etnografias portuguesas

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Etnografias Portuguesas João Leal

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  • PORTUGAL DE PERTO Biblioteca de Etnografia e Antropologia

    dirigida por Joaquim Pais de Brito

    do ISCTE

    Dois critrios presidem escolha dos ttulos desta coleco, critrios esses j sugeridos no prprio nome que a encabea - Portugal de Perto. Em primeiro lugar, todos eles se reportam ao espao portugus, estudando os mais diversos aspectos da sua cultura (poderamos dizer: das suas culturas). Em segundo lugar, esse estudo feito mais ou menos de perto, com base num trabalho de recolha directa, e prope-se, algumas das vezes, trazer para mais perto fatias do real descuradas ou desconhecidas. Tudo isso nos limites de uma rea disciplinar que, grosso modo, vai da Etnografia Antropologia, e dirigindo-se no s aos estudiosos e especialistas, como tambm curiosidade do grande pblico.

  • O AUTOR: Joo Leal nasceu em 1954 em Lisboa. doutorado em Antropologia Social

    pelo ISCTE, onde exerce as funes de Professor Auxiliar do Departamento de Antropologia. investigador do Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS) do mesmo Instituto e director da revista Etnogrfica.

    o autor do livro - editado nesta coleco - As Festas do Esprito Santo nos Aores. Um Estudo de Antropologia Social (1994). A sua pesquisa recente tem incidido sobre histria da antropologia em Portugal. Alm de vrios arti-gos sobre o tema publicados em revistas nacionais e estrangeiras, organizou e prefaciou, no mbito desta coleco, os volumes: Signum Salomonis. A Figa. A Barba em Portugal. Estudos de Etnografia Comparativa, de Jos Leite de Vasconcelos; Festas, Costumes e Outros Materiais para uma Etnologia de Portugal (Obra Etnogrfica, Vol. I) e Cultura Popular e Educao (Obra Etnogrfica, Vol. II) de Adolfo Coelho; Contribuies para uma Mitologia Popular Portuguesa e Outros Escritos Etnogrficos de Consiglieri Pedroso; e Contos Tradicionais do Povo Portugus de Tefilo Braga.

  • JOO LEAL

    ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional

    PUBLICAES DOM QUIXOTE LISBOA

    2000

  • Biblioteca Nacional - Catalogao na Publicao Leal, Joo, 1954

    Etnografias portuguesas (1870-1970): cultura popular e identidade nacional. - (Portugal de perto; 40)

    ISBN 972-20-1799-3 CDU 39 (469) "1870/1970"

    342.1 (=1.469)

    Publicaes Dom Quixote, Lda. Rua Cintura do Porto

    Urbanizao da Matinha - Lote A - 2. C 1900-649 Lisboa Portugal

    Reservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigor

    2000, Joo F. Leal e Publicaes Dom Quixote Gravura da capa:

    Joo Cristino da Silva, Cinco Artistas em Sintra (1855), leo sobre tela Reviso tipogrfica: Ldia Freitas

    l . a edio: Outubro de 2000 Depsito legal n. 154234/00

    Fotocomposio: ABC Grfica, Lda. Impresso e acabamento: SIG

    ISBN: 972-20-1799-3

  • memria de Paulo Valverde (1961-1999)

  • NDICE

    AGRADECIMENTOS 11 APRESENTAO 15 PARTE L PROCURA DO POVO PORTUGUS

    1. A Antropologia Portuguesa entre 1870 e 1970: um Retrato de Grupo 27

    2. A Sombra Esquiva dos Lusitanos: Exerccios de Etnogenealogia 63

    3. Psicologia tnica: Inveno e Circulao de Esteretipos 83

    PARTE II. GUERRAS CULTURAIS EM TORNO DA ARQUITECTURA POPULAR 4. Um Lugar Ameno no Campo: a Casa Portuguesa 107 5. Pastoral e Contra-Pastoral:

    o Inqurito Habitao Rural 145 6. Os Arquitectos e a Modernidade do Popular:

    o Inqurito Arquitectura Popular em Portugal 165 7. Veiga de Oliveira e a Arquitectura Tradicional .. 197

    PARTE III. NAO E REGIO: RPLICAS, APROPRIAES, RESISTNCIAS 8. Aorianidade: Literatura, Poltica, Etnografia 227

    OBSERVAES FINAIS 245 BIBLIOGRAFIA 249

  • 11

    O trabalho de investigao de que resulta o presente livro iniciou-se h cerca de quatro anos. No seu decurso foram inmeras as dvidas de gratido que contra.

    Muitas das ideias agora desenvolvidas comearam por ser apresentadas no mbito da cadeira Antropologia Portuguesa, Cultura Popular e Identidades do mestrado Antropologia: Patrimnios e Identidades (ISCTE). Agradeo aos estudantes das duas edies desse mestrado a cumplicidade e o sentido crtico com que acompanharam a exposio de ideias ento em fase de ela-borao.

    Os colegas Benjamim Pereira, Joaquim Pais de Brito, Filipe Verde, Francisco Oneto, Miguel Vale de Almeida, Vera Alves e Antnio Medeiros foram leitores atentos de verses preliminares de alguns dos captulos que inte-gram este livro. Os captulos sobre arquitectura popular beneficiaram da lei-tura crtica de Paulo Varela Gomes e Ana Tostes. A Graa Cordeiro, a Clara Carvalho, a Maria Manuel Quintela, a Catarina Mira e a Teresa Fradique nunca desistiram de perguntar pelo livro, mesmo quando, manifestamente, ele estava parado. A todos(as), os meus agradecimentos. Escusado ser dizer que a res-ponsabilidade final do livro, sobretudo do que nele estiver menos bem conse-guido, inteiramente minha.

    Este livro foi concebido como um todo. Entretanto, parte dos captulos que o integram foram apresentados, sob formas ainda preliminares, em colquios, conferncias e outras ocasies de ndole acadmica.

    O captulo 2 - A Sombra Esquiva dos Lusitanos: Exerccios de Etnogenealogia - foi inicialmente apresentado no mbito da conferncia comemorativa do 80. aniversrio da Sociedade Portuguesa de Antropologia e de Etnologia (SPAE) realizada em Dezembro de 1998 na Faculdade de Letras do Porto e, posteriormente, no quadro das minhas provas de Agregao em

    AGRADECIMENTOS

  • 12

    Antropologia, que tiveram lugar no ISCTE (Lisboa) em Julho de 1999. Estou particularmente grato ao Ruben Oliven, da UFRS (Brasil), pelos comentrios e sugestes formuladas nessa ltima ocasio. Uma verso castelhana deste captulo dever ser publicada no n. 12 da revista Complutum (da Universidade Complutense de Madrid) sob o ttulo Las Tesis Lusitanistas: Antropologia e Arqueologia en Portugal. Agradeo a Lus ngel Snchez Gomez o convite para participar nesse nmero da revista.

    Algumas das ideias desenvolvidas no captulo 3 - Psicologia tnica. Inveno e Circulao de Esteretipos - foram inicialmente trabalhadas no quadro de uma comunicao apresentada ao VI Congresso da SIEF, que teve lugar entre 20 e 25 de Abril de 1998 em Amsterdam. Intitulada The Making of Saudade. National Identity and Ethnic Psychology in Portugal, essa comunicao foi posteriormente publicada em francs na revista Ethnologie Franaise, sob o ttulo 'Saudade ' , la Construction d'un Symbole. 'Caractre National ' et Identit Nationale au Portugal (Ethnologie Franaise 1999, vol. XXIX (2), pp. 177-189). Agradeo a Bela Feldman--Bianco, Onsimo Teotnio de Almeida, Mary Bouquet, Mareije Schoonen, Bojan Baskar e JasnaCapo - e, de novo, a Miguel Vale de Almeida - os comentrios e sugestes. Finalmente, uma verso bastante similar quela que agora se publica foi apresentada no Colquio Tenses Coloniais e Reconfiguraes Ps-Coloniais. Dilogos Crticos Luso-Brasileiros, orga-nizado por Bela Feldman Bianco, Cristiana Bastos e Miguel Vale de Almeida no quadro dos Cursos de Vero da Arrbida, entre 1 e 5 de Novembro de 1999.

    O captulo 8 - Aorianidade: Literatura, Poltica, Etnografia - retoma, com ligeiras alteraes, uma comunicao apresentada no colquio Etnografias e Etngrafos Locais organizado pelo Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS) do ISCTE em 11 de Abril de 1997 e original-mente publicada no n. 2 do Vol. I da revista Etnogrfica. Agradeo Isabel Joo e ao Onsimo Teotnio de Almeida a leitura atenta do artigo.

    Para alm das pessoas mencionadas, queria ainda agradecer a todos aque-les que, nessas diferentes ocasies, me formularam crticas ou adiantaram sugestes, ou, simplesmente, manifestaram interesse pelo meu trabalho.

    Ao longo dos quatro anos em que fui compondo esta obra, tive sempre a companhia da Margarida, da Sofia e da Teresa, que sabem, melhor do que eu, quanto ela lhes deve - em pacincia mesclada de curiosidade, em apoio misturado com complacncia. Os meus pais acompanharam tambm a ges-tao deste livro, que animou algumas das conversas dos jantares de 6.a feira noite. O meu pai, em particular, na sua qualidade de arquitecto da gerao do Inqurito e de entusiasta da etnografia e da antropologia foi essencial na opo que tomei de consagrar uma parte do livro arquitec-tura popular. As conversas que tivemos sobre o tema foram essenciais para eu me ir sentindo em casa relativamente arquitectura portuguesa dos anos 1950 e 1960.

  • Este livro dedicado memria do Paulo Valverde. Se ele c estivesse, teria sido um leitor atento e crtico de totalidade ou partes da sua verso pr-final. A sua amizade, as conversas sobre antropologia, msica e litera-tura, a sua cumplicidade profissional e o seu entusiasmo pelas poucas cau-sas - como a Etnogrfica - que ainda valem a pena continuam-me a fazer tanta falta hoje como h um ano atrs.

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  • 15

    Este livro procura explorar a importncia que tiveram no desenvolvimento histrico da etnografia e da antropologia portuguesas dois temas centrais: a) a cultura popular de matriz rural, como objecto fundamental de pesquisa; b) uma perspectiva interpretativa que fez desta um terreno estratgico para o tratamento de tpicos relacionados com a identidade nacional portuguesa.

    Na prossecuo desse objectivo, adoptei um enfoque disciplinar amplo. Para alm da etnografia e da antropologia na acepo mais corrente dos ter-mos, procurei tambm levar em conta um conjunto de outros discursos que, embora originrios de campos disciplinares distintos - como a arqueologia, a literatura, a arquitectura ou a economia agrria - se aproximam, por vezes ape-nas episodicamente, da etnografia e da antropologia, tanto na escolha dos objectos estudados como nas perspectivas de interpretao adoptadas.

    Na sua ambio de fundar uma reflexo sobre a identidade nacional por-tuguesa a partir da cultura popular, a antropologia no se encontra de facto sozinha. Em vrias outras reas possvel detectar a presena de um discurso que, falta de melhor termo, pode ser designado como um discurso de etno-grafia espontnea (Brito & Leal 1997). Quer isso dizer que podemos encon-trar nesses outros campos disciplinares, tanto projectos pontuais de descrio etnogrfica de certos aspectos da cultura popular, como modalidades de inter-pretao destes em que conceitos como cultura, razes ou tradies, desem-penham um papel central.

