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Imagens de paisagem: fronteiras produtivas do sudoeste baiano Ines Linke Professora do Departamento de Letras, Artes e Cultura da Universidade Federal de São João del-Rei – DELAC/UFSJ, Doutora em Artes pela UFMG. [email protected] RESUMO Esse trabalho lida com a paisagem do sudoeste baiano como estrutura imagética, tratada primeiramente como espaço metafórico e simbólico, em seguida como espaço partilhado e finalmente como espaço metonímico. Ele surge em resposta ao projeto Expedição na Bahia do grupo mineiro Thislandyourland que realizou duas viagens pela mesma região com o olhar voltado, sobretudo, para os modos de construção do território e da paisagem. Nesse projeto, o grupo escolheu uma área para colecionar informações e estudar os locais em suas distintas camadas, criando, desse modo, uma interação entre narrativas geopolíticas, especulações econômicas e discursos estéticos a maneira das expedições dos viajantes naturalista do século XVIII e XIX. Nos diversos lugares visitados foi observada uma estreita relação entre os modos de vida e as escalas de produção. Questões concernentes a expansão das fronteiras produtivas e a construção de territórios são abordados por estarem vinculados aos debates fomentados pelo intenso movimento de apropriação de terras e seus recursos naturais por forças internacionais e nacionais. De igual modo, entende-se aqui que a paisagem é produto da ação dos homens em interação com seu entorno, logo, as ideias da geografia econômica são relacionadas à criação das fronteiras produtivas, contribuindo, desse modo, para a discussão das práticas artísticas na criação das imagens e da paisagem. PALAVRAS-CHAVE: Construção de territórios, escalas de produção, paisagem, narrativas geopolíticas, arte contemporânea. Imagens de paisagem: Fronteiras produtivas do sudoeste baiano Podemos pensar a paisagem como estrutura imagética, espaço partilhado ou espaço metonímico. Ao passear pelo Google Earth ou olhando as transformações do espaço geográfico das ultimas décadas, percebemos o crescimento de um extenso tecido 1 que se expande em detrimento do modo de vida rural. O campo, que não deixa de ser agrário, se torna subordinado à realidade urbana. Percebemos nessa dinâmica que em quase todas as regiões do país aeroportos, rodovias e empresas prestadoras de serviços proliferam no entorno de áreas industriais e empresariais, formando conexões e relações entre os nós dessas redes, geralmente atreladas a um modelo de modernização, que dinamiza o fluxo de pessoas, de capital e de empreendimentos. Conforme Milton Santos, a rede “é também 1 LEFEBVRE, 2008. p.13.

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Imagens de paisagem: fronteiras produtivas do sudoeste baiano

Ines Linke Professora do Departamento de Letras, Artes e Cultura da Universidade Federal de São João del-Rei – DELAC/UFSJ, Doutora em Artes pela UFMG. [email protected]

RESUMO

Esse trabalho lida com a paisagem do sudoeste baiano como estrutura imagética, tratada primeiramente como espaço metafórico e simbólico, em seguida como espaço partilhado e finalmente como espaço metonímico. Ele surge em resposta ao projeto Expedição na Bahia do grupo mineiro Thislandyourland que realizou duas viagens pela mesma região com o olhar voltado, sobretudo, para os modos de construção do território e da paisagem. Nesse projeto, o grupo escolheu uma área para colecionar informações e estudar os locais em suas distintas camadas, criando, desse modo, uma interação entre narrativas geopolíticas, especulações econômicas e discursos estéticos a maneira das expedições dos viajantes naturalista do século XVIII e XIX. Nos diversos lugares visitados foi observada uma estreita relação entre os modos de vida e as escalas de produção. Questões concernentes a expansão das fronteiras produtivas e a construção de territórios são abordados por estarem vinculados aos debates fomentados pelo intenso movimento de apropriação de terras e seus recursos naturais por forças internacionais e nacionais. De igual modo, entende-se aqui que a paisagem é produto da ação dos homens em interação com seu entorno, logo, as ideias da geografia econômica são relacionadas à criação das fronteiras produtivas, contribuindo, desse modo, para a discussão das práticas artísticas na criação das imagens e da paisagem.

PALAVRAS-CHAVE :

Construção de territórios, escalas de produção, paisagem, narrativas geopolíticas, arte contemporânea.

