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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) DE DIREITO DA __ VARA CÍVEL DA COMARCA DE CAXIAS DO SUL O MINISTÉRIO PÚBLICO, no uso de suas atribuições legais, por sua Promotora de Justiça signatária, vem, com fundamento nos artigos 129, inciso III, da Constituição Federal; artigos 1º e 5º da Lei nº 7.347/85; no artigo 84 c/c 117 da Lei nº 8.078/90; arts. 798 e 799 do Código dos Ritos Cíveis, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA contra BENQ ELETROELETRÔNICA LTDA., pessoa jurídica de Direito Privado, inscrita no CNPJ/MF sob o 1

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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) DE DIREITO DA __ VARA CÍVEL DA COMARCA DE CAXIAS DO SUL

O MINISTÉRIO PÚBLICO, no uso de suas atribuições legais, por sua Promotora de Justiça signatária, vem, com fundamento nos artigos 129, inciso III, da Constituição Federal; artigos 1º e 5º da Lei nº 7.347/85; no artigo 84 c/c 117 da Lei nº 8.078/90; arts. 798 e 799 do Código dos Ritos Cíveis, propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICA contra

BENQ ELETROELETRÔNICA LTDA., pessoa jurídica de Direito Privado, inscrita no CNPJ/MF sob o n.° 07.560.958/004-29, com sede na Av. Pedroso de Morais, 1553, Pinheiros, São Paulo – SP, pelos seguintes fatos e fundamentos:

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I – DOS FATOS

1. Aos 29 dias do mês de setembro de 2006, aportou neste Órgão Ministerial oficio de n.°41/2006-Ministério Público, do PROCON Municipal de Caxias do Sul (fl. 04), informando que recebeu inúmeros registros que originaram a abertura de Investigações Preliminares, todos dizendo respeito a vícios do produto contra a empresa BENQ ELETRÔNICA LTDA., pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ/MF n.º 07.560.958/004-29, estabelecida na Avenida Pedroso de Morais, n.º 1553, Pinheiros, São Paulo/SP, anteriormente denominada SIEMENS ELETRÔNICA S/A..

2. O PROCON informou que os consumidores que compareceram em tal Órgão de defesa do consumidor relataram, de maneira uniforme, que adquiriram aparelhos celulares da marca Siemens Benq S/A, alegando que os produtos apresentaram vícios que debilitaram seu funcionamento logo após serem adquiridos. Os mesmos relatam, ainda, terem encaminhado para a assistência técnica autorizada da empresa fabricante os citados produtos para serem consertados. Nesse sentido, os consumidores sustentaram que os produtos permaneceram por mais de 30 dias na assistência técnica (fls34/119), sem solução.

O PROCON Municipal, recebendo as reclamações dos consumidores, promoveu a abertura de registros contra a empresa fabricante, sendo que os consumidores optaram pela substituição do produto ou a restituição da quantia paga, tendo sido encaminhada, para cada um dos registros, Carta de Investigação Preliminar.

Em razão das inúmeras reclamações, o PROCON promoveu diversas Audiências de Mediação, sendo que nessas

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audiências a empresa fabricante compareceu até o PROCON, demonstrando um certo interesse em resolver tais problemas para com os consumidores. Uma prova disso foi a realização de acordos com a maioria das reclamações, fixando prazo para cumprimento dos mesmos. Ao cessar o prazo para o cumprimento, os consumidores aportaram no referido órgão para informar o não cumprimento destes acordos. O PROCON Municipal, após receber tais informações, convocou, mais uma vez, a empresa fabricante para comparecer à Audiência de Prosseguimento. A empresa não se fez comparecer, sem qualquer justificativa. Após isso, a empresa não mostrou mais interesse em resolver tais conflitos com os consumidores, e mais do que isso, demonstrou total descaso perante os consumidores lesados (fls 04/14).

