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ETINCIDADE E CULTURA INDÍGENA NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL “MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ – DUAS ALDEIAS, UMA CAMINHADA” 1 Fabiane Maria Rizzardo Doutoranda em História PUCRS [email protected] Resumo O presente trabalho analisa aspectos contidos na produção audiovisual “Mikoi Tekoá Petei Jeguetá Duas aldeias, uma caminhada”, lançado em 2008, com o intuito de discutir sobre etnicidade e cultura indígena no estado do Rio Grande do Sul. Para isso, três etapas principais foram privilegiadas no texto, abrangendo desde as intenções do documentário e o seu contexto histórico até as cenas e diálogos que demonstram, entre outros elementos, as assimetrias étnicas entre indígenas e não indígenas. Em termos teóricos, trata-se de um estudo que dialogia com autores vinculados à Sociologia e à História. Embora seja necessário complexificar a análise, cotejando a fonte documental com outras, o trabalho permite “deslocar” certas concepções equivocadas e estigmas em torno da cultura Guarani, bem como perceber as importantes críticas e denúncias dos indígenas à sociedade ocidental. Palavras-chave: etnicidade; cultura indígena; grupos falantes da língua Guarani. 1. Introdução O documentário “Mikoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas Aldeias, Uma Caminhada” - filmado entre 2007 e 2008, sob a direção de Germano Benites, Ariel Duarte Ortega e Jorge Ramos Morinico, jovens Guarani - apresenta um conteúdo complexo e pouco explorado, o qual pode ser entendido de diferentes maneiras, de acordo com os filtros do espectador. Foi escolhido para embasar as discussões desse trabalho interessado nas sociedades indígenas e na relação interétnica - tanto pelo seu potencial para evidenciar aspectos sociais dos falantes da língua Guarani no estado do Rio Grande do Sul quanto por denunciar uma assimetria étnica entre indígenas e não indígenas. A fim de discutir sobre etnicidade e cultura indígena, utilizando como fonte documental uma produção audiovisual, o corpo do texto contempla diferentes seções: a parte inicial, que procura apresentar o documentário ao público leitor, fornecendo as bases 1 Este texto foi originalmente produzido para a avaliação final da disciplina “Teorias da Cultura e da Etnicidade” (Programa de pós-graduação em História PUCRS), ministrada pelo professor Dr. Charles Monteiro e pela professora Dra. Carolina Etcheverry, no primeiro semestre de 2020.

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Page 1: ETINCIDADE E CULTURA INDÍGENA NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL€¦ · 1Este texto foi originalmente produzido para a avaliação final da disciplina “Teorias da Cultura e da Etnicidade”

ETINCIDADE E CULTURA INDÍGENA NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL

“MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ – DUAS ALDEIAS, UMA CAMINHADA”1

Fabiane Maria Rizzardo

Doutoranda em História

PUCRS

[email protected]

Resumo

O presente trabalho analisa aspectos contidos na produção audiovisual “Mikoi Tekoá

Petei Jeguetá – Duas aldeias, uma caminhada”, lançado em 2008, com o intuito de discutir

sobre etnicidade e cultura indígena no estado do Rio Grande do Sul. Para isso, três etapas

principais foram privilegiadas no texto, abrangendo desde as intenções do documentário

e o seu contexto histórico até as cenas e diálogos que demonstram, entre outros elementos,

as assimetrias étnicas entre indígenas e não indígenas. Em termos teóricos, trata-se de um

estudo que dialogia com autores vinculados à Sociologia e à História. Embora seja

necessário complexificar a análise, cotejando a fonte documental com outras, o trabalho

permite “deslocar” certas concepções equivocadas e estigmas em torno da cultura

Guarani, bem como perceber as importantes críticas e denúncias dos indígenas à

sociedade ocidental.

Palavras-chave: etnicidade; cultura indígena; grupos falantes da língua Guarani.

1. Introdução

O documentário “Mikoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas Aldeias, Uma Caminhada” -

filmado entre 2007 e 2008, sob a direção de Germano Benites, Ariel Duarte Ortega e

Jorge Ramos Morinico, jovens Guarani - apresenta um conteúdo complexo e pouco

explorado, o qual pode ser entendido de diferentes maneiras, de acordo com os filtros do

espectador. Foi escolhido para embasar as discussões desse trabalho – interessado nas

sociedades indígenas e na relação interétnica - tanto pelo seu potencial para evidenciar

aspectos sociais dos falantes da língua Guarani no estado do Rio Grande do Sul quanto

por denunciar uma assimetria étnica entre indígenas e não indígenas.

