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13 Risco de Erosão após Incêndios Florestais Evolução de vertentes e erosão dos solos, nas serras de xisto do centro de Portugal, em consequência de incêndios florestais. Análise de casos observados em 1987. * Introdução Os incêndios florestais, ao destruirem a vegetação, deixam as rochas e os solos expostos directamente à acção dos agentes erosivos, intensificando, por isso, os processos de meteorização das rochas e de mobilização dos solos. A falta de vegetação permite que as gotas de água da chuva passem a embater directamente contra o solo, aumentando assim os efeitos do “splash” e, em consequência, a acção erosiva da própria água das chuvas. A inexistência de vegetação reduz, ainda, as taxas de infiltração e, concomitantemente, acresce os coeficientes de escoamento superficial levando a que, à superfície, fique disponível uma maior quantidade de água para poder atacar, erosionar, essa mesma superfície topográfica. As consequências dos incêndios florestais, em termos de erosão dos solos, não se reduzem, apenas, aos efeitos do desmantelar dos detritos e à sua posterior deposição. Assim sendo, os efeitos da erosão têm de ser analisados sob uma perspectiva tricotómica, ou seja, considerar erosão, transporte e acumulação como diferentes fases de um único e complexo processo, a evolução das vertentes. A actuação conjunta dos diferentes processos erosivos visa obter a regularização natural das vertentes, cujo equilíbrio dinâmico é, muitas vezes, posto em causa pelo homem. Quando isso sucede, a actuação dos processos morfogenéticos é grandemente acelerada, em especial depois das primeiras chuvas caídas após a destruição da vegetação pelos incêndios florestais, como se ilustra com os exemplos obtidos na área de Arganil/Oliveira do Hospital onde, de 13 a 20 de Setembro de 1987, lavrou um violento incêndio. * Relatório Técnico. Área: Incêndios Florestais, G.M.F. - I.F. - 8805, 7 de Julho de 1988.

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13Risco de Erosão após Incêndios Florestais

Evolução de vertentes e erosão dos solos,nas serras de xisto do centro de Portugal,em consequência de incêndios florestais.Análise de casos observados em 1987.*

Introdução

Os incêndios florestais, ao destruirem a vegetação, deixam as rochas e ossolos expostos directamente à acção dos agentes erosivos, intensificando, porisso, os processos de meteorização das rochas e de mobilização dos solos.

A falta de vegetação permite que as gotas de água da chuva passem aembater directamente contra o solo, aumentando assim os efeitos do “splash”e, em consequência, a acção erosiva da própria água das chuvas. A inexistênciade vegetação reduz, ainda, as taxas de infiltração e, concomitantemente,acresce os coeficientes de escoamento superficial levando a que, à superfície,fique disponível uma maior quantidade de água para poder atacar, erosionar,essa mesma superfície topográfica.

As consequências dos incêndios florestais, em termos de erosão dos solos, nãose reduzem, apenas, aos efeitos do desmantelar dos detritos e à sua posteriordeposição. Assim sendo, os efeitos da erosão têm de ser analisados sob umaperspectiva tricotómica, ou seja, considerar erosão, transporte e acumulação comodiferentes fases de um único e complexo processo, a evolução das vertentes.

A actuação conjunta dos diferentes processos erosivos visa obter aregularização natural das vertentes, cujo equilíbrio dinâmico é, muitas vezes,posto em causa pelo homem. Quando isso sucede, a actuação dos processosmorfogenéticos é grandemente acelerada, em especial depois das primeiraschuvas caídas após a destruição da vegetação pelos incêndios florestais, comose ilustra com os exemplos obtidos na área de Arganil/Oliveira do Hospitalonde, de 13 a 20 de Setembro de 1987, lavrou um violento incêndio.* Relatório Técnico. Área: Incêndios Florestais, G.M.F. - I.F. - 8805, 7 de Julho de 1988.

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As formas de relevo resultantes da evolução dessas vertentes podemagrupar-se em dois conjuntos principais, constituídos por formas ocas e porformas salientes, consoante predominem os efeitos de erosão ou deacumulação. No primeiro caso, resultam directamente dos efeitos doescavamento, do arrancar dos materiais, enquanto que as formas salientes, nosegundo caso, são originadas pela deposição dos detritos antes arrancados.

