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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA ____ª VARA FEDERAL VITÓRIA, SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. 2007.50.01004385-0 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora da República que esta subscreve, com fulcro no art. 129, III, art. 127, caput e 129, inciso III, da CRF/88, no art. 5º da Lei n.º 7.347/85, bem como no art. 6º, inciso VII, alínea ce inciso XVII, alíena c, da LC n.º 75/93, vem, perante Vossa Excelência, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face da UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno, com representação situada na Av. César Hilal, nº 1415, sala 607, 6º andar, Praia do Suá, CEP: 29052-231, Vitória/ES, onde poderá receber citação e demais comunicações processuais, pelas razões fáticas e jurídicas expostas abaixo: IDO OBJETO DA AÇÃO A presente Ação Civil Pública pretende impor à União o reconhecimento da união homoafetiva estável, para fins de inscrição do companheiro homossexual do servidor público como seu dependente, de modo a que este possa usufruir das vantagens, sobretudo previdenciárias, outorgadas pela Lei 8112/90, em condições de igualdade com os companheiros/cônjuges heterossexuais dos servidores públicos. O comando sentencial que se postula deverá vincular as administrações de todos os poderes constituídos da União, suas autarquias e fundações, além de outros órgãos autônomos (a exemplo do Ministério Público da União) e auxiliares (como o Tribunal de Contas a União), onde haja servidores públicos sujeitos ao regime da Lei 8112/90 . II - DOS FATOS Em 13 de fevereiro de 2007, foi instaurado, nesta Procuradoria da República, o procedimento administrativo nº 1.17.000.000.281/2007-22, com vistas a verificar o tratamento que vem sendo dado pela União às solicitações de inscrição de companheiro(a) homossexual do servidor público, como dependente, para fins de concessão de benefícios previdenciários. A iniciativa do parquet foi motivada por representação verbal feita pelo servidor W.L.A, do quadro permanente do Tribunal de Justiça deste Estado, que conviveu em união estável (devidamente reconhecida pela 2ª Vara de Família da Serra) com servidor do Tribunal Regional do Trabalho 17ª Rg. (A.G.V.), já falecido. Após ter indeferido o requerimento administrativo feito ao TRT 17ª Região, o interessado alertou o Ministério Público Federal de que a prática é habitual no âmbito da

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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA ____ª VARA FEDERAL VITÓRIA, SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO.

2007.50.01004385-0

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora da República que esta subscreve, com fulcro no art. 129, III, art. 127, caput e 129, inciso III, da CRF/88, no art. 5º da Lei n.º 7.347/85, bem como no art. 6º, inciso VII, alínea “c” e inciso XVII, alíena “c”, da LC n.º 75/93, vem, perante Vossa Excelência, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face da UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno, com representação situada na Av. César Hilal, nº 1415, sala 607, 6º andar, Praia do Suá, CEP: 29052-231, Vitória/ES, onde poderá receber citação e demais comunicações processuais, pelas razões fáticas e jurídicas expostas abaixo:

I– DO OBJETO DA AÇÃO

A presente Ação Civil Pública pretende impor à União o reconhecimento da união homoafetiva estável, para fins de inscrição do companheiro homossexual do servidor público como seu dependente, de modo a que este possa usufruir das vantagens, sobretudo previdenciárias, outorgadas pela Lei 8112/90, em condições de igualdade com os companheiros/cônjuges heterossexuais dos servidores públicos.

O comando sentencial que se postula deverá vincular as administrações de todos

os poderes constituídos da União, suas autarquias e fundações, além de outros órgãos autônomos (a exemplo do Ministério Público da União) e auxiliares (como o Tribunal de Contas a União), onde haja servidores públicos sujeitos ao regime da Lei 8112/90.

II - DOS FATOS

Em 13 de fevereiro de 2007, foi instaurado, nesta Procuradoria da República, o procedimento administrativo nº 1.17.000.000.281/2007-22, com vistas a verificar o tratamento que vem sendo dado pela União às solicitações de inscrição de companheiro(a) homossexual do servidor público, como dependente, para fins de concessão de benefícios previdenciários.

A iniciativa do parquet foi motivada por representação verbal feita pelo servidor

W.L.A, do quadro permanente do Tribunal de Justiça deste Estado, que conviveu em união estável (devidamente reconhecida pela 2ª Vara de Família da Serra) com servidor do Tribunal Regional do Trabalho 17ª Rg. (A.G.V.), já falecido.

Após ter indeferido o requerimento administrativo feito ao TRT 17ª Região, o interessado alertou o Ministério Público Federal de que a prática é habitual no âmbito da

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administração federal, que discrimina sistematicamente os companheiros homossexuais de seus servidores públicos, negando-lhes o direito de figurar como dependentes previdenciários e, por conseguinte, obrigando-os sempre a recorrer ao Poder Judiciário para pleitear tal condição.

O interessado forneceu, voluntariamente, cópia do requerimento administrativo formulado perante o Tribunal Regional do Trabalho, que fora indeferido “por falta de amparo legal”, embora o requerente tivesse apresentado ao TRT sentença judicial de reconhecimento da união homoafetiva mantida, por anos, com A. G. V (servidor público federal).

Em razão daquele indeferimento, o interessado pleiteou a mesma condição de dependente através da Ação Ordinária nº 2007.50.01.000836-8, distribuída à 2ª Vara Federal Cível de Vitória, que, em decisão antecipatória dos efeitos da tutela (anexo 1), determinou à União que o incluísse como dependente do servidor falecido, com o conseqüente pagamento da pensão por morte.

Para instrução do Procedimento Administrativo 1.17.000.000281/2007-22, requisitou-se à Procuradoria da União neste Estado informação sobre eventual entendimento firmado no âmbito da Advocacia-Geral da União, sobre o reconhecimento da união homoafetiva de companheiro de servidor público para fins previdenciários (concessão de pensão por morte). Em resposta, a AGU informou não haver manifestação pacificada ou parecer normativo sobre o assunto (anexo 2).

Com vistas a esclarecer a incidência de outros fatos análogos ao que fora apresentado ao MPF por W.L.A., logrou-se identificar vários casos, levados à apreciação do Judiciário, em que companheiros homossexuais postulam o reconhecimento de sua união estável, pelo poder público, a fim de obterem os mesmos benefícios que detêm os companheiros heterossexuais, em face da legislação previdenciária.

Garimpou-se, a título de exemplo, a Apelação Cível nº 2002.38.00.43831-2/MG, em que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região confirmou ser devida a pensão por morte a companheiro homossexual de servidor público federal (anexo 3).

Igualmente, no processo nº 2002.51.01.005133-3, a 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região negou provimento a remessa necessária, preservando a sentença proferida pelo juízo “a quo”, que decidiu pela procedência da concessão do benefício previdenciário (pensão por morte) a companheira de servidora pública federal. (anexo 4).

Também se tem notícia de sentença parcialmente favorável ao companheiro homossexual do servidor no processo nº 1999.04.01.074054-1 e acórdão favorável a companheiro de servidor público federal falecido, na ação nº 2000.71.00.038274-0, ambos no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (anexo 5).

Semelhante entendimento já foi manifestado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, na Apelação Cível nº 334141-RN, em que reconheceu devida a pensão por morte a companheira homossexual de servidora pública federal (anexo 6).

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Vê-se, portanto, que são numerosos os exemplos de que a recusa da União em considerar como dependentes os companheiros homossexuais de seus servidores vem induzindo os possíveis beneficiários a postular ao Judiciário o seu direito de inscrição.

Vale lembrar que a questão já vinha sendo judicialmente discutida, há algum tempo, desta feita por segurados do Regime Geral de Previdência Social, que não conseguiam obter do INSS o direito de inscrição de seus companheiros homossexuais, como dependentes previdenciários.

Atento a isto, e após a constatação de que vários pleitos individuais estavam

sendo levados sistematicamente ao Judiciário, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL propôs a ação civil pública nº 2000.71.00.009347-0/RS em face do INSS, objetivando compeli-lo a considerar o companheiro ou companheira homossexual de segurados regulados pelo Regime Geral de Previdência Social como dependentes preferenciais (art. 16, I, da Lei 8.213/91), para fins de concessão de benefícios previdenciários, a exemplo de pensão por morte e auxílio-reclusão.

A ação fora julgada procedente, tendo sido a Apelação do INSS improvida por acórdão unânime da 6ª Turma do TRF da 4ª Região, hoje pendente de recurso na instância especial - STJ (anexo 7).

