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BÍBLIA E HERMENÊUTICAS JUVENIS EVANGELHO DE JOÃO – FUNDAMENTALISMOS E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO Entrando Dentro dos Conflitos Joaninos

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BÍBLIA E HERMENÊUTICAS JUVENIS

EVANGELHO DE JOÃO – FUNDAMENTALISMOS E DIÁLOGO

INTER-RELIGIOSO

Entrando Dentro dos Conflitos Joaninos

Bíblia e Hermenêuticas Juvenis – Módulo 5 – Etapa 2 1

Módulo 5 – Etapa 2

Como percebemos nos encontros anteriores, o evangelho tem uma história bem interessante e reveladora. Ou seja, não havia uma única religião e muito menos um único cristianismo nos primeiros séculos. Uns achavam que Jesus fosse um ser celestial, outros não! Alguns pensavam a eucaristia como o comer o próprio corpo de cristo, outros não! Uns acreditavam na encarnação do Logos1, outros não!

Por isso, encontramos dentro do evangelho diversos grupos que fizeram parte da comunidade, como os que estavam em conflito com os joaninos. Sem dúvida, a relação com os judeus não era muito boa. Por causa da cristologia, alguns da comunidade do evangelho de João foram até expulsos da sinagoga. Vejamos Jo 16,2: “Eles vos expulsarão das sinagogas; mas vem a hora em que todo o que vos matar julgará com isso tributar culto a Deus”. Este texto está em sintonia com outros que mostram uma realidade que não reflete o tempo de Jesus, mas sim da comunidade joanina posterior que era alvo da expulsão das sinagogas (Jo 9,22; 12,42). Para uma exposição mais detalhada desta estratégia de redação para colocar no tempo de Jesus o que a comunidade vivia, leia o artigo de Maria Aparecida de Andrade Almeida.

Por isso, seria muito interessante observarmos quais são estes grupos e pessoas com as quais o evangelho está em conflito para pensarmos uma ética

1 É o termo grego para “palavra”. Uma designação no evangelho de João para Jesus.

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da paz, e a partir de suas próprias palavras pensarmos a prioridade do amor e tolerância.

O evangelho de João, que tem as lembranças do discípulo amado (Jo 20,24), mostra o conflito da comunidade com três grupos, os quais não aceitavam Jesus como a comunidade do discípulo amado aceitava, e até perseguia-os. Claro que temos alguns exageros, porque só acessamos a “história” com o olhar de quem conta. Os três grupos que encontramos no evangelho são: mundo, judeus e os adeptos de João Batista.

1. Mundo: mesmo que tenhamos um texto muito inclusivo como Jo 3,16, o qual diz que Deus amou o mundo, logo vemos nas outras linhas que este termo não se refere aos que não aceitaram a luz. Assim, vemos a vinda de Jesus é um julgamento do mundo (9,39;12,31), que é habitado pelos filhos das trevas (12,35-36), pois é incompatível com Jesus (16,20;17,14.16) e com seu espírito (14,17; 16,8-11). Ou seja, o mundo odeia Jesus e os que creem nele (7,7; 15,18-19;16,20). A visão a respeito do mundo é tão dura no evangelho que Jesus recusa-se de orar por ele (17,9), pelo contrário ele vence o mundo (16,33). Esta expressão alcança os judeus, mas é mais ampla. Este era o conceito para qualquer não crente. À luz disso, quando se fala de amor dos seus (13,1), permanecer no seu amor (15,9) ou até mesmo de estarem unidos e sobre o mandamento do amor, fala-se do amor entre a comunidade (Jo 15,12). Parece-nos que esta opção exclusivista de amor precisa ser alargada por nós, numa crítica e séria releitura do tema ágape (amor). Porque onde acaba o amor, sem reservas e

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limites, inicia-se a violência, o abuso de poder e a negação da Vida.