Casos observados na Serra do Açor

Na impossibilidade de se poder proceder, de momento, ao estudoquantitativo das formas de erosão após a ocorrência dos fogos florestais,analisaram-se qualitativamente algumas situações que, fundamentalmente, seprendem com os efeitos da erosão e da acumulação desencadeados pelaactuação de processos erosivos, surgidos na sequência de intervençõesantrópicas.

É evidente que também se observaram alterações na evolução natural dasvertentes, em particular nos seus depósitos, como consequência da falta, devegetação e da protecção que antes esta oferecia à actuação dos agenteserosivos, mas os seus efeitos são menos espectaculares do que quando aevolução é acelerado pelo homem.

Por uma questão metodológica de ordem prática e para maior facilidade detratamento, procuram descrever-se, em primeiro lugar, as formas resultantesda erosão e, depois, as devidas à acumulação, embora, algumas vezes acabempor ser tratadas em conjunto, como aliás sucede, normalmente na realidade.

As formas ocas mais frequentes nas áreas atingidas por incêndios florestaissão as ravinas. Evidenciam-se, de modo particular, nas áreas queimadas duasou mais vezes e, em especial, quando se desenvolvem sobre depósitos devertente (fot. 1 e 2), ou sobre solos mais espessos. Esses depósitos, geralmenteconstituídos por entulhamentos de características periglaciares, formados emclimas mais frios do que os actuais, preencheram completamente a grande maioriados vales e valeiros serranos e, pouco a pouco, inexoravelmente, têm sidodesmantelados.

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Para essa destruição contribuiu, emprimeiro lugar, a alteração das condiçõesclimáticas. Depois, o homem e osincêndios florestais aceleraram a actuaçãodos processos erosivos. Actualmente, apósos incêndios, o homem, consciente ouinconscientemente, continua a ser ogrande responsável pela aceleraração dessesprocessos.

Fot. 1 - Serra da Aveleira (Arganil). Ravina queevoluiu rapidamente depois do segundoincêndio florestal (1985) e que, actualmente, seencontra de novo a ser colonizada pela vegetação

arbustiva.

Efeitos erosivos em duas estradas do Perímetro Florestal da Senhora dasNecessidades

A intensificação da actuação dos processos erosivos começa, normalmente,com a abertura de estradas e caminhos florestais, feitos para a extracção dasmadeiras queimadas e construídos completamente ao acaso. O seu carácterprecário leva a que sejam descoradas algumas das infra-estruturas essenciais paraatenuar os efeitos erosivos. Assim, a não construção de valetas e dos correspondentesaquedutos leva à destruição das bermas assentes sobre aterros e, algumas vezes,conduz mesmo à completa destruição dos caminhos, como nos foi dado observarnalgumas linhas de água em que essas infra-estruturas não foram tidas em conta.

Mas, mesmo quando existem, nem sempre se revelam suficientes para evitaros efeitos da acumulação de detritos que, por sua vez, ao obstruirem as valetas(fot. 2 e 3), levam a que a água circule na própria estrada (fot. 4) desgastandoo pavimento (fot. 2) e, depois, destruindo a própria berma (fot. 5).

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Fot. 3 - Estrada Florestal da Panca. A valeta e o aqueduto estão completamente entulhados.Só é possível identificar o aqueduto através do muro que lhe serve de cortina de protecção.

Fot. 2 - Estrada Florestal das Costeiras da Gramaça. Formas de erosão, ravinamentos no depósitode vertente e sulcos na estrada. Formas de acumulação, resultantes da deposição de materiaisna valeta da própria estrada. A obstrução da valeta levou a que a água passasse a circular na

faixa de rodagem ocasionando a destruição de parte do macadame.

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Fot. 4 - Estrada Florestal da Panca. A água que atravessava, abundantemente, a estrada emdiversos pontos, é visível a cair em bica do muro de suporte, porque o aqueduto se encontrava

entulhado, impedindo a passagem da água.