    Como creio que ficar claro no decurso deste livro, de facto impossvel esquecer as conexes antropolgicas de um gegrafo como Orlando Ribeiro, tanto na sua qualidade de discpulo de Leite de Vasconcelos, como pelo papel determinante que teve no projecto antropolgico de Jorge Dias e da sua equipa. muito difcil falar das interpretaes histrico-genticas da cultura popular portuguesa propostas por antroplogos e etngrafos como Tefilo Braga,

    APRESENTAO

  • 16

    1 Os pases citados so apenas trs de entre um leque razoavelmente maior de exemplos que poderiam ser dados. Para a Hungria, veja-se Sozan 1972, para a Romnia, Karnouh 1990 e, para a Noruega, Maure 1990, 1996.

    2 Cf., entre outros, Faure 1989 e Peer 1998.

    Consiglieri Pedroso, Leite de Vasconcelos ou Jorge Dias, sem levar em conta as investigaes de arquelogos como Martins Sarmento ou Mendes Correia. Tambm se torna relativamente empobrecedor perceber Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa de Jorge Dias (1990a [1953]), sem esta-belecer um dilogo com alguns dos escritos anteriores de Teixeira Pascoaes sobre a saudade. As pesquisas dos arquitectos sobre a arquitectura popular por-tuguesa, igualmente, so indispensveis ao pleno entendimento do significado do trabalho de Ernesto Veiga de Oliveira e dos seus colaboradores na mesma rea. E os exemplos poder-se-iam multiplicar. De facto, a etnografia e a antro-pologia portuguesas, nesse seu duplo centramento na cultura popular e na iden-tidade nacional, fazem parte de uma nebulosa mais vasta de autores e textos - oriundos por vezes dos mais improvveis quadrantes - que no podem ser ignorados pelo historiador da antropologia que recuse uma perspectiva pre-sentista (Stocking 1982a [1965]) da histria do seu campo disciplinar.

    Para alm deste enfoque disciplinar amplo, o presente livro tambm guiado por preocupaes de dilogo com investigaes antropolgicas, socio-lgicas e histricas que tm vindo a tomar a nao, o nacionalismo e a iden-tidade nacional como seus objectos privilegiados de pesquisa.

    De facto, as etnografias portuguesas, no seu itinerrio entre 1870 e 1970, podem ser vistas como parte integrante de um processo que, recorrendo termi-nologia proposta por Benedict Anderson (1991 [1983]), visa a construo de Portugal como uma comunidade imaginada. Por intermdio das suas contribui-es, os etngrafos, antroplogos e outros eruditos comprometidos com o estudo do popular colaboraram num empreendimento mais vasto de constituio do lao nacional em lao imaginrio susceptvel de tornar os habitantes de Portugal por-tugueses. O reconhecimento e identificao da cultura popular enquanto terreno marcado por formaes especficas, a apropriao monumentalizadora (Branco & Leal 1995) dessas formaes como smbolos da nacionalidade, so denomi-nadores comuns ao seu discurso, que se inscreve, nessa medida, no processo mais vasto de refundao da nacionalidade (Ramos 1994) que atravessa a histria portuguesa de finais do sculo xix e de grande parte do sculo XX.

    Esta opo pelo estudo nacionalizador da cultura popular deve ser vista num quadro comparativo mais vasto. Sensivelmente ao longo do mesmo pero-do de tempo, em pases europeus to diferentes como a Alemanha (Bausinger 1993), a Finlndia (Wilson 1976) e a Grcia (Herzfeld 1986) triunfava uma orientao idntica1. E mesmo em pases como a Frana - onde triunfou uma antropologia mais cosmopolita e menos auto-centrada - existiu, paralelamente, uma tradio de estudos folclricos e etnogrficos mais ou menos compro-metida com pressupostos de tipo nacionalista2.

    ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

  • APRESENTAO

    1 Esta distino hoje relativamente consensual, podendo encontrar-se em autores como Gellner (1983) ou Hobsbawm (1990).

    2 Acerca da presena de discursos inspirados no modelo etnogenealgico em Frana - usu- almente considerada a ptria do nacionalismo cvico-territorial - para alm das referncias indi-

    cadas na nota 2, cf. ainda Pomian 1992, Lebovics 1992, Thiesse 1991, 1997 e Golan 1995. Seria tambm interessante examinar o chamado little englandism luz deste tipo de pressu-postos (cf. a esse respeito Samuel 1989, 1994).

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    Podemos nessa medida reconhecer nas etnografias portuguesas linhas de fora que se reencontram, em propores variveis, um pouco por toda a Europa. Assim, tal como muitas das suas congneres europeias, a antropolo- gia portuguesa uma antropologia comprometida, antes do mais, com um dis- curso etnogenealgico de identidade nacional. A expresso adaptada de Anthony Smith (1991), que - no seguimento de Friederich Meinecke -, dis- tinguiu entre dois grandes modelos de identidade nacional: o modelo cvico- -territorial e o modelo tnico (ou etnogenealgico, como tambm possvel design-lo). Enquanto que no primeiro caso, a identidade nacional repousaria sobre um conjunto de representaes e rituais relacionados com o territrio e a histria e sobre uma cultura cvica assente num conjunto de direitos e deveres comuns, no segundo, ela articular-se-ia em torno de representaes e rituais que enfa-

    tizam a nao como uma comunidade de descendncia e como um corpo de natureza tnica, baseado numa lngua e em costumes populares idnticos1, Produzida originalmente para diferenciar o nacionalismo das Revolues Francesa e Americana do nacionalismo da Alemanha e de outros pases do

    leste europeu, esta distino, embora conserve parcialmente esse seu valor diferenciador, hoje entendida de forma mais flexvel - designadamente pelo prprio Anthony Smith - para designar duas grandes modalidades discursivas sobre a identidade nacional que seria possvel reencontrar em contextos nacio-

    nais muito diferenciados, incluindo a aqueles - como o caso de Portugal - onde o modelo cvico-territorial parece ser hegemnico2. Enfatizando a nao como uma comunidade de descendncia e destacando o papel que a cultura verncula, a lngua e os costumes populares desempe- nhariam na sua definio, o modelo etnogenealgico teve entre os antroplo- gos, os etngrafos e os folcloristas os seus intelectuais orgnicos por exce-

    lncia. Foram eles, como afirma Smith, que, atravs das suas pesquisas, forneceram os materiais para a elaborao de um discurso identitrio sobre a nao baseado na cultura popular.

    E justamente a partir deste quadro analtico que podemos encarar a antro- pologia portuguesa ao longo do perodo que vai de 1870 a 1970. Como mui- tas das suas congneres europeias, ela constitui um dos lugares centrais de articulao de um discurso de tipo etnogenealgico sobre a identidade nacio-

    nal. O seu territrio por excelncia , nessa medida, o da acumulao de fac- tos e argumentos susceptveis de construir a nao como uma comunidade de

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    descendncia tnica revelada pela sua cultura popular. Orvar Lfgren definiu a ideologia nacionalista como um gigantic do-it-yourself kit que estipula-ria, entre os atributos que uma nao deveria possuir, um passado (...) comum, (...) uma cultura popular nacional, um carcter ou uma mentalidade nacional (...) (1989: 9). Coube frequentemente aos antroplogos e etngra-fos - muitas vezes secundados por outros especialistas - a fixao desses requisitos, por intermdio dos quais se foi gradualmente elaborando [atravs de processos de seleco, categorizao, recontextualizao e congelamento] uma verso correcta, autorizada e intemporal do povo (id.: 12) enquanto essncia da nao.

    Nesse seu empreendimento etnogenealgico, os etngrafos e antroplogos portugueses, deram particular relevo, antes do mais, etnogenealogia no sen-tido mais estrito da palavra, isto , a uma anlise histrico-gentica da cultura popular susceptvel de enraizar a identidade nacional portuguesa no tempo longo da etnicidade. Embora observada no presente, a cultura popular era vista como um conjunto de testemunhos, conservados entre os camponeses, dos antecedentes tnicos mais remotos da nao.

    Paralelamente, foi grande o peso concedido reconstruo, a partir da cul-tura popular, de um elenco de traos psicolgicos e espirituais que seriam pr-prios do carcter nacional portugus, ou, para utilizar uma expresso recorren-temente usada por vrios autores, da psicologia tnica portuguesa. Por intermdio dessas investigaes, procurou-se - de acordo com um dispositivo recorrente nas ideologias nacionalistas - construir Portugal como um indiv-duo colectivo (Dumont 1983, Handler 1988) caracterizado por uma idiossin-crasia prpria, que encontraria na saudade - um dos tropos por excelncia que o sculo XX inventou para falar de Portugal - a sua expresso condensada.

    Por fim, os etngrafos e antroplogos portugueses - em conjunto com outros especialistas - foram tambm essenciais no processo de objectifica-o (Handler 1988) da cultura popular portuguesa, isto , da sua transforma-o num conjunto de aspectos, traos e objectos que, retirados do seu contexto inicial de produo - o localismo da vida camponesa puderam funcionar como emblemas da identidade nacional. Esses objectos que s ns temos e os outros no - desde especmenes de literatura popular a alfaias agrcolas, de tipos especficos de arquitectura verncula a manifestaes variveis de arte popular - foram assim constitudos em smbolos sobre os quais repousaria a possibilidade mesma de se falar da identidade nacional portuguesa.

    As investigaes que deram sucessivamente corpo aos processos que aca-bei de enumerar conheceram desfechos variveis. Nuns casos esperava-as o sucesso. o que se passa com as discusses sobre psicologia tnica em que intervm sucessivamente Tefilo Braga, Adolfo Coelho, Teixeira de Pascoaes ou Jorge Dias ou com as investigaes em torno da arquitectura popular con-duzidas pelos arquitectos modernos e pelos etnlogos da equipa de Jorge Dias nos anos 1950 e 1960. Noutros casos - como sucedeu com as tentativas de apropriao antropolgica das teses lusitanistas de Martins Sarmento e Mendes

    ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

  • APRESENTAO

    Correia - as dificuldades, as hesitaes e os silncios determinaram, pelo con-trrio, o seu insucesso.

    Os consensos gerados por estas diferentes pesquisas foram tambm diver-sos. Nuns casos, as eventuais resistncias iniciais a uma determinada forma de olhar a realidade foram vencidas e as anlises e concluses propostas foram aceites como mais ou menos incontroversas - como aconteceu com as pro-postas de Pascoaes sobre a saudade. Noutros casos, porm, aquilo que rele-vante so os conflitos de interpretao, as formas de olhar que entram em pol-mica, as guerras culturais em torno de diferentes imagens do povo e do pas (Lebovics 1992). O campo que nos ocupar no presente livro um campo onde as tenses e as diferenas so, por assim dizer, endmicas. Propondo-se idealmente como um espao de convergncia capaz de superar diferenas regionais, de classe, gnero ou idade, a identidade nacional entretanto, na prtica, uma arena onde se confrontam diferentes entendimentos sobre o que foi, ou dever ser uma nao.

    As sucessivas anlises da arquitectura popular portuguesa propostas pelos defensores da casa portuguesa, pelos engenheiros agrnomos do Inqurito Habitao Rural, pelos arquitectos modernos do Inqurito Arquitectura Popular em Portugal1 e por Veiga de Oliveira e os seus colaboradores, so um bom exemplo das tenses e conflitos que atravessam o campo dos discursos sobre a cultura popular portuguesa. No limite, todo o perodo que coincide com o Estado Novo pode ser visto a essa luz: como um perodo organizado em torno de uma guerra cultural acerca da natureza do vnculo entre cultura popular e identidade nacional, que pe face a face a chamada etnografia de regime, as teses de Jorge Dias e da sua equipa e vrias incurses de sectores crticos do regime no campo da cultura popular.

