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EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA ROSA WEBER, MINISTRA RELATORA
DA ADIs 5680
Assunto: Inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 95/2016 que
estabeleceu teto para os gastos públicos da União por 20 anos.
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por
intermédio do NÚCLEO ESPECIALIZADO DE DEFESA DA DIVERSIDADE E DA
IGUALDADE RACIAL (NUDDIR), órgãos com sede no Setor Comercial Sul, Quadra 8,
Edifício Venâncio 2000 - Bloco B60, 3º andar, Asa Sul - Brasília - DF - CEP: 70333-
900, neste ato representado por seus Coordenadores abaixo subscritos, vem, com
fundamento no artigo 138 do novo Código de Processo Civil c/c o artigo 323, § 3º
do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, c/c §2º do artigo 7º, da Lei
9.868/1999, requerer seu ingresso como
AMICUS CURIAE
nos autos da AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - ADI, em epígrafe,
ajuizada pelo PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL) , com vistas a fomentar
a pluralização da jurisdição constitucional, em estrita consonância com o postulado
democrático, pelas razões a seguir aduzidas.
A figura do amicus curiae está assentada no conceito de “amigo da
corte”, como podemos observar pelo próprio Glossário Jurídico do site do Supremo
Tribunal Federal:
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“Amicus Curiae. Descrição do Verbete: "Amigo da Corte".
Intervenção assistencial em processos de controle de
constitucionalidade por parte de entidades que tenham
representatividade adequada para se manifestar nos autos
sobre questão de direito pertinente à controvérsia
constitucional. Não são partes dos processos; atuam apenas
como interessados na causa. Plural: Amici curiae (amigos da
Corte).”1
Os amici curiae prestam apoio à corte nas decisões, pois fornecem
fundamentos técnicos e fáticos para a decisão dos julgadores. Assim, tal figura tem
como característica o conhecimento técnico profundo sobre a matéria sob judice.
Nesse sentido é o entendimento de Alexandre de Moraes:
“A Lei nº. 9.868/99 passou a permitir que o relator,
considerando a relevância da matéria e a representatividade
dos postulantes, possa, por despacho irrecorrível, admitir a
manifestação de outros órgãos ou entidades.
Essa inovação passou a consagrar, no controle abstrato de
constitucionalidade brasileiro, a figura do amicus curiae, ou
“amigo da Corte”, cuja função primordial é juntar aos autos
parecer ou informações com o intuito de trazer à colação
considerações importantes sobre a matéria de direito a ser
discutida pelo Tribunal, bem como acerca dos reflexos de
eventual decisão sobra a inconstitucionalidade da espécie
normativa impugnada.”2
Portanto, o Tribunal deve ser sensível à atuação daqueles que
possuem a capacidade de auxiliar, tecnicamente, o deslinde do caso, ou seja os
amici curiae. Nesse sentido trata o Min. Gilmar Ferreira Mendes, nos ensinamentos
acerca da ação direta de inconstitucionalidade:
1 Supremo Tribunal Federal. Glossário Jurídico. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=533>, visualizado em 25.02.15. 2 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 17ªed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 673.
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“Constitui, todavia, inovação significativa, no âmbito da ação
direta de inconstitucionalidade, a autorização para que o
relator, considerando a relevância da matéria e
representatividade dos postulantes, admita a manifestação
de outros órgãos ou entidades (art. 7º, §2º). Positiva-se,
assim, a figura do amicus curiae no processo de controle de
constitucionalidade, ensejando a possibilidade de o Tribunal
decidir as causas com pleno conhecimento de todas as suas
implicações ou repercussões.”3(grifos nossos)
No mesmo sentido decidiram o Ministro Celso de Mello e a própria
Ministra Rosa Weber, ora relatora:
“EMENTA: [...] PROCESSO OBJETIVO DE CONTROLE
NORMATIVO ABSTRATO - POSSIBILIDADE DE
INTERVENÇÃO DO AMICUS CURIAE: UM FATOR DE
PLURALIZAÇÃO E DE LEGITIMAÇÃO DO DEBATE
CONSTITUCIONAL. - O ordenamento positivo brasileiro
processualizou, na regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº
9.868/99, a figura do amicus curiae, permitindo, em
consequência, que terceiros, desde que investidos de
representatividade adequada, sejam admitidos na relação
processual, para efeito de manifestação sobre a questão de
direito subjacente à própria controvérsia constitucional. A
intervenção do amicus curiae, para legitimar-se, deve apoiar-
se em razões que tornem desejável e útil a sua atuação
processual na causa, em ordem a proporcionar meios que
viabilizem uma adequada resolução do litígio constitucional.