Contudo, é certo que, dando cumprimento às determinações da referida ação, o INSS editou a Instrução Normativa nº 11/2006 (anexo 8)1, a qual estabelece, no art. 30: “O companheiro ou a companheira homossexual de segurado inscrito no RGPS passa a integral o rol dos dependentes e, desde que comprovada a vida em comum e a dependência econômica, concorrem, para fins de pensão por morte e de auxílio-reclusão, com os dependentes preferenciais de que trata o inciso I do art. 16 da Lei nº 8213/91, para óbitos ocorridos a partir de 5 de abril de 1991, ou seja, mesmo tendo ocorrido anteriormente à data da decisão judicial proferida na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0”.

Desse modo, desde o mês de novembro de 2006, os companheiros homossessuais dos segurados do RGPS, por força de nova orientação normativa do INSS, são expressamente reconhecidos como dependentes, para fins previdenciários, de sorte que já não precisam recorrer, caso a caso, ao Judiciário, para obter semelhante vantagem2.

Infelizmente, a modificação produzida nas normas do Regime Geral da Previdência Social não tiveram, ainda, efeito similar no âmbito do regime previdenciário do servidor público federal.

1 Já substituída pela IN nº 15, de 15 de março de 2007, que preserva o mesmo entendimento.2 O mesmo entendimento versado na citada ACP, que preserva o princípio da igualdade, vem sendo adotado noutras ações individuais em face da autarquia previdenciária, a exemplo da ação ordinária nº 2004.51.01.513897-8/RJ, que chegou ao TRF 2ª Região, com posterior denegação da Apelação interposta, da ação ordinária nº 2002.51.000777-0, que teve a Apelação do INSS também denegada pelo TRF2, bem assim da ação ordinária 2001.0189742-2/RS, em que o STJ, no RESP 395.904 maneve as decisões anteriores pela concessão da pensão por morte a companheiro homossexual de segurado do INSS (anexo 7).

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Apesar disso, destaca-se a tímida publicação da Portaria 1.983/2006 (anexo 9), pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, órgão integrante da estrutura do Poder Executivo Federal, que admite como beneficiários do plano de assistência à saúde suplementar o companheiro ou companheira de união homoafetiva, comprovada a coabitação por período igual ou superior a dois anos. Já há, também notícia de que o Ministério da Fazenda editou portaria regulamentando a possibilidade de companheiro homossexual do segurado obrigatório DPVAT receber a indenização, em caso de morte do outro (anexo 10).

As medidas revelam que a administração federal já se sensibiliza para o

reconhecimento dos efeitos jurídicos irradiados de uma união estável regularmente comprovada, seja ela entre pessoas de mesmo sexo ou de sexos diferentes.

Entretanto, como regra geral, a União tem relutado em reconhecer a união homoafetiva de seus respectivos servidores, para efeitos previdenciários, em total confronto com a disciplina já adotada pelo Regime Geral de Previdência Social, fato que produz situação de incontestável desigualdade, como se sustentará adiante.

Importante salientar que o não reconhecimento das uniões homoafetivas, para os fins mencionados, vem causando transtornos de toda ordem aos companheiros/dependentes de tais servidores/contribuintes, vendo-se aqueles obrigados a formular pedidos administrativos perante os órgãos em que servem seus companheiros, sujeitando-se à devassa da intimidade de um relacionamento quase sempre envolvido pelo preconceito social. Vencida a instância administrativa, quase sempre sem êxito, a mesma exposição íntima se repete perante o Poder Judiciário, cujas decisões, como visto, vêm concedendo o direito.

Necessário concluir, portanto, que urge se dê um tratamento judicial coletivo à questão, que envolve interesses individuais homogêneos de indiscutível relevância social, sobretudo por estar o direito postulado baseado no primado da dignidade da pessoa humana e no princípio constitucional da igualdade.

Escusado dizer que eventual recusa do Judiciário em conferir aos companheiros homossexuais de servidores públicos o mesmo tratamento dado aos companheiros homossexuais de segurados do RGPS implicará indiscutível negação de acesso à justiça, qualificado pela afronta ao princípio da isonomia, que a seguir se aprofundará.

Frise-se, ainda, por oportuno, que a solução desta questão de direito, pelo Judiciário, há de ser formulada em bases nacionais, tendo em vista que a concessão da pretensão apenas para companheiros homossexuais situados em determinado território continuará violando o postulado da isonomia, além de ensejar total desrespeito aos princípios gerais do processo civil coletivo.

III. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL

O art. 109, I, da Constituição da República dispõe:

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“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;”

Conforme exposto no tópico anterior, a ação visa a tutelar interesses individuais homogêneos de companheiros de servidores públicos da União, suas autarquias e fundações públicas, órgãos autônomos e auxiliares, que se sujeitem ao regime jurídico da Lei 8112/90, existindo interesse direto da União na lide coletiva, como fonte pagadora que é de eventuais benefícios decorrentes daquele regime.

Logo, é a Justiça Federal indiscutivelmente competente para processar e julgar a causa.

Há de se ressalvar, também, que, de acordo com a dicção do art. 93, do Código de Defesa do Consumidor, aplicável à Ação Civil Pública por força do art. 21, da Lei nº 7347/85, é o foro de quaisquer das capitais dos Estados competente para apreciar demanda que tenha por fundamento dano nacional, isto é, dano relativo a interesse que esteja espraiado por todo o território nacional.

Isto posto, havendo iniciativa idêntica em mais de um Estado, a competência para a matéria se firmará segundo o critério da prevenção, conferindo-se ao foro que primeiro tiver tomado conhecimento da lide a competência para apreciar os fatos, respeitadas as demais regras do Código de Processo Civil.

Dito isto, o Juízo Federal Cível de Vitória é plenamente competente para apreciar e decidir a presente ação civil pública, ainda que nela sejam versados interesses cujos titulares se encontram espalhados por todos os cantos do País, não havendo, por conseguinte, qualquer vedação em se conferir às decisões do Juízo competente por distribuição efeito nacional e uniforme.

IV. DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E DA ADEQUAÇÃO DA VIA PROCESSUAL UTILIZADA

O Ministério Público possui legitimidade para promover Ação Civil Pública em defesa de interesses individuais homogêneos, além de coletivos e difusos, em consonância com o disposto no art. 21 da LACP c/c com o art. 81, § único, III, do CDC:

“Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.”

“Art. 81. (...)

§ único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

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(...)III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”

Os interesses individuais homogêneos são aqueles decorrentes de origem comum, em que o interesse é individualizado na pessoa de cada um dos prejudicados, sendo estes determináveis. Sobre este ponto, interessante transcrever observação do renomado Hugo Nigro Mazzilli:

“A Constituição de 1988 não poderia aludir, às expressas, à defesa de interesses individuais homogêneos pelo Ministério Público, se somente dois anos depois dela é que essa expressão foi cunhada e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, quando do advento do Código de Defesa do Consumidor. Assim, quando o constituinte mencionou 'interesses difusos e coletivos', estava a referir-se a interesses transindividuais em sentido lato, não podendo sua ampla dicção subordinar-se à distinção, posteriormente feita em sede infraconstitucional, entre interesses coletivos strictu sensu e interesses individuais homogêneos. Por isso, embora a lei infraconstitucional tenha passado a definir os interesses coletivos, distinguindo-os dos interesses individuais homogêneos, essa distinção não limita a abrangência da atuação ministerial em defesa de interesses transindividuais uma vez que a expressão 'interesses coletivos' tem alcance constitucional próprio.” (Hugo Nigro Mazzilli. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. Editora Saraiva.18ª Edição. 2005.)

Ademais, a Lei Complementar nº 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, permite expressamente a promoção de ação civil pública para a defesa de interesses homogêneos:

“Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:

VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para:

d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos;”

Vale lembrar, ainda, que esta legitimidade já foi expressamente reconhecida, em ação proposta pelo MPF com finalidades análogas, consoante acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a saber:

Acordão Origem: TRIBUNAL – QUARTA REGIÃOClasse: AC – APELAÇÃO CIVELProcesso: 200071000093470 UF: RS Órgão Julgador: SEXTA TURMAData da decisão: 27/07/2005 Documento: TRF400109800

Fonte DJU DATA:10/08/2005 PÁGINA: 809Relator(a) JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRADecisão A TURMA, POR UNANIMIDADE, NEGOU PROVIMENTO À APELAÇÃO E

À REMESSAOFICIAL, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR.

