denúncia e fascínio” na Argentina, principalmente por posições

políticas conservadoras, a obra de Jorge Luis Borges foi objeto de exaustivas reflexões. A

geração de críticos argentinos de esquerda que inspira Beatriz Sarlo, como Adolfo Prieto e

David Viñas, escreveram contra o escritor. Considerado por muitos um cosmopolita

desinteressado por seu país, isto é, um escritor que nada teria a ver com a vida nacional e com

a tradição literária argentina, Beatriz Sarlo procura construir uma nova “paisagem para Borges”.

O objetivo, de acordo com a crítica, não é prender o escritor aos limites de uma literatura

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nacional, nem o devolver a “um cenário pitoresco e folclórico que ele sempre repudiou”, mas

mostrar alguns diálogos do autor portenho com “os textos e os autores a partir dos quais

produziu suas rupturas estéticas e suas polêmicas literárias” (Sarlo, 2008, p. 14-16).

As primeiras leituras mais sistematizadas de Beatriz Sarlo dos escritos de Jorge Luis

Borges aparecem no livro Modernidade Periférica (1988). Nele, a crítica argentina parte de

algumas pistas formuladas pelo escritor para compreender de modo mais complexo e nuançado

as múltiplas experiências modernas vividas pela sociedade argentina no início do século XX.

Nesse contexto, ao voltar de uma temporada na Europa (entre 1914 e 1921), o jovem Borges se

intriga como o progresso vertiginoso e com a decadência de bairros tradicionais de Buenos

Aires, e procura formalizar aquelas experiências em seus contos e ensaios. A “nova” cidade que

Borges encontra, segundo Sarlo (2010), era “moderna”, com certo padrão de racionalização,

mas construída sem grandes monumentos, com uma população de origem imigrante e

estabelecida em um rio “nem belo, bem pitoresco”.

Considerando as “ausências” e os “fantasmas” que o jovem Borges se intriga ao olhar

para a “nova” cidade de Buenos Aires, que estava se convertendo em uma metrópole ainda

cercada pelo campo e pela cultura criolla, Sarlo procura tensionar a modernidade europeia e a

diferença rio-platense, o criollismo e as vanguardas, acompanhando a modernização acentuada

e acelerada da cidade entre os anos de 1920 e 1930, bem como as formas pelas quais o

modernismo (estético e intelectual) se manifestou. Observando, mais precisamente, a

heterogeneidade do espaço público de Buenos Aires, a crítica observa que os processos de

modernização misturavam a incorporação de imigrantes, intensa urbanização – com projetos

urbanos de diferentes países europeus e das cidades de Chicago e Nova York –, alfabetização,

crescimento da mídia impressa, novas tecnologias de produção e transporte etc. As mudanças

da cidade geraram muitos entusiastas, mas também desconfianças inéditas em relação às ideias

e aos ornamentos importados. Afinal, se a cidade vencia o mundo rural e a imigração europeia

proporcionava novas bases demográficas, complexificando o sistema cultural, as contradições

de fundo se faziam (e se fazem) sentir nas diversas “margens” da cidade. Dentre as principais

contradições, segundo Beatriz Sarlo (2010), o Estado e as instituições se deslocam na “direção

das margens do crime” ou “socialmente para cima”, na direção do “mundo dos senhores” que

praticam o duelo como “privilégio cultural de classe”.

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O conceito de “modernidade periférica” arma, então, o problema de compreender o

modo como arcaico e moderno, campo e cidade, nacional e estrangeiro, vão se imbricando nos

processos culturais e de modernização econômica vivenciados no início do século XX pela

cidade de Buenos Aires, uma grande capital da “periferia” de um capitalismo em expansão.

