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Evidência de uma Mudança Abrupta no Clima de Ondas da Costa Leste da Bahia durante o Periodo Medieval Evidence of an Abrupt Change in Wave Climate along the Coast of Bahia, during the Medieval Period José Maria Landim Dominguez Laboratório de Estudos Costeiros - CPGG-UFBA [email protected] Abilio Carlos da Silva Pinto Bittencourt Laboratório de Estudos Costeiros - CPGG-UFBA [email protected] INTRODUÇÃO O Holoceno tardio foi caracterizado por flutuações no clima que incluem o Periodo Medieval Quente e a Pequena Idade do Gelo. Registros climáticos (“proxies”) de diferentes partes do globo apontam para mudanças significativas neste intervalo de tempo. Existe entretanto ainda uma relativa escassez de informações para este periodo, principalmente no Brasil. O principal tipo de “proxy” utilizado nestas reconstruções paleoclimáticas são testemunhos coletados em lagos no continente ou nos oceanos. No estado da Bahia praticamente inexistem lagos ou lagoas suficientemente profundos e situados em uma condição fisiográfica adequada que permita a acumulação de sedimentos ou pólen que de uma maneira ou de outra, possam ser utilizados para a reconstrução de clima pretéritos, principalmente no periodo medieval. Informações sobre este periodo são entretanto bastante importantes para uma compreensão adequada dos efeitos do aquecimento global previsto para as próximas décadas em decorrência do aumento de gases estufa pelas atividades humanas. Neste trabalho apresentamos evidências de uma significativa mudança no clima de ondas na costa leste do Brasil – especificamente na costa da Bahia, durante o periodo medieval, utilizando como “proxy” a orientação dos cordões litorâneos. CENÁRIO REGIONAL A costa leste do Brasil se caracteriza pela presença de extensas planícies de cordões litorâneos construídas durante os últimos 5000 anos como resultado de uma regressão forçada decorrente do abaixamento de 3-4 metros no nível relativo do mar e do suprimento de sedimentos pelos principais rios que deságuam na região. Nestas planícies ocorrem extensos conjuntos de cordões litorâneos que registram os padrões de dispersão de sedimentos ao longo da linha de costa durante o Holoceno. Nosso foco de atenção principal dirige-se para três destas planícies: i) Caravelas, ii) Jequitinhonha e iii) Itapicuru (Fig. 1). A planície de Caravelas apesar de apresentar uma área de 800 km 2 , não apresenta qualquer relação com um curso fluvial, tendo sido construída a partir de sedimentos trazidos pela deriva litorânea de fontes situadas a norte e a sul (Andrade et al. 2003). A planície do Jequitinhonha apresenta uma área ligeiramente maior em comparação àquela de Caravelas e foi construída em associação ao rio Jequitinhonha, o maior rio a desaguar na costa da Bahia (Dominguez et al 2006). A planície de Conde está associada ao rio Itapicuru, de tamanho reduzido. Esta é a menor das três planícies estudadas. A circulação atmosférica no trecho estudado é controlada pelos ventos alísios e pelo avanço de frentes-frias durante o outono-inverno. Na primavera-verão os alísios sopram predominantemente de E-NE, com tendência a um aumento na freqüência de ventos de NE no sentido sul. No outono e inverno os ventos sopram de SSE, reforçados pela passagem de frentes-frias. Os sistemas de onda que alcançam a linha de costa seguem aproximadamente estas mesmas direções. Na região da planície do Jequitinhonha entre outubro e fevereiro predominam ondas de E-NE favorecendo um transporte para sul, enquanto entre os meses de abril e agosto predominam ondas de SSE com transporte de sedimentos direcionado para norte. Esta inversão dos alísios está relacionada a uma maior penetração da ITCZ para sul durante o verão.

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Evidência de uma Mudança Abrupta no Clima de Ondas da Costa Leste da Bahia durante o Periodo Medieval

Evidence of an Abrupt Change in Wave Climate along the Coast of Bahia, during the Medieval Period

José Maria Landim Dominguez Laboratório de Estudos Costeiros - CPGG-UFBA [email protected]

Abilio Carlos da Silva Pinto Bittencourt Laboratório de Estudos Costeiros - CPGG-UFBA [email protected]

