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_________________________________________________________________________________ Rua Pamplona, 1197, casa 4 São Paulo/SP – 01405 Brasil Tel : (55 11) 3884 7440 * Fax (55 11) 3884 1122 www.conectas.org 1 EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR MINISTRO DO COLENDO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – RELATOR DA ADIN 3112 CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação civil sem fins lucrativos, devidamente constituída na forma da lei como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, inscrita no CNPJ sob o n. 04.706.954/0001-75, com sede na Rua Pamplona, 1197, casa 4, Jardins, São Paulo/ SP, neste ato representado por seu Diretor Executivo e bastante representante legal nos termos de seu estatuto (doc.1), Oscar Vilhena Vieira, brasileiro, casado, portador da cédula de identidade RG n. 11.959.493, inscrito no CPF n. 134.864.508-32, residente e domiciliado à Rua Gabriel de Resende Passos, 433, 1º andar, São Paulo/ SP (doc.2), INSTITUTO SOU DA PAZ, associação civil sem fins lucrativos, devidamente constituída na forma da lei como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, inscrita no CNPJ sob o n. 03.483.568/0001-07, com sede na Rua Luis Murat, 260, Vila Madalena, São Paulo/ SP, neste ato representado por seu Diretor e bastante representante legal nos termos de seu estatuto social (doc.3), Denis Fernando Mizne, brasileiro, solteiro, portador da cédula de identidade RG n. 18.283.244-2, inscrito no CPF sob o n. 268.653.638-17, residente e domiciliado à Rua Consolação, 3617, apto. 92, São Paulo/ SP (doc.4) e VIVA RIO, associação civil sem fins lucrativos, devidamente constituída na forma da lei, inscrita no CNPJ sob o nº 00343941/000128, com sede na Rua do Russel, 76, Glória, Rio de Janeiro/ RJ, neste ato representado pelo seu Diretor e bastante representante legal nos termos de seu estatuto social (doc.5), Rubem César Fernandes, brasileiro, casado, antropólogo, portador da cédula de identidade RG n. 3447001, inscrito no CFP n. 869.351.278-15, residente e domiciliado à Avenida Bartolomeu Metre, 33 apto. 43, Rio de Janeiro/ RJ (doc.6), por seus advogados e bastante procuradores (doc.1A), com base no disposto no artigo 7º, §2º da Lei 9.868/99, na qualidade de amicus curiae, vem se manifestar na AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3112 proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, visando à declaração de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento), manifestando-se neste amicus pela constitucionalidade da Lei 10.826/2003, como a seguir demonstrado:

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Tel : (55 11) 3884 7440 * Fax (55 11) 3884 1122 www.conectas.org

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR MINISTRO DO COLENDO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – RELATOR

DA ADIN 3112 CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação civil sem fins lucrativos, devidamente constituída na forma da lei como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, inscrita no CNPJ sob o n. 04.706.954/0001-75, com sede na Rua Pamplona, 1197, casa 4, Jardins, São Paulo/ SP, neste ato representado por seu Diretor Executivo e bastante representante legal nos termos de seu estatuto (doc.1), Oscar Vilhena Vieira, brasileiro, casado, portador da cédula de identidade RG n. 11.959.493, inscrito no CPF n. 134.864.508-32, residente e domiciliado à Rua Gabriel de Resende Passos, 433, 1º andar, São Paulo/ SP (doc.2), INSTITUTO SOU DA PAZ, associação civil sem fins lucrativos, devidamente constituída na forma da lei como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, inscrita no CNPJ sob o n. 03.483.568/0001-07, com sede na Rua Luis Murat, 260, Vila Madalena, São Paulo/ SP, neste ato representado por seu Diretor e bastante representante legal nos termos de seu estatuto social (doc.3), Denis Fernando Mizne, brasileiro, solteiro, portador da cédula de identidade RG n. 18.283.244-2, inscrito no CPF sob o n. 268.653.638-17, residente e domiciliado à Rua Consolação, 3617, apto. 92, São Paulo/ SP (doc.4) e VIVA RIO, associação civil sem fins lucrativos, devidamente constituída na forma da lei, inscrita no CNPJ sob o nº 00343941/000128, com sede na Rua do Russel, 76, Glória, Rio de Janeiro/ RJ, neste ato representado pelo seu Diretor e bastante representante legal nos termos de seu estatuto social (doc.5), Rubem César Fernandes, brasileiro, casado, antropólogo, portador da cédula de identidade RG n. 3447001, inscrito no CFP n. 869.351.278-15, residente e domiciliado à Avenida Bartolomeu Metre, 33 apto. 43, Rio de Janeiro/ RJ (doc.6), por seus advogados e bastante procuradores (doc.1A), com base no disposto no artigo 7º, §2º da Lei 9.868/99, na qualidade de amicus curiae, vem se manifestar na AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3112 proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, visando à declaração de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento), manifestando-se neste amicus pela constitucionalidade da Lei 10.826/2003, como a seguir demonstrado:

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SUMÁRIO DOS ARGUMENTOS 1. Da Legitimidade das Associações para se

manifestarem na qualidade de Amici Curiae As associações autoras possuem experiência e desenvolvem suas atividades nas questões vinculadas à segurança pública, promoção da paz e dos direitos humanos, encontrando-se esses temas entre seus objetivos estatutários, preenchendo os requisitos impostos pela Lei n. 9.868/99. Manifestam-se em relação à ADIn 3112, que questiona do Estatuto do Desarmamento, lei de grande relevância e repercussão pública. 2. Antecedentes A campanha pelo desarmamento rapidamente tomou proporções nacionais, dada a relevância do tema e preocupação comum de todos. A Lei 10.826/03 responde, assim, aos anseios sociais e representa grande conquista em prol da paz e pelo fim da violência. A ADIn 3112 proposta pelo PTB questiona a constitucionalidade da referida lei em aspectos formal e material.

3. Fatos A grande quantidade de armas produzidas e circulantes no Brasil está intimamente relacionada aos índices de homicídios e ao crime organizado, a ponto de o Brasil ser o país em que mais se mata com arma de fogo, responsável por cerca de 11% destas mortes no mundo, conforme dados da Organização das Nações Unidas. A pessoa comum que porta armas aumenta tanto a chance de ser vítima de homicídio como de se tornar homicida, além de servir de fornecedora para a criminalidade. Os que usam armas têm 56% mais chance de serem mortos; 46% dos homicídios em certas regiões são realizados entre vítimas e algozes conhecidos que não têm passado criminal.

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4. Direito – Da Constitucionalidade da Lei 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento.

5. 4.1 Da Constitucionalidade do Estatuto do Desarmamento frente aos Direitos Fundamentais Não há em nosso ordenamento jurídico a previsão de um direito fundamental de portar armas. Trata-se de mera faculdade, conferida pela lei ordinária e submetida ao crivo da autoridade pública, sob critérios de conveniência e oportunidade, ou seja, discricionariamente. Além de não constituir um direito fundamental, restou comprovado pelos fatos que portar armas, ao invés de trazer segurança, aumenta a probabilidade dos cidadãos se tornarem assassinos e de serem mortos. Ademais, a restrição a esta faculdade de portar armas é legítima, uma vez que a obrigação de não matar é peremptória, sendo sua prática sancionada penalmente. As condutas que põem em risco o direito à vida das pessoas devem ser minimizadas, como faz o Estatuto do Desarmamento. 4.2 Da Inexistência de Vício de Iniciativa na Lei 10.826/2003 A lei 10.826/2003 não cria ou extingue órgãos da administração pública, sendo compatível com a alínea “e”, do inciso II, §1º do art. 61 da Constituição Federal. Após a Emenda Constitucional 32/2001, a iniciativa para dispor sobre a atribuição e estruturação dos órgãos da administração não é mais privativa do Presidente da República. 4.3 Da Incorrência de Usurpação de Competência Legislativa pela União A Lei 10.826/2003 é lei geral que substitui e aperfeiçoa a anterior (Lei 9.437/97), fixando normas gerais sobre a produção e consumo de armas de fogo e munições, de necessária uniformidade entre os Estados Federados e regulando atividade da Polícia Federal em temas de repercussão interestatal e internacional, em acordo com o disposto no art. 24, V, §§1º e 2º e 144, § 1º, I e §4º da Constituição Federal de 1988.