Fot. 5 - Estrada Florestal das Costeiras da Gramaça. Pormenor da berma da estrada, onde seobserva uma ravina produzida por parte da água que circulava na estrada. A outra parte

continuou pela estrada, onde abriu um sulco que ainda é visível.

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Os processos de destruição e entulhamento dos caminhos e estradas florestaissão simples e tendem a repor o perfil inicial, de equilíbrio dinâmico, da vertente,como se representa esquematicamente na figura 6.

Na parte situada a montante da estrada dá-se erosão e transporte de material. Arotura de declive criada pelo talude, por vezes facilitada pelo contra declive davaleta, acaba por levar depois à deposição de grande parte desse material na própriaestrada (fot. 2 e fig. 1-C).

Concomitantemente, a água que atravessou o caminho ataca a berma,muitas vezes assente sobre aterros, iniciando o seu desmantelamento (fot. 5 efig. 1-C). O processo, a não ser interrompido pelo homem, terminará quandose alcance um perfil de equilíbrio, próximo do inicial (fig. 1-D).

Relativamente às grandes formas naturais de deposição, observadas nasserras de xisto, verificou-se que ocorrem, em regra, na base das vertentes, ondeas roturas de declive favorecem a acumulação dos materiais, preenchendocompletamente muito dos valeiros serranos e acabando por regularizaralgumas das vertentes tornando-as praticamente rectilíneas.

A maioria desses depósito foram formados à medida que as vertentes seiam afeiçoando, em climas muito diferentes dos actuais. Esses depósitos têm--se conservado ou evoluído muito lentamente, mercê da protecção que, empaerte, a vegetação lhes oferece. Quando esta desaparece, aqueles sãodestruídos e seriam levados para os plainos aluviais de nível de base, geral oulocal, se o homem. mais uma vez, não criasse roturas de declives artificiaispropícias à deposição desses detritos.

As situações mais frequentes ocorrem, como vimos, ao longo das estradas e doscaminhos florestais que, através de aterros e desaterros, interrompem o declivenatural da vertente e levam à deposição do material oriundo da parte superior.Frequentemente, sobre as valetas, na base dos desaterros, formam-se pequenoscones de dejecção (fot. 6) que, consoante aumentam de volume, coalescem, unindo--se uns aos outros, tendendo a repor o equilíbrio natural da vertente, se entretanto euma vez mais, o homem não intervier retirando os materiais acumulados.

Outra situação também frequente e que, do mesmo modo, conduz àdeposição de detritos é devida à construção de barragens nos leitos dosprincipais rios serranos. A formação das respectivas albufeiras cria roturas de

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Fig. 1 - Representação simplificada da evolução das vertentes nas proximidades das estradase caminhos florestais.

A - Situação inicial da vertente, antes da abertura da estrada;B - Perfil da vertente, após a construção da estrada;C - Rápida evolução do perfil da vertente depois de lhe ser retirada toda a vegetação;

1 - Erosão e transporte de material, a montante da estrada;2 - Deposição desse material na estrada;3 - Erosão na berma da estrada;

D - Perfil regularizado para que tenderia a evolução natural da vertente se, entretanto, o homem não interviesse.

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declive na superfície molhada que, por sua vez, originam a deposição de grandeparte dos materiais carregados pela corrente. Desses materiais, os maisgrosseiros, transportados por arrastamento, juntamente com grande parte daspartículas de maior dimensão, transportadas em suspensão, são abandonadoslogo à entrada da albufeira contribuindo para um rápido acréscimo dosderrames deltaicos sublacustres, de montante. Os detritos mais finos, porpermanecerem mais tempo em suspensão, espalham-se um pouco por toda aalbufeira, podendo mesmo quando de dimensão reduzida, ser descarregados,o que equivale a transporem a barragem para jusante (fig.2).

Fot. 6 - Estrada Florestal da Panca. Pequeno cone de dejecção, sobre a estrada, com a típicaforma em leque.