2. Judeus: antes da entrada dos gentios, no período pré-escrita do evangelho, a comunidade era predominantemente formada por judeus. O cristianismo joanino é um tipo de judaísmo. Por isso, os conflitos com “eles”, os “judeus”, especialmente nos capítulos 5-10 e 18-19, devem ser lidos à luz dos conflito sobre a messianidade de Jesus, sua origem, suas pretensões, sua conduta em relação ao sábado e, a mais grave, Jesus se apresentar como “Um com o Pai” (8,52; 10,30.31). Os “Judeus” citados por João, tanto os do tempo de Jesus, como os da época da comunidade, não são distinguidos, não são todos eles, mas sim os que são contrários aos fiéis joaninos. Numa identificação direta, eles seriam aqueles ligados ao templo no período de Jesus (1,19; 2,18; 5,10; 5,15; 7,13; 8,22; 8,59; 9,40-41), como os descendentes dos fariseus, ligados às sinagogas no período depois da queda do templo. A briga com estes era tão acirrada, e o ressentimento por causa da expulsão das sinagogas era tão forte, que no evangelho refere-se a eles usando as expressões “a vossa lei” (8,17; 10,34) e “vossos pais” (6,49).

3. Seguidores de João Batista: no evangelho de João ficamos sabendo que os primeiros seguidores de Jesus saíram de dentro dos discípulos do Batista (1, 35-37). No entanto, alguns dos discípulos do Batista não seguiram a Jesus (3,22-26). Percebem-se no evangelho algumas atitudes cautelosas com João Batista (1,19-24; 3,30), para mostrar que Jesus

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seria superior e único capaz de fazer milagres (10,41). É provável, como pensa R. Brown e outros, que a comunidade joanina tivesse desentendimentos com os seguidores do Batista, os não cristãos. No entanto, os membros da comunidade do discípulo amado acreditavam na possibilidade de sua conversão. Uma perspectiva no mínimo arrogante!

Como percebemos, os irmãos que compuseram a comunidade refletida no evangelho tinham posições, sejam com razão ou não, rígidas em relação aos que não faziam parte de sua comunidade. Se as pesquisas estiverem certas, com os batistas eles ainda acreditavam numa possível reconciliação, mas a partir de uma aceitação de suas posições. Por isso, o evangelho precisa ser lido com certo cuidado, pois acabamos reproduzindo o mesmo exclusivismo.

Os grupos que acreditavam em Jesus, mas não como “deveriam”

Como dissemos, o cristianismo refletido no evangelho é muito plural e não tem uma única linha de pensamentos. Por isso, costuma-se falar em cristianismos. No próprio evangelho, encontramos resquícios de grupos cristãos que estavam ao lado dos cristãos Joaninos, que eram vistos como falsos cristãos; isso aos olhos da comunidade que escreveu o evangelho. R. Brown o divide em três grupos: os criptocristãos, os cristãos judeus e os cristãos da igreja apostólica.

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a. Criptocristãos: Como foi dito, os judeus que confessavam Jesus como filho de Deus, igual ao Pai, ou seja, com uma alta cristologia, eram expulsos da sinagoga. No entanto, alguns, como diz Jo 12,42-43, por medo de serem expulsos, não confessavam sua fé publicamente, mesmo que se sentissem atraídos por Jesus. A própria história do cego (9,22-23.33-38) mostra a radicalidade e as consequências de confessar Jesus como o Cristo e Deus. Para o evangelista, “estes queriam mais a glória dos homens do que de Deus”. Estes que ficaram são os chamados pela pesquisa de criptocristãos.

b. Cristãos judeus: estes são judeus que até saíram das sinagogas, aceitaram publicamente a Jesus, mas tinham uma fé inadequada aos olhos da comunidade. Eram herdeiros do cristianismo de Jerusalém liderado por Tiago, irmão de Jesus. Eles teriam, para o evangelho, uma baixa cristologia, que se baseava em sinais miraculosos e não aceitavam a divindade de Jesus. Talvez esses sejam refletidos em Jo 6, 60-66, no qual fala-se em discípulos que achavam as palavras de Jesus muito difíceis, especificamente as pronunciadas nas sinagogas, e tinham uma crise com a questão da eucaristia da comunidade e sobre a ideia de Jesus ser o pão da vida (6,54-59). Ou seja, eram convertidos, mas não tinham as mesmas ideias teológicas da comunidade.

c. Cristãos da igreja apostólica: inteiramente separados das sinagogas, comunidades mistas de judeus e gentios, se consideravam herdeiros do Cristianismo de Pedro e dos doze (6,67-68; 13,23-

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26). A cristologia deles era moderadamente elevada. Confessavam que Jesus era messias nascido em Belém e filho de Deus desde concepção, mas sem uma visão clara de uma vinda do alto em termos de pré-existência antes da criação. Mesmo com algumas divergências, o cristianismo joanino, assim com os seguidores dos batistas, acreditava numa unidade com eles.