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1. DA LEGITIMIDADE DAS ASSOCIAÇÕES PARA SE MANIFESTAREM NA QUALIDADE DE AMICI

CURIAE

Com a promulgação da Lei 9.868/99 foi permitido às associações

civis manifestarem-se nas ações declaratórias de

inconstitucionalidade, na qualidade de amicus curiae. Dispõe o §

2º, do artigo 7º, da Lei 9.868/99:

Art. 7º. (...) § 2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

Em julgamento da ADIn 2130-3/SC, este Colendo Supremo

Tribunal Federal firmou entendimento sobre as entidades e órgãos

previstos no parágrafo supra e sobre sua participação no controle

abstrato de constitucionalidade das leis:

“[permitindo a participação de amicus curiae, o STF] valorizará, sob perspectiva

eminentemente pluralística, o sentido

essencialmente democrático dessa

participação processual, enriquecida

pelos elementos de informação e pelo

acervo de experiências que o amicus

curiae poderá transmitir à Corte

Constitucional, notadamente num

processo como o de controle abstrato de

constitucionalidade, cujas implicações

políticas, sociais, econômicas, jurídicas e

culturais são de irrecusável importância e

de inquestionável significação”. (STF, ADInMC 2130-3/SC, rel. Min. Celso de

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Mello, j. 20.12.2000, DJU 2.2.2001, p.145 - grifamos).

Neste sentido, segue ementa de julgamento de referida ADIn:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INTERVENÇÃO PROCESSUAL DO AMICUS CURIAE. POSSIBILIDADE. LEI Nº 9.868/99 (ART. 7º, § 2º). SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE NO SISTEMA DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE ADMISSÃO DEFERIDO. - No estatuto que rege o sistema de controle normativo abstrato de constitucionalidade, o ordenamento positivo brasileiro processualizou a figura do amicus curiae (Lei nº 9.868/99, art. 7º, § 2º), permitindo que terceiros - desde que investidos de representatividade adequada - possam ser admitidos na relação processual, para efeito de manifestação sobre a questão de direito subjacente à própria controvérsia constitucional. - A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses

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gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 - que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae - tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional” (grifamos).

A Conectas Direitos Humanos tem como objetivo estatutário

promover, apoiar, monitorar e avaliar projetos em direitos humanos

em nível nacional e internacional, em especial: I– promoção da

ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e

de outros valores universais; VI – promoção de direitos

estabelecidos, por meio da prestação de assessoria jurídica

gratuita, tendo, inclusive, quando possível e necessário, a

capacidade de propor ações representativas (www.conectas.org).

Com amplo mandato em direitos humanos, a Conectas possui como

principal área de atuação a operacionalização do Direito em lógica

de prevalência dos direitos humanos.

O Instituto Sou da Paz, de sede em São Paulo, tem como missão

contribuir para a efetivação no Brasil de políticas públicas de

segurança e prevenção da violência que sejam eficazes e pautadas

pelos valores da democracia, da justiça social e dos direitos

humanos, por meio da mobilização da sociedade e do Estado e da

implementação e difusão de práticas inovadoras nessa área

(www.institutosoudapaz.org.br). O Instituto Sou da Paz esteve em

permanente contato e apoio na elaboração do Estatuto do

Desarmamento, sendo inquestionável seu conhecimento na área.

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O Viva Rio, com sede do Rio de Janeiro, também tem seu mandato

vinculado à questão da segurança pública e direitos humanos,

desenvolvendo suas campanhas de paz e projetos sociais em cinco

áreas: direitos humanos e segurança pública, desenvolvimento

comunitário, educação, esportes e meio ambiente

(www.vivario.org.br). Assim como o Instituto Sou da Paz, o Viva

Rio esteve presente em todas as discussões e debates públicos em

relação ao Estatuto do Desarmamento, possuindo expertise para

figurar como amicus curiae.

Neste sentido, comprovada a legitimidade e representatividade das

entidades na matéria ora questionada, ressalta-se a inquestionável

relevância da lei objeto desta ADIn. O Estatuto do Desarmamento

(Lei 10.826/2003) é vital à sociedade, em todos os sentidos, para

a consolidação de políticas de segurança e retrocesso dos índices

de violência que assolam o país, como restará provado a seguir.

2. ANTECEDENTES A Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, ficou mais conhecida

como Estatuto do Desarmamento é resultado de um longo processo

de debate público, tendo passado também por intenso processo de

deliberação em ambas casas do Congresso, que deu espaço a

audiências públicas tanto em Brasília como em diversos Estados da

Federação.

De fato, a campanha pelo desarmamento teve seu início no final dos

anos noventa, sendo encabeçada pelo Viva Rio, Sou da Paz e

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ILANUD, e rapidamente tomou proporções nacionais, dada a

relevância do tema e preocupação comum de todos.

A Lei 10.826/03 responde, assim, aos anseios sociais e representa

grande conquista em prol da paz e pelo fim da violência, tão

desejado por todos.

A ADIn 3112 proposta pelo PTB questiona a constitucionalidade da

referida lei em aspectos formal e material que não merecem

acolhimento, como a seguir exposto.

3. FATOS 3.1 AS ARMAS DE FOGO NO CONTEXTO DA

VIOLÊNCIA BRASILEIRA

Concretizada na maioria dos grandes centros urbanos do país e

atingindo determinados conflitos no campo, a criminalidade

violenta vem aumentando de forma acentuada nos últimos vinte

anos no Brasil. Entre os anos de 1980 e 2000, o número de

homicídios subiu de 12 por cada 100 mil habitantes para 27 por

100 mil habitantes, havendo um aumento superior a 200%. Em

alguns bairros das periferias brasileiras esta cifra chega a 438 por

100 mil habitantes, número que ultrapassa as mortes na maioria dos

países em guerra.

Este é certamente um quadro que aterroriza a população e exerce

forte pressão sob os governantes encarregados de garantir a

segurança pública em nossa sociedade. A gravidade da situação

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demanda respostas urgentes, que devem, contudo, ser analisadas

com cuidado, evitando medidas desastrosas ou meramente

populistas.

Ora, todos sabemos que a violência é multicausal e que para

enfrentá-la é necessário um conjunto de ações eficaz e coerente, que

abranja dentre outras medidas, o combate à pobreza, exclusão

social, distribuição de renda, eficiência e credibilidade dos sistemas

de justiça e segurança pública, combate ao narcotráfico, geração de

renda, educação, moradia, qualidade do ambiente urbano, para citar

apenas algumas.

Contudo, não podemos nos esquecer que aliado a medidas de médio

e longo prazo, devemos também adotar resoluções que possam

surtir efeitos imediatos, principalmente aquelas capazes de reduzir

com mais intensidade os fatores que potencializam a violência,

dentre os quais as armas.

O Brasil é, conforme dados da Organização das Nações Unidas

(ONU), o país número 1 em homicídios praticados por armas de

fogo no mundo. São ao todo 46.000 mortes por ano, sendo que

uma a cada 13 minutos. O Brasil é responsável por 11% das

mortes por arma de fogo no mundo, possuindo 2,8% da população

mundial.

BRASIL População Mundial Mortes por Armas de fogo no

mundo 2,8% 11%

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Estudos sobre o número de armas em território nacional estimam

entre 7 e 20 milhões. Em pesquisa de vitimização realizada pelo

Ilanud/Datafolha em São Paulo (1997), estimou-se a existência de

armas de fogo em 8% das residências paulistanas. No Rio de

Janeiro, a mesma pesquisa, em 1996, avaliou como provável a

existência de armas em 9% dos lares cariocas.

Esses números são apenas estimativas e não há dados precisos sobre

a quantidade de armas em nossas mãos. No entanto, embora não

haja como precisar o volume exato de armas no Brasil,

demonstraremos ainda assim o seu impacto em nossa sociedade.

3.2 HOMICÍDIOS COM ARMAS DE FOGO

Como anteriormente visto, o Brasil encontra-se em lugar de

destaque para os homicídios praticados com armas de fogo. Dados

de 2000 revelam que 64.3% dos homicídios no país foram

cometidos com arma de fogo.

No município do Rio de Janeiro, a bala superou todas as outras

causas de morte juntas, inclusive as naturais, sendo a razão do óbito

de cerca de 65% dos jovens masculinos de 15 a 29 anos (vide

quadro pág. 6, Anexo: Relatório do Grupo de Trabalho sobre

Controle de Armas de Fogo) .