A grande quantidade de detritos provindos da evolução das vertentes apósos incêndios e, depois, da erosão dos solos preparados para a reflorestaçãocontribui para reduzir substancialmente o volume dessas albufeiras e, aomesmo tempo, a sua própria vida útil. É evidente que o dimensionamento dasalbufeiras faz-se para condições normais de evolução de vertentes. Sempre queessas condições se alteram, os transportes sólidos podem aumentarsignificativamente e, nessas circunstâncias, o volume morto das albufeiras, ao

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ser preenchido com sedimentos muito mais depressa do que fora previsto,acaba por aumentar rapidamente, encurtando a vida útil prevista para ofuncionamento dessas barragens.

Outra actividade humana que muito facilita a acção erosiva das águas é apreparação dos terrenos para reflorestação, especialmente quando esta é feitapor processos mecânicos envolvendo a utilização de máquinas muito pesadas,como muitas vezes sucede com as gradagens e as ripagens. A consequentemovimentação dos solos e o remeximento das camadas rochosas maissuperficiais deixam grandes quantidades de partículas minerais e de pequenosfragmentos de rocha disponíveis para posterior mobilização pelas águas pluviais.

O trabalho executado pelas máquinas faz com que fiquem desagregadas empoucas horas, muitas toneladas de material coeso. Se esta desagregação fossefeita pelos processos naturais de crioclastia e de termoclastia, em especialatravés das alterações introduzidas pelas acções conjugadas do gelo-degelo, asmais frequentes nestas áreas nas actuais condições climáticas, levariam algunsmilhares de anos até que essas toneladas de material pudessem ser preparadas.O homem acelera, pois, muito rapidamente o que os processos naturaislevariam longo tempo a executar.

Fig. 2 - Esquema típico da acumulação de sedimentos em albufeiras de regularização. Estão nestasituação a maior parte das albufeiras serranas cujo assoreamento natural é grandemente agravado

pelos incêndios florestais (Extraído de LENCASTRE E FRANCO, 1984, p. 377)

DESCARGADE

FUNDO

DESCARGA DEMEIO FUNDO

ÁGUA RELATIVAMENTE LIMPA

DETRITOS FLUTUANTES

AFLUÊNCIAS COM SEDIMENTOS

DELTA

FUNDO DA ALBUFEIRA

CORRENTE DE DENSIDADE

SEDIMENTOS FINOS

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O corte da Estrada Coja-Esculca provocado pelas águas da ribeira doVale Moleiro

O reduzido diâmetro de algumas das infra-estruturas, em particular dosaquedutos, bem como o seu fraco declive contribuem, como vimos, paraagravar, ainda mais, os efeitos da erosão. Muitas vezes, foram dimensionadospara escoarem apenas caudais normais, as afluências de vertentes cobertas devegetação, quando se deveria ter considerado também o aumento brusco queo módulo bruto sofre sempre que essa vegetação é totalmente destruída pelofogo. Nestas circunstâncias, associado ao próprio aumento de caudal, acorrente pode transportar restos de vegetação e até troncos de árvores queacrescem as possibilidades de obstrução dos referidos aquedutos.

Uma das situações mais complexas, vividas na sequência das primeiras chuvasapós o incêndio, foi a provocada pela ribeira do Vale Moleiro, a nascente da povoaçãodo Vale do Carro, onde cortou a estrada que de Coja vai para a Esculca (fot. 7, 8e 9, fig. 3), deixando esta localidade sem qualquer tipo de acesso automóvel.

Fot. 7 - Estrada da Esculca. Travessia da ribeira do Vale Moleiro. Vista geral do corte provocadopela corrente no aterro em que assentava a estrada, bem como da vista para montante onde se

formou o regolfo.

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Fot. 8 - Pormenor do corte da estrada da Esculca (fot. do Prof. Doutor Xavier Viegas).

Fot. 9 - Pormenor do corte provocado na estrada da Esculca, visto de jusante. Notar a reduzidadimensão das manilhas testemunhada apenas por duas que resistiram ao ímpeto da corrente, uma

das quais está quase completamente enterrada. Todas as outras foram levadas para jusante.