A intolerância nos separa!

A comunidade joanina era cercada por diversos grupos, com posturas diferentes, ideias não convergentes, pressupostos aparentemente incompatíveis e teologias não iguais. Era um mundo plural. No entanto, sua postura rígida em relação aos outros precisa ser duramente corrigida, pois no conflito não se resolve nada; pelo contrário, separa-nos!

Não podemos reproduzir anúncios que negam legitimidade ao outro só porque não se adéqua às nossas ideias. O amor, que aparece no Evangelho de João, precisa ser expandido e aplicado a todas as relações. Ser diferente não é ser inimigo/a, mas companheiro/a para novas descobertas. Conhecemo-nos no encontro com o/a outro/a, e neste encontro percebemos muito da gente no/a outro/a. E, assim, percebemos como temos coisas que mais nos ajuntam do que o contrário. A própria maneira como o evangelho de João falava de Jesus estava cheia de coisas da tradição judaica (a própria comunidade era, também, judaica!), que era vivida por aqueles com os quais, paradoxalmente, tinham seus maiores embates.

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Demonizar, como também só aceitar o diferente se ele se tornar igual, como queria e fazia a tradição joanina com os judeus e os seguidores de João Batista, é um mal que devemos erradicar das nossas ações e pretensões. Vivemos num Brasil plural. E nesta pluralidade encontra-se a nossa grandeza. Os cristianismo, as religiões orientais, afrodescendentes etc. tem o seu lugar e participação para promoção da vida, o que é desejo do evangelho e nos une. Por isso, toda intolerância é burra e limitadora.

Vamos fazer algumas reflexões agora (pessoalmente)...

Leia Jo 3,1-21!

Faça o seguinte:

- Escreva dez coisas que são entendidas como boas para o planeta e para as pessoas que vivem nele.

- Depois, faça uma pesquisa sobre grupos religiosos diferentes daquele que você faz parte. A partir disso, analise se algumas dessas dez coisas estão entre as preocupações, seja no discurso ou nas práticas, dos grupos religiosos sobre os quais pesquisou.

- Se Deus amou o mundo (e o Espírito revela isso), à luz da pesquisa feita há manifestações de amor e práticas de verdade e justiça além do grupo do qual faço parte? Posso ver neles, também, nascidos do Espírito?

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O Prólogo Joanino (Jo 1.1-18)

Já vimos como a comunidade joanina formou-se como resultado de uma grande diversidade de grupos, com interesses e visões de mundo bem diferentes uns dos outros. Na verdade, essa é uma característica das comunidades cristãs primitivas. Não havia univocidade2 no pensamento a respeito da fé, da igreja ou mesmo sobre Jesus Cristo. Havia, portanto, diferentes teologias coexistindo entre essas comunidades. Essa situação trouxe, sem dúvidas, desafios complexos aos cristãos desse período. Sempre era preciso discernir a voz do Espírito. Contudo, mesmo nessa diversidade teológica, havia traços comuns e possibilidade de diálogo. Na verdade, apesar dos conflitos que certamente existiam, as comunidades cristãs primitivas praticavam uma espécie de ecumenismo3, pelo menos como abertura para o convívio mútuo.

Nesse ponto, voltaremos nosso olhar para o Prólogo joanino, isto é, a passagem presente no texto de João 1.1-18. Nosso objetivo é perceber como o prólogo oferece uma chave de leitura para todo o evangelho, em especial no que diz respeito a uma contribuição para a paz e uma ação contra a intolerância.

A importância do prólogo joanino pode ser ressaltada de várias maneiras. Pode-se, por exemplo, perceber que o seu início é idêntico ao início do livro de

2 Abordagem que identifica um discurso com o real, de forma que todo outro discurso é invariavelmente

tido como errado e herético.