Imagens de paisagem: Fronteiras produtivas do sudoeste baiano

Podemos pensar a paisagem como estrutura imagética, espaço partilhado ou espaço metonímico. Ao passear pelo Google Earth ou olhando as transformações do espaço geográfico das ultimas décadas, percebemos o crescimento de um extenso tecido1 que se expande em detrimento do modo de vida rural. O campo, que não deixa de ser agrário, se torna subordinado à realidade urbana. Percebemos nessa dinâmica que em quase todas as regiões do país aeroportos, rodovias e empresas prestadoras de serviços proliferam no entorno de áreas industriais e empresariais, formando conexões e relações entre os nós dessas redes, geralmente atreladas a um modelo de modernização, que dinamiza o fluxo de pessoas, de capital e de empreendimentos. Conforme Milton Santos, a rede “é também

1LEFEBVRE, 2008. p.13.

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social e política, pelas pessoas, mensagens, valores que a frequentam. Sem isso, e a despeito da materialidade com que se impõe aos nossos sentidos, a rede é, na verdade, uma mera abstração”.2

Figura 1: Salvador, Bahia. Fonte: Google Earth, 2012.

As imagens das redes urbanas refletem os diferentes momentos históricos marcados pelo otimismo e discurso progressista, amplamente divulgado a partir dos séculos XVIII e XIX. A origem do conceito de paisagem está diretamente relacionada às expedições europeias, que objetivavam ampliar, nesse mesmo período, tanto o conhecimento como seus recursos materiais na América e em outros continentes. Para Milton Santos tudo que vemos constitui a paisagem, assim, ele a concebe como um conjunto de formas resultantes das condições econômicas, técnicas, políticas e culturais em constante movimento.

As expedições exploratórias nas regiões brasileiras motivaram uma ideia de desenvolvimento pautada no conhecimento cientifico da sociedade ocidental e no uso dos recursos naturais. Assim riquezas foram mapeadas e a relação homem, natureza e terra nas diversas regiões alteradas. Nas primeiras referências técnicas e relatos naturalistas sobre botânica, mineralogia e sociologia, tanto a fundamentação cientifica, quanto a imaginação artística se desenvolveram paralelamente. Coisas e fatos passam a ser vistos e retratadas a partir da multiplicidade de sensações e estímulos de todos os sentidos. As narrativas foram criadas a partir de fenômenos estéticos, numa fidedigna transmissão da flora e fauna, da fisionomia dos lugares, dos conjuntos vegetais e das populações entre outras coisas. Condições estas responsáveis pela transformação da natureza em cultura, bem como pela projeção da imagem do Brasil. Nesse ponto, Euler Sandeville Junior destaca a importância

2 SANTOS, 1996. p. 209.

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do pensamento de Santos, no qual a paisagem deve ser entendida também enquanto objeto e não apenas como coisa natural3.

Atente-se que esses viajantes ao tempo que expressam seus fascínios pela abundância natural, expõem, também, sua visão romântica da paisagem e introduzem a noção de valorização do território ocupado, usado e apropriado pelo homem. A antropização e exploração comercial das terras foram e ainda são assimiladas como essenciais ao desenvolvimento desejável. A natureza imponente e indomada do pensamento naturalista, perante a qual o homem é diminuto e impotente, e a oposição entre natureza e cultura, determinou uma “nova” percepção da paisagem.

A partir da imagem, da imponência da natureza e da nova percepção da paisagem, instaurou-se uma recém-criada representação da terra, agora transformada em mercadoria consumível e comercializável, que no caso brasileiro ainda hoje, vincula-se a ideia de país rico em recursos naturais, por essa razão, em função da exploração continua da natureza, capaz de manter-se em permanente crescimento, sob o qual novos empreendimentos capitalistas produzem uma nova representação visual, comumente acompanhada por outros modos de vida. Desse modo, identidades provisórias e contraditórias são produzidas e determinadas por fatores econômicos, políticos e sociais, promovidos ainda hoje, sob a égide do desenvolvimento econômico, mesmo que insustentável e de uma expansão territorial decorrente da explosão demográfica que tem modificando as formas de vida e a geografia da diversidade no sertão. Aqui, as mineradoras, as empresas e a agroindústria representam exemplos de latifúndios modernos que em função de seu manejo, atividade e interesses são responsáveis pela alteração na e das paisagens.