A ideia nuclear que anima os propósitos teleológicos que
motivaram a formulação da norma legal em causa,
viabilizadora da intervenção do amicus curiae no processo
de fiscalização normativa abstrata, tem por objetivo
essencial pluralizar o debate constitucional, permitindo,
desse modo, que o Supremo Tribunal Federal venha a dispor
3 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na
Alemanha. 5ªed, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 244
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de todos os elementos informativos possíveis e necessários à
resolução da controvérsia, visando-se, ainda, com tal
abertura procedimental, superar a grave questão pertinente
à legitimidade democrática das decisões emanadas desta
Suprema Corte, quando no desempenho de seu
extraordinário poder de efetuar, em abstrato, o controle
concentrado de constitucionalidade. [...]” 4
“A intervenção de amicus curiae no controle concentrado de
atos normativos primários destina-se a pluralizar e a
legitimar social e democraticamente o debate constitucional,
com o aporte de argumentos e pontos de vista diferenciados,
bem como de informações fáticas e dados técnicos
relevantes à solução da controvérsia jurídica e, inclusive, de
novas alternativas de interpretação da Carta Constitucional,
o que se mostra salutar diante da causa de pedir aberta das
ações diretas. (...)
Como dito, a intervenção dos amici curiae objetiva
enriquecer o debate jurídico-constitucional, mediante o
aporte de novos argumentos, pontos de vista, possibilidades
interpretativas e informações fáticas e técnicas, o que
acentua o respaldo social e democrático da jurisdição
constitucional exercida por esta Corte.”5
Destaque-se que deve existir pertinência temática do caso em
discussão com os estudos ou atuação promovidos por aquele que pretende
ingressar como amicus curiae no processo. No presente feito, a atuação
desenvolvida pelo NÚCLEO DE DEFESA DA DIVERSIDADE E DA IGUALDADE
RACIAL (NUDDIR) da Defensoria Pública de São Paulo justifica sua inclusão na
presente demanda como amicus curiae.
Acerca da pertinência temática tratou o ministro Luiz Fux:
4 Supremo Tribunal Federal. ADI 2.321. Relator Ministro Celso de Mello, dje 10.06.2005. 5 Supremo Tribunal Federal. ADI 4.832. Relatora Ministra Rosa Weber, dje 03.12.2013.
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“O Supremo Tribunal Federal tem entendido que a presença do
amicus curiae no momento em que se julgará a questão
constitucional cuja repercussão geral fora reconhecida não só é
possível como é desejável.
A pertinência do tema a ser julgado por este Tribunal com as
atribuições institucionais do requerente legitima a sua atuação.”6
A presente ADI trata de controvérsia constitucional relevante, em
especial no que se refere à limitação dos gastos públicos federais nos próximos
vinte anos, o que afetará a promoção de políticas públicas pelo Estado brasileiro.
Para que se possa ter uma ideia dos impactos do novo regime
fiscal nas políticas sociais, cumpre mencionar estudo do Departamento
Intersindical de Estatísticas e Estudos socioeconômicos - DIEESE, que fez uma
projeção do teto dos gastos aplicado como se estivesse em vigor no período de
2002 a 2015. No caso da educação, com a nova regra, a redução seria de 47% no
período. Já com relação às despesas de saúde, a redução seria de 27%. Isso
significa, em valores, que a perda na saúde, entre 2002 e 2015, teria sido de R$
295,9 bilhões e, na educação, de R$ 673,6 bilhões, o que corresponderia a um
montante total em torno de R$ 969,5 bilhões.7 De acordo com um estudo do IPEA8,
divulgado no início do mês de outubro de 2016, somente o SUS perderá, com o
novo regime fiscal, cerca de R$ 743 bilhões.
