Ética - elementos básicos

234
Carlos Adriano Ferraz ÉTICA Elementos básicos

Upload: henrique-machado

Post on 18-Aug-2015

40 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

As principais correntes teóricas em ética.

TRANSCRIPT

Carlos Adriano Ferraz TI CA

Elementos bsicos TI CA

Elementos bsicos Comit Editorial Prof. Dr. Juliano do Carmo (Editor-chefe) Prof. Dr. Robinson dos Santos Prof. Dr. Kelin Valeiro Projeto grfco editorial Natvu Design Diagramao: Prof. Dndo. Lucas Duarte Reviso gramatcal Prof. Dr. Tas Bopp Comit Cientfco: Prof. Dr. Flvia Carvalho Chagas Prof. Dr. Joo Francisco Nascimento Hobuss Prof. Dr. Manoel Vasconcellos Prof. Dr. Srgio Strefing Prof. Dr. Eduardo Ferreira das Neves Filho Carlos Adriano Ferraz TI CA

Elementos bsicos Catalogao na Publicao Bibliotecria Simone Godinho Maisonave - CRB - 10/1733 ______________________________________________________________________ F381e Ferraz, Carlos Adriano Elementosdetca[recursoeletrnico] / Carlos AdrianoFerraz Pelotas : NEPFIL online, 2014.217 p. (Srie Dissertato-Incipiens).

Modo de acesso: Internet ISBN: 978-85-67332-27-7

1. tca2. tca Moderna 3. tca Contempornea I. Ttulo. II. Srie.CDD170 Carlos Adriano Ferraz Elementos de ticada Antiguidade Modernidade Sumrio 1. Aspectos Introdutrios .............................................................................. 9 1.1. Do conhecimento prtico: Da natureza prtica da tica e das razes para o agir ............................................................................. 9 1.2. Questes fundamentais da tica .................................................... 17 1.3. Dever, Bem, Felicidade, Perfeio e Utilidade: Deontologia e Consequencialismo .................................................................................. 24 2. Antiguidade e Idade Mdia ..................................................................... 29 2.1. Scrates e Plato: Virtude, Justia e Felicidade ............................ 29 2.2. Aristteles: Ao e Eudaimonia ..................................................... 41 2.3. A tica Helenstica: Epicurismo e Estoicismo ............................ 59 2.3.1. Epicurismo ................................................................................. 59 2.3.2. Estoicismo .................................................................................. 66 2.4. Agostinho e o problema do livre-arbtrio ................................ 75 2.4.1 Algumas consideraes finais sobre o problema do mal em Agostinho .............................................................................................. 89 2.5. Toms de Aquino e o primeiro princpio da razo prtica .. 93 8 3. Modernidade ........................................................................................... 111 3.1. Spinoza: Da beatitude como fim derradeiro do homem ........ 111 3.2. Leibniz: Da ao correta como imitatio Dei ............................. 124 3.3.A Filosofia Moral Britnica: Thomas Hobbes, John Locke, Lord Shaftesbury, Samuel Clarke e Francis Hutcheson .................. 137 3.4. David Hume: Sobre o sentimento moral ................................. 156 3.4.1. Inferncia causal ...................................................................... 161 3.4.2. Sentimento e moralidade ....................................................... 162 3.5. Immanuel Kant e a fundamentao de uma metafsica da moral ........................................................................................................ 172 3.5.1. Immanuel Kant e a instncia humana da tica ................. 200 3.6. Moralitt (moralidade) e Sittlichkeit (eticidade) em Hegel..... 214 3.7. O Utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill .......... 220 4. Consideraes Finais: Implicaes prticas dos fundamentos tericos da tica .......................................................................................... 229 1. ASPECTOS INTRODUTRIOS 1.1. Do conhecimento prtico: Da natureza prtica da tica e das razes para o agir A razo prtica, em primeiro lugar, por identificar o desejvel (tendo em vista, claro, a sua realizao a partir daquele momento e a sua realizao de forma inteligente)1. John Finnis Aticaprtica.Essaumaafirmaofrequenteemdiversos manuais de tica. Mas em que consiste, exatamente, o carter prtico da tica?Para caracterizarmos preliminarmente seu aspecto prtico, o qual seresclarecidosobejamenteaolongodaexposiodosautorese temas dos quais nos ocuparemos ao longo desse livro, podemos partir doconceitomesmodetica.Elenosoferecerumaprimeira caracterizao do que seja tica e qual sua relao com a prtica. Com efeito, o termo origina-se do conceito grego ethos (substantivo; ethike seriaoadjetivo),oqualdenotacostumes,estilodevida,etc.Tal conceitofoiposteriormentetraduzido,porCcero,paraotermo latinomos,doqualadvmapalavramoral,detalformaque moralseriaumameratraduodetica(significando,pois,a mesmacoisa).Dessaforma,originariamenteticaemoral significavamtantooobjetodeestudoquantoacrticadesseobjeto. Noutrostermos,ambososconceitosconstituamadisciplinaque

1 Finnis, John. Fundamentos de tica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.35. 10 estudaosaberticopresentenoscostumesetambmessesaber mesmo. Nesse sentido, sobre esse ponto interessante a observao de ErnstTugendhatemsuasLiessobretica2,especialmentena PrimeiraLio,naqualelejustificaousodostermosticae moralcomointercambiveis3.Segundoele,opontoqueno latim,otermogregothicosfoientotraduzidopormoralis.Mores significa: usos e costumes4. Assim, ambos os conceitos esto voltados paraoscostumes,paraoagir.Dessaforma,aetimologiamesmada palavra tica aponta para sua relao com a prtica. Masessaumaprimeiraobservaosobreoquepoderamos chamar de praticalidade da tica5. Almdisso,podemosacrescentarque,quandodiscutimosos temasfundamentaisdatica,osquaispodemser colocadossobuma pergunta mais abrangente, a saber, o que devo fazer?6, devemos abrir modenossaspeculiaridadeseadotarmosaquelepontodevistaque poderamosdenominardepontodevistadarazo.Issono significa dizer, como veremos mais adiante, que devemos nos anular. Em verdade, trata-se de adotar um ponto de vista em que o subjetivo coincidacomoobjetivo.Assim,oquesequerdizerqueadotara perspectivadamoralenvolveadotarmosumpontodevistano particularizado, no relativizado. Significa, ento,justificar a resposta quela pergunta fundamentalrecm-mencionada: o que devo fazer? Aquiointeresseindividualdeverestaremacordocomoquepode

2 Tugendhat, Ernst. Lies sobre tica. Petrpolis: Vozes, 2007. 3Emboraelereconheaquealgunsautorestenhamestabelecidoartificialmenteuma distinoentreessestermos,comoHegel,porexemplo.Masabordaremos detidamente essa distino, que em Hegel essencial, no captulo 15 do presente livro. 4 Tugendhat, Ernst. Lies sobre tica. Petrpolis: Vozes, 2007, p.35. 5 Sobre tal praticabilidade ver: Finnis, John. Fundamentos de tica. Rio De Janeiro: Elsevier, 2012. Ver especialmente o primeiro captulo.6 Immanuel Kant, em suas lies sobre lgica, assenta aquelas que so as mais gerais (e principais)questesdafilosofia,asquais,serespondidas,nosdaroumaresposta questo ainda mais geral, a saber, o que o homem? As questes so: o que posso saber?, o que devo fazer? e o que me lcito esperar? Tais questes esto ligadas sistematicamentenafilosofiadeImmanuelKant.Ver:Kant,Immanuel.Lgica.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, p.42, Ak 25. 11 serjustificadodiantedeoutrossujeitoscapazesderacionalidade. Alis,issonosignifica,cabereiterar,queassumirumarazoparaa ao signifique ir contra si mesmo. Em verdade, a justificao unifica os diversos bens pessoais. Da que ela deve estar em acordo no com nossas particularidades, mas com aqueles elementos presentes em todo sujeito capaz de racionalidade (o que nos inclui): sua razo. Colocado deoutramaneira,aquidevemosencontraraunidadeentreinteresse pessoaleinteressemoral.Eissodemandaassumirmosarazocomo uma espcie de faculdade ativa daquilo que entendemos como mente. Quandosuaatividadesevoltaparaaao,enoparaasimples contemplao,temosaracionalidadeprtica,aqualoferecerazes paraagir(justificativas).Eesseumpontocentralnacaracterizao doquesejatica:oethos(costumes,hbitos)seapresentaem oposio physis (natureza). Assim, no mbito da physis vamos dos fatos s leis (observamos os fatos e buscamos uma legalidade para eles, a qual residiria na natureza mesma), ao passo que no mbito do ethos vamos das leis aos fatos (ou seja, engendramos as leis e as aplicamos. Aquinosomosdeterminadospelosfatos,masdeterminamosnosso objeto, a ao. isso que se quer dizer com razes para o agir). O ethosestindissociavelmenteligadoprxis(prtica),auma comunidade. Para os gregos, falamos em um ethos na medida em que ele est inserido em uma comunidade/sociedade. Com efeito, oethos , como se pode depreender do que foi colocado acima, compreendido comoaqueleelementoqueserefereaodever-sereaobem.Aqui, liberdadeseriaumaexpressoderacionalidade,dologos.Noutros termos, o logos seria o critrio de legitimidade do ethos. Da falarmos em intelectualismo tico. Comefeito,paramelhorcompreendermosesseponto,faz-se imperiosoreabilitarmosalgumascategoriasfundamentaisdatica, notadamenteascategoriasdeagirhumanoederazo(ou racionalidade)prtica.Ambasestoligadasrespostaquestoo quedevofazer?Comissopercebemosquearespostaaessaquesto ter uma justificativa baseada em razes. Da falarmos em razes para oagir.Osfilsofosquemaisclaramenteperceberamissoforam, como veremos mais adiante, Aristteles e Kant. Eles se aperceberam da 12 importnciadafiguradaracionalidadeprticaedeseupapel fundamental em tica. Mas essas razes, no obstante, conflitaram ao longo da histria datica.Afinal,osfilsofosforamautoresemseutempo.Muitas vezes(emalgunsaspectospontuais)elesforamnoapenasafetados, mastambmdeterminadosporelementoscontingentese circunstanciais.Ningumvivenovcuo.Ditodeoutramaneira,h elementosqueobliteram(ouapenasinterferemsobre)aatividade racional. No entanto, antecipando um ponto fundamental do que ser desenvolvido mais adiante, o elemento que assegura certa unidade a razo,oqueconduziudiversosautoresaassumiremqueelao elementocomumatodososhumanos.Assim,dadosermosdotados damesmarazo,foidesde oinciorazovelesperarqueela,arazo, fosseofundamentodajustificaotantoemoperaestericas quantoemoperaesprticas.Colocadoemoutrostermos,dadoser ela a base de nosso conhecimento terico, nada mais natural, ento, que ela fosse tomada como a faculdade ideal quando se buscava pelo conhecimentomoral.Assimcomoelafoiafaculdadequenos permitiu avanos no conhecimento terico, parecia ser ela tambm a faculdade que nos permitiria ter um conhecimento sobre a prtica (o que devo fazer?). Ento, o que deu a eles o status de filsofos foi o fato de eles procurarem por uma fundamentao racional para certas perguntasfilosoficamenterelevantes,dentreasquaisestavaaquesto que constituir o background deste livro: o que devo fazer? A maior partedosautorescom osquaisnosfamiliarizaremos buscoupor um fundamento racional para essa questo. Resumidamente, eles tentaram encontrar razes para o agir. Eis o aspecto prtico da tica: trata-se da razo voltada para a ao, para a prxis. Seu objeto a ao. Assim comoarazoemseuusotericoestvoltadaparaadescriodo mundo,arazoemseuusoprticosedirigeparaoagir,parauma compreensodasrazesquetemosparaagirdecertamaneira (eticamente correta) e para evitar outras aes (eticamente incorretas). Dadanossanatureza,quandoagimosrefletimossobrenossaao. Buscamosumarazoparaela(similarmenteacomoprocedemos 13 quandobuscamosrazesparacompreenderoqueocorrenossa volta).Assim, poder-se-ia dizer que a questo central da tica foi colocada originariamenteporAristteles,noprimeiropargrafodesuaEthica Nicomachea:Todaaperciaetodooprocessodeinvestigao,do mesmo modo, todo o procedimento prtico e toda a deciso, parecem lanar-separaumcertobem.porissoquetemsidodito acertadamentequeobemaquiloporquetudoanseia7. Posteriormente, teremos em Toms de Aquino (o qual foi fortemente influenciado por Aristteles) a ideia segundo a qual o bem h de ser buscado e o mal evitado (bonum est faciendum et prosequendum, et malumvitandum)8.Poisbem.Aticaexatamenteadisciplinaque pretendeidentificaressebem(bemporquetudoanseia,bemque hdeserbuscado).Eissopassapelaidentificao,reconhecimento, denossanatureza.Nossofimnopodeserdissociadodenossa natureza.Eoreconhecimentodessanaturezapressupeo reconhecimentodenossasfaculdades.Dessaforma,apartirdo reconhecimento de nossa capacidade racional encontramos, ento, um elementoquenosapontaparanossanatureza(nopartimosda definiodenossanatureza,masdenossashabilidades,asquaisnos levamareconhec-la,eaqualnosdistinguedasdemaisformasde vida).Eoagirconformeessanaturezanosconduziria,ento, eudaimonia(felicidade,florescimentohumano).Nessesentido,os principaisautorescomosquaisvamosnosdepararaolongodeste livrovo,dealgumaforma,abordaraquestodanaturezahumana. Afinal,paraestabelecermosoquedevemosfazertemosqueterem mente de que sujeito estamos falando. Isso nos conduzir a uma ideia que se tornou fundamental em tica a partir de Aristteles, a saber, a ideia de funo especfica do humano9. Ou, ainda, a ideia de uma funoespecficaquelhesejaprpria.Vemos,ento,queo fundamentodaaoestaratreladoaumfim,o qualseralcanado