A fim de discutir sobre etnicidade e cultura indígena, utilizando como fonte

documental uma produção audiovisual, o corpo do texto contempla diferentes seções: a

parte inicial, que procura apresentar o documentário ao público leitor, fornecendo as bases

1Este texto foi originalmente produzido para a avaliação final da disciplina “Teorias da Cultura e da

Etnicidade” (Programa de pós-graduação em História – PUCRS), ministrada pelo professor Dr. Charles

Monteiro e pela professora Dra. Carolina Etcheverry, no primeiro semestre de 2020.

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para as reflexões críticas; a segunda parte, que procura dar conta do contexto histórico

em que o mesmo foi produzido, enfatizando a complexidade do período para as

sociedades indígenas em geral; sem desrespeitar a estrutura do documentário, cenas e

aspectos principais que o compõe foram abordados numa terceira e mais densa parte,

resultando em discussões que permitem ler o seu conteúdo como uma série de denúncias

sobre o despreparo da sociedade ocidental para conviver com as sociedades falantes da

língua Guarani. Por fim, nas considerações finais, procurou-se retomar aspectos

desenvolvidos no corpo do texto, atribuindo um sentido às reflexões.

Como a produção audiovisual é uma entre as várias medidas e estratégias adotadas

pelo governo federal para valorizar e contemplar minorias étnicas, a segunda parte do

trabalho se beneficia do termo “multiculturalismo”, o qual foi amplamente discutido pelo

sociólogo Stuart Hall (2003). Embora seja um conceito contestado, ele é interessante para

o estudo por se referir “às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar

problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais”

(HALL, 2003, p. 52).

Ainda em termos teóricos, as reflexões propostas se relacionam com a noção de

“etnicidade” de Hall, onde a diferença – nesse caso, a diferença dos grupos Guarani em

relação à sociedade ocidental - é fundamentada nas características culturais, embora

também possa estar atrelada à diferença física (HALL, 2003). Já que para o autor a

etnicidade pode ser considerada como uma outra lógica do racismo, o termo está sendo

empregado no texto pelo potencial para abarcar a dificuldade da sociedade ocidental em

reconhecer a diferença (ou as particularidades) da cultura indígena Guarani no Rio

Grande do Sul sem desvalorizá-la.

De modo complementar, o estudo também se beneficia de aspectos apresentados

por Poutignant (1970). Ao escrever sobre as teorias da etnicidade, sua obra evidencia a

potencialidade do termo para romper com conceitos etnocêntricos, amplamente utilizados

no passado. Isso porque - diferentemente de “tribo” ou “tribalismo” - etnicidade diz

respeito a um “fenômeno universal e onipresente”, que pode ser observado não apenas

em países considerados como subdesenvolvidos, mas também em nações ditas

desenvolvidas (POUTIGNAT, 1998, p. 31). O presente exercício dialoga, ainda, com

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concepções da cultura visual e, especialmente, da Nova História Indígena, conforme será

possível perceber ao longo do trabalho.

2. Aspectos Gerais

O premiado2 documentário “Mikoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas Aldeias, Uma

Caminhada”3, retrata famílias falantes da língua Guarani que vivem em duas diferentes

localidades do Rio Grande do Sul. O seu recorte espacial diz respeito à Porto Alegre, onde

encontra-se a “Tekoà Anhentenguá” (Aldeia Verdadeira), e também ao município de São

Miguel das Missões, onde está situada a Tekoà Koenju (Aldeia Alvorecer). Membros de

ambos os povoados foram filmados em 2007 e 2008. Entre outros aspectos, o vídeo

aborda práticas particulares dos grupos e a paradoxal relação mantida com a sociedade

ocidental.

Como foi produzido com verba disponibilizada pelo IPHAN, órgão responsável

pelo patrimônio arqueológico, histórico e artístico do país, é possível compreender a

produção audiovisual enquanto uma tentativa de “salvaguardar” o patrimônio imaterial

dos grupos que vivem no Sul, registrando aspectos ancestrais que estão sendo

constantemente transformados e ressignificados. É interessante destacar que esse intuito

atende a uma expectativa de setores da sociedade formados por indivíduos não indígenas,

entendidos pelos Guarani como “homem branco”.

Por outro lado, diálogos contidos no documentário evidenciam as expectativas dos

próprios indivíduos retratados, que seria o de registrar a realidade para a sociedade

ocidental e o de assumir o protagonismo sobre as suas questões: “(...) nós temos que

mostrar pros brancos como a gente vive. Mostrar a realidade (...). O porquê não temos

mais matas e estamos com essas casas. Para que não só os brancos falem por nós (...)”.

(MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 12:37). O modo como a narrativa foi

desenvolvida sugere que “mostrar a realidade” implica em realizar denúncias aos não

indígenas.

2 Melhor filme do ForumDoc, Belo Horizonte, 2008. 3 Ano: 2008. Gênero: documentário. Direção: Germano Benites, Ariel Duarte Ortega, Jorge Ramos

Morinico. Duração: 63 min. Língua: Guarani. Legenda: Português.

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Nesse sentido, é possível afirmar que o público alvo são os próprios Guarani do

Rio Grande do Sul e, especialmente, a sociedade ocidental. Hoje, passado algum tempo

do seu lançamento, está disponível tanto no YouTube quanto em sites diversos.

Conforme ressaltado por John Walter e Sarah Chaplin (2002), o modo de

descrever ou representar o mundo pelas diferentes sociedades e culturas pode apresentar

variações, as quais estariam relacionadas com o conjunto de valores das mesmas. Embora

os autores estejam se referindo às pinturas e artefatos produzidos em diferentes momentos

ao longo da história, essa constatação também auxilia no entendimento do documentário,

o qual apresenta uma estética singular.

Entre os aspectos que conferem um efeito único, pode-se destacar a escolha pela

língua Guarani em detrimento do uso do português, ainda que parte dos indivíduos das

aldeias - em função do contato com os não indígenas - domine a língua oficial do país.

Deve-se considerar, ainda, que a produção audiovisual foi inteiramente pensada, filmada

e dirigida pelos grupos falantes da língua Guarani, apenas contando com o auxílio de não

indígenas, de modo que as suas lógicas particulares (em relação às culturas majoritárias)

estão presentes no roteiro e na composição de cada uma das cenas.

No que se refere à estrutura do documentário, está dividido em duas partes: uma

dedicada ao povoado de Porto Alegre, cercada pelos não indígenas, e outra dedicada ao

grupo de São Miguel das Missões. Ambas conversam entre si na medida em que

perpassam pelos mesmos aspectos, apesar de apresentarem nuances.

3. Contextualização Histórica

A questão multicultural no Brasil tem inspirado a luta de movimentos dos negros

e indígenas, bem como sido objeto de estudos acadêmicos sobre a complexidade social

do país. Porém, até recentemente não existia a possibilidade de ela ser amplamente

incorporada pelo governo, auxiliando, por exemplo, na elaboração de medidas voltadas

às minorias étnicas, atendendo as suas demandas.

É importante notar, contudo, que entre 2003 e 2011, período correspondente ao

Governo Lula (PT), estudos feitos por cientistas sociais e antropólogos inspiraram uma

série de ações afirmativas, assim como projetos diversos com verbas públicas, garantindo

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alguns passos nesse sentido. Entre as mais importantes ações afirmativas, é possível

destacar o aperfeiçoamento de iniciativa anterior que resultou no auxílio do bolsa família,

democratização do ingresso nas universidades pelo Enem, o PROUNI e a adoção do

sistema de cotas raciais nas universidades federais. Uma vez que ela modificou a

realidade de negros e de indígenas, inclusive daqueles retratados no documentário em

análise, essa última ação é particularmente importante no que se refere à questão

multicultural.

Ainda que tenham acirrado conflitos entre grupos minoritários e majoritários, as

ações afirmativas rompem com discursos e práticas anteriores que ignoravam as

assimetrias entre as classes sociais e, especialmente, entre as etnias presentes no Brasil,

viabilizando avanços significativos:

Depois de mais de 15 anos desde as primeiras experiências de ações

afirmativas no ensino superior, o percentual de pretos e pardos que

concluíram a graduação cresceu de 2,2%, em 2000, para 9,3 em 2017.

(BRITO, 2018).

Como o documentário foi desenvolvido no contexto abordado nesta seção, o seu

conteúdo deve ser compreendido a partir de tais estratégias políticas. É interessante

destacar, nesse sentido, que a própria disponibilização de verbas para a produção de um

vídeo preocupado em documentar as vozes ameríndias é fruto do interesse em valorizar

e perceber as particularidades das minorias étnicas. Nessa conjuntura, pesquisadores

tiveram papel fundamental, funcionando como pontes entre diferentes grupos indígenas,

governantes e os órgãos públicos.