    Da mesma maneira, a verso hegemnica da nao proposta a partir do centro pode ser objecto de processos relativamente complexos de reciclagem, negociao e resistncia a partir da periferia, sobretudo se essa periferia -como parece ser o caso dos Aores - recorre aos mesmos dispositivos que o centro para pensar a sua identidade no quadro do todo nacional.

    So justamente as diferentes facetas destes processos que o presente livro pretende explorar. Nele procurei fazer no tanto uma relao histrica exaus-tiva da etnografia e da antropologia portuguesas como discursos de imagina-o etnogrfica da nao, mas um tratamento selectivo de tpicos particular-mente significativos. Esse tratamento tem por base um trabalho de pesquisa

    1 O Inqurito organizado pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos de que resultou o livro Arquitectura Popular em Portugal (1961) tinha o ttulo inicial - relativamente pouco conhe-cido - de Inqurito Arquitectura Regional Portuguesa. Este ttulo foi certamente adoptado por razes de natureza tctica, uma vez que era essa a designao que o regime reservava ao universo daquilo que, entretanto, os arquitectos do SNA iro rebaptizar - ao esolherem o ttulo para o livro - de Arquitectura Popular em Portugal. Por essa razo, no decurso deste livro, optei por designar o Inqurito como Inqurito Arquitectura Popular em Portugal.

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    1 Realizei um total de seis entrevistas desse tipo com Benjamim Pereira, Eugnio Castro Caldas (entretanto falecido), Carlos Silva, Fernando Tvora, Alexandre Alves Costa e Nuno Teotnio Pereira. Todas as entrevistas decorreram em 1996 e - com excepo da de Benjamim Pereira, que foi mais prolongada - tiveram uma durao aproximada de duas horas. Queria agradecer a todos os entrevistados a disponibilidade evidenciada, bem como a valiosa infor-mao fornecida.

    bibliogrfica que incidiu fundamentalmente sobre fontes publicadas, comple-mentado com consultas pontuais de algumas fontes manuscritas - que se encontram devidamente identificadas no texto - e com entrevistas realizadas a alguns dos intervenientes nos processos que analiso1. Embora o livro tenha sido pensado como um todo requerendo uma leitura sequencial, muitos cap-tulos acabaram, no processo de redaco final, por ganhar alguma autonomia relativa. Se o leitor o desejar, poder ento optar por uma leitura mais solta, no sequencial, do texto.

    A I Parte do livro - intitulada A Procura do Povo Portugus - inicia-se com um captulo consagrado ao processo de desenvolvimento da etnografia e da antropologia portuguesa entre 1870 e 1970. Depois de apresentada uma proposta de periodizao histrica da antropologia portuguesa, so identifica-dos os principais protagonistas da disciplina em cada um dos seus principais perodos de desenvolvimento e os contextos polticos e culturais mais vastos em que eles se moveram. De seguida, pe-se em relevo o modo como em cada um desses perodos, triunfam no apenas formas diferentes de pensar meto-dologica e teoricamente a antropologia, mas modos distintos de definio do prprio universo da cultura popular. Finalmente, chama-se a ateno para o modo como essas diferenas so dobradas por formas distintas de imaginar o pas e de tematizar a identidade nacional. A pesquisa de que resulta a sntese proposta neste captulo procurou ser o mais abrangente possvel. Para certos aspectos precisos - como o caso da etnografia do Estado Novo -, recorri entretanto a levantamentos mais selectivos. Embora no retire segurana interpretao proposta - que beneficia do surgimento recente de alguns estu-dos sobre o tema (Alves 1997, Melo 1997, Branco 1999a, 1999b) -, essa cir-cunstncia torna as minhas consideraes em torno do tpico mais abertas a futuras revises.

    Proposto este Retrato de Grupo da antropologia e da etnografia portu-guesas, o captulo seguinte - A Sombra Esquiva dos Lusitanos. Exerccios de Etnogenealogia - tenta proceder a uma abordagem tematizada daquela que , como sugeri, uma das grandes constantes do discurso etnogrfico por-tugus: a sua preocupao com a reconstituio da etnognese da cultura popu-lar, capaz de dotar a identidade nacional portuguesa da espessura e da dura-o da etnicidade. Em alternativa a uma abordagem eventualmente mais equilibrada, preferi privilegiar um tpico preciso - a atraco da antropologia portuguesa pelas teses lusitanistas - para, a partir da, fornecer um conjunto de indicaes mais sintticas sobre outras teses etnogenealgicas. Como o lei-

    ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

  • APRESENTAO

    tor se dar conta, foi particularmente importante, para a argumentao desen-volvida neste captulo, a leitura, em 1995, de um artigo de Anthony Smith publicado na revista Nations and Nationalism (Smith 1995). Sem esse artigo, as consideraes finais acerca do conflito entre a razo nacional e a razo etnogrfica teriam ficado certamente formuladas de uma forma menos clara.

    O terceiro captulo organiza-se em torno de uma leitura aprofundada do importante ensaio de Jorge Dias Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa (1990a [1953]) e consagrado a essa recorrente preocupao da antropologia portuguesa com a definio do carcter nacional portugus. A abertura para os discursos de etnografia espontnea que dialogam com a antropologia propriamente dita - embora j entrevista no captulo anterior -torna-se aqui mais importante, sobretudo por intermdio do peso concedido s reflexes de Teixeira de Pascoaes em torno da saudade. Embora, mais uma vez, tenha procurado ser o mais abrangente possvel, optei por dar um tratamento secundrio a textos - como O Enigma Portugus de Cunha Leo (1973 [1960]) - que provavelmente mereceriam uma anlise mais aprofun-dada. Em contrapartida, na parte final do captulo, projectei a discusso para actualidade, interrogando textos de Eduardo Loureno, Jos Matoso e Boaventura Sousa Santos. A escolha destes autores tudo menos inocente. Eles so, do meu ponto de vista, as figuras fundamentais do processo de reestruturao dos discursos de identidade nacional portuguesa subsequente ao 25 de Abril, descolonizao e adeso de Portugal Unio Europeia. P-los em dilogo com Tefilo Braga, Teixeira de Pascoaes ou Jorge Dias - que, noutras circunstncias, desempenharam um papel similar - pareceu--me pois, mais do que adequado, ironicamente justo. O leitor ter ocasio de verificar porqu.

    Depois de percorridos os caminhos sucessivos da etnogenealogia e da psi-cologia tnica, a II parte do livro - integrada por um conjunto de quatro cap-tulos - tenta interrogar alguns processos de objectificao da cultura popular portuguesa ao longo do perodo compreendido entre 1870 e 1970. Entre os vrios temas possveis - literatura popular, alfaias agrcolas, traje tradicional, msica popular - optei pela arquitectura popular. As razes para essa escolha - como sugeri nos Agradecimentos - so, em certa medida, pessoais e tm a ver com uma atraco antiga pelo universo da arquitectura.

    Mas h tambm razes menos subjectivas para essa opo. Assim, por um lado, do ponto de vista das articulaes entre a etnografia e a antropologia e outros discursos de etnografia espontnea, o tema da arquitectura surgiu-me, desde o princpio, como um dos mais promissores. Frequentado por antrop-logos to importantes como Rocha Peixoto, Verglio Correia e Ernesto Veiga de Oliveira, ele foi ainda alvo da ateno de historiadores da arte - como Gabriel Pereira ou Joo Barreira - de arquitectos - com destaque para Ral Lino e para a sua casa portuguesa e para os arquitectos modernos do Inqurito Arquitectura Popular em Portugal - e, ainda, dos engenheiros agrnomos do frequentemente esquecido Inqurito Habitao Rural.

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    1 Cf., a este respeito, Santos Silva 1997: 131-151 eos estudos publicados em Brito & Leal 1997. Antnio Medeiros (1995, 1996) consagrou tambm alguns dos seus trabalhos interro-gao dos discursos etnogrficos centrados no Minho.

    Por outro lado, em seu torno, era particularmente claro esse elemento de tenso polarizado por diferentes imagens da cultura popular e do prprio pas indispensvel para restituir uma dimenso frequentemente negligenciada dos discursos de identidade nacional. Entre as propostas de Ral Lino e da casa portuguesa abordadas no captulo 4 e as perspectivas sucessivamente desen-volvidas pelo Inqurito Habitao Rural, pelo Inqurito Arquitectura Popular em Portugal e pelas pesquisas de Veiga de Oliveira e seus colabora-dores - abordadas nos captulos 5, 6 e 7 -, travou-se de facto uma das mais expressivas guerras culturais do perodo do Estado Novo.

    Que essa guerra tenha sido frequentada por personagens como Antnio Ferro - chefe da propaganda do regime nos seus anos fundacionais - ou Duarte Pacheco e Rafael Duque - ministros modernizadores de Salazar -, que o prprio Salazar ou, ainda, lvaro Cunhal, tenham nela tido curtas aparies, reforou a minha convico de que este era um dossier particularmente ade-quado para ilustrar os elementos de conflito presentes nos discursos sobre iden-tidade nacional organizados a partir da cultura popular portuguesa.

    Ao optar pelo tema da arquitectura popular, corri um certo nmero de ris-cos, decorrentes sobretudo da minha condio de intruso no campo disciplinar da histria da arquitectura. Para reduzir esses riscos, adoptei algumas precau-es. Evitei entrar no domnio - no qual no me sinto muito vontade - da anlise arquitectnica dos edifcios, recorrendo - sempre que tal me pareceu necessrio - aos escritos dos especialistas. Dei tambm grande nfase pes-quisa de fontes escritas susceptveis de restituir o modo, como no seu tempo, os problemas foram pensados e discutidos. Entre essas fontes, as revistas Arquitectura Portuguesa, Construo Moderna e Arquitectura - esta ltima para as dcadas de 1950 e 1960 - revelaram-se particularmente teis. Resta--me acrescentar que aquilo que procurei fazer nos captulos sobre a casa por-tuguesa e sobre o Inqurito Arquitectura Popular em Portugal no foi hist-ria da arquitectura - matria para a qual no me reconheo competncia - mas a histria de certos episdios que, na arquitectura portuguesa do sculo XX, reenviam, por intermdio de uma comum referncia cultura popular e iden-tidade nacional, para o campo disciplinar da antropologia.

    Situada no seguimento desta longa viagem pelos processos de objectifi-cao da cultura popular associados arquitectura rural, a III e ltima parte do livro - integrada pelo captulo Aorianidade: Literatura, Poltica, Etnografia - interroga uma faceta geralmente pouco retida das etnografias portuguesas: os saberes etnogrficos locais e/ou regionais1. Recorrendo ao exemplo aoriano, tento mostrar que a equao entre cultura popular e iden-tidade, comeando por se deixar ver de uma forma particularmente clara escala nacional, tambm estruturante dos discursos etnogrficos produzidos

    ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

  • APRESENTAO

    regionalmente. Ponho tambm em evidncia o modo como, no caso aoriano, esses discursos - que se encarregam de pormenorizar no terreno a cartogra-fia da nao elaborada a partir do centro (Brito & Leal 1997: 188) - se cons-tituem como espaos de reciclagem, negociao e resistncia relativamente aos processo de imaginao etnogrfica da nao conduzidos a partir do centro.

