ética um ensaio sobre a consciencia do mal alain badoiu

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BADIOU, Alain. 1995. Ética. Um Ensaio sobre a Consciência do Mal. Rio de Ja- neiro: Relume-Dumará. 100 pp. Ovídio Abreu Filho Prof. de Antropologia, UFF O nazismo e o fracasso das experiências comunistas estão impressos na cons- ciência ética contemporânea. Os hor- rores totalitários, os perigos ditos ine- rentes ao desejo revolucionário e a su- posta inoperância das políticas de trans- formação assumem, hoje, uma função mítica, inscrevendo no espírito “manei- ras de pensar” que fundamentam uma vontade de prescindir da filosofia e de conceder à opinião o direito de articular um consenso ético. Em conformidade com as investiga- ções anteriores de Badiou sobre o Ser, o Acontecimento, a Verdade e o Sujeito, a Ética se constrói em uma espiral que impõe aos problemas uma mobilidade que os relaciona transversalmente com contextos continuamente ampliados. Assim, se se pode dizer, como o autor o faz, que seu livro tem dois momentos – um crítico, outro criador –, deve-se acrescentar que o movimento dessas atividades na espiral torna-as indisso- ciáveis. É assim que Badiou investiga a natureza da vontade que sustenta a “ideologia ética” contemporânea, ao mesmo tempo que propõe uma “ética das verdades”. Badiou parte da evidência de um dispositivo complexo, composto por or- ganismos internacionais, comissões na- cionais, tribunais de ética, expedições militares de defesa de valores etc., sus- tentando uma rede de discursos que invoca categorias abstratas – o Homem, o Outro, a Vida – e impõe, como impe- rativos categóricos, o respeito aos “di- reitos humanos”, o reconhecimento do “Outro” e a defesa de uma “vida dig- na”. Sob esta tripartição da “ideologia ética”, Badiou revela a recusa niilista de pensar o Bem enquanto prescrição positiva dos possíveis. A primeira figura desse niilismo é o Homem. Trata-se de uma imagem na- turalista, biológica mesmo, que reduz o homem a um “animal capaz de reco- nhecer a si mesmo como vítima” (:25). Postula-se, então, o primado do Mal: o Homem, como sujeito universal, possui “a capacidade a priori de distinguir o Mal” (:23), o que ofende os Direitos do Homem, o Outro e a Vida. O nazismo, o genocídio dos judeus, desempenha, no interior da “ideologia ética”, o papel do Mal Absoluto – exemplo de agres- são radical às três figuras da tripartição ética. Ao homem-vítima, ao “animal-para- a-morte”, Badiou contrapõe a idéia do Imortal, do homem como animal poten- te, capaz de imortalizar-se na afirma- ção de “acontecimentos” que o transfor- mam em “sujeito de processos de ver- dade” – recusa do Sujeito Universal e RESENHAS MANA 2(2):189-211, 1996

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BADIOU, Alain. 1995. Ética. Um Ensaiosobre a Consciência do Mal. Rio de Ja-neiro: Relume-Dumará. 100 pp.

Ovídio Abreu FilhoProf. de Antropologia, UFF

O nazismo e o fracasso das experiênciascomunistas estão impressos na cons-ciência ética contemporânea. Os hor-rores totalitários, os perigos ditos ine-rentes ao desejo revolucionário e a su-posta inoperância das políticas de trans-formação assumem, hoje, uma funçãomítica, inscrevendo no espírito “manei-ras de pensar” que fundamentam umavontade de prescindir da filosofia e deconceder à opinião o direito de articularum consenso ético.

Em conformidade com as investiga-ções anteriores de Badiou sobre o Ser,o Acontecimento, a Verdade e o Sujeito,a Ética se constrói em uma espiral queimpõe aos problemas uma mobilidadeque os relaciona transversalmente comcontextos continuamente ampliados.Assim, se se pode dizer, como o autor ofaz, que seu livro tem dois momentos –um crítico, outro criador –, deve-seacrescentar que o movimento dessasatividades na espiral torna-as indisso-ciáveis. É assim que Badiou investiga anatureza da vontade que sustenta a“ideologia ética” contemporânea, aomesmo tempo que propõe uma “éticadas verdades”.