3. Notificado, compareceu nesta Promotoria representante da investigada, afirmando que a empresa estaria disposta a solucionar os problemas ocorridos com os consumidores caxienses. Foi oferecido à empresa a assinatura de um termo de ajustamento de conduta, mas sua procuradora da empresa relatou que, por ter assumido o caso há pouco tempo, não possuía poderes para firmar tal termo. Ficou então acordado que esta Promotoria remeteria cópia de minuta de compromisso de ajustamento, para que a empresa manifestasse a concordância ou não com a firmatura do termo no prazo de 05 dias, devendo posteriormente ser marcada nova data para audiência de assinatura do acordo (fl.16).

4. Mais tarde, foi remetida minuta de termo de ajustamento de conduta, fixando prazo de 05 dias para manifestação da empresa. Esgotado este prazo, a empresa não se manifestou em relação à assinatura ou não de tal minuta.

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5. Por derradeiro, o dano consumerista causado pela empresa investigada para com os consumidores ainda não foi reparado, e o Ministério Público entende que a única forma de compelir aquela em recuperar tais danos é através da providência que ora se suscita.

II - DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOR A PRESENTE DEMANDA

É indiscutível a legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento da presente demanda.

O artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, diz expressamente que uma das funções institucionais do Ministério Público é “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

A Lei nº 7.347/85, por sua vez, que disciplina a ação civil pública, autoriza, em seu artigo 5º combinado com o artigo 1º, incisos II e IV, o órgão ministerial a propor a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao consumidor e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

III – DO BEM JURÍDICO TUTELADO E DA RESPONSABILIDADE DA DEMANDADA

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A presente Ação Civil Pública tem como escopo compelir a ré a recuperar o dano consumerista causado a inúmeros consumidores, tendo em vista a impossibilidade de obrigá-la através do título executivo, já que não foi aceito o termo de ajustamento de conduta proposto pelo órgão ministerial.

Ademais, a responsabilidade da demandada é clara,

como se verá a seguir. Salienta-se que, até o momento, não há noticia de que a ré tenha reparado os danos aos consumidores.

IV – DA LEGISLAÇÃO

O regime dos vícios no CDC tem como fundamento o dever legal de qualidade1 imposto aos fornecedores quanto aos produtos e aos serviços oferecidos. Neste sentido, o dever de qualidade é inerente ao contrato e à própria atividade produtiva. Segundo Cláudia Lima Marques, o princípio que pauta a responsabilidade por vícios no CDC é o princípio da proteção da confiança do consumidor, que visa proteger as legítimas expectativas criadas no mercado consumidor pela atividade dos fornecedores.2

1 MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Novo Código de defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, 4. ed. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2002, p. 984.2 Idem, Ibidem, p. 986.

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Além disso, deve a interpretação do regime dos vícios fundamentar-se no princípio constitucional de defesa do consumidor – art. 5º, XXXII, e 170, V, da Constituição Federal –, na garantia legal de adequação do produto – art. 24, do CDC –, bem como nos objetivos que regem a política nacional de relações de consumo, tais como o atendimento das necessidades dos consumidores, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida e a harmonia das relações de consumo – art. 4º, caput, do CDC. Não se pode olvidar também que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é princípio fundamental que deve nortear toda a aplicação das normas do CDC – art. 4º, I.

A responsabilidade por vício é regida pelo art. 18 do CDC, que assim prescreve:

“Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.§1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;III - o abatimento proporcional do preço....omissis...”

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Desse modo, diante da ocorrência de vício do produto, o consumidor tem, no primeiro momento, a prerrogativa de exigir do fornecedor a substituição das partes viciadas com o objetivo de solucionar o vício. Não sendo o vício sanado, pelo período de 30 dias, passa ao consumidor o direito de exigir do fornecedor uma entre as alternativas elencadas nos incisos do §1º, do art. 18, do CDC.

Resta claro, portanto, que o CDC condicionou o direito de escolha do consumidor a não solução do vício pelo fornecedor, na medida em que prescreve que se o vício não for sanado pode o consumidor se valer das alternativas do §1º, nos seus incisos I,II e III.

Percebe-se, assim, que o direito de escolha do consumidor, assegurado pelo §1º do art. 18, submete-se a uma condição suspensiva legal e a um termo. A condição suspensiva consiste na hipótese do vício não ser sanado pelo fornecedor, caso em que o consumidor tem direito a escolher entre a substituição do bem, a restituição do dinheiro ou o abatimento do preço. Já o termo diz respeito ao fim do prazo máximo de 30 dias, ao final do qual se torna eficaz o direito do consumidor.