    Finalmente, nas Observaes Finais, tento - semelhana do que fiz no captulo sobre psicologia tnica - projectar para o presente as questes que analisei no passado. De facto, alguns dos temas examinados no livro possuem um interesse e uma dimenso que no so exclusivamente histricas. Neles cristalizaram, designadamente, recursos simblicos que tm vindo a adquirir um valor acrescido em consequncia dos processos de patrimonializao nos-tlgica que acompanham o fim do mundo rural tal como o conhecamos e da importncia que as polticas identitrias - escala local, regional e/ou nacio-nal - tm vindo a ganhar. So alguns dos aspectos desse retorno post-moderno da tradio e da identidade que me proponho interrogar nas pginas finais deste livro.

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  • PARTE I

    PROCURA DO POVO PORTUGUS

  • CAPTULO 1 A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970:

    UM RETRATO DE GRUPO

    Num artigo de 1982 George Stocking (1982b) chamou a ateno para a existncia de duas tradies distintas no processo de desenvolvimento da antropologia a partir do final do sculo xix: uma tradio antropolgica de construo do imprio e uma tradio antropolgica de construo da nao. A primeira triunfou nos EUA e em pases europeus centrais - como a Gr-Bretanha e a Frana - que possuam ento um imprio colonial. Nesses pases, a antropologia definiu-se como uma disciplina preferencialmente orien-tada para as sociedades e culturas no-ocidentais, por intermdio da qual ganhou corpo uma reflexo sobre a primitividade e a alteridade culturais. A segunda tradio, por seu turno, ganhou maior expresso em pases europeus da periferia ou semi-periferia que, alm de no terem colnias, lutavam ento pela obteno e/ou consolidao da sua autonomia nacional. A, a antropolo-gia definiu-se como um projecto orientado para o estudo da tradio campo-nesa nacional marcado por pressupostos analticos decisivamente ligados construo da identidade nacional.

    Em Portugal, apesar da existncia de um imprio e da inexistncia de um problema nacional idntico ao da generalidade dos pases perifricos e semi-perifricos da Europa, foi entretanto como uma antropologia de construo da nao que a antropologia se desenvolveu e afirmou na cena cultural e inte-lectual portuguesa a partir das dcadas de 1870 e 1880.

    De facto, por um lado - e em provvel consequncia da debilidade e do carcter dependente do colonialismo portugus -, relativamente tardio o desen-volvimento de um interesse antropolgico centrado no terreno colonial portu-gus. Este, como demonstrou Rui Pereira (1986, 1989a, 1989b, 1989c, 1999),

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    1 Adopto aqui os limites cronolgicos empregues por Lus Angel Sanchez Gomez (1997).

    remonta ao final da dcada de 1950, quando Jorge Dias iniciou a sua pesquisa entre os Macondes do norte de Moambique. At a, como sublinhou o mesmo autor, a frequncia antropolgica do terreno colonial portugus havia-se orien-tado exclusivamente para investigaes de antropologia fsica e/ou biolgica (Pereira, Rui 1999). Embora tivessem sido editados alguns estudos marcados por uma certa curiosidade pelos sinais propriamente culturais da alteridade das populaes residentes nos territrios sob administrao colonial portuguesa, trata-se de contribuies isoladas, de teor essencialmente descritivo e com uma circulao e um impacto limitados na cena cultural e cientfica portuguesa.

    Na ausncia de uma tradio antropolgica de construo do imprio, foi como uma antropologia de construo da nao que a disciplina se desenvol-veu em Portugal. De facto, tal como em muitos outros pases europeus onde prevaleceu uma opo idntica, a antropologia portuguesa no s se consti-tuiu como um espao disciplinar orientado para o estudo da cultura popular portuguesa de matriz rural, como essa sua orientao foi dobrada por pressu-postos analticos marcados pela centralidade da problemtica da identidade nacional. certo que Portugal, usualmente considerado como uma das mais antigas e contnuas naes do ocidente (Seton-Watson 1977), no tinha um problema nacional similar ao da maioria dos pases onde triunfou uma tradi-o antropolgica de construo da nao. Entretanto, como sublinhou Eduardo Loureno (1978), no menos verdade que a vida cultural portuguesa ao longo do sculo xix e de boa parte do sculo XX parece estruturar-se em redor da preocupao obsessiva (id.: 89) com a identidade nacional portu-guesa, resultante daquilo que o autor classifica como um persistente senti-mento de fragilidade ntica (id.: 92) dos intelectuais portugueses relativa-mente ao seu prprio pas. Responsvel pelo lugar central que Portugal enquanto sujeito ocupa na histria literria portuguesa dos ltimos 150 anos, essa circunstncia tambm susceptvel de explicar o peso que o tpico da identidade nacional teve no desenvolvimento histrico da antropologia portu-guesa

    Nascida sob o signo da identidade nacional, a antropologia portuguesa guardou at muito tarde estas suas caractersticas. De facto, por um lado - como acabmos de ver -, s a partir do final de dcada de 1950, com o tra-balho de Jorge Dias entre os Maconde, que o auto-centramento da disciplina em torno do terreno portugus comeou a ser posto em causa. Por outro lado, foi apenas nas dcadas de 1960 e 1970 que comearam a surgir trabalhos -como os de Joyce Riegelhaupt (1964, 1967, 1973), Colette Callier-Boisvert (1966, 1968) e Jos Cutileiro (1971, 1977) - onde o estudo da cultura popu-lar de matriz rural aparece dissociado de quadros analticos influenciados por pressupostos de tipo nacionalista.

    Pode-se pois dizer que ao longo do perodo de quase um sculo que se estende de 1870 a 19701 a antropologia portuguesa no s teve na cultura

    ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

  • CIONAL A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE GRUPO

    popular de matriz rural o seu objecto principal de pesquisa, como o seu inte-resse por tpico se organizou em torno de preocupaes hegemonizadas pelo tema da identidade nacional portuguesa.

    CONTEXTOS, PROTAGONISTAS, INSTITUIES Nessa sua dupla configurao, a antropologia portuguesa conheceu, ao

    longo desse perodo de quase um sculo, diferentes fases no seu processo de desenvolvimento, ligadas antes do mais a diferentes contextos, protagonistas e nveis de institucionalizao1.

    A primeira grande fase de desenvolvimento da antropologia em Portugal coincide com as dcadas de 1870 e 1880: nesse perodo que se assiste emergncia, como campo disciplinar autnomo, da antropologia portuguesa. Tendo em Adolfo Coelho (1847-1919) e em Tefilo Braga (1843-1924) as suas figuras mais destacadas, a nascente antropologia portuguesa assentou ainda no trabalho pioneiro de Consiglieri Pedroso (1851-1910) e do ento jovem Leite de Vasconcelos (1858-1941)2.

    O contexto intelectual mais vasto em que estes autores desenvolveram o seu trabalho dominado pelas Conferncias do Casino de 1871 - de que Adolfo Coelho e Tefilo Braga foram participantes destacados - e pelos seus propsi-tos de radical regenerao da vida intelectual portuguesa. Insistindo na urgente europeizao de Portugal e na sua adeso s ideias do sculo, procurando agitar na opinio pblica as grandes questes da Filosofia e da Cincia Moderna (Antero de Quental in Pires 1992: 62), as Conferncias do Casino constituram de facto um momento de viragem na cultura e na cincia portu-guesas do sculo XIX, tendo tido um impacto considervel no desenvolvimento

    1 O que se procura de seguida fazer foi j tentado por diversas vezes na histria da antro-pologia portuguesa, por autores como Leite de Vasconcelos (1933: 250-325), Jorge Dias (1952), Jorge Freitas Branco (1986), Joo Pina Cabral (1991) ou Snchez Gomez (1997). no segui-mento dessas reflexes anteriores sobre a periodizao da antropologia portuguesa que se situa a presente proposta. Esta, ao mesmo tempo que apresenta em relao a elas um certo nmero de similitudes, separa-se delas nalguns pontos. Assim, nos termos da presente proposta, e dei-xando de lado os precursores romnticos, seria possvel distinguir fundamentalmente quatro grandes perodos na histria da antropologia portuguesa: anos 1870 e 1880; viragem do sculo; anos 1910 e 1920; e, finalmente, anos 1930 a 1960. Esta periodizao apresenta, relativamente s propostas anteriores, algumas diferenas importantes. Assim, no sculo XIX, autonomizo o perodo da viragem do sculo relativamente aos anos 70/80 (cf., a este respeito, Leal 1995). No sculo XX, procedo tambm autonomizao do perodo dos anos 1910 e 1920, at agora objecto de tratamentos relativamente sumrios. A minha viso dos anos 1930 a 1960, por fim distingue trs grandes grupos de protagonistas: a etnografia do Estado Novo, o grupo de Jorge Dias e a etnografia construda em torna da crtica ao Estado Novo.

    2 Sobe Adolfo Coelho, cf. Leal 1993a e 1993b; sobre Tefilo Braga, h apenas estudos parcelares; cf. Ferr 1982, Branco 1985, Leal 1987; sobre Consiglieri Pedroso cf. Leal 1988; finalmente, acerca da actividade de Leite de Vasconcelos neste perodo, cf. Guerreiro 1986a.

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  • ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

    de ramos de saber at ento desconhecidos em Portugal. Entre esses saberes - a par das cincias naturais darwinistas, da histria de Renan ou da lingus-tica indo-europeia - encontra-se justamente aquilo que hoje designamos como antropologia e que, na altura, era classificado de muitas outras maneiras.

    Etnografia, folclore, etnologia, demtica, demologia, mitologia, mitografia, tradies populares, eram, de facto, as expresses mais ou menos equivalentes utilizadas para designar este novo campo de saberes que possua, simultanea-mente, fronteiras relativamente porosas com disciplinas como a filologia, a lin-gustica, a histria literria, a arqueologia ou a antropologia fsica1. Dada esta porosidade de fronteiras, a maioria dos etnlogos portugueses desse perodo foram tambm destacados cultores de outras disciplinas. Tefilo Braga, por exemplo, teve um papel determinante na divulgao do positivismo em Portugal2 e praticou a histria literria. Adolfo Coelho, para alm de antrop-logo, foi tambm linguista e pedagogo3. Leite de Vasconcelos percorrer, a par-tir de 1885, os caminhos da dialectologia e da arqueologia.

    Esta porosidade de fronteiras reflecte obviamente tendncias mais gerais prevalecentes na Europa, onde os novos saberes oitocentistas comunicam ento entre si com uma facilidade que s comear a ser posta em causa nas primeiras dcadas do sculo XX. Mas, no caso portugus, deve ser tambm vista como um efeito do clima instaurado pelas Conferncias do Casino. Dispersando-se por vrias reas cientficas, os etnlogos portugueses das dca-das de 1870 e 1880 procuravam alargar a frente do combate pela introduo dos novos saberes oitocentistas, indispensvel ao programa de regenerao da vida intelectual portuguesa pelo qual se batiam.

    Simultaneamente, estas dcadas iniciais deixam-se tambm ver como um perodo dominado por uma grande vontade de actualizao internacional da antropologia portuguesa e, simultaneamente, de grande visibilidade desta na cena intelectual e cultural interna.