6 Supremo Tribunal Federal. ARE 6664.335. Relator Ministro Luiz Fux, dje 06.06.2014. 7Disponível em:
http://www.dieese.org.br/notatecnica/2016/notaTec161novoRegimeFiscal.pdf
8Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_nt_28_disoc.pdf
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Tais dados, per si, já indicam a inconstitucionalidade da EC 95 de
2016, pois demonstram o atentado que ela consubstancia à lógica principiológica
da vedação do retrocesso social que, no plano do direito positivo, está expressa no
rol das cláusulas pétreas constitucionais (art. 60, § 4.º, inciso IV).
O resultado do julgamento da presente ação é de interesse das
pessoas hipossuficientes atendidas pelas Defensorias Públicas em todo país, tendo
em vista os efeitos nefastos que a redução dos investimentos públicos federais
produzirá para a concretização de direitos sociais básicos dos grupos mais
vulneráveis em todas as instâncias da federação.
Nesse sentido, relembre-se que não foram excluídos do teto de
gastos os percentuais obrigatórios de gastos com a saúde e educação. A
Constituição, como se sabe, exige que os governos apliquem um percentual mínimo
de sua receita em educação e saúde.
A União federal é obrigada a aplicar na saúde ao menos o mesmo
valor do ano anterior mais o percentual de variação do Produto Interno Bruto
(PIB). Estados e Municípios precisam investir 12% e 15%, das receitas de impostos
e recursos oriundos de transferências, respectivamente.
Na educação, a União federal deve gastar 18% do arrecadado, e
Estados e Municípios 25% das receitas de impostos e valores oriundos de
transferências. Prevalecendo o teto, o financiamento do Sistema Único de Saúde
(SUS) nos Estados e Municípios será fortemente atingido, pois cerca de 2/3 das
despesas do Ministério da Saúde são transferidas fundo a fundo para ações de
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atenção básica, média e alta complexidade, assistência farmacêutica, vigilância
epidemiológica e sanitária, entre outras, a cargos dos entes federados.9
Outrossim, antevê-se uma redução brutal das transferências de
recursos da União para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – que
promove transferências voluntárias para Estados e Municípios.
A população negra tende a ser especialmente afetada por tais
medidas de austeridade econômica, seja em virtude dos séculos de escravidão e
colonialismo, seja por força da ausência, ao longo do período pós – abolição, de
políticas estatais capazes de prevenir e coibir o gozo de direitos em escalas
variáveis de acordo com a posição ocupada por diferentes grupos racializados em
uma sociedade racialmente estratificada.
Segundos dados do IBGE a população negra constitui cerca de
56% da população brasileira. Muito embora a abolição legal da escravidão já
complete mais de 130 anos, a ótica desumanizadora da população afrodescendente
ainda é hegemônica na sociedade brasileira. A ideia de inferioridade de negros e
negras está na gênese da construção da identidade nacional, de tal modo os
direitos são vivenciados como privilégios e a população afrodescendente se
encontra em uma condição de subcidadania, completamente alijada do gozo de
direitos humanos básicos, como educação, saúde, moradia e trabalho digno.
O racismo é estruturante das relações sociais e situa a população
negra na base da pirâmide social: os afrodescendentes, segundo técnicos da ONU,
são os mais assassinados, os que têm menor nível de instrução, os menores
salários, o menor acesso à saúde, os que morrem mais cedo e os que menos
participam do Produto Interno Bruto (PIB).
A Importância da temática racial no Brasil tem sido reforçada pela
Organização das Nações Unidas que afirmou, em informe concernente à situação
9 https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2359-56392017000100259&script=sci_arttext#fn5
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da discriminação racial no país, que o racismo no Brasil é “estrutural e
institucionalizado” e “permeia todas as áreas da vida”. Os peritos da entidade
concluíram o relatório apontando que o “mito da democracia racial” ainda está
presente na sociedade brasileira e que boa parte dela ainda “nega a existência de
racismo”.10
A negação do racismo aliada ao fato de que este atravessa todas as
esferas da vida social tem o efeito de fazer com que as hierarquias raciais que
perpassam a sociedade e determinam um verdadeiro “apartheid de fato”, ainda que
não legalmente prescrito, sejam culturalmente aceitas como normais, tornando o
seu enfrentamento uma tarefa extremamente árida, porém ainda mais necessária e
urgente.