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Segundo Nelson Nery Junior, a condição consiste em uma determinação temporal que subordina a eficácia de determinado ato a evento futuro e incerto, podendo ser legal (condicio iuris) ou

convencional. 3 A condição é suspensiva quando a eficácia do ato for retardada até a realização de acontecimento futuro e incerto e é resolutiva quando a eficácia do ato perdurar até o acontecimento de evento futuro e incerto.

O art. 125 do Código Civil, que trata especificamente da condição suspensiva contratual, pode ser aplicado analogicamente à condição suspensiva legal: “Art. 125. Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta não se verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.” Percebe-se, assim, que quando o efeito de um direito está subordinado à condição suspensiva, o implemento desta condição é pressuposto para a sua eficácia. (grifo nosso).

Portanto, o descumprimento do fornecedor de seu dever de sanar o vício constitui uma condição suspensiva legal por ser um evento incerto, cujo acontecimento não se pode prever, que torna eficaz o direito do consumidor de escolher entre as alternativas elencadas no §1º.

3 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, 2ª Ed, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 210.

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O termo, segundo Maria Helena Diniz, não se confunde com o prazo, pois é o dia em que se inicia ou se extingue a eficácia do negócio jurídico, podendo ser estabelecido por convenção das partes ou por lei.4 Diferentemente da condição, ele é sempre um acontecimento futuro e certo. O termo inicial fixa o momento em que a eficácia do ato jurídico deve iniciar, retardando o exercício do direito (art. 131 do Código Civil), enquanto o termo final determina a data da cessação dos efeitos do direito. Logo, o transcurso de 30 dias é um acontecimento futuro e certo, fixando prazo máximo no qual o fornecedor tem o dever de sanar o vício mediante a substituição das partes viciadas. Por isso, trata-se de um termo inicial, após o qual se torna eficaz o direito do consumidor de escolher entre as opções previstas no §1º do art. 18.

Percebe-se, assim, que tanto o implemento da condição – não solução do vício –, quanto o implemento do termo – vencimento do prazo de 30 dias – tornam eficaz o direito de escolha do consumidor. Como ambos os eventos são aptos a gerar tal eficácia, entende-se que basta a ocorrência de um deles para que seja adquirido o direito correspondente. Diga-se, não é necessário o implemento de ambos conjuntamente, vez que tanto a condição, quanto o termo, tem capacidade de gerar por si só os efeitos relativos ao direito que lhes é subordinado.

Compreende-se que o objetivo do art. 18, §1º, é o de concretizar o princípio da reparação efetiva dos danos econômicos e da proteção dos interesses econômicos do consumidor (art. 4º, caput e 6º, VI, do CDC), ao propiciar outros meios de reparação dos prejuízos causados (art. 18, §1º, I, II e III, do CDC), na hipótese do vício do produto não ser sanado pelo fornecedor.

4 DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, 1º Vol., São Paulo: Editora Saraiva, 2003.9

A partir dessa interpretação do art. 18, caput e seus incisos do §1º, pode-se compreender que o fornecedor tem o dever de sanar o vício no prazo máximo de 30 dias, sob pena de ter que substituir o produto, restituir o valor pago ou conceder o abatimento, a depender da escolha do consumidor. Nada impede que o fornecedor substitua as partes viciadas em prazo inferior ao previsto no Código, desde que realmente cumpra o dever, determinado pelo CDC, de sanar o vício. Caso o produto permaneça inadequado ao consumo, mesmo após a substituição de peças pelo fornecedor, o vício não terá sido realmente sanado, o que acarreta o implemento da condição suspensiva, tornando eficaz o direito de escolha do consumidor.