A

0

10

20

30

40

50

60

70

1988 1989 1990OUT. NOV. DEZ. JAN. FEV. MAR. ABR. MAI. JUN. JUL. AGO. SET. OUT. NOV. DEZ. JAN. FEV. MAR. ABR. MAI. JUN.

mm

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Fig. 3 - Reconstituição provável dos acontecimentos que levaram ao corte da estrada Coja --Esculca em perspectiva (à esquerda) e em corte (à direita).

A - Situação inicial, normal antes do incêndio; B - Formação do regolfo, por as manilhas nãodarem vazão a todo caudal da ribeira; C - A ribeira galga a estrada, contribuindo para a sua

destruição; D - Estado do corte, antes do começo das obras de reconstrução.

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A camada de lama abandonada a montante da estrada, sobre os camposcultivados (fig 13), era constituída essencialmente por silte e argila que,nalguns locais, apresentava espessura superior a 20 cm (fig. 14). Este depósitoparecia possuir, a avaliar pela coloração acinzentada, uma importante fracçãoconstituída por borralha que, no entanto, as análises efectuadas nãopermitiram confirmar na totalidade.

O afluxo de água e de carga sólida transportadas pela ribeira, foramsuperiores ao dimensionamento das manilhas nela colocadas para o efeito peloque, não as podendo escoar na totalidade, levaram à formação de um regolfo amontante das mesmas. Segundo testemunhas locais a corrente chegou a galgara estrada (fig. 3), facilitando a sua destruição.

A constituição do regolfo fez diminuir a competência da corrente, porperda de declive e, consequentemente, de velocidade, conduzindo à deposiçãode parte substancial da carga transportada (fot. 10 e 11).

Fot. 11 - Rib.ª do Vale Moleiro. Pormenor dafotografia anterior. Neste ponto, a camada

ultrapassa 22 cm de espessura.

Fot. 10 - Rib.ª do Vale Moleiro. Vista parcial dosmateriais depositados na margem esquerda, a

montante da estrada de Coja para Esculca.

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Análise sedimentológica das amostras recolhidas na ribeira do ValeMoleiro

Como, de momento, não foi possível fazer uma análise quantitativacompleta dos materiais arrancados, procurámos identificá-los e verificar qualera a percentagem de resíduos vegetais carbonizados, de cinzas, existentesnesses sedimentos.

A tarefa que à partida parecia simples, acabou por se complicar, pois amatéria orgânica, inclusivamente a constituinte dos solos, foi quasecompletamente mineralizada pela combustão verificada durante o decorrer doincêndio, como se comprova com os resultados das análises realizadas(1).

A cor cinzenta das amostras que deixava antever uma elevada percentagemde resíduos de combustão, de cinzas, não pôde ser confirmada pela análiselaboratorial das amostras. As cinzas correspondem a matéria orgânica que semineralizou ao ser queimada e por se encontrarem mineralizadas não seconseguem distinguir, facilmente, dos outros minerais oriundos das rochas.

Pensou-se que a análise química poderia dar alguns esclarecimentos masgorou-nos as expectativas porquanto os valores obtidos, aproximadamente15% de matéria orgânia, ficaram muito abaixo dos esperados.

A identificação dos minerais componentes da fracção fina silto-argilosa,feita por submissão das amostras à difracção por raios X, também não veiotrazer grandes esclarecimentos a não ser a confirmação das nossas suposiçõesrelativamente à sua proveniência, atestando a sua origem em materiaisessencialmente xistosos.

Assim os difractogramas correspondentes às fracções obtidas do total daamostra (amostra tal e qual e amostra em suspensão) assinalam a presença demica (moscovite), clorite, quartzo e feldspato (fig. 4-A e B), enquanto que odifractograma relativo à fracção fina, inferior a 5µ, revela a presença de ilite,clorite e, possivelmente, caulinite (fig. 4 -C).

1 As análises laboratoriais foram efectuadas nas secções de Sedimentologia e de Química do Museu eLaboratório Mineralógico da Universidade de Coimbra.