    De facto, antes do mais, os etnlogos portugueses mostram-se a par das principais obras, correntes e debates que percorrem os campos disciplinares em que operam. Estas, desde a inaugurao da ligao ferroviria Europa, pas-saram a chegar a Portugal com relativa facilidade. Em consequncia, a ampli-tude das referncias bibliogrficas manipuladas por vezes surpreendente. Tefilo Braga - como tem sido sublinhado (Branco 1985, Leal 1987) - l pra-ticamente tudo o que h para ler, embora lhe sobre por vezes pouco tempo para digerir tanta leitura. Consiglieri Pedroso faz anteceder o seu ensaio pioneiro sobre A Constituio da Famlia Primitiva (1988a [1878]) de um exaustivo balano dos principais desenvolvimentos cientficos oitocentistas, pontuado por

    1 Para algumas consideraes sobre esta porosidade de fronteiras disciplinares, cf. Ramada Curto 1993: 132 e 1995: 179-184.

    2 Acerca do papel de Tefilo Braga na divulgao do positivismo, cf. Ribeiro, lvaro 1951 e Catroga 1977.

    3 Acerca da obra de Adolfo Coelho no domnio da pedagogia, cf. Fernandes 1973.

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    1 Cf., a este respeito, Leal 1988. 2 Acerca da produo antropolgica de Oliveira Martins, cf., por exemplo, Guerreiro 1986b.

    e Vakil 1995. 3 Para uma viso geral das dificuldades de implantao institucional da disciplina antro-

    polgica em Portugal, cf. Branco 1986.

    A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE GRUPO

    referncias a autores to diversificados como Renan, Mmmsem, Benfey, Max Mller, Darwin, Spencer, Boucher de Perthes ou E. B. Tylor. Adolfo Coelho e Leite de Vasconcelos afinam pelo mesmo diapaso, recorrendo de forma siste-mtica a Max Mller e escola da Mitologia Comparada ou a Tylor e a outros autores evolucionistas. Simultaneamente, forte a insero internacional da antropologia portuguesa da poca. Um dos autores mais expressivos a este res-peito Consiglieri Pedroso, cujos conhecimentos de lnguas lhe do acesso a autores pouco conhecidos em Portugal, designadamente da nacionalidade alem, russa e polaca. Os seus contactos internacionais so tambm relativa-mente amplos e Consiglieri mantm correspondncia com diversos folcloristas estrangeiros, sendo membro de vrias sociedades cientficas internacionais. Em consequncia, alguns dos seus ensaios e recolhas - com destaque para a sua coleco de contos populares, publicada em Londres ainda antes da sua edio portuguesa (Pedroso 1882) - sero editados em revistas e editoras estrangei-ras1. Adolfo Coelho mantm igualmente uma rede de cooperao internacional alargada, publicando artigos na Romania, nos Zeitschrift fr Romanische Philologie ou no Archivio per lo Studio delle Tradizione Popolari. A sua colec-o de contos populares ser tambm editada em Londres, sob o ttulo Tales of Old Lusitania from Folklore of Portugal (Coelho 1885).

    Paralelamente a esta insero internacional, a antropologia das dcadas de 1870 e 1880 possui tambm uma grande visibilidade na cena cultural e cien-tfica portuguesa, que se reflecte, por exemplo, no lugar que ocupa - desig-nadamente pela mo de Consiglieri Pedroso e de Tefilo Braga - numa revista to importante como O Positivismo. Jornais de circulao nacional relativa-mente significativa como o Jornal do Comrcio ou o Dirio de Notcias publi-cam tambm com alguma frequncia artigos etnogrficos. igualmente luz desta capacidade de atraco da antropologia e da etnografia que se pode entender, por exemplo, o modo como intelectuais como Teixeira Bastos (1856--1901) (Bastos 1878) e, sobretudo, Oliveira Martins (1845-1894) (Martins 1880, 1881, 1882, 1883) frequentaram ento esse campo disciplinar. O caso de Oliveira Martins particularmente importante, no apenas pela importn-cia que o autor tinha na vida cultural portuguesa da poca, mas tambm pelo facto das suas incurses na antropologia terem originado a publicao de qua-tro volumes da sua famosa Biblioteca de Cincias Sociais2.

    Apesar deste clima globalmente favorvel ao desenvolvimento da nova disciplina, so entretanto notrias as suas dificuldades de consolidao insti-tucional3. E verdade que surgem ento as primeiras revistas especificamente etnogrficas e/ou antropolgicas, como a Revista de Etnologia e Glotologia,

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    1 A Revista de Etnologia e Glotologia, que nunca publicou outras colaboraes seno as do seu director, extinguiu-se ao fim do quarto fascculo e o Anurio no conseguiu tambm publicar seno um nico volume em 1882.

    2 Na bibliografia at agora disponvel sobre histria da antropologia portuguesa, este pe-rodo no tem sido geralmente tratado de forma autnoma, sendo encarado como um prolon-gamento dos desenvolvimentos ocorridos nas dcadas de 1870 e 1880. Parece-me entretanto que as suas diferenas relativamente a essas dcadas inicias so suficientemente importantes para justificarem o seu tratamento autnomo (cf., a este respeito, Leal 1995).

    3 O melhor estudo acerca de Rocha Peixoto, continua a ser o de Flvio Gonalves (1967). Cf. tambm Veiga de Oliveira 1966a e Leal 1995.

    4 Acerca da reorientao arqueolgica da carreira de Leite de Vasconcelos a partir de 1885, cf. Leal 1996 e ainda o captulo 2 do presente livro.

    ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

    dirigida por Adolfo Coelho, ou o Anurio para o Estudo das Tradies Populares Portuguesas, editado por Leite de Vasconcelos. Mas estas revistas so, no essencial, empreendimentos individuais sem efectiva capacidade de congregarem os esforos dos membros da reduzida comunidade antropolgica existente e, por essa e outras razes, no duraro mais de um a dois anos1. Simultaneamente, todo este ambiente no repercute em desenvolvimentos con-sistentes ao nvel das instituies - como os museus ou a universidade - que poderiam ter eventualmente dado um suporte mais seguro e permanente dis-ciplina. O conceito mesmo de museu etnogrfico no surge ainda nas discus-ses da poca. Quanto universidade, embora alguns dos etnlogos sejam l professores e ocupem simultaneamente posies de destaque noutras institui-es cientficas e/ou culturais, fazem-no em geral ligados a outras reas que no a antropologia. Assim, Tefilo Braga ensinou Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras, onde Consiglieri Pedroso leccionava Histria Universal e Ptria e Adolfo Coelho Filologia Romnica e Filologia Portuguesa. Quanto a Leite de Vasconcelos, o primeiro lugar pblico de destaque que exer-ceu foi o de director da Biblioteca Nacional de Lisboa.

    O segundo grande perodo de desenvolvimento da antropologia portuguesa corresponde viragem do sculo, isto , s dcadas de 1890 e 19002. Se o acon-tecimento decisivo para entender a antropologia portuguesa dos anos 1870 e 1880 tinham sido as Conferncias do Casino, o evento fundamental que enquadra a antropologia portuguesa na viragem do sculo o Ultimatum e, na sua sequn-cia, a abertura da fase final da crise da monarquia. Como teremos ocasio de veri-ficar, designadamente em resultado desse acontecimento que se pode entender o peso que ter na antropologia portuguesa de ento o tema da decadncia nacio-nal. Os principais protagonistas da cena antropolgica desse anos so Rocha Peixoto (1868-1909)3 e Adolfo Coelho, sendo este ltimo o nico autor j activo nas dcadas de 1870 e 1880 que prossegue ento o seu labor no domnio antro-polgico. Tefilo Braga e Consiglieri Pedroso haviam, sensivelmente desde o meio da dcada de 1880, trocado a antropologia pela poltica republicana e Leite de Vasconcelos, a partir da mesma altura, ir secundarizar o seu interesse pela etnografia em resultado de um mais efectivo investimento na arqueologia4.

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    1 Acerca do Museu Etnogrfico Portugus, cf. Branco 1995 e Leal 1996. 2 Acerca de Toms Pires, cf. Falco & Ferreira 1986 e Lajes 1992. 3 Para mais detalhes acerca destes autores cf. Vasconcelos 1933: 268-283. Acerca da impor-

    tncia das etnografias locais e regionais no desenvolvimento histrico da disciplina antropol-gica em Portugal, cf. Brito & Leal 1997 e Santos Silva 1997: 131-151.

    Do ponto de vista institucional, h a registar a maior consistncia das revis-tas etnogrficas e antropolgicas portuguesas ento lanadas, com destaque para a Portuglia e para a Revista Lusitana, a primeira fundada e dirigida por Rocha Peixoto e a segunda por Leite de Vasconcelos. tambm desse per-odo que datam as primeiras incurses museolgicas da etnografia e da antro-pologia portuguesas. Em 1896, Adolfo Coelho prope a realizao de uma exposio etnogrfica em Lisboa, por ocasio do 4. centenrio da viagem de Vasco da Gama ndia, cujo programa ser publicado no ensaio Exposio Etnogrfica Portuguesa. Portugal e Ilhas Adjacentes (1993e [1896]). Embora essa exposio no se chegue a realizar, ser entretanto organizada, no mbito dessas comemoraes, uma exposio de alfaias agrcolas na Tapada da Ajuda (Coelho 1993g [1901]), que pode ser encarada como uma das primeiras expo-sies etnogrficas realizadas em Portugal. Antes, em 1893, havia tambm sido criado o Museu Etnogrfico Portugus, dirigido por Leite de Vasconcelos, que apesar da sua vocao fundamentalmente arqueolgica, compreendia tam-bm uma seco consagrada etnografia1.

    Na sequncia das actividades pioneiras de Silva Vieira e da Revista do Minho e, ainda, de A. Toms Pires (1850-1913)2 e do crculo de etngrafos de Elvas - que remontam aos anos 1880 - tornam-se mais evidentes os sinais de desmultiplicao local e regional da etnografia portuguesa. O papel da Portuglia de Rocha Peixoto nesse processo de descentralizao particular-mente importante. Alguns dos seus nomes mais relevantes - como Silva Pico (1859-1922) e Tude de Sousa (1874-1951) - so colaboradores regulares da Portuglia, cuja rede de correspondentes locais se estende um pouco por todo o pas. No mesmo perodo, a Revista Lusitana publica tambm regularmente recolhas de A. Toms Pires e outros etngrafos locais e surgem revistas como A Tradio e A Ilustrao Transmontana, dedicadas exclusivamente a mat-ria etnogrfica - como o caso de A Tradio de Serpa - ou reservando a esta um lugar de destaque - como o caso da Ilustrao Transmontana. Cndido Landolt (1863-1921) (Barcelos e Pvoa do Varzim), Pedro Fernandes Toms (1853-1927) (Figueira da Foz), Vieira Natividade (1899-1968) (Alcobaa) e Atade de Oliveira (1842-1915) (Algarve), so, para alm dos nomes j indi-cados, outros autores que testemunham deste florescimento local e regional da antropologia portuguesa na viragem do sculo3.

    Apesar desta maior espessura institucional, mantm-se entretanto o alhea-mento universitrio em relao antropologia e globalmente a produo antro-polgica, agora mais rotinizada, perde alguma da visibilidade na vida cultu-

    A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE GRUPO

    Tnia Santos

  • ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

    ral e cientfica portuguesa que possua nas dcadas de 1870 e 1880. Isso no impede que no se mantenha alguma capacidade de actualizao terica da disciplina, particularmente bem ilustrada na obra de Adolfo Coelho, onde possvel encontrar inmeras referncias a antroplogos como Wundt, Durkheim, Mauss e Boas, que, como se sabe, marcaram em plano de relevo a antropologia internacional da viragem do sculo.