Dito isto, a emenda constitucional que limitou os gastos públicos
tem um impacto devastador no acesso aos direitos básicos da cidadania pela
população negra. Relembre-se que a expressiva maioria das pessoas negras não
possui plano de saúde, sendo que 78,8% é usuária do SUS11.Por outro lado,
segundo dados da campanha “SUS Sem Racismo”, mulheres negras costumam
receber, em média, menos tempo de atendimento médico que as brancas e
compõem 60% das vítimas da mortalidade materna no Brasil12
10 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/09/relatorio-apresentado-na-onu-diz-que-brasil-
tem-racismo-institucional.html
11 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio
à Gestão Participativa e ao Controle Social. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra :
uma política para o SUS. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa,
Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. – 3. ed. – Brasília : Editora do
Ministério da Saúde, 2017, p. 22. Ver também: <https://nacoesunidas.org/quase-80-da-populacao-
brasileira-que-depende-do-sus-se-autodeclara-negra/>. 12 Ministério da Saúde. Gravidez, parto e nascimento com saúde, qualidade de vida e bem-estar. Brasília:
Editora do Ministério da Saúde, 2013. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gravidez_parto_nascimento_saude_qualidade.pdf>.
Acesso em 18 jul. 2015.
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Dessa forma, a redução de investimentos em saúde pública
imposta pela Emenda Constitucional 95, ao reduzir orçamento do SUS, apresenta
grave perspectiva de causar mais prejuízos ao atendimento da população negra e,
consequentemente, mais mortes do grupo.
No que tange ao acesso ao saneamento básico, segundo dados
oficiais do IBGE13, 44,5% da população negra vive em domicílios com a ausência de
pelo menos um serviço de saneamento básico (coleta de lixo, abastecimento de
água por rede e esgotamento sanitário por rede), o que demonstra que o Estado já
falha na garantia deste direito social básico aos (às) negros(as). Por evidente, este
quadro tende a se agravar com a limitação dos recursos públicos federais
necessários a investimentos neste campo ( conforme preconiza a Lei federal nº Lei
Nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007), impactando nas condições gerais de saúde e
qualidade de vida da população negra.
Por sua vez, o congelamento do orçamento na área da educação
produzirá, dentre incontáveis impactos prejudiciais, efeito desproporcionais para
os estudantes negros que já ingressaram ou que venham a ingressar nas
universidades públicas por meio das políticas afirmativas de cotas raciais. O
extrato socioeconômico do qual provêm tais estudantes negros – que precisam ser
egressos da rede pública de ensino para fazer juz à reserva de vagas efetivada de
acordo com o critério racial – autoriza inferir a indispensabilidade das políticas de
assistência e permanência estudantil e do orçamento correlato, para que possam
acessar a Universidade, dispor das mínimas condições para realizar os seus
estudos e concluir o ensino superior. As ações afirmativas (Lei 12.711 de 2012)
exigem a contínua ampliação dos investimentos nas universidades e institutos
federais com o objetivo de garantir as condições de permanência dos estudantes
negros beneficiários da política de cotas e o ensino superior público de qualidade.
13 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/25989-pretos-ou-pardos-estao-mais-escolarizados-mas-desigualdade-em-relacao-aos-
brancos-permanece
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Ressalte-se também o impacto da EC 45 de 2016 na precarização
da política pública de Assistência Social, cujo papel para negros(as), que compõem
a maioria da população brasileira e enfrentam óbices diversos para realizar
direitos e acessar políticas públicas em razão do processo histórico e contínuo de
exclusão socioeconômica, cultural, política etc, é crucial.