Um dos argumentos levantados por aqueles que questionam a

eficácia do controle de armas é que a disponibilidade das armas de

fogo não tem relação imediata com os altos índices de homicídios,

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dado que o que mata não é arma, mas quem atira. Ora, nada mais

correto, em primeira análise.

A Suíça é um país com índice baixíssimo de violência embora seja

altamente armada. Lá, a população civil, embora detentora de armas

de fogo, não recorre a este instrumento no dia-a-dia. As armas têm

uma função única que é a da defesa de uma nação sem exército.

É evidente que a discussão sobre o controle de armas não pode girar

apenas em torno dos números absolutos deste instrumento, mas

deve levar em consideração também as características políticas,

socioeconômicas e culturais de uma sociedade (vide mapa pág. 9,

Anexo: Relatório do Grupo de Trabalho Controle de Armas de

Fogo) .

No Brasil, os maiores índices de homicídios cometidos com armas

de fogo ocorrem em grandes conglomerados urbanos brasileiros e

em determinadas áreas rurais marcadas pela disputa de terra.

Nestas localidades, a via pacífica de resolução de conflito é

prejudicada pelo acirramento das relações em suas divergências,

pela corrosão dos meios formais de mediação, pela dificuldade do

acesso às instituições do poder público, dentre várias outras que

aqui não caberia mencionar.

É fácil, portanto, assumir que inserida nesta realidade, a presença da

arma é fator catalisador da violência, como demonstra o quadro a

seguir:

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Homicídios no Brasil por Estado – 2000/ Porcentagem de Homicídios com uso de Arma de Fogo1

Estado Federado Número de Homicídios

% de Homicídios com uso de arma de fogo

Pernambuco 4302 83,9 Rio de Janeiro 7900 77,5 Distrito Federal 689 72,7 Paraíba 520 71,5 Rio Grande do Sul 1768 70,7 Espírito Santo 1438 69,8 Mato Grosso 992 69,7 Mato Grosso do Sul 662 67,7 Alagoas 728 66,5 Sergipe 424 65,8 Minas Gerais 2171 65,4 Goiás 1126 62,5 São Paulo 16322 59,1 Rondônia 473 58,6 Paraná 1880 58,1 Pará 817 56,4 Ceará 1241 52,9 Tocantins 184 52,2 Santa Catarina 448 49,6 Amazonas 556 44,4 Piauí 240 40,8 Rio Grande do Norte 366 40,2 Bahia 1916 40,0 Roraima 130 36,2 Maranhão 392 36,0 Acre 111 35,1 Amapá 156 21,2 Brasil 47956 64,3

Dado que Brasil não é Suíça, podemos afirmar sim que o controle

de armas é medida eficaz e de efeito imediato na redução da

violência.

1 Fonte DATA-SUS. Análise: ISER.

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Ao contrário do que muitos pensam, grande parte dos homicídios

em território nacional não é cometido por "bandidos", mas por

pessoas "de bem", na maioria derivados de motivos fúteis.

Em São Paulo, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública2,

quase 50% dos homicídios são cometidos por pessoas sem

histórico criminal e por razões banais.

Dados semelhantes são apresentados pelo sociólogo Guaracy

Mingardi3, em uma pesquisa de 1996 que revelou que 48.3% dos

casos de homicídio registrados na Zona Sul da capital de São Paulo,

vítima e autor mantinham uma relação prévia de parentesco,

vizinhança, amizade ou outra proximidade qualquer.

No Rio de Janeiro, de acordo com pesquisa realizada pelo ISER no

mês de março de 1998, de 164 ocorrências com vítimas fatais, em

35% dos casos havia relacionamento anterior entre autor e vítima.

Essas pesquisas revelam que a presença da arma tem relação

direta com o desfecho da ocorrência. O cruzamento do perfil

daquele que entende que pode se defender com uma arma de fogo,

juntamente com comportamentos agressivos, estimulados pelo

excesso de bebidas alcoólicas ou drogas, potencializa a

transformação do mero conflito em homicídio.

Outro fato importante a ser destacado é que a auto-defesa,

defendida pelas pessoas comuns que adquirem um revólver

2 SSP/SP, 2001. 3 Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP.

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legalmente, com a finalidade de se proteger de criminosos, é na

maioria das vezes um tiro que sai pela culatra.

Pesquisas sobre defesa e vitimização revelam que a posse de arma

como forma de defesa é uma ilusão. Um cidadão armado tem

56% mais chance de ser morto em uma situação de roubo do

que os que andam desarmados, de acordo com informações

divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública e pelo Instituto

Brasileiro de Ciências Criminais4. A obviedade indica que o fator

surpresa e a familiaridade do agressor com a arma só podem ser

elementos de desvantagem para a vítima.

No que tange aos acidentes e suicídios, os números também são

expressivos. As Nações Unidas, em estudos sobre a regulação de

armas, revelou que a cada 7 horas uma pessoa é vítima de

acidentes com armas de fogo no Brasil. Pessoas com pouca

familiaridade com esses instrumentos são atingidas

inadvertidamente, sendo as crianças as figuras mais fragilizadas

deste cenário.

Pesquisa publicada no New England Journal of Medicine pelo Dr.

Arthur Kellerman, revela que os lares com armas de fogo têm 11

vezes mais chances de suicídio do que aqueles lares sem armas. O

Rio Grande do Sul, estado brasileiro com alta concentração de

armas nas mãos de civis, é líder nesta modalidade de atentado

contra à vida, contando com uma taxa de cerca de 10 suicídios em

cada 100 mil habitantes.

4 SSP-SP/ IBCCrim, 2002.

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Resta comprovado, assim, que não há destino certo para os

projéteis que saem da arma de fogo. As balas não respeitam a

linha divisória entre “mocinhos e bandidos”.

3.3 A ARMA QUE MATA

Ignácio Cano, em pesquisa realizada sobre armas registradas e

acauteladas, apontou que 75% dos crimes são cometidos com

armas brasileiras e de calibre permitido, ou seja, provenientes

das nossas fábricas.

Segundo Projeto Controle de Armas, Viva Rio/ISER, no Estado do

Rio de Janeiro, das 205.323 armas apreendidas pela polícia em

poder de criminosos no período de 1950 a 2001, 74% foram

produzidas legalmente aqui no Brasil (vide gráfico pág. 13, Anexo:

Relatório Grupo de Trabalho sobre Controle de Armas de Fogo) .

Só no período de 1999 a 2003, as polícias (civil e militar) do Estado

do Rio de Janeiro apreenderam quase 43.000 armas de produção

nacional:

Armas Apreendidas pelas Policias Civil e Militar do Rio de Janeiro – Fabricantes (1999-2003)

Marca Quantidade Porcentagem

TAURUS 24142 56,2% ROSSI 13109 30,5% INA 1473 3,4% IMBEL 1075 2,5% CBC 856 2% CASTELO 689 1,6% BOITO 630 1,5% Outras 991 2,4% TOTAL 42.965 100%

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Em São Paulo, pesquisa realizada por Túlio Kahn5, indica que as

apreensões de armas de fogo também são de procedência nacional

na sua maioria absoluta. Sendo 54,6% referente à Taurus e 16%

provenientes da Rossi .

Diferentemente do que é retratado pela mídia, ou que está

depositado no imaginário coletivo, as armas utilizadas pelos

criminosos não são fuzis ou submetralhadoras importadas, mas sim

armas saídas da indústria armamentícia nacional sem qualquer

restrição (vide quadro pág. 11, Anexo: Relatório Grupo de Trabalho

sobre Controle de Armas de Fogo).

O que se verifica, portanto, é que na verdade a maioria das armas

apreendidas em situação ilegal não são armas longas automáticas,

de uso militar, e granadas de mão, mas sim as pistolas e revólveres

de produção em larga escala das empresas brasileiras (vide gráfico,

pág. 12, Anexo: Relatório Grupo de Trabalho sobre Controle de

Armas de Fogo).

O Brasil é o segundo maior produtor de armas de fogo de pequeno

porte das Américas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Em

2001, foram produzidos pelo nosso país 250 milhões de reais só em

armas para civis. Contudo, o ingrato dado que envolve este fato é

que boa parte destas armas que saem das fábricas legalmente

migram para abastecer o mercado ilegal barsileiro. Vê-se exemplo

do Estado do Rio de Janeiro.

