etnometodologia

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a a 238 E DUCAÇÃO & L INGUAGEM ANO 11 • N. 18 • 238-256, JUL.-DEZ. 2008 * Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora da Faculdade de Educação da UERN. Doutoranda em Psicologia da Educação – PUC/SP. E-mail: [email protected]. ** Doutor em História e Filosofia pela PUC/SP. Professor do Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected]. Etnometodologia multirreferencial: contribuições teórico-epistemológicas para a formação do professor-pesquisador Sílvia Maria Costa Barbosa* Joaquim Gonçalves Barbosa** Resumo O objetivo do presente texto é debater a importância da abor- dagem multirreferencial no contexto da pesquisa na educação e da formação do professor-pesquisador. Trata-se de uma propo- sição instigante e audaciosa ao romper com os modelos positivistas de realizar pesquisa nas ciências humanas e sociais. De um lado, consideramos Jacques Ardoino, criador dessa abor- dagem, que assume “a hipótese da complexidade, e até da hipercomplexidade, da realidade a respeito da qual nos questi- onamos”; de outro, somamos com as contribuições da etno- metodologia, numa perspectiva denominada etnopesquisa-crítica por Roberto Macedo, com vistas a contribuir para a formação do professor-pesquisador de modo a não engessá-lo em rígidas posições teóricas e encaminhamentos metodológicos que o des- tituem da condição de sujeito diante da prática na qual se en- contra imerso. O presente texto é resultado de um entrelaça- mento de idéias apresentadas e defendidas por Ardoino (1998, 2000 e 2003) e colaboradores; por Coulon (1995a, 1995b,

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a a238 EDUCAÇÃO & L I NGUAGEM • ANO 11 • N. 18 • 238-256, JUL.-DEZ. 2008

* Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora da

Faculdade de Educação da UERN. Doutoranda em Psicologia da Educação –

PUC/SP. E-mail: [email protected].

** Doutor em História e Filosofia pela PUC/SP. Professor do Mestrado em

Educação da Universidade Metodista de São Paulo.

E-mail: [email protected].

Etnometodologiamultirreferencial: contribuições

teórico-epistemológicaspara a formação

do professor-pesquisador

Sílvia Maria Costa Barbosa*

Joaquim Gonçalves Barbosa**

Resumo

O objetivo do presente texto é debater a importância da abor-

dagem multirreferencial no contexto da pesquisa na educação e

da formação do professor-pesquisador. Trata-se de uma propo-

sição instigante e audaciosa ao romper com os modelos

positivistas de realizar pesquisa nas ciências humanas e sociais.

De um lado, consideramos Jacques Ardoino, criador dessa abor-

dagem, que assume “a hipótese da complexidade, e até da

hipercomplexidade, da realidade a respeito da qual nos questi-

onamos”; de outro, somamos com as contribuições da etno-

metodologia, numa perspectiva denominada etnopesquisa-crítica

por Roberto Macedo, com vistas a contribuir para a formação

do professor-pesquisador de modo a não engessá-lo em rígidas

posições teóricas e encaminhamentos metodológicos que o des-

tituem da condição de sujeito diante da prática na qual se en-

contra imerso. O presente texto é resultado de um entrelaça-

mento de idéias apresentadas e defendidas por Ardoino (1998,

2000 e 2003) e colaboradores; por Coulon (1995a, 1995b,

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1995c) e Macedo (2000). Com base nestes pressupostos, a pes-

quisa oportuniza compreender a microrrealidade do cotidiano,

das crenças, os comportamentos do senso comum, tendo como

destaque a linguagem dos sujeitos pesquisados.

Palavras-chave: Professor-pesquisador – Multirreferen-

cialidade – Etnometodologia – Etnopesquisa.

Multi-referential ethnomethodology:theoretical epistemological contributions to theteacher-researcher education

AbstractThe purpose of the present text is to discuss the importance of

the multi-referential approach in the context of research in

education and the teacher-researcher’s education. It is an insti-

gating and audacious proposition since it breaks with the posi-

tivist models of performing research in human and social sci-

ences. On the one hand, we consider Jacques Ardoino, the

creator of such approach, who assumes “the hypothesis of com-

plexity, and even hypercomplexity, of the reality which we

question about”; on the other hand, we add the contributions

of Ethnomethodology, in a perspective Roberto Macedo calls

Critical-Ethnoresearch, aiming at contributing to the teacher-

researcher’s education in such way not to plaster him/her into

rigid theoretical positions and methodological guidings that

displace him/her from the condition of subject in face of the

practice he/she is immersed in. The present text is the result of

the interlacement of ideas presented and defended by Ardoino

(1998, 2000, and 2003) and collaborators; by Coulon (1995a,

1995b, 1995c) and Macedo (2000). Based on these presuppo-

sitions, the research allows us the understanding of the daily

life’s micro-reality, the beliefs, the common sense behaviours,

and their emphasis on the researched individuals’ language.