Indicadores e pesquisas apontam que o público majoritário
atendido no âmbito do SUAS é constituído por mulheres negras (IPEA, 2011). Dos
titulares do Programa Bolsa Família, 73,88% entre homens e mulheres são negros.
Sobre o total geral de beneficiários 14titulares do Programa, 93% dos beneficiários
titulares são mulheres e 68% negras (DATA SOCIAL, 2015).
Os elementos expostos revelam a importância e a pertinência da
participação do Núcleo Especializado da Defensoria Pública de São Paulo na
presente ADI, a fim de contribuir com elementos fáticos e jurídicos que evidenciem
o impacto discriminatório indireto da normativa, ora atacada, para a população
negra.
Com efeito, a EC 95 de 2016 reproduz o racismo institucional ao
afetar desproporcionalmente a população negra, que por razões atinentes à lógica
do racismo estrutural, sempre necessitou com maior intensidade das políticas
públicas para realizar direitos sociais básicos.
O racismo institucional é uma forma de discriminação indireta
que se perfaz, conforme ensina o Prof. Adilson José Moreira, mesmo “...na ausência
objetiva de intenção de discriminar um indivíduo e também em situações nas quais
não há a utilização de formas de diferenciação legalmente vedadas”. E prossegue:
“Ela afeta negativamente membros de um grupo porque atores públicos e privados
14 https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdade-racial/sus-suas-sem-racismo
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não levam em consideração todos os efeitos que uma norma ou prática pode ter no
status social de diferentes segmentos”. 15
Muito embora a intenção não seja relevante para fins de
caracterização da discriminação indireta, mas sim o efeito prejudicial de
determinada norma ou decisão para certos grupos racializados, há uma linha de
continuidade histórica entre as formas de discriminação direta e indireta: “A
discriminação indireta ocorre porque ela perpetua a situação de desvantagem social.
Ela existe em função da tolerância de práticas discriminatórias dentro de uma
sociedade. Se a discriminação direta cria padrões de discriminação que promovem a
estratificação de certos grupos, a discriminação indireta os reproduz quando essa
mesma sociedade permite o tratamento desvantajoso de grupos minoritários”. 16
Todo o impacto prejudicial desproporcional da EC 95 de 2016
para a população negra brasileira sofre agravamento acentuado no grave quadro
de crise sanitária, econômica e política que o país atravessa em razão da pandemia
de COVID-19.
Com efeito, em um cenário de calamidade pública como este, sem
precedentes no período recente, cresce o nível de vulnerabilidade de grupos já
historicamente marginalizados e, na mesma intensidade, as suas demandas por
políticas públicas emergenciais de caráter universal e específico que permitam
prevenir e contingenciar os impactos socioeconômicos e sanitários da pandemia.
De acordo com os dados do Boletim nº 15 da Secretaria de
Vigilância do Ministério da Saúde, Negros e negras somam 43,1% dos
hospitalizados, mas representam mais da metade das mortes, 50,1%, contra 47,7%
de pessoas brancas, de acordo. Tais dados demonstram que o vírus tem se
mostrado mais letal para a população negra e nos permitem deduzir que no
território brasileiro, que reúne a maior população negra fora do continente
15 MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação ? Justificando. Casa do Direito. pg. 103.
16 Idem.
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africano, o impacto da COVID-19 reproduzirá e agravará a situação de iniquidade
em saúde pré-existente.
Para os especialistas da ABRASCO – Associação Brasileira de
Saúde Coletiva :“As doenças não são entidades democráticas. Pelo contrário, elas têm
incidências determinadas pela renda, pela idade, pelo gênero e pela raça. Diante da
pandemia provocada pelo coronavírus (SARS2- CoV2), diversos segmentos da
sociedade estão mais expostos e são identificados como grupos de risco, por conta de
comorbidades específicas. A população negra, em sua diversidade, também é um dos
grupos de risco, obviamente com gradações internas, variando tanto por
comorbidades que atingem negras e negros em maior número, caso da hipertensão e
da diabetes e, principalmente, a anemia falciforme, ou mesmo pela letalidade social,
motivada por questões históricas, políticas e sociais estruturantes de nossa
sociedade. A Abrasco ouviu pesquisadores e lideranças sociais para entender esse
cenário e ser um canal dessas demandas.”17
A Organização das Nações Unidas (ONU), através de comunicado
emitido no dia 29 de abril, dirigiu duras críticas ao governo brasileiro, apontando
que o país deveria abandonar imediatamente políticas de austeridade mal
orientadas que estão colocando vidas em risco e aumentar os gastos para combater
a desigualdade e a pobreza exacerbada gerada pela pandemia.