7 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.17, 1094a1. 8Aquino,Tomsde.SumaTeolgica(volumeIV,Questo94).SoPaulo:Loyola, 2010, p.562. 9 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.27, 1097b22. 14 se,esomentese,agirmosdeacordocomtalnatureza.Oprimeiro passo , ento, vermos quem esse sujeito (o que se perceber a partir da identificao de suas habilidades). Alm do que vimos at esse ponto, e ligado a isso, cabe notar que a tica oriunda de uma reflexo sobre nossas experincias concretas, dabuscaporsualegitimidadeeobjetivo.Nessesentido,elanoest voltadaexclusivamenteparanossasprefernciaspessoais,maspara aquiloquepodeserjustificadoobjetivamente,aindaque subjetivamente resistamos. Alis, esse mesmo o sentido de virtude, daquilo que Kant entendeu comofortitudo moralis. Em seus termos: Acapacidadeeopropsitodeliberadodeseoporaumadversrio poderoso,masinjusto,acoragem(fortitudo)e,emrelaoao adversriodaatitudemoralqueexisteemns,virtude(virtus, fortitudomoralis)10.Nessesentido,podemosdepreenderdessa definiodevirtudequeelaimplicamuitasvezeslutarmoscontra nossasvolies.Talocorreporqueaquitemosemmentebensefins querepresentamumatendnciaobjetiva:sovlidosparatodosos sujeitosracionais(capazesderacionalidade).Nesseaspecto,nossas aes,comobemreconheceuAristteles,tendemparaumfim.Mas que fim esse? Como identific-lo? Como justific-lo? Ora,seconsiderssemosqueofimdenossasaesonosso prazer(fimmeramentesubjetivo),entonossasaesbuscariam meramenteporalgoquenosapraz(individualmente).Noentanto, nossas aes, enquanto aes de um sujeito racional, buscam por um bemvlidoparatodosujeito(enquantoracional).Umdosobjetivos centraisdaticadescobrirqualessefim(equalopapeldas emoesnoagir.Nopodemosnegarseupapelnasaes).Talfim, paraquesejajustificvel,deverserobjetivo.Ecabeenfatizarque objetivo, aqui, no o oposto de subjetivo (ou um ou outro). No se tratadeabrirmodeuminteressepessoalporalgoquenosseja estranho. Resistimos a algo pessoal, sim, mas no em prol de algo que nos seja estranho. Resistimos determinao por um sentimento que

10Kant,Immanuel.AMetafsicadoscostumes.Lisboa:FundaoCalouste Gulbenkian, 2005, p.283, 38. 15 motivadoporumobjetoexternoans.Eissoparaassegurarque nossa ao ser autnoma, isto , que a lei (regra, determinao) ser inerentenossanatureza,aqualobjetiva(dadoseramesmapara todos os sujeitos). Assim, quando agimos ns o fazemos no apenas mecanicamente (essa no a nica possibilidade), mas tambm reflexivamente. Como vimos, o agir sempre dirigido a um fim. A questo : trata-se de um fim que poderia ser considerado objetivo? Comefeito,seconsiderssemosqueoprazerofimdenossas aes, estaramos sendo condicionados pelo que nos impulsiona a agir (objetodedesejo,possvelcausadeprazer).Issosignificaquenesse casonoestaramosexatamenteagindo,dadoqueoagirenvolve reflexividade(trata-sedeagirinteligentemente).Nocasodoprazer comofim,seramosdeterminadospeloobjeto.Nessesentido, interessante e esclarecedora a concepo escolstica de actus humanus (atohumano),oqualosescolsticosdistinguiamdeactushominis (ato dos homens). Ao primeiro estaria ligada a ideia de autonomia, de liberdade.Nosegundotipo,haveriaheteronomia,isto,a determinao da ao ocorreria a partir de algo externo ao sujeito. No primeiro caso, teramos aquilo que mais interessa tica, a saber, um padrodeaoquemotivadoporaquiloquedistingueoshomens dasdemaisformasdevida.Aquientendemosoquerercomoum movimento orientado pela razo. Nesse sentido, exemplificando, uma criana, que ainda no chegou idade da razo no capaz de algo como o actus humanus. Tampouco o seriam os que sofrem de algum distrbio mental severo. Eles seriam inimputveis, exatamente como o soasdemaisformasdevidaeoseventosnaturais.Emresumo, eles so incapazes (ainda que temporariamente) de agir a partir de razes. E agir de acordo com razes precisamente o que interessa tica na caracterizao do que deva ser feito. E com isso chegamos a um ponto central de nossa exposio, qual seja,oagirestligadorealizaodaquiloquenos peculiar.Dado que todas as coisas tendem sua prpria perfeio, cabe identificar e atualizar nossa perfeio (natureza).16 Comoveremos,ofilsofoqueprimeiroestabeleceudeforma sistemtica as questes fundamentais da tica foi Aristteles. Segundo ele,comovimos,quandoagimos,ofazemosdetalformaque intentamosobterumfim(aindaquenoestejamosdissocientes).E essas aes atualizam quem somos. Assim, se agimos conformemente nossanaturezaracional,atualizamosessamesmanatureza.Do contrrio,delanosafastamos.Comefeito,aoagirmos,formamosa nsmesmos,instanciamosnossanatureza,oquenosconduzao objetivodatica,asaber,afelicidade(eudaimonia,segundo Aristteles, e beatitude conforme Toms de Aquino11). No obstante, paracompreendermosafelicidadecabecompreendermosemqueela consiste.Assim,elaestligadaaumaatividaderacional.Logo, pertinentenoconfundirmoseudaimoniacomhedonismo(oqual tem como foco o prazer, sua busca e realizao). O hedonismo seria, peloqueaquiestamosestabelecendo,umaversodistorcida (irrazovel)daeudaimonia.Issoporqueohedonismoestsempre voltado para a realizao privada, seja dos sentidos, seja uma satisfao espiritual (no racional). Portanto,vemosqueaeudaimonianoestrelacionadacomo agir pelo prazer, mas a partir daquilo que torna razovel o prazer, que lhe d inteligibilidade. Eisquevemos,ento,emquesentidoarazoprtica.A inteligncia terica (razo terica, isto , voltada para o conhecimento) nos permite conhecer mais adequadamente a natureza (physis) nossa volta.Aintelignciaprtica(razovoltadaparaaao),porsuavez, nospermiteagirinteligentemente(razoavelmente).Essesentido fundamentaldaticafoipropostoporAristteles,oqualapontou paraofatodequeelaestrelacionadacomaquestodecomo conduzirasaesdeformarazovel.Assim,aticanouma

11AristteleseTomsdeAquinosoexemplosclssicosdemodelosticos eudaimonistas.Aprimeiraforteresistnciaaoeudaimonismo,comoveremos,ser assentadaporKantemdefesadeumadeontologia.Masissonosignificarquea felicidade no importe no sistema kantiano. Ela importa, sim, e um dos elementos constitutivosdosummumbonum,dosoberanobem(unioentremritomorale felicidade). 17 disciplina contemplativa, mas ela est diretamente relacionada com o agir,comaao.Issonosignificaqueelanotenhaumaspecto contemplativo,dadoestarfundadanarazo.Mastalaspecto contemplativo no o objeto da tica: seu objeto a ao (ainda que elapossuaelementoscontemplativos,elatemcomoobjetoaao). Alis, cabetambmnotar eenfatizarqueno estamossugerindoque existam duas razes, uma terica e outra prtica. A diferena entre elas uma diferena operacional apenas. Nem Aristteles, nem Toms de AquinonemKant,quedistinguiramnotavelmenteessesusosda razo,consideraramque houvesseduasrazes.Como vimos,quando voltadaparaacompreensodanatureza,elaestoperando teoricamente.Quandovoltadaparaaao,emcontrapartida,ela prtica e garante a inteligibilidade mesma do agir. E essa razoabilidade doagirexatamenteoquelheconferelegitimidade.Emsuma,a legitimidadeestarialigadarazoabilidade(inteligibilidade)doagir. Isso asseguraria objetividade s proposies prescritivas da tica. Em ltima instncia, alcanaramos a felicidade. Assim, observa-se que a tica (de uma forma ou de outra) uma doutrina que busca nos conduzir felicidade. Mas felicidade, aqui, no a soma de satisfaes particulares.Issoseriairrazovel.Nessesentido,arazo(ou razoabilidade)prticabuscapeloconhecimento(prtico)acercado quedevemosfazer,poisarespostaaessaquesto,tambm,uma resposta questo sobre o que nos faz realmente felizes. 1.2. Questes fundamentais da tica Algumas das mais importantes questes que nos coloca a ticaj foram objeto de reflexo em suas origens, ainda na antiguidade.Mas umdeseuselementosfundamentaisafelicidade(eudaimonia, beatitude,florescimentohumano,etc.Elafoidefinidacomvrios nomes ao longo da histria da filosofia). De uma forma ou de outra, afelicidadesempretemumpapelessencialemmodelosticos.Ela est presente tanto em um modelo eudaimonista, como o aristotlico, 18 quantoemummodelorigorosamentedeontolgico,comoo kantiano.Seulocusnessessistemasvaria,maselasempreestl.E ligada a ela est a questo acerca da natureza humana. Afinal, quando falamos em bem viver estamos nos referindo ao bem viver de um sujeito em especfico. Assim, que sujeito esse? Como foi exposto no captulo anterior, a tica uma disciplina ligada a um uso prtico da razo,isto,voltadoparaaao.Masnosetrataapenasdaao. Aquiaaoestligadafelicidade(aindaqueelanosejaofimda ao, como em Kant, ela elemento constitutivo desse agir). Tambmtemos,emsuasorigens,outrostemascarostica, dentreosquaiscaberiacitarasquestesdaliberdade, davontade,da responsabilidade, da autonomia, etc. Todosessessoassuntosperenesdatica.Mesmoquando abordamos temas atuais, como engenharia gentica, por exemplo, esses conceitosvoltamasercolocadosempauta.Elesso,emverdade,os conceitosdefundodosdebatesticos,mesmodosrecentes.Noutros termos,osproblemasmudam,masosconceitosquenospermitem buscarpelasuaresoluo,pelomenossuamaioria,jforam assentadosnosautoresclssicos. Por essa razo, elessoretomados quandodebatemosquestesatuais.Noimportaaquesto,sempre poderemosbuscarnosclssicosporelementostericosparatentar encontrar uma resposta para ela. Com efeito, uma das primeiras questes fundamentais da tica a questoacercadaobjetividadedesuasprescries.Afinal,estamos falandoemusoprticodarazo,emconhecimentoprtico.Ora, issodemanda(talcomoocorrenousotericodarazo) estabelecermoscritriosparaaobjetividadedasproposies (prescritivas)prticas.Emoutrostermos,temosaquioproblemado ceticismoemfilosofiamoral.Ou,ainda,oproblemadesetal objetividadepossvel.Esseumproblemadefundonodebateem tica, pois ele nos leva a perseguir outras questes, tais como a questo dajustia,aquestoacercadocertoedoerrado,etc.Eoceticismo acompanhaahistriadatica.ScratesePlatooenfrentaramna figuradossofistas.Oceticismocolocaemdiscusso,emltima 19 instncia,aquestodajustificaomoral.Comefeito,esse, portanto,umproblemaqueacompanhaafilosofiadesdea antiguidade,estandopresenteemautorescomoPlato,Aristteles, TomsdeAquino,Hume,Kant,etal.NoprimeirolivrodesuaA Repblica,Platoestabelece,contraosofistaTrasmaco,ospontos fundamentais da tica, afirmando que a justia virtude da alma e a injustia,vcio.Edissoeleconcluiqueaalmajustaeohomem justo vivero bem, e que o que vive bem ser venturoso e feliz.12 A questo , ento, identificar tal bem. Est ele preso aos sentidos ou resulta de uma atividade racional? Em verdade, Plato est justamente questionando sobre qual seria a forma de viver de forma moralmente correta,poisessaaformadebemviverqueseidentificacoma felicidade.Eeleofazapartirdeumapretensodefundamentao objetivadoquesejaobem.Daseuconflitocomosofista Trasmaco, o qual, tal como o ctico e o niilista, defende uma postura relativista de justia (e dos demais valores ticos). Em verdade, Plato se apercebera, antes mesmo de Aristteles, que quando agimos visamos a algum bem, sendo que se faz necessrio, nesse ponto, identificar tal bem. E primeiramente importante estabelecer com o que ele no se identifica:elenoseidentificacomomeroprazer.Aquihedonia (prazer)nosignificaomesmoqueeudaimonia(felicidade).Tanto PlatoquantoAristtelesconcordariam,nesseponto,comafrase atribuda a Herclito: se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo, diramosfelizesosbois,quandoencontramervilhaparacomer13O bem, ento,noestariafundadonosprazeresdo corpo.EmPlatoe em Aristteles, os quais, cabe ressaltar, assentaram os alicerces da tica, percebemosabuscapelarazoabilidadedasaesmorais(sua inteligibilidade). E desde sua poca, temos o problema do ceticismo, o problemadajustificao.Aolongodenossaexposiosobreessese outrosautores,veremoscomoelesreagiramaoceticismo(ecomo alguns cticos lhes impuseram suas dvidas sobre a confiabilidade na capacidadedearazoresponderquelaquestojposta:oque devemos fazer?).