Descrição PUBLICADO NA RTRF/4ªR Nº 57/2005/309

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Ementa CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. ABRANGÊNCIA NACIONAL DA DECISÃO. HOMOSSEXUAIS. INSCRIÇÃO DE COMPANHEIROS COMO DEPENDENTES NO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL.1. Possui legitimidade ativa o Ministério Público Federal em se tratando de ação civil pública que objetiva a proteção de interesses difusos e a defesa de direitos individuais homogêneos.2. Às ações coletivas não se nega a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum, de lei ou ato normativo federal ou local.3. A regra do art. 16 da Lei n.º 7.347/85 deve ser interpretada em sintonia com os preceitos contidos na Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), entendendo-se que os limites da competência territorial do órgão prolator, de que fala o referido dispositivo,não são aqueles fixados na regra de organização judiciária, mas sim, aqueles previstos no art. 93 do CDC.4. Tratando-se de dano de âmbito nacional, a competência será do foro de qualquer das capitais ou do Distrito Federal, e a sentença produzirá os seus efeitos sobre toda a área prejudicada.5. O princípio da dignidade humana veicula parâmetros essenciais que devem ser necessariamente observados por todos os órgãos estatais em suas respectivas esferas de atuação, atuando como elemento estrutural dos próprios direitos fundamentais assegurados na Constituição.6. A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas.7. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de suaidentidade pessoal (na qual, sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana.8. As noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e institucionalização plurívocos e multifacetados, que num movimento de transformação permanente colocam homens e mulheres em face dedistintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais.9. A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno mundial – em alguns países de forma mais implícita - com o alargamento da compreensão do conceito de família dentro das regras já existentes; em outros de maneira explícita, com a modificação do ordenamento jurídico feita de modo a abarcar legalmente a união afetiva entrepessoas do mesmo Sexo.10. O Poder Judiciário não pode se fechar às transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às modificações legislativas.11. Uma vez reconhecida, numa interpretação dos princípiosnorteadores da constituição pátria, a união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais de mesmo Sexo dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (art. 16, I, da Lei n.º 8.213/91), quando do

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Indexação AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COMPANHEIRA, MULHER. COMPANHEIRO, HOMEM. QUALIDADE, DEPENDENTE. LEGITIMIDADE ATIVA, MINISTÉRIO PÚBLICO (MP). AÇÃO COLETIVA. DECLARAÇÃO INCIDENTE, INCONSTITUCIONALIDADE. LIMITE, COMPETÊNCIA TERRITORIAL. CÓDIGO DE DEFESA E PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR (CDC). FORO, SEDE, ESTADO. OPÇÃO, PREFERÊNCIA, RELAÇÃO SEXUAL. DESCABIMENTO, DISCRIMINAÇÃO. EQUIPARAÇÃO, FAMÍLIA. PROVA. UNIÃO ESTÁVEL. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA PRESUMIDA.

Data da Publicação

10/08/2005

V. DO DIREITO

V.I DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE E DA VEDAÇÃO DO TRATAMENTO DISCRIMINATÓRIO CONTRA HOMOSSEXUAIS

O princípio da igualdade, previsto no artigo 5º da Magna Carta, propugna que

“todos são iguais perante a lei”, devendo ser entendido e observado obrigatoriamente não só pelos “órgãos que aplicam o direito”, mas também na “formulação do direito”, direcionado diretamente ao legislador, conforme lição de Robert Alexy3.

Para o mestre alemão, o enunciado “deve se tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais” não deve ser considerado somente no seu sentido formal, mas também no seu sentido material, valorativo, devendo ser observadas as parcialidades ou propriedades fáticas existentes em cada indivíduo ou em cada situação pessoal.

Nas palavras de Konrad Hesse 4, “o princípio da igualdade proíbe uma regulação desigual de fatos iguais; casos iguais devem encontrar regra igual. A questão é, quais fatos são iguais e, por isso, não devem ser regulados desigualmente”.

Respondendo à questão que ele mesmo formulara, Hesse5, diz que “a questão decisiva da igualdade jurídica material é sempre aquela das características a ser consideradas como essenciais, que fundamentam a igualdade de vários fatos e, com isso, o mandamento do tratamento igual”. Um exemplo dado pelo autor ilustra bem a questão: “Se, por exemplo, a característica ‘pessoa’ for considerada como essencial, então alemães

3 Alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. pp. 382/383.

.

e

4 Ob. Cit. , p. 330e

5 Ob. Cit.p. 331

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e estrangeiros devem ser tratados igualmente; se aparece a característica ‘nacionalidade’ como essencial, então o tratamento desigual é admissível”6.

Portanto, como, obviamente, dois fatos, considerados em todas as suas características, inclusive temporais e espaciais, jamais podem ser absolutamente iguais, deve-se identificar quais são as características existentes não-essenciais (no exemplo acima, a nacionalidade) e quais são as essenciais (no exemplo acima, a pessoa) para o reconhecimento de determinado direito.

Nesse mesmo sentido leciona José Afonso da Silva7:

“O princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deve tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os iguais podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador, este julga, assim, como “essenciais” ou “relevantes”, certos aspectos ou características das pessoas, circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos ou elementos as categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por conseqüência, as pessoas que apresentam os aspectos “essenciais” previstos por essas normas são consideradas encontrando-se nas situações idênticas, ainda que possam diferir por outros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob certos aspectos”.

Não discrepa deste posicionamento a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello8, para quem a questão principal é existir um “vínculo de correlação lógica” entre a peculiaridade diferencial escolhida e a desigualdade de tratamento em função desta, “desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição”9.

Surge, então, o problema de identificar, em cada situação normativa, quais são as características essenciais e quais são as não-essenciais.

A Constituição Brasileira enuncia, em várias situações, diferenciações baseadas em características essenciais. Tome-se como exemplo o art. 14, que trata da igualdade do

6 Ob. Cit., p. 3317 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros,1998. P219o

8 Bandeira de Mello, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 17.

9 Conforme Alexy, op.cit., p.400: “permite tanto um tratamento igual como uno desigual, es decir, concede al legislador um campo de acción.”

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direito de voto. Para o constituinte brasileiro, ao se permitir o direito de voto tão-somente aos brasileiros maiores de 16 anos, as características “ser brasileiro” e “ter mais de 16 anos” são essenciais para o gozo do direito, enquanto as características relativas ao sexo, etnia, condições econômicas, etc., por conseguinte, são consideradas não-essenciais para o exercício do direito. É plenamente admitida a discriminação para com os estrangeiros e para com os menores de 16 anos, no que diz respeito ao direito de voto, por ser razoável, diante dos princípios albergados pela própria Constituição, que somente os nacionais, com certo grau de maturidade, possam votar.

Destarte, “o princípio da igualdade proíbe tratar o essencialmente igual desigualmente (e o essencialmente desigual igualmente)”10, ou seja, uma diferenciação é arbitrária e inconstitucional quando tomou por base uma característica não-essencial, ou seja, não prevista pela norma como essencial para o exercício de determinado direito.

Agora, vejamos como se comporta o princípio da igualdade, na dicção constitucional.

O direito geral de igualdade do art. 5º (“todos são iguais perante a lei) permite a dedução do seguinte raciocínio: todas as características não previstas pela Constituição como essenciais são consideradas não essenciais; assim, viola o princípio da igualdade qualquer discriminação fundada nestas características não contempladas pelo constituinte como essenciais para a fruição de um direito.

Note-se que, em reforço do princípio elencado no art. 5º, caput, e da própria dogmática constitucional dos direitos fundamentais, o constituinte originário foi adiante para enunciar explicitamente algumas características não-essenciais para a fruição de direitos pelos cidadãos, ou seja, características que não devem ser consideradas, inclusive pela lei, para discriminá-los. Eis os exemplos normativos:

Art. 5º, I: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Art. 3º, IV: Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(...)IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,

idade e quaisquer outras formas de discriminação”

Vê-se que, ao eleger a Constituição o sexo (além de outros aspectos) como características não essenciais do cidadão em face do Estado, a norma fundamental proíbe toda discriminação, inclusive legal, baseada nesta característica. Noutras palavras, o sexo não é um critério válido para diferenciar as pessoas, na fruição dos direitos concedidos pela própria Carta.

10 Konrad Hesse, ob. Cit., p. 335.

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Sucede que o aprofundamento do conceito de igualdade e da vedação de discriminação por motivo de sexo conduz a uma outra conclusão lógica: é inconstitucional toda discriminação por motivo de sexo (ser homem ou ser mulher), mas também toda diferenciação (na fruição de direitos) por motivo de orientação sexual (ser homossexual, ser bissexual, ser heterossexual), uma vez que esta orientação decorre da convicção de gênero com que uma pessoa se insere na sociedade.

Como observa a ilustre Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, “não sendo (a homossexualidade) uma opção livre, mas fruto de um determinismo psicológico, não merece ser objeto de reprovação ou marginalização social”11.

Assim, por força do art. 5º, caput, toda discriminação realizada por motivo de característica não-essencial, ou seja, não prevista na Constituição, é inconstitucional, o que inclui a discriminação por orientação sexual, eis que a Constituição não previu, em nenhum momento, esta característica como essencial para qualquer diferenciação.