Dentre as consequências desses processos, Sarlo salienta duas características que se tornam

matéria da ficção de Borges: (i) a formação de uma “cultura de mesclas”, tema que repercute

na literatura de diferentes modos e é amplamente abordado no interior do argumento borgeano,

que apresenta resoluções formais (estéticas e ideológicas) para os dilemas que se apresentam

em torno do local e do universal, posicionando-se com “astúcia, nas margens, nas dobras, nas

zonas obscuras das histórias centrais” (Sarlo, 2010, p.92); (ii) como as ideias, os ornamentos e

as formas vão sendo aclimatadas em um ambiente político, cultural e social distinto do qual

foram pensadas, persiste de maneira contraditória a ideia de que a “periferia” é um espaço

culturalmente tributário – problema que permeia a obra do escritor portenho.

No argumento de Sarlo, olhando para um passado criollo, Jorge Luis Borges quer evitar

as armadilhas da literatura local, que só produziam uma “literatura particularista”; mas, ao

mesmo tempo, o escritor não renuncia a densidade cultural de seu país – formado pela literatura

gauchesca, pelos escritos de Domingo Faustino Sarmiento, pelas sagas familiares e guerras civis

antes da organização do Estado nacional, pelas lutas sangrentas e injustas entre índios e brancos

durante décadas etc. Os temas fantásticos do escritor, de acordo com a crítica, são a arquitetura

que organizam dilemas filosóficos e ideológicos, assim como reordena as marcas do passado

argentino, que não desaparecem jamais de sua obra. Por isso, Sarlo argumenta que a obra do

autor portenho não se instala nem no criollismo vanguardista de seus primeiros livros das

décadas de 1920 e 1930, tampouco na erudição heteróclita de seus contos, falsos contos, ensaios

e falsos ensaios que reverberam questões formuladas pela literatura francesa ou inglesa até os

anos de 1970. Ao contrário, para Sarlo, nos escritos de Borges se encontra a “consciência de

mescla” e a nostalgia de uma literatura europeia que um argentino e latino-americano nunca

vive de todo como “natureza original” (Sarlo, 2008, p.17).

De modo mais preciso, a crítica ressalta que a invenção de Borges é o modelo das

“orillas”, que surge em seus primeiros livros de poesias e arma um dos paradigmas da literatura

(e da sociedade) argentina: “uma literatura construída (como a própria nação) no cruzamento

da cultura europeia com a inflexão rio-platense do castelhano no cenário de um país marginal”

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(Sarlo, 2008, p.47). As “orillas” como espaço imaginado e a figura do “orillero” – um

trabalhador em geral pobre, vivendo entre os limites do campo e da cidade – permitem, na chave

de leitura proposta por Sarlo, que Borges recupere o passado argentino e o converta em matéria

literária com certa ousadia e liberdade. Essa invenção operada por Borges, seguindo a crítica,

desfaz a ideia de uma possível “inferioridade das margens, das orillas: o escritor periférico tem

as mesmas prerrogativas que seus predecessores ou contemporâneos europeus” (Sarlo, 2008, p.

86). Nesse sentido, a crítica argumenta que o “cosmopolitismo” reivindicado por Borges – e

objeto de ataques de seus críticos e escritores contemporâneos – é a condição para uma nova

estratégia de narrar as desventuras da matéria (social e literária) argentina.

Em linhas gerais, se as “orillas” representam, na literatura borgeana, um espaço

geográfico entre as planícies e as primeiras casas de Buenos Aires em 1900, ou seja, entre

campo e cidade, não deixam de ser também um espaço social, político e cultural ocupado por

uma nação nova e “periférica”, na qual vão se imprimindo marcas de distância (de imitação, de

apropriação e de novas fabulações) da cultura europeia. Do mesmo modo que as “orillas” são

importantes para as formalizações estéticas operadas por Borges, “as margens” assumem uma

função heurística na obra de Beatriz Sarlo, aparecendo como tema e como problema: não se

referem apenas a um lugar geográfico e imaginado, “as margens” configuram também um modo

de olhar a heterogeneidade que constitui diferentes temporalidades na experiência histórica da

modernidade. Em outros termos, se a originalidade de Borges, na leitura de Beatriz Sarlo, é

fazer das “orillas” uma estética, a crítica faz das “margens” um método, explorando os

diferentes sentidos assumidos pela modernidade em seu país (e para além dele).