Com efeito, a pandemia de COVID-19 amplia os impactos adversos
da EC 95 de 2016, conforme disse o especialista independente em direitos
humanos e dívida externa, Juan Pablo Bohoslavsky, e o Relator Especial sobre
pobreza extrema, Philip Alston. "Os efeitos são agora dramaticamente visíveis na
crise atual".
A declaração ainda foi endossada pelos relatores da ONU Léo
Heller, Relator Especial sobre os direitos humanos à água potável e saneamento,
17 https://www.abrasco.org.br/site/noticias/sistemas-de-saude/populacao-negra-e-covid-19-
desigualdades-sociais-e-raciais-ainda-mais-expostas/46338/
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Hilal Elver, Relatora Especial sobre o direito à alimentação, Leilani Farha, Relatora
Especial sobre o direito à moradia adequada, Dainius Piras, Relatora Especial sobre
o direito à saúde física e mental; Koumbou Boly Barry, Relatora Especial sobre o
direito à educação, e o Grupo de Trabalho sobre discriminação contra mulheres e
meninas.
"Os cortes de financiamento governamentais violaram os padrões
internacionais de direitos humanos, inclusive na educação, moradia, alimentação,
água e saneamento e igualdade de gênero", afirmaram.
"O sistema de saúde enfraquecido está sobrecarregado e está
colocando em risco dos direitos à vida e a saúde de milhões de brasileiros que estão
seriamente em risco", disseram. E consignaram: "Já é hora de revogar a Emenda
Constitucional 95 e outras medidas de austeridade contrárias ao direito
internacional dos direitos humanos".
Os especialistas fizeram ainda o seguinte apelo: "Em 2018,
pedimos ao Brasil que reconsiderasse seu programa de austeridade econômica e
colocasse os direitos humanos no centro de suas políticas econômicas" (...) "Também
expressamos preocupações específicas sobre os mais atingidos, particularmente
mulheres e crianças vivendo em situação de pobreza, afrodescendentes, populações
rurais e pessoas residindo em assentamentos informais ".18
Desse modo, o inédito contexto pandêmico que atravessa o país e
a denúncia-apelo das Nações Unidas trazem como imperativo humanitário a
necessidade de apreciação urgente, por esta Egrégia Suprema Corte, da
constitucionalidade da EC 95 de 2016, a qual persiste no ordenamento jurídico
18 https://acnudh.org/pt-br/covid-19-politicas-economicas-y-sociales-en-brasil-ponen-en-
riesgo-millones-de-vidas-expertos-onu/
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pátrio como um dispositivo normativo produtor de proscrita discriminação
institucional, que consubstancia óbice à realização de direitos sociais fundamentais
de grupos vulneráveis, sobretudo da população negra.
Os efeitos do “novo” regime fiscal instituído pela EC 45 de 2016
são particularmente agravados no contexto da aguda crise sanitária que o país
atravessa, traduzindo-se em elevados índices de mortalidade para a população
negra.
A Defensoria Pública, nos termos do artigo 134, da Constituição da
República, é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe
a orientação jurídica, a defesa, em todos os graus e instâncias, dos necessitados e a
promoção de Direitos Humanos.
De acordo com a Lei Complementar n.º 80/1994, é função
institucional da Defensoria Pública, entre outras, exercer a defesa dos interesses
individuais e coletivos dos grupos sociais vulneráveis, dentre eles a população
negra.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo possui em sua
estrutura os Núcleos Especializados de diversas expertises, cabendo aos mesmos
atuar em demandas coletivas, além de prestar suporte, dentro de suas áreas de
especialização, à Defensores/as Públicos/as naturais nas demandas de sua
atribuição.
O Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade
Racial tem como atribuição a defesa e promoção dos direitos da população negra,
de povos indígenas, comunidades tradicionais (quilombolas, caiçaras, caboclas
etc), pessoas LGBTQIA+ e que vivem com HIV-AIDS dentre outros grupos, atuando
no combate a todas as formas de discriminação pautadas em preconceitos e
estereótipos étnico-raciais, sejam elas interpessoais, estruturais ou institucionais.
Nesse contexto, o presente órgão possui atribuição para ingressar com ações
judiciais, inclusive coletivas, nos Tribunais Superiores a fim de garantir uma
uniformidade na interpretação do direito constitucional capaz de resguardar os
direitos fundamentais da população afro-brasileira.
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O presente Núcleo está vinculados à Defensoria Pública do Estado
de São Paulo, tendo sua competência determinada pelo artigo 6º, da Lei Estadual
Complementar nº 988 de 2006 c/c o art. 107 da Lei Complementar 80/94.
Destacamos:
“Art. 6º. (...)
II - propor medidas judiciais e extrajudiciais, para a
tutela de interesses individuais, coletivos e difusos, e
acompanhá-las, agindo isolada ou conjuntamente com
os Defensores Públicos, sem prejuízo da atuação do
Defensor Natural.”
“Art. 107. A Defensoria Pública do Estado poderá atuar
por intermédio de núcleos ou núcleos especializados,
dando-se prioridade, de todo modo, às regiões com
maiores índices de exclusão social e adensamento
populacional. (Redação dada pela Lei Complementar
nº 132, de 2009).”
Assim, a Defensoria Pública de São Paulo, por seu Núcleo ora
postulante, possui fundado interesse e a legitimidade necessária para atuar como
amigo da corte, principalmente em demandas de carater fincanceiro e
orçamentário que se relacionam com modelo de Estado e seu impacto na
promoção de políticas públicas universais e específicas essenciais ao exercício
pleno da cidadania pela população negra.
Como se pode depreender do seguinte despacho proferido em
feito em andamento nessa corte, as Defensorias Públicas dos Estados e órgãos
representativos das Defensorias já foram admitidas como amici curiae:
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“DESPACHO: Tendo em vista a relevância da questão
constitucional discutida na presente ação direta de
inconstitucionalidade e a representatividade das entidades
postulantes, defiro os pedidos formulados pela Associação
Nacional dos Defensores Públicos (Petições 69.528/2011
e 30.800/2012), pela Associação Nacional dos Defensores
Públicos Federais (Petição 72.070/2011), pela Defensoria
do Estado do Rio de Janeiro (Petição 74.111/2011), pela
Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de
Janeiro (Petição 80.576/2011), pela Associação dos
Advogados de São Paulo (Petição 82.408/2011) e pela
Associação dos Defensores Públicos da Bahia (Petição
30.865/2012), para que possam intervir no feito da
condição de amici curiae. À Secretaria para a inclusão dos
interessados e de seus patronos. Publique-se.”19 (Grifos
nossos.)
Em outras ações em curso perante esse colendo Supremo
Tribunal, Núcleo Especializado da Defensoria Pública de São Paulo já fora admitido
como amigo da corte. Vejamos:
“Admito, na condição de “amicus curiae”, o Núcleo
Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher
– NUDEM, órgão vinculado à Defensoria Pública do Estado
de São Paulo, eis que se acham atendidas, na espécie, as
condições que justificam a intervenção de tal entidade neste
19 Supremo Tribunal Federal. ADI 4.636 – DF. Relator Ministro Gilmar Mendes, dje 6.11.12.
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processo de controle normativo abstrato. Proceda-se, desse
modo, às anotações pertinentes.
2. Assinalo, por necessário, em face de precedentes firmados
por esta Suprema Corte, que o “amicus curiae”, uma vez
formalmente admitido no processo de fiscalização
normativa abstrata, tem o direito de proceder à sustentação
oral de suas razões, observado, no que couber, o § 3º do art.
131 do RISTF, na redação conferida pela Emenda Regimental
nº 15/2004.