12 Plato. A Repblica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.43, 353e. 13 Herclito. In: Coleo Os Pensadores: Pr-Socrticos. Rio de Janeiro: Editora Nova Cultural, 1996, p.87.20 Atualmente,comefeito,odebateemtornodasquestescentrais daquiloquepassouaserchamado(recentemente)deepistemologia moralseintensificou,especialmenteemvirtudedosavanosde outrasreas,comopsicologiacognitiva,psicologiaevolutiva, antropologiaevolutiva,etc.Datermos,atualmente,inclusiveuma epistemologiamoralnaturalizada.Nessesentido,ganhouforaa retomadadoceticismomoral,oqualsemanifesta,porexemplo,no contextualismoenoniilismomoral(e,consequentemente,no relativismomoraldeumamaneirageral).Masopontoqueessas outrascinciasnostrouxeramnovasinformaesquepodem contribuirparaumacompreensodequestesimportantes,desde sobrecomosurgemosconceitosmorais,atsobrecomopodemos justificar juzos morais construdos sobre esses mesmos conceitos. Em suma,sonossosconceitosmoraiscrenasjustificveisouamera expresso de preferncias? Ou, ainda, seriam nossas categorias morais uma projeo de nossos sentimentos? Aquitemosaquestobasilardajustificaodenossascrenas morais. Essa sempre foi mais do que uma simples questo: ela sempre foi,eseguesendo,tambmumdesafioparatica.Umaalternativa contempornea,porexemplo,ocoerentismo,oqualpodeser defendido tendo-se como base a teoria de John Rawls, especialmente a categoriadeequilbrioreflexivo.Emlinhasgerais,ocoerentismo mantmqueacoernciaentreumacrenamoralenossasoutras crenasajustifica.Osdefensoresdocoerentismoafirmam,pois,que ascrenasmoraisestojustificadasquandosopartedeumcorpo coerentedecrenas.Omtodojustificacionalaquioequilbrio reflexivo,medianteoqualresolveramosospossveisconflitosde nossos juzos morais intuitivos com os juzos morais objetivos. Outra alternativa o intuicionismo moral. De acordo com o intuicionismo, ascrenasmoraissojustificadasdeformanoinferencial.Noutros termos,tratar-se-iadeumconhecimentomoralnoinferencial, imediato.Assim,apreendemosimediatamenteamoralidadeou imoralidade de uma ao. A evidncia de uma proposio moral pode serjustificadaapartirdenossacompreensomesmasobreela(sem queprecisemosrecorreraqualquerelementoquelhesejaestranho). 21 Uma possvel aproximao com uma forma de intuicionismo pode ser adoracionalismomoral, consoanteo qualseriapossvelpossuirmos conhecimentomoralmesmosemrecorrermosexperincia.Nesse sentido,haveriaaquiumasimilaridadecomamatemtica,mais especificamentecomoprocedimentoaxiomtico.Mas,emtodasas perspectivas mencionadas, temos uma ideia geral comum, qual seja, a de que a epistemologia moral (a qual est voltada para a compreenso doconhecimentomoral,sobreseelepossvelesobrecomoele ocorre) uma teoriadoconhecimento(prtico,voltadopara oagir). Todassocognitivistas.Nessesentido,elasestopreocupadascoma anlisedascondiesunicamentemedianteasquaisalgopodeser consideradoconhecimento.Dessamaneira,taiscorrentespretendem estabelecersenossoconhecimentomoralrespeitadososcritrios epistemolgicos assumidos verdadeiro. Isso porque, embora no haja consensoabsolutoentreosepistemlogos(sejaemepistemologia terica,sejaemepistemologiamoral),elesestoemacordoquanto necessidade de que sejam estabelecidos critrios epistmicos especficos na determinao do que seja conhecimento (seja terico, seja prtico). Masasbrevesdescriesacimaabarcamespecialmentemodelos cognitivistas.H,tambm,modelosno-cognitivistas,cticose niilistas.Dadaaincerteza(einsolveldesacordo)moralquantoa diversosdilemasmorais,hautoresquesustentamserimpossvel afirmarobjetivamenteamoralidadeouimoralidadedeumaao(o queosconduzaumrelativismo).Nessesentido,modelosno-cognitivistasafirmamserimpossvelquejuzosmoraisatendama critrios epistemolgicos objetivos (no sentido de como os atendem as disciplinastericas).Assim,segundotaiscorrentes,nossosjuzos moraissobaseadosemsentimentos,emoes,elementosexternos contingentes,etc.Noteramos,aqui,absolutosmorais.Emoutros termos,oscritriosepistemolgicosdascorrentescognitivistasno teriamostatusdoscritriosepistemolgicostericos.Portanto,no teramosqualquerobjetividadenoplanomoral.Historicamente,as razes do ceticismo esto especialmente nos sofistas e, posteriormente, emDavidHume.Ouseja,oceticismoacompanhaafilosofiadesde suas origens. 22 Masoutrasquestesfundamentaisacompanhamodebateem tica. Como vimos, um dos pontos centrais da tica a felicidade. E, comotambmvimos,quandofalamosemfelicidadenoaestamos identificandocomosimplesprazer,oqualperdeaforanormativa em virtude de seu carter subjetivo.A questo , pois, estabelecermos um critrio objetivo de normatividade. Esse critrio, desde os antigos, estevefrequentementeassociadoaumaconcepodenatureza humana e de bem viver. Dessamaneira,asquestesticasmuitoprovavelmenteso oriundas de uma mesma motivao cognitiva que nos impele a buscar porumacompreensodanaturezanossavolta.Assim,aideia (popularizadaemfilosofiadesdeoprimeiropargrafodolivroIda Metafsica,deAristteles14)segundoaqualsomosnaturalmente inclinadosaosabervalenoapenasparaosaberterico,mas tambmparaoprtico.Issoapontaparaoconhecimentocomoum elemento constitutivo daquilo que era originariamente compreendido comoeudaimonia.Ouseja,alcanarafelicidadepassapelofomento doconhecimento,tericoeprtico.Issoporqueseobservaqueo conhecimento (sua busca e fomento) um dos elementos que nos so inerentes,eque,poressamesmarazo,constituipartedenossa natureza(tendemos,pornatureza,aosaber).Issoindicaum elemento valioso em nossa investigao, a saber, que o conhecimento (nossatendncianaturalaele,cujosinalnossoamorpelas sensaes)umdoselementosqueconstituinossanatureza,nos aponta para ela. Depreende-se disso, ento, a pergunta j mencionada aqui: o que devofazer?Sobessaquesto,outrasaindapodemsercolocadas.O queeudeveriaterfeitonasituaoX?Humlimiteparaminhas aes?Sehlimitesparaminhasaes,quaisseriameles?No situaoX,noteriasidomoralmentemelhoradotaraaoY?E vriasoutrasquestespoderiamsercolocadas,todassubsumidas quela questo fundamental sobre o que devemos fazer. Colocado de

14Todososhomens,pornatureza,tendemaosaber(Aristteles.Metafsica.So Paulo: Edies Loyola, 2002, p.3, 980a/25). 23 outra forma, sempre que agimos, sempre que tomamos certas decises, estamos procurando por uma justificativa para tal ao ou deciso. E, quandocolocamosaquestodajustificao,estamosjulgandosetal aooudecisofoimoralmentemelhor(opontoidentificaro critriodemoralidade).Noobstante,quandoprocuramospela justificaodaao,estamosprocurandoporalgoquenoresidena aomesma.Asquestesquefrequentementeestoemjogonessa investigao so sobre se o fim da ao legtimo, sobre se os meios para se alcanar certo fim so legtimos, sobre se as consequncias so moralmenteaceitveis,eassimpordiante.Desnecessriomencionar queissoassumecomodadoquesomossociveis,isto,que naturalmenteconvivemossocialmenteeprecisamos,ento,deregras parabemconviver.Noapenasisso,dir-se-iaquesomosnormativos: buscamos por uma justificativa para nossas aes e deliberaes. Essa normatividade aponta para a existncia, em ns, de um juzo moral, o qualnospossibilita,emgeral,avaliar,ajuizarmoralmenteaese decises,mesmoquesejamnossasprpriasaesedecises(oque explicaria nosso sentimento de culpa, daquilo que Ernst Tugendhat chama de indignao internalizada15). De qualquer forma, a tica est dirigida especialmente a princpios atinentesaobemeaomal(aquientendidosemumsentidoamplo, sem,necessariamente,conotaesmetafsicas).Soessesmesmos princpiosquenospermitiroajuizarmoralmentepessoaseaes. Eventualmente,eles(taisprincpios)adquiremumsentido universalista,umavalidadeuniversal,comoocorre,porexemplo,na ticacrist,nafilosofiaprticakantiana,etc.Algumasculturas democrticas,porexemplo,prezamvalorestaisquaisaliberdade,a igualdade,osquaissoconsideradosuniversais(bemcomoosassim chamadosdireitoshumanos).Almdisso,muitosprincpios subsumveisquelesdoisprincpios,econsolidadosnoscostumes, serviramdeparmetroparaainstituiodecdigoslegais,sejam princpios, sejam regras/leis.