Escritos entre o final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, no processo de

redemocratização argentina, os argumentos de Sarlo aqui recuperados tensionam os sentidos do

“marginal”, do “periférico” e do “moderno”. Olhando para questões formuladas por um dos

maiores escritores argentinos, jogando com o tema da composição da população argentina, com

os desafios da imigração e da modernização das cidades – um tema por excelência das ciências

sociais argentinas –, Beatriz Sarlo toma “as margens” como problema teórico para diferenciar

a modernidade europeia daquela que toma forma no Río de la Plata. Mais do que isso, a crítica

argentina sugere um olhar atento às “periferias” (reais e simbólicas), de modo a problematizar

a integração social dos diferentes grupos e construir uma sociedade com bases mais

democráticas, que não seja ameaçada por constantes rupturas políticas, como foi o caso da

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experiência argentina do século XX, marcada por diferentes golpes. Com um “passado pela

frente”, com a presença tão forte da memória da ditadura militar, dos horrores do terrorismo de

Estado, como narrar essa memória? Como construir uma sociedade não apenas com bases

democráticas, mas na qual a democracia seja verdadeiramente uma cultura? Essas questões, que

de algum modo perpassam a preocupação dos livros de Sarlo aqui recuperados, é uma constante

no ensaísmo da crítica argentina, que procura problematizar a cultura contemporânea e o lugar

do intelectual crítico e público para alargar a “cultura democrática”.

“Periféricos” e/ou “marginais” por comparação

Ao acompanhar as interpretações que Roberto Schwarz e Beatriz Sarlo tecem acerca das obras

de Machado de Assis e de Jorge Luis Borges, bem como o conjunto de questões que derivam

dessas interpretações para pensarem seus respectivos contextos nacionais, é possível observar

algumas semelhanças e diferenças que se cristalizam nas análises. Em linhas gerais, os críticos

sugerem que Machado e Borges problematizam alguns dos dilemas e das tensões entre as ideias

e formas europeias quando combinadas à empiria local. Afinal, ao lerem a tradição literária

anterior de seus países, cuja característica principal era figurar “a cor local”, os escritores

procuraram superar as armadilhas criadas por tais tradições, reivindicando a “universalidade

das matérias”, sem, entretanto, deixar de olhar para seus respectivos contextos.

Nessas interpretações, Schwarz e Sarlo retomam temas e problemas caros à crítica

literária “latino-americana”, em particular, questões derivadas das relações entre “localismo” e

o “cosmopolitismo” que permeiam o tecido da vida cultural de “contextos periféricos”. Essas

questões, contudo, são encaminhadas de diferentes modos pelos críticos, não apenas porque

Machado e Borges escrevem em diferentes línguas (português x espanhol) e gêneros (romances

x contos), mas sobretudo porque se tratam de diferentes contextos e tempos históricos. Machado

de Assis localiza seus principais romances no final do século XIX no Brasil, na passagem do

Império à República, da escravidão ao trabalho livre, enquanto Jorge Luis Borges escreve seus

ensaios e contos em meados do século XX na Argentina, olhando para um processo de rápida

modernização econômica, urbanização das cidades e mudanças no sistema cultural. Essas

diferentes temporalidades e espacialidades, não por acaso, colocam questões específicas sobre

a “condição periférica” ocupada pelo Brasil e pela Argentina, além de marcarem finas

diferenças nos argumentos dos críticos.

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A ideia de “periferia”, mobiliza por Roberto Schwarz, é utilizada no singular, indicando

que o capitalismo que toma forma em uma ex-colônia é um sistema que compreende relações

aparentemente contraditórias (como liberalismo, escravidão e relações de clientela e proteção).

Beatriz Sarlo, por seu turno, argumenta que seu país é uma nação culturalmente periférica, mas

também sugere pensar as diferentes “orillas” (“margens”) a partir dos quais a nação se forma.