Keywords: Teacher-Researcher – Multi-referentiality –

Ethnomethodology – Ethnoresearch.

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Etnometodología multireferencial:contribuciones teórico-epistemológicas para laformación del maestro-investigador

ResumenEl objetivo del presente texto es debatir sobre la importancia

del abordaje multireferencial en el contexto de la pesquisa en

la educación y de la formación del maestro-investigador. Se

trata de una proposición provocativa y audaciosa al romper

con los modelos positivistas de realizar pesquisa en las ciencias

humanas y sociales. Por una parte, consideramos Jacques

Ardoino, creador de ese abordaje, quién asume “la hipótesis de

la complejidad, y aun de la hipercomplejidad, de la realidad

respecto la cual nos cuestionamos”; de otra parte, adicionamos

las contribuciones de la Etnometodología, en una perspectiva

denominada etnopesquisa crítica por Roberto Macedo, visan-

do a contribuir para la formación del maestro-investigador de

modo a no enyesarlo en rígidas posiciones teóricas y

encaminamientos metodológicos que lo destituye de la condi-

ción de sujeto frente a la práctica en la cual el se encuentra

inmerso. El presente texto es el resultado de un

entrelazamiento de ideas presentadas y defendidas por Ardoino

(1998, 2000 y 2003) y colaboradores; por Coulon (1995a,

1995b, 1995c) y Macedo (2000). La pesquisa con base en

estos presupuestos ofrece la oportunidad de comprender el

micro-realidad del cotidiano, las creencias, los comportamien-

tos del criterio común, teniendo como relieve el lenguaje de los

sujetos pesquisados.

Palabras clave: Maestro-investigador – Multireferencialidad

– Etnometodología – Etnopesquisa.

A abordagem multirreferencial pluralNeste texto apresentamos discussões acerca da abordagem

multirreferencial e sua contribuição para a pesquisa na educaçãoconforme o pensamento de Jacques Ardoino, para quem osurgimento de sua proposição está ligado ao reconhecimento daheterogeneidade enquanto instituinte de um olhar complexo aser dirigido ao fazer pesquisa e ao atuar no campo da educação.Em seguida, debatemos sobre a etnometodologia, ou melhor,

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sobre a etnopesquisa crítica conforme nos apresenta RobertoMacedo, com o propósito de oportunizar um encaminhamentomais concreto deste mesmo olhar plural e complexo propostopela multirreferencialidade.

A discussão da abordagem multirreferencial no âmbito daeducação vem no contraponto dos pressupostos teóricospositivistas, tão sedimentados no campo educacional. SegundoJacques Ardoino (1998), o surgimento dessa abordagem estáligado ao reconhecimento da complexidade e da hetero-geneidade inerentes às práticas educativas interessando tanto aopsicólogo, ao economista, ao sociólogo, ao filósofo, ao histo-riador, ao pedagogo e outros, sempre na perspectiva de umapluralidade de olhares e linguagens, reconhecida como necessáriaà compreensão da suposta complexidade da educação. ParaBarbosa (1998a) essa abordagem contempla não só a comple-xidade da realidade e a interiorização significante do sujeitoobservador, como também as contribuições advindas das maisdiferentes perspectivas, entre elas a etnometodologia.

A abordagem multirreferencial tem como seu criadorJacques Ardoino, francês, professor da Universidade deVincennes – Paris VIII, tendo como principais colaboradoresMichel Lobrot, Georges Lapassade, René Lourau, Remi Hess eoutros. A concepção multirreferencial vem ganhando destaqueno campo da pesquisa educacional, mas pode-se dizer que suadiscussão constitui-se uma novidade que gera polêmicas, hajavista a ruptura com o modelo alicerçado na “ortodoxia da fi-delidade do pesquisador a um único paradigma epistemólogico/metodológico” (BURNHAM, 1998, p. 46).