Ressalto, ainda, por oportuno, a significativa importância da
intervenção formal do “amicus curiae” nos processos
objetivos de controle concentrado de constitucionalidade,
como tem sido reconhecido pela própria jurisprudência
desta Suprema Corte:
“’AMICUS CURIAE’ – (…) – PLURALIZAÇÃO DO DEBATE
CONSTITUCIONAL E A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE
DEMOCRÁTICA DAS DECISÕES DO Supremo Tribunal
Federal Documento assinado digitalmente conforme MP n°
2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura
de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil. O documento
pode ser acessado no endereço eletrônico
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número
11693635. ADI 5097 / DF SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
NO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL –
DOUTRINA – PRECEDENTES – (…) – DISCUSSÃO SOBRE A
(DESEJÁVEL) AMPLIAÇÃO DOS PODERES PROCESSUAIS DO
‘AMICUS CURIAE’ – NECESSIDADE DE VALORIZAR-SE, SOB
PERSPECTIVA EMINENTEMENTE PLURALÍSTICA, O
SENTIDO DEMOCRÁTICO E LEGITIMADOR DA
PARTICIPAÇÃO FORMAL DO ‘AMICUS CURIAE’ NOS
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PROCESSOS DE FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA.”
(ADPF 187/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).20
Ressalte-se que a Defensoria Pública é órgão do sistema de justiça
que está mais próximo da população vulnerável, sendo, na maior parte das vezes,
quem garante acesso à justiça e esse público e dá voz e eco àqueles/as mais
vulneráveis, invisibilizados e invisíveis. Por tal razão, mostra-se também legítima
essa atuação.
Ademais, procura-se ampliar o caráter democrático da decisão
referente a essa ação, que possuirá grande impacto social - notadamente para a
população negra - como ocorre em boa parte dos julgamentos dessa natureza
proferidos pelo Supremo Tribunal Federal.
A recepção do amicus curiae, portanto, reforça a legitimidade do
processo decisório do tribunal, conforme afirmou o ministro Celso de Mello em
decisão monocrática referente à ADI-MC 3268/RJ:
“Impõe-se registrar, neste ponto, que a razão de ser que
primordialmente justifica a intervenção do "amicus curiae" apóia-
se na necessidade de pluralizar o debate em torno da
constitucionalidade, ou não, de determinado ato estatal, em ordem
a conferir maior coeficiente de legitimidade democrática ao
julgamento a ser proferido, pelo Supremo Tribunal Federal, em
sede de fiscalização normativa abstrata (...).”21
As razões acima expostas tornam desejável e útil a atuação
processual pleiteada, uma vez que poderão ser agregados importantes elementos à
adequada solução do litígio. Pluraliza-se, assim, a discussão travada nos autos,
tanto em relação aos sujeitos envolvidos, quanto aos argumentos que contribuirão
para a solução judicial.
20 Despacho preferido pelo Ministro Relator Celso de Mello. Ação Direta de Inconstitucionalidade
5097/DF.
21 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 3268/RJ, Relator Min. Celso de Mello. Brasília, DF,
despacho 20.10.2004, divulgado no DJ 27.10.2004.
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Posto isso, entendem os requerentes estarem legitimados a
pleitear o ingresso nos autos da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade na
qualidade de amicus curiae, utilizando a prerrogativa de apresentar memoriais em
momento oportuno.
Diante do exposto, requer-se a admissão do Núcleo Especializado
de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (NUDDIR), órgão da Defensoria
Pública do Estado de São Paulo, no processo em epígrafe na qualidade de amicus
curiae, com a consequente permissão para juntar memoriais posteriormente e
sustentar oralmente. Requer, por fim, a intimação e notificação dos atos do
processo.
Termos em que pede deferimento.
São Paulo, 09 de Junho de 2020.
ISADORA BRANDÃO ARAUJO DA SILVA
Defensora Pública Coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa da
Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
(NUDDIR)
VINICIUS CONCEIÇÃO SILVA SILVA
Defensor Público Coordenador-auxiliar do Núcleo Especializado de Defesa da
Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
(NUDDIR)