Ou seja, a análise da crítica argentina oscila entre o singular e o plural, de modo a perquirir os

efeitos e os sentidos mais gerais dos processos de rápida mudança social, como ocorreu no

início do século XX na Argentina. Chama atenção que os debates do crítico brasileiro, que

recuperam questões formuladas pelas pela “sociologia paulista” entre os anos de 1950 e 1980,

estão inseridos na tentativa de compreender o processo de reprodução estrutural do sistema

capitalista, no qual a ideia de “atraso” é circunscrita aos avanços da sociedade do capital, de

modo que o desenvolvimento do país, mas também de outras ex-colônias, só pode ser marcado

pela “modernização do atraso”, o que configura, tomando o todo, um “desenvolvimento

desigual e combinado do capitalismo”. Beatriz Sarlo, por sua vez, situa o debate sobre

“modernidade periférica” a partir das perspectivas aventadas nos trabalhos de Carl Schorshe

(Viena fin-de-siècle, 1979) e de Marshall Berman (Tudo que é sólido desmancha no ar, 1982),

que apontam a necessidade de compreender as diferentes temporalidades que compõem as

culturas. Mais especificamente, a crítica procura analisar como o passado criollo e a

incorporação de imigrantes se confundem e se misturam de diferentes formas, reverberando no

campo intelectual, artístico e cultural de uma nação jovem, sem grandes tradições estabelecidas.

Em termos sintéticos, se há tensões entre os modelos importados de outras experiências

e a matéria local “latino-americana” (quer dizer, brasileira e argentina), os temas e problemas a

partir dos quais Roberto Schwarz e Beatriz Sarlo trabalham possuem finas diferenças. De todo

modo, para fins de comparação, interessa notar como as interpretações desenvolvidas pelos

críticos permitem alargar os sentidos em que o “moderno” e a “condição periférica” podem ser

problematizados – no caso analisado pelo crítico brasileiro, isso significa compreender o que

ocorre com as ideias liberais quando somadas à escravidão e às relações paternalistas, enquanto

no caso estudado pela crítica argentina, isso implica compreender como as grandes cidades

incorporaram centenas de imigrantes europeus e lidam com o passado criollo, criando um

cenário de metamorfoses e mesclas, cuja principal característica é a cópia, a imitação, a

bricolagem – sem, no entanto, que da cultura periférica não se produzam soluções “originais”.

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Importa observar, ainda, outra dimensão das questões entre “localismo” e do

“cosmopolitismo”, que pode ser pensada a partir da questão formulada por Beatriz Sarlo: “pode

um autor ser ao mesmo tempo nacional e cosmopolita?”. Essa questão, que repercute no ensaio

de Roberto Schwarz “Leituras em competição” (2006), é respondida de modo afirmativo por

ambos, mas os argumentos se encaminham com distintos graus de radicalidade. No caso de

Roberto Schwarz, ele argumenta que Machado de Assis produziu uma forma literária para

explicar as particularidades da experiência brasileira nos Oitocentos, interpretando a sociedade

em sua heterogeneidade, dependência e desigualdade diante do quadro geral traçado pelo

capitalismo. Construindo uma obra a um só tempo nacional, moderna, complexa e negativa,

tornou-se um “mestre na periferia do capitalismo”. Beatriz Sarlo, por sua vez, sugere que

Borges é um “marginal no centro” e um “cosmopolita nas margens”. Escrevendo em um

encontro de caminhos e cruzamentos da tradição ocidental com a tradição rio-platense, ele se

interrogou “como ninguém sobre a forma da literatura numa das margens do Ocidente”, fazendo

das “orillas”, das margens, “uma estética” (Sarlo, 2008, p.16).

Entretanto, quando esses escritores circulam por outros espaços e começam a ser

listados entre os cânones da literatura mundial, a reputação de ambos é estabelecida pela

qualidade estética de suas obras e, não por acaso, a nacionalidade dos escritores é praticamente

apagada. Segundo Roberto Schwarz, a universalização de certos autores – como Machado de

Assis – faz com que eles apareçam como uma superioridade que foge à regra, e o sucesso vem

“de mãos dadas com o desaparecimento da particularidade histórica”, de modo que “o autor

entra para o cânon, mas não o seu país, que continua no limbo” (Schwarz, 2012b, p.22). No

argumento de Sarlo, caso haja “justiça estética” na “universalização triunfal” da obra de Borges,

esse reconhecimento apaga as circunstâncias nas quais suas obras foram pensadas. O que se

obtém, nesse sentido, “é um Borges inteligível nos termos da cultura ocidental e das versões do

Oriente que esta cultura formulou, e o que se deixa de lado é um Borges igualmente inteligível

nos termos da cultura argentina e, em especial, da formação rio-platense” (Sarlo, 2008, p.14).