3 É o esforço e movimento das Igrejas Cristãs por unidade visível a partir da pessoa de Jesus Cristo. Como

no diálogo inter-religioso, não é a negação das particularidades, mas a aproximação para promoção e

expansão do reino de Deus. Alguns falam em macro ecumenismo para referir-se ao que chamamos aqui de

diálogo inter-religioso. Outros, ainda, para falarem da aproximação das religiões e de todas as pessoas usam

a expressão “ecumenismo”, pois ela tem origem no termo grego que significa “toda terra habitada”.

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Gênesis na Septuaginta (LXX)4. Ambos os textos – Jo 1.1 e Gn 1.1 – iniciam com a expressão “em princípio”. Assim, enquanto no Antigo Testamento está dito “Em princípio, criou Deus o céu e a terra”, no evangelho de João afirma-se que “em princípio era o Logos” e que “todas as coisas foram feitas por intermédio dele”. Dessa forma, “um novo Gênesis é o que aqui se nos apresenta, porém, à luz do mediador da revelação.”5. Aliás, parece seguro afirmar que a finalidade dessa passagem joanina é afirmar a preexistência do Cristo que se encarna.

Porém, o termo Lógos não é uma invenção cristã. Já numa corrente filosófica denominada estoicismo6, o Lógos era compreendido como uma espécie de lei universal, presente na razão humana, que regia todo o universo. O Lógos era entendido, portanto, como o poder divino, impessoal, presente em toda a realidade da criação. Mas é preciso deixar claro que essa ideia extraída da filosofia é bastante diferente da concepção de Lógos proposta pelo evangelho joanino. Evangelho e filosofia compartilham o termo, mas com significados muito distintos. Além disso, o evangelho joanino recebeu influências claras do pensamento judaico a respeito da Palavra ou Sabedoria de Deus personificada (cf., por exemplo, Pv 1.20-30; 8.12-31). Para o evangelho, Lógos é uma Pessoa que se encarna, assume a natureza humana, constrói sua morada entre homens e mulheres que, ao receberem-no, são feitos filhos de Deus (cf. Jo 1.12). Lógos, na visão de João, é Jesus de Nazaré, revelação definitiva de Deus ao mundo. Não é 4 Tradução do Antigo Testamento para o grego, escrita por volta do século II a.C.

5 CULLMANN, Oscar, Cristologia do Novo Testamento, p. 329

6 É uma doutrina filosófica comum na antiga Grécia e presente no período romana, a qual propõe viver de

acordo com a lei racional da natureza e aconselha ter uma atitude indiferença em relação a tudo que é

externo ao seu redor.

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tão fácil, portanto, identificar o Lógos do evangelho com o desenvolvido pela filosofia. Talvez o mais correto seja dizer que existem certas relações entre um e outro termo e que o evangelho sofreu influências de diferentes tradições (pagãs, judaicas etc.) na elaboração de sua teologia, e que, dentre estas, as influências do próprio judaísmo foram as mais significativas.

Mais importante, porém, é ressaltar que, ao falar da Palavra (isto é, do Lógos), João tem em mente o próprio Jesus. Isso porque, na perspectiva não só deste prólogo mas de todo o evangelho joanino, a Palavra de Deus é Jesus. Ele não só traz a revelação divina, mas Ele mesmo é a revelação de Deus aos seres humanos. A Palavra se fez carne, cheia de graça e de verdade. Ao mesmo tempo, Jesus afirma acerca de si mesmo: “Eu sou a verdade.” (cf. Jo 14.6). A verdade encarnada é, portanto, Jesus. Essa verdade, esse Lógos revelado ao mundo, é percebido pela experiência comunicada pela comunidade; afinal, a Palavra se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.” (Jo 1.14), e esta experiência é comunicada a todos que constituem a comunidade a fim de que haja comunhão uns com os outros e com o Pai e o Filho (Cf. 1 Jo 1.3). Aliás, manter essa comunhão é o que gera alegria na vida (cf. 1 Jo 1.4).