Tal é a conclusão que se chega por via do emprego de um dos princípios de hermenêutica constitucional mais caros entre os doutrinadores modernos: o da efetividade dos direitos fundamentais.

O princípio da efetividade dos direitos fundamentais implica o reconhecimento da viabilidade da interpretação extensiva dos direitos fundamentais, em caso de dúvida hermenêutica.

Isto posto, numa interpretação extensiva do conceito de “discriminação por sexo” inclui-se obrigatoriamente a discriminação por orientação sexual. Confira-se como o Superior Tribunal de Justiça posicionou-se sobre o tema da igualdade de direitos aos homossexuais:

"EMENTA: RESP - PROCESSO PENAL - TESTEMUNHA - HOMOSSEXUAL - A história das provas orais evidencia evolução, no sentido de superar preconceito com algumas pessoas. Durante muito tempo, recusou-se credibilidade ao escravo, estrangeiro, preso, prostituta. Projeção, sem dúvida, de distinção social. Os romanos distinguiam - patrícios e plebeus. A economia rural, entre o senhor de engenho e o cortador da cana, o proprietário da fazenda de café e quem se encarregasse da colheita. Os Direitos Humanos buscam afastar distinção. O poder Judiciário precisa ficar atento para não transformar essas distinções em coisa julgada. O requisito moderno para uma pessoa ser testemunha é não evidenciar interesse no desfecho do processo. Isenção, pois. O homossexual, nessa linha, não pode receber restrições. Tem o direito-dever de ser testemunha. E mais: sua palavra merecer o mesmo crédito do heterossexual. Assim se concretiza o princípio da igualdade, registrado

11 União homossexual – aspectos sociais e jurídicos. Disponível em: www.mariaberenicedias.com.br. Acesso em: abril/2007. No mesmo artigo, a autora discorre sobre as possíveis causas da homoafetividade, informando que, para a Psicologia, a homossexualidade é encarada como um distúrbio de identidade, mas não como uma doença. Diz, ainda, que, no campo científico, mudou o conceito das relações de pessoas do mesmo sexo. No ano de 1985, deixou de constar do Código Internacional de Doenças a homossexualidade como ´doença mental´, para ser inserida no capítulo dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais. De todo modo, por constituir uma circunstância inerente à pessoa, não pode servir como fundamento para a discriminação.

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na Constituição da República e no Pacto de San Jose de Costa Rica."(RESP 154.857, STJ, SEXTA TURMA, Relator MIN. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, Data da decisão 26/05/1998, DJU 26/10/1998, p. 169).

Oportuno, aqui, destacar que, na Ação Civil Pública proposta pelo MPF contra o INSS, citada no tópico anterior, prevaleceu o entendimento de que a não inclusão de companheiros homossexuais na qualidade de dependentes previdenciários dos segurados denota discriminação, a qual é amplamente refutada pela Constituição Federal:

“A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal (na qual, sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana” (Apelação Cível nº 2000.71.00.009347-0/RS/TRF4ª Região).

V. II DO DIREITO DO(A) COMPANHEIRO(A) HOMOSSEXUAL SOBREVIVENTE AOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS

O direito à previdência social é um direito fundamental da classe dos direitos sociais, previsto no art. 6º da Constituição Federal, que dispõe:

"Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."

Este direito fundamental foi esmiuçado no art. 194 e seguintes, da Constituição, que, ao elencar os princípios gerais da seguridade social, destaca a necessidade de observância do princípio da universalidade da cobertura e do atendimento.

“Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:

I - universalidade da cobertura e do atendimento.”

Os benefícios previdenciários do Regime Geral estão enumerados no art. 201 da Constituição, dentre os quais se acha “a pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes”.

Vale frisar que o citado artigo assegura o direito à pensão por morte ao dependente do segurado, “cônjuge ou companheiro”, sem discriminação em razão da orientação sexual, ou mesmo do sexo do beneficiário.

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No que tange especificamente aos servidores públicos, é o art. 40 da Constituição Federal estabelece as regras gerais, nos seguintes termos:

Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

(...)§ 12º. Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos

servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime Geral de Previdência Social.

Observe-se que o § 12 do art. 40 é bastante claro: os requisitos e os critérios fixados para o Regime Geral deverão ser aplicados, subsidiariamente, para o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo, sobretudo diante da ausência de disposição específica em lei própria.

A norma que regulamenta os benefícios previdenciários para os servidores públicos da União é a Lei nº 8112/90, que estabelece:

Art. 215. Por morte do servidor, os dependentes fazem jus a uma pensão mensal de valor correspondente ao da respectiva remuneração ou provento, a partir da data do óbito, observado o limite estabelecido no ar. 42.

Art. 217. São beneficiários das pensões:I - vitalícia:a) o cônjuge;b) a pessoa desquitada, separada judicialmente ou divorciada, com percepção de pensão alimentícia;c) o companheiro ou companheira designado que comprove união estável como entidade familiar;d) a mãe e o pai que comprovem dependência econômica do servidor;e) a pessoa designada, maior de 60 (sessenta) anos e a pessoa portadora de deficiência, que vivam sob a dependência econômica do servidor.

Convém esclarecer que não constam da referida lei critérios adicionais para identificação ou designação de dependentes do servidor público, beneficiários das vantagens ali conferidas.

Como se vê, portanto, em nenhum momento os dispositivos mencionados

fazem qualquer discriminação em razão da orientação sexual do provável dependente, limitando-se tão somente a elencar como beneficiários das vantagens o companheiro ou companheira do servidor, que comprove união estável como entidade familiar.

Para a aplicação daquela norma, resta definir, então, o que se deve entender das expressões legais “companheiro”, “união estável” e “entidade familiar”, com vistas a

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estabelecer a existência ou não de direito do companheiro homossexual do servidor público à pensão por morte.

É o respeitado constitucionalista Luís Roberto Barroso12 quem auxilia nesta tarefa de interpretação:

“As uniões homoafetivas são fatos lícitos e relativos à vida privada de cada um. O papel do Estado e do Direito, em relação a elas como a tudo mais, é o de respeitar a diversidade, fomentar a tolerância e contribuir para a superação do preconceito e da discriminação. A Constituição de 1988 não contém regra expressa acerca de orientação sexual ou de relações homoafetivas. A regra do art. 226, § 3º da Constituição, que se refere ao reconhecimento da união estável entre homem e mulher, representou a superação da distinção que se fazia anteriormente entre o casamento e as relações de companheirismo. Trata-se de norma inclusiva, de inspiração anti-discriminatória, que não deve ser interpretada como norma excludente e discriminatória, voltada a impedir a aplicação do regime da união estável às relações homoafetivas. Justamente ao contrário, os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da liberdade impõem a extensão do regime jurídico da união estável às uniões homoafetivas. Igualdade importa em política de reconhecimento; dignidade em respeito ao desenvolvimento da personalidade de cada um; e liberdade no oferecimento de condições objetivas que permitam as escolhas legítimas. Ademais, o princípio da segurança jurídica, como vetor interpretativo, indica como compreensão mais adequada do Direito aquela capaz de propiciar previsibilidade nas condutas e estabilidade das relações (...).Admitindo-se para argumentar, sem conceder que a conclusão anterior não devesse prevalecer – isto é, que os princípios enunciados não incidissem diretamente, produzindo a solução indicada – ter-se-ia como conseqüência a existência de lacuna normativa, à vista do fato de que tampouco existe regra expressa sobre o ponto. Nesse caso, a forma adequada de integração da lacuna normativa seria a analogia. A situação mais próxima à da união estável entre pessoas do mesmo sexo é a da união estável entre homem e mulher, por terem ambas como características essenciais a afetividade e o projeto de vida comum. A figura da sociedade de fato não contém esses elementos e a opção por uma analogia mais remota seria contrária ao Direito”.

E continua o mestre:

“Considerando-se, para argumentar, que exista de fato omissão normativa na matéria, hipótese é de se aplicar os mesmos princípios para saná-la, produzindo-se como resultado a equiparação, em tudo que couber, das uniões estáveis entre homem e mulher e as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo (...) De fato, os elementos essenciais da união estável, identificados pelo próprio Código Civil – convivência pacífica e duradoura com o intuito de constituir família – estão presentes tanto nas uniões heterossexuais, quanto nas uniões homoafetivas. Os elementos nucleares do conceito de entidade familiar – afetividade, comunhão de vida e assistência mútua, emocional e prática – são

12 Parecer pro bonus, apresentado ao Grupo de Trabalho “Direitos sexuais e reprodutivos”, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do MPF (texto integral em anexo).