O problema da “universalização” dos autores, a partir do ponto de vista traçado de modo

tímido por Beatriz Sarlo ao afirmar que o escritor é um marginal no centro e um cosmopolita

nas margens, e radicalizado na leitura de Roberto Schwarz, demonstra que as questões e as

dinâmicas que envolvem a consagração de obras e autores não se prendem apenas às indagações

estéticas e às disputas no terreno do método de análise da literatura e da cultura de modo geral.

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Ao contrário, a consagração também faz parte de jogos de poder em que se constroem as

interpretações sobre os processos sociais. Nesse sentido, para falar como Roberto Schwarz

(2012b), essas questões “têm uma dimensão política na geografia do mundo contemporâneo”,

e uma dessas dimensões é a que o crítico brasileiro chama de “luta inconclusa” da ex-colônia

por sua formação moderna, contra o subdesenvolvimento, o atraso, a marginalidade, a exclusão,

a desigualdade etc.

Ora, o que se coloca em questão a partir dessa chave analítica é a percepção de que as

obras literárias também precisam ser compreendidas em seu contexto histórico, e que a crítica

literária e a crítica de arte não são alheias à reflexão social, pelo contrário, são partes

substantivas das interpretações. Justamente por isso, os trabalhos de Roberto Schwarz e de

Beatriz Sarlo sugerem algumas das contradições reais a partir das quais são formalizadas as

obras de Machado e de Borges. A matéria social local, nessas interpretações, não aparece como

mera ornamentação estilística, mas como princípio que ordena a ficção, e deve ser pesquisada

em suas múltiplas conexões de sentido. Afinal, para utilizar novamente as palavras de Roberto

Schwarz (2012b): por que supor que a experiência brasileira (ou argentina e “latino-americana”)

tenha interesse apenas local, enquanto escritores como Homero, Shakespeare e a tradição

ocidental europeia como um todo seriam universais?

Seguindo essa trilha argumentativa, a ideia de “periferia” / “orillas” utilizadas pelos

críticos, não constituem apenas um espaço social (a um só tempo físico, político e cultural), em

que se desenvolveram certa experiência do capitalismo e da modernidade política, resultados

de processos de colonização, mas também um desafio analítico fundamental para problematizar

e interpretar o chão histórico no qual as obras são pensadas. E esse chão histórico é aquele que

permite alargar a compreensão sobre os processos sociais e aumentar a capacidade de formular

questões para lidar com a diversidade e as desigualdades que existem no mundo.

Nessa linha, ao levantar essas hipóteses, sugere-se que na interpretação tecida pelos

críticos, Schwarz circunscreve a “periferia” e Sarlo circunscreve também as “margens”, como

lugares sociais incontornáveis, embora não exclusivos ou preferenciais, para compreender o

movimento geral da sociedade contemporânea. Se o cientista social e crítico literário brasileiro

aposta na “viagem das ideias” e busca problematizar o descompasso entre as ideias produzidas

no centro do capitalismo com a empiria do processo social periférico; a crítica argentina se

utiliza da ideia de “modernidade periférica” como categoria analítica operacional para

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investigar as tensões e os conflitos inevitáveis entre as diferentes culturas e sociedades. Assim

como Machado e Borges não reduzem localismo e cosmopolitismo a essências particulares,

Roberto Schwarz e Beatriz Sarlo pensam e problematizam teoricamente o “moderno” e a

“condição periférica”, ambos articulados a partir e por meio de suas contradições (ou melhor,

de suas diferenças e desigualdades).