15 Tugendhat, Ernst. Como devemos entender a moral? Philsophos 6 (1/2): 59-84, 2001, p.60. 24 Mas voltando questo que foi colocada no incio desse captulo, a questo de fundo, estabelecida desde a origem clssica da tica (nos antigos),temsidoseupapelnarealizaodafelicidade.Eaquicabe distinguir,ento,entreoquesejafelicidadeeoquesejamerogosto (satisfao) pessoal. Isso porque devemos ter em mente sempre regras comuns, as quais permitem justificao objetiva. Nosautoresditosclssicos,Scrates,PlatoeAristteles,j encontramos um elemento essencial questo da tica e da felicidade, asaber,quehumaconexoentreavirtude(aret)dealgoesua funoprpria.Assim,talcomoavirtudedoolhobemver,a virtudedaalmadependeriadesuaatividadeessencial(atividade racional).Eagindoconformeavirtudesechegafelicidade.Nos autoresrecm-referidosteramos,poder-se-iadizer,umaespciede intelectualismotico.Aquestocentraldatica,sobrecomoser feliz,passariaporumconhecimento(efomento)denossaatividade racional. Essa ideia, acerca da ligao entre ethos e logos (razo), ns a encontramos de forma incipiente em Herclito. Mas ser apenas com Scrates,PlatoeAristtelesqueelaganharumabaseterica consistente. 1.3. Dever, Bem, Felicidade, Perfeio e Utilidade: Deontologia e Consequencialismo Dentrodosmodelosdejustificaoemtica,podemosdestacar algunsdaquelesque,dir-se-ia,soosconceitosmaiscomunsquando falamosemobjetodatica:dever,bem,felicidade,perfeioe utilidade.Taissero,desdeaantiguidade,conceitosguiasna elaboraodosprincipaissistemasticosdafilosofia.Essessistemas podem ser divididos, e essa uma diviso bem geral, entre os que so consequencialistas (nos quais a primazia reside no fim a ser alcanado) eosquesodeontolgicos(nosquaisprimaziaresidenodever). Algunsmodelossomaisconhecidosdentrodessadiviso,comoa 25 deontologiakantianaeoconsequencialismodemodelos perfeccionistas e utilitaristas. Antesdeabordarmososautores,podemossucintamentenotar, ento,sobrequalconceitoelescolocamaprimaziaaoestabelecera legitimidade das aes. Comoveremosaologodopresentelivro,odesenvolvimentoda ticaantiga,medievalemodernaassentouosalicercesdatica contempornea. Como mencionado acima, mesmo quando debatemos questesnotoriamenterecentes,osprincipaisconceitosutilizadosno debatejforamengendradosnosclssicos(Aristteles,Tomsde Aquino,Kant,paranomearalguns).Emboraaticacontempornea tenhaseafastadodasperspectivascosmolgicas,teolgicase metafsicasdosclssicos,certasideiasfundamentaisacompanhama ticadesdesuaorigem,taiscomoaideiadeumpadroobjetivode moralidade,orespeitodignidadedapessoahumana,de imparcialidade,deigualdade,dejustia,etc.Noapenasisso,ainda est presente a ideia consoante a qual a tica tem um papel importante narealizaodenossafelicidade,assimcomoqueelanopodeser uma questo de mero gosto pessoal, isto , que devemos ter em mente regras comuns, justificveis publicamente. Com efeito, o que temos, especialmente at meados do sculo XX so,sobretudo,ticasdecunhonormativo.Emlinhasgerais,atica normativasereferedeterminaodoquesejaumestadodecoisas bom ou mau. No apenas isso, ela determina que aes, de um ponto devistamoral,soboasoums,quedevemserrealizadasouno.Nesse sentido, ela difereda metatica, dado essa tratar do significado dosconceitosutilizadosnodiscursomoral.Noapenasisso,a metaticasepreocupacomoestatutoepistemolgicodosjuzos morais.Nessesentido,ametaticatendeaseabsterdeadotaruma perspectivaticaemparticular.Suapreocupaoconcerne especialmente linguagem da moral16. Nesse sentido, embora ela seja

16 Embora a preocupao central da metatica j esteja presente nos antigos, como em Plato, por exemplo, ela surge como disciplina no contexto da tradio analtica, logo 26 uma disciplina recente (meados do sculo XX), autores como Plato j se ocuparam da questo central da metatica. Dequalquermaneira,atosculoXX,asteoriasmorais,como colocadonoprimeiropargrafodopresentecaptulo,podiamser colocadassobdoisgrupos:consequencialismoedeontologia.Essas seriam,porassimdizer,asduasperspectivasdominantes.O consequencialismo,instanciadodediversasformasemteoriasticas, exige que atuemos na promoo do melhor estado de coisas possvel. Equandofalamosemmelhorestadodecoisaspossvel,noestamos falandoemummelhorestadodecoisasdeumpontodevista subjetivo. Podemos falar (como o fez o utilitarismo) no melhor estado decoisasparaomaiornmeropossveldesujeitos(oqueenvolve, pois,imparcialidadeeimpessoalidade).Adeontologia,emlinhas gerais,noconsequencialista.H,aqui,umaprimaziadojusto,do correto em relao ao bem (fim). Assim, a deontologia prescreve o que deveserfeito.Elademandaquerespeitemospessoalmentecertas regras,taisquaisaregradenomentir,aregraqueexigeque cumpramos promessas, etc. Como foi acima colocado, o mais notrio modelodedeontologiansoencontramosnopensamentode Immanuel Kant, o qual nos apresenta uma deontologia com foco no dever17.Oconsequencialismotomavriasformas,desdeo eudaimonismodosantigos,passandoporticasperfeccionistasato utilitarismo. Nesse sentido, percebe-se que o consequencialismo mais abrangente do que as teorias que ele abarca. Mas o utilitarismo um bom exemplo de consequencialismo. E mesmo ele pode ser dividido. Podemos falar, por exemplo, em um utilitarismo de atos, no qual, a partirdeumclculorefletido,chega-seconclusodequalsero melhorresultadogeral(aquiosujeitodeveanalisarasituao particularemqueeleseencontraedescobrir,deacordocomo no incio do sculo XX, momento em que a filosofia preocupava-se sobremaneira com ousodalinguagem,especialmenteapartirdasconsideraesdeFrege.Assim,a metaticaenquantodisciplinatemumaespciedeprogramametodolgico,sem maiores preocupaes com o contedo da moralidade. 17Issoporquesepoderiafalaremumadeontologiacomfoconosdireitos,como ocorre em alguns modelos liberais. 27 contexto,qualaopromoveromaiorbemparaomaiornmero), bemcomodeumutilitarismoderegras,conformeoqual,semum clculorefletido,consideramosquechegaremosaomelhorresultado geral simplesmente se seguirmos as regras (aqui deve-se agir de acordo comregrasquevisamapromoodomaiorbemparaomaior nmero). Mas ainda sobre a tica normativa, uma corrente deveras influente aquela cujas razes esto em Aristteles, a saber, a tica das virtudes, aqualtambmrepresentadaporTomsdeAquino.Abasede qualquer teoria das virtudes a questo: como viver minha vida? A essaperguntaresponderoostericosquedesposamtalteoria: cultivando as virtudes. Colocado de outra maneira, s florescemos como seres humanos vivendo de acordo com a virtude. Com efeito, a ticadasvirtudes,jemsuasorigensemAristteles,defendeque devemos primeiramente identificar o sumo bem para, ento, definir o meio correto para alcan-lo. Assim, a tica das virtudes est alicerada sobreoperfeccionismoaristotlico,oqualapontaparaaquelesque seriam os tipos admirveis de carter. Assim, temos aqui que possvel identificarobemsupremo,oqualossereshumanos(dadoserem racionais) almejam e segundo o qual eles devem conformar suas aes. Nocontextocontemporneo,aassimchamadaticadasvirtudes mostra-se como uma alternativa diante da deontologia (tica do dever) e do utilitarismo. Dequalquerforma,dadososobjetosmencionados,aticair estabeleceroquesejaaaocorreta,tentando,porexemplo, demonstrarqueumaaomoralmentecorretapormaximizara felicidade para o maior nmero, por ter sido adotada por um sujeito virtuoso, por estar de acordo com a lei. Com efeito, como vimos, tanto a tica consequencialista quanto a deontolgicasonormativas(pretendemdeterminaroquedevemos fazer).Aconsequencialista,teleolgica,intentadeterminaroque corretodeacordocomcertofim(telos).Asticasconsequencialistas tm seu foco na consequncia da ao. A tica das virtudes atenta para ocartervirtuosodoagente.Aticadeontolgica,porseuturno, 28 procuraprimeiramentedeterminaroquecorreto.Eissosemlevar emcontaumapossvelfinalidade,umprovvelfimaseratingido mediante a ao. A tica do dever kantiana o melhor exemplo, pois estabeleceprimeiramentealeiquefundamentaaao.Elano consequencialista,oquesignificadizerqueelanolevaem considerao as anlises das possveis consequncias da ao. Ou seja, as(possveis)consequnciasdeumaaonodeveminfluirsobrea determinaodoquemoralmentecerto.Almdadeontologia kantiana(ticadodever),houtrosmodelosdeontolgicos,comoo intuicionismo moral, a tica do discurso e o contratualismo moral, os quaissedesenvolvem,inspiradosnafilosofiakantiana,especialmente a partir do sculo XX. 2. ANTIGUIDADE E IDADE MDIA 2.1. Scrates e Plato: Virtude, Justia e Felicidade EmScrates(469-399a.C.)eemPlato(427-347a.C.)j encontramos a ligao, colocada de forma sistemtica, entre a virtude (arete)dealgoesuafuno(atividadepeculiar,funoprpria). Nelesjencontraremosaquiloquepoderemosdenominarde intelectualismotico,isto,aideiasegundoaqualhuma identidadeentrevirtude(arete)esabedoria/conhecimento(episteme). Emverdade,araizdatica,talcomoacompreendemoshoje,est nessesautores.Elesnosapresentarampelaprimeiravez,deforma sistemtica, os principais temas e conceitos da tica. No apenas isso, ScratesePlatoforamosprimeirosfilsofospreocupadosemno apenasdescreveranatureza(conhecimentoterico),mastambme, talvez,sobretudo,encontrarumconhecimentoespecficodohomem (conhecimento prtico), um conhecimento que lhe fosse prprio. Isso seriaassumir,concretamente,amximaconhece-teatimesmo, dando a ela uma fundamentao filosfica. No apenas isso, Scrates e Plato foram os primeiros filsofos a colocar o tema do valor, pois a questodefundo,emfilosofiaprtica,segundoeles,seria:quevida vale a pena vivermos? E essa ser uma questo fundamental da tica a partir da. De alguma maneira, essa uma questobsica que a tica, especialmenteapartirdeles,tentaresponder.Almdisso,como observadoacima,temos,nessesautores,umaespciede intelectualismotico,dadoque,utilizando-sedomtodo maiutico18Scrates,nosdilogosplatnicos,intentavarealizaro

18 A me de Scrates era parteira, o que inspirou Scrates no parto de ideias. Dada a pressuposioacercadapr-existnciadaalma,oconhecimentoseria,segundo Scrates(ePlato,seudiscpulo),reminiscncia,recordao.Oeducador,formador, conduziria o aprendiz, mediante perguntas e respostas (como podemos observar nos 30 partodeideias,asquaispr-existiriamnaalmahumana, especialmente a ideia de Bem. Nesse sentido que Scrates manter queoerroresultadodaignorncia.Eavirtude,porseuturno, conhecimento (em ltima instncia, do Bem). Dito de outra forma, quemerraofazporignorncia.Enessepontoquepodemos perceberemquesentidoScratesoiniciadordafilosofiamoral. ele o primeiro a colocar o primado da filosofia no ethos. E o mtodo maiutico, apesar de teoricamente til, como pode ser depreendido de sua funo no dilogo Mnon, de Plato, em que Scrates conduz, medianteousodeseumtodomaiutico,umescravo(quejamais haviaaprendidogeometria)deduodoteoremadePitgoras, adquire,aqui,relevnciaprtica.Noreferidodilogo,lemos:No possvel o homem procurar o que j sabe, nem o que no sabe, porque no necessita procurar aquilo que sabe, e, quanto ao que no sabe, no podiaprocur-lo,vistonosabersequeroquehaviadeprocurar19. Nesse mesmo nterim, lemos que recuperar a cincia rememorar. Com efeito, para nossos propsitos, interessa observar que a lei moral jaznointeriordetodos,permitindo(medianteesclarecimento)que faamosjuzosmoraisacercadoquejustoouinjusto.Novamente, cabeinsistirqueavirtudeconhecimento,aopassoqueovcio ignorncia. Vimos,ento,queteremos,emScratesePlato,uma aproximaoentreticaejustia.Aquiaideiadejustia indissociveldaticamesma.Ela(ajustia)estarligadaideia supramencionada de atividade prpria, da realizaocada vez mais sofisticada da funo de cada parte que constitui um todo, seja de um homem, seja da polis. Almdisso,ScratesePlatoseroosprimeirosaenfrentar sistematicamenteoctico(aquelequeduvidadavalidadede proposiesmoraisvlidasobjetivamente),isto,asobjees possibilidade de um conhecimento prtico. Aqui, com efeito, o ctico dilogos platnicos), a concluses a respeito de diversas questes fundamentais. Isso, claro, pressupe toda a metafsica socrtico-platnica. 19 Plato. Mnon. Rio de Janeiro: EDIPUCRJ, 2001, p.65, 85d. 31 aparecenafiguradossofistas.Segundoeles,ajustiaseriaasimples concordncia com o direito vigente (posto pelo mais forte).Isso ser, comoveremos,fortementecombatidoporScratesePlato,por exemplo,nodilogoGrgias20(contraosofistaClicles,oqual defende o direito do mais forte como critrio do que seja justo21) e em um de seus mais importantes dilogos, A Repblica22. Noentanto,cabepreliminarmentecolocarqueomovimento sofsticoteveum papelimportante nosurgimentodatica enquanto conhecimento (prtico). Em verdade, o sculo V a.C. foi o momento em que certas condies se estabeleceram, permitindo que as reflexes se voltassem para as coisas tipicamente humanas, como os problemas moraisepolticos.Nessenterim,surgemossofistas,cujogrande mritofoicolocarohomemnocentrodadiscusso,levandoem contaseusaspectospsicolgicos,morais,sociais,etc.Exemplodisso ns podemos observar na famosa frase de Protgoras: O homem a medidadetodasascoisas23.Apesardetodasascrticas posteriormente feitas aos sofistas, seu mrito inegvel. Eles voltaram aatenoparaohomem,fosseeleconsideradoindividualmente,ou considerado socialmente (no contexto social, comunitrio). E esse foi ummomentoimportanteparaoinciodaticaenquantodisciplina filosfica. De qualquer forma, em Scrates e Plato a ideia de virtude estar ligadasideiasdefelicidadeejustia.Daserimportante compreendermos como esses conceitos se ligam em tais autores.