No projeto Expedição na Bahia foi adotado inicialmente a metodologia de identificação e traçado prévio sobre o mapa de uma área de 200 x 200 km, localizada entre a Chapada Diamantina e o Rio São Francisco. Entretanto, durante a primeira expedição, em março de 2012, as imagens disponíveis no Google Earth tiveram suas escalas alteradas. Como previsto, as atividades diárias e caminhos a percorrer, obedeceram a disponibilidade de acesso, a existência de estradas, mas em direções aleatórios, sugestões de moradores, identificação de situações interessantes e mesmo da relações de convívio. Assim, foi estabelecido um roteiro pautado em elementos subjetivos e de acessibilidade que possibilitou traçar diversas rotas e tempos de permanência, previamente agendada, que nos conduziu a cidades como Caetité, Brumado, Livramento de Nossa Senhora, Rio de Contas, Mato Grosso, Jussiape, Mucugê, Palmeiras, Ibotirama, Bom Jesus da Lapa, Guanambi e Janaúba. No decorrer da primeira viagem a produção de fotografias, mapas, desenhos, pinturas, textos descritivos e da aproximação com produtores, comerciantes e moradores possibilitou ganho substancial de informações por favorecer e estabelecer um olhar diferenciado sobre a paisagem.

Após essa expedição, o material coletado serviu de inspiração para o guia de viagem Thislandyourland. Esse guia despretensioso, não traz roteiros fixos, mas, pequenas narrativas visuais, produzidas em páginas soltas, em formato A5, geralmente dispostas sobre uma estrutura dobrável e transportável, ofertados ao público em exposição itinerante, em diferentes situações e ambientes, mercados, feiras, centros culturais, eventos coletivos nas cidades de 3 JUNIOR, 2005.

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Brumado, Caetité, Livramento e Rio de Contas, locais, percorridos e visitados no primeiro momento. Nesse cenário, o público construiu seus próprios roteiros e de forma individual utilizou critérios e experiências com o ambiente, para montar seu guia e imagem da paisagem alterada, paisagem lembrança, paisagem memoria.

Pode se inferir nesse contexto que o exercício proposto permitiu uma aproximação daquilo que Aziz Ab’Saber conceitua como paisagem, ou seja, duma “herança em todo o sentido da palavra: herança de processos fisiográficos e biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que historicamente os herdaram como território de atuação de suas comunidades”4. Por esta razão as imagens de paisagem tem uma dimensão simbólica, formadora de identidade e tradição. Podemos, portanto, pensar a paisagem como percepção ou representação duma cena subordinada ao desenvolvimento de dispositivos pictóricos socialmente condicionados. Nessa acepção o valor simbólico da paisagem metafórica é determinado em função de registros culturais e por meio de noções tradicionais da paisagem, que ao se tornar imagem influencia e mesmo determina a percepção da realidade do individuo5.

Diante dessa concepção e tomando o pensamento de Junior, a imagem na sua materialidade e representação é compreendida “mais do que espaço observado, trata-se de um espaço vivenciado”. Para ele a paisagem não é apenas constituída por volumes, mas, também, de cores, movimentos, atores, sons, etc6. Dessa maneira existe uma implicação reciproca entre a percepção do lugar e a experiência vivida, de maneira que, os sítios por possuírem uma forma geológica e uma vegetação intervêm na memoria histórica e cultural. A Cordilheira Brasileira, denominada Serra do Espinhaço, a exemplo é fruto de dobramentos geológicos ocorridos no final do período proterozóico, há mais de 2,5 bilhões de anos, sendo, portanto, uma das mais antigas formações geológicas que determina a linha do horizonte e a experiência real com a natureza.

A paisagem simbólica comumente reflete as praticas pessoais na vida individual ou coletiva, ao mesmo tempo ao “abrigo” e “lar”, ao território da segurança afetiva e da identidade. Os catingueiros e geraizeiros constituem exemplos marcantes dessa premissa, por esboçarem forte identificação com os elementos físicos e com a vegetação da região. Mercados e feiras colaboram para essa constatação, nelas, eles exibem uma produção diversificada de frutas nativas e cultivadas (umbu, seriguela, pitomba, jatobá, cagaita, jaca, acerola, manga, banana, pequi, etc.), verduras e hortaliças (mandioca, abóbora, batata, milho, feijão, abacaxi, arroz) e outros produtos (carne de gado, galinha, porco, derivados do leite farinha, goma, café, rapadura, cachaça).