Por outro lado, também foi priorizado o desenvolvimento econômico em

detrimento da segurança e dignidade dos povos originários, especialmente daqueles

associados às áreas constantemente invadidas. Assim, é necessário lembrar que nesse

contexto histórico houve um significativo aumento no número de mortes de lideranças

ameríndias4, bem como ampla comoção para a paralisação das obras da Usina Hidrelétrica

de Belo Monte, criticado por diversos arqueólogos, antropólogos, biólogos e demais

4 O conselho Indigenista Missionário registrou um crescimento de 168,3% de assassinato de indígenas

durante o governo Lula em relação à média do governo anterior (O GLOBO, 2013).

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profissionais relacionados, bem como pelos próprios indígenas que seriam afetados por

ela, mas que chegou a ser inaugurada em 2011.

Para as etnias indígenas, o contexto em que o documentário está inserido

corresponde, portanto, a um período paradoxal: de certas rupturas com práticas anteriores

que mantinham cristalizadas a sua marginalização e os preconceitos e estigmas em torno

dos diferentes modos de ser indígena no país, mas também de permanências históricas

que silenciam e/ ou legitimam os genocídios a que estão sujeitos.

4. Ancestralidade, Conflitos Étnicos e Lógicas Particulares Guarani

Essa seção do trabalho pretende destacar determinadas cenas e elementos centrais

contidos no documentário, viabilizando reflexões críticas sobre o seu conteúdo.

Conforme o subtítulo sugere, o enfoque do exercício estará nos saberes ancestrais dos

grupos, perpassando pelo conflito étnico e cultural entre os Guarani e a sociedade

ocidental, sem esquecer das lógicas particulares dos indígenas, que seriam os aspectos

que os diferencem culturalmente das demais culturas majoritárias. Com a finalidade de

respeitar a estrutura da produção audiovisual, dividida em duas partes, abordaremos

primeiramente o conteúdo referente à aldeia de Porto Alegre para, em seguida, estabelecer

paralelos com a aldeia de São Miguel das Missões.

Antes de iniciarmos a apreciação crítica, faz-se necessário destacar que ela não

contemplará aspectos como papeis de gênero e o modo como os indígenas se apresentam

visualmente (uso ou não uso de adornos tradicionais, vestimentas ocidentais, etc.).

Quaisquer interpretações sobre esses elementos resultariam mais em análises sobre os

nossos filtros ocidentais (já que estamos habituados a nos pensar a partir de categorias

como “machismo” e “miséria”, por exemplo, as quais podem não corresponder à

realidade indígena) do que sobre o Outro. Do mesmo modo, não adivinhará quais entre

os indivíduos que aparecem nas filmagens corresponderiam às lideranças e quais seriam

os indivíduos “comuns”, evitando (ou tentando evitar) interpretações nos moldes

daquelas que eram feitas pelos europeus em tempos remotos.

A intenção é manter as reflexões nos aspectos que os próprios indígenas abordam

nas suas falas e nos aspectos que a Nova História Indígena é capaz de auxiliar, fornecendo

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as bases para as reflexões. Como não compreende os ameríndios como vítimas ou meros

espectadores, a Nova História Indígena é capaz de perceber a agência e o protagonismo

desses indivíduos nos diferentes contextos históricos de interação com o homem branco.

Do mesmo modo, rompe com a história tradicional por não classificar os povos indígenas

nem como “puros” e nem como “aculturados”, mas sim como detentores de culturas que

podem passar por modificações para continuarem existindo (Ver CUNHA, 2002;

MONTEIRO, 2004; VAINFAS, 1995).

4.1. Parte I: Tekoà Anhentenguá (Aldeia Verdadeira)

A cena inicial, assim como outras complementares, sugere que a música e a dança

são importantes para a vida na comunidade de Porto Alegre. Entre os instrumentos

musicais por eles utilizados, nota-se o violão e o violino. Embora não falem sobre esse

assunto, é interessante lembrar que ambos fazem parte do passado colonial. A

instrumentalização, juntamente com o coral, o teatro e a confecção de estátuas

missioneiras, foi uma importante estratégia de catequização adotada pela Companhia de

Jesus ao longo das Missões Jesuíticas (Ver KASSAB, 2010). Contudo, o modo como os

indígenas usam o violão e o violino na filmagem (com posturas e técnicas particulares)

indica que possivelmente a prática da instrumentalização foi ressignificada.