No percurso histórico das ciências da educação, percebe-seque uma só teoria ou ciência não dá conta da complexidade eheterogeneidade presentes nas práticas educativas, já que, comArdoino (1998, p. 34), podemos entender a escola como “umlugar de vida” onde estão presentes agentes e atores que se con-trapõem, se confrontam; enfim, diz o autor, trata-se de “umacomunidade que reúne um conjunto de pessoas e de grupos eminteração recíproca”. Apreender o que ocorre na escola a partirde uma perspectiva complexa e heterogênea significa não

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desconsiderar que tais relações se inscrevem “numa duração,carregadas de histórias” e, conseqüentemente, não é desvinculadodelas que são estabelecidas “contendas entre os protagonistas”.Para Ardoino tais contendas e tais relações, carregadas de sentidosantagônicos ou não, apresentam-se mais determinadas

pela dinâmica das pulsões inconscientes e da vida afetiva, pela açãodos fenômenos transferenciais e contratransferenciais, do que pelasincidências das implicações que têm nos papéis ou nas associações,pelo peso próprio das estruturas psíquicas, pelos vieses específicosque decorrem das bagagens intelectuais de uns e de outros, do quepela lógica de um sistema que pretende dividir funções e estabelecertarefas para bem conduzir missões (ARDOINO, 1998, p. 34).

Assim, encontram-se implicados nesse contexto o professor,o supervisor, o coordenador pedagógico, o diretor, todo o cor-po de funcionários da escola, com suas histórias de vida, perspec-tivas, conhecimentos do mundo científicos ou não, com suastensões e angústias, sempre vislumbrando a realização das tarefasdo ensinar-aprender, no sentido mais abrangente do processo.

Em suma, para se ter uma escola enquanto instituiçãoeducativa capaz de criar espaços e logicidade para que relaçõesinstituintes e autorais ocorram, não se trata tão-somente de juntarum grupo de profissionais e planejar, organizar, cuidar do bomfuncionamento, para que os objetivos tão sonhados da educaçãoaconteçam. Há que se ter presente uma proposição de aborda-gem como apresentada acima em que os agentes-atores se mo-vem mais impulsionados por conteúdos psíquicos transferenciaise contratransferenciais do que, tão-somente, por uma lógica defunções e tarefas bem definidas e bem encaminhadas.

No contexto atual, em que as incertezas estão cada vezmais presentes no dia-a-dia, há que estar presente esta aberturapara “olhares múltiplos” com vistas a “romper com a hegemo-nia epistêmica dos grandes saberes, das grandes narrativas ofi-ciais e do sujeito racional que, com seu olhar iluminista, pretendeiluminar tudo” (PELLANDA, 1996, p. 13). Trata-se de um es-forço de ir além do conhecimento fragmentado e um tanto

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rígido e “seguro de si” na busca de certezas absolutas para sevoltar para posições teóricas e metodológicas que permitam apossibilidade de lidar com a impureza, a incompletude e a opa-cidade tão necessárias às ciências que estudam o homem, sua na-tureza e sua condição de humano.

As práticas educativas não são práticas facilmente passíveisde serem separadas, divididas e atendidas por reduções sim-plistas de um modo de pensar e por abordagens que fragmen-tam a aparente simplicidade da práxis educativa. Para melhorcompreensão da idéia de complexidade é necessário entendê-laa partir de seu cerne onde habita a confusão, a incerteza e adesordem. Não há, portanto, uma ordem predeterminada.Segundo Morin (1990, p.9) a complexidade aparece justamente

onde o pensamento simplificador falha, mas integra nela tudo oque põe ordem, claridade, distinção, precisão no conhecimento.Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidadedo real, o pensamento complexo integra o mais possível os mo-dos simplificadores de pensar, mas recusa as consequênciasmutiladoras, redutoras, unidimensionais e, finalmente, ilusóriasde uma simplificação...

Tal posição não elimina a simplicidade. O autor enfatizaque “só podemos entrar na problemática da complexidade seentrar na da simplicidade, porque a simplicidade não é tão sim-ples quanto parece” (MORIN, 2000, p. 48). Os fatos sociaispodem parecer simples para quem tem um olhar simplificador,mas todos os fenômenos sociais são complexos e da ordem dacompreensão e da interpretação.

Tal postura epistemológica com base na complexidadevem se afirmando em diferentes áreas do conhecimento e re-quer um olhar plural, multirreferencial, na contramão do pro-posto pelo modelo de se fazer ciência com base na decom-posição em partes cada vez menores, apresentado pelopensamento positivista, que propõe a separação entre sujeitoe objeto e não reconhece os aspectos relativos à subjetividadedo sujeito observador.

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Para Gonzáles Rey (1997), a epistemologia positivista apre-senta características marcantes que até hoje vêm se perpetuandonas posturas dos sujeitos que fazem ciências, destacando os se-guintes aspectos: separação excludente entre o sujeito (pesquisa-dor) e objeto de estudo; subjetividade e afetividade consideradasde forma pejorativa, como fonte de erro; supervalorização dométodo e desprezo pela teoria e interpretação: visão instrumen-talista do conhecimento; o método científico considerado deforma monolítica, assumindo-o como o mesmo para todas asciências e todos os objetos; os objetivos da ciência concentradosem descrições imparciais, predição e controle sobre a realidade.

