“ex uno, plures” (“a partir de um,...
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Centro Universitaacuterio de Brasiacutelia ndash UniCEUB Faculdade de Ciecircncias Juriacutedicas e Ciecircncias Sociais ndash FAJS Graduaccedilatildeo em Direito
ALEXEI KALUPNIEK
ldquoEX UNO PLURESrdquo (ldquoA PARTIR DE UM VAacuteRIOSrdquo) diglossia e ressignificaccedilatildeo no direito romano
BRASIacuteLIA
2012
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ALEXEI KALUPNIEK
ldquoEX UNO PLURESrdquo (ldquoA PARTIR DE UM VAacuteRIOSrdquo) diglossia e ressignificaccedilatildeo no direito romano
Monografia a ser apresentada como requisito para conclusatildeo do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitaacuterio de Brasiacutelia
Orientador Prof Me Luiz Patury Accioly Neto
BRASIacuteLIA 2012
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AGRADECIMENTOS
Ao professor Luiz Patury pela orientaccedilatildeo in meliora per aspera (para melhor apesar das dificuldades)
Agrave professora Bistra Apostolova pela orientaccedilatildeo carinho e dedicaccedilatildeo ao projeto do PIBIC
Ao colega Matheus Muniz que discorreu sobre histoacuteria de Roma ad nauseum (ateacute o enjocirco)
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RESUMO
Autores como Antocircnio Manuel Hespanha consideram que nos manuais tradicionais de ensino juriacutedico a histoacuteria do direito romano eacute apresentada de forma a causar uma falsa impressatildeo de continuidade Para eles a ruptura entre presente e passado eacute acobertada com o objetivo de legitimar a ordem juriacutedica estabelecida Este trabalho tem como objetivo apresentar indiacutecios de que a necessidade de um simulacro de estabilidade juriacutedica eacute um fenocircmeno em si mesmo essencialmente romano Para isso contribuiccedilotildees teoacutericas de Foucault e Derrida serviram como ferramentas de anaacutelise e desconstruccedilatildeo discursivas Mas o principal instrumento metodoloacutegico utilizado foi o emprego do conceito linguiacutestico de diglossia situaccedilatildeo de convivecircncia entre registros de fala diferentes sendo uma delas a ldquooficialrdquo Assim falamos de uma diglossia juriacutedica na qual o direito posto convive com soluccedilotildees juriacutedicas com ele conflitantes de uma diglossia discursiva presente na invenccedilatildeo da histoacuteria de Roma pelos proacuteprios romanos de uma diglossia de Estado que se daacute com o processo de esvaziamento e perda de poder real das instituiccedilotildees republicanas A primeira expressatildeo de diglossia eacute ilustrada com cinco exemplos histoacutericos a segunda eacute apresentada a partir de uma observaccedilatildeo dos discursos de Ciacutecero a terceira se daacute com a anaacutelise da ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustus A conclusatildeo eacute a de que os proacuteprios romanos ressignificaram seu direito histoacuteria e instituiccedilotildees com o propoacutesito de legitimaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem vigente Se haacute uma tradiccedilatildeo seria a da proacutepria administraccedilatildeo e acobertamento da ruptura Podemos ser de certa forma herdeiros dos romanos na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica
Palavras-chave direito romano diglossia ressignificaccedilatildeo
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ABSTRACT
Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy
Keywords Roman law diglossia ressignifation
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SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8
1 INTRODUCcedilAtildeO 11
11 Tema objeto e objetivo 11
12 Abordagem 13
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16
21 Continuidade e ruptura 16
211 Continuidade 16
212 Ruptura 17
213 Metodologias 19
22 O legado de Roma 21
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21
222 Direito romano segundo Miguel Reale 26
223 Instrumentalidade 28
224 Direito romano e democracia 30
225 A centralidade das leis no direito romano 31
226 Oriente e ocidente 32
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34
31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34
32 O desconstrutivismo de Derrida 35
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41
41 Origens 41
42 Os remeacutedios juriacutedicos 44
43 A lei natural e o ius gentiun 47
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49
45 O impeacuterio 51
46 Diglossia de Estado 52
47 O direito romano claacutessico 53
7
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57
6 CONCLUSOtildeES 58
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
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PREAcircMBULO
O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar
a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute
fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro
Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas
em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos
permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2
O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo
daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se
apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo
Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma
sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute
a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E
essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio
ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do
direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e
qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos
estaacutetuas e inscriccedilotildees
Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma
complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade
histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico
1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
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adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
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1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
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direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
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monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
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pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
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2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
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ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
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com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
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Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
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Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
2
ALEXEI KALUPNIEK
ldquoEX UNO PLURESrdquo (ldquoA PARTIR DE UM VAacuteRIOSrdquo) diglossia e ressignificaccedilatildeo no direito romano
Monografia a ser apresentada como requisito para conclusatildeo do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitaacuterio de Brasiacutelia
Orientador Prof Me Luiz Patury Accioly Neto
BRASIacuteLIA 2012
3
AGRADECIMENTOS
Ao professor Luiz Patury pela orientaccedilatildeo in meliora per aspera (para melhor apesar das dificuldades)
Agrave professora Bistra Apostolova pela orientaccedilatildeo carinho e dedicaccedilatildeo ao projeto do PIBIC
Ao colega Matheus Muniz que discorreu sobre histoacuteria de Roma ad nauseum (ateacute o enjocirco)
4
RESUMO
Autores como Antocircnio Manuel Hespanha consideram que nos manuais tradicionais de ensino juriacutedico a histoacuteria do direito romano eacute apresentada de forma a causar uma falsa impressatildeo de continuidade Para eles a ruptura entre presente e passado eacute acobertada com o objetivo de legitimar a ordem juriacutedica estabelecida Este trabalho tem como objetivo apresentar indiacutecios de que a necessidade de um simulacro de estabilidade juriacutedica eacute um fenocircmeno em si mesmo essencialmente romano Para isso contribuiccedilotildees teoacutericas de Foucault e Derrida serviram como ferramentas de anaacutelise e desconstruccedilatildeo discursivas Mas o principal instrumento metodoloacutegico utilizado foi o emprego do conceito linguiacutestico de diglossia situaccedilatildeo de convivecircncia entre registros de fala diferentes sendo uma delas a ldquooficialrdquo Assim falamos de uma diglossia juriacutedica na qual o direito posto convive com soluccedilotildees juriacutedicas com ele conflitantes de uma diglossia discursiva presente na invenccedilatildeo da histoacuteria de Roma pelos proacuteprios romanos de uma diglossia de Estado que se daacute com o processo de esvaziamento e perda de poder real das instituiccedilotildees republicanas A primeira expressatildeo de diglossia eacute ilustrada com cinco exemplos histoacutericos a segunda eacute apresentada a partir de uma observaccedilatildeo dos discursos de Ciacutecero a terceira se daacute com a anaacutelise da ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustus A conclusatildeo eacute a de que os proacuteprios romanos ressignificaram seu direito histoacuteria e instituiccedilotildees com o propoacutesito de legitimaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem vigente Se haacute uma tradiccedilatildeo seria a da proacutepria administraccedilatildeo e acobertamento da ruptura Podemos ser de certa forma herdeiros dos romanos na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica
Palavras-chave direito romano diglossia ressignificaccedilatildeo
5
ABSTRACT
Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy
Keywords Roman law diglossia ressignifation
6
SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8
1 INTRODUCcedilAtildeO 11
11 Tema objeto e objetivo 11
12 Abordagem 13
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16
21 Continuidade e ruptura 16
211 Continuidade 16
212 Ruptura 17
213 Metodologias 19
22 O legado de Roma 21
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21
222 Direito romano segundo Miguel Reale 26
223 Instrumentalidade 28
224 Direito romano e democracia 30
225 A centralidade das leis no direito romano 31
226 Oriente e ocidente 32
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34
31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34
32 O desconstrutivismo de Derrida 35
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41
41 Origens 41
42 Os remeacutedios juriacutedicos 44
43 A lei natural e o ius gentiun 47
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49
45 O impeacuterio 51
46 Diglossia de Estado 52
47 O direito romano claacutessico 53
7
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57
6 CONCLUSOtildeES 58
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
8
PREAcircMBULO
O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar
a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute
fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro
Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas
em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos
permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2
O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo
daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se
apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo
Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma
sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute
a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E
essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio
ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do
direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e
qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos
estaacutetuas e inscriccedilotildees
Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma
complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade
histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico
1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
9
descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
10
adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
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ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
28
exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
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Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
3
AGRADECIMENTOS
Ao professor Luiz Patury pela orientaccedilatildeo in meliora per aspera (para melhor apesar das dificuldades)
Agrave professora Bistra Apostolova pela orientaccedilatildeo carinho e dedicaccedilatildeo ao projeto do PIBIC
Ao colega Matheus Muniz que discorreu sobre histoacuteria de Roma ad nauseum (ateacute o enjocirco)
4
RESUMO