20 Plato. Grgias. So Paulo: Editora Perspectiva, 2011. 21Essadefesadodireitodomaisfortetemcomopanodefundoadistinoentre physis(natureza)enomos(leiconvencionadapelohomem,isto,oethos).Paraos sofistasdeveriavigeraleidanatureza(physis),aqualassegurariaodireitodomais forte.Alei(sejamoral,sejajurdica)convencionadapelohomem(nomos)seria artificialeviolariaumaleibsicadanatureza,asaber,queomaisfortedeve prevalecer. 22 Plato. A Repblica. So Paulo: Martins Fontes, 2006. 23 Protgoras. In: Laertios, Diogenes. Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres. Braslia: Editora UnB, 2008, p.264. 32 Com feito, tais ideias, Plato as aproxima magistralmente em sua obraARepblica(Politeia),naqualteremos,ainda,quevirtude individualevirtudecoletivasoinseparveis,isto,ningumpode alcanarsuaexcelnciaforadapolis,oquedemandatambmquea polis seja virtuosa. Assim, focaremos especialmente em A Repblica, dadoserelaumaespciedecentrogravitacionaldosistema platnico,aoredordoqualasdemaisobras,dealgumaforma, orbitam. Assim,oproblemainicial daobra a questo:que ajustia? EssaquestoaparecenosprimeirosdilogosdoLivroIdaobra. Ligadaaelaestaquestodafunoprpria,umavezquea questo da justia , aqui, exposta tendo-se como referncia a arte e a ideiasegundoaqualojustonaarteproduziralgoqueestejaem acordocomumbemquesejaprprioatalarte.Issotambmfica claro no momento em que Plato passa a associar a questo da justia suateoriaacercadaspartesdaalma.Emverdade,elefundamenta sua teoria do estado em uma perspectiva antropolgica, pois a ideia de estado,emPlato,umavisoampliadadesuavisodehomem. Assim, as funes do estado sero caracterizadas e divididas de acordo com a diviso das partes da alma dos homens. Assim, uma polis justa ser aquela em que vige uma espcie de igualdade geomtrica entre as partesqueaconstituemesuasfunes.Nelaimperaumahierarquia absoluta,expressanadivisodasclasses,cadaumarealizandocom mximamaestriasuafunoespecfica.Comefeito,essamesma hierarquiadeveestarpresentenaalmaindividual.Issooque caracterizarajustianosdilogossocrtico-platnicos.Almdisso, Platotambmoresponsvelpelasistematizaotantodeuma psicologia moral quanto de uma antropologia moral voltada para um propsitodeformaodocartermoralcomvistasfelicidade.Isso ficaclaroespecialmentenodilogoentreScrateseosofista Trasmaco,aofinaldoLivroIdeARepblica,noqualpodemos ler: Ento chegamos a um acordo de que a justia a virtude da alma eainjustia,umvcio?Chegamos,defato.Ah!Aalmajustaeo homemjustoviverobem eoinjusto,mal? o que parece,segundo tua argumentao. Mas o que vive bem ser venturoso e feliz, e no o 33 ser quem no vive bem? E poderia no ser assim?24 Conclui-se, pois, queohomemjustoserfelizeoinjustoinfeliz.Nessepequenoe breveexcertododilogo,temosexatamenteaqueleelementosobreo qualfalvamosnoscaptulosanteriores,asaber,umaaproximao entreasideiasdenaturezahumana,funoprpria,ticae felicidade. Comefeito,decertaformaantecipandoAristteles,Platoir manterquedevemos,ento,procurarpelafunoprpriadaalma antesdeestabelecermosoquejusto.EPlatoconstrisuaideiade justia contra uma perspectiva forte poca, representada, no dilogo, por Trasmaco, segundo o qual, E, em cada cidade,o governo estabelece as leis tendo em vista suaprpriavantagem:ogovernodemocrticoestabeleceleis democrticas,otirnicoleistirnicas,oaristocrtico,asleis aristocrticas,eosoutrosdamesmaforma.Estabelecidasas leis,declaramqueovantajosoparaelesojustoparaos subordinadosepunemqueminfringeessanorma,como transgressordaleieculpadodeinjustia.Eis,portanto, excelentssimo,oqueeudigoserjustosempre,emtodasas cidadessemexceo:ovantajosoparaogovernoestabelecido. ele que tem o poder e, para quem raciocina corretamente, em todos os lugares, o justo semprea mesmacoisa,a vantagem do mais forte25. Essa a tese central de Trasmaco, contra a qual Plato argumenta duramente,emumdebatedeideiasquenoserestringir antiguidade (afinal, o relativismo e o ceticismo sempre acompanharo o debate filosfico). Assim, Plato constri sua ideia de ordem a partir de uma concepo de sujeito capaz de agir de acordo com uma ideia deBem.Eexatamentenessepontoqueentraaimportnciada formao26,poisprecisamentemedianteaformaoqueosujeito

24 Plato. A Repblica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.43, 353e. 25 Plato. A Repblica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.20, 338e. 26 O que pode ser depreendido do estudo seminal de Werner Jaeger: Jaeger, Werner. Paideia. A formao do Homem Grego. So Paulo: Martins Fontes, 1995. 34 alcanaacompreensodoBem.Odesenvolvimentodo conhecimento doBem algo que ocorre no homem medida que ele(oBem)vaiseinstanciandonoprpriohomem.ParaPlato, pois, a formao do carter moral vai aperfeioando o homem, de tal formaquesuasaesestejamdeacordocomoBem.Todaa estruturadapoliteia,talcomoPlato,aconstriestvoltadaparao Bem. A verdadeira justia s poder ocorrer se atingirmos esse telos. E aqui entra a ideia j referida anteriormente, segundo a qual a justia est ligada a uma funo que peculiar a algo. Da Plato estabelecer a relao estado/alma. A justia estatal tambm tem como fundamento aideiasegundoaqualcadamembrodeumorganismosocialdeve cumprir,eissocomamximaperfeioquelhepossvel,asua funoprpria.Secadaclassequeconstituioestado(governante, guardieseartesos)cumpreomelhorpossvelsuafunoprpria, tanto mais justo tal estado. Com efeito, a virtude do governante a sabedoria, a do guardio a valentia e a do arteso o sereno domnio desiprprio(umavirtudeque,emboradevaserfomentadapelas outrasclasses,nessadeveserdominante,poisaharmoniaentreas classesbaseia-senasubmissovoluntriadessesdosartesos).Mas percebe-se,ento,queajustiaestaliceradasobreaperfeiocom que cada classe age de acordo com sua virtude, cumprindo o que lhe cabe. Mas esse seria um reflexo da justia, pois, lembremos, Plato est caracterizandoajustianapolisapartirdeaspectosantropolgicos. No esqueamos que, como foi colocado anteriormente, Plato, antes deAristteles,jmantinhaumaticadasvirtudesdecunho eudaimonista, ou seja, tambm para ele a felicidade era o sumo bem, sendoqueavirtude(realizadacomperfeio)nosconduziriaaessa felicidade. Assim, a alma humana seria, segundo Plato, formada pelas mesmasvirtudesqueforamatribudaspolis.Portanto,amesma harmoniaexigidanarelaoentreaspartesnapolisdemandada individualmente(naalma).Avirtude,arete,envolve,aqui,uma harmonia na alma. E isso envolve, necessariamente, conhecimento do Bem.Opanodefundo,aqui,ametafsicaplatnica,segundoa qualhomundovisvel,dasopinies,eomundointeligvel,da verdadeedoconhecimento.Comefeito,somentenomundo inteligvelquesamosdaesferadasmerasopinieseadentramosno 35 plano do conhecimento. Noutros termos, o verdadeiro conhecimento envolveumdesligamentodomundodossentidos.Ou,ainda,o verdadeiro conhecimento (terico e prtico, cabe enfatizar) no reside nossentidos.Seufundamento,emPlato,metafsico,envolvendo suaepistemologiatambmmetafsica(porassumirpressupostos metafsicos, como a diviso em dois mundos27). Com efeito, Plato nos apresenta sua teoria em forma de alegoria. notria sua alegoria da caverna, a qual ele nos apresenta no Livro VIIdeARepblica.Elanosincita,emlinhasgerais,aimaginar sujeitosvivendoemumacavernasubterrnea,agrilhoadosdesdeo nascimento.Nessasituao,slhespermitidoolharparafrente, sendoqueelesestodecostasparaasada.ssuascostash,alis, uma fogueira que ilumina a parede diante deles. Entre eles e a fogueira h uma espcie de biombo, semelhante ao usado em teatros de tteres. Por detrs desse biombo h um operador manobrando seus tteres. E aindapordetrsdessebiombopessoaspassamcarregandofigurasde madeiraepedra.svezeselaspassamemsilncio,svezespassam conversando.Como essesobjetospassamaumaalturasuperiordo muro, eles projetam suas sombras na parede para a qual esto olhando osagrilhoados.Assim,comoessasforamasnicasimagensqueeles viramaolongodetodasassuasvidas,naturalqueelesastomem comoasnicasqueh,comoarealidade.Noobstante,sigamos imaginando.Imaginemosqueumdosagrilhoadosconsigaescapar. Ora,elesairdacavernaeveraluz.Dadoterestadonacaverna durantetodaavida,eleprovavelmentenoconseguir,inicialmente, contemplar as cores brilhantes das coisas cujas sombras ele via quando agrilhoado na caverna. Ele tambm no reconheceria, pelo menos no de imediato, que tudo que ele havia conhecido antes era iluso. Isto ,elenoreconheceriaimediatamentequeestava,apstersadoda caverna,diantedeumarealidadesuperior.Faz-senecessriocerto tempo para que ele veja as coisas fora da caverna, especialmente aquele