Esse modelo de pensar e fazer ciência vem sendo con-frontado por paradigmas que assumem a complexidade, nosquais o pensamento simplificador perde força ao explicar fenô-menos, sejam sociais, físicos ou biológicos.

Em direção oposta, Ardoino explicita a abordagemmultirreferencial assumindo a complexidade que, para ele, é o“que contém, engloba […], o que reúne diversos elementosdistintos, até mesmo heterogêneos” (ARDOINO, 1998, p. 24).Nesta mesma direção, Barbosa (1998a) propõe não abrir mãodo conceito de complexidade e afirma que para compreensãodas práticas educativas, principalmente, referindo-se ao processode formação do professor-pesquisador-educador, há necessidadede uma ruptura epistemológica, na perspectiva de se assumir aabordagem multirreferencial no contraponto das fronteiras dis-ciplinares; enfatiza que é preciso considerar os diferentes níveisde implicação deste profissional diante das diversas áreas dosaber e também referente ao seu “objeto” de pesquisa, consti-tuído por sujeitos em interação.

Para Ardoino (1998), a complexidade não está no objeto,mas no olhar que o pesquisador lhe dirige; trata-se de umahipótese do observador. Segundo o autor,

tudo acontece um pouco como se os objetos de pesquisa, no cam-po das ciências do homem e da sociedade, devessem ser represen-tados como mais ou menos mestiços. Uma tal complexidade,mais ou menos “holística”, global, isto é, fugindo definitivamente

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da intenção de decomposição (análise) e de redução em elementos

cada vez mais simples. […] um tipo de olhar que finalmente tenta

mais entender do que explicar, que tem por objeto uma realidade

suposta explicitamente heterogênea. A complexidade não deve,

portanto, ser concebida como uma característica ou uma proprieda-

de que certos objetos possuiriam por natureza e outros não, mas

[…] uma hipótese que o pesquisador elabora a respeito do objeto

(ARDOINO, 1998, p. 36).

A abordagem multirreferencial exige e comporta umabricolagem que, para Ardoino, trata-se essencialmente “de iraqui e lá, eventualmente para obter, pelo desvio, indiretamente,aquilo que não se pode alcançar de forma direta” (ARDOINOin BARBOSA 1998a, p. 203); tal procedimento não dispensa origor, não aquele cartesiano, mas de outra ordem para se traba-lhar com uma abordagem que cria espaço para o entre-cruzamento de múltiplas perspectivas, uma multiplicidade delinguagens sem, no entanto, “misturá-las e reduzi-las”. Nessesentido, Borba (1998, p. 18), citando Lapassade, defende que oaprendiz-pesquisador deve aprender a bricolar, deve remeter-se “à etnometodologia, à psicanálise e à complexidade dos fatos,das situações e das práticas educativas, formadoras”. Para Borba,“a inteligência é bricolagem permanente”, já que é um processocognitivo constante.

Este novo jeito de pensar e fazer ciência opõe-se aosmodelos positivista e cartesiano e resgata a unidade do homemcom o todo, sem separar os aspectos cognitivos dos afetivos.Para Pellanda (1996, p. 243), Prigogine fala de um “relaciona-mento poético com a natureza e de uma parceria com o cosmono sentido de uma co-autoria na construção da realidade. Éuma construção conectada com a construção do conhecimento,do sujeito e da realidade”.

Nessa perspectiva, o sujeito humano é criador de um sen-tido para o tempo e espaço vivido, é autor e produtor de umahistória, uma cultura, e pode instituir-se autor-cidadão, comoenfatiza Barbosa (1998a, p.7-13). Autor-cidadão no sentidocomposto de cidadania enquanto atuação no social e autoria

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enquanto atuação em si mesmo, internamente; uma posturareflexiva constante no sentido de lidar de novo modo com ospróprios conteúdos internos, psíquicos, afetivos, emocionais.Nessa direção, a autoria-cidadania não pode ser pensada forada história, do espaço geográfico, das perspectivas sociológicase psicanalíticas, dentre outras (BARBOSA, 1998, p.8).

Portanto, nesta perspectiva de autor-cidadão, o educadoré aquele que se vê afirmando e criando sentido para sua atuaçãoe produção no social e, ao mesmo tempo, mobilizando ooutro na perspectiva de um encontro consigo mesmo, nãodesconectado das relações sociais nem das determinações his-tóricas, sociais e culturais que enredam sua própria história: “Opapel do educador, nesse caso, será sempre ampliar ao máximoo aproveitamento das oportunidades múltiplas e de intensidadesinfindáveis para que os sujeitos se tornem autores-cidadãos cadavez mais” (BARBOSA, 1998a, p. 9).