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Variáveis explicativas das diferentes intensidades de erosão

Nem todos os materiais rochosos e nem todos os solos respondem sempredo mesmo modo quanso sujeitos à acção dos processos morfogenéticos.

Verificou-se que alguns dos efeitos erosivos são particularmentesignificativos nas áreas queimadas mais do que uma vez. Com efeito, observou--se que após o primeiro fogo, os pinheiros mantiveram os seus troncos e grandeparte dos ramos que reduziram o impacto directo das gotas da chuva. Poroutro lado, uma parte significativa das folhas não foi totalmente consumida

Lamentavelmente, os resultados destas análises não puderam comprovar aimportância da componente cinzas, existente nos sedimentos deixados pelacorrente da ribeira do Vale do Moleiro, mas continuamos convictos de que a suapercentagem é bem superior aos 15% identificados como matéria orgânica.

Quanto à importância relativa dos minerais presentes nas amostras verifica--se que os mais abundantes são as micas, as argilas e o quartzo e que os maisraros são os feldspatos (fig. 4).

Fig. 14 - Difractogramas das amostras analisadas aos raios X.A- Fracção do total da amostra (tal e qual); B- Fracção do total da amostra (em suspensão);

C- Fracção fina < 5µ.

Feldspato

FeldspatoMica

Quartzo+Mica

Clorite

Quartzo

CloriteMoscovite

Clorite

Moscovite

Clorite Clorite

Mica

Clorite

MicaCloriteMica

Quartzo

FeldspatoFeldspato

Clorite

QuartzoMica

Ilite

Clorite

CloriteIlite

Clorite

Ilite

Clorite

A B C

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Fot. 12 - Estrada Florestal da Gramaça. A fúria da corrente desconheceu a existência tanto doaqueduto (assinalado pelo muro de protecção) como da valeta (invisível à esquerda do aqueduto,por se encontrar completamente fossilizada com o material carreado da vertente). Preferiu seguira direito, atravessando a estrada e deixando à vista a rocha nua. O macadame foi destruido e sórestaram blocos e alguns calhaus de maior dimensão. Tanto a matriz fina como os calhaus maispequenos, incapazes de resistir, acabaram por ser levados. Na berma da estrada veem-se duaspedras colocadas horizontalmente, que serviam de degraus e permitiam o acesso à encosta, atravésde um caminho de pé posto que, certamente, terá contribuido para aumentar a concentração das

águas vindas da vertente e, por conseguinte, os efeitos erosivos.

pelo fogo. Estas, ao caírem, acabaram por permanecer sobre o solo, travando oarrastamento das partículas minerais e, deste modo, dificultaram a acçãoerosiva, acabando por atenuar os seus efeitos.

Quando se tratou de áreas queimadas pela segunda vez, num curto espaço detempo, verificou-se que as árvores não tiveram tempo para se desenvolverem ecomo, após o último incêndio, todos os arbustos ficam completamente reduzidosa cinzas, nada pode impedir a actuação das forças erosivas. Foi nestas circunstânciasque os diferentes processos morfogenéticos actuaram mais vigorosamente e foiquando os seus efeitos ficaram mais marcados na paisagem (fot. 12), especialmentequando os valores da precipitação, caída imediatamente após o incêndio, foramsuperiores aos valores normais para a época.

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Foi precisamente o que sucedeu após o incêndio de Arganil/Oliveira doHospital. A chuva, que contribui para a sua extinção, continuou a cair nos diasseguintes tendo-se registado 145,5 mm em Coimbra, nos oito dias posterioresà extinção, ou seja, em apenas oito dias cairam mais e 97,9 mm do que o valornormal para todo o mês de Setembro (1951-80). O mês de Outubrocontinuou com muita pluviosidade, 201,4 mm, registando-se mais 106,1 mmdo que o valor normal para o período considerado.

Em função destes quantitativos anormais de precipitação e da sua posteriormanutenção, associados à total destruição da vegetação, por grande parte daárea percorrida pelo incêndio já antes ter sido reduzida a cinzas, levou a queesta região fosse terrivelmente erosionada.