O canto coral também segue uma lógica própria indígena, com entonações e,

possivelmente, estruturas distintas das utilizadas pela sociedade ocidental. Embora

cantada na língua Guarani, a legenda permite compreender a forte mensagem: “queremos

nossas terras de volta para construir nossas casas de reza” (MIKOI TEKOÁ PETEI

JEGUETÁ, 2008, 27:45). Um dos trechos finais dessa primeira parte do vídeo é

justamente a apresentação do canto coral - formado por algumas das crianças da aldeia -

em um palco montado no centro da cidade. A população não indígena aprecia o canto –

um homem branco até dança alegremente ao seu som - mas provavelmente não possui as

ferramentas adequadas, já que não domina a língua, para perceber o tom de denúncia.

Outro importante aspecto privilegiado pela produção audiovisual é a relação entre

a aldeia e as limitações dos recursos disponíveis. Logo no início, um grupo de homens e

de meninos jovens aparecem se deslocando das suas habitações para a mata da

proximidade. Ao chegarem, olham para onde moram e refletem sobre o quanto as suas

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roças são inadequadas para viverem de modo “tradicional” indígena, pois o tamanho das

mesmas não permite que se cultive todo o necessário para a subsistência do grupo. A

situação é agravada pelo fato de a área verde do entorno não lhes pertencer: “tem coisas

boas para comer na mata, só que ela já é propriedade dos brancos”. (MIKOI TEKOÁ

PETEI JEGUETÁ, 2008, 06:20).

Como estão em espaço limitado e não podem usufruir da natureza como os seus

ancestrais, ultrapassam os limites das suas terras para demonstrarem técnicas e saberes

antigos. Eles capturam um sabiá, assam o mesmo em uma estrutura improvisada para, em

seguida, comer: “os brancos vão sentir muita pena” do passarinho (MIKOI TEKOÁ

PETEI JEGUETÁ, 2008, 08:46). Para evitarem os julgamentos, salientam que o intuito

não é maltratar o animal e nem matar a fome; o que pretendem é simplesmente rememorar

o modo como os antigos faziam, especialmente quando caçavam animais grandes. Do

mesmo modo, extraem a madeira dessa mata que já não lhes pertence para demonstrar o

modo de confeccionar os “bichinhos” em miniatura, cuja a venda garante o dinheiro para

o sustento do grupo.

A primeira parte do documentário perpassa, ainda, pela relação paradoxal com o

homem branco: por um lado, indígenas dependem que a sociedade ocidental compre o

seu artesanato para que continuem vivendo nas aldeias; por outro, entendem os não

indígenas como os responsáveis pelas limitações e dificuldades enfrentadas pelos Guarani

nos dias de hoje. O peso dessa relação pode ser notado em falas como as seguintes,

proferidas por um dos membros do povoado: “brancos nos olham mal, mas eles mesmos

nos colocam num chiqueiro. Estamos como bichos cercados que alguém vai e coloca um

pedaço de pão. Se eles [brancos] não nos dão, morremos de fome. Mas eles mesmos nos

tiram tiraram tudo”. (MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 19:00).

Os trechos onde mencionam os brancos atendem a uma dupla função: tanto

explicam a precariedade a que estão sujeitos quanto diferenciam as lógicas particulares

Guarani da forma de viver ocidental que, para eles, é regida pelo dinheiro. Em

determinado momento da filmagem (MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 09:10),

críticas ao modo como substituímos plantas nativas pelo lucrativo eucalipto, por exemplo,

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servem para reforçar o desejo dos membros da aldeia de terem as matas de volta, mas não

para destruir e lucrar (MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 10:11).

Ainda sobre lógicas particulares Guarani, é interessante destacar que elas

aparecem ao longo de toda essa primeira parte (e não apenas no momento que os

indivíduos se contrapõem aos não indígenas). Se fazem presente na maneira singular de

tocar os instrumentos e de cantar e dançar, conforme já mencionado, também aparecendo

no modo como cumprimentam uns aos outros; estão presentes na forma como orquestram

armadilhas para a caça, elaboram as suas cestarias com padrões estéticos antigos e no

modo como confeccionam os demais artesanatos; constam nos jeitos como estabelecem

uma relação com a natureza; são notadas nas cenas em que reúnem-se em roda para

conversar, para tomar o chimarrão (cuja a erva para o mate possivelmente também é

comprada dos brancos, em função dos recursos limitados para plantar) e para ouvirem

sobre as suas mitologias, as quais abarcam, inclusive, as razões para não viverem hoje em

harmonia (ver MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 22:42).

Considerando-se as discussões sobre como as sociedades indígenas modificam-

se, é possível afirmar que as particularidades dos falantes da língua Guarani, em relação

aos não indígenas, estão imbricadas nos costumes ocidentais que adotaram ao longo dos

diferentes contextos históricos de interação com o homem branco.