A paisagem simbólica concebida nas narrativas literárias de Euclides da Cunha7 e Guimarães Rosa8 reinventam paisagens e imagens de remotos lugarejos do Sertão, da Caatinga, do Campo geral e do Campo rupestre. Já o turismo, à medida que desenvolvia suas estruturas, apresentava o ambiente rural como lugar subdesenvolvido, parado no tempo, numa contraposição temporal e organizacional que se contrapunha as da cidade. “O campo oferece tudo que a cidade subtrai – a calma, a abundancia, o frescor, os bens supremos e o

4 AB’SABER.1977. 5 CAUQUELIN, 2007. p.31. 6 JUNIOR, 2005. p.53. 7 Os Sertões (1902). 8 Manuelzão e Miguilim (1956) e Grande sertão veredas (1956).

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ócio para meditar longe dos falsos valores”9. Comercializa-se desse modo uma ideia de realidade autentica por meio da valorização de um estado natural de coisas, de artesanatos, culinária regional e típica, fotografias de paisagens bucólicas, rurais e pastoris.

Não obstante, apesar das imagens que representam a harmonia entre homem e natureza perdurarem, as ações antrópicas tem impactado o ambiente e modificam sua paisagem. As praticas humanas “requerem uma organização de territórios ou uma interação com o meio ambiente, levando a uma adaptação deste ou a sua transformação”10. O conjunto de modificações e mediações com as paisagens reflete os modos de vida e transforma a paisagem natural em paisagem cultural. A paisagem percebida e apreendida pela interação do ser humano com seu meio constrói um novo individuo e atualiza a visões de futuro, em que as imagens não dependem apenas da formação geológica, da herança do passado ou da experiência do presente, mas, de uma projeção de futuro direcionada ao lucro.

A região do sertão permite-nos exemplificar dois aspetos antagônicos da noção de paisagem. O ordenamento construído pelas praticas de cultivos e o belo natural. Nessa perspectiva, o processo de reestruturação do espaço em diferentes escalas fomentou experiências marcadas pela forte descontinuidade entre o agronegócio e as áreas rurais de subsistência. A transformação material e imaterial da paisagem e a ocupação da imagem nesses processos foram alteradas em diferentes níveis. Relata-se aqui três experiências da viagem em diferentes escalas de produção co-vivenciadas e partilhadas por coletivos sociais.

Num primeiro momento, após descer a montanha pelo Caminho dos Escravos, chegando à entrada de Livramento de Nossa Senhora pela estrada velha encontramos Dona Zezinha em frente a sua casa a observar a rua. Em nosso diálogo, ela narrou a historia da família, dos seus nove filhos, netos e bisnetos, da casa, das plantas e plantações, dos antigos e atuais cultivos. Contou da divisão de suas terras em pequenas parcelas e da distribuição entre seus herdeiros para a retirada do sustento familiar. Relatou as mudanças de usos, costumes e hábitos alterados desde a construção da nova estrada, da perspectiva de valorização do solo da região e da influencias da televisão no lugar. Ao final, nos presenteou com abacates, mangas carambolas e outras frutas colhidas em seu quintal e consumidas num piquenique debaixo dos coqueiros. Ali, ficou patente que toda relação de vida unidomiciliar, circula em torno da unidade familiar, nesse caso, encabeçada pela matriarca. Essa senhora constituiu um território, um “pequeno mundo”, um contexto próprio, sob o qual os diferentes membros apresentam distintas relações com o território. Compreende-se, portanto, que a imagem da agricultura familiar esta centrada no ser humano, num tipo de habitat que valoriza os indivíduos e onde a paisagem é produzida por pessoas e para pessoas, proveniente de um território de agenciamento familiar.

Conforme as considerações de Deleuze e Guattari o território é “o ambiente de um grupo (...) que não pode por si mesmo ser objetivamente localizado, mas que é constituído por padrões de interação por meio dos quais o grupo ou coletivo assegura certa estabilidade e localização”11. Trata-se de um território subjetivo a partir do qual a pessoa vê o mundo e age. No livro Micropolítica: Cartografias do Desejo Guattari afirma que,

9 CAUQUELIN, 2007. p.62. 10 BERDOULAY, 2012. p.101. 11 HAESBAERT, 2005.

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Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos12.