Pensando a “periferia” (e as “margens”) nestes termos, além de se reconhecer que o

lugar de onde se fala não é neutro e que existem diferentes formas de ser periférico, há um

duplo efeito para as ideias. Por um lado, é possível avançar na crítica ao universal como

categoria, demonstrando (uma vez mais) que o moderno não tem um conteúdo fixo e ele

também “está aqui” – como chama atenção, entre outros, Richard Morse (1998) ao falar sobre

o Novo Mundo. Acompanhando os argumentos dos críticos se nota, por exemplo, a importância

de estudar as particularidades históricas das quais são feitos a matéria literária (e, para ampliar

o escopo de análise, as teorias sociais), caso se queira falar em teorias e literaturas “universais”.

É preciso problematizar as semelhanças e as diferenças entre literaturas e teorias, numa pesquisa

ampla de influências e inspirações, comparação de formas, comparação de estruturas sociais,

reconstrução dos contextos, identificação das diferenças e similitudes, o motivo das diferenças

e das semelhanças etc. Em linhas gerais, as ideias colocadas em circulação pelos críticos

concorrem ativamente para olhar o moderno (e também o periférico) a partir de outro ponto de

vista, desnaturalizando a história universal e reconhecendo a complexidade das histórias locais.

Por outro lado, ao se questionar sobre cânones interpretativos a partir da “periferia” e

das “margens”, esse outro ponto de vista permite enfrentar a problemática do descentramento

da teoria social ou de seu alargamento, discussão em voga nas ciências sociais contemporâneas.

Sem desconsiderar o hífen que liga historicamente “periferias” e “centros”, trabalhos como os

de Roberto Schwarz e de Beatriz Sarlo permitem puxar alguns fios para assinalar as assimetrias

de poder que perpassam a produção e circulação do conhecimento em escala planetária. Se há

novos modelos de relação cultural e intelectual entre os centros e as periferias no contexto da

globalização, ainda é necessário perquirir as consequências dos efeitos diversos que as “ideias

centrais” podem assumir em diferentes contextos. Diante disso, o que se deve ressaltar é que as

formulações do crítico brasileiro e da crítica argentina podem oferecer ferramentas teóricas,

analíticas e metodológicas para interpelar o debate contemporâneo sobre a polarização do

conhecimento entre países centrais e periféricos, uma vez que apontam, para usar as ideias de

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João Marcelo Maia (2009), a importância de interpretar a matéria local associada à problemática

da modernidade política, isto é, pensam “o moderno e o global de forma descentrada, sem

reduzir a periferia a simples receptáculo do centro”. Ainda em outros termos, sugere-se que a

partir do ensaísmo do crítico brasileiro e da crítica argentina temos também algumas pistas e

indícios para pensar novos mapas para a teoria social contemporânea, apostando na relação

entre centro-periferia/margem, local-universal (ou hoje global), única relação que pode trazer a

dimensão do conflito social para o plano de análise sociológica.2

***

Ao circunscrever a hipótese de leitura levantada nessa comunicação, não se trata, é importante

observar, de celebrar a “condição periférica” dos escritores e intelectuais situados às margens

como aquela que confere melhor visão para a compreensão da sociedade contemporânea.

Tampouco se busca homogeneizar as espacialidades ditas “periféricas”, pois as “periferias” e

as “margens” não são homogêneas, passivas e nem fixas, como também não são os “centros”.

Trata-se, antes, de tentar puxar fios para pensar os nexos de sentido que conformam (ou

reposicionam) o hífen histórico que liga os “centros” e suas “periferias”, reconhecendo que há

assimetrias no tecido da vida social, econômico e intelectual de “contextos periféricos” que

tendem a ser pouco lembradas no âmbito dos debates sobre a globalização – nos quais,

substituindo o Estado-nação pelo “mercado”, produzem uma aparente convergência entre

“centros” e “periferias” –, e nos estudos sobre a mundialização da cultura – que costumam

destacar as aproximações entre culturas e celebrar as “diversidades”.