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igualmente encontrados nas duas situações. Diante disso, nada mais natural do que o regime jurídico de uma ser estendido à outra (...) Admitida a analogia, chegar-se-ia à seguinte conclusão: a Constituição teria reconhecido expressamente três tipos de família: a decorrente de casamento (art. 226, §§ 1º e 2º); a decorrente de união estável entre pessoas de sexos diferentes (art. 226, §3º); e a família monoparental, ou seja, aquela formada por apenas um dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º). Haveria, contudo, um tipo comum de família não expressamente reconhecido: a união homoafetiva. Apesar da falta de norma específica, o reconhecimento dessa quarta modalidade seria imposto pelo conjunto da ordem jurídica e pela presença dos elementos essenciais que caracterizam as uniões estáveis e as entidades familiares”. (anexo 11)

Necessário dizer que a extensão do conceito de entidade familiar, previsto no art. 226, da CF 88, para fins de reconhecimento de benefícios previdenciários, já vem sendo realizada, pouco a pouco, pelos Tribunais, a exemplo da decisão abaixo13, de fundamentos bastante elucidativos:

“A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal (na qual,sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana. As noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e institucionalização plurívocos e multifacetados, que num movimento de transformação permanente colocam homens e mulheres em face de distintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais. A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno mundial – em alguns países de forma mais implícita – com o alargamento da compreensão do conceito de família dentro das regras já existentes; em outros de maneira explícita, com a modificação do ordenamento jurídico feita de modo a abarcar legalmente a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo. O Poder Judiciário não pode se fechar às transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às modificações legislativas. Uma vez reconhecida, numa interpretação dos princípios norteadores da constituição pátria, a união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais de mesmo sexo dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (art. 16, I, da Lei n.º 8.213/91), quando do processamento dos pedidos de pensão por morte e auxílio reclusão”.

Vale ressaltar, por oportuno, que é preciso interpretar o § 3º do art. 226 da Constituição (“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o

13 TRF 4ªReg., DJU 10 ago. 2005, AC 2000.71.00.009347-0, Rel. João Batista Pinto Silveira.

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homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”) , em sintonia com os demais dispositivos da mesma Carta, alusivos ao tema, a exemplo dos arts. 3º, IV e 5º, I, que abominam a discriminação fundada no sexo das pessoas, conceito no qual se inclui, como visto, a orientação sexual. Isto é o que propugna o princípio hermenêutico da unidade da Constituição, segundo o qual a norma fundamental não poder ser interpretada em tiras, e sim como um sistema lógico de princípios.

Ademais, o citado art. 226, § 3º, trata, em verdade, da possibilidade de conversão em casamento das uniões estáveis. Obviamente, se o casamento, em nosso ordenamento, somente é permitido entre pessoas de sexos distintos, eventual união estável entre homem e homem ou entre mulher e mulher não poderá ser convertida em casamento. É somente disso que a Constituição cuida naquele artigo, não vedando, em momento algum, a existência de união estável entre pessoas do mesmo sexo. Apenas, tal união não poderá (vigente a lei civil atual) ser convertida em casamento.

Por conseguinte, se o art. 226 da CF88, interpretado em conjunto com outros importantes dispositivos já citados, não exclui a união homoafetiva estável, não poderá ele servir como fundamento para o indeferimento de benefício previdenciário a companheiro homossexual de servidor público.

Tal interpretação do art. 226 é compartilhada pelo Professor Gustavo Tepedino, um dos baluartes do novo direito civil constitucional brasileiro, a saber14:

“A leitura dos preceitos transcritos indica, de imediato, três opções valorativas bem definidas, que associam direitos e deveres: (a) O caráter instrumental da família, como comunidade intermediária concebida para a realização da pessoa humana e de sua dignidade, na solidariedade constitucional; (b) A pluralidade das entidades familiares, garantidora do respeito à liberdade e às diferenças individuais, mediante indicação não taxativa do rol das entidades familiares dignas de tutela; (c) A liberdade (de forma) para a constituição da família, vinculada à funcionalização (desta mesma liberdade individual de planejar a convivência familiar) ao princípio da dignidade da pessoa humana e à paternidade responsável.(...)Nessa esteira, torna-se manifestamente inconstitucional a restrição de modelos familiares por conta da orientação sexual dos conviventes, com a admissão somente de famílias constituídas por casais heterossexuais, em desapreço dos princípios constitucionais acima aludidos. Daqui decorre, igualmente, a necessidade de interpretação do art. 1.723 do Código Civil consoante os mesmos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da solidariedade, impondo-se o cumprimento de tais preceitos fundamentais.(...)O panorama do direito alienígena confirma a tendência amplamente perceptível, na realidade interna, de admissão da união de pessoas do mesmo sexo como uma das modalidades de família presentes na sociedade contemporânea. Entretanto, seu reconhecimento pelo direito brasileiro depende da interpretação do art. 1.723 do Código Civil, podendo mesmo ser paralisado o processo evolutivo de otimização da

14 Parecer pro bonus, apresentado ao Grupo de Trabalho “Direitos sexuais e reprodutivos”, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do MPF (texto integral em anexo).

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normatividade constitucional caso se entenda, ao arrepio dos preceitos fundamentais antes invocados, que a menção expressa a homem e mulher, contida no preceito codificado, restringe as espécies de entidades familiares legítimas, circunscrevendo sua admissibilidade às uniões estáveis formadas por homem e mulher. Por isso mesmo, para que se possa preservar a ordem pública constitucional – democrática, tolerante, igualitária, solidária e personalista –, há de se consagrar a dicção não restritiva do art. 1.723, atribuindo-se-lhe sentido hábil a admitir, necessariamente, em seu espectro normativo, as entidades formadas por pessoas do mesmo sexo, considerando-se, assim, inconstitucional, a atuação das autoridades públicas ablativa desses núcleos familiares”.

Idêntica posição é externada pela também civilista Maria Berenice Dias, ilustre Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“Às relações homossexuais se está impondo a mesma trilha percorrida pela doutrina e pela jurisprudência nas relações entre um homem e uma mulher fora do casamento. Aliás, foi essa a causa que levou ao alargamento do conceito de família, por meio da constitucionalização da união estável (...) Assim, não se diferencia mais a família pelo matrimônio. Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois sua falta não enseja sua desconstituição, nem em face do Direito Canônico(...)”15

E prossegue:

“Primeiro, de maneira um pouco tímida, ditos relacionamentos foram identificados como sociedades de fato e julgados com as regras do Direito das Obrigações. Era deferida a divisão do patrimônio amealhado durante o período de convívio, mediante a prova da efetiva participação de cada um dos companheiros na formação do acervo de bens. Mas decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul fixou a competência das varas de família para decidir tais demandas. Assim, a Câmara do Tribunal que tenho a honra de presidir – que julga os recursos envolvendo as ações de família – passou a apreciar as demandas envolvendo as uniões homoafetivas. Em 2001, pela primeira vez no Brasil, foi reconhecido como entidade familiar o relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo. Comprovada a vida em comum, de forma contínua, pública e ininterrupta, constituindo uma verdadeira família, foi deferido o direito à herança, concedendo ao sobrevivente todo o patrimônio do de cujus. Posteriormente, outras decisões asseguraram direitos previdenciários e direito real de habitação ao companheiro sobrevivente”16 (anexo 13)

As passagens doutrinárias referidas, bem como os acórdãos já indicados nesta exordial apontam, em uníssono, para a necessidade de reconhecimento de efeitos jurídicos à realidade constituída pelas uniões homoafetivas ou uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, como entidades familiares.

15 União homossexual – aspectos sociais e jurídicos. Disponível em: www.mariaberenicedias.com.br. Acesso em: abril 2007.16 Famílias homoafetivas. Disponível em: www.mariaberenicedias.com.br. Acesso em: abril 2007.

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Visto, pois, que a interpretação do disposto no art. 217, “c”, da Lei 8112/90 (“entidade familiar”, “união estável”, “companheiro”), para que esteja conforme à CF88, deve incluir a modalidade da união homoafetiva, não é possível entender como válida ou legítima a restrição, por parte dos órgãos administrativos, à designação de companheiro(a) homossexual do(a) servidor(a) público(a) federal como seu(sua) dependente.

Repita-se que, em caso análogo, no bojo de ação civil pública proposta pelo MPF/RS, a Justiça Federal já reconheceu que a discriminação das uniões estáveis homoafetivas, em face das uniões estáveis heterossexuais, não guarda compatibilidade com o texto constitucional, razão pela qual foi o INSS obrigado a admitir tais inscrições, o que passou a ser feito a partir da Instrução Normativa nº 11/2006.