Autores como Antocircnio Manuel Hespanha consideram que nos manuais tradicionais de ensino juriacutedico a histoacuteria do direito romano eacute apresentada de forma a causar uma falsa impressatildeo de continuidade Para eles a ruptura entre presente e passado eacute acobertada com o objetivo de legitimar a ordem juriacutedica estabelecida Este trabalho tem como objetivo apresentar indiacutecios de que a necessidade de um simulacro de estabilidade juriacutedica eacute um fenocircmeno em si mesmo essencialmente romano Para isso contribuiccedilotildees teoacutericas de Foucault e Derrida serviram como ferramentas de anaacutelise e desconstruccedilatildeo discursivas Mas o principal instrumento metodoloacutegico utilizado foi o emprego do conceito linguiacutestico de diglossia situaccedilatildeo de convivecircncia entre registros de fala diferentes sendo uma delas a ldquooficialrdquo Assim falamos de uma diglossia juriacutedica na qual o direito posto convive com soluccedilotildees juriacutedicas com ele conflitantes de uma diglossia discursiva presente na invenccedilatildeo da histoacuteria de Roma pelos proacuteprios romanos de uma diglossia de Estado que se daacute com o processo de esvaziamento e perda de poder real das instituiccedilotildees republicanas A primeira expressatildeo de diglossia eacute ilustrada com cinco exemplos histoacutericos a segunda eacute apresentada a partir de uma observaccedilatildeo dos discursos de Ciacutecero a terceira se daacute com a anaacutelise da ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustus A conclusatildeo eacute a de que os proacuteprios romanos ressignificaram seu direito histoacuteria e instituiccedilotildees com o propoacutesito de legitimaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem vigente Se haacute uma tradiccedilatildeo seria a da proacutepria administraccedilatildeo e acobertamento da ruptura Podemos ser de certa forma herdeiros dos romanos na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica
Palavras-chave direito romano diglossia ressignificaccedilatildeo
5
ABSTRACT
Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy
Keywords Roman law diglossia ressignifation
6
SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8
1 INTRODUCcedilAtildeO 11
11 Tema objeto e objetivo 11
12 Abordagem 13
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16
21 Continuidade e ruptura 16
211 Continuidade 16
212 Ruptura 17
213 Metodologias 19
22 O legado de Roma 21
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21
222 Direito romano segundo Miguel Reale 26
223 Instrumentalidade 28
224 Direito romano e democracia 30
225 A centralidade das leis no direito romano 31
226 Oriente e ocidente 32
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34
31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34
32 O desconstrutivismo de Derrida 35
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41
41 Origens 41
42 Os remeacutedios juriacutedicos 44
43 A lei natural e o ius gentiun 47
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49
45 O impeacuterio 51
46 Diglossia de Estado 52
47 O direito romano claacutessico 53
7
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57
6 CONCLUSOtildeES 58
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
8
PREAcircMBULO
O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar
a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute
fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro
Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas
em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos
permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2
O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo
daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se
apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo
Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma
sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute
a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E
essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio
ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do
direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e
qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos
estaacutetuas e inscriccedilotildees
Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma
complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade
histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico
1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
9
descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
10
adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
17
existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
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relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
4
RESUMO
Autores como Antocircnio Manuel Hespanha consideram que nos manuais tradicionais de ensino juriacutedico a histoacuteria do direito romano eacute apresentada de forma a causar uma falsa impressatildeo de continuidade Para eles a ruptura entre presente e passado eacute acobertada com o objetivo de legitimar a ordem juriacutedica estabelecida Este trabalho tem como objetivo apresentar indiacutecios de que a necessidade de um simulacro de estabilidade juriacutedica eacute um fenocircmeno em si mesmo essencialmente romano Para isso contribuiccedilotildees teoacutericas de Foucault e Derrida serviram como ferramentas de anaacutelise e desconstruccedilatildeo discursivas Mas o principal instrumento metodoloacutegico utilizado foi o emprego do conceito linguiacutestico de diglossia situaccedilatildeo de convivecircncia entre registros de fala diferentes sendo uma delas a ldquooficialrdquo Assim falamos de uma diglossia juriacutedica na qual o direito posto convive com soluccedilotildees juriacutedicas com ele conflitantes de uma diglossia discursiva presente na invenccedilatildeo da histoacuteria de Roma pelos proacuteprios romanos de uma diglossia de Estado que se daacute com o processo de esvaziamento e perda de poder real das instituiccedilotildees republicanas A primeira expressatildeo de diglossia eacute ilustrada com cinco exemplos histoacutericos a segunda eacute apresentada a partir de uma observaccedilatildeo dos discursos de Ciacutecero a terceira se daacute com a anaacutelise da ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustus A conclusatildeo eacute a de que os proacuteprios romanos ressignificaram seu direito histoacuteria e instituiccedilotildees com o propoacutesito de legitimaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem vigente Se haacute uma tradiccedilatildeo seria a da proacutepria administraccedilatildeo e acobertamento da ruptura Podemos ser de certa forma herdeiros dos romanos na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica
Palavras-chave direito romano diglossia ressignificaccedilatildeo
5
ABSTRACT
Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy
Keywords Roman law diglossia ressignifation
6
SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8
1 INTRODUCcedilAtildeO 11
11 Tema objeto e objetivo 11
12 Abordagem 13
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16
21 Continuidade e ruptura 16
211 Continuidade 16
212 Ruptura 17
213 Metodologias 19
22 O legado de Roma 21
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21
222 Direito romano segundo Miguel Reale 26
223 Instrumentalidade 28
224 Direito romano e democracia 30
225 A centralidade das leis no direito romano 31
226 Oriente e ocidente 32
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34
31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34
32 O desconstrutivismo de Derrida 35
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41
41 Origens 41
42 Os remeacutedios juriacutedicos 44
43 A lei natural e o ius gentiun 47
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49
45 O impeacuterio 51
46 Diglossia de Estado 52
47 O direito romano claacutessico 53
7
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57
6 CONCLUSOtildeES 58
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
8
PREAcircMBULO
O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar
a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute
fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro
Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas
em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos
permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2
O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo
daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se
apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo
Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma
sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute
a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E
essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio
ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do
direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e
qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos
estaacutetuas e inscriccedilotildees
Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma
complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade
histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico
1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
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adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
5
ABSTRACT
Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy
Keywords Roman law diglossia ressignifation
6
SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8
1 INTRODUCcedilAtildeO 11
11 Tema objeto e objetivo 11
12 Abordagem 13
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16
21 Continuidade e ruptura 16
211 Continuidade 16
212 Ruptura 17
213 Metodologias 19
22 O legado de Roma 21
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21
222 Direito romano segundo Miguel Reale 26
223 Instrumentalidade 28
224 Direito romano e democracia 30
225 A centralidade das leis no direito romano 31
226 Oriente e ocidente 32
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34
31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34
32 O desconstrutivismo de Derrida 35
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41
41 Origens 41
42 Os remeacutedios juriacutedicos 44
43 A lei natural e o ius gentiun 47
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49
45 O impeacuterio 51
46 Diglossia de Estado 52
47 O direito romano claacutessico 53
7
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57
6 CONCLUSOtildeES 58
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
8
PREAcircMBULO
O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar
a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute
fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro
Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas
em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos
permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2
O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo
daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se
apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo
Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma
sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute
a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E
essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio
ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do
direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e
qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos
estaacutetuas e inscriccedilotildees
Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma
complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade
histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico
1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
9
descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
10
adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
17
existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
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relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
6
SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8
1 INTRODUCcedilAtildeO 11
11 Tema objeto e objetivo 11
12 Abordagem 13
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16
21 Continuidade e ruptura 16
211 Continuidade 16
212 Ruptura 17
213 Metodologias 19
22 O legado de Roma 21
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21
222 Direito romano segundo Miguel Reale 26
223 Instrumentalidade 28
224 Direito romano e democracia 30
225 A centralidade das leis no direito romano 31
226 Oriente e ocidente 32
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34
31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34
32 O desconstrutivismo de Derrida 35
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41
41 Origens 41
42 Os remeacutedios juriacutedicos 44
43 A lei natural e o ius gentiun 47
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49