Com base nessas premissas jurídicas e a partir de uma concepção principiológica do Código, percebe-se que a interpretação de que há diversas oportunidades do fornecedor de substituir as partes viciadas do produto no prazo legal pode evoluir para o entendimento de que o fornecedor tem uma única oportunidade para sanar o vício, reforçando, com isso, o princípio que pauta a responsabilidade por vícios no CDC, o princípio da proteção da confiança do consumidor, que visa proteger as legítimas expectativas criadas no mercado de consumo pela atividade dos fornecedores. Dessa forma, se o dever de qualidade é inerente ao contrato e à própria atividade produtiva, nos termos dos arts. 4º, II, “d”, e 24 do CDC, em caso de manutenção do vício no produto, surge imediatamente para o consumidor o direito de escolher entre a substituição do produto, a restituição do dinheiro ou o abatimento do valor.

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Nesse mesmo sentido, há decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendendo que cabe ao consumidor a prerrogativa de escolher uma entre as alternativas elencadas no dispositivo quando o saneamento do vício do produto para fabricante não lograr sucesso:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÕES COMINATÓRIA E INDENIZATÓRIA CUMULADAS. RELAÇÃO DE CONSUMO. VÍCIO DO PRODUTO. DECADÊNCIA NÃO RECONHECIDA. AUTOMÓVEL ADQUIRIDO NOVO QUE, NOVE MESES APÓS, APRESENTA RUÍDO QUANDO DO USO DA QUARTA MARCHA. PROBLEMA NÃO SOLUCIONADO MESMO COM A TROCA DA CAIXA DE CÂMBIO. SUBSTITUIÇÃO DO VEÍCULO POR OUTRO, DE IGUAL MARCA E MODELO, NOVO. DANOS MORAIS INEXISTENTES. SUCUMBÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS FIXADOS COM BASE NO §4º DO ARTIGO 20 DO CPC, POIS A SENTENÇA MANDAMENTAL NÃO SE ENQUADRA NO CONCEITO DE “CONDENAÇÃO” CONTIDO NO §3º DO MESMO ARTIGO. (...)2. A substituição do automóvel, sendo evidente a relação de consumo, por outro, novo, é a medida preconizada pela lei – art. 18 do CDC -, já que a troca da peça tida como defeituosa não solucionou o problema de ruído no veículo. O ruído, alto ou baixo, constante ou não, mesmo que o bem se mantenha adequado para o fim a que se destina, gera situação que vai de encontro às expectativas de quem adquire um carro zero quilômetro, além de evidentemente diminuir seu valor. Caso evidente de produto viciado. (...)(Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível Nº 70010162964)

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Assim, mesmo na hipótese do fornecedor substituir as peças viciadas em prazo inferior a 30 dias e da imprestabilidade do produto voltar a ocorrer ainda nesse prazo, não há possibilidade para nova substituição das peças, tendo em vista que o direito de escolha do consumidor torna-se eficaz a partir do implemento da condição suspensiva. A partir desta interpretação, pode-se concluir que a lei concede ao fornecedor uma única oportunidade para que ele busque sanar o vício mediante a substituição das peças viciadas.

Em suma, diante da subsistência do vício, o que ocorre com a permanência da condição de imprestabilidade do produto, tem o consumidor o direito de escolher pela substituição do produto, pela restituição do dinheiro ou pelo abatimento de seu preço. Em razão do conceito amplo de vício utilizado pelo CDC, não é necessário analisar se as partes do produto que geraram o seu vício são as mesmas que já foram substituídas pelo fornecedor. Afinal, o vício ocorre a partir da inadequação objetiva do produto ao fim a que se destina e à expectativa do consumidor, sendo irrelevante quais as peças do produto que geraram a sua imprestabilidade.

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A interpretação de que o direito de escolha do consumidor assegurado pelo §1º do art. 18 surge com a permanência do vício do produto é compatível com a análise sistemática e principiológica do CDC, que tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, a proteção de seus interesses econômicos (art. 4º, caput, do CDC), a garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho (art. 4º, II, “d”), bem como o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, do CDC). Afinal, o consumidor como parte vulnerável das relações de consumo não pode arcar com o ônus de submeter a conserto reiteradas vezes o produto imprestável, sem que o fornecedor solucione adequadamente o problema. Na hipótese de subsistência de vício, resta claro que o produto não se revelou adequado ao fim a que se destinava. Em casos tais, nem há qualquer garantia de que eventual nova intervenção técnica seja suficiente para solucionar o vício, sendo de rigor que o consumidor não fique sujeito a imponderáveis providências do fornecedor para, enfim, fazer jus às alternativas do CDC.