Logo, se a hipótese ora descrita – resistência do poder público em aceitar a designação de companheiro homossexual do servidor público como seu dependente, para fins previdenciários – é em tudo semelhante àquela, relativa aos segurados do Regime Geral de Previdência Social – já equacionada mediante a IN nº 11/2006, não há razão plausível para tratamento distinto, pena de perpetuar-se mais uma afronta ao princípio da isonomia, já que os servidores públicos não merecem sorte diversa dos segurados do INSS, quanto ao gozo de vantagens que tenham por fundamento semelhante vínculo familiar (união homoafetiva).

Não se olvide que a própria Constituição, ao regular a previdência dos servidores públicos, manda aplicar a esta os princípios e regras do Regime Geral, no que couber (art. 40, §12) . E não há dúvida de que a união homoafetiva não pode produzir efeitos para um dado regime previdenciário e ser, por outro lado, completamente nula para outro regime.

Desta forma, os companheiros de servidores públicos federais, regulados pela Lei 8112/90, se encontram, na prática, em situação não-isonômica com relação aos companheiros de empregados da iniciativa privada, segurados vinculados ao Regime Geral da Previdência Social. Assim, imprescindível se faz a intervenção jurisdicional, de modo que seja restabelecida a isonomia entre pessoas que se acham em situações semelhantes.

V.III - DA COMPROVAÇÃO DA RELAÇÃO DE COMPANHEIRISMO

A legislação relativa ao Regime Geral da Previdência Social elenca os modos pelos quais pode ser comprovada a condição de companheiro homossexual do segurado, a saber:

Lei 8123/91:

Art. 16. §3º. Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o §3º do artigo 226, da Constituição Federal.

Decreto nº 3048/99:

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Art. 22 Considera-se inscrição de dependente, para os efeitos da previdência social, o ato pelo qual o segurado o qualifica perante ela e decorre da apresentação de:I - para os dependentes preferenciais:(...)b) companheira ou companheiro - documento de identidade e certidão de casamento com averbação da separação judicial ou divórcio, quando um dos companheiros ou ambos já tiverem sido casados, ou de óbito, se for o caso; e(...) § 3º Para comprovação do vínculo e da dependência econômica, conforme o caso, podem ser apresentados os seguintes documentos, observado o disposto nos §§ 7º e 8º:

I - certidão de nascimento de filho havido em comum;II - certidão de casamento religioso;III - declaração do imposto de renda do segurado, em que conste o interessado como seu dependente;IV - disposições testamentárias;V - anotação constante na Carteira Profissional e/ou na Carteira de Trabalho e Previdência Social, feita pelo órgão competente;VI - declaração especial feita perante tabelião;VII - prova de mesmo domicílio;VIII - prova de encargos domésticos evidentes e existência de sociedade ou comunhão nos atos da vida civil;IX - procuração ou fiança reciprocamente outorgada;X - conta bancária conjunta;XI - registro em associação de qualquer natureza, onde conste o interessado como dependente do segurado;XII - anotação constante de ficha ou livro de registro de empregados;XIII - apólice de seguro da qual conste o segurado como instituidor do seguro e a pessoa interessada como sua beneficiária;XIV - ficha de tratamento em instituição de assistência médica, da qual conste o segurado como responsável;XV - escritura de compra e venda de imóvel pelo segurado em nome de dependente;XVI - declaração de não emancipação do dependente menor de vinte e um anos; ouXVII - quaisquer outros que possam levar à convicção do fato a comprovar.(...)§ 7º Para a comprovação do vínculo de companheira ou companheiro, os documentos enumerados nos incisos III, IV, V, VI e XII do § 3º constituem, por si só, prova bastante e suficiente, devendo os demais serem considerados em conjunto de no mínimo três, corroborados, quando necessário, mediante justificação administrativa, processada na forma dos arts. 142 a 151.

Art. 23. Ocorrendo o falecimento do segurado, sem que tenha sido feita a inscrição do dependente, cabe a este promovê-la, observados os seguintes critérios: I - companheiro ou companheira - pela comprovação do vínculo, na forma prevista no § 7 º do art. 22;

Instrução Normativa INSS/PRES nº 15/2007 17 :

17 A IN 15/2007 alterou a IN 11/2006, não modificando o entendimento anterior. Ao contrário, facilitou a comprovação do companheirismo homossexual, dispensando a prova da dependência econômica (anexo 8)

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Art. 30. O companheiro ou a companheira homossexual de segurado inscrito no RGPS passa a integrar o rol dos dependentes e, desde comprovada a vida em comum, concorrem, para fins de pensão por morte e de auxílio-reclusão, com os dependentes preferenciais de que trata o inciso I, do art. 16, da Lei 8.213/91(...) (anexo 8)

Assim, comprovada a relação de companheirismo homoafetivo (que não necessita, como se vê, de decisão judicial), não poderá a autarquia previdenciária negar a inscrição do companheiro homossexual de segurado como seu dependente.

Cuidando-se de idêntico direito, mas agora relativo ao companheiro homossexual de servidor público, é forçoso concluir que a administração não pode recusar a prova da condição de “companheiro” que eventualmente faça o servidor público em união homoafetiva, mormente se tal comprovação decorre de sentença judicial18, para fins de inscrição de dependente.

A alegação de que não há norma legal a amparar a união homoafetiva estável, como visto nos tópicos anteriores, é facilmente rebatida a partir da interpretação dos dispositivos constitucionais pertinentes. Além disso, não cabe à administração negar valor a decisão judicial prolatada por órgão competente (na hipótese, o juízo de família), que reconheça a constituição de uma união estável, pois, assim, estará o administrador agindo com desprezo tanto à autoridade do Poder Judiciário, quanto à força normativa da Constituição, que não permite discriminação por motivo de orientação sexual.

Ultrapassada a questão constitucional que envolve o tema da união homoafetiva e reconhecido o direito de os companheiros homossexuais dos servidores públicos aos benefícios previdenciários previstos em lei, objeto preciso desta demanda, é cabível, outrossim, a utilização dos mesmos critérios acima citados para possibilitar-se a comprovação da existência de união estável (desta feita, homoafetiva), haja vista que o próprio § 12, do art. 40, da CF88, recomenda que o regime previdenciário dos servidores público observe, subsidiariamente, os critérios e requisitos estabelecidos pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS.

Portanto, nem mesmo a falta de regulamentação da Lei 8112/90, quanto aos critérios de comprovação da união estável, seria empecilho para o reconhecimento da inscrição do companheiro homossexual de servidor público, como seu dependente. Basta utilizar, eis que o próprio sistema o permite, os critérios vigentes para idêntica comprovação no RGPS.

V.IV - DO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA UNIÃO.

Além de sofrer descontos a título de Imposto de Renda diretamente na fonte, o servidor público federal, homossexual ou não, contribui para a União com a alíquota de 11% sobre sua remuneração bruta, nos termos do art. 4º da Lei 10.887/2004. No total, o servidor público entrega mensalmente ao erário federal de ¼ a 1/3 do seu salário, conforme o valor bruto de sua remuneração.

18 Foi precisamente este o caso levado à Procuradoria da República por W.L.A., que, embora detentor de sentença judicial transitada em julgado que lhe reconhecia a união estável homoafetiva mantida, por longos anos, com servidor público federal, teve a pensão por morte indeferida, ao argumento da falta de previsão legal para tal relação de companheirismo.

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Não é justo, então, que o servidor que viva em união homoafetiva seja tratado isonomicamente como contribuinte para o custeio do sistema, e, ao mesmo tempo, sofra diferenciação quanto ao reconhecimento de seus dependentes pela fonte pagadora dos benefícios.

Admitir tal discrepância acarretaria um vultoso enriquecimento ilícito da União, suas autarquias, fundações públicas, seus órgãos autônomos e auxiliares, em face do servidor público que arca com significativa contribuição previdenciária, e que, no entanto, não pode fazê-la reverter em prol de seu companheiro do mesmo sexo.

Dito isto, não há, também sob o prisma da vedação do enriquecimento ilícito, justificativa plausível para tal diferenciação.

VI. DA NECESSIDADE DE TRATAMENTO COLETIVO E NACIONAL À DEMANDA INDIVIDUAL HOMOGÊNEA

Para assegurar o êxito do processo civil coletivo, como instrumento de evolução do acesso à Justiça, absolutamente necessário a um Estado Democrático de Direito, urge declarar a total ineficácia do vigente art. 16 da LACP, norma que procurou restringir os efeitos da sentença aos “limites da competência territorial do órgão prolator”.

É que restringir a amplitude dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas a

uma pequena parcela das relações entre autor (sociedade) e réu contraria frontalmente a política constitucional de defesa dos interesses difusos, além de ofender os princípios constitucionais da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça.