Badiou parte da evidência de umdispositivo complexo, composto por or-ganismos internacionais, comissões na-cionais, tribunais de ética, expediçõesmilitares de defesa de valores etc., sus-tentando uma rede de discursos queinvoca categorias abstratas – o Homem,o Outro, a Vida – e impõe, como impe-rativos categóricos, o respeito aos “di-reitos humanos”, o reconhecimento do“Outro” e a defesa de uma “vida dig-na”. Sob esta tripartição da “ideologiaética”, Badiou revela a recusa niilistade pensar o Bem enquanto prescriçãopositiva dos possíveis.

A primeira figura desse niilismo é oHomem. Trata-se de uma imagem na-turalista, biológica mesmo, que reduz ohomem a um “animal capaz de reco-nhecer a si mesmo como vítima” (:25).Postula-se, então, o primado do Mal: oHomem, como sujeito universal, possui“a capacidade a priori de distinguir oMal” (:23), o que ofende os Direitos doHomem, o Outro e a Vida. O nazismo,o genocídio dos judeus, desempenha,no interior da “ideologia ética”, o papeldo Mal Absoluto – exemplo de agres-são radical às três figuras da tripartiçãoética.

Ao homem-vítima, ao “animal-para-a-morte”, Badiou contrapõe a idéia doImortal, do homem como animal poten-te, capaz de imortalizar-se na afirma-ção de “acontecimentos” que o transfor-mam em “sujeito de processos de ver-dade” – recusa do Sujeito Universal e

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sua ética geral vigilante dos direitos davítima. O homem singulariza-se em suapotência de se subjetivar: Badiou cons-trói assim o espaço de uma “ética dassituações”, que problematiza a relaçãodo homem com a raridade do “aconte-cimento”, da “verdade” e do “sujeito”.

A segunda figura da recusa niilistaé o Outro, e seu correlato é a “ética dadiferença”. Badiou mostra como o cui-dado da “ideologia ética” com o Outroé uma degradação do esforço realizadopor Lévinas em pensar uma ética a par-tir de uma abertura radical e primeiraao Outro. A “ética da diferença” aban-dona a exigência de situar o Outro apartir do pensamento do Todo-Outro,da experiência de uma não identidadeessencial. Não ultrapassando uma visãomimética do Outro, trocando o funda-mento religioso de Todo-Outro por umapoio “científico”, busca sua objetivi-dade no culturalismo. Mas, o fascíniodo homem ocidental com a diversidadecultural não impede a constituição deuma identidade ética: “eu respeito asdiferenças contanto naturalmente queaquele que difere respeite, exatamentecomo eu, as ditas diferenças” (:38).

Ao fascínio com a alteridade, Ba-diou contrapõe o problema do Imortal,a questão do reconhecimento do Mes-mo. Suas proposições partem dos se-guintes axiomas: “não há nenhumDeus”; “o múltiplo ‘sem Um’ – todo múl-tiplo sendo sempre, por sua vez, múlti-plos de múltiplos – é a lei do ser”; “o in-finito é a banalidade de toda situação enão o predicado de uma transcendên-cia”(:39). Desse ponto de vista, a dife-rença não põe nenhum problema aopensamento: é o que há. À indiferençada diferença Badiou afirma o cuidadocom o que advém, com o “Mesmo”,com as “verdades” que induzem sujei-tos. Contra o respeito abstrato por umOutro domesticado ressalta o desejo éti-

co de alterar-se, de “prescrever à nossasituação e a nós mesmos possíveis ain-da inexplorados” (:45).

A terceira figura da recusa niilista éa idéia de uma Vida Digna, que alimen-ta uma “bio-ética”. É a idéia de “felici-dade” que articula a crença no Homemcom a reivindicação de uma “vida dig-na”. A morte definida e vivida comofigura do Mal é banida do pensamentoe, precariamente simbolizada, retornacomo conteúdo real da “ideologia éti-ca”. O desejo conservador que sustentaa reivindicação de uma “vida digna”,ao não questionar a necessidade, omercado e a legitimidade da situaçãoocidental, obriga, no fim das contas,que a ética decida quem deve viver –ou seja, ser integrado à ordem mundial– e quem deve morrer.