4.2. Parte II: Tekoà Koenju (Aldeia Alvorecer)

O segundo momento do documentário, referente à aldeia de São Miguel das

Missões, também apresenta reflexões críticas dos indígenas em relação à escassez das

suas matas e plantações, o que prejudica a produção de alimentos – assim como

possivelmente da erva-mate e do tabaco. Do mesmo modo, converge com a parte anterior

por contemplar os saberes e técnicas ancestrais: confecção da cestaria, dos bichinhos de

madeira e dos demais artesanatos que garantem a subsistência do grupo, bem como a

confecção de armadilhas utilizadas para capturar animais, os quais estão cada vez menos

presentes na natureza da região.

A letra de uma das canções que constam nas filmagens também conversa com a

do outro grupo: “na nossa aldeia já não temos mais taquaras boas. Já não temos mais

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árvores boas para fazer nossas casas de rezas para a gente ficar feliz”. (MIKOI TEKOÁ

PETEI JEGUETÁ, 2008, 39:09).

Embora a primeira parte do documentário contemple o uso do tabaco5 - atualmente

associado à cultura ocidental, mas cuja a origem remonta às práticas indígenas ancestrais

- é nesse segundo momento do vídeo que temos maior noção dos seus usos pelos falantes

da língua Guarani da atualidade. Em determinada cena, um homem utiliza o cachimbo

para curar o enjoo de uma criança pequena. Ele anda ao redor da casa onde ela se encontra

e, por fim, coloca a fumaça na cabeça dela. Nas suas próprias palavras:

“Nós os Guarani, temos uma grande força dada pelo nosso Pai, que é o

nosso cachimbo. Quando uma criança está mal, eu faço que ela volte a

brincar (...). Com a ajuda do nosso Pai e da nossa Mãe celestial. Está na

mão do nosso Pai.” (MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 40:11).

Nesse processo, algumas das falas que compõe o ritual de cura não foram

legendadas. Estariam elas proibidas para os não indígenas?

Se anteriormente a ênfase da produção audiovisual esteve mais na aldeia do que

na interação com o homem branco, essa segunda parte privilegia o contato interétnico. A

maioria das cenas que a compõem foram filmadas durante a venda do artesanato nas

ruínas de São Miguel das Missões, um local histórico que recebe excursões de turistas

durante o ano inteiro. É nesse cenário que os Guarani encontram uma forma de registrar

e, em vários sentidos, denunciar a hierarquia entre brancos e indígenas.

As cenas que retratam a venda do artesanato permitem perceber, por exemplo, que

os indígenas são constantemente afetados pela inadequada postura da sociedade em geral,

já que os brancos parecem estar sempre à procura de um índio irreal: professora do colégio

que visita o local no momento da filmagem quer saber, por exemplo, se os indígenas ainda

usam o arco e flecha ou se esse é “apenas” figurativo nos dias de hoje (ver MIKOI

TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 43:22).

5 Embora não apresente o uso ritualístico do fumo na aldeia de Porto Alegre, a primeira parte do

documentário demonstra que os indígenas compram cigarros no centro da cidade (MIKOI TEKOÁ PETEI

JEGUETÁ, 2008, 13:50). Pode ser um indicativo de que já não possuem as condições ideias para plantar e

colher o tabaco, conforme faziam no passado.

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Do mesmo modo, turistas sentem-se desapontados com o material utilizado nas

peças à venda, provavelmente porque este não corresponde ao seu imaginário acerca da

cultura material desses grupos. Uma das indígenas desabafa: “quando falei que era só

pena de galinha pintada ele riu e falou: então não vou comprar”. (MIKOI TEKOÁ PETEI

JEGUETÁ, 2008, 58:00). O Guarani com quem conversa, responde: “porque não

perguntou se é para matar passarinho só para vender? (MIKOI TEKOÁ PETEI

JEGUETÁ, 2008, 1:00’00).

Como os brancos não admiram o artesanato (ou admiram, mas pouco compram),

indígenas entendem que os mesmos não gostam de “índio vivo”, preferindo a história

daqueles que foram massacrados no passado. Um dos jovens pede: “Comprem, não

fiquem apenas tirando fotos. Vocês não compram nada, ficam só tirando fotos” (MIKOI

TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 53:46). Turistas escutam, mas não compreendem nem

a língua que ele fala e nem a expressão no rosto do indivíduo. A mensagem transmitida

no documentário é a de que a etnia Guarani não é, para as etnias brancas, digna de

valorização, o que acaba afetando o preço e a venda da cultura material.