Sobre o tema, muito bem aduziu André de Carvalho Ramos19:

“ (...). Esta é a sistemática da tutela coletiva em nosso país, que traduziu-se pela adoção da teoria da coisa julgada secundum eventum litis. (...) “A eficácia ultra partes e erga omnes da coisa julgada relacionam-se com os limites subjetivos desta, já que os interesses tratados pela ação coletiva são em geral indivisíveis pela sua natureza ou pela política legislativa favorável a uma efetiva tutela de direitos. (...)“Tal teoria da coisa julgada, adotada pelo legislador infraconstitucional (CDC e LACP), dá substância ao princípio constitucional da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça. (...)“E a decorrência do tratamento coletivo das demandas é o sistema de substituição processual (ou legitimação adequada, concorrente e disjuntiva), que possibilita a tutela destes interesses transindividuais por entes como Ministério Público. (...)“Se o autor é substituto processual de todos os interessados, não se pode limitar os efeitos de sua decisão judicial àqueles que estejam domiciliados no estrito âmbito da competência territorial do Juiz. “Como salienta o douto Ernane Fidélis dos Santos, ‘nas hipóteses de substituição processual, sujeito da lide é o

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19 A Abrangência Nacional de Decisão Judicial em Ações Coletivas: O Caso da Lei 9.494/97, in Revista dos Tribunais, v.755 (set/98), p.115.

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substituído, sofrendo as conseqüências da coisa julgada’.(...) “Isso pois o caso de limitação seria não de competência, mas de jurisdição. Se o Juiz de 1º Grau pode conhecer da ação de um substituto processual como o Ministério Público, deve sua decisão valer para todos os substituídos.(...) “Isso pois, como esclarece a douta Juíza Federal Marisa Vasconcelos, ‘não é critério determinante da extensão da eficácia da coisa julgada material, na ação civil coletiva, a competência territorial do órgão julgado, mas o contrário, o critério determinante dessa extensão reside na amplitude e na indivisibilidade do dano ou ameaça de dano que se pretende evitar”.

E vai adiante:

“Nas lides coletivas fica patente que o Juiz, ao prolatar decisão benéfica, atinge com isso todos que se encaixem na situação objetiva analisada. Destarte, a real extensão da aplicação da decisão judicial, seja ela definitiva, seja ela provisória, não deve limitar-se ao âmbito regional de competência territorial do órgão prolator. Tal competência territorial só é utilizada para fixar qual Juiz deve conhecer e julgar a causa.(...) “Assim, o efeito erga omnes da coisa julgada é conseqüência da aceitação da forma coletiva de se tratar litígios macrossociais. Não pode ser restringido tal efeito por lei ou por decisão judicial sob pena de ferirmos a própria Constituição do Brasil. (...) “Com isso, fica demonstrado que se a Constituição Brasileira, dentro do modelo do Estado Democrático de Direito abraçado, busca, antes de tudo, o acesso à justiça, sendo decorrência disso o tratamento coletivo das demandas. Nada mais certo que a ampliação dos efeitos benéficos de decisão judicial para todos os interessados. (...)“Ainda são atendidos outros princípios constitucionais, em virtude da identidade de prestação jurisdicional a indivíduos que se encontram em condições iguais, respeitando-se, então, o princípio da isonomia. (...)“Assim sendo, a Lei 9.494/97, que converteu em lei a MedProv 1.570 é inócua. A competência territorial serve apenas para fixar a competência do juízo. Os efeitos da decisão do Juiz são limitados somente, como frisei, pelo objeto do pedido, que quando for relativo aos interesses transindividuais, atingem a todos os que se encontram na situação objetiva em litígio, não importando onde o local de seu domicílio. (...)“Competente o juízo, então, devem os efeitos da decisão espalharem-se para todos os substituídos, tendo em vista todos os argumentos acima expostos. (...) “Urge, então, a desconsideração do art. 2º da Lei 9.494/97, para a preservação da tutela coletiva de direitos no Brasil.” (...)”

A lei não pode impor vedações ou restrições à ação civil pública, cujos limites, como os do mandado de segurança20, decorrem exclusivamente do texto constitucional. Assim, se o dano ou a ameaça de dano a interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos tiver abrangência nacional, a decisão do juízo competente para conhecer a causa em primeiro grau de jurisdição terá que ter a mesma amplitude, sob pena de tornar ineficaz a prestação jurisdicional desses interesses e direitos nos termos pretendidos pela Constituição.

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20 Cf. Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, CPC Comentado, 3ª ed., nota (4) ao art. 12 da Lei nº 7.347/85, “Proibição legal de concessão de liminares pelo juiz”, p.1149.

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A indignação com o malsinado dispositivo fez vibrar a pena de Ada Pellegrini Grinover21 que, ao afirmar que o Executivo foi infeliz em editar a Medida Provisória nº 1.570/97 (convertida na Lei nº 9.494/97), destacou que “limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e, de outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente. No momento em que se o sistema brasileiro busca saídas até nos precedentes vinculantes, o menos que se pode dizer do esforço redutivo do Executivo é que vai na contramão da história”.

Conseqüência inevitável da restrição dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas ao limite da competência territorial do juiz é a multiplicação das demandas judiciais por tantas vezes quantas for o número de comarcas no país, trazendo inúmeras soluções judiciais ao mesmo caso, abalando não somente os princípios constitucionais da isonomia, da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça, mas também o princípio do efeito integrador, pelo qual “na resolução dos problemas jurídicos-constitucionais deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política”22.

A combatida norma introduzida pela Lei nº 9.494/97, ao contrário de conferir ordem e exeqüibilidade ao conteúdo da franquia maior, impôs-lhe verdadeira restrição.

Não bastasse esbarrar em inconstitucionalidade, a alteração introduzida pela Lei nº 9.494/97 na norma do art. 16 da Lei nº 7.347/85 fracassa também por restar, no sistema em que se insere, reduzida à ineficácia, como tão bem demonstram Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery23:

"A MedProv 1570/97, art. 3º, que modificou a redação da LACP 16, para impor limitação territorial aos limites subjetivos da coisa julgada, não tem eficácia e não pode ser aplicada às ações coletivas. Confundiram-se os limites da coisa julgada "erga omnes", isto é, quem são as pessoas atingidas pela autoridade da coisa julgada, com jurisdição e competência, que nada têm a ver com o tema. Pessoa divorciada em São Paulo é pessoa divorciada no Rio De Janeiro. Não se trata de discutir se os limites do juiz de São Paulo podem ou não ultrapassar seu território, atingindo o Rio de Janeiro, mas quem são as pessoas atingidas

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21 In Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 5ª ed., Forense Universitária, p. 722.

22 J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ª ed., Almerinda, p.1097.

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23 In CPC Comentado, 3ª ed., RT, p. 1157-8.

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pela sentença paulista. O equívoco da MedProv 1570/97 demonstra que quem a redigiu não tem noção, mínima que seja, do sistema processual das ações coletivas. De outra parte, continuam em vigor os arts. 18 da LAP e 103 do CDC , que se aplicam às ações fundadas na LACP, por expressa disposição do CDC 90 e da LACP 21. Este é o segundo fundamento para a ineficácia do errado e inócuo art. 3º da MedProv 1570/97. Enquanto não modificados, também, os artigos 18 da LAP e 103 do CDC, o art. 16 da LACP não produzirá o efeito que o Presidente da República pretendeu impor”.

Por fim, diga-se que a decisão do Tribunal Regional Federal da 4º Região, na ACP proposta contra o INSS, que garantiu a concessão de pensão por morte a companheiros homossexuais de segurados do RGPS sufragou este entendimento:

“A regra do art. 16 da Lei n.º 7.347/85 deve ser interpretada em sintonia com os preceitos contidos na Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), entendendo-se que os limites da competência territorial do órgão prolator, de que fala o referido dispositivo, não são aqueles fixados na regra de organização judiciária, mas sim, aqueles previstos no art. 93 do CDC” (Processo nº 200071000093470 UF: RS Órgão Julgador: SEXTA TURMAData da decisão: 27/07/2005)

Por isto, quer se considere ou não “perigoso”, “revolucionário”, “excessivo” ou “inaplicável” o art. 16, da Lei da Ação Civil Pública, não se pode deixar de reconhecer que, em hipóteses como a presente, não há qualquer sentido em negar a aplicação do direito a toda a gama de servidores públicos federais brasileiros potencialmente afetados pela discriminação levada a efeito pela União. Ou se reconhece que todos merecem o mesmo tratamento, em decorrência de estarem ligados à mesma fonte pagadora, independentemente do lugar onde exerçam suas funções, ou não se estará, de verdade, dando “a cada um o que é seu”, finalidade primordial da função judiciária.