5 Armas de Fogo - Impacto do Estatuto, CAP-SSP/SP (anexo).

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Além de restringir a comercialização e o porte das armas, a Lei

10.826/03 estabelece uma série de mecanismos de identificação

das armas de fogo e de sua munição, que viabilizam o

rastreamento do seu caminho, permitindo a localização dos

desvios e do tráfico ilegal de armas. O combate ao mercado

ilegal é medida de igual importância, para que se retire de

circulação todas as armas.

Assim, o conjunto de medidas adotadas pelo Estatuto do

Desarmamento estrutura de forma harmônica o desarmamento

como fator imprescindível para a redução do número homicídios.

Os argumentos levantados na inicial, sobre o ônus que recairá sobre

a indústria de armas para atender a todas as determinações da Lei

10.826/2003, especificamente em relação à marcação de armas e

munições, são absolutamente despropositados. Além de possível

tecnicamente realizar todas as exigências previstas na lei, conforme

laudo técnico anexo a este amicus, a proteção do direito à vida de

milhares de pessoas sobrepõe-se a eventuais custos financeiros ao

empreendimento econômico dos produtores de armas.

Parece, ainda, inadequado que esta discussão de caráter estritamente

técnico seja trazida a mais alta Corte do país, conforme já decidiu

Revólveres e pistolas Apreendidos (DFAE 1951-2003) - Taurus

Sem registro 66.9%

Com registro 33.1%

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este próprio Supremo Tribunal Federal na ADIn 2396, julgada em

2003.

“(...) não cabe a esta Corte dar a última palavra a respeito das propriedades técnico-científicas do elemento em questão e dos riscos de sua utilização para a saúde da população. Os estudos nesta seara prosseguem e suas conclusões deverão nortear as ações das autoridades sanitárias. Competência do Supremo Tribunal Federal circunscrita a verificação da ocorrência de contraste inadmissível entre a lei em exame e o parâmetro constitucional”.

4. DIREITO – DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI

10.826/03 – ESTATUTO DO DESARMAMENTO.

4.1 DA CONSTITUCIONALIDADE FRENTE AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Substantivamente, os autores desta ADIn acusam a existência de

diversos supostos vícios de inconstitucionalidade na Lei Federal no.

10.826 de 22 de dezembro de 2003, que não merecem acolhimento,

conforme exposto a seguir:

Não há direito constitucional de portar armas

Comecemos pela tese central desta ação. Para os representantes das

armas, ao limitar o porte de arma de fogo aos integrantes das forças

armadas e dos diversos órgãos de segurança pública, às empresas de

segurança privada e aos integrantes de entidades de desporto cujas

atividades demandem o uso de armas, o artigo 6o da lei em análise

violaria o direito à vida (artigo 5o caput da CF), à segurança

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(artigo 5o caput da CF cc. 144), à propriedade (artigo 5o, caput da

CF), e o direito adquirido (artigo 5o XXXVI da CF).

Cumpre destacar que em nenhum lugar da petição, ou do parecer do

Ilustre Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, ousaram os

autores a invocar violação a um direito constitucional, portanto

direito fundamental, de andar armado. Isto não se deve a qualquer

forma de lapso, mas ao simples fato de que não há direito

constitucional de portar uma arma.

Podemos vasculhar a Constituição de 1988 – do primeiro ao último

artigo – e não encontraremos qualquer indício de que o constituinte

tenha reconhecido um direito fundamental a portar armas.

Seria leviano afirmar, no entanto, que apenas constituem direitos

fundamentais aqueles que se encontram expressamente grafados na

Constituição (parágrafo 2o do artigo 5o da CF). Como é de todos

sabido a linguagem dos direitos é propositalmente aberta, para

permitir que dentro do campo protegido por um direito

fundamental, veiculado por um princípio, possam ser invocados

outros direitos. Evidente que esta derivação de direitos só se

justifica quando o direito subsidiário cumpra o papel de assegurar

aquele direito originalmente protegido pela Constituição. Não é este

o caso do interesse de andar armado.

O próprio parecerista citado pelos autores, em seu já clássico Curso

de Direito Administrativo, ao analisar a distinção entre atos

administrativo vinculados e discricionários, coloca a concessão de

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autorização pela autoridade policial para portar arma de fogo como

exemplo de um ato discricionário. Vejamos:

“A situação é bastante diversa quando a lei deixa ao Poder Público certa margem de discricionariedade por ocasião da prática do ato. Assim, considere-se o caso da autorização do porte de arma. Se o particular solicita, a Administração deferirá ou não, posto que a lei não a constrange à prática do ato, dado que faculta ao Poder Público examinar no caso concreto se convém ou não atender ao pretendido pelo interessado.” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de

Direito Administrativo, Malheiros, 14o. edição, p. 382)

Ora, que direito fundamental é este que a “Administração deferirá

ou não, posto que a lei não constrange à prática do ato...”? Diretos

fundamentais são, por sua natureza, intangíveis, ou seja, devem ter

sempre o seu núcleo duro preservado em qualquer processo de

ponderação.

No caso brasileiro, os direitos fundamentais sequer podem ser

objeto de emenda que tenda a abolí-los, conforme determina o

artigo 60, parágrafo 4o, IV da Constituição Federal. De que forma

equiparar uma mera faculdade conferida pela lei, submetida à

discricionariedade da Administração, a uma categoria de direitos

que não podem ser tolhidos pelo poder constituinte reformador?

Somente por um total descompromisso com a idéia de supremacia

da Constituição.

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De fato, estranho seria que qualquer Constituição assegurasse um

amplo direito de portar armas aos cidadãos comuns. Afinal a razão

primeira para a realização do contrato social, pelo qual criamos

nossos Estados, é a garantida da paz; paz esta que tem como

precondição a monopolização dos meios da violência por uma

autoridade legítima. Como nos explica Hobbes, a razão pela qual

deixamos o Estado de natureza é por temer nossos vizinhos. É a

possibilidade de que nossa vida ou bens sejam destituídos por

outras pessoas que nos mobiliza a transferir para o Estado todos os

meios de que dispomos para injuriar terceiros.

Neste mesmo sentido, autores clássicos como Max Weber, Sigmond

Freud ou Norbert Elias, atentam para o fato do processo

civilizatório estar umbilicalmente ligado à monopolização dos

meios de coerção pelo Estado. Aliás, a monopolização dos meios de

coerção faz parte da própria definição weberiana de Estado.

Sem que a sociedade seja destituída dos meios de violência não se

estabelecem as precondições necessárias à construção da paz social.

A afluência de armas junto ao corpo social, em casos extremos,

coloca em xeque a própria existência do Estado, o que tem se dado

na ação de narcotraficantes e justiceiros, no campo e na periferia

das grandes cidades. Sendo assim, é natural que as constituições

não reconheçam direito fundamental a portar arma, deferindo à

legislação ordinária, em circunstâncias especiais, autorizar o seu

porte. No caso brasileiro, esta autorização ainda está circunscrita à

discrição da Administração.

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A grande exceção a esta lógica, entre os países democráticos,

encontra-se presente, de forma mitigada, na Constituição Norte

Americana. Deve-se destacar a este respeito que o direito de manter

e portar armas (“keep and bear arms”) está diretamente relacionado

com a organização das brigadas estaduais (“well regulated militia”)

voltadas à preservação da autonomia recém adquirida pelos

Estados, após a independência. É isto que dispõe a segunda

emenda, de 1791.

Hoje o argumento de que há um direito constitucional de todo

cidadão de ter e portar armas, fora do contexto da defesa da

autonomia dos Estados, vem sendo muito contestado pelos liberais

americanos. Em sentido contrário, importante que se diga, grande

parte dos que apóiam uma interpretação favorável ao porte irrestrito

de armas vêm da indústria de armas, das associações de donos de

armas e dos grupos de extrema direita, que repudiam toda a

autoridade do governo federal, como a “Michigan Militia”, da qual

fazia parte Thimoty McVeigh, responsável pela explosão de um

prédio do governo federal em Oklahoma, ocasionando a morte de

168 pessoas, dentre elas dezenas de crianças que se encontravam na

creche do prédio.

A situação das demais democracias do mundo é, no entanto, muito

distinta. Países como Japão, Inglaterra e França optaram não apenas

por limitar o porte de arma de fogo pela população comum, mas por

bani-las da sociedade.