Em direção a este processo afirmativo, autoral, a escritapode se tornar uma aliada; uma ótima “estratégia” pedagógica.Em nossa história escolar ficou registrada a rigidez quanto aoato de escrever, e tal prática tornou-se para nós uma experiênciatraumática, angustiante, e não um exercício prazeroso; no entan-to, podemos fazer uso desta mesma escrita como estratégiaemancipadora, libertadora do sujeito. A utilização do “diário depesquisa” ou, como temos denominado, “jornal de pesquisa”possibilita a retomada do registrado, a reflexão sobre o anota-do e sobre si mesmo, enfim, permite elaborar o desconexo eprincipalmente o medo dessa árdua tarefa de se tornar autor-

cidadão. Assim, ao “realizar a pesquisa exercitamos a cidadania-autoria, ou seja, o autor de um texto, de uma reflexão, é tam-bém o autor de uma forma de expressão no social. A escrita éuma forma de ver-se e expressar-se socialmente” (BARBOSA,2000, p. 17). É preciso estimular, criar oportunidades e, prin-cipalmente, criar relações em que o aluno exercite sua condiçãode autor-cidadão na direção proposta por Hess (2004, p. 26-44) ao desenvolver sua teoria dos momentos. Para ele

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o momento é constituído de um conjunto de elementos materiais,

psicológicos (afetivos) e passionais. […] Quanto mais se descreve

um momento, mais ele ganha amplitude, mais ele existe.

E poderíamos complementar: mais ele ganha em significa-do e o sujeito se inclui como autor para si no espaço social etemporal, portanto, da cidadania e da autoria.

A abordagem multirreferencial possibilita esta rupturaepistemológica em direção a uma aproximação do fazereducativo de forma complexa e não de maneira compar-timentada, isolada do social, dos processos políticos, econômi-cos, históricos e culturais; há que se buscar compreender cadaum dos sujeitos ou situações pesquisados como parte de umconjunto inseparável, em que estão presentes incertezas, dúvidas,ambigüidades, mestiçagem. É necessário olhar para a educaçãopercebendo, analisando e procurando descortinar as múltiplasfaces dessas mesmas práticas educativas, já que a complexidadedesse processo traz aos diretamente envolvidos uma série dedificuldades de leitura e de compreensão de suas próprias prá-ticas e de seu próprio fazer.

Etnometodologia e etnopesquisa-críticaO termo etnometodologia designa uma corrente da socio-

logia americana surgida na década de 1960, cujo fundador foiHarold Garfinkel. Sua obra Studies in Ethnomethodology, publicadaem 1967, provocou discussões e reviravoltas no seio das aca-demias norte-americanas e européias, já que rompe tragicamentecom a sociologia tradicional.

É importante ressaltar que a etnometodologia não pode serconfundida com uma metodologia ou um método de pesquisa.Ela se destaca por ser uma teoria social voltada para o interesseda compreensão da ordem social a partir da valorização dasações cotidianas dos atores envolvidos nos processos sociais.“Mais que uma teoria constituída, ela é uma perspectiva de pes-quisa, uma nova postura intelectual” (COULON, 1995a, p. 7).

A Etnometodologia é, assim, definida por Coulon (1995b,p. 15) como a “ciência” dos “etnométodos”, isto é, “procedi-

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mentos que constituem aquilo que H. Garfinkel chama de “raci-ocínio sociológico prático”, que todo indivíduo apresenta.Garfinkel encontrou a idéia do raciocínio sociológico prático na obrade Schütz, isto é, de uma sociologia não-profissional que se apóiaem sua prática lógica e em seus métodos do senso comum.Considerando a afirmação de Schütz, para quem “nós somostodos sociólogos em estado prático”, Coulon (1995a, p. 30)afirma que “será, portanto, o estudo dessas atividades cotidianas,quer sejam triviais ou eruditas, considerando que a própria soci-ologia deve ser considerada como uma atividade prática”.

Estes estudos procuram identificar os etnométodos queestão presentes nas atividades cotidianas do ator social, o quetorna as ações práticas, as circunstâncias e o conhecimento dosenso comum analisáveis sob a ótica das estruturas sociais e doraciocínio sociológico prático. São os procedimentos, ou seja,as realizações práticas (instituintes) que produzem os fatos so-ciais (instituídos).