Embora não consigam vender como gostariam, a fala de uma das senhoras

Guarani demonstra o quanto o grupo estima os saberes relacionados à confecção de

artefatos: “Os deuses já sabiam que a gente ia precisar vender artesanato, que as matas

iam se acabar. Então por isso os deuses nos deram essa habilidade de seduzir os brancos

com os bichinhos. Pra vender e não morrer de fome” (MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ,

2008, 33: 27). Nota-se que a valorização está no artefato, e não nos brancos que o

consomem, até porque esses são os mesmos que o desqualificam.

Ainda sobre a venda da cultura material Guarani, é interessante mencionar a cena

referente ao recolhimento das peças para retorno à aldeia, a qual permite relativizar a

crítica aos turistas que não compram o artesanato. Em suma, um jovem Guarani que foi

para filmar e prestar depoimento no documentário reparou que a postura dos Guarani

frente ao homem branco também pode ser um dos motivos para o insucesso das vendas:

“Hoje eu entendi o que acontece aqui. Experimenta vir só para olhar, sem vender o

artesanato. Aí você vai ver como o rosto dos Mbya muda”. (MIKOI TEKOÁ PETEI

JEGUETÁ, 2008, 1:01’00).

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Outro relevante aspecto do documentário diz respeito ao modo como os brancos

interpretam a história das ruínas de São Miguel das Missões versus o modo como os

próprios indígenas pensam criticamente a sua relação com o local. Nesse sentido, é

interessante destacar que a segunda parte do documentário contempla, inclusive, aspectos

da fala de professoras que explicam o contexto histórico das missões. Em resumo, a

ênfase dada por essas profissionais, ouvidas por seus respectivos alunos e demais turistas,

está na intenção dos europeus ao enviarem os jesuítas, que seria a de ocupar o território,

expandir o catolicismo e proteger os índios (ver MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ,

2008, 47:44).

A abordagem privilegiada pelas educadoras, que está representando a visão da

sociedade ocidental como um todo, também contempla os motivos de os padres europeus

terem privilegiado o Guarani em detrimento de outros indígenas: “índio manso, curioso

para o trabalho escravo” (ver MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 48:00). O

documentário transmite a ideia de que não foram feitas críticas à essa versão apresentada

pelos documentos históricos.

As professoras também mencionam a morte de 1.500 nativos na Guerra

Guaranítica, o que uma delas considera como sendo um “verdadeiro massacre”. Ainda

que não seja uma interpretação equivocada, tal fala serve para demonstrar o quanto temos

privilegiado enfatizar a morte dos indígenas, sem que antes tenhamos abordado sobre a

vida e ações desses sujeitos ao longo do contexto histórico em questão.

Por sua vez, o enfoque das reflexões dos próprios Guarani sobre as ruínas está na

agência dos seus antepassados, os quais teriam sido os responsáveis por levantar e

posicionar cada uma das pedras que ali se encontram. Também está no fato de os

ancestrais terem atuado naquele local contra a sua vontade até que, por fim, acabaram

sendo mortos: “tudo isso é doloroso para nós. Se pensarmos, dói até hoje” (MIKOI

TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 50:27).

Ao refletirem se deveriam reivindicar para si as ruídas, em função da estreita

relação com a mesma, um dos homens afirma: “(...) a gente não quer isso aqui de volta,

não é. Não estamos aqui porque gostam da gente. Se a gente tomasse isso de volta,

certamente nos matavam de novo” (MIKOI TEKOÁ PETEI JEGUETÁ, 2008, 53:00).

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Diversos são os momentos em que as lógicas particulares Guarani são

evidenciadas nessa segunda parte da produção audiovisual. Entre tais momentos, aqueles

referentes à cura pelo cachimbo, aos saberes e técnicas do cotidiano e às cenas em que

pensam criticamente a relação mantida com as ruínas de São Miguel (entendidas tanto à

luz da história indígena quanto a partir da mitologia Guarani, que atravessa algumas das

filmagens). De modo especial, estão presentes quando pensam a si mesmos a partir da

identificação das falhas da cultura ocidental: por exemplo, conforme uma das cenas finais,

os antepassados dos Guarani não dividiam o território por governos e países porque não

se achavam os donos da terra, tal como os brancos se acham (ver MIKOI TEKOÁ PETEI

JEGUETÁ, 2008, 58:40).