É válido destacar que semelhante entendimento a respeito do art. 18, §1º, do CDC consta das conclusões do V Encontro Nacional do Ministério Público do Consumidor (MPCON), realizado em agosto de 2005, em Natal/RN, no qual se adotou a interpretação de que o prazo de 30 dias representa uma única oportunidade para o fornecedor tentar sanar o vício: “Após concessão inicial de prazo para o fornecedor sanar o vício (§1º, do art. 18), o consumidor pode, caso surja o mesmo ou outra espécie de vício, exigir imediatamente uma das hipóteses indicadas nos incisos I, II e III, do §1º, do art. 18 do CDC.”5

5 Conclusões do V Encontro Nacional do Ministério Público do Consumidor (MPCON). In: http://www.mpcon.org.br/site/portal/jurisprudencias_detalhe.asp/campo=991, acessado em 15/08/2006.

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Faz-se necessário ressaltar que, segundo Maria Helena Diniz, o termo pode ser de direito, quando decorrer da lei, ou convencional, quando decorrer da vontade das partes6. O CDC admite as duas hipóteses, pois, em razão da complexidade de determinados produtos, o seu art. 18, §2º prevê a possibilidade excepcional de que o termo para a aquisição do direito de escolha seja convencionado entre o fornecedor e o consumidor.7 Ou seja, o termo de direito é o que se dá após o transcurso do prazo de 30 (trinta) dias – art. 18, §1º –, sendo permitido convencioná-lo somente na hipótese em que as características peculiares do produto forem compatíveis com a ampliação ou redução do prazo, sob pena de se configurar a nulidade da cláusula contratual, em razão de seu caráter abusivo art. 51, I e IV, CDC.

Quanto ao art. 18, §3º, do CDC, registre-se que a sua aplicabilidade se dá em hipótese diversa da analisada, uma vez que ele concede ao consumidor o direito de nem sequer aguardar a tentativa do fornecedor de substituir as partes viciadas, podendo escolher de imediato entre a substituição do produto, a restituição do valor pago ou o abatimento do preço, o que prescreve tal dispositivo:

Art. 18 (...). §3º. O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do §1º deste artigo sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial.”

6 DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, 1º Vol., São Paulo: Editora Saraiva, 2003. 7 Art. 18, § 2º. Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a sete nem superior a cento e oitenta dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor.”

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V - DOS DANOS AOS CONSUMIDORES CAUSADOS PELA DEMANDADA

Cerca de 62 (sessenta e dois) consumidores aportaram no órgão de defesa do consumidor de Caxias do Sul – PROCON, relatando problema uniforme no que se refere à empresa demandada (fls.63/119).

Há de citar alguns registros realizados no PROCON Municipal para comprovar o desinteresse da demandada relativos aos vícios apresentados nos produtos de fabricação da demandada:

RECLAMAÇÃO N.°: 890DATA: 16 de fevereiro de 2005Relato da consumidora:“a consumidora reclama que seu celular ficou mais de trinta dias na assistência técnica LTI(...)(...) quando retirado da LTI, o celular foi encaminhado para a loja da compra do produto para levar novamente para a assistência técnica."(fl. 64)

RECLAMAÇÃO N.°: 3386DATA: 13 de junho de 2006Relato do consumidor:“consumidor alega que encaminhou o aparelho para a assistência técnica na data 18/04/06 e o retirou no dia 03/05/06, porém o problema não havia sido solucionado. No dia 08/05/06 ele retornou a assistência técnica onde deixou o aparelho até a presente data mas o problema ainda não foi solucionado. O produto permanece na assistência.”