Segundo Coulon (1995b) Garfinkel parte da concepçãode que o ator social não pode e nem deve ser discriminado porser uma pessoa simples, do povo. Sua linguagem, suas atitudesdizem muito dentro desse novo jeito de vê-lo e de sua impor-tância no seu contexto social. Para a ciência social, a valorizaçãodo ator social veio enaltecer as discussões e as pesquisas emtodas as áreas e, principalmente, no campo da educação.

A valorização do ator social tem uma relevância funda-mental para a etnometodologia. Coulon (1995a) enfatiza a afir-mação de Garfinkel de que “o ator social não é um idiotacultural”; tal proposição interessa aos pesquisadores desconten-tes com as teorias positivas que dão ênfase às pesquisas e a umtipo de conhecimento científico que despreza o conhecimentopopular. O homem comum, em seu cotidiano comum, temseus valores e conhecimentos, que não podem e nem devem serdesprezados pelas ciências, principalmente as humanas e dasociedade. Percebe-se que ainda hoje existe uma tendência muitoforte nos meios acadêmicos a considerar o ator social, ou seja,o sujeito comum, como aquele que não tem contribuição a darà ciência social. A abordagem etnometodológica-multir-

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referencial aguça os sentidos do pesquisador para que percebaalém do que está exposto, pratique o exercício da escuta porintermédio de olhares, gestos e, por que não dizer, principal-mente das vozes, das multiplicidades de linguagens.

Para apreender alguma coerência na linguagem do profes-sor sobre sua prática é preciso estar atento ao contexto em queela se passa, pois não há processo discursivo que não esteja li-gado diretamente a um contexto. A observação e a descriçãoatentas permitem perceber com maior propriedade e de formamais complexa as multidimensões que envolvem a prática pe-dagógica e a produção discursiva do professor ou dos sujeitospesquisados. Trata-se de não separar o que não pode ser sepa-rado: o observador, o sujeito observado e o contexto. Aoapresentar o livro de Macedo, A etnopesquisa crítica e multir-

referencial nas ciências humanas e na educação (2000), Barbosa diz:

etnopesquisa não seria outra coisa senão uma pesquisa ao mesmotempo enraizada no sujeito observador e no sujeito observado.Enraizada no sentido etnológico, o de dar conta das raízes, dasligações que dão sentido tanto a um quanto a outro. Para tanto, énecessário, por parte do pesquisador, ousadia para autorizar porcaminhos metodológicos não convencionais com o objetivo deapreender a complexidade e as filigranas próprias de cada sujeitosingular, tanto do pesquisador quanto do sujeito pesquisado e deseus entornos (BARBOSA, apud MACEDO, 2000, p. 24).

A análise na etnopesquisa é um movimento constante de ire vir, já que há uma preocupação em apreender tudo em voltado observado, e essa constitui uma das características maismarcantes desse jeito de se fazer pesquisa. É o mergulho dopesquisador no campo, para se imbricar nas profundezas dassuas águas claras ou escuras, sempre com a perspicácia deobservar o não-observável, por outro jeito de pesquisar. Umolhar complexo que abriga a multirreferencialidade, que desen-cadeia um movimento de reflexão, compreensão, que exigedeterminação, disciplina, autorização e olhar clínico, no sentidoda plena consciência de estar com o que é, aqui e agora, perce-

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bendo o mínimo gesto, a mínima atividade da vida cotidiana(BARBIER, 1998, p. 191).

Macedo (2000) enfatiza que a etnopesquisa crítica não éuma tentativa de receita universal para se fazer pesquisa, mas umaconstrução epistemológica que advém das noções de comple-xidade de E. Morin e da abordagem multirreferencial de J.Ardoino. Nesta perspectiva, abre-se um leque de alternativasepistêmicas que pode contribuir para o rompimento com pro-postas prontas e fechadas do ponto de vista teórico-meto-dológico. Desta forma, o objetivo da abordagem em discussãoé proporcionar aos educadores uma postura metodológicaplural, menos rígida e fixa em procedimentos únicos já consa-grados; enfim, o exercício epistemológico pertinente e relevanteda etnopesquisa crítica. Mas para Macedo o que é etnopesquisacrítica? Nas palavras do autor:

Um dos pontos fundamentais que devemos destacar para compre-endermos a etnopesquisa crítica é que ela nasce da inspiraçãoetnográfica, sua base incontornável, mas diferencia-se, qaundoaprofunda-se na démarche hermenêutica de natureza sócio-feno-

menológica e crítica, produzindo conhecimento indexalizado. Ela se

afirma também por aquilo que não é: um fisicalismo metodológico,

um quantitativismo nomotético, um objetivismo excludente, um

interpretacionismo acientífico ou uma pesquisa distanciada dos

âmbitos da ética e da política (MACEDO, 2000, p. 30)

Continuando, Macedo acrescenta que a etnopesquisa pre-ocupa-se com o homem em seu contexto social, volta-se paraa organização das ordens socioculturais, preocupando-se essen-cialmente com os processos que constituem o homem em so-ciedade. O pesquisador deve ver-se implicado em todo movi-mento – histórico, cultural, antropológico, psicológico – queengendra seu momento histórico, em prol do processo deconstrução do conhecimento, por meio de múltiplas abstraçõesdo cenário estudado.