45 O impeacuterio 51
46 Diglossia de Estado 52
47 O direito romano claacutessico 53
7
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57
6 CONCLUSOtildeES 58
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
8
PREAcircMBULO
O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar
a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute
fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro
Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas
em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos
permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2
O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo
daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se
apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo
Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma
sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute
a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E
essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio
ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do
direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e
qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos
estaacutetuas e inscriccedilotildees
Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma
complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade
histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico
1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
9
descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
10
adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
17
existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
30
das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
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relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
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4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
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nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
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Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
7
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57
6 CONCLUSOtildeES 58
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
8
PREAcircMBULO
O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar
a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute
fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro
Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas
em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos
permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2
O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo
daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se
apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo
Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma
sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute
a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E
essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio
ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do
direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e
qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos
estaacutetuas e inscriccedilotildees
Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma
complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade
histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico
1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
9
descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
10
adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
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Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
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relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
8
PREAcircMBULO
O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar
a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute
fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro
Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas
em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos
permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2
O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo
daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se
apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo
Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma
sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute
a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E
essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio
ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do
direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e
qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos
estaacutetuas e inscriccedilotildees
Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma
complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade
histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico
1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
9
descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
10
adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
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Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
9
descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos
retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por
um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre
digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores
modernosrdquo5
Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea
entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador
contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a
representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a
compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas
por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm
assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo
confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6
Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa
maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na
tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes
mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente
poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja
substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo
de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7
O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo
excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e
revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado
de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais
diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam
5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
10
adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
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Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
10
adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal
ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo
seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do
deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito
romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa
civilizaccedilatildeordquo10
Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se
pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte
forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um
sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em
Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos
pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho
9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
17
existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
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puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
11
1 INTRODUCcedilAtildeO
11 Tema objeto e objetivo
O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno
contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O
processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de
harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de
ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de
origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje
fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito
O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante
dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que
eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de
ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus
diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na
Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de
harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e
agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de
estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise
se evidenciou de forma mais precisa
Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo
exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por
assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram
tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas
sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao
11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
30
das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
31
seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
12
direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre
a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais
Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a
natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito
contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a
teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo
de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma
que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute
apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional
Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como
metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo
relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves
chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece
indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia
entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira
obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso
poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do
comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos
magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais
foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito
O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees
as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito
romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O
conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e
ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros
aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia
discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto
(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa
de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas
romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
35
(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
13
monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se
apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre
tradiccedilatildeo e ruptura
12 Abordagem
A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de
diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um
termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma
sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado
em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade
possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite
familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas
diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e
logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro
diversos
Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma
divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas
ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12
A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor
reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito
12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
14
fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um
direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido
pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um
processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e
tradiccedilatildeo
Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre
os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua
expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo
custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas
talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma
imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social
Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de
uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria
O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13
Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo
menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim
o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel
enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se
- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios
exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)
Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma
espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de
que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o
Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a
respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura
normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente
aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se
daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza
13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
17
existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
27
forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
15
pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo
gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
17
existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
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lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
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de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
16
2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
21 Continuidade e ruptura
211 Continuidade
Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas
sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria
parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema
juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os
ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente
uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles
que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos
relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais
importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a
efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma
ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14
Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que
diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa
forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma
14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
17
existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
27
forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
28
exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
17
existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha
apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse
fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um
conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada
burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo
graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo
abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido
posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica
O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16
Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que
consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na
verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca
a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um
viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo
ocidental de direitordquo18
212 Ruptura
A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos
entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura
representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs
Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de
grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de
legitimaccedilatildeo do direito posto
15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
18
ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21
O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees
juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo
algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os
ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie
de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em
um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma
da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras
Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios
conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22
ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa
ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um
outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval
capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23
O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria
sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o
anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua
autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito
estabelecido25
Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que
considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo
19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
26
passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
27
forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
28
exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
29
abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
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puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
19
com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo
civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos
conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da
mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo
das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo
A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si
natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo
historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do
possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma
juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos
tinham a respeito de si proacuteprios
213 Metodologias
A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado
ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia
cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29
Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria
contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial
ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas
principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes
personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo
dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo
eles realmente aconteceramrdquo 31
26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
20
Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e
uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves
ciecircncias sociais
ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo
Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia
poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre
Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de
forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido
socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido
juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33
A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o
estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa
sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que
eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre
tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por
pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde
com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma
sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt
ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34
Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo
constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute
reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e
remanescente
32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
23
esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
21
A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo
pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo
como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos
defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da
narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no
desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes
problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura
expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender
o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico
multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa
dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a
esses novos historiadoresrdquo37
22 O legado de Roma
221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma
compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema
justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias
legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que
vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla
natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute
35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9
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corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
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relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
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convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
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dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
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ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
22
corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica
e o Impeacuterio39
O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa
da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as
normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a
proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII
e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir
desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma
unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do
Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca
o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve
recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas
vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno
juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC
A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na
Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo
XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo
foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45
A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao
DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu
tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da
tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de
39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes
contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam
a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao
progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a
favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu
caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo
vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam
que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua
substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48
O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito
contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido
sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma
curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais
proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que
ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no
longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma
das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do
CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes
descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees
pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente
juriacutedica53
47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33
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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
24
Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem
tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado
dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A
realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez
como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo
europeia
Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se
que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados
europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito
erudito comum com base no CIC)56
A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento
desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre
os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o
germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia
parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo
uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz
de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes
afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e
as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees
universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes
A soberania se daria entatildeo quando o Estado
54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit
25
[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo
Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos
econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma
soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre
comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves
partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um
favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius
commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi
adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o
segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61
Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico
ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria
para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria
ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser
expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles
satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria
resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem
cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62
O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o
universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo
das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para
Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo
adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-
membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova
disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que
61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
35
(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda
do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar
das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal
europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65
Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo
da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o
fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um
sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul
Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o
estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes
normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de
institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris
Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito
romano claacutessico66
222 Direito romano segundo Miguel Reale
Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade
O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa
interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico
contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de
estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas
estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um
objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma
tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma
64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
27
forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves
estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o
que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68
Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do
Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da
estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo
era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser
traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo
ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa
previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce
portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um
verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria
tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute
dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo
nela existentes
Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69
Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito
romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e
extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos
fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma
loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao
proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e
67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
28
exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
28
exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes
de ser apenas moldada por ela
223 Instrumentalidade
Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos
associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que
hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius
romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile
que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus
gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de
conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70
A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo
romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga
ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71
Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de
ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge
principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica
medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como
Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por
elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de
uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do
conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram
70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit
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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
35
(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
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Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
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lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
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No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
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de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
29
abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha
a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica
teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica
e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao
modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da
permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde
que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se
complementaramrdquo
O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73
Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o
autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu
aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos
paiacuteses europeus
ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma
73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
35
(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
30
das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74
224 Direito romano e democracia
Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada
como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados
inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo
popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean
Bodin
Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo
popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma
republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como
explica Poletti
ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76
A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado
moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um
ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser
compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades
romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim
delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)
eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas
74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
31
seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
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lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
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No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
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riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
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de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
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- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
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- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
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- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
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- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os
cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a
soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua
integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin
poreacutem eacute pelo priacutencipe
225 A centralidade das leis no direito romano
Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo
Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a
questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das
relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes
como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea
invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de
que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os
coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica
material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica
expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo
Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma
o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos
(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)
non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os
ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal
[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou
78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
32
canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80
Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista
devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica
liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como
especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada
ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da
rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era
executada em rariacutessimos casos
226 Oriente e ocidente
Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a
respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward
Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que
ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de
si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de
ocidente)rdquo
ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo
Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos
80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
33
modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
35
(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
33
modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa
O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro
ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81
81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
35
(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
34
3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
31 Anaacutelise do discurso em Foucault
Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas
conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que
consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do
conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo
que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que
propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como
uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo
em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da
especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo
necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute
resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A
exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas
de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo
proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta
conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84
Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas
sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas
a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo
seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo
da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A
segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no
processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade
82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
35
(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
35
(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da
mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade
(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento
dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do
direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo
ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua
exterioridade
32 O desconstrutivismo de Derrida
321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na
matriz de ser da filosofia ocidental
Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria
como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando
vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo
sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece
com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um
sensiacutevel outro inteligiacutevel
Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o
discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito
depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial
definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o
discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos
85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
36
A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto
possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo
estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita
natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos
depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de
oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas
no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta
Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de
ldquometafiacutesica da presenccedilardquo
O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86
A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade
do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia
Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do
pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de
registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo
O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila
continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute
como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria
Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo
Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute
necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de
um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda
como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse
objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se
86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21
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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
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relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
37
revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do
significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a
autoridade da palavra emitida in loco pelo autor
Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos
processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade
Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em
tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na
produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao
espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico
nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila
uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos
seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo
civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que
nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas
como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo
da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor
outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status
condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do
exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha
natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de
direito
322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica
apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um
significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um
significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os
signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para
expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo
tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
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de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
38
relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona
linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87
Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88
Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de
maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras
ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o
ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam
atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se
mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali
Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos
filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema
Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo
argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo
como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu
proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a
desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo
sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)
forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute
expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo
Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de
que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo
87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
39
filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma
evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas
preferenciais da iconoclastia desconstrutivista
Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma
distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo
necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o
fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma
idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras
portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou
desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um
significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha
interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as
ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia
sobre o nadardquo
Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de
jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como
ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de
piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da
hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas
quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de
uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva
A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando
utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado
pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos
que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute
interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para
Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de
90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92
COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
40
significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do
processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma
accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por
esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de
novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo
do significado original de qualquer texto
Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida
como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica
romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um
ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos
definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca
incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de
convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a
resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria
essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por
Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo
sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse
processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio
padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para
fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de
conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a
ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo
de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua
precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais
importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo
natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca
esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
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lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
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de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
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percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
41
4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
41 Origens
O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel
e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu
Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta
razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes
o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana
escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94
eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro
mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito
escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao
contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano
Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96
a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo
ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima
daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo
Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram
regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte
do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas
guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os
pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de
ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como
93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
42
nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei
dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo
uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus
simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash
composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto
ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas
exclusivamente por patriacutecios
Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de
uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram
intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma
dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades
regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e
direito
ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98
Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da
ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples
fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou
realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex
ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de
tensatildeo social
Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano
conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no
iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo
97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
43
surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais
sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees
invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam
que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade
invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo
de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do
direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius
o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se
deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de
forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos
Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da
chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era
vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como
uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo
no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua
idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos
juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que
aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia
segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio
Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como
res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o
paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele
continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente
tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer
uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs
vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos
99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
44
convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma
libertaccedilatildeo
42 Os remeacutedios juriacutedicos
Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se
deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das
normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o
exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo
O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor
teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto
ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero
bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de
foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou
ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal
implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda
Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os
monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o
exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de
estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o
que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de
inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente
inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees
legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do
direito preexistente
A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de
juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente
do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir
experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual
romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
45
dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem
possuiacutea um procedimento relativamente mais livre
Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as
partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias
palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que
era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da
foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash
consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar
retoacutericos para representaacute-las perante o iudex
Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava
soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse
essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de
jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios
controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram
consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma
disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor
natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se
assim o fosse
Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda
natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo
Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio
de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que
ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor
analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a
necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um
novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o
102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
46
ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma
imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa
O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual
apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma
foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos
requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade
juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a
adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade
impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato
formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela
Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se
possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o
que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto
tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a
boa-feacuterdquo (ex fide bona)
Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a
diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu
patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute
proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma
nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o
inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um
remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado
restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o
devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o
desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante
notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado
poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de
estabilidade do direito
103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
47
Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a
questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de
seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica
poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser
enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o
limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos
agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual
seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a
inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se
dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso
concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade
inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios
com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um
consultor independente
A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do
tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula
repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso
ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius
honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito
romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As
alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso
intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais
43 A lei natural e o ius gentiun
ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus
ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto
instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento
que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a
104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
48
lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam
com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes
eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela
diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em
contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida
Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando
Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de
entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash
chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo
privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo
enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo
A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um
exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o
que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um
caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova
divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas
peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se
enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das
matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106
Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino
ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez
pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo
ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que
essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes
inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute
como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale
105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
49
No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)
devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais
uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos
especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade
que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua
atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais
ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos
com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos
O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em
digestos para futura referecircncia
Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo
seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo
poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo
ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos
por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar
- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor
44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O
orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele
a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia
sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se
encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que
estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a
natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem
duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos
democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder
real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de
108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
50
riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o
maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem
comum
A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma
repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos
Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de
revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do
seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um
processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos
incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute
necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma
tambeacutem bastante incerta no passado
Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento
essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a
fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular
romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de
ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles
Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito
inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua
expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem
estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social
ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111
Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica
na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum
109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
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O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
51
de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao
contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da
repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua
expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e
cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas
internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido
ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O
consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de
derramamento de sangue
45 O impeacuterio
Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia
juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito
aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o
proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica
um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela
preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de
vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente
sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica
A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e
preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades
ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias
Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os
responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de
beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial
mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute
anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados
112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
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O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina
Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux
J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press
Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern
Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
52
e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as
qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo
poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia
de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual
ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na
administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou
mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia
principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os
soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim
profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em
campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante
diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon
politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de
Caio Juacutelio Ceacutesar
Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser
destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do
exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs
generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do
senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro
triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia
que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para
sempre agrave palavra ldquoerrordquo
46 Diglossia de Estado
Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar
instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115
Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar
114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern
Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
53
percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre
os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com
Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros
triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da
utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas
republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador
passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas
com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees
impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a
se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que
nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio
poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o
controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem
necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia
de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um
governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma
consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees
puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade
nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo
entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que
chamamos hoje de direito romano claacutessico
47 O direito romano claacutessico
Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do
desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais
sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o
governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e
Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que
taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo
para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa
de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina
Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux
J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press
Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
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Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
54
puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no
tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116
A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo
autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos
sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117
O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a
literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que
optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a
continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e
construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim
das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei
privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava
apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais
a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram
tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como
exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e
discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse
a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os
juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente
sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees
divergentes
Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-
se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos
tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser
na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por
princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam
por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como
116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17
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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
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- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
55
um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma
forma tambeacutem diversa
A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada
Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila
entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje
chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista
do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo
popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se
duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito
puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees
teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma
outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o
desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para
a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao
discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa
natureza
ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119
O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito
privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na
esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai
mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de
estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo
apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais
governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano
119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina
Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux
J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press
Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern
Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
56
O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado
algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O
ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com
meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem
aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius
parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada
futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a
seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a
pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da
liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo
familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo
ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel
Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a
classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa
(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos
(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)
Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma
ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o
contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na
eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem
como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito
obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o
aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de
pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina
Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux
J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press
Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern
Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados
Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo
Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito
120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina
Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux
J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press
Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern
Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
6 CONCLUSOtildeES
A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios
histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao
Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do
pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais
pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o
conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a
anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs
nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os
conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que
o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia
haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da
proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da
manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no
cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a
reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de
legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria
romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina
Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux
J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press
Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern
Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret
Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp
Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina
Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux
J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press
Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern
Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011
Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern
Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011
Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras
Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press
- PREAcircMBULO
- 1 INTRODUCcedilAtildeO
-
- 11 Tema objeto e objetivo
- 12 Abordagem
-
- 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
-
- 21 Continuidade e ruptura
-
- 211 Continuidade
- 212 Ruptura
- 213 Metodologias
-
- 22 O legado de Roma
-
- 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
- 222 Direito romano segundo Miguel Reale
- 223 Instrumentalidade
- 224 Direito romano e democracia
- 225 A centralidade das leis no direito romano
- 226 Oriente e ocidente
-
- 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
-
- 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
- 32 O desconstrutivismo de Derrida
-
- 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
- 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
-
- 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
-
- 41 Origens
- 42 Os remeacutedios juriacutedicos
- 43 A lei natural e o ius gentiun
- 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
- 45 O impeacuterio
- 46 Diglossia de Estado
- 47 O direito romano claacutessico
-
- 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
- 6 CONCLUSOtildeES
- 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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