Num segundo momento, nessa mesma viagem encontramos um grupo de homens conversando sobre politica e economia na Praça da Rua Areião. Nesse contato, narraram as historias da cidade e os conflitos proporcionados pela modernização da estrada e pelo, que em função dos projeto de irrigação, facilitado pela construção de barragens e Brumado, tem possibilitado o agronegócio e transformando a cidade em um oásis. Lembraram, inclusive que os blocos e lotes irrigados, determinaram outro tipo de agenciamento, agora estimulado e financiado por um dos programas governamentais do Departamento Nacional de Obra Contra Secas – DNOCS, que incentivou a monocultura intensiva a centenas de agricultores. Segundo eles, o projeto concebeu área útil e transformou as plantações em negocio rentável, por estar vinculado às necessidades do mercado nacional de consumo das mangas da família Haden (Tommy, Palmer, Atkin)13, talvez, motivo para a distribuição de lotes para pequenos agricultores. Nesse interim e em consonância às iniciativas de governo o empresariado criou modelo distinto para a agricultura de exportação, dependente de uma infraestrutura peculiar de distribuidoras que contribuiu para à homogeneização dos sistema produtivo14, que compreende as necessidades econômicas do ganho das empresas, em detrimento da perda da diversidade e variedades tradicionais. As mangueiras geneticamente modificadas e valorizadas ameaçam o sistema ecológico, por provocar resultados danosos às antigas arvores da região. Nesse paradigma, os terrenos agora dispondo de tecnologia para abastecidos com agua inserem as propriedades numa logica de mercado até então inexistente.

12 GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.323 13 A manga Haden foi introduzida no Brasil em 1931 e se transformou em padrão de beleza. A Tommy, Atkin e a Palmer, que substituíram a Haden, foram introduzidas no Brasil na década de 60 e se tornaram as variedades mais cultivadas e dominantes para no mercado de exportação. 14 DAYRELL, 1998, p. 88-89.

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Figura 2: Livramento de Nossa Senhora, Bahia. Fonte: Google Earth, 2012.

Finalmente a caminho de Mucugê passamos pelo Campo Geral. Ali o agronegócio se estabeleceu em função de investimento em escala industrial direcionadas ao plantio de batata e soja. A empresa-rede, pela própria exigência do processo produtivo que, em geral requer extensas áreas para o cultivo, estendeu seu controle sobre o modo de produzir de seus produtores-fornecedores, formando extensa cadeia produtiva que envolve domínio tecnológico e ampla escala comercial sob a racionalidade da empresa. Assim, regiões com acentuada especialização são articuladas e novas relações de caráter mais impessoal, emergem reorientadas pela lógica empresarial (Freitas, 2003), implicando em determinadas situações, numa sobreposição dos interesses empresariais, sobre os interesses locais e mesmo do poder municipal no concernente a gestão do território.

Como observado, extensa faixa de solo do Campo geral foi apropriado pelo agronegócio. Segundo fala de alguns produtores, a proximidade ao rio Paraguaçu propiciou as condições necessárias de produção, pois apenas assim, próximos aos recursos hídricos seria possível abastecer os pivôs que pulverizam ate 100 hectares de diâmetro como no caso do Sr. Igarashi. Contudo, como consequência das novas atividades econômicas, cidades como Cascavel e Mucugê tiveram sua estrutura produtiva local desmontada e alterada para prestadora de serviço. Na Chapada esses cultivos, em sua maioria circulares, surge como Fata Morganas15; são paisagens de plástico, círculos suspensos do chão que flutuam em

15 A Fata Morgana é um efeito de ilusão óptica, nomeada em referência à fictícia feiticeira (Fada Morgana) meia-irmã do Rei Artur que, segundo a lenda, era uma fada que conseguia mudar de aparência. Trata-se de uma miragem que se deve a uma inversão térmica, na qual os objetos que se encontrem no horizonte adquirem uma aparência alargada e elevada.

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formas geométricas nas áreas descampadas e terras empoeiradas da caatinga. Visões escultóricas de sacos de 600kg de batas, sacos brancos de agrotóxicos amontoadas como nuvens densas e canos que cortam a paisagem em linhas retas. Dispositivos metálicos que giram em torno de um centro e abastecem a área com agua em intervalos regulares e programados. Com esses fatores regulados, os inputs e outputs do negocio parecem matematicamente controlados e os lucros milionários garantidos.

Figura 3: Campo geral, Bahia. Fonte: Google Earth, 2012.