Importante ressaltar o debate jurídico político americano, para

realçar o seu descolamento da realidade constitucional brasileira.

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Aqui não há qualquer dispositivo que direta ou indiretamente nos

permita reivindicar um direito constitucional para portar armas de

fogo.

Direito à segurança, à vida e à propriedade

O que se poderia argumentar é que o interesse de andar armado

encontra-se situado dentro do direito geral da liberdade e da

propriedade. Ou seja, as pessoas teriam o direito de se defender do

modo que entendessem mais adequado e se tal entendimento

levasse a aquisição de uma arma de fogo, esta poderia ser adquirida,

sendo então protegida pelo direito da propriedade.

Invocar o interesse de andar armado a partir do direito à vida e à

segurança, como visto pela farta apresentação de dados empíricos, é

um contra-senso. Embora intuitivamente possamos achar que a

arma amplia a segurança e protege a vida, os fatos demonstram o

contrário. As armas apenas potencializam desfechos fatais a

conflitos necessariamente existentes dentro de qualquer

comunidade. As armas de fogo não apenas reduzem a segurança

pública, como ampliam a possibilidade de que seu portador - ou

daqueles que com ele convivam - sejam vítimas do potencial de

violência fatal que lhes é inerente.

O que é preciso verificar é se este interesse de andar armado deve

preponderar sobre o direito à segurança pública e à própria vida,

reconhecidos pela Constituição Federal.

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Antes, porém, de analisar o conteúdo destes direitos e suas

repercussões sobre a análise da constitucionalidade da Lei Federal

10.826/ 2003, fundamental que se compreenda a natureza própria

dos direitos fundamentais.

Jeremy Benthan afirmava que ter um direito é ser beneficiário de

deveres de outras pessoas ou do Estado.6 Assim, por exemplo, se

eu tenho o direito de andar pelas ruas, conclui-se que as demais

pessoas têm, por alguma razão, o dever de respeitar esse meu

direito, não podendo restringir a minha liberdade.

As pessoas que têm um direito, portanto, deveriam encontrar-se

numa posição mais confortável em relação àqueles que têm

obrigações. Como num jogo de baralho, onde há determinadas

cartas que têm mais valor que as cartas dos adversários, a presença

de direitos é um trunfo.7 Assim, quando numa discussão

reivindicamos um interesse ou um valor que nos diz respeito, como

a integridade física, que é protegida por um direito, esta

reivindicação deve prevalecer sobre outros valores ou interesses que

não são protegidos por direitos. Não se busca aqui argumentar, no

entanto, que os direitos tenham uma pretensão absoluta, que devam

prevalecer sempre sobre todos os outros interesses não protegidos

por direito, mas esta é uma presunção.

Neste sentido deve-se destacar que a relação entre direitos e

obrigações é mediada e não automática. Daí a adequação da

proposição de Raz de que ter um direito significa ter uma boa 6 Esta é a formulação básica de David Lyons, a partir da obra de J. Bentham, Rights, Claimants and Beneficiaries, American Philosophical Quartely, V 6, no. 3, 1969, 173. 7 Ronald Dworkin, Rights as Trumps, in Jeremy Waldron, Theory of Rights, Oxford University Press, Oxford, 1984, 153.

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justificativa, uma razão suficiente, para que outras pessoas

estejam obrigadas, e, portanto, tenham deveres em relação aquela

pessoa que tem um direito.8

Ora, ao assegurar a Constituição o direito à vida no caput do artigo

5o, ao mesmo tempo está-se criando um direito universal a todos os

brasileiros e estrangeiros residentes no país e uma obrigação

correlata a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil -

e ao próprio Estado – de não matar.

Estabelece-se, assim, uma reciprocidade simétrica entre as pessoas,

em que ao mesmo tempo cada um é sujeito do direito de não ser

morto e sujeito à obrigação de não matar. Ou seja, não estão

autorizados a colocar a minha vida em risco, assim como não estou

autorizado a colocar em risco a vida das demais pessoas.

Ao Estado também cabe um conjunto de obrigações, ainda que não

simétricas, pela própria natureza desta instituição. Ao Estado não só

está vedado matar, como deve este ainda contribuir para que a vida

das pessoas não seja colocada em risco pelos demais, bem como

promover a sanção daqueles que violem direitos alheios.

Em grande medida a segunda parte da obrigação do Estado,

correlata ao direito à vida, confunde-se com a obrigação do Estado

decorrente do direito à segurança. Em grande parte, porque o direito

à segurança não se resume à proteção do direito à vida, mas

também de outros direitos e bens tutelados pelo sistema jurídico. 8 De acordo com Raz “X tem um direito se e somente se X pode Ter um direito, e, outras coisas sendo iguais, algum aspecto do bem estar de X (seu interesse) é uma razão suficiente para manter uma outra pessoa a ela obragada”; Joseph Raz, The morality of freedom, Claredon Press, Oxford, 1986, 166.

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Temos, assim, direitos distintos que geram obrigações distintas,

para as pessoas e para o Estado. Enquanto o direito a vida impõe

uma obrigação primária de não matar, tanto ao conjunto da

sociedade quanto ao Estado, este mesmo direito impõe obrigações

secundárias ao Estado que se confundem com as obrigações

derivadas do direito à segurança.

A obrigação de não matar é peremptória. Sua prática é sancionada

penalmente. As condutas que põem em risco o direito à vida das

pessoas devem ser minimizadas.

A obrigação de garantir a segurança, por sua vez é mais difusa. O

conteúdo deste direito não é auto-evidente. Assegurar que as

pessoas não sejam vítimas de crimes talvez seja o seu fim último,

porém dificilmente atingível, enquanto a sociedade for formada por

pessoas e não apenas por anjos. Aliás, se nossa sociedade fosse

composta por anjos, como diria Madison, no Federalista 49,

desnecessárias seriam as instituições e o direito.

O fato, porém, de não haver um conteúdo objetivo e determinável,

ou seja, de estarmos à frente de uma norma de conteúdo aberto, não

significa que seja este direito destituído de sentido. Parece claro que

face ao direito à segurança, tal como esculpido no caput dos artigos

5o. e 144 da Constituição Federal, ao Estado e aos membros da

sociedade ficam impostas certas responsabilidades, senão vejamos:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da

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ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (...).

Ora, o que se espera do Estado é que opere legitimamente, no

máximo de sua capacidade, no sentido de minimizar a violação ao

direito das pessoas, agindo tanto no âmbito preventivo quanto

punitivo. O termo minimizar foi aqui empregado não para aliviar as

obrigações do Estado, mas para alertar para o fato de que a

segurança total é inatingível. Porém há um mandato de otimização

impulsionando o Estado a fazer todo o possível, dentro dos limites

que lhe foram estabelecidos pelo direito, para assegurar a

integridade das pessoas e do patrimônio.

Por outro lado, também as pessoas têm responsabilidades (deveres)

para com o direito à segurança, novamente numa relação de

reciprocidade simétrica. Em primeiro lugar está a obrigação de

abstenção de violar, em segundo lugar surge a obrigação de não

colocar em risco a integridade dos direitos da demais pessoas por

intermédio de ações ou omissões.

Neste contexto o presente diploma restringe o porte de armas para a

população comum e determina outras providências voltadas a

assegurar um maior controle na circulação de armas e munições e

garantir o rastreamento de projéteis. Em última instância, se

autorizado pela própria população, por intermédio de referendo

popular, poderá reduzir ao máximo o comércio de armas e

munições para a população comum.

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Trata-se, portanto, de uma política pública voltada a ampliar a

fruição, por parte dos indivíduos, dos direitos à vida, à segurança e

conseqüentemente à propriedade.

Da razoabilidade e constitucionalidade da lei

Questiona-se nesta ação se esta política, veiculada por intermédio

de uma lei e que deve ser colocada em prática por um conjunto de

agências do Estado e pela própria comunidade, é legítima; se é

aceitável constitucionalmente.

Somos obrigados, assim, a realizar um processo de ponderação ou

balanceamento para verificar se o interesse de portar e

eventualmente possuir uma arma de fogo deve se sobrepor aos

direitos de cada pessoa à vida e da comunidade como um todo à

segurança pública.

A primeira etapa deste teste de constitucionalidade passa pela

verificação da adequação. Pretende-se, então, analisar se a medida

proposta atende aos fins almejados, ou seja, se o Estatuto do

Desarmamento tem potencial, uma vez implantado, de assegurar em

maior medida o direito à vida e à segurança.