27 Apesar de criticada j por seu discpulo mais destacado, Aristteles, bem como por WilliamofOckhamesuanavalha(entianonsuntmultiplicandapraeter necessitatementidadesnodevemsermultiplicadasalmdanecessidade),essa teoria fundamental para compreendermos a filosofia platnica. 36 queseriaavisoderradeira:oBem(naalegoria,representadopelo sol).Aofinal,eleveriaoBemcomorealidadederradeira,comoa fontedeluzqueiluminatodooconhecimento,mesmodassombras queeleviaenquantoestavaagrilhoadonacaverna.Nesseponto,ele estariafelizportersado,mastristepelosamigosqueseguiriam agrilhoadosequeestariamvivendonailuso,longedafelicidade.O que temos, aqui, a base de uma ideia que reaparecer no pensamento filosfico, a saber, a ideia de uma espcie de ascese intelectual. Ou seja, o agir correto e a felicidade estariam ligados a um aperfeioamento de nossacapacidaderacional.H,tambm,umaexortaoanos afastarmosdossentidos,fontedeenganoedefelicidadeapenas aparente,enoverdadeira.Assim,acavernacorresponde,nessa alegoria,aomundosensvel,dossentidos,dosquaisdevemosnos afastar.Oqueacompanhamosnasadadessesujeito,querompeos grilhesesaidacaverna,umaascensorumocontemplaodo mundointeligvel,mundodasideias,dasformas.Oelemento derradeironesseprocessodeascensoaideiadeBem,oquala alma aprende a ver com muito esforo intelectual. E, ao contempl-lo, ela o reconhece como condio de possibilidade de tudo o que h, do beloedojusto,detalformaqueaaoracionalenvolve, necessariamente, o ter contemplado. Ou seja, a ao racional a ao a partir da contemplao da ideia de bem. Comefeito,todaateoriaplatnicatercomotelosaformao tica de todos, uma formao que assegurar uma educao tica para a justia, isto , para a harmonia das partes. E essa harmonia se refere tanto,individualmente,spartesdaalma,quando,coletivamente, diviso das classes napolis (a ideia geral, aqui, que cada parte deve desempenharsuafunoafunoquelhepeculiar,suafuno prpria da melhor maneira possvel). Aqui temos presente a ideia j referida,aqualenvolveaformaoparaodesenvolvimentoda personalidade.Oobjeto,aqui,,emltimainstncia,anatureza humana, sendo que a justia est na essncia da alma humana. Assim, aesinjustassocontrriasnaturezahumana.Quandoagimosde maneira m, estamos agindo contra nossa natureza. Como vimos, em A Repblica, Plato nos apresenta sua teoria acerca da politeia. Mas 37 essa uma teoria fundamentalmente sobre o homem. Com base nesse paralelismo em sua abordagem do homem e da polis, e levando em considerao a distino entre formas de governo, especialmente entre timocracia(naqualvigeoelementoirascvel,reinando,aqui,a ambio e o amor s honras), oligarquia (na qual vige a busca pela riqueza),democracia(naqualvigealiberdade.Masumaliberdade que conduz licensiosidade, causando uma desordem generalizada) e tirania(aqualseriaumaconsequnciadademocracia;Parafreara licensiosidade,atribui-sepoderaumtiranoque,sobopretextode colocarordemnapolis,setornaocentrodasdecisesenoregea polis exclusivamente de acordo com sua prpria vontade e interesses), Platotambmdistingue(estabelecendograusentreeles)ohomem timocrtico(vidoporpodereglria)dohomemoligrquico (preocupadoemacumularriqueza,semqualquerpreocupaocoma polis,oqueoconduz,inevitavelmente,runa),dohomem democrtico(desordenado)edohomemtirano(esseltimoseria precisamente o extremo opostodohomemjusto:eleseriagovernado pelosapetitesepelosdesejos).Ateoriaplatnicadasformasda politeia expressa, pois, sua concepo acerca da natureza humana. Tal como a natureza humana se deixa corromper e necessita de formao e ordem para no se afastar de sua verdadeira essncia, tambm a polis necessitadeordemparanosedeixarcorromperemformasvisde governo,comoascitadasacima.H,assim,umacomplementaridade entrepolisehomem,detalformaqueadegenerescnciamoral humana caminha paralelamente degenerescncia da polis. Tenhamosemmente,ento,ajreferidaAlegoriadaCaverna. A ascese intelectual nos conduz verdade, ideia de Bem. Uma vez que tenhamos contemplado a ideia de Bem, seria impossvel agir de formaerrada.Cabe,pois,sairmosdoplanodadoxa(opinio)e atingirmosoplanodaepisteme(conhecimento),dosensvelparao supra-sensvel. De acordo com a teoria platnica referente aos graus de conhecimento,ohomem comumficaria no planodadoxa,aopasso queosmatemticosatingiriamadianoia(conhecimentomediano)e os filsofos a noesis (inteleco mais elevada). A noesis conduziria ideia de bem. Assim, teramos, aqui, uma dialtica ascendente, a qual 38 nos conduziria a um afastamento dos sentidos, em uma ascenso que nos levaria contemplaodasideias,eumadialticadescendente,a qualnospermitiriavoltarcaverna(mundosensvel)ereconhecer quetudooquehaliaparncia.Oqueestemjogo,aqui,como podemosdepreenderdo quevimosatesse ponto, ohomem esua realizao, seu bem (sua verdadeira felicidade). Quando nos afastamos dos sentidos, reconhecemos que somos essencialmente alma (razo). O corpo seria, pois, o dualismo platnico, a matria habitada pela alma. Noobstante,acimavimosaquelasqueseriamasformas corrompidas de estado. H ainda uma quinta, a melhor. E tambm a elaestligadaumaspectoreferentenaturezahumana.Comodiz Plato: se so cinco as formas de governo, tambm as disposies da almadosindivduosseriamcinco28.Ouseja,h(comoacimaj indicado) uma relao psyche/polis em Plato. Comefeito,aformamaisapropriadaseria,naperspectiva platnica,aaristocracia,naqualgovernariamos(moralmente) melhores.Aquiofundamentoestariasobreavirtudecomovalor supremo, bem como teramos o primado na funo racional da alma. Noapenas,isso,tantonapolisidealquantonohomemideal vigeriamasquatrovirtudescardeais.Sabedoria,isto,acincia voltada para o modo correto agir, seja com relao a si mesmo seja em relaoaosdemais.Fortaleza,isto,acapacidadedemantera constncia, a austeridade e a retido nas mais diversas questes, sem se deixarconduzirpelosprazeres(pelonossoaspectosensvel). Temperana,isto,umaespciedeordemou,ainda,domniosobre os prazeres. E a justia, isto , a ideia segundo a qual cada coisa deve agir de acordo com sua natureza (a justia seria o conjunto das outras trs). Em suma, a justia ocorre quando cada coisa se limita a fazer o quelhepeculiar,aexecutarsuafunoprpria.Noentanto,o mesmoconflitoquehentreasformasdegoverno(esuapossvel degeneraoouregenerao)tambmocorrenointeriordohomem. Osvciosevirtudesestopresentestantonointeriordohomem quantonapolis,sendoajustiaavirtudesoberana,pois

28 Plato. A Repblica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.309, 544e.39 unificadora,asseguradoradaunidade.Avirtude,ento,uma excelncia, uma forma de aperfeioamento (do homem e da polis). Ela envolveordem,disciplina,domnioeequilbrio.Humahierarquia emnossasfaculdadesanmicas,razo(cujavirtudeasabedoria), vontade(cujavirtudeacoragem)edesejo(cujavirtudea temperana).Quandohdesordementreessasfaculdades,hvcioe injustia29.Ecabenotarquenoquadrofisiolgicoelasso representadaspelacabea(razo),pelopeito(vontade)epelobaixo-ventre(desejo).Napolis,elassorepresentadaspelosgovernantes (razo/sabedoria),pelosguardies(vontade/coragem)epelosartesos (desejo/temperana). Nocontextodapsicologiamoralsocrtico-platnica,aformao dosjovensdevecomearpelocontroledosdesejos,paraquedepois desenvolvamacorageme,finalmente,alcancemopleno funcionamento da razo (tornem-se sbios). Assim, agir virtuosamente envolveumafastamentodecoisastipicamente(ordinariamente) humanas,especialmenteaquelasligadasaosprazerescorporais.Trata-se, insistimos, de buscar pelo que torna razoveis tais prazeres. Da a ascese intelectual. Eis a razo de falarmos, aqui, de um conhecimento prtico.Elembremosqueconhecer,comoexpostonajdescrita alegoriadacaverna,alcanarasessncias(oque)eseafastardas aparncias(oqueaparentaser).Issonosleva,comojfoidito,ao pano de fundo do pensamento desses autores, a saber, sua metafsica. Afinal,aoassumirmosquehumarealidadedivinaalmdas aparnciasdomundosensvel,estamostambmassumindouma justia divina, superior quela do mundo humano. E a partir dessa contemplaoda(nica)realidadequedevemosextrairosprincpios ideais,sejaparaoautogoverno,sejaparaogovernodapolis.Existe, ento,umajustiaabsoluta,aqualgaranteaobjetividadedenossos juzos morais. A justia no , como sustentaram os sofistas, relativa, mutvel. Ela tambm uma questo metafsica. Alm dos elementos j

29 Plato tem em mente a cincia mdica de sua poca, a qual mantinha que a doena a desordem no funcionamento das partes do corpo, enquanto asade harmonia entre essas partes. 40 expostos,tenhamosemmentetambmoclebremitodeEr30, descritonolivroX,deARepblica.Dentreosvrioselementos quesurgemapartirdaexposiodessemito,neleapareceaideia basilar segundo a qual a ideia de justia (do moralmente certo) inata. Jconhecemosaverdadeantesdenossonascimento.Mediantea maiutica, a verdade viria, gradativamente, tona. Em suma, temos em Plato uma ideia que reaparecer na filosofia desde ento, a saber, a de que a felicidade (a real felicidade) depende darealizaodaquiloquenospeculiar,daquelaquepoderamos chamar de nossa funo prpria. Disso decorre que a felicidade no afelicidadedeumadaspartes,masdoconjunto.Issopodeser depreendidodapassagememquelemos:aofundarnossacidade, nossametanoera queumanicaclassefossemuitofeliz,masque, namedidadopossvel,todaacidadefossefeliz31.Considerando-se que h uma analogia entre polis e indivduo, isso significa afirmar que tambm no indivduo a felicidade reside em cada parte sua realizar a funo que lhe concerne. Ela reside no conjunto, em sua harmonia, a qual est expressa na ideia segundo a qual cada parte deve fazer o que cabe,suavirtude.Assim, segundoPlato,nossa parteracionaldeve conduzir(e,eventualmente,submeter)nossossentidos,nossaparte, digamos,apetitiva.Trata-se,assim,nodenegarnossosapetites,mas de dar-lhes razoabilidade, de coloc-los sob o domnio da razo. Dessa forma,osujeitoimoral seriaprecisamenteaquele que permitequeas partesinferioresassumamodomnio,oquelevadesordem, injustia.Osujeitoqueagedeformamoralmentecorreta,porseu turno, aquele que permite que sua parte superior domine, isto , sua razo.Esseseriaosujeitovirtuoso.Eleaquelequepossuio conhecimentoprticoverdadeiro,poisiluminadopelaideiade

30Resumidamente,omitoconsistenadescriofeitaporEr,soldadoque supostamente morre em batalha e vai ao mundo do alm. Aps essa experincia, ele retorna ao mundo dos vivos (doze dias aps sua suposta morte) ed uma descrio acurada de sua experincia de quase morte e de tudo o que viu no alm. Ver: Plato. A Repblica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.409, 614b. 31 Plato. A Repblica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.136, 420c. 41 Bem.Essesujeitonoerrariamoralmente,poisoerroseria ignorncia acerca desse Bem. Dessa maneira, retomando o sentido da alegoria da caverna, ter conhecimentoprtico(enoameraopinioprtica)implica sairmosdomundosensvel,nosafastarmosdele,dadoserele mutvel, corruptvel e incerto. Mediante uma ascese intelectual, a qual envolveoestudodecinciastaisquaisaaritmtica,ageometria,a astronomia,acinciadaharmonia,etc.,asquais,porassimdizer, obrigamaalmaausarsuainteligncia,afastando-adossentidos, fontesdeenganoeiluses;chegamos,assim,ideiadeBem (conhecimentomximo,omaiselevadoqueh),aomundosupra-sensvel,oqualincorruptvel,imutvel.Nelecontemplamosas formas verdadeiras, de tal forma que nossas aes passaro a se pautar pelaideiadeBem,assegurandoqueelasestarodeacordocom nossafunoprpriaecomnossotelos,isto,nossaplena realizao como sujeitos racionais. 2.2. Aristteles: Ao e Eudaimonia Comocolocadoanteriormente,aticaenquantodisciplina filosficaganha sistematizao especialmentecom Aristteles.Foiele quemestabeleceuosalicercesdadisciplinaquehojeconhecemos comotica.Eledesenvolvealgoquecomeaasefazernotar especialmentenosculoV.a.C.,nocontextodoquepoder-se-ia chamar de movimento sofstico. Afinal, como vimos, foram eles, os sofistas,osresponsveisporsepriorizarquestesessencialmente humanas, como aquelas referentes poltica, justia, etc. Assim, eles tmomritode teremsidoresponsveis pelaatenoqueafilosofia passaadedicaraoestudodohomemedesuasquestes.Eisso levandoemconsideraonoapenasoaspectoindividual, psicolgico,dohomem,mastambmseuaspectosocial.Dessa maneira, os sofistas no estavam preocupados com questes de ordem terica,metafsica,etc.,mas,sim,comquestesmorais,polticas, 42 legais, etc. O problema, segundo a viso de alguns autores que viveram pocaeposteriormente,queelesincorreramemumrelativismo, como ocorre quanto ao conceito de justia tal como esse defendido emARepblica,dePlato.Noapenasumrelativismo;muitas vezeselessustentamaquiloqueatualmentepoderamoschamarde culturalismo.Ouseja,nohvaloresabsolutos,sendoquecada povoengendraosseus.Tampoucohaveria,paraossofistas,uma justificao objetiva para valores morais. Todavia, a tica ser amide a tentativa de justamente oferecer um fundamento objetivo para os valores morais. Nesse sentido, a filosofia queimediatamentesedesenvolve,emScrates,PlatoeAristteles, serdeumadurezaimplacvelcomossofistas,oquemarcarsua imagem (dos sofistas) por toda a histria da filosofia. Isso porque eles sepreocupariamunicamentecomasaparncias,enocoma realidade.EnquantoScrates,PlatoeAristtelesestariam preocupados com o conhecimento da verdade (tanto no plano terico quantonoplanoprtico),ossofistasestariamvoltadosparaas aparncias,paraailuso.Noutrostermos,elesnosapresentariam unicamenteopinies.Dequalquermaneira,comissosepretende notarqueautorescomoAristteles(e,antesdele,especialmente Plato)estavamdiantedoproblemaqueposteriormentesechamaria de problema do ceticismo, isto , o problema de enfrentar aquele que no aceita que haja um conhecimento objetivo, justificado. Podemos iniciar nossa abordagem pela clebre passagem inicial do livro primeiro da Metafsica, de Aristteles, em que lemos: Todos os homens, por natureza, tendem ao saber32. Esse um pressuposto importante,poisjnosapontaparaumdosaspectosdohomem,a saber,queeletendeaosaber.Noobstante,nosinteressaaqui especialmentesuabuscapelosaberprtico,isto,suabuscapelo padroobjetivodoagir.TalpressupostojforanotadoporAlasdair MacIntyre, em seu Depois da Virtude33, obra na qual ele percebe em