Observe-se que os diferentes agenciamentos dos territórios criam organizações paisagísticas que refletem as diversas praticas de produção e processos econômicos nas diferentes escalas. Dona Zezinha opera numa escala local, regional. Os pequenos agricultores e empresários em nível estadual e/ou nacional e os empreendimentos industriais, como do senhor Igarashi, inserem a região no processo de globalização das atividades de produção, consumo e distribuição. As unidades industriais dessa última escala (re)definem o uso da terra e dos recursos naturais para um determinado fim e por muitos anos. Eles dependem e estimulam as relações proveniente de redes de transporte e comunicação que tanto condicionam, quanto beneficiam e propiciam todas as trocas da região, por essa razão (re)orientam as praticas políticas conforme suas necessidades, para tanto, rios são redirecionados, barragens criadas ou modificadas, cursos hídricos alterados e lotes irrigados. Esses processos (re)estruturam os territórios geográficos, econômicos e subjetivos.

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Como consequência as diversas atividades econômicas produzem diferenciações, desigualdades espaciais e identidades múltiplas. Os territórios ocupados e explorados pelo agronegócio inventam superfícies, regiões, redes e um sistema ideológico proveniente fluxo econômico, engrenando atividades financeiras em outros setores (seguradoras, transportadoras, hotéis, o setor imobiliário, publicidade, etc.). Seguindo esta condição, atrelada a disponibilidade de elementos naturais, minas, olearias, carvoeiras, hidroelétricas, agroindústrias, complexos industriais e grandes empreiteiras que exploram e reconfiguram o meio natura são criadas e estabelecidas, entretanto, as características da terra não são percebidas enquanto fenômenos, mas, como recursos. Dessa forma concebe-se outro tipo de turismo para contemplar as novas imagens de paisagem? Seremos conduzidos para as ilhas das plantações industriais?

Obviamente arquipélagos econômicos oriundos dos diversos sistemas e ideologias são formados e separados por fronteiras produtivas. Essas fronteiras são elementos de contato entre diferentes historicidades e temporalidades. Regiões onde se desenvolvem certos tipos de atividades econômicas são delimitadas conforme usos da terra e tipos de consumo, onde, em muitos casos a disponibilidade de recursos assegura sua existência por longos períodos. “Uma das características do espaço econômico, reside na descontinuidade, que tradicionalmente identifica diferenças e limites entre regiões, áreas e zonas”16. Seja como for, viajamos para a pequena Indonésia de Dona Zezinha ou passamos pela Las Vegas da família Igarashi que fica às margens da BR 240.

Os diferentes territórios coexistem formando um entre lugar, uma zona de contato ou fronteira. Para Haesbaert, pensar a fronteira é pensar o espaço, construído essencialmente pelas relações que nele acontecem17. Para o autor, a fronteira é produzida como parte das relações humanas, nas suas formas políticas, econômicas, sociais, culturais, religiosas, simbólicas etc., e é definidora de diferenças e processos de identificação e diferenciação em múltiplas escalas18. Os fenômenos culturais viajam e os elementos dispares se misturam e configuram novas particularidades em um espaço onde o hibridismo se faz presente. Nesse contexto, as ideias e os costumes saem de um lugar e entram em uma cultura mundializada.

O conceito de entre-lugar torna-se particularmente fecundo para reconfigurar os limites difusos entre centro e periferia, cópia e simulacro, autoria e processos de textualização, literatura e uma multiplicidade de vertentes culturais que circulam na contemporaneidade e ultrapassam fronteiras, fazendo do mundo uma formação de entre-lugares. Marcado por múltiplas acepções, o entre-lugar é valorizado pelos realinhamentos globais e pelas turbulências ideológicas iniciadas nos anos oitenta do último século, quando a desmistificação dos imperialismos revela-se urgente19.

Estar no entre-lugar é habitar um espaço intermediário em que as identidades, tempos, espaços e ritmos estão em choques. Trata-se duma região de polarização espacial entre diferentes campos de forças formados por territórios produtivos como as minas de uranio ou a mineração de ferro que revelam redes de fluxos, bem como hierarquia existente. As dinâmicas próprias do capitalismo não tendem a homogeneizar as relações sociais no

16 PIRES DO RIO, 2012, p.167. 17 HAESBAERT, 2005, p. 39. 18 HAESBAERT, 2005, p. 42. 19 HANCIAU, 2005, p. 125.

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espaço, mas, produzem uma região heterogênea. Estruturada para enriquecer o setor privado. A região é transformada a partir da demanda dos empresários e não por meio regulação do Estado ou da necessidade de execução de determinados serviços públicos.