O Lógos que se encarna, isto é, que assume a natureza humana, constitui, portanto, a face de Deus que é revelada ao ser humano. Uma vez que toda experiência religiosa é uma experiência do Mistério, que é Deus, então é importante refletir sobre como e se a

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encarnação do Filho – sua kênosis7– tem algo a dizer ao diálogo inter-religioso. Isso é o que veremos a seguir.

Para refletir um pouco:

1. Você saberia diferenciar unidade de uniformidade? São a mesma coisa?

2. A partir do que você já leu até aqui: como é possível falar de Jesus como “revelação definitiva de Deus ao mundo” num ambiente cada vez mais plural e privatizado (no qual cada um cuida da sua vida)?

3. Como vimos, a experiência de Deus vivenciada pela comunidade joanina deveria ser partilhada (cf. 1 Jo 1.1-4). A partir da figura a seguir, reflita sobre os efeitos do individualismo na vivência comunitária da fé.

Lógos como graça e verdade: a kênosis divina

Uma possível abordagem do tema do diálogo e

7 Palavra grega que significa esvaziamento presente em Fl 2, 7, no qual Jesus e visto como aquele que se

esvazia de sua glória para torna-se servo e seguir o caminho da cruz. Para a teologia significaria uma postura

humilde diante das suas afirmações de verdade e postura diante das outras confissões.

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intolerância a partir do prólogo joanino pode ser pautada pela combinação destas duas palavras – graça e verdade, conforme usadas em conjunto em Jo 1.14 – à luz da ideia da kênosis divina. Quando falamos em kênosis, queremos nos referir ao esvaziamento que o Lógos experimenta ao encarnar. Tratando do tema, o apóstolo Paulo afirma que Cristo Jesus, “subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.” (Fp 2.6-8). Dito de outra maneira, a encarnação do Filho é um rebaixamento, isto é, um esvaziamento de sua majestade. O Lógos encarnado esvaziou-se da manifestação de sua divindade.

Mas, esvaziou-se para quê? Através da leitura de todo o evangelho joanino, esta resposta pode ser a seguinte: fundamentalmente, o Filho se encarna (o Lógos se faz carne) para relacionar-se com homens e mulheres, e, ao fazer isso, tornar cristalino as suas escolhas pessoais de aceitação ou rejeição desta revelação de Deus e de sua salvação. Ao encarnar, Jesus revela a vida eterna de Deus aos seres humanos, e os discípulos o reconhecem: “tu tens as palavras da vida eterna”, diz Pedro (Jo 6.68). Como disse, certa vez, Rudolf Bultmann, “As pessoas não conhecem a Deus; conhecer a Deus não significa ter pensamentos (ainda que corretos) a seu respeito; antes, conhecê-lo significa vê-lo como realmente manifesto, isto é, reconhecê-lo como Criador, deixar-se determinar por Ele.”. Para o evangelho joanino, esta manifestação de Deus ocorre

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com Jesus. Assim, Jesus é o relato de Deus na história humana. Ou, como dissemos, é a face de Deus voltada ao ser humano. Diante desta revelação que questiona o mundo em seu modo de ser, apegar-se a este último constitui pecado; é permanecer nas trevas, negando a luz que vem por meio do Lógos de Deus (cf. Jo 3.16-21). Mas e o que tudo isso tem a ver com diálogo inter-religioso?

Ora, se o caminho do Cristo encarnado é o do esvaziamento, da fraqueza, e não do poder dominador e opressivo, então o caminho de seus discípulos e discípulas também deveria ser pautado por uma postura de humildade diante dos posicionamentos alheios, inclusive os religiosos. Aqui há uma grande possibilidade para se pensar (e se praticar!) uma ética de paz, cuja maior característica é a tríade: tolerância, amor e respeito pelo outro. Afinal, não se “ganha” a argumentação com o uso da força e do poder (sob qualquer forma que este se apresente), mas sim pela força do Espírito, que é guia a toda a verdade (Jo 16.13), e que sempre é livre para soprar onde quer (Jo 3.8). Apenas ressaltemos que esvaziar-se diante do outro não significa repudiar as próprias ideias, abandonando as próprias convicções e perdendo a identidade pessoal. Tolerância, amor e respeito pelo outro só existem onde se assume a própria identidade; e, apenas porque se faz assim, é que se pode falar em respeitar opiniões diferentes. Parafraseando o evangelho, poderíamos dizer: “respeitar ao próximo como se respeita a si mesmo.”