INTRODUÇÃO O Holoceno tardio foi caracterizado por flutuações no clima que incluem o Periodo Medieval Quente e a Pequena Idade do Gelo. Registros climáticos (“proxies”) de diferentes partes do globo apontam para mudanças significativas neste intervalo de tempo. Existe entretanto ainda uma relativa escassez de informações para este periodo, principalmente no Brasil. O principal tipo de “proxy” utilizado nestas reconstruções paleoclimáticas são testemunhos coletados em lagos no continente ou nos oceanos. No estado da Bahia praticamente inexistem lagos ou lagoas suficientemente profundos e situados em uma condição fisiográfica adequada que permita a acumulação de sedimentos ou pólen que de uma maneira ou de outra, possam ser utilizados para a reconstrução de clima pretéritos, principalmente no periodo medieval. Informações sobre este periodo são entretanto bastante importantes para uma compreensão adequada dos efeitos do aquecimento global previsto para as próximas décadas em decorrência do aumento de gases estufa pelas atividades humanas. Neste trabalho apresentamos evidências de uma significativa mudança no clima de ondas na costa leste do Brasil – especificamente na costa da Bahia, durante o periodo medieval, utilizando como “proxy” a orientação dos cordões litorâneos. CENÁRIO REGIONAL A costa leste do Brasil se caracteriza pela presença de extensas planícies de cordões litorâneos construídas durante os últimos 5000 anos como resultado de uma regressão forçada decorrente do abaixamento de 3-4 metros no nível relativo do mar e do suprimento de sedimentos pelos principais rios que deságuam na região. Nestas planícies ocorrem extensos conjuntos de cordões litorâneos que registram os padrões de dispersão de sedimentos ao longo da linha de costa durante o Holoceno. Nosso foco de atenção principal dirige-se para três destas planícies: i) Caravelas, ii) Jequitinhonha e iii) Itapicuru (Fig. 1). A planície de Caravelas apesar de apresentar uma área de 800 km2, não apresenta qualquer relação com um curso fluvial, tendo sido construída a partir de sedimentos trazidos pela deriva litorânea de fontes situadas a norte e a sul (Andrade et al. 2003). A planície do Jequitinhonha apresenta uma área ligeiramente maior em comparação àquela de Caravelas e foi construída em associação ao rio Jequitinhonha, o maior rio a desaguar na costa da Bahia (Dominguez et al 2006). A planície de Conde está associada ao rio Itapicuru, de tamanho reduzido. Esta é a menor das três planícies estudadas. A circulação atmosférica no trecho estudado é controlada pelos ventos alísios e pelo avanço de frentes-frias durante o outono-inverno. Na primavera-verão os alísios sopram predominantemente de E-NE, com tendência a um aumento na freqüência de ventos de NE no sentido sul. No outono e inverno os ventos sopram de SSE, reforçados pela passagem de frentes-frias. Os sistemas de onda que alcançam a linha de costa seguem aproximadamente estas mesmas direções. Na região da planície do Jequitinhonha entre outubro e fevereiro predominam ondas de E-NE favorecendo um transporte para sul, enquanto entre os meses de abril e agosto predominam ondas de SSE com transporte de sedimentos direcionado para norte. Esta inversão dos alísios está relacionada a uma maior penetração da ITCZ para sul durante o verão.