No momento em que finalizamos este trabalho, passado quase um anosobre o sinistro, a erosão das vertentes ainda continua a fazer-se sentir de modointenso, como se comprova através dos relatos da imprensa regional e de que sedestaca uma notícia do Diário de Coimbra do dia 6 de Julho de 1988,publicada na secção Relance pelas Beiras, sobre a freguesia de Pomares que,embora intitulada Trovoada causou prejuízos, mais tinha a ver com asconsequências do incêndio e que por isso transcrevemos:

“A freguesia de Pomares foi recentemente assolada por fortes trovoadas egrandes bátegas de chuva, o que destruiu grande parte das sementeiras, tendosido a freguesia de Sorgaçosa a mais atingida.

“Na povoação da Sorgaçosa para além da destuição das culturas, tambémalgumas casas particulares sofreram danos , devido à forte correnteza das águasque tudo arrastaram.

“Também ali uma camioneta de distribuição de cerveja e sumos ficoutotalmente rodeada de cascalho e pedras, com uma altura de cerca de ummetro, o que a impossibilitou de circular. Só depois da utilização de umamáquina da Câmara Municipal de Arganil foi possível tirar o veículo dasituação em que estava.

“ O Parque Infantil da Sorgaçosa, que se encontra em construção, também sofreualguns danos, tendo o mesmo acontecido à represa local e à Piscina de Pomares”.

“Nas povoações de Sobral Gordo, Espinho, Agroal, Sobral Magro, PortoSilvado e Vale do Torno também se registaram prejuízos. Os Bombeiros de

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Coja estiveram na povoação da Sorgaçosa onde prestram auxílio à população,nomeadamente de desobstrução de algumas residências”.

Esta notícia mostra que as aldeias afectadas directamente pelo incêndio quedestruiu a vegetação, comparadas com as restantes da freguesia de Pomares, foramaquelas que mais sofreram com os efeitos da erosão. Simultaneamente, vemconfirmar a importância do comportamento das duas variáveis consideradas,estado de destruição da vegetação e quantitativo de precipitação, na explicaçãodas diferentes intensidades de erosão, pelo que devem ser tidas sempre em conta nodesenvolvimento de estudos sobre a actuação dos processos erosivos.

Conclusão

Desde há alguns anos que temos vindo a acompanhar, no centro do país, osaspectos qualitativos dos efeitos dos incêndios florestais sobre a erosão dossolos e sobre a meteorização das rochas. Sentimos que a partir de agora énecessário conhecer com mais rigor esses efeitos pelo que é imperioso avançarpara uma fase de avaliação quantitativa das consequências dos incêndios florestaissobre a evolução das vertentes e em particular sobre a erosão dos solos.

Nesse sentido pensamos seleccionar algumas áreas na serra da Lousã, ondeiremos instalar parcelas-piloto experimentais, para servirem de termo decomparação com outras a instalar em áreas recentemente queimadas ou emreflorestação. Durante o Verão de 1988 seleccionar-se-ão áreas onde tenhamocorrido incêndios florestais e áreas onde se preparem terrenos para reflorestação afim de nelas se instalarem parcelas que permitam determinar as quantidades reais desolo perdido durante os primeiros anos após a ocorrência dos incêndios florestais.

Para isso, proceder-se-á à quantificação de diferentes aspectos que, directaou indirectamente, se relacionem com a erosão dos solos e de que salientamosa existência de vegetação, a precipitação, a escorrência superficial, ostransportes sólidos, a infiltração e as alterações produzidas na textura dos solos.

O cálculo de todos estes parâmetros passará, numa primeira fase, pelainstalação de parcelas experimentais no campo, onde se fará oacompanhamento e controlo da movimentação dos materiais e donde,

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31Risco de Erosão após Incêndios Florestais

periodicamente, se extrairão amostras. Depois, no laboratório, proceder-se-áao tratamento e à análise sedimentológica desses materiais. Estamos seguros deque os resultados a obter irão confirmar a necessidade de se proseguir comestudos mais detalhados que permitam conhecer, em termo de erosão dossolos, as verdadeiras consequências dos incêndios florestais.