32 Aristteles. Metafsica. So Paulo: Edies Loyola, 2002, p.3, 980a/25. 33 MacIntyre, Alasdair. Depois da Virtude. Bauru: EDUSC, 2001.43 Aristtelesumabiologiametafsica34,oquesignificaafirmarque cabe notar a especificidade do homem, isto , aquele elemento que o distingue das demais formas de vida. Noutros termos, cabe identificar afunoprpriadohomemparaqueelasejaestabelecidacomo telosdoagirmoral.MascabenotarqueAristtelesnoest primeiramentedefinindoqualsejaanaturezahumana.Eleest procurandoporaqueleselementosquecaracterizamohomem,a saber,suasfaculdades,para,ento,compreenderasuanatureza.Tal funoser compreendida pelo conceitodeergon,isto,defuno prpria.Afelicidadeestdiretamenterelacionadacomaideiade funoprpria.EmsuaticaaNicmaco,diz-nosAristteles: Mas talvez parea ser j algo de assente o dar-se felicidade o sentido deomelhordetudo;,porisso,desejvelquesejaditodeum modomaisclaroqualasuaessncia.Talpodesuceder eventualmente se se captar qual a funo especfica do Humano35. Logo,identificaranaturezahumanaesuafunoprpria condiosinequanondafelicidade.Afinal,avirtudedealgoreside exatamenteemseufuncionamentoapropriado.Assim,naticaa Nicmaco, Aristteles introduz a noo de funo prpria (ergon) comopropsitodeidentificaraeudaimonia(felicidade).Comoj haviasidoafirmadonolivroIdaobra,todaaperciaetodoo processodeinvestigao,domesmomodo,todooprocedimento prtico e toda a deciso, parecem lanar-se para um certo bem. por isso que se tem dito acertadamente que o bem aquilo por que tudo anseia36. Assim, a questo que se coloca de incio : qual o bem do homem?Issodemanda,ento,identificarafunoprpriado homem. Execut-la plenamente a forma de alcanarmos nosso telos, aeudaimonia(felicidade).E,cabereiteraroqueforadito anteriormente,asaber,quefelicidade,aqui,nosignificaprazer.Ou seja,eudaimonianosignificahedonismo.Afelicidade,para Aristteles, a atividade da alma segundo sua virtude (excelncia). E tal virtude, ou excelncia, reside na sua atividade racional.

34 MacIntyre critica, em Depois da Virtude, essa biologia metafsica. No entanto, ele rev sua posio em obras posteriores.35 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.26s, 1097b22. 36 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.17, 1094a1. 44 Todavia,antesdeadentrarmosnacinciaprtica,importanotar que Aristteles no foi apenas aquele que sistematizou a tica, mas ele deu sistematicidade filosofia em geral. Isso porque ele estabeleceu as cincias em trs grandes ramos, a saber, as cincias tericas (que visam osaberporelemesmo,sendocontemplativo:aquitemos,por exemplo,ametafsica,afsicaeamatemtica),ascinciasprticas (quevisamaprxis,aprtica,aao)eascincias poiticas/produtivas(asquaisvisamosabercomopropsitode produzir certos objetos). Assim,ahojenotriadistinoentrefilosofiaterica (especulativa) e prtica aparece no livro segundo da Metafsica, na qual ele afirma que o fim da cincia teortica a verdade, enquanto o fim da prtica a ao37. Ambas buscam pelo saber. No entanto, na filosofia terica, a verdade buscada por ela mesma. Poder-se-ia dizer que, no plano da filosofia terica (contemplativa), a verdade um fim em si. Para a filosofia prtica, preocupada com a prxis, no entanto, a verdadenoumfimemsi,masummeioemvistadeoutrofim, qualseja,aao.NostermosdeEnricoBerti,afilosofiaprtica, portanto,tememcomumcomateorticaofatodeprocurara verdade, ou seja, o conhecimento de como so efetivamente as coisas, etambmacausadecomoso,ouseja,ofatodesercincia.Sua diferenaemrelaofilosofiateorticaque,paraestaltima,a verdadefimparasimesma,enquantoparaafilosofiaprticaa verdade no o fim, mas apenas um meio em vista de outro, ou seja, da ao, sempre no tempo presente: no alguma coisa j existente, mas que deve ser feita agora38. A filosofia terica tem um aspecto, dir-se-ia, descritivo. A filosofia prtica, em contrapartida, procura engendrar novosestadosdecoisas.Eissomedianteescolha,deliberao.Seu plano , pois, o das aes humanas. Ainda nos termos de Enrico Berti, adenominaodeprticaderivadoobjetodestacincia,

37 Aristteles. Metafsica. So Paulo: Edies Loyola, 2002, p.73, 993b15. 38 Berti, Enrico. As razes de Aristteles. So Paulo: Edies Loyola, 1998, p.116. 45 constitudopelascoisaspraticveis,isto,pelasaes,pelaprxis, que tm princpio na escolha, na iniciativa do homem [...]39. Comovimos,aoinciodaquelaqueprovavelmentesuamais importanteobradedicadafilosofiaprtica,ticaaNicmaco, Aristteles afirma que o objeto de todo procedimento prtico e toda adecisovisamaumcertobem40.Talbemseriaobemsupremo dohomem,isto,seufimderradeiro,aqueleemtornodoqual todososdemais,porassimdizer,orbitariam.Talfim,como Aristtelesnodecorrerdaobraesclarecer,seraeudaimonia (felicidade).Comefeito,talfimelenoestrealizado.Quando Aristtelesfalaemfimdohomem,eleestfalandodealgoainda no realizado, de algo a ser posto em prtica mediante a ao. Disso depreende-se umaspectoimportanteparaatica,asaber,quenose trataapenasdedescobrirqualobemsupremo,masdetambm realiz-lo.Masantescabeesclarecerumaquestometodolgica.Como afirmadoacima,tantoafilosofiatericaquantoaprticaesto preocupadascomaverdade.Noentanto,dadoseremcincias distintas, cabe notar que seus mtodos so, tambm, distintos. O que temos, no plano da filosofia prtica, o mtodotipolgico, isto , aqui no h, pois, preocupao com um discurso exato (akribs), ou seja,detalhado,preciso,exaustivo41.Noutrostermos,talaspecto tipolgicoapontaparaumcartermaisgeraldomtodo empregado em filosofia prtica. Tal mtodo fica claro de incio, no livroIdaticaaNicmaco,especialmentequandoAristteles afirma, sobre o saber prtico, que:umtalsaberpodersercompreendidosuficientemente,sese ganhar toda a transparncia que a matria em anlise permitir. que, de fato, no tem de procurar um mesmo grau de rigor para todas as reas cientficas, to pouco para todas as percias.

39 Berti, Enrico. As razes de Aristteles. So Paulo: Edies Loyola, 1998, p.117. 40 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.17, 1094a1. 41Berti,Enrico.AsrazesdeAristteles.SoPaulo:EdiesLoyola,1998,p.119.O silogismo prtico difere, portanto, dos silogismos apodctico, dialtico e erstico. 46 Asmanifestaesdenobrezaeosentidodejustianasaes humanas, sentidos visados pela percia poltica, envolvem uma grandediferenadeopinioemuitamargemparaerro,tanto que parecem existir apenas por conveno e no por natureza. Umamesmamargemdeerropareceenvolveroquesepossa entender porcoisas boas, por delas poderem resultar perdas edanosparamuitos[...].Damo-nos,portanto,porsatisfeitos se,aotratarmosdestesassuntos,apartirdepressupostosque admitem margem de erro, indicarmos a verdade grosso modo, segundoumasuacaracterizaoapenasnostraos essenciais42. Trata-se,pois,debuscarpeloconhecimentomaisprximoda exatidopossvel(enodaexatidoelamesma).Eissocomo propsitodeatingirumfimquenoessesaberporelemesmo,mas umfimderradeiro,asaber,aeudaimonia.Aquiimporta conhecimentodosfatosdavida.nessesentidoqueAristteles afirmaqueojovemnoserespecialmenteentendedordapercia poltica,porqueinexperientenassituaesqueseconstituemao longodavida43.Talinexperinciaconcernefaltadeexperincia, por assim dizer, refletida. No apenas isso, aqui importa tambm a formao,ideiaquejapareceraemnossasincursessobrePlato no captulo anterior. Isso fica claro quando Aristteles afirma que: poressemotivoquequemouvirfalarjustamentesobreas manifestaesdenobrezaeosentidodajustianasaes humanase,emgeral,sobreoquedizrespeitodemodo essencial percia poltica ter de ser conduzido por processos corretosdehabituao.[...].Aquelequetiversidoconduzido por processos de habituao corretos tem ou poder facilmente vir a obter os princpios fundamentais44.

42 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.19, 1094b11. 43 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.19, 1095a1. 44Aristteles.ticaaNicmaco.SoPaulo:EditoraAtlas,2009,p.21,1095b5.Aqui estamos tratando de princpios aprendidos pelo hbito, diferentemente do que ocorre, por exemplo, na matemtica (em que temos princpios aprendidos pela induo) e na fsica (princpios descobertos mediante a sensao). 47 Eissonoscolocanocernedomtodoemfilosofiaprtica, segundo Aristteles. Partimos do que so as coisas em busca de sua razo,deseufundamento(princpiosfundamentais).Demaneira semelhanteaoqueocorrenafsica,nafilosofiaprticaseest buscando pela razoabilidade da experincia concreta, isto , por aquilo quetornarazovelaexperincia.Ousobrequalofundamento racionaldaexperincia.Comefeito,comomencionadoacima,o objeto da filosofia prtica ser o bem, mas no um bem qualquer: ser o bem supremo. E esse bem envolve a prtica de uma funo que prpriaaohomem.AquiloqueEnricoBertichamadadeinteno tipolgica45revelaquetipodeconhecimentoseestbuscandoem filosofiaprtica.Emverdade,mostraquetipodeconhecimentono seestbuscando:noseestbuscandoporumconhecimento absoluto,apodctico.Mascomochegamosaumconhecimento prtico?Issoocorremedianteoempregodeumprocedimento,a saber,doprocedimentodiaportico,oqualpartenodetodasas opinies,masdasquetm sidomaissustentadas:Talvezsejapouco maisdoquevoexaminartodasasopiniesformadasacercadeste assunto;suficienteexaminarasopiniesmaiscorrentesouasque parecemteralgumsentido46.Assim,Aristtelesiniciasua investigaoestabelecendoaquelasqueseriamasperspectivasmais comunssobreoquesignifiqueafelicidade(aquiloparaoqualalgo tende naturalmente). Em geral, segue Aristteles, o bem identificado com riquezas, honra ou poder. As concepes particulares do que seja obemseenquadram,emgeral,dentrodeumadessasconcepes abrangentes(asquaisAristtelesnoexclui:riqueza,honraepoder podemserimportantesparaquepossamosalcanarafelicidade. Aristtelesnoestsustentandoumidealascticoradical). Diferentementedoqueocorrecomamaioria,osbio(eaqui tenhamos em mente Plato) identifica a felicidade com o bem mesmo.Comefeito,Aristtelesparte,ento,dascoisasditaspara,ento, chegaraumaideiauniversalsobreoquesejaafelicidade.Assim, Aristteles faz uso do mtodo dialtico, dado ser esse mais adequado

45 Berti, Enrico. As razes de Aristteles. So Paulo: Edies Loyola, 1998, p.115. 46 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.20, 1095a30. 48 naorientaodoagir(eletemumcarterorientador,heurstico).O mtododialticonopartedeprincpiosverdadeiros,masde proposiesrazoveis,deumconhecimentoquepodeguiaraao, torn-la tambm razovel. Como vimos, a homem tende a um fim. Tal fim est intimamente ligadoaumaatividadequepeculiaraohomem.Cabe,pois, conhecermosohomemparaidentificarsuafunoprpria. Aristteles dividir a alma humana em trs partes: racional, sensvel e vegetativa.Aparteracionalaqueodistinguedetodasasdemais formas de vida. No apenas isso, ela lhe permite alcanar o imutvel. Asuapartesensitivaeleacompartilhacomasformasdevida sencientes. Aqui temos os sentidos, os quais nos facultam conhecer o que mutvel. A parte sensvel irracional, mas, de alguma forma, lhe permitido participar da racionalidade, isto , ela capaz de razo, de autodomnio, de obedincia ao comando da razo. Isto , tm o poder de a escutar e de obedecer ao seu comando47. exatamente nessesentidoqueapartesensvelpodeparticipardarazo(aqui que teremos as virtudes ticas). Por fim, temos sua parte vegetativa, a qualabarcaatodasasformasdevidaeabsolutamenteirracional. Dadataldivisotridica,vemosclaramentequeoquenos particulariza,nosdistinguedasdemaisformasdevida,nossaparte racional, nossa racionalidade (aqui teremos as virtudes dianoticas, ou intelectuais). Logo, temos, aqui, nossa funo prpria. Dessa forma, uma ideia que j havia aparecido no captulo anterior ir retornar em Aristteles e reaparecer ao longo da tica at os dias de hoje, a saber, aideiasegundoaqualarazodeveterdomniosobreossentidos, deve gui-los (mas no anul-los: trata-se de uma questo de domnio). Eisavirtudetica:domniosobreastendnciaseimpulsos.Tais virtudesderivamdojreferidohbito:dohbitodesermos temperantes,tornamo-nos,porexemplo,temperantes.Asvirtudes ticas envolvem nossas partes sensvel e racional. Aqui temos a virtude daphrnesis,frequentementetraduzidaporprudncia,aqualnos indicaosmeioslegtimosparaquepossamosalcanarfinstambm