    O terceiro grande perodo do desenvolvimento da antropologia portuguesa estende-se ao longo das dcadas de 1910 e 19201. Coincidente em traos gerais com a I Repblica, essa fase tem em Verglio Correia (1888-1944), D. Sebastio Pessanha (1892-1975), Lus Chaves (1889-1975) e Augusto Csar Pires de Lima (1888-1959) algumas das suas principais figuras. tam-bm nestes anos que, depois de quase duas dcadas consagradas basicamente dialectologia e, sobretudo, arqueologia, Leite de Vasconcelos regressa de forma mais sistemtica investigao etnogrfica, com a edio dos ensaios includos na srie Estudos de Etnografia Comparativa (1918, 1925a, 1925b) e com a publicao do Boletim de Etnografia, de que foi o fundador, director e nico colaborador. de resto em torno de Leite de Vasconcelos que os etn-grafos acima referidos se organizam. Verglio Correia - que posteriormente entrar em rota de coliso com Vasconcelos e abandonar a etnografia, con-centrando-se na arqueologia e na histria da arte - e Lus Chaves foram seus colaboradores no Museu Etnolgico Portugus e A. C. Pires de Lima publi-cava com regularidade na Revista Lusitana2.

    Do ponto de vista institucional, registam-se alguns tmidos progressos por referncia ao perodo da viragem do sculo. O processo de descentralizao local e regional da etnografia e da antropologia portuguesas prossegue, tendo em Cludio Basto (1866-1945) e na revista Lusa (Viana do Castelo), por ele fundada e dirigida, um dos seus mais expressivos exemplos. Vrias outras revistas regionalistas, como a Terra Nossa ou a Alma Nova, reservam tambm um lugar de relevo publicao de materiais etnogrficos. Autores como Leite de Atade (1882-1955) e Urbano Mendona Dias (1878-1951) (Aores), Jaime Lopes Dias (1890-1977) (Beira Baixa), Pe. Firmino Martins (1890-?)

    1 Conforme assinalmos atrs, este tem sido at agora um perodo negligenciado na pro-duo disponvel sobre a histria da antropologia portuguesa. Entretanto, como procurarei demonstrar, apesar de uma produo eventualmente menos significativa, a etnografia destas duas dcadas marca no apenas uma inflexo importante no desenvolvimento histrico da antro-pologia em Portugal, como essencial para a compreenso da etnografia do Estado Novo, que se situa na sua sequncia imediata.

    2 Sobre o retorno de Leite de Vasconcelos etnografia cf. Leal 1996. Acerca dos restan-tes autores que marcaram em plano de maior ou menor relevo as dcadas de 1910 e 1920, no h, devido ao silncio que tem rodeado at agora este perodo de desenvolvimento da antropo-logia portuguesa, estudos disponveis do ponto de vista da histria da antropologia. Sobre Verglio Correia, existe alguma bibliografia, mais orientada, entretanto, para as suas prestaes no domnio da histria da arte e da arqueologia. Cf. designadamente Frana 1990 (1967): 344--352 e Carvalho, Joaquim 1946.

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    1 Durante muito tempo ignorado pelas pesquisas de histria da antropologia portuguesa, a etnografia do Estado Novo tem vindo a ser redescoberta recentemente por vrios historiadores que tm trabalhado sobre poltica cultural do Estado Novo e por alguns antroplogos interes-sados na histria da disciplina. Entre as contribuies dos historiadores, cf., por exemplo, Paulo 1994, Melo 1997 e Acciaiuoli 1998. Entre os antroplogos cf. Brito 1982, Alves 1997 e Branco 1999a e 1999b.

    A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE GRUPO

    (Vinhais), Afonso do Pao (1895-1968) e Alberto Braga (1862-1965) (Minho) confirmam tambm essa crescente expresso regionalizada da etnografia por-tuguesa. A nvel central, entretanto, a situao de algum impasse. No plano museolgico, apesar dos passos auspiciosos dados na ltima dcada do sculo xix, mantm-se uma situao de alguma estagnao, com o Museu Etnogrfico Portugus - que desde 1897 havia adoptado a designao mais abrangente de Museu Etnolgico Portugus - a continuar a privilegiar o seu esplio arqueolgico em detrimento dos materiais etnogrficos. Apesar desse impasse, que se reencontra, mais uma vez, ao nvel da universidade, surgem entretanto novas instituies de alguma forma comprometidas com a antro-pologia, como a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (SPAE), fundada no Porto por Mendes Correia (1888-1960) e que, apesar de uma opo dominante pela antropologia fsica e pela arqueologia, no deixar de esti-mular alguma pesquisa etnogrfica. Em Lisboa, por seu turno, Verglio Correia aparece associado - com D. Sebastio Pessanha - revista Terra Portuguesa que, a par de temas da histria de arte e de arqueologia, consagrar tambm um lugar de relevo etnografia.

    Apesar das dificuldades de institucionalizao e de um relativo isolamento internacional - reencontrvel noutras tradies nacionais de antropologia da poca - a etnografia portuguesa do perodo recupera entretanto, no plano domstico, alguma da visibilidade perdida nos anos da viragem do sculo. Os etngrafos tm de facto presena relevante nalgumas das revistas culturais mais significativas da poca, como A guia de Teixeira de Pascoaes (1877--1952) ou a Atlntida de Joo de Barros (1881-1960) e, como teremos oca-sio de ver mais adiante, integram-se activamente no clima de nacionalismo cultural que caracteriza os anos da I Repblica (Ramos 1994).

    Finalmente, um quarto perodo no desenvolvimento da antropologia por-tuguesa o que se desenvolve desde a dcada de 1930 at aos anos 1970. Politicamente coincidente com o Estado Novo, esta fase protagonizada por uma diversidade maior de actores, que podemos distribuir por trs grandes grupos.

    Um desses grupos constitudo pelos etngrafos mais ligados ao Estado Novo, cuja poltica de esprito, como se sabe, reservou um lugar extrema-mente importante etnografia e ao folclore1. A aco do SPN/SNI - sob a direco de Antnio Ferro - foi, a esse respeito, decisiva. Orientada simulta-neamente para a propaganda externa de Portugal e para aces de divulgao interna junto das classes mdias urbanas, a actividade do SPN/SNI notabili-

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    1 Acerca do Verde Gaio, cf. nomeadamente Pavo dos Santos (ed.) 1999. 2 Sobre o Mensrio das Casa do Povo, cf. Branco 1999b. 3 Entre as Juntas Provinciais e Distritais, a que teve actividade etnogrfica mais relevante

    foi o da Douro Litoral, que dinamizou um Museu de Histria e Etnografia e editou a revista Douro Litoral. A sua actividade teve depois continuao na Junta Distrital do Porto, que, entre outras iniciativas, foi responsvel pela Revista de Etnografia. Embora num plano mais modesto, refira-se tambm a Junta Provincial da Estremadura, que editou a revista Estremadura.

    ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

    zou-se pela importncia concedida a procedimentos de estilizao da cultura popular em exposies, espectculos, edies e outras iniciativas. Entre essas iniciativas destacam-se, em 1938, o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, e, em 1940, a organizao do Centro Regional da Exposio do Mundo Portugus, integrado por uma seco ao ar livre - onde se reprodu-ziam os diversos tipos regionais de casa popular portuguesa - e pelo pavilho da Vida Popular. Acompanhado pela edio do livro Vida e Arte do Povo Portugus (1940) e pelos primeiros espectculos do grupo de bailados Verde Gaio1, o Centro Regional forneceu ainda o ncleo de edifcios e peas a par-tir do qual foi criado, em 1948, o Museu de Arte Popular, ponto culminante do processo de fixao fotogrfica, esttica e simblica do mundo da cultura popular conduzido pelo SPN/SNI (Melo 1997: 85).

    Simultaneamente ao SPN/SNI, outros organismos tiveram tambm uma aco de relevo no campo da etnografia e do folclore. Entre eles conta-se a Junta Central das Casas do Povo (JCCP), criada em 1945 como organismo de coor-denao das Casas do Povo. A etnografia e o folclore foram, de facto, aspectos fundamentais da actividade de enquadramento poltico-ideolgico das popula-es rurais cometidas a este organismo. Ao mesmo tempo que estimulou - com um sucesso muito relativo - a formao de museus etnogrficos e ranchos fol-clricos nas Casas do Povo (cf. Melo 1997), a JCCP editou tambm o Mensrio das Casas do Povo, onde a doutrinao folclrica e ruralista e os apontamentos regulares sobre matria etnogrfica ocupam um lugar de relevo2. Finalmente, a FNAT, criada em 1935 e com uma aco importante de enquadramento dos ran-chos folclricos, e as Juntas Provinciais e Distritais, que, em muitos casos, esti-mularam o aparecimento de museus e revistas de natureza etnogrfica3, contam--se tambm entre os organismos oficiais que se viro a revelar importantes no desenvolvimento de uma etnografia prxima do Estado Novo.

    Tendo atingido o seu apogeu no decurso dos anos 1940 e 1950, esta etno-grafia pde contar, em primeiro lugar, com alguns dos etngrafos j em activi-dade nos anos 1910 e 1920, com destaque para Lus Chaves e para Augusto Csar Pires de Lima e, embora de forma menos sistemtica, para D. Sebastio Pessanha e Verglio Correia. Lus Chaves, em particular, foi um activo colabo-rador do SPN/SNI e de algumas das suas iniciativas mais importantes, como o Concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal ou a edio do volume Vida e Arte do Povo Portugus. Quanto a A. C. Pires de Lima, foi o fundador e direc-tor do Museu de Etnografia e Histria do Douro Litoral e da revista Douro Litoral. A estes nomes vindos da etnografia da I Repblica juntam-se entretanto

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    1 Refiram-se a este propsito os Congressos Internacionais de Etnografia e Folclore, rea-lizados respectivamente em 1956 em Braga e em 1963 em Santo Tirso e o Colquio de Estudos Etnogrficos Dr. Jos Leite de Vasconcelos, que teve lugar no Porto em 1958.

    2 Acerca da escola Palavras e Coisas, cf. Beitl, Bromberger & Chiva 1997. 3 A bibliografia de referncia sobre Jorge Dias j relativamente numerosa. Para uma apre-

    sentao de conjunto da sua obra, ver, entre outros, Lupi 1984 e Veiga de Oliveira 1968 e 1974. 4 Para alm dos nomes acima indicados, fizeram ainda parte da equipa de Jorge Dias

    - embora em posies de menos destaque - Antnio Carreira (1905-1988) e Fernando Quintino (cf. Lupi 1984: 413-414). Entre outros colaboradores mais ocasionais de Jorge Dias, deve tam-bm mencionar-se Viegas Guerreiro (1912-1997) - autor de volume IV da monografia sobre os Macondes (Guerreiro 1966) - que parece ter entretanto entrado em ruptura com Jorge Dias uma vez terminada a sua investigao em Moambique.

    etngrafos como bel Viana (1869-1964), Guilherme Felgueiras (1890-1990), Armando Lea (1893-1977), Armando de Matos (1899-1953) e dois outros Pires de Lima: Joaquim Alberto Pires de Lima (1877-1951) e, sobretudo, Fernando de Castro Pires de Lima (1903-1973) que, em 1960, ser o organizador dos trs volumes de A Arte Popular em Portugal (Lima 1960). Embora a partir do final dos anos 1950 - com o declnio das formas mais espectaculares de investimento ideolgico do Estado Novo na cultura popular -, haja um certo esforo para dotar esta etnografia de um rosto mais acadmico - designadamente por inter-mdio da organizao de alguns colquios cientficos1, de tentativas de estabe-lecimento de redes de cooperao internacional ou da edio de revistas como a Revista de Etnografia - ela manteve sempre, a par de um envolvimento mais ou menos claro com a poltica e a ideologia do regime, uma certa marginalidade em relao aos circuitos universitrios e/ou cientficos.