INTENSIFICAÇÃO DO TRANSPORTE LITORÂNEO PARA SUL DURANTE O PERIODO MEDIEVAL Andrade et al (2003) apresentaram uma detalhada reconstrução da evolução holocênica da planície costeira de Caravelas durante o Holoceno. No Estágio VI do seu esquena evolutivo estes autores chamam a atenção para uma intensificação da deriva litorânea direcionada para sul que terminou por provocar um deslocamento também neste sentido do canal de Caravelas. Tal intensificação seria devido a um aumento na frequência ou na altura das ondas de NE nesta região. Andrade et al (2003) dataram este evento como tendo ocorrido entre 1070 e 1290 cal anos AP. Dominguez et al (2006) apresentaram uma reconstrução detalhada da porção sul da planície do rio Jequitinhonha e concluiram pela existência de uma fase de intensificação na deriva litorânea para sul, que teria começado por volta de 1100 cal anos AP e se prolongado até aproximadamente 300 anos AP. Esquivel (2006), em mapeamento detalhado da planície de Conde, mostrou a existência de uma série de pontais arenosos direcionados pela sudoeste, direção esta oposta à direção dominante de dispersão na região. A presença destes pontais indica uma fase de deriva litorânea importante direcionada para sudoeste, o que neste caso implica em uma intensificação da ondas de E-NE. Recentemente, datamos esta paleolinha de costa obtendo uma idade em torno de 1210 cal anos AP. Ainda no estado da Bahia existe uma quarta planície que apresenta evidências de um episódio sub-recente de intensificação do transporte litorâneo para sul. Trata-se da planície do Pratigi (Fig. 1). Não existem entretanto datações para este episódio. Em relação ao restante da Costa Leste do Brasil Martin et al (1997) ao recontruirem a história evolutiva das planícies do rio Doce e Paraíba do Sul (Fig. 1), chamaram a atenção para episódios sub-recentes de transporte dominante de sedimentos para sul. Em relação ao rio Paraíba do Sul, uma idade tentativa de 1230 cal anos AP foi atribuída a este episódio. Para planície do rio Doce, nenhuma idade foi fornecida. SIGNIFICADO DA INTENSIFICAÇÃO DO TRANSPORTE LITORÂNEO PARA SUL Haug et al (2001) mostraram que durante o Holoceno a ITCZ exibiu um progressivo deslocamento para sul, alcançando sua posição mais austral na Pequena Idade do Gelo. Modelos numéricos e dados de “proxies” também mostram, durante o Holoceno, um aumento progressivo no grau de insolação do Hemisfério Sul e no aumento da frequencia e intensidade do El Nino. Moy et al (2002) sugerem que a frequência destes eventos ENSO alcançaram um pico por volta de 1200 cal anos AP decrescendo então até os dias atuais. O periodo que se estende de 1000 a 1200 cal anos AP é de acordo com os dados apresentados em Haug et al (2001), um periodo de migração mais acentuada para sul da ITCZ. Estas mudanças estão associadas a uma diminuição da temperatura na Groelândia no mesmo período, contribuindo para forçar uma migração da ITCZ para sul. Alguns autores atribuem estas mudanças a uma diminuição da intensidade da circulação meridional do Atlântico Norte. A combinação de uma migração para sul da ITCZ, com uma intensificação do ENSO, fornece deste modo, condições favoráveis para uma intensificação do transporte para sul ao longo do trecho de linha de costa estudado. Tais mudanças favoreceriam um aumento na frequencia/intensidade dos ventos e ondas de E-NE. Um aspecto interessante a se chamar atenção é o fato de que na curva do nível relativo do mar de Salvador (Martin et al 2003), ocorre uma intrigante aglomeração de idades em torno de 1200 cal anos AP o que sugere que de alguma maneira a mudança no regime de ondas aqui documentada pode também estar relacionada a uma pequena subida do nível relativo do mar. Cohen et al (2005) descrevem uma subida de cerca de 1m na costa do Pará para este periodo. Esta descoberta mostra que as mudanças climáticas no Holoceno não afetaram apenas a precipitação e a temperatura, mas exerceram uma importante influência nos padrões de transporte de sedimentos ao longo da linha de costa. Deste modo, dentro do cenário de aquecimento global para as póximas décadas, existe uma perspectiva real de mudanças abruptas no transporte litorâneo de sedimentos ao longo da linha de costa, com repercussões importantes para as atividades humanas. REFERÊNCIAS Andrade ACS, Dominguez JML, Martin L, Bittencourt ACSP (2003) Quaternary evolution of the Caravelas strandplain – Southern Bahia State – Brazil Anais da Academia Brasileira de Ciências 75: 1-26.

Cohen MCL, Souza Filho PW, Lara RL, Behling H, Angulo R. (2005) A model of Holocene mangrove development and relative sea-level changes on the Bragança Peninsula (northern Brazil). Wetlands Ecology and Management 13: 433-443. Dominguez JML, Martin L, Bittencourt ACSP (2006) Climate Change and Episodes of Severe Erosion at the Jequitinhonha Strandplain SE Bahia, Brazil. Journal of Coastal Research SI 39: 1894 – 1897. Esquivel MS (2006) O Quaternário Costeiro do Município de Conde: implicações para a gestão ambiental. Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-Graduação em Geologia, UFBA, 103p. Haug GH, Hughen KA, Sigman DM, Peterson LC, Röhl U (2001) Southward Migration of the Intertropical Zone Through the Holocene. Science 293: 1304-1308. Martin L, Suguio K, Dominguez JML, Flexor J-M (1997) Geologia do Quaternário Costeiro do Litoral Norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. CPRM, FAPESP, Belo Horizonte, 112p. Martin L, Dominguez JML, Bittencourt, ACSP (2003) Fluctuating Holocene sea levels is eastern and southeastern Brazil: evidence from a multiple fossil and geometric indicators. Journal of Coastal Research 19: 101–124. Moy CM, Seltzer GO, Rodbell DT, Anderson DM (2002) Variability of El Niño/Southern Oscillation activity at millennial timescales during the Holocene epoch. Nature 420: 162-165.

Figura 1 – Lacalização das areas citadas no texto