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(fl. 62)

RECLAMAÇÃO N.°: 2126DATA: 26 de outubro de 2005Relato do consumidor:“consumidor reclama que seu aparelho de celular da marca acima citada já apresentou defeito por três vezes, sempre pelo mesmo defeito, e em apenas 2 meses de uso, e o problema não é resolvido.”(fl. 68)

RECLAMAÇÃO N.°: 2550DATA: 19 de janeiro 2006Relato do consumidora:“a consumidora efetuou a compra de um aparelho celular da marca Siemens no dia 18.10.2005, (...)(...) cerca de um mês após a compra o aparelho apresentou problemas no visor, quando a consumidora encaminhou-o a assistência técnica autorizada no dia 08.12.2005, com ordem de serviço n.°27966.o aparelho encontra-se na assistência até a presente data (19.01.2006), sem solução para o problema.Importante ressaltar que a assistência lhe informa que a demora é devido ao não fornecimento da peça pela fábrica.Com essa informação, a consumidora entrou em contato com a Siemens, por volta do dia 03.01.2006, abrindo protocolo n.° 3992, solicitando a agilidade do fornecimento da peça para a assistência técnica poder efetuar o concerto, mas não obteve sucesso.”(fl. 77).

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Visto isso, ficou claro que a demandada demonstra total descaso para com os consumidores, uma vez que os aparelhos eram encaminhados para a assistência técnica e retornavam com o mesmo defeito, ou seja, os vícios nem ao menos eram sanados.

Uma demonstração desse descaso é a reclamação n.° 2550, onde a própria assistência técnica autorizada da demandada em Caxias do Sul, LTI Telecomunicações, informou à consumidora que “a demora é devido ao não fornecimento da peça pela fábrica”, ou seja, a fabricante não estaria enviando à assistência técnica as peças necessárias para o efetivo conserto dos aparelhos encaminhados pelos consumidores à assistência.

É evidente que a demandada não teve interesse algum em estar de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, não respeitando assim o prazo de trinta dias concedido para sanar o vício, e mais ainda; no caso de não sanar esse vício no prazo de trinta dias, em respeitar a escolha dos consumidores na restituição do valor pago ou na troca do produto por outro da mesma espécie em perfeitas condições de uso.

VI – DO DANO MORAL COLETIVO

Uma vez demonstrado o procedimento ilegal adotado pela demandada Benq Eletroeletrônica Ltda., importa trazer à tona que os fatos ensejaram danos a direitos dos consumidores, no plano difuso e coletivo, abalando a harmonia das relações de consumo.

Os vícios de produto existentes nos aparelhos celulares de fabricação da demandada, que persistem há meses, e em

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alguns casos há anos, sem uma solução eficaz por parte da ré, revela absoluta desconsideração da empresa pelo consumidor e pela sociedade caxiense. A prática abusiva atenta, sobretudo, contra a dignidade dos consumidores, que tiveram prejuízos efetivos com os vícios dos seus telefones.

O condenável procedimento da demandada contrariou todos os princípios e valores que o legislador visou prestigiar no Código de Defesa do Consumidor e em outros diplomas legais que protegem as relações de consumo.

Muito mais não é preciso dizer para se constatar que a agressão a direitos difusos dos consumidores e de toda sociedade caxiense causou intenso dano moral à coletividade.

A conduta da ré provoca um sentimento direto de revolta no cidadão de bem, aquele que cumpre com suas obrigações, especialmente econômicas, muitas vezes a duras penas, e quando se permite utilizar de um serviço e, por que não dizer, essencial nos dias de hoje, sente que foi enganado pelo prestador do serviço.

O sentimento misto de frustração e indignação do consumidor se torna maior ainda ao ver que a situação ocorre(u) com diversos outros usuários e o autor do ato ilícito continua prestando os serviços da mesma forma, sem que qualquer sanção lhe seja aplicada, o que aumenta ainda mais e já notória descrença nas instituições em nosso país, bem como a sensação de que o sistema é injusto, especialmente ao se considerar a vulnerabilidade do consumidor frente às grandes empresas fornecedoras.

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Dano moral, no dizer de Minozzi, citado por José de Aguiar Dias em sua obra sobre responsabilidade civil8 "...não é o dinheiro nem coisa comercialmente reduzida a dinheiro, mas a dor, o espanto, a emoção, a vergonha, a injúria física ou moral, em geral uma dolorosa sensação experimentada pela pessoa, atribuída à palavra dor o mais largo significado.”