    Simultaneamente, outras figuras surgem ento em cena, mais ligadas a uma etnografia de contornos acadmicos. Entre essas figuras sobressai, antes do mais, Leite de Vasconcelos - que, na sequncia do seu retorno etnogra-fia na dcada de 1910, inicia, a partir dos anos 1930, a publicao da sua ambi-ciosa Etnografia Portuguesa (1933, 1936, 1942), posteriormente interrompida pelo morte do autor. Paralelamente, um conjunto de jovens sem ligaes com o passado da disciplina ganham lugar de relevo na cena antropolgica. Entre eles encontra-se, por exemplo, um autor injustamente esquecido pela genera-lidade dos historiadores da antropologia portuguesa: Herculano de Carvalho, autor de uma monografia sobre sistemas tradicionais de debulha influenciado pela escola alem Palavras e Coisas (Carvalho, Herculano 1953)2.

    Mas a figura central da antropologia portuguesa de perfil acadmico nos anos 1930 a 1970 sem dvida A. Jorge Dias (1907-1973)3. Com um doutora-mento em Etnologia obtido em Munique, Jorge Dias forma, no seu regresso a Portugal, em 1947, uma equipa de trabalho, onde avultam os nomes de Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990), Fernando Galhano (1904-1995), Benjamim Pereira e Margot Dias que operar primeiro a partir do Porto - onde Mendes Correia tinha confiado a Jorge Dias a direco da Seco Etnogrfica do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular - e, de 1956 em diante, a partir de Lisboa4.

    A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE GRUPO

  • ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

    Por intermdio deste grupo - que ter uma produtividade e uma longevi-dade notveis a antropologia portuguesa recupera alguma da actualizao terica e insero internacional perdida nas dcadas da I Repblica. Jorge Dias bater-se- de facto desde o seu regresso a Portugal por uma forte insero internacional da antropologia portuguesa. O papel activo que desempenhou nas actividades da Comisso Internacional de Artes e Tradies Populares (CIAP) a partir de 1947, tem sido, a este respeito, posto em evidncia. De facto, entre 1954 e 1956, Dias exerceu o cargo de Secretrio-Geral deste orga-nismo que coordenava a pesquisa etnolgica na Europa, e quando, em 1964, a CIAP mudou a sua designao para Socit Internationale d'Ethnologie et Folklore (...) [foi] eleito para membro do Conselho de Administrao (Lupi 1984: 46). Em 1965, integrou tambm o grupo fundador da revista Ethnologia Europaea, a cuja comisso editorial pertenceu at sua morte. Simultanea-mente, outros factos devem ser retidos. Entre eles, vale a pena mencionar a preocupao de Jorge Dias com a abertura de linhas de dilogo com as aca-demias espanhola e brasileira, as suas deslocaes a colquios e reunies de trabalho no estrangeiro, os ensaios que publicou fora de Portugal e, ainda, as suas viagens aos EUA nas dcadas de 1950 e de 1960. Estas ltimas levaram--no nomeadamente a participar, em 1953, no colquio da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research subordinado ao ttulo Anthro-pology Today1 e a permanecer durante alguns meses em 1960 como visi-ting scholar da Universidade de Stanford (Califrnia). Esta projeco inter-nacional do trabalho de Jorge Dias e da sua equipa de resto testemunhada pelo elevado nmero de colaboradores no-portugueses nos volumes In Memoriam Antnio Jorge Dias (1974) e Estudos em Homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira (Baptista, Brito & Pereira 1989). Enquanto que no volume de homenagem a Veiga de Oliveira esses colaboradores foram vinte, nos volu-mes dedicados a Jorge Dias participaram mais de cinquenta antroplogos estrangeiros, com relevo para figuras como Meyer Fortes, Max Gluckman, M. G. Marwick e John Beattie, com quem Jorge Dias havia certamente entrado em contacto na sequncia das suas investigaes sobre os Macondes do norte de Moambique.

    Simultaneamente, no plano interno, a equipa de Jorge Dias projectou de forma importante a antropologia na cena intelectual e cientfica portuguesa, como o comprovam nomeadamente o xito das monografias de Jorge Dias sobre Vilarinho da Furna (Dias 1948a) e Rio de Onor (Dias 1953a) ou a impor-tncia do seu ensaio Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa (Dias 1990a [1953]). A influncia de Jorge Dias estende-se de resto aos etngrafos do Estado Novo que, depois de uma atitude inicial de indiferena ou mesmo desconfiana em relao a Dias (Pereira, Benjamim 1996) iro, sobretudo a partir do final dos anos 1950, reconhecer a importncia da sua pesquisa. sig-

    1 Acerca da importncia do colquio Anthropology Today na antropologia norte-ameri-cana do post-guerra, cf. Stocking 1999.

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  • A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE GRUPO

    nificativo, a este respeito que A Arte Popular em Portugal de F. C. Pires de Lima abra com contributos de Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (Oliveira & Galhano 1960a, 1960b) ou que o nmero inaugural da Revista de Etnografia - tambm dirigida, como vimos, por Pires de Lima - publique um artigo de Dias sobre a natureza cientfica da etnografia (Dias 1963) seguido de uma con-tribuio de Sigurd Erixon (1963), etnlogo sueco amigo de Dias e uma das figuras centrais - a par de Dias - da etnologia europeia do ps-guerra.

    Esta projeco do trabalho de Jorge Dias e da sua equipa - para alm da prpria qualidade e persistncia que o caracterizava -, fica a dever-se a duas razes principais. A primeira tem a ver com a capacidade que Jorge Dias e os seus colaboradores mostram para inserir as suas pesquisas numa rede mais alar-gada de discusses interdisciplinares baseada na universidade e onde se inte-gram, em plano de relevo, a geografia humana de Orlando Ribeiro (1911-1997) ou a lingustica de Paiva Bolo (1904-1992) e Lindley Cintra (1925-1991). A importncia do persistente dilogo que Jorge Dias estabelece com Orlando Ribeiro - ao qual teremos ocasio de regressar no decurso deste livro - deve, em particular, ser realado.

    A segunda razo para o xito de Dias e dos seus colaboradores tem a ver com a articulao da sua pesquisa com os primeiros esforos consistentes e relativamente bem sucedidos de institucionalizao da disciplina antropol-gica tanto ao nvel da investigao, como ao nvel museolgico e universit-rio. A Seco Etnogrfica do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, e, mais tarde, os Centros de Estudos de Etnologia e de Antropologia Cultural, que forneceram sucessivamente o suporte organizativo para o trabalho de Dias e dos seus colaboradores, constituem os primeiros organismos especificamente orientados para a investigao antropolgica em Portugal. Simultaneamente, no plano universitrio, Jorge Dias foi responsvel pela docncia das primei-ras cadeiras com efectivo contedo antropolgico existentes na universidade portuguesa, primeiro nas Faculdades de Letras das Universidades de Coimbra e de Lisboa e, depois, no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (mais tarde Instituto Superior de Cincias Sociais e Poltica Ultramarina) onde, a convite de Adriano Moreira, foi professor entre 1956 e 1967. Finalmente, no plano museolgico, Jorge Dias est, como se sabe, decisivamente ligado cria-o, em 1965, do Museu de Etnologia do Ultramar1, que, na sequncia do Museu Etnolgico Portugus de Leite de Vasconcelos e do Museu de Arte Popular, se transformar no museu portugus de referncia nessa rea.

    Um terceiro grupo de protagonistas importante na cena antropolgica por-tuguesa entre 1930 e 1970, por fim, constitudo por um conjunto de inte-lectuais ligados de forma menos sistemtica etnografia e antropologia, mas que, a partir de posies crticas da etnografia do Estado Novo, tiveram incur-ses relativamente significativas nessas reas. Com formaes muito variadas

    1 Sobre a criao do Museu de Etnologia do Ultramar, cf. Pereira, Rui 1989c.

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  • ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

    - artistas, arquitectos, msicos - e com posicionamentos polticos tambm relativamente diversificados - desde gente relativamente prxima do PCP at catlicos de esquerda - este grupo de intelectuais convergiu entretanto na preo-cupao de construir um contra-discurso ao discurso etnogrfico do Estado Novo.

    Embora com alguns antecedentes nos anos imediatamente a seguir II Guerra, esta etnografia crtica conheceu um desenvolvimento mais impor-tante no final da dcada de 1950 e no decurso da dcada de 1960, benefi-ciando, em muitos casos, das novas condies de trabalho cultural criadas pela Fundao Calouste Gulbenkian. As suas figuras mais emblemticas so sem dvida Michel Giacometti (1930-1990)1 e Fernando Lopes Graa (1906-1994). Mas crticos de arte como Ernesto de Sousa (1921-1988)2, os arquitectos do Inqurito Arquitectura Popular em Portugal ou, ainda, o conjunto de cineas-tas - como Manuel de Oliveira ou Antnio Campos (1923-1999) - que, no decurso das dcadas de 1960 e de 1970, procurou filmar o popular a contra corrente do gosto etnogrfico do Estado Novo3, desempenharam tambm um papel importante na afirmao desta viso alternativa do mundo rural portu-gus A visibilidade deste discurso, que, por razes sobretudo polticas, teve algumas dificuldades de penetrao universitria, foi sobretudo efectiva nos meios culturais da esquerda. A este nvel mais restrito, entretanto, o seu impacto foi considervel, como o demonstra, para o caso da msica popular, a influncia que o exemplo de Michel Giacometti teve na cano de inter-veno dos anos 1970, ou, num plano mais genrico, a capacidade de atrac-o que o paradigma de recolhas da cultura popular do mesmo Giacometti teve sobre as modalidades de dilogo com o povo no imediato post-25 de Abril (cf. Branco & Oliveira 1993).

    OBJECTOS, MTODOS, TEORIAS

    Os diferentes momentos que temos vindo a passar em revista remetem todos eles para a centralidade do estudo da cultura popular portuguesa na tra-dio antropolgica portuguesa.

    Esta estudada de acordo com algumas grandes constantes. Assim e antes do mais, a cultura popular sempre sinnimo de ruralidade. Dela esto exclu-das, por norma, as cidades e as camadas populares urbanas. Nela tm tambm uma presena insignificante - salvo excepes localizadas - as populaes

    1 Acerca de Giacometti, cf. Branco & Oliveira 1993. Cf. tambm a recenso deste livro em Leal 1994.

    2 Acerca de Ernesto de Sousa, cf. Brito (ed.) 1995. 3 Cf., a este respeito, o catlogo do ciclo de cinema Olhares sobre Portugal. Cinema e

    Antropologia (Leal et ai. 1993). Para uma avaliao das incurses desta etnografia alternativa no domnio do teatro popular cf. Raposo 1998.