Não se trata de um cenário distante, frio e ausente dopesquisador, mas uma relação viva, dinâmica, de trocas inter-

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subjetivas entre sujeito e objeto que se constroem mutuamente.Tudo o que se passa no entorno durante o processo da pesquisatem um significado importante, já que irá possibilitar a constru-ção de suas compreensões. O etnometodólogo inspirado naetnopesquisa deve desenvolver uma perspicácia capaz de veralém do que os outros enxergam. Tudo o que diz respeito aosujeito estudado é de suma importância para o sistema de re-lações existente no cotidiano do sujeito observado. “No pro-cesso de construção do saber científico, a etnopesquisa críticanão considera os sujeitos do estudo um produto descartável devalor meramente utilitário” (MACEDO, 2000, p. 30). Mas elesfazem parte, ativamente, de todo o processo de construção ereconstrução da pesquisa, no qual têm vez e voz por meio desuas ações, opiniões, interesses e preocupações.

Vale destacar que para a etnopesquisa, todos os fatos esituações, por mais simples e banais que sejam, têm relevânciacrucial; ao descrever tais fatos ou situações não se deve, porhipótese nenhuma, tentar desfigurar a própria realidade inves-tigada e descrevê-la de maneira “correta”, ferindo assim osprincípios defendidos pela etnometodologia no que diz respeitoaos etnométodos, ou seja, os procedimentos usados pelos su-jeitos no percurso da investigação. No processo investigativo daetnopesquisa, a validade dos dados será justamente a fidelidadena descrição da realidade social observada.

No ano de 2005 tive a oportunidade de ingressar noMestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação daUniversidade Metodista de São Bernardo de Campo – SP. Meuencontro com a etnometodologia deu-se durante a disciplina“Multirreferencialidade: bases epistemológicas”, sob a respon-sabilidade do Professor Joaquim Gonçalves Barbosa. Fiqueiinteressada em aprofundar os estudos a respeito dessa correnteteórica por acreditar possibilitariam o redirecionamento do olharsobre dados que já haviam sido coletados por mim, durante osanos de 2002 a 2004. Conversei com o professor externandomeu interesse em me aprofundar nessa teoria e poder trabalharcom os dados de que já dispunha. Prudentemente, ele me apre-sentou três livros de Alain Coulon: A etnometodologia (1995a);

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Etnometodologia e educação (1995b) e A escola de Chicago (1995c),para serem lidos durante as férias. O interessante – e por issome apaixonei por esta aprendizagem – era para o fato de que,na pesquisa de cunho etnometodológico, estaria menos obrigadaa provar hipóteses e demonstrar certezas e, sim, mais compro-metida com a demonstração rigorosa, a descrição atenta dosdetalhes, das sutilezes, dos etnométodos de meus observados.

Com esta nova aprendizagem e com este novo olharrevisitei meus dados, ou seja, minhas anotações cheias de deta-lhes, com os quais não sabia o que fazer antes. Esta retomadado universo pesquisado possibilitou-me compreender a micror-realidade do cotidiano, das crenças, e os comportamentos dosenso comum, tendo como destaque a linguagem dos sujeitosda pesquisa. Foi um exercício novo aprender, na teoria e naprática, com os dados que dispunha do exercício que chamo deuma relativa humildade científica, para ir ao encontro do sen-tido que só se manifesta se buscado a partir do contexto social,histórico e cultural em que as significações interacionais do grupoem questão se manifestam.

Como conseqüência, não foi surpresa o fato de que pararealização da dissertação minha escolha tenha recaído sobre essaproposição teórico-epistemológica e sociológica que denominoetnometodologia-multirreferencial. Admito que o resultadodesse estudo não tenha um final fechado, acabado, mas trata-se de um trabalho em processo de construção constante; aindaagora o revisito novamente. As discussões problematizadorasencetadas com base no referencial escolhido fizeram com queeu percebesse muito além do que está exposto no papel. Foi umexcelente exercício o caminhar ao encontro das minhas raízesprofissionais e pessoais, aos meus anseios de formação enquan-to pesquisadora, o que justificou sobremaneira meu interesse porencaminhar a pesquisa na forma como o fiz.