Como visto na exposição dos fatos, no último ano mais de 46 mil

pessoas foram vítimas de homicídios em nosso país. São cerca de 4

mil mortes ao mês e 130 ao dia. Isto coloca o Brasil na vexatória

posição de uma das nações mais violentas do mundo, com 27

homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes.

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A violência, embora a todos afete, é distribuída de maneira

absolutamente desigual. Os mortos são prevalentemente jovens

pobres, negros, moradores das periferias e favelas das grandes

cidades. A incidência de homicídios entre jovens de 15 a 24 anos é

quase duas vezes maior do que em relação aos adultos. Em algumas

regiões de São Paulo ou Rio de Janeiro a taxa de homicídios que

atinge os jovens chega a ser de 438 vítimas em cada grupo de 100

mil habitantes, enquanto em regiões mais afluentes a taxa não chega

a dois dígitos.

Se as causas para esta violência são múltiplas, o instrumento pelo

qual são perpetrados não. Mais de 60% dos homicídios no Brasil é

o mesmo: arma de fogo. Conforme pesquisa das Nações Unidas,

repita-se, o Brasil é o país com maior índice de mortes por armas de

fogo em todo o mundo!

Diferentemente do que supõe o senso comum estas mortes não

decorrem todas, ou sequer a sua grande maioria, de um ambiente de

criminalidade. Embora não haja dados para todo o Brasil, é

significativa a descoberta de Guaracy Minguardi diretor científico

do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção

do Delito e Tratamento do Delinqüente, de que quase 50% dos

homicídios em São Paulo ocorrem entre pessoas que se conhecem e

em que o autor dos disparos não tem passado criminal. São

conflitos de bar, de vizinhança, cobranças de dívidas que em face

da presença abundante de arma de fogo, culminam com a morte de

um ou mais dos envolvidos.

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Esta percepção da realidade dos homicídios, no entanto, não se

funda apenas em dados estatísticos. Dois dos mais experientes

policiais do país, Cel. Rui César e Dr. José Oswaldo Pereira Vieira,

que respectivamente comandaram a Polícia Militar e a Polícia Civil

do Estado de São Paulo, que constituem as maiores corporações

policiais do país, confirmam, por experiência de décadas na luta

contra o crime, que a abundância de armas de fogo é um elemento

determinante no enorme número de mortes por motivos fúteis em

nossa sociedade. Razão pela qual são signatários do manifesto a

favor do desarmamento acostado a esta manifestação.

Isto demonstra que a proposição acolhida pelo Estatuto do

Desarmamento de restringir o porte de arma à pessoa comum é um

meio absolutamente idôneo para reduzir as mortes decorrentes de

conflitos intersubjetivos.

Por outro lado a restrição ao porte de arma de fogo por pessoas

comuns também reduz o risco de morte do próprio portador e

daqueles que estão ao seu lado. Como demonstram dados da própria

Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, o portador de

arma de fogo tem uma chance 57% maior de ser vítima de

latrocínio do que aquele que não porta uma arma. Isto demonstra

que é falaciosa a crença de que a pessoa armada está em melhores

condições de proteger a sua própria pessoa. Cai por terra, assim, o

argumento de que se estaria retirando da pessoa o meio mais

eficiente para sua defesa. Com proibição do porte da arma, o

Estado, além de contribuir para a redução da violência

intersubjetiva, também estará limitando o risco daqueles que à guisa

de reagir ao crime, são dele vítimas em maior medida, exatamente

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por estarem armados. Neste sentido também é voz corrente entre

policiais – inclusive por intermédio de campanhas publicitárias -

que as pessoas não devem tentar reagir, pois aumentam

enormemente o risco de um desfecho fatal para elas mesmas.

Ao lado de se realçar o risco de estar armado, também é de se

destacar o risco consistente em guarda arma em casa, extensivo a

toda a família. Conforme apresentado nos fatos, pesquisas realizada

pelo Dr. Arthur Kellerman feita nos Estados Unidos demonstra que

“os lares com armas de fogo aumentam o risco de homicídio inter-

familiar em 2,7 vezes, os acidentes em 4 vezes e os suicídios em 11

vezes, se comparados com lares sem armas de fogo” (New England

Journal of Medicine, 93).

Logo, o Estatuto do Desarmamento, sob o aspecto de reduzir os

riscos de morte para os portadores e familiares de possuidores de

armas de fogo, também parece ser uma política mais do que

adequada e idônea.

Até o presente momento só falamos dos benefícios que a

implantação do presente Estatuto trará em razão da redução da

circulação de armas de fogo nas mãos de pessoas comuns. Como

visto, esses benefícios, por si só, já seriam suficientes para atender

os padrões de adequação exigidos por nosso teste de

constitucionalidade. Ter o potencial de reduzir milhares de

homicídios/ano, derivados de conflitos banais entre pessoas

comuns, sem qualquer passado criminal; assim como de reduzir o

número de vítimas de latrocínio que tentaram reagir por

encontrarem-se armadas; e também de reduzir o número de

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casualidades decorrentes de conflitos e acidentes domésticos, que

vitimam especialmente mulheres e criança, torna o Estatuto

adequado completamente às suas finalidades e à Constituição.

As armas nas mãos dos criminosos, de acordo com os dados acima

descritos, são responsáveis pelos restantes 50% dos homicídios

ocorridos numa cidade como São Paulo. A lei, porventura, também

oferece uma resposta adequada e idônea a este problema?

Certamente. Em primeiro lugar, a lei cria um sistema mais rigoroso

e eficiente para que a polícia possa reprimir o porte, o comércio e

tráfico ilegal de armas. Por outro lado, foram criadas demandas

técnicas para identificação de munição e armamento que facilitará a

investigação e repressão de crimes praticados com arma de fogo.

Assim, também neste sentido a lei parece idônea para atingir os

objetivos colimados.

Em segundo lugar, o Estatuto terá um impacto direto no mercado

ilegal de armas. Diferentemente do mercado de drogas, as armas

sempre têm uma origem legal. A questão é como uma arma

fabricada legalmente chega às mãos de um criminoso. Três são as

hipóteses aventadas por policiais e pesquisadores: contrabando,

falha na fiscalização, obtidas a partir de furtos e roubos de armas de

propriedade de cidadãos que as obtiveram legalmente.

Dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo,

por intermédio do documento Armas de Fogo: impacto do Estatuto,

produzido pela Coordenadoria de Análise e Planejamento daquela

entidade, em 2003, demonstram que das armas ilegais apreendidas

em 6 diferentes distritos da capital, 54,6% foram produzidas pela

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Tauros e 16% pela Rossi, ou seja, são armas nacionais, de origem

legal, que, no entanto, abastecem o mercado ilegal, indo parar nas

mãos de criminosos.

Assim, ao criar mecanismos mais eficientes de fiscalização e

reduzir a circulação de armas legais, certamente o Estatuto do

Desarmamento também estará contribuindo para dificultar o acesso

das armas de fogo a criminosos.

Logo não há como escapar a conclusão de que a lei é plenamente

adequada, passando, assim, na primeira etapa de seu teste de

constitucionalidade.

A segunda etapa do processo de ponderação ou balanceamento

impõe ao intérprete verificar se a medida proposta é a menos

danosa para atingir o objetivo colimado. Ou seja, se houver outras

medidas, igualmente idôneas e exeqüíveis, mas que sejam menos

restritivas de direitos e interesses da comunidade, o que se propõe é

inconstitucional.

Nenhuma política de segurança, por si só, terá a capacidade de

eliminar o risco de homicídio e promover a redução total da

criminalidade patrimonial. É de um enorme conjunto de ações, que

passam pela redução da desigualdade e dos enormes índices de

desemprego, pela reforma urbana, sentimento religioso, agregação

familiar, passando pela modernização e reforma do sistema de

justiça, que resultará um aumento geral dos níveis de segurança

pública.

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Desta forma, fica prejudicada a etapa do exame de necessidade ou

exigibilidade. Dificilmente se poderá encontrar uma outra política

concreta que possa ser colocada em competição com a proposta no

Estatuto, para se verificar o potencial ofensivo de cada uma aos

demais interesses da comunidade.

Sendo, assim, passamos diretamente para a etapa do processo de

ponderação, propriamente dito.