Figura 4: Campo geral, detalhe 1, Bahia. Fonte: Thislandyourland, 2012.

O olhar deslocado mistura os registros heterógenos da paisagem. Então, Como lidar organizar a complexidade da experiência da paisagem? O sertão está camuflado ou ninguém sabe dele? Comemos hambúrgueres e pizzas, ouvimos músicas mecânica em volume extremamente elevado em nossos veículos a circular nas ruas empoeiradas. A imagem da paisagem por sua vez, foi associada a processos socioeconômicos, e o espaço natural transformado. O esforço destinado ao desenvolvimento da região estimula profundas alterações e um acentuado processo de urbanização que abriu variáveis econômicas. Cria-se um espaço geográfico modificado, que coloca a fragilidade do conceito de paisagem natural em evidencia. Mas a paisagem também surge na vista de uma caatinga impenetrável carregada de sentido atemporal e saudosista, onde,

(...) a terra (...) é a superfície na qual todo o processo da produção se inscreve, onde os objetos, os meios e as forças de trabalho se registram e os agentes e produtos se distribuem. Ela aparece aqui como quase-causa da produção e objeto do desejo (...)20.

20 DELEUZE e GUATTARI, 1972, p.144.

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Figura 5: Campo geral, detalhe 2, Bahia. Fonte: Thislandyourland, 2012.

Assim paisagens e moradores são caraterizadas pelas diferentes espacialidades. Os lugares são informados e transformados por modos de produção, que fomentam uma ordem, uma organização espacial com seus próprios significados, ações e parâmetros.

No passado, como na atualidade, o crescimento econômico segue acompanhado por processos de apropriação de paisagens naturais, seja pela mineração predatória, pelas monoculturas ou extração de plantas e mesmo pelo comercio de animais. Nos território, enquanto recurso, a terra representa produção e lucro. O agronegócio proporcionou e ampliou os fluxos de materiais e informações entre os lugares, ocasionando mudanças expressivas na organização dos espaços e cidades bem providos de serviços. A terra útil foi valorizada e comercializada segundo o tripé das condições favoráveis ao desenvolvimento: agua, energia, estradas e a proximidade as ilhas urbanas. A substituição da agricultura familiar para o agroindústria formou arquipélagos econômicos que exploram a mão de obra der baixo custo, formando novas descontinuidades e territorialidades.

Em decorrência desse estado de coisas, se inicia um processo de dominação sobre os outros lugares. As áreas naturais tornam-se territórios denominados “sem benefícios”. Ouvimos denominações como terra nua, seca, silvestre, pristina, solo desnudo, descampado, solos residuais, para se referir ao solo improdutivo do Campo geral, Caatinga, Cerrado, Floresta Ombrófila, Vereda, Campo Rupestre, Floresta Decídua, Floresta Semidecídua.

Se a paisagem é um enunciado cultural, desfruta-la depende do consenso social que se instaura a partir da imagem. A apresentação culturalmente instituída da paisagem natural do sudoeste baiano não atribui um status a vegetação nativa, mas, valoriza a imagem bucólica de uma paisagem criada, artificial.

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Todas as imagens de paisagem são imagens contra a natureza. A capacidade de imaginar e simboliza-la são necessários a percepção das estruturas espaciais e dos territórios. O roteiro de viagem montado pelo público propicia discussão e olhar estético sobre as áreas, como, também, os modos de ocupação e produção de territórios produtivos. Eles representam os processos econômicos e estilo de vida. Os territórios produtivos correspondem ao resultado da uma ação e à construção de um território vivenciado. A paisagem se torna imagem desses territórios, uma forma de representação simbólica do espaço. Paisagens naturais, paisagens modificadas e paisagens organizadas em torno dos modos de produção podem ser entendidos como objeto-ação que remetem a um processo dinâmico e significante.

Referências

AB’SABER, Aziz Nacib. Potencialidades paisagísticas brasileiras. Boletim Geomorfologia, São Paulo, Inst. de Geografia da USP, n. 55, 1977.

CASTRO, Iná Elias de Castro; COSTA GOMES, Paulo Cesar da; LOBATO CORRÊA Roberto (Orgs.). Olhares geográficos: Modos de ver e viver o espaço. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2012.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

DELEUZE e GUATTARI. O Anti Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1972.

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