Hoje, como professora, educadora e pesquisadora, perce-bo que todo o movimento desse estudo constitui-se na minhaimplicação com a realidade vivida e experienciada pelos sujeitosda pesquisa, pelo fato de eles se constituírem também nomovimento da minha história de vida, se não com todos os

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indícios, com alguns que marcaram minha inclusão no cerne dasdiscussões teóricas acerca da formação de professores: dificul-dades para ensinar e aprender, e tantas outras questões queinquietam grande parte dos educadores envolvidos e preocupa-dos em fazer o melhor. Há, portanto, um elo muito forte queliga minha busca pela formação enquanto professora-pesquisa-dora à teia das inter-relações que envolvem o imaginário pes-soal-pulsional; ao imaginário social-institucional; ao imagináriosocial e ao imaginário sacral de que fala Barbier (1998).

A etnopesquisa crítica apresenta algumas característicasmetodológicas importantes: tem o contexto como sua fontedireta de dados e o pesquisador como seu principal instrumen-to; supõe o contato direto do pesquisador com o ambiente ecom a situação que está sendo investigada; os dados da rea-lidade são predominantemente descritivos e aspectos suposta-mente banais em termos de status de dados são significativa-mente valorizados. O etnopesquisador, enquanto estudioso defenômenos humanos, defronta-se arduamente enquanto sujeitocom suas próprias observações, preconceitos, convicções,pondo em evidência suas implicações, consubstanciadas emsuas motivações, perspectivas e finalidades.

Hoje, mais amadurecida intelectualmente, procuro, ao en-trar no campo de pesquisa atual, olhar mais respeitosamenteos sujeitos; apreender com cada gesto; ter paciência paraescutá-los e ler nas entrelinhas o que não foi dito de formaclara. Penso que o estudo da etnometodologia proporciona-me apreender os detalhes dos espaços observados; a não meespantar com acontecimentos que ocorrem no ambiente ob-servado; ter mais respeito pelos sujeitos observados e ouvi-losalém das palavras. É um entrar no universo dos sujeitos paradesvendar o sentido que esconde por trás de todas as minhase suas inquietudes. A etnopesquisa é, portanto, um trabalhoque exige disciplina, rigor, sistematização e flexibilidade noestudo, cuidado com os dados e, principalmente, disposiçãopara escutar, descrever, observar, olhar além do aparente.Mergulhar nesse cenário exige do pesquisador um olhar refi-nado, para conseguir, por meio da observação, da escuta sensí-

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vel, do entendimento e da descrição dessa complexidade, umadescrição viva e não morta.

Considerações finaisAs transformações advindas da sociedade contemporâ-

nea exigem, em todas as áreas de atuação profissional, umanova forma de pensar e fazer ciência como condição paraatender às perspectivas de evolução dessa sociedade na dire-ção epistemológica da multirreferencialidade que se propõe auma leitura plural dos saberes postos como verdades absolu-tas. Propor o entrecruzamento de perspectivas múltiplas, pos-sibilitando a hipótese do olhar complexo com vistas a com-preender o sujeito observado e suas práticas é assumir umapostura epistemológica multirreferencial.

Não se trata da produção de conhecimento de forma fácile simplificadora apenas justapondo teorias ou conceitos, masde uma perspectiva na qual o pesquisador busque interagir e nãose desconectar da própria prática objeto de interpretação. Aabordagem multirreferencial possibilita esta interconexão demúltiplas faces na tentativa de não se aproximar das práticaseducativas de forma compartimentada, isolada da sociedade,dos processos políticos, econômicos, históricos, sociais e cultu-rais; trata-se de assumir o complexo enquanto hipótese de sig-nificação do estudado de modo a se encaminhar em busca deuma logicidade que não deixe de lado o que não pode ficar defora da vida do sujeito humano, que são as impurezas, incerte-zas, dúvidas, enfim, todo tipo de sombra e mestiçagem.

A etnometodologia reinterpretada à luz da abordagemmultirreferencial, aqui denominada por nós, juntamente com osautores estudados, etnopesquisa crítica, vem possibilitar umnovo jeito de se perceber a educação em direção oposta à tra-dição positivista, cartesiana, disciplinar, com ênfase no quan-tificável, mensurável. Dentre tantas conseqüências importantesdeste modo de lidar com o conhecimento e o fazer do profes-sor, destaca-se a dialogicidade entre sujeito observador e sujeitoobservado em que o primeiro se ressignifica ao propor sentidoao outro. Trata-se de longa e contínua negociação de sentidoentre sujeito e objeto, ou seja, entre sujeitos.

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Recebido: 30 de maio de 2008.

Aceito: 4 de agosto de 2008