Além do mais, para a comunidade cristã que se reúne em torno da tradição joanina, falar da verdade do

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Lógos é falar de sua graça e vice-versa (cf. Jo 1.14). Sendo assim, toda fala sobre a verdade – o que equivale a dizer, toda fala sobre Jesus – deve estar permeada de graça. Isso, obviamente, gera consequências diretas para as relações entre religiões diferentes: percebe-se que nenhuma defesa de uma suposta verdade absoluta pode servir como instrumento de esmagamento do outro; a suposta ortodoxia não pode negligenciar a graça, e nem a apologia da fé pode servir de justificativa para qualquer postura ofensiva ou desrespeitosa contra o diferente. Se a graça permeia a verdade e fornece a ela seu sentido último, vinculado ao Deus de amor da tradição joanina (cf. 1 Jo 4.8), então todas as guerras e conflitos religiosos são indesculpáveis e intoleráveis. Onde está o amor divino, todo medo é lançado fora (cf. 1 Jo 4.18), inclusive o medo do que é diferente.

Para refletir um pouco:

1. Você já havia ouvido falar do conceito da kênosis (esvaziamento) de Deus? Como esta proposta afeta nossa vida de fé, nossas comunidades e nosso relacionamento com as pessoas de outras confissões religiosas?

2. Pelo que você conhece da história da Igreja cristã, como foi, historicamente, a relação dos cristãos com grupos de outras religiões.

3. Leia o texto a seguir e responda: é possível usar o evangelho de João para se pensar em diálogo e respeito ao diferente? Como fazer isso?

Encerrando essa etapa, proponho a leitura de mais um texto, que pode nos ajudar nas reflexões sobre o

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evangelho de João.

João parece fechado na perspectiva da comunidade, pouco ecumênico, irônico para com os de fora. Mostra abertura para os discípulos do Batista e os samaritanos, desde que reconheçam Jesus, mas não abre brecha alguma para os mestres judaicos, e as outras religiões nem entraram no seu horizonte. Que devemos pensar disso? “Eu sou a porta”, diz o Jesus joanino, com exclusivismo chocante (Jo 10.7,9). João escreve para os membros de sua comunidade (e de outras, afins, 10.16), para confirmá-las na certeza de que o rosto de Deus, Pai de Jesus, se manifesta no amor do Filho, testemunhado pelos “que viram” (Jo 19.35; 20.30-31; I Jo 1.1-4). Não escreve para dialogar com outros caminhos pelos quais se espalharam “as sementes da Palavra” – termo adotado pelo Concílio Vaticano II. Escreve para fortalecer os fiéis contra a apostasia e para que a comunidade continue vivendo o amor que Jesus lhe ensinou, enxergando nele o rosto do Pai e mostrando este rosto ao mundo por sua prática “monitorada” pelo Paráclito.

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João prioriza as relações de fraternidade, participação e comunhão dentro da comunidade. Se estas não são levadas a sério, não podemos seriamente entrar em diálogo com o mundo, pois é por nosso amor fraterno que o mundo nos reconhece (Jo 13.35). Por outro lado, o diálogo com o mundo fora de nossas comunidades nos ajuda a valorar o que Jesus nos legou. No próprio evangelho de João constatamos atitudes diferenciadas: abertura para com um fariseu bem-intencionado, Nicodemos, para com os samaritanos e os gregos, mas polêmica irônica para com o judaísmo dominante. A nós também cabe usar de discernimento em nossas relações de diálogo. Abertura para com os que procuram honestamente, talvez mais honestamente que nós, aquilo que reconhecemos em Jesus; mútua participação em tudo o que for possível, diálogo sincero, solidariedade... Mas determinação em relação a instâncias que ameaçam nossa referência: o próprio Jesus e seu gesto de amor até o fim, sua morte que é a revelação de Deus. KONINGS, Johan, Evangelho segundo João: amor e fidelidade, p. 74