5. Discussão e Considerações finais

Ainda que a produção audiovisual “Mikoi Tekoá Petei Jeguetá - Duas Aldeias,

Uma Caminhada” tenha potencial para ser lida sob diferentes abordagens, inclusive a

partir de categorias de análises utilizadas pelos estudos decoloniais, latentes na

atualidade, o que propomos nesse trabalho foi uma aproximação com outras reflexões

feitas pela Sociologia e pela História. A escolha pelo viés interdisciplinar é justificada

pelo recorte temporal contemplado pelo vídeo e também pelo objetivo do trabalho,

interessado em discutir tanto sobre etnicidade quanto sobre a presença da cultura indígena

no Rio Grande do Sul.

Embora o texto empenhe-se por atender ao intuito proposto, no que se refere à

cultura Guarani é possível que alguns ou vários elementos importantes tenham passado

despercebidos ou carecido de aprofundamento. Isso porque enquanto o roteiro foi escrito,

filmado e dirigido pelos indígenas em sua língua materna, com autonomia para abarcarem

o que consideram como primordial, o recorte das cenas e diálogos privilegiados por esse

estudo, bem como as reflexões nele propostas, foram elaborados sob a ótica branca e

colonialista que ainda permeia o meio acadêmico e a sociedade como um todo. Por outro

lado, na medida em que percebe a existência de certa hierarquia étnica presente no Rio

Grande do Sul, onde as etnias ocidentais colocam-se acima (e não ao lado) das sociedades

indígenas, possui maior potencial para contemplar a intenção de refletir sobre etnicidade.

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De modo geral, é esperado que a discussão tenha permitido deslocar algumas

concepções equivocadas, problematizando estigmas em torno dos povos indígenas do

período em que a produção audiovisual foi realizada, os quais se estendem até hoje.

Reflexões sobre os Guarani estarem inseridos em contextos urbanos e em espaços

confinados, sem condições para viverem de modo “tradicional”, foram privilegiadas na

terceira parte do texto justamente com essa intenção. Mesmo que tenham abandonado

hábitos antigos e adotado alguns outros, considerados pelos ocidentais como contrários

ao modo de vida ancestral desses povos, continuam sendo indígenas. Ao incorporarem

novos costumes, esses foram ressignificados a partir das suas lógicas particulares.

O corpo do texto também teve o compromisso de destacar os momentos em que

os Guarani evidenciam no vídeo a apropriação de elementos da cultura ancestral indígena

que foram adotados (ou confiscados) pelos brancos. Nesse sentido, foi procurado

mencionar a erva-mate, o tabaco (transformado em cigarro) e também a questão das matas

e das ruínas de São Miguel das Missões. É sob esse viés que o estudo proposto permite

ler a produção audiovisual enquanto um documento que realiza uma série de denúncias à

sociedade brasileira. O público leitor pode perceber que as cenas e os diálogos

privilegiados nesse estudo não são neutros, já que foram desenvolvidos de modo a

reafirmar as identidades e algumas das lutas dos falantes da língua Guarani.

Reconhecer o potencial do documentário enquanto um discurso político legítimo

é uma leitura importante, capaz de auxiliar na tomada de consciência acerca da

necessidade de se romper com permanências históricas que têm injustiçado as sociedades

originárias. Em certos sentidos, a reflexão realizada ao longo do trabalho está relacionada

com a emergência de se reconhecer e demarcar territórios indígenas, de se pensar em

maneiras colaborativas de administrar os patrimônios históricos que também dizem

respeito aos indígenas e de se integrar culturas outras na cultura majoritária, mas sem que

isso signifique o apagamento das minorias étnicas.

A partir do cruzamento do conteúdo da produção audiovisual com outras fontes

documentais referentes ao mesmo tema, e de um aparato teórico e metodológico

adequado, novos estudos podem ser realizados. É tanto viável quanto pertinente que se

complexifique as discussões propostas nesse primeiro momento, garantindo que as vozes

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ameríndias tensionem o olhar dos historiadores e professores de História não indígenas,

bem como sejam ouvidas pela sociedade brasileira que permanece despreparada para

conviver e valorizar as diferenças e particularidades do Outro.

6. Referências

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Agência Brasil, Brasília, 2018. Disponível em:

<https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-05/cotas-foram-revolucao-

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Companhia das Letras, 1992.o Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte:

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MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de

POUTIGNAT, Philippe. Teorias da Etnicidade. Seguido de Grupos Étnicos e Suas

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SOUZA, André de. Assassinatos de índios aumenta 168% nos governos Lula e Dilma.

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https://oglobo.globo.com/brasil/assassinato-de-indios-aumenta-168-nos-governos-lula-

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VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial.

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EUB. Ediciones OCTAEDRO, 2002.