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  • A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE GRUPO

    piscatrias (cf. Martins 1997). Em segundo lugar, a ruralidade que tanto fas-cina os etngrafos e antroplogos portugueses objecto de um olhar descon-temporaneizador (Fabian 1983). Embora observada no presente, ela vista, antes do mais, como um testemunho do passado: um passado que h que reconstituir em termos interpretativos, que h que registar antes que desapa-rea, que h que preservar, que h eventualmente que purificar. Finalmente, o mundo da cultura popular estudado pela antropologia portuguesa um mundo moral e esteticamente qualificado pelo olhar do observador, um mundo relativamente ao qual no possvel a indiferena. , ou um mundo do qual se celebram, embora em tons diversos, as excelncias, ou - embora esta seja, como teremos ocasio de verificar, uma posio minoritria - um mundo visto, pelo contrrio, como o depositrio de um conjunto de traos negativos.

    No interior destes consensos, entretanto, em cada um dos perodos do desenvolvimento histrico da antropologia portuguesa, so diferentes no ape-nas os objectos precisos que so supostos representar de forma mais emble-mtica a cultura popular, mas tambm os meios metodolgicos e tericos mobilizados para o seu estudo.

    Assim, nos anos 1870 e 1880, a cultura popular vista como um universo formado quase exclusivamente pela literatura e pelas tradies populares. A literatura popular, pelo seu lado, compreendia trs grandes gneros: o can-cioneiro, o romanceiro e os contos. Quanto s tradies populares, formavam uma rea relativamente heterognea, onde cabiam desde crenas a supersti-es, festas cclicas, ritos de passagem, etc.

    De acordo com esta definio da cultura popular, os etnlogos portugue-ses desse perodo consagram grande parte das suas energias realizao de extensas colectas em ambos os domnios. Tefilo Braga, por exemplo edita sucessivas recolhas em cada uma das trs reas mais relevantes da literatura popular (Braga 1867a, 1867b, 1987 [1883]). Adolfo Coelho e Consiglieri Pedroso - para alm de contribuies menos marcantes no domnio do can-cioneiro e do romanceiro - publicam tambm importantes coleces de con-tos populares (Coelho 1879, Pedroso 1882)1. Estes dois ltimos autores, e ainda Leite de Vasconcelos, editaro ainda as mais significativas coleces de tradies populares destes anos inaugurais da etnografia e da antropologia por-tuguesa (Coelho 1993c [1880], Pedroso 1988b [1879-82], Vasconcelos 1882).

    Em consequncia deste investimento na recolha e no estudo da literatura e das tradies populares, a imagem da cultura popular predominante neste perodo uma imagem eminentemente textual. O povo e a cultura popular so textos, desinseridos dos seus contextos concretos de produo e circulao. Esta ideia particularmente evidente - por razes bvias - nas coleces de

    1 A recolha de Leite de Vasconcelos, a mais importante de todas quantas foram at hoje produzidas no mbito da antropologia portuguesa, foi editada postumamente nos anos 1960 (cf. Vasconcelos 1963, 1966).

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  • ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

    literatura popular. Estas so, literalmente, colectneas de textos, eventualmente organizadas por temas e antecedidas de um prefcio do colector. Mas tam-bm de acordo com o mesmo modelo que so tratadas as tradies populares. Estas so recorrentemente transcritas como textos - embora mais curtos - que contm uma narrativa, sob a forma de um provrbio, de uma crena ou de uma superstio. A edio destes materiais ela prpria feita frequentemente de forma idntica de uma colectnea de literatura popular.

    Do ponto de vista metodolgico, estas recolhas de literatura e de tradies populares assentam sobre procedimentos ainda muito incipientes. De facto, contrariamente a uma ideia muito generalizada na avaliao deste perodo, o contacto efectivo com os protagonistas da cultura popular ento escasso. O caso mais emblemtico a esse respeito o de Tefilo Braga, de quem Leite de Vasconcelos viria a escrever mais tarde que poucas vezes interrogou direc-tamente o vulgo, baseando-se fundamentalmente em materiais colhidos em fontes literrias, e em informaes que pessoas cultas lhe deram (Vasconcelos 1933: 264). Mas, nos restantes casos, embora se desenvolva um esforo de colecta mais importante, embora se enfatize insistentemente a necessidade de recolher a informao na boca do povo, embora se cheguem inclusivamente a organizar algumas excurses cientficas com esse objectivo - por exemplo Serra da Estrela ou ao Soajo1 -, os materiais so obtidos maioritariamente por processos como o testemunho de uma velha ama - ou criado - de origem rural, informaes enviadas por correspondentes locais, curtas deslo-caes de trabalho ou de frias fora de Lisboa.

    A interpretao da cultura popular repousa, pelo seu lado, sobre a utiliza-o informada de vrias correntes ento em voga na Europa. Entre essas cor-rentes destacam-se a mitologia comparada de Max Muller, que, apoiada nas conquistas da lingustica comparada, defendia a origem indo-europeia da lite-ratura e das tradies populares da maioria dos pases europeus. Presente na reflexo de Consiglieri Pedroso (Leal 1988), a mitologia comparada foi tam-bm determinante em Adolfo Coelho (Leal 1993a) e em Leite de Vasconcelos. Embora em plano secundrio, podemos detectar tambm marcas da sua influ-ncia nalguns textos de Tefilo Braga escritos na primeira metade dos anos 1880 (Leal 1987). Em todos estes autores, a mitologia comparada, em resul-tado de um certo eclectismo terico que de resto um trao mais ou menos estrutural da antropologia portuguesa entre 1870 e 1970 (cf. Leal 2000), con-vive entretanto com a influncia de outras correntes tericas. Entre estas contam-se escolas difusionistas pr-evolucionistas - como o difusionismo de

    1 A excurso cientfica Serra da Estrela teve lugar no incio dos anos 1880. Embora orga-nizada no mbito das cincias naturais, possua tambm objectivos de levantamento da vida popular, como resulta das notas etnogrficas publicadas por Eduardo Coelho irmo de Adolfo Coelho no Dirio de Notcias (cf. a este respeito, Coelho 1993a [1880]). Quanto excur-so ao Soajo, contou com a participao, entre outros, de Leite de Vasconcelos e Martins Sarmento e teve lugar em 1882 (cf. Vasconcelos 1927: 3-9).

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  • A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE GRUPO

    Benfey ou o turanianismo de Lenormant - que influenciam de forma impor-tante, respectivamente Adolfo Coelho e Tefilo Braga - que, de resto, se mos-tra tambm sensvel a teses celticistas e morabes. O evolucionismo, pelo seu lado, exerceu alguma influncia na obra de Consiglieri Pedroso - em parti-cular na sua reflexo sobre a famlia - e de Adolfo Coelho (Leal 1988, 1993a).

    Recorrendo a estas diferentes teorias, os etnlogos dos anos 1870 e 1880 subscrevem uma perspectiva historicista da cultura popular. Esta vista no apenas como um testemunho do passado, mas de um passado de caractersti-cas fundamentalmente etnogenealgicas (Smith 1991). Embora observadas no presente, a literatura e as tradies populares so encaradas como uma herana tnica de que o povo asseguraria a custdia. Mais do que o criador dos textos que profere para o etngrafo, o povo pois visto como um guardador de tex-tos anonimamente criados em remotos tempos tnicos.

    Na viragem do sculo emerge uma imagem relativamente menos textual e mais complexa da cultura popular, decorrente de uma certa diversificao de objectos. Alm da literatura e das tradies populares, as tecnologias e a cultura material, a arte popular, as formas de vida econmica e social, etc., passam a integrar a agenda de pesquisa da antropologia portuguesa. Esse pro-cesso de diversificao de objectos toma primeiro corpo com Adolfo Coelho que, em vrios textos de natureza programtica, insiste repetidamente na necessidade de multiplicar os campos de estudo (Coelho 1993b [1880], 1993d [1890], 1993e [1896]). Fiel aos seus prprios apelos, o prprio Adolfo Coelho far ele prprio algumas investigaes pioneiras sobre temas at a no cober-tos pela antropologia portuguesa, como os ciganos (Coelho 1892), as alfaias agrcolas (Coelho 1993g [1901]) ou a pedagogia popular (Coelho 1993f [1898], 1993h [1910], 1993i [1910]).

    Mas sobretudo em Rocha Peixoto que este esforo de alargamento tem-tico mais visvel. No ponto de partida da sua produo antropolgica encon-tram-se ainda as tradies populares - como as Maias, as festas de So Joo ou o Natal - sobre as quais escreveu os seus primeiros ensaios (1967a [1894], 1967b [1894], 1967c [1894]). Mas, rapidamente, os seus interesses vo conhe-cer um processo de decisivo alargamento e temas como a arte e a arquitectura popular, as tecnologias tradicionais ou o colectivismo agrrio prendero suces-sivamente a sua ateno. Esta mesma concepo alargada da etnografia e da antropologia reencontra-se tambm na orientao editorial imprimida por Rocha Peixoto Portugalia, onde Adolfo Coelho publicou um dos seus mais importantes textos sobre pedagogia popular (Coelho 1993f [1898]) e Silva Pico captulos da sua monografia sobe a vida rural alentejana (Pico 1903).

    Simultaneamente, do ponto de vista metodolgico, escassez de contac-tos com o povo substitui-se na viragem do sculo um contacto mais efectivo com os protagonistas da cultura popular. O exemplo de Rocha Peixoto a esse respeito particularmente significativo. Os seus artigos mais importantes resul-tam justamente de reconhecimentos in locu que se estendem um pouco por todo o norte do pas, cobrindo uma rea que, como escreveu o seu bigrafo

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  • ETNOGRAFIAS PORTUGUESAS (1870-1970): CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL

    Flvio Gonalves, surpreende pela (...) amplitude (1967: XXIX). tambm essa preocupao de construir um contacto mais efectivo com o povo que explica a importncia que passa a ser atribuda produo etnogrfica local, sobretudo no crculo de etngrafos mais directamente influenciados por Rocha Peixoto. Por seu intermdio, punha-se disposio do pblico interessado infor-mao etnogrfica resultante de recolhas directas junto das populaes estuda-das, cujos modos de vida alguns desses etngrafos conheciam de muito perto.

    Quanto inspirao terica dominante torna-se o evolucionismo, um para-digma que, embora evidenciando alguns sinais de crise, mantinha intacta uma certa influncia na Europa da viragem do sculo (Stocking 1994). Se no caso de Adolfo Coelho - que j havia recorrido nos anos 1880 a autores evolucio-nistas - esta influncia se faz sobretudo sentir por intermdio das suas leitu-ras antropolgicas, no caso de Rocha Peixoto, ela baseia-se fundamentalmente no dilogo com a arqueologia, de que o autor foi tambm praticante.

    Em consequncia desta dominncia do evolucionismo, continua a triunfar uma concepo historicista da cultura popular. Entretanto, o passado que agora valorizado no tanto o passado tnico predominante nos anos 1870 e 1880, mas o passado dos estgios de evoluo dos evolucionistas. O campo-ns passa a ser visto como uma espcie de primitivo moderno, em particu-lar nos textos de Rocha Peixoto, onde so constantes as analogias entre os cos-tumes populares modernos e as populaes pr-histricas.

    Seja pelo facto desta equao entre o primitivo e o campons contaminar este ltimo com os atributos pouco entusiastas com que os autores evolucio-nistas generalizadamente qualificavam o primeiro (cf. Stocking 1987: 186--237), seja em consequncia do cepticismo relativamente valia de Portugal e do povo portugus induzido pelo Ultimatum\ a imagem da cultura popular que triunfa nos escritos de Adolfo Coelho e de Rocha Peixoto ao longo deste perodo uma imagem negativizada. Expresses como boal, rude, gros-seira, brbara so agora utilizadas para caracterizar