47 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.38s, 1102b25. 49 legtimos(ela consiste nosaberbemdeliberarsobreoque bom ou mal para o homem). As virtudes ticas sero distinguidas das virtudes dianoticas, as quais tm como virtude a sophia, a qual indica os fins. Ela envolve a apreenso intuitiva dos princpios mediante o intelecto. Nessesentido,elacoincidecomametafsica.Asvirtudesdianoticas so as virtudes da parte mais elevada da alma humana (parte racional). Da podermos cham-las de virtudes da razo (da sabedoriasophia). Comovimos,segundoAristteles,aeudaimonia(felicidade)est relacionadacomumaatividadequepeculiaraohomem.Isso demanda um conhecimento acerca de nossa natureza, a qual se revela a partir de nossas faculdades. Dada a diviso acima, observamos que a felicidade(telosdafilosofiaprticaaristotlica)estemagirmosde acordo com a virtude (arete), a qual aponta para uma excelncia nossa. Talexcelncia(arete)sernossafunoprpria,ouseja,nossa capacidade racional. Logo, a eudaimonia est no agir racional. Ainda no livro I de sua tica a Nicmaco (1103a5), Aristteles estabelecer uma diviso entre os j referidos dois tipos de virtude, ou excelncias, a saber, entre as virtudes que so tericas (dianoticas) easquesoticas.Porexemplo,asabedoria,oentendimentoea sensatezsodisposiestericas;agenerosidadeeatemperanaso disposies ticas48. Detalhando a diviso mencionada acima, entre as virtudes ticas e asvirtudesdianoticas,cabeprimeiramenteressaltarumadistino fundamentalentreelas:asvirtudesticasenvolvemohbito,ao passo que as virtudes dianoticas envolvem ensino. Assim,asvirtudesticasenvolvemaprticareiteradadecertos atosditosvirtuososparaquenostornemos,pois,sujeitosvirtuosos. Nsadquirimosasvirtudes.Exemplificando,aoagirmosdeacordo com a virtude da temperana nos tornamos, por hbito, temperantes. E a prtica reiterada da temperana faz de ns sujeitos temperantes.

48 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.39, 1103a5. 50 Maspoder-se-ia,agora,perguntar:emqueconsisteexatamentea virtude?Quefazcomqueumsujeitoseja,porexemplo,corajoso? Sabemosqueacoragemumavirtude,masquefazcomqueuma aoemparticularsejaumainstanciaodavirtudedacoragem? aquiqueentraanooaristotlicademeiotermo(mests).A virtudeirconsistirnomeiotermo(ounajustamedida)entre doisextremos.Todasasvirtudesticassoummeiotermoentre dois extremos. Aqui Aristteles se mostra herdeiro de toda a tradio que lhe precedeu, pois temos desde elementos j presentes em autores taisquaisPitgorasePlato,atelementosdasabedoriaprtica vigentes na Grcia antiga, como a ideia expressa na mxima nada em excessoeasvirtudesdatemperana,dacoragem,etc,asquais Aristtelesincorporasuatica.Portanto,Aristtelesumherdeiro detodaatradioprecedente,aqualelesistematizadeforma magistral em sua filosofia (nesse caso, em sua filosofia prtica). Mas voltando s virtudes ticas, o meio termo do qual nos fala Aristtelestemumaspectoimportante,asaber,eleomeiotermo entredoisextremosrelativosans,consideradosindividualmente. Paraexemplificarmos,tomemosaprimeiravirtudeanalisadapor Aristteles, a coragem. A virtude da coragem um meio termo entre doisextremos:osentimentodemedoeodeconfiana.Assim,os vcios,aqui,seriamodacovardiaedatemeridade.Ambosso extremos. O excesso de medo covardia e o excesso de confiana a temeridade. Assim, a coragem uma disposio intermdia a respeito das situaes que convidam ao excesso de confiana e as que levam a sentir um medo tremendo49. Emverdade,Aristteles,emsuaticaaNicmacoclassifica especialmentedozevirtudes,asaber,coragem,temperana, liberalidade,magnificncia,magnanimidade,ambioapropriada, pacincia,veracidade,sagacidade,amabilidade,modstiaejusta indignao. A partir dessa lista de virtudes, poderamos estabelecer seu excesso ou deficincia, bem como a que se aplicam:

49 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.71, 1116a10. 51 1.Coragem(aplicadaesferadomedo edaconfiana)-meio termo entre os seguintes extremos: temeridade e covardia; 2.Temperana(aplicadaesferadoprazeredador)-meio termo entre os seguintes extremos: licenciosidade (libertinagem) e insensibilidade; 3.Liberalidade/generosidade(aplicadaesferadodaredo receberdinheiroempequenasquantias)-meiotermoentreos seguintes extremos: prodigalidade e avareza; 4. Magnificncia (aplicada esfera do dar e do receber dinheiro em grandes quantias) - meio termo entre os seguintes extremos: vulgaridade e mesquinhez; 5.Magnanimidade(aplicadahonraedesonrareferentea questesmaiores)-meiotermoentreosseguintesextremos: vaidade e pusilanimidade; 6. Ambio apropriada (aplicada honra e desonra referente a questesmenores)-meiotermoentreosseguintesextremos: ambio e desambio; 7. Pacincia (aplicada clera) - meio termo entre os seguintes extremos: fria e ausncia de esprito; 8. Veracidade (aplicada auto-expresso) - meio termo entre os seguintes extremos: jactncia e subavaliao; 9.Sagacidade(aplicadaesferadaconversao)-meiotermo entre os seguintes extremos: bufonaria e grosseria; 10.Amabilidade(aplicadaesferadacondutasocial)-meio termo entre os seguintes extremos: servilismo e conflituosidade; 11. Modstia (aplicada esfera da vergonha) - meio termo entre os seguintes extremos: acanhamento e impudncia; 52 12.Justaindignao(aplicadaesferadaindignao)-meio termo entre os seguintes extremos: inveja e despeito. TalcomoemPlato,avirtude(suaprtica)estarintimamente ligadaideiadejustia,umavezqueajustiaimplicaagirmos virtuosamente,emescolhermosomeiotermoentredoisextremos (relativos a ns). Assim, tanto o excesso quanto a deficincia so vcios aseremevitados.E,paraisso,devemosagirdeacordocomareta razo. Exemplificando, oexcessodeexercciosfsicos,porexemplo,eafaltadeles destroemovigorfsico.Demodoidntico,aingestoem demasiaouinsuficientedelquidosedealimentosslidos destriasade.Contudo,amedidaproporcionalprodu-la, aumenta-aeconserva-a.Assim,comefeito,tambmacontece comatemperanaeacoragem,bemcomocomasrestantes excelncias.Aquelequefogea(etemmedode)tudoeno perseveraemnadatorna-semedroso,eoque,emgeral,no tem medo de nada precipita-se sempre em todas as direes. De modo idntico, o que frui de todo o prazer e no se abstm de nenhumdevasso;porsuavez,oquefogedetodooprazer, como os que so rudes, insensvel. Ou seja, a temperana e a coragemsodestrudaspeloexcessoepelodefeito.Masso conservadas pelo meio entre esses dois extremos50. Avirtudetica,pois,umaespciedehbitovoltadoparaas deliberaes,consistindoemumajustamedida,emumjusto meiorelativoaosujeitoquedelibera.Comovimos,nossotelosa felicidade.Anicaformadeatingirmostaltelosmedianteaao virtuosa.Paraidentificarmosqualoagirvirtuoso,necessitamos compreendernossanatureza,maisespecificamentenossafuno prpria.Talfunoestligadanossarazo.Assim,agir virtuosamenteagirdeacordocomnossaexcelncia,nossa racionalidade. A virtude ns a encontramos no meio termo (mests) entre extremos, entre o extremo do excesso e o extremo da deficincia. Aqui entra a capacidade de julgar:

50 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.43, 1104a15. 53 Aexcelncia,portanto,umadisposiodocarterescolhida antecipadamente.Elaestsituadanomeioedefinida relativamente a ns pelo sentido orientador, princpio segundo o qual tambm o sensato a definir para si prprio. A situao domeioexisteentreduasperverses:adoexcessoeado defeito51. Ojulgamentosed,pois,pelaatuaodosentidoorientador, isto , da reta razo (orths lgos), a qual nos afasta dos extremos e noslevaaomeiotermo(mests).Eissodemandaprtica,hbito. Noapenasisso;aquivemosaimportnciadaprudncia (phronesis).Afinal,asvirtudesticasalmejamumamediania estabelecida pela reta razo (Ela [a virtude] est situada no meio e definida relativamente a ns pelo sentido orientador).Portanto, elas tambm envolvem escolha, deliberao. E aqui no se trata apenas de uma escolha, mas de uma boa escolha, da melhor escolha: Uma vez que a excelncia do carter uma disposio que decide e a deciso umaintenodeliberada,segue-seque,nocasodesetratardeuma deciso sria, o princpio de deciso ter de ser verdadeiro e a inteno correta52.Ditodeoutraforma,aescolhacorretaprudncia.A virtudeconstitudadeacordocomaprudncia53.Uma caracterizaoesclarecedoradaprudnciansaencontramos especialmentenolivroVIdaticaaNicmaco.Aprudnciaa virtudededeliberarsobrecoisasnonecessrias(afinal,nocomo deliberarsobreoquenopodeserdiferente:oqueaconteceno horizontedaaopodesersempredeoutramaneira54).Elaa capacidadedeaplicaruma regraaocasoparticular,detalformaque elaseaproximaconceitualmentedaquiloquetambmentendemos como juzo (subsumir o particular sob uma regra). O sujeito prudente deliberabemacercadaquiloquecontribuiparaaboavidaemgeral. Noutros termos, a prudncia sempre visa a bons fins (qualidades que dizemrespeitoaoviverbememgeral55).Aprudncia(phronesis)

51 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.49, 1107a1. 52 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.130, 1139a20. 53 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.145, 1144b25. 54 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.133, 1140b1. 55 Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Editora Atlas, 2009, p.133, 1140a25. 54 sabedoria prtica, voltada para o agir. Ela difere, pois, da inteligncia (nous),aqualapreendedefiniesabstratasegerais.Aprudncia sempreserefereaparticulares.Noapenasisso,elademanda experincias prvias. Os prudentes so os mais experimentados nas circunstncias particulares em que de cadaveznospodemosencontrar.Porexemplo,sealgum souber que as carnes leves so de mais fcil digesto e, por isso, maissaudveis,masdesconhecerquaissoosanimaiscom carne mais leve, no conseguir restabelecer sua sade56. Nessesentido,aprticadavirtude(dasvirtudesticas)exige prudncia,poissomenteelanosofereceosmeiosadequadosparaa realizao da virtude, para que reconheamos, nas situaes concretas, o meio termo relativo a ns. Almdasvirtudesticas,temos,tambmasvirtudesdianoticas (intelectuais). Essa ltima categoria de virtude resulta do ensino. Elas so as virtudes racionais por excelncia. Comovimos,temosumatendnciaaosaber.Issosignificaque nossa alma tende naturalmente busca da verdade. Nesse sentido, tal buscaocorreapartirdecincodisposies,asquaispodemser divididasdeacordocomseuobjeto.Assim,alcanamosaverdade sobreosobjetosimutveis,verdadesnecessrias,pelainteligncia (nous),peloconhecimentocientfico(episteme)epelasabedoria (sophia). A inteligncia nos permite apreender os primeiros princpios auto-evidentes.Oconhecimentocientficoconhecimentomediante demonstraoeconcluso.Asabedoria,porsuavez,tentaintegrar inteligncia e conhecimento cientfico, isto , ela tenta tanto conhecer os princp