Assim, sendo o dano de âmbito nacional, ações como esta podem ser propostas em quaisquer capitais, na melhor interpretação do disposto no art. 93, do CDC, sendo possível a qualquer dos Juízos Federais escolhidos a solução da lide, com produção de efeitos em todo o território nacional pois, repita-se, decorre da natureza mesma dos interesses aqui defendidos (individuais homogêneos, espraiados por todo o Brasil) a necessidade de julgamento uniforme, para que não se perpetue, com eventual decisão judicial favorável, a situação de desigualdade ora denunciada.

Diante de todo o exposto, impõe-se o afastamento do limite territorial introduzido pela inconstitucional e ineficaz Lei nº 9.494/97 aos efeitos da coisa julgada nesta ação civil pública.

VII - DO PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

A Lei n.º 8.952, de 13 de dezembro de 1994, conferiu nova redação ao artigo 273 do Código de Processo Civil, no sentido de possibilitar a antecipação dos efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, verbis:

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“Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ouII - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.” (grifos nossos)

Comentando o instituto, Cândido Rangel Dinamarco sintetiza a contribuição essencial e qualitativa da antecipação de tutela ao nosso direito processual:

“O novo art. 273 do Código de Processo Civil, ao instituir de modo explícito e generalizado a antecipação dos efeitos da tutela pretendida, veio com o objetivo de ser uma arma poderosíssima contra os males do tempo no processo.”24

Trata-se, como se vê, de realização imediata do direito, pois confere ao autor o bem da vida por ele pretendido, possibilitando a efetividade da prestação jurisdicional. Com a possibilidade de antecipação da tutela, presente prova inequívoca e convencido o Juiz da verossimilhança do alegado, a prestação jurisdicional deverá ser antecipada sempre que houver fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou ainda quando ficar caracterizado abuso no direito de defesa, mediante a utilização de expedientes meramente protelatórios à conclusão do processo.

Os dois critérios gerais eleitos pelo legislador para a antecipação de tutela são, portanto, como dispõe a lei processual: prova inequívoca e verossimilhança do alegado. Comentando esses requisitos, o Juiz Federal Teori Albino Zavascki pondera que:

“Atento, certamente, à gravidade do ato que opera restrição a direitos fundamentais, estabeleceu o legislador, como pressupostos genéricos, indispensáveis a qualquer das espécies de antecipação da tutela, que haja (a) prova inequívoca e (b) verossimilhança da alegação. O fumus boni iuris deverá estar, portanto, especialmente qualificado: exige-se que os fatos, examinados com base na prova já carreada, possam ser tidos como fatos certos. Em outras palavras: diferentemente do que ocorre no processo cautelar (onde há juízo de plausibilidade quanto ao direito e de probabilidade quanto aos fatos alegados), a antecipação da tutela de mérito supõe verossimilhança quanto ao fundamento de direito, que decorre de (relativa) certeza quanto à verdade dos fatos. Sob esse aspecto, não há como deixar de identificar os pressupostos da antecipação da tutela de mérito, do art. 273, com os da liminar em mandado de segurança: nos dois casos, além da relevância dos fundamentos (de direito), supõe-se provada nos autos a matéria fática. (...) Assim, o que a lei exige não é, certamente, prova de verdade absoluta, que sempre será relativa, mesmo quando concluída a instrução, mas uma prova robusta, que, embora no âmbito de cognição sumária, aproxime, em segura medida, o juízo de probabilidade do juízo de verdade” 25.

No caso em tela, todos os requisitos legais exigidos para o deferimento da tutela antecipada se encontram preenchidos.

A verossimilhança da alegação decorre da própria certeza relativa aos fatos (recusa da União, por seus diversos órgãos, em permitir aos companheiros homossexuais

24 “A Reforma do CPC”, 2ª ed., ver. e ampl., São Paulo, Malheiros Editores, 1995. 25 Antecipação da Tutela, editora Saraiva, São Paulo, 1997, fls. 75-76.

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de servidores públicos determinados benefícios previdenciários), a julgar pelos exemplos citados nesta ação, que notoriamente se repetem nos mais diversos rincões do País, a prejudicar um número indeterminado de pessoas.

O fumus boni iuris também é notório, considerando a relutância da União em reconhecer os efeitos jurídicos das uniões citadas, indeferindo pedidos administrativos de benefícios com nítido caráter alimentar.

O periculum in mora, por seu turno, revela-se igualmente cristalino, considerando que a pretensão ora exposta – garantir que os companheiros homossexuais de servidores públicos federais sejam havidos como seus dependentes, para fins previdenciários – encerra, em verdade, um interesse de cunho alimentar, uma vez que a pensão por morte, direito perseguido, é benefício que visa suprir as necessidades básicas dos dependentes do servidor falecido segurado, no sentido de lhes assegurar a subsistência.

Por conseguinte, o não reconhecimento, em caráter liminar, do direito aqui pretendido resultará certamente em risco de dano irreparável aos possíveis beneficiários da vantagem previdenciária (como, de fato, já deve estar ocorrendo, no presente momento, em face daqueles que têm tido as suas pretensões fulminadas na via administrativa), impondo-se a consideração desta circunstância num juízo de proporcionalidade entre a segurança e a certeza processuais e a necessidade alimentar característica do pleito.

Por fim, vale salientar, que não incide, na espécie, a vedação de tutela antecipada contra a Fazenda Pública contida no art. 5º, da Lei 4348/64 (c/c Lei 8437/92), eis que o direito pretendido nesta ação não é de titularidade do servidor público propriamente dito, e sim do seu companheiro homossexual, com quem tenha convivido em regime de união estável.

Diante do exposto, estando presentes os requisitos previstos pelo art. 273 do Código de Processo Civil c/c o art. 12 da Lei n.º 7.347/85 demonstrando a urgência da tutela antecipatória, requer o Ministério Público Federal a concessão de liminar, de abrangência nacional, determinado à União que:

a) passe a considerar o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial da mesma classe dos companheiros heterossexuais (alínea “a” do inciso I do art. 207 da Lei 8.212/90) dos servidores públicos federais de todos os poderes constituídos, autarquias, fundações, órgãos auxiliares e autônomos, regidos pela Lei 8112/90, para fins de concessão de benefícios previdenciários, passando a processar e a deferir todos os pedidos de pensão por morte realizados pelos companheiros do mesmo sexo, desde que cumpridos, pelos requerentes, no que couber, os mesmos requisitos exigidos dos companheiros heterossexuais, previstos nos arts. 215 a 225 da Lei 8112/90 e, por analogia constitucional, no art. 22, do vigente Decreto 3048/99;

b) passe a aceitar, nos setores administrativos de recursos humanos dos órgãos supracitados, a inscrição de companheiros(as) homossexuais como dependentes dos servidores públicos federais, regidos pela Lei 8112/90, que comprovem convivência em união estável;

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c) no prazo de 15 dias, a contar da decisão judicial, faça publicar no Diário Oficial da União ato administrativo (portaria, circular ou equivalente) reproduzindo os termos da determinação judicial.

VIII - DOS PEDIDOS FINAIS

Com esteio nos fatos e fundamentos jurídicos expostos no decorrer desta exordial, requer o Ministério Público Federal:

a) a juntada aos autos da documentação em anexo (01 a 14);

b) a citação da União, na pessoa do seu representante legal, no endereço indicado na inicial para integrar a relação jurídica processual e, querendo, contestar os fatos e fundamentos jurídicos apresentados;

c) a produção de todas as provas admitidas em direito;

d) a condenação da Requerida nas custas, despesas processuais e honorários advocatícios;

e) a condenação da União, em caráter definitivo, a considerar o companheiro

ou companheira homossexual como dependente preferencial da mesma classe dos companheiros heterossexuais (alínea “a” do inciso I do art. 207 da Lei 8.112/90) dos servidores públicos federais de todos os Poderes da União, de suas autarquias e fundações, de seus órgãos autônomos e auxiliares, sujeitos ao regime da Lei 8112/90, para fins de concessão de benefícios previdenciários, passando a processar e a deferir todos os pedidos de pensão por morte realizados pelos companheiros do mesmo sexo, desde que cumpridos pelos requerentes, no que couber, os mesmos requisitos exigidos dos companheiros heterossexuais, previstos nos arts. 215 a 225 da Lei 8112/90 e, por analogia constitucional, no art. 22 do vigente Decreto 3048/99;

f) o julgamento antecipado da lide, no momento processual oportuno, nos termos do art. 330, inciso I, do Código de Processo Civil, em razão de se tratar de matéria exclusivamente de direito.

Atribui à causa o valor de valor de R$ 1.000,00 (mil reais), para efeitos fiscais.

Vitória/ES, 30 de abril de 2007.

LUCIANA LOUREIRO OLIVEIRAProcuradora da República

Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão

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