A reparação por dano moral é, portanto, a partir da Magna Carta de 1988 um direito fundamental do ser humano:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(...)V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...)X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”(grifo nosso).

O Código de Defesa do Consumidor trata de dano moral coletivo da seguinte forma:

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)

8 Da Responsabilidade Civil — Vol. 2— 10ª Edição — Editora Forense — p. 73O19

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;” (grifo nosso).

Ao comentar e exemplificar os interesses difusos, Kazuo Watanabe9 assevera:

Nos interesses ou direitos difusos, a sua natureza indivisível e a inexistência de relação jurídica-base não possibilitam, como já ficou visto, a determinação dos titulares. (...)

O dano moral difuso se assenta, exatamente, na agressão a bens e valores jurídicos que são inerentes a toda a coletividade, de forma indivisível e tal agressão abala o patrimônio moral da coletividade, pois todos acabam se sentindo ofendidos e desprestigiados como cidadãos com a prática lesiva a que foram expostos, ou mesmo para muitos que chegaram diretamente a experimentar o prejuízo.

Ainda sobre o dano moral coletivo, assevera Carlos Alberto Bittar Filho10 lembra:

Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de

9 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado Pelos Autores do Anteprojeto —Edição — 1997 — Forense Universitária — pág. 625/62 710 Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, RT, vol. 12

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maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico.

O valor da indenização a ser pleiteada deve levar em conta o desvalor da conduta, a extensão do dano e o poder aquisitivo da empresa faltosa.

No caso em exame, o desvalor do procedimento adotado pela empresa é imenso. Não se pode conceber que numa sociedade democrática, onde se espera e se luta pelo aperfeiçoamento dos mecanismos que venham garantir ao cidadão o pleno exercício dos atributos da cidadania, inclusive com a efetiva implementação da legislação consumeirista, onde estão insculpidas garantias básicas ao consumidor, como o respeito à vida, à saúde, à dignidade, à adequada informação acerca do produto, tenham lugar empresas desprovidas de um mínimo ético, que, buscando o enriquecimento, submetam o consumidor a abusos inaceitáveis, como os que foram narrados nesta inicial.

Dentro desse mesmo contexto, não se pode olvidar a grande extensão do dano causado, pois além de agredir a interesses garantidos por lei ao consumidor, o procedimento denunciado gera sentimento de descrença e desprestígio da sociedade com relação aos poderes constituídos e ao sistema de um modo geral. Como já referido, dezenas de consumidores foram e continuam sendo afetados pelos vícios dos aparelhos celulares da demandada.

O valor a ser arbitrado a título de danos morais deve ter finalidade intimidativa, situando-se em patamar que represente inibição à pratica de outros atos abusivos por parte da demandada. É

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imperioso que a Justiça dê ao infrator resposta eficaz ao ilícito praticado, sob pena de se chancelar e estimular o comportamento infringente.

A respeito desse tópico, vale trazer à colação os apontamentos de Carlos Alberto Bittar:11

Com efeito, a reparação de danos morais exerce função diversa daquela dos danos materiais. Enquanto estes se voltam para recomposição do patrimônio ofendido, através da aplicação da fórmula danos emergentes e lucros cessantes, aqueles procuram oferecer compensação ao lesado, para atenuação do sofrimento havido. De outra parte, quanto ao lesante, objetiva a reparação impingir-lhe sanção, a fim de que não volte a praticar atos lesivos a outras pessoas.

É que interessa ao direito e à sociedade que o relacionamento entre os entes que contracenam no orbe jurídico se mantenha dentro dos padrões normais de equilíbrio e respeito mútuo. Assim, em hipóteses de lesionamento, cabe ao agente suportar as conseqüências de sua atuação, desestimulando-se - com a atribuição de pesadas indenizações - atos ilícitos tendentes a afetar as pessoas....Essa diretriz vem, de há muito tempo, sendo adotada na jurisprudência norte americana, em que cifras vultuosas têm sido impostas aos infratores, como indutoras de comportamentos adequados, sob os prismas moral e jurídico, nas interações sociais e jurídicas.