Contra o niilismo que condena opensamento à ratificação do necessárioe que busca transformar “o espetáculoda economia em opinião consensual re-signada”, Badiou afirma a “possibilida-de do impossível”, do “acontecimento”,da “verdade” e do “sujeito”. Não se po-de mais pensar o Mal absoluto ou umBem universal: o Bem só é representá-vel concretamente na abertura de umasituação, como “norma interior de umadesorganização prolongada da vida”(:71). O Bem é, assim, uma raridade queatravessa a vida, o processo que convo-ca o animal-humano – que vive aquémdo Bem e do Mal – a entrar na composi-ção de um sujeito: é o que sustenta oImortal.

Badiou opõe o mundo das opiniões,onde o animal vive aquém do Bem e doMal, aos processos de verdade hetero-gêneos aos saberes instituídos. Adver-te, no entanto, que é sempre o animalque dá corpo tanto às opiniões quantoàs verdades: “é esse corpo, e tudo deque o mesmo é capaz, que entra nacomposição de um ‘ponto de verdade’”

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(:57). É essa tensão, e não a universali-dade de um sujeito, que funda o campoético. Badiou define a “ética de umaverdade” como o “que dá consistênciaà presença de alguém na composição deum sujeito que induz o processo dessaverdade” (:57). Ora, o problema ético sóse coloca para além dos reconhecimen-tos da opinião, só existe como problemapara um “sujeito” de um processo realde fidelidade a um “acontecimento”,isto é, a “singularidades irredutíveis”,“fora-da-lei” das situações. A ética éuma problematização da relação do “al-guém” com um “acontecimento” queredefine sua relação com a situação eseus saberes. Relação nada simples,que define o Bem e o Mal como catego-rias relativas a uma política das verda-des. Política que se decide nas possibi-lidades demarcadas pelas seguintesalternativas: afirmação de um aconteci-mento ou de um simulacro de aconteci-mento; fidelidade ou traição do alguémao acontecimento; continência ou in-continência das verdades contra os sa-beres da situação.

Badiou evita toda confusão do Malcom a violência do animal-humano si-tuada aquém do Bem e do Mal: o Mal éuma virtualidade aberta pelo processode verdade. Ele se apresenta sob trêsformas: como “terror”, como “traição” ecomo “desastre”. O “terror” é correlatode uma fidelidade a um simulacro deacontecimento. Nesse processo, o que énomeado não é o vazio de uma situa-ção, aquilo que ao mesmo tempo esca-pa ao saber da opinião e se dirige a to-dos como universalidade, mas uma par-ticularidade, uma substância cuja reali-dade deve ser produzida pelo terrorque gera um vazio a seu redor. Badioutoma o nazismo como exemplo, não deum Todo-Mal, mas de uma política de“terror”. A ruptura nazista se faz noprocesso de fidelidade ao povo alemão

– substância cuja realidade tem de sergarantida pelo extermínio dos judeus.A “traição” é a virtualidade aberta pelaambigüidade da posição do “alguém”no processo de uma verdade, sua con-sistência depende de que o “interesse-desinteressado” que impele o animal ase tornar sujeito de uma verdade sesobreponha ao simples interesse deperseverar no seu ser. Badiou enfatizaque a “traição” não significa simplesabandono de uma verdade, a “traição”é o autoconvencimento de que o pro-cesso jamais existiu e de que o Imortalé uma impossibilidade. O “desastre” éconseqüência do desconhecimento doslimites de uma verdade, decorre davontade desmesurada de verdade queimpulsiona um se tornar dogmática da“língua-sujeito” que pretende entãotudo poder nomear. A prepotência dog-mática ignora a presença do animal nacomposição do sujeito de uma verdade.Como diz Badiou, “o Bem só é Bem namedida em que não pretende tornar omundo bom. Seu único ser é o adventoà situação de uma verdade singular. Épreciso então que a potência de umaverdade seja também sua impotência”(:93). A Ética propõe o Continuar – sus-tentação da fidelidade ao acontecimen-to – como imperativo que tem o cuidadoético de evitar os simulacros, de não ce-der aos interesses e de recusar uma no-meação total.

Na situação atual onde o capitalimpõe a todos, por meio da globaliza-ção, sua suposta “sinceridade incontor-nável”, o livro de Badiou pode ser vistocomo uma peça de resistência, de lutacontra essa “unanimidade”, que resultade uma acumulação primitiva de valo-res – movimento de captura da diversi-dade dos desejos, da virtualidade dosimprevistos e da multiplicidade dospossíveis – que se realiza em escala pla-netária.