Agradecimento

Foram muitos os apoios que tivémos e que permitiram a realização desteestudo.

Na impossibilidade de referir todos quantos para ele contribuíram, a todosqueremos agradecer e em especial:

Ao Prof. Doutor Fernando Rebelo que, na sua qualidade de especialista emprocessos erosivos actuais, leu o texto e o enriqueceu com os seus comentáriospertinentes.

Ao Prof. Doutor Xavier Viegas que nos informou, em primeira mão, sobreos efeitos da erosão na ribeira do Vale Moleiro e que sempre nos apoiou eencorajou na realização deste estudo.

Ao Prof. Doutor A. Ferreira Soares, Director do Laboratório deSedimentologia, pela cedência do Laboratório para tratamento das amostras,ao Dr. Manuel Rodrigues Lapa, pela análise dos sedimentos aos raios X e aoDr. Fernando Gomes da Silva, pela análise química das amostras.

Ao sr. Engº. Lino Pires, Chefe da Circunscrição Florestal de Coimbra e ao sr.Engº. Pinheiro Gomes, Administrador Florestal de Arganil, pelas facilidadesconcedidas na obtenção de elementos sobre a Administração Florestal de Arganil.

Ao sr. Major Ribeiro de Almeida, Inspector Regional do Centro do ServiçoNacional de Bombeiros, pela cedência da viatura que nos permitiu deslocar aocampo e ao seu motorista Jorge Duarte que, com segurança e perícia nosconduziu por estradas e caminhos florestais.

Ao Comandante Serra, de Oliveira do Hospital, que nos acompanhou notereno, ao Comandante Serra, de Coja e ao Comandante Ventura, de Arganil,as preciosas informações que nos facultaram.

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32 Luciano Lourenço

A Fernando Coroado que, a partir dos nossos esboços de campo e defotografias, desenhou os esquemas das figuras 6 e 12, bem como a MargaridaBorges que processou o texto.

A todos os outros que, embora não mencionados, de algum modocontribuiram para a publicação deste trabalho.

Bibliografia

DIÁRIO DE COIMBRA, 6 de Julho de 1988;DIAZ-FIERROS, F. et al. (1982) - “Efectos erosivos de los incendios forestales en

suelos de Galicia”, Anales de Edafologia y Agrobiologia, LXI, 3-4, p. 627-639;DIAZ-FIERROS, F. et al. (1984) - “Nuevos datos sobre la influencia de los incendios

forestales en la erosión del suelo de Galicia”, Baur., XII, p. 129-140;DIAZ-FIERROS, F. et al. (1984) - “Valoración de los diferentes metodos empleados

en Galicia para la medida de la erósion de los suelos, con especial referenciaa los suelos afectados por incendios forestales”, Cuadernos de InvestigácionGeografica,Tomo X, fasc. 1 y 2, Logroño, p. 29-41;

LENCASTRE, A. e FRANCO, F. M. (1984) - Lições de Hidrologia, UniversidadeNova de Lisboa, Lisboa;

MINISTERIOS DE AGRICULTURA PESCA y ALIMENTACION (1982) - Paisajes erosivosen el Sureste Español; Ensayo de metodologia para el estudio de su cualificacióny cuantificación, Projecto LUCDEME, Monografia 26, ICONA, Madrid;

VEGA, J. A. et al. (1982) - “Erosión en montes incendiados. Un caso de estudio”, IJornadas Técnicas Prevención de Incendios Forestales, Lourizán (Pontevedra);

VEGA, J. A. et al. (1982) - “Erosión después de un incendio forestal, Memoria Internadel Departamento Forestal de Zonas Húmedas de Lourizán, Crida 01, INIA;

XAVIER VIEGAS, D. et al. (1988) - Análise do incêndio florestal ocorrido emArganil/Oliveira do Hospital, de 13 a 20 de Setembro, Centro deMecânica dos Fluidos, Coimbra;

XAVIER VIEGAS, D. (1988) - “Soil erosion following forest fires”, Comunicaçãoapresentada à Conference on European Forest and the Environment,Atenas, 3 a 5 de Junho de 1988;