A medida ora proposta, portanto, é necessariamente uma ação entre

inúmeras outras. Como já foi amplamente demonstrado é uma

medida idônea. Sem dúvida nenhuma ela restringe os interesses

daqueles que entendem que andar armado pode aumentar a sua

segurança pessoal e, conseqüentemente, a segurança pública.

Como também amplamente demonstrado esse interesse não

constitui um direito fundamental propriamente dito, enquanto o

Estatuto do Desarmamento promove diretamente dois direitos

fundamentais: vida e segurança. Mais do que isto a restrição ao

interesse de andar armado, não gera a redução do risco de vida da

pessoa que escolhe este curso de ação. Novamente os dados e a

experiência policial demonstram que aquele que anda armado, além

de ampliar o risco geral de violência, coloca a sua própria vida

numa posição de maior vulnerabilidade.

Desta forma ao restringir o acesso à arma de fogo o Estatuto

não estaria limitando o direito à vida e à segurança, como

pretendem os defensores de armas, mas aumentando a

segurança geral e diminuindo o risco de morte. Ao fazê-lo,

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estariam restringindo minimamente o direito geral à liberdade para

promover que a pessoa possa continuar usufruindo de seu direito de

fazer escolhas, portanto, de seu direito geral de liberdade. Trata-se

de uma estratégia em que uma limitação mínima ao invés de

restringir aumenta a possibilidade de fruição do próprio direito que

se argumenta violado, qual seja, a liberdade.

Tome-se como exemplo o Estado restringe o acesso a determinadas

drogas ilícitas, apesar do interesse - ainda que irracional - de muitas

pessoas em consumi-las. O Estado só pode fazer isto porque estas

drogas impõem riscos àqueles que as consomem, e a terceiros. Com

a mesma legitimidade, em função do seu potencial protetivo do

direito à vida e promocional do direito à segurança, o Estatuto do

Desarmamento está autorizado a restringir o interesse em andar

armado.

Direito à livre iniciativa e comércio

Mesmo após comprovada a constitucionalidade da Lei 10.826/2003

frente aos direitos fundamentais, de sua adequação e razoabilidade,

e sobretudo de sua sintonia com o direito à vida e à segurança, vale

ainda ressaltar que a lei ora questionada não fere a livre iniciativa e

comércio. Dispõe a Constituição:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional;

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II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento diferenciado para empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único: É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Em julgamento da ADIn 2.396/MS, referente também à produção e

consumo, a ministra relatora assim apontou sobre a alegação de

violação ao preceito de livre iniciativa e comércio:

“(...) Por igual, não vislumbro ofensa ao art. 170, caput, e inciso II e IV da Carta Política posto que os princípios ali contidos não são aplicáveis isoladamente, mas se balançam e se conjugam para assegurar a ordem econômica, que assegure a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

Resta evidente que, ao ser sopesado e interpretado com os demais

dispositivos da Constituição em questão, como a vida e a segurança,

a alegação de violação à livre iniciativa não merece acolhimento.

Na verdade, nossa Constituição impõe que a atividade econômica, a

livre iniciativa e o comércio só serão constitucionais se garantirem a

existência digna de todos, o que, conforme amplamente

demonstrado pelos fatos, não faz a indústria armamentista.

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A própria Constituição prevê a possibilidade de restringir o

exercício de atividade econômica, conforme expresso no parágrafo

único do artigo 170.

Ressalte-se ainda que não cabe nesta ADIn, em sede de controle

abstrato de constitucionalidade, analisar suposta violação aos

direitos subjetivos dos produtores de armas, entendimento este já

sedimentado neste Colendo Supremo Tribunal Federal.

4.2 DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 10.826/2003: INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DE INICIATIVA

A ADIn 3112 sugere que a lei em pauta sofre de

inconstitucionalidade formal, por violar as prerrogativas de

iniciativa legislativa privativa do Poder Executivo (art. 61, §1º, II, e,

CF/88) e por usurpar competência dos estados federados (art. 24, V

e §1º da CF/88). Ambos argumentos carecem de fundamento e

devem ser desconsiderados por este Colendo Supremo Tribunal

Federal, conforme será exaustivamente argumentado e comprovado

abaixo.

Alega-se na ADIn 3112 que a Lei 10.826/03 deve ser declarada

inconstitucional em sua totalidade, em razão de violação do art. 61,

§1º, II, e da Constituição Federal, desenvolvendo o argumento com

base em voto de Luiz Antonio Fleury Filho, apresentado no Projeto

de Lei 1.555/2003 (páginas 4/7 da inicial), também no voto de

Vicente Arruda, em projeto de Lei 292/99 e em trecho de voto do

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Ministro Celso de Mello, na ADIn 1.391/SP, anterior à Emenda

32/2001.

Tais trechos de votos afirmam que lei que alterar atribuições e

estrutura de órgãos da administração pública deve ser de iniciativa

do Presidente da República. Em nada este argumento estaria errado,

não fosse o detalhe da aprovação da Emenda Constitucional 32, de

2001! A Emenda 32 retirou as expressões atribuições e estruturação

da Constituição, antigamente presentes no texto.

De fato, Excelências, a Emenda Constitucional 32 alterou, dentre

outros, o disposto na alínea e, do inciso II, § 1º do artigo 61 da

Constituição Federal. Segue a nova redação, pós emenda:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. § 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: II – disponham sobre: e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;

Assim, não há que se falar em vício de iniciativa da Lei 10.826/03,

por dispor sobre as atribuições e estruturação do Sistema Nacional

de Armas – Sinarm, uma vez que não há mais tal dispositivo em

nossa Constituição Federal.

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Neste sentido tem se posicionado este Supremo Tribunal Federal:

“EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 7.247, de 15.07.2002, do Estado do Espírito Santo. Pedido de liminar. - Em exame compatível com a análise de pedido de liminar, é de considerar-se que, se a Lei estadual ora impugnada não cria, por si mesma, cargo, não há que se pretender ofenda ela as alíneas "a" e "c" do inciso II do § 1º do artigo 61 da Constituição, o mesmo ocorrendo com relação à alínea "e" do mesmo dispositivo constitucional na redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 32/2001, que suprimiu da iniciativa exclusiva do Presidente da República a "estruturação" e as "atribuições" dos Ministérios e órgãos da administração pública. - Igualmente não se apresentam ocorrentes, de plano, as alegadas ofensas aos artigos 63, I, 84, III, 169, § 1º (antes da Emenda Constitucional nº 19/98 era o parágrafo único), I e II, e 2º, todos da Constituição Federal. - Ademais, não há, no caso, "periculum in mora" ou conveniência administrativa para a concessão da liminar requerida. Liminar indeferida” (STF, ADInMC 2734/ES, rel. Ministro Moreira Alvez, j. 26.2.2003 - grifamos)

Assim, esclarecido o lapso da ADIn 3112, no que se refere à

inconstitucionalidade formal total da Lei 10.826/03, deve-se

desconsiderar por completo o item 7 da referida inicial, por estar à

par das alterações trazidas pela Emenda Constitucional 32, de 2001.

Somente por precaução, cumpre assegurar que a Lei 10.826/03 não

cria ou extingue órgão da administração pública. O Sinarm, no

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caso, foi criado pela Lei 9.437/97, e o Estatuto do Desarmamento

traz, tão somente, novas atribuições a tal órgão, sem comprometer,

de qualquer forma, a integridade de nossa Constituição Federal.

4.3 DA INCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PELA UNIÃO

Da mesma forma, é descabida e não merece acolhimento a

argumentação de que a Lei 10.826/03 viola o disposto no artigo 24,

V, §1º e, por conseqüência, ao devido processo legal.

A Lei 10.826/03 dispõe sobre registro, posse e comercialização de

armas de fogo e munição no âmbito do Sistema Nacional de Armas

– Sinarm, define crimes e dá outras providências. Sustenta-se, na

ADIn 3112, que os seguintes dispositivos da lei são

inconstitucionais por não consistirem em regra geral, caracterizando

usurpação da competência por parte da União.

São questionados, neste sentido, os seguintes dispositivos da Lei

10.826/2003:

� inciso X do art. 2º;

� art. 23 caput e §§1º e 2º;

� expressões dos §§1ºe 3º do art. 5º;

� expressões do art. 10 caput;

� incisos I, II e III do art. 11; e

� art. 29.

Em nenhum momento a Lei 10.826/2003 usurpa competência que

seria dos estados federados.