Além disso, ao levantar essas questões e recuperar críticos que não necessariamente

compõem os currículos da sociologia, propõe-se a construção de um movimento às avessas. Se

Schwarz e Sarlo incorporam instrumentos analíticos e teóricos tomados de empréstimos da

Sociologia em suas notas críticas, talvez se possa fazer movimento inverso, de integrar

ferramentas da crítica literária e cultural nos pontos de vistas sociológicos, de modo não apenas

a descrever e explicar os processos sociais contemporâneos (preocupados com métodos bem

definidos, ou a partir de certas especialidades acadêmicas), mas avançar com certa ousadia em

2 É curioso notar que os trabalhos dos críticos têm repercussão tanto na teoria social que é crítica a categoria de

“universal” e ao pensamento eurocêntrico – como os estudos pós-coloniais ou decoloniais, – quanto no campo de

atuação dos críticos, da crítica literária e cultural, em particular, por meio dos trabalhos de Franco Moretti. Ambos

colaboraram, por exemplo, com o projeto “O romance”, organizado em cinco longos volumes por Moretti, com a

proposta de entender as diferentes historicidades e temáticas que compõem os romances em nível planetário.

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novas proposições para uma agenda de pesquisa crítica e normativa, cuja preocupação seja

acompanhar o processo de produção e de circulação de ideias por espaços não-hegemônicos.

Procura-se, em outras palavras, levar a sério a proposta de uma sociologia-crítica,3

reconhecendo que o pensamento e a teoria social avançam com proposições mais democráticas

quando incorporam as demandas sociais e políticas das “periferias” (sejam elas reais ou

simbólicas), e se ressignifica criticamente os cânones ocidentais que constroem as disciplinas e

as grandes interpretações dos processos sociais. Afinal, para falar como Erich Auerbach (1976),

uma referência teórica no horizonte dos críticos estudados, a literatura avança quando ela

“desrespeita os cânones” ou os incorpora de modo diferencial. E é nesse “desrespeito” que o

debate sobre a “periferia”/ “margens” encontra uma importante dimensão pública: a

preocupação com a democratização do saber, evidentemente, identifica-se com a integração

social (em sentido amplo) dos sujeitos e saberes historicamente dominados e excluídos.

Em suma, o interesse heurístico em se trabalhar com os ensaios de Roberto Schwarz e

Beatriz Sarlo aqui recuperados, justifica-se tanto na problemática sobre a “condição periférica”

– que desafiou e continua desafiando a imaginação sociológica brasileira, argentina e “latino-

americana” –, quanto pelo potencial que o ponto de vista da crítica literária e cultural pode

conferir para avançar na criação de novos mapas teóricos para sentir, pensar e agir na sociedade

contemporânea.

3 Essas preocupações, em diferentes prismas, encontram-se em: Josué Pereira da Silva (2017) e Breno Bringel e

José Maurício Domingues (2015).

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Referências Bibliográficas

Auerbach, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:

Perspectiva, 1976.

Bringel, Breno; Domingues, José Maurício. “Teoria social, extroversão e autonomia: impasses

e horizontes da sociologia (semi)periférica contemporânea”. Caderno CRH, v.28, 2015.

Maia, João Marcelo. “Pensamento brasileiro e teoria social: notas para uma agenda de

pesquisa”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 24, n. 71, 2009.

Morse, Richard. O espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas. São Paulo: Companhia

das Letras, 1998.

Sarlo, Beatriz. Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930. São Paulo: CosacNaify,

2010.

__. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008.

__. Escritos sobre literatura argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Argentina, 2007.

__. A paixão e a exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros. São Paulo; Belo Horizonte:

Companhia das Letras: Editora da UFMG, 2005a.

__. Escenas de la vida posmoderna: Intelectuales, arte y videocultura en la Argentina. Buenos

Aires: Ariel, 1994.

Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do

romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2012a.

__. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012b.

__. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 2012c.

__. Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2012d.

__. Seqüências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

__. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Silva, Josué Pereira. “O que é crítico na sociologia crítica?”. Revista Brasileira de Ciências

Sociais, v. 32, n. 93, 2017.