Nesse sentido é que a tendência manifestada, a propósito pela jurisprudência pátria, de fixação de valor

11 Reparação Civil por Danos Morais: Tendências Atuais — Revista de Direito Civil no 74 —RT—pag.15

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de desestímulo como fator de inibição a novas práticas lesivas. Trata-se, portanto, de valor que, sentido no patrimônio do lesante, o possa conscientizar-se de que não deve persistir na conduta reprimida, ou então, deve afastar-se da vereda indevida por ele assumida, ou, de outra parte, deixa-se para a coletividade, exemplo expressivo da reação que a ordem jurídica reserva para infratores nesse campo, e em elemento que, em nosso tempo, se tem mostrado muito sensível para as pessoas, ou seja, o respectivo acervo patrimonial.”

Para a fixação do dano moral coletivo, deve ser adotada a “Teoria do Desestímulo”, preconizada na jurisprudência de muitos países onde o dano moral é amplamente reconhecido. De fato, a reparação do dano moral visaria ao desestímulo de novas agressões ao bem juridicamente tutelado.

Consoante preconiza André de Carvalho Ramos12, um valor considerado excessivamente elevado para o caso concreto deve ser visto como razoável, para alertar, não só ao causador do dano, mas a todos os demais causadores potenciais do mesmo dano, de que tais comportamentos são inadmissíveis perante o direito.

Os danos morais à coletividade causados neste caso concreto restam evidentes, sugerindo o Ministério Público sejam arbitrados pelo juízo em, no mínimo, R$ 30.000,00 (trinta mil reais), levando-se em consideração os consumidores lesados que apresentaram queixa no PROCON Municipal, bem como a média de valores dos aparelhos celulares.12 Revista de Direito do Consumidor nº 25 – Editora RT – p. 82

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VII -) DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA:

O Código do Consumidor sufraga a aplicação do princípio da inversão do ônus da prova em benefício dos consumidores, em face da objetiva vulnerabilidade volitiva destes nas relações de consumo de abrangência massiva, como no caso em que a demandada é grande empresa fornecedora de produtos eletroeletrônicos. No caso dos autos, é manifesta, ainda, a hipossuficiência do consumidor frente à posição de superioridade da demandada, que tem os dados técnicos aptos a elucidar a questão dos vícios dos produtos. A demandada detém o monopólio da informação e, de outro lado, os consumidores não possuem recursos técnicos para tanto.

Assim, é de ser considerada a inversão do ônus da prova, atendendo ao disposto no art. 6°, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor, e à orientação da jurisprudência, que atualmente se mostra pacífica quanto ao tema.

VIII - DOS PEDIDOS

Ante o exposto, o Ministério Público requer a procedência da ação para:

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(a) condenar a requerida a reparar os danos causados aos consumidores, impondo-lhe a obrigação de fazer, consistente em acatar o direito de escolha do consumidor entre a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso, ou a restituição da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos, ou, por fim, o abatimento proporcional do preço;

(b) a condenação da ré ao pagamento de uma indenização, a título de dano moral coletivo, em valor fixado pelo juízo, não inferior a R$ 30.000,00 (trinta mil reais), a ser revertido ao Fundo Municipal de Defesa do Consumidor de Caxias do Sul;

Requer ainda o Ministério Público:

(a) determinar a citação da requerida para contestar, querendo, a presente ação, sob pena de revelia;

(b) a publicação do edital a que alude o art. 94 do CDC;

(c) condenar a demandada ao pagamento das verbas de sucumbência;(d) deferir todas as provas em direito admitidas, além das que estão inseridas no expediente incluso, especialmente a prova pericial, testemunhal e documental suplementar; Requer o reconhecimento e

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declaração de inversão do ônus da prova, na forma do art. 6º, VIII, do CDC, em face da verossimilhança das alegações e da hipossuficiência dos consumidores tutelados.

Dá-se à causa o valor, para fins de distribuição: R$ 30.000,00.

Caxias do Sul, 28 de dezembro de 2007.

JANAINA DE CARLI DOS SANTOS, 1ª Promotora de Justiça Especializada.

Obs: Segue anexo o Inquérito Civil nº384/06, com 123 fls.

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