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A Constituição dispõe no que se refere à competência da União

sobre a matéria:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) V – produção e consumo. (...) §1º. No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

A lei questionada nada mais faz do que estabelecer as normas gerais

sobre a produção e consumo destes produtos, tema e providências

que devem possuir uniformidade entre os estados federados

brasileiros.

De forma diversa, instaurar-se-ia um verdadeiro caos, onde cada

Estado agiria de uma forma, instituindo uma forma de

cadastramento, um tipo de registro, uma forma de controle...,

tornando o objetivo maior da lei – o controle de armas para

diminuição dos índices de violência e combate ao crime organizado

– inalcançável.

Em que consistem as “normas gerais”? Sabe-se que a expressão

migrou do Direito Financeiro ao Direito Administrativo, em tema

de licitações e contratos administrativos, desde o Decreto-Lei nº

2.300/86, hoje revogado. Nesta seara preconiza ALICE

GONZALES BORGES dever ser conotada à locução "normas

gerais" idéias que "só têm pertinência com a especial sistemática de

um Estado Federativo, onde as ordens federadas guardam uma

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relativa autonomia normativa"9, como é o caso da Federação

Brasileira. Daí a razão de surgirem:

“normas gerais quando, por alguma razão, convém ao interesse público que certas matérias sejam tratadas por igual, entre todas as ordens da Federação, para que sejam devidamente instrumentalizados e viabilizados os princípios constitucionais com que guardam pertinência. Tem-se então, leis nacionais, forçosamente mais genéricas, que ditam certas diretrizes, princípios gerais, comandos normativos dirigidos ao legislador das ordens federadas locais. Este, por sua vez, sem quebra de sua autonomia, irá desenvolvê-los, aplicá-los às suas realidades locais peculiares, através da expedição de suas próprias normas"10 (grifamos)

Da mesma forma CLÁUDIO PACHECO, citado por FERNANDA

DIAS MENEZES DE ALMEIDA11 assinalara constituírem as

“normas gerais” os “lineamentos fundamentais da matéria”, a

conferirem estrutura, plano e orientação a determinado tema retido

como fundamental ao interesse público e por isto espraiando-se em

âmbito da Federação considerada em sua globalidade, porém não

descendo a pormenores, razão pela qual deixam necessariamente

tais normas espaço à atuação de outras normas, estaduais ou

municipais.

9BORGES, Alice Gonzales, Normas Gerais nas Licitações e Contratos Administrativos, RDP, vol. 96, p.81. 10Idem, p. 84. 11ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de, Competências na Constituição de 1988, São Paulo, Atlas, 1991, p. 159. A aludida obra de PACHECO é Tratado das Constituições Brasileiras, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1958, Tomo II, p. 255.

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Neste sentido determinou este Colendo Supremo Tribunal Federal,

ao julgar a inconstitucionalidade de lei do Estado do Rio de Janeiro

que tratava da proibição, por lei daquele estado, da comercialização

de armas de fogo – ADIn 2.035/8. Segue trecho do voto do Ministro

relator, Octavio Gallotti:

“Recordo, afinal, que, justamente com fundamento, entre outros, no mesmo art. 24, V, da Constituição, e seus parágrafos, este Plenário suspendeu a eficácia das Leis fluminense n. 1.939-91 (art. 2º, II, III e IV), que estabelecia a obrigatoriedade da presença de certas informações nas embalagens de produtos alimentícios (ADIMC 1.750, RTJ 142/83) e n. 1.904-91, que obrigava as organizações de supermercados e congêneres a manterem pelo menos um funcionário, para cada máquina registradora, cuja atribuição fosse o condicionamento das compras ali efetuadas (ADIMC 669, RTJ 141/80)”.

Neste mesmo voto, pontua o ilustre Ministro relator, ao deferir a

medida cautelar para suspender os efeitos da lei estadual:

“Não é fácil, como se vê, tentar conciliar, com o exercício da competência insculpida no art. 21, VI, da Constituição, a radical proibição, pelo Estado, em seu território, da comercialização de armas de fogo. Normas reveladoras do dirigismo estatal vem, de há muito, assomando o campo do direito privado (lembre-se atualmente o Código de Defesa do Consumidor) e nele, com destaque, o do direito comercial. No tradicional espaço deste, foi expressamente mantida, pelo art. 300 da Lei 6404/76, a norma do velho Decreto-lei

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n. 2627/40 (art. 59, parágrafo único), que faz competir ‘sempre’ ao Governo Federal, a autorização que dependa a sociedade anônima para entrar em funcionamento.

Outro preceito constitucional que, talvez mais propriamente, ainda, se há, no caso, de levar em consideração, é o inscrito no art. 24, item V, e parágrafos, da Constituição, onde se estabelece a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar, concorrentemente, sobre produção e consumo.

Nessa ordem de idéias, a Lei Federal n. 9.437/97 veio a instituir o Sistema Nacional de Armas, estabelecer condições para o registro e o porte de arma de fogo, definir crimes e dar outras providências correlatas. (...) Ante o exposto, defiro o pedido de medida cautelar para suspender, até o julgamento definitivo desta ação direta, os efeitos da Lei n. 3.219/99, do Estado do Rio de Janeiro”.

Ora, se a lei em questionamento substitui a lei 9.437/97, afinando

seus termos e tornando-a mais efetiva, trata-se de lei geral, a ser

veiculada pela União, nos exatos termos e entendimento deste

Colendo Supremo Tribunal Federal.

Assim, resta claro que o Estatuto do Desarmamento só seria

constitucional a partir de uma lei federal, dada a natureza da matéria

e nos termos da Constituição.

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De fato, Exas., a Lei 10.826/2003 não trata somente de questões

relativas à simples comércio, de laticínios, armários, etc., sem

maiores implicações, mas, sobretudo, de segurança, portanto, de

elevado interesse público. Daí a adequação de ser regida por norma

federal, em sintonia, inclusive, com as demais disposições

constitucionais.

Os dispositivos questionados nesta ADIn não usurpam competência

suplementar dos Estados pois não tratam de questões regionais e

sequer demandam atribuições gravosas aos estados federados.

Trata-se de lei mais afinada, desenvolvida e completa que a anterior

– Lei 9.437/97, notadamente omissa em vários pontos, mas, ainda

assim, norma geral.

Ademais, os artigos que se pretende declarar inconstitucionais nesta

ADIn tratam, em parte, da fiscalização do consumo e produção pela

Policia Federal. Não há nestas medidas qualquer usurpação de

competência legislativa ou federativa, uma vez cabe à Polícia

Federal apurar infrações de repercussão interestatal e internacional,

nos termos da Constituição:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

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§1º. A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; (...) §4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, salvo as militares.

Neste sentido, em se tratando de competência da União, tanto no

que se refere à regulação de produção e consumo (art. 24, V) como

também atuar na apuração de infrações que tenham repercussão

internacional e interestatal, e que exijam providências uniformes, a

Lei 10.826/2003, especificamente nos dispositivos questionados,

atende também aos preceitos de segurança pública, enunciados no

artigo 144, §1º, I, da Constituição Federal, sem qualquer conflito.

Conforme exaustivamente comprovado nos fatos e dados

apresentados neste amicus, a questão das armas e do desarmamento

têm repercussões em todos os estados federados e relações com os

países fronteiriços ao Brasil. Somente a Polícia Federal tem a

competência constitucional para lidar com infrações assim

caracterizadas e somente a União pode legislar o que deve ou não a

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Polícia Federal fazer e apurar (art. 22, XXII, CF/88). Neste sentido,

constitucional em todos os termos a Lei 10.826/2003.

5. PEDIDO

Diante de todo o exposto requer-se:

a) sejam aceitos a presente manifestação e os documentos, na

qualidade de amicus curiae na ADIn 3112,com fundamento

no artigo 7º, § 2º, da Lei 9.868/99;

b) seja o pedido de medida cautelar da ADIn 3112 indeferido;

c) seja, sem prejuízo do pedido anterior, julgada improcedente a

ADIn 3112;

d) seja concedido prazo para sustentação oral aos representantes

das entidades proponentes deste amicus curiae, sem

caracterização como intervenção de terceiros.

São Paulo, 09 de fevereiro de 2004.

José Carlos Dias OAB/SP 16.009

Miguel Reale Junior OAB/SP 21.135

Eloísa Machado de Almeida OAB/SP 201.790