Ética e estética nas cartas de van gogh a seu irmão rafel dos santos monteiro

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Partindo das cartas de Van Gogh à seu irmão, pretende-se mostrar como o projeto ético deste pintor, qual seja, empreender todas as forças na construção de uma obra capaz de dar sentido a existência, influência na constituição dos aspectos estilísticos de sua pintura. Se um plano ético, no que diz respeito as suas reflexões sobre a vida, pode ser distinguido de um estético, no qual se inscrevem suas reflexões sobre o conteúdo e a forma de sua pintura, este artigo pretende mostrar como, nas cartas que envia a seu irmão, Van Gogh demonstra compreender a existência de uma união entre estes dois planos, de forma que sua ética, a compreensão que guardava de si mesmo e dos outros, exprime-se nos caracteres estéticos de sua obra.

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Rafael dos Santos Monteiro

TICA E ESTTICA NAS CARTAS DE VINCENT VAN GOGH SEU IRMO THO

Resumo: Partindo das cartas de Van Gogh seu irmo, pretende-se mostrar como o projeto tico deste pintor, qual seja, empreender todas as foras na construo de uma obra capaz de dar sentido a existncia, influncia na constituio dos aspectos estilsticos de sua pintura. Se um plano tico, no que diz respeito as suas reflexes sobre a vida, pode ser distinguido de um esttico, no qual se inscrevem suas reflexes sobre o contedo e a forma de sua pintura, este artigo pretende mostrar como, nas cartas que envia a seu irmo, Van Gogh demonstra compreender a existncia de uma unio entre estes dois planos, de forma que sua tica, a compreenso que guardava de si mesmo e dos outros, exprime-se nos caracteres estticos de sua obra. Vida e obra nas cartas de Van Gogh Tho.

As cartas escritas por Vincent Van Goh constituem uma pea de extrema singularidade na histria da arte, da pintura e da literatura. E isto tanto porque nelas o pintor se mostra, expe suas convices, seus anseios e suas angustias, quanto porque atravs delas podemos acompanhar o desenrolar de uma vida tomada como obra primeira e principal de seu artista. As que envia a seu irmo Theodoro, que serviro de fonte para o nosso estudo, caracterizam-se por conter o registro do desenvolvimento e amadurecimento de sua compreenso de mundo, de sua vida e do que ele mesmo deveria fazer dela.

Embora desenhasse desde de cedo, Vincent demorou para enxergar na composio de quadros a profisso a que deveria dedicar todas as suas foras. Ainda que tenha nascido numa famlia onde o interesse pela arte era partilhado desde antes de seu nascimento descende de uma longa tradio de comerciantes de quadros e sua me era tambm pintora , s aos 26 anos ele se empenhou num trabalho totalmente voltado para a prtica e o estudo do desenho e da pintura. At ento, acreditou ser a igreja o lugar onde encontrar-se-ia realizado, e o oficio de pastor, tal qual seu pai, a atividade pela qual se tornaria em tudo o que concebeu de melhor para si. Sua vida profundamente marcada por essa reviravolta. O relato das reflexes que empreendeu neste processo, to presente nas cartas enviadas a seu irmo Tho, fazem destas um texto permeado por questes ticas e morais, seja quando trata dos valores cristos em sua fase eclesistica, seja quando discuti elementos da composio pictrica. Neste sentido, til para compreendermos o alcance tico das reflexes de Vincent em suas missivas ser demonstrarmos, por suas palavras e pelos fatos de sua vida, como ele tomou a si mesmo para objeto de analise e transformao. Mostraremos como a escolha dos temas e das tcnicas da primeira fase de sua pintura exprimem a tica que o alimenta a esta poca, maturada a partir dos valores cristos adquiridos quando ainda pensava em ser pastor. Longe de considerar que tal mudana signifique uma ruptura com os valores de sua formao, pretende-se evidenciar como opera-se ai uma ressignificao nos seus ideais de solidariedade, humildade e dignidade.

Numa carta de 11 de maio de 1875, Vincent cita uma passagem do filsofo e historiador francs Ernest Renan:Pour agir dans le monde il faut mourir soi-mme. Le peuple qui se fait le missionnaire dune pense religieuse na plus dautre patrie que cette pense. Lhomme nest pas ici-bas seulement pour tre heureux, il ny est mme pas pour tre simplement honnte. Il y est pour raliser de grandes choses pour la socit, pour arriver la noblesse et dpasser la vulgarit o se trane lexistence de presque tous les individus (carta 026).

As palavras contidas neste trecho o afetaram de maneira to forte e significativa que todo o resto de sua vida parece ser conduzido pelo o que elas exprimem. Valores como autossacrifcio e entrega de si, conduzidos por esta compreenso da vulgaridade que acompanha a existncia humana e da necessidade de oferecer para a histria uma obra capaz de perdurar, aparecero na composio de sua vida e de sua obra. Seguiremos analisando trechos de outras cartas de Vincent a seu irmo e as escolhas que empreende, a fim de destacarmos como tais valores aparecem em ambas.

No nosso intento deduzir puro e simplesmente da vida deste pintor o significado de sua obra, ou o de alguns de seus quadros, reproduzindo aqui mais uma estereotipia como as inmeros que j se fizeram o que acabaria por nos conduzir a estabelecer uma causalidade inegvel entre sua obra e sua sade mental, seu auto aniquilamento. Se vamos nos remeter aqui histria do pintor, unicamente para delinear, partindo de suas palavras e o transcorrer de seu amadurecimento, as ideias do Van Gogh pensador, as compreenses estticas e morais de um artista que fez de sua vida e de sua arte objeto de profunda reflexo. Assim, para efeito de uma melhor compreenso do significado de suas palavras, alguns fatos sero destacados a fim de que se possa extrair deles o substrato de uma contextualizao biogrfica de seu pensamento. Sem desconsiderar, contudo, que se trata de uma personagem real, esperamos que, ao fim e ao cabo de nossa exposio, reste esclarecido o engenho com que ele conduziu os traos de sua obra, dando a ver assim, mais do que qualquer outra coisa, a genialidade da arte de Vincent Van Gogh.

Data da infncia o interesse de Vincent por pintura; faz seus primeiros desenhos aos nove anos. Contudo, aps trabalhar nas trs filias da Casa Goupil, conjunto de lojas de quadros com cede em quatro pases da Europa, ele demitido em 1876. Aps ser tantas vezes transferido, e ele mesmo vaguear entre Haia, Paris e Londres, evidente a dificuldade de Vincent em se adaptar com a profisso de comerciante de telas, a qual outros Van Gogh dedicaram sua vida dois tios e o prprio irmo Tho. No inicio de 1876, ele sabe que no o mantero por muito tempo em seu emprego. Em uma carta enviada a seu irmo em janeiro deste ano, exprime um descontentamento consigo mesmo:Quando a maa est Madura, uma leve brisa a far cair da rvore. E esse foi o caso aqui. Eu provavelmente fiz coisas que, de certo modo, foram muito erradas. por isso que eu nunca fiz nada importante para resolver isso. Bem, meu garoto, eu no tenho certeza do que irei fazer daqui pra frente, mas ns devemos tentar manter a esperana e a coragem (carta 50).

Aps ser demitido, em abril passa a trabalhar como professor em Ramsgate, Holanda. Em junho, muda-se junto com a escola para Isleworth, subrbio de Londres. Contudo, continua descontente. Mesmo antes de mudar-se com a escola, numa carta de 6 de maio de 76, escreve a seu irmo: Honestamente, eu tive momentos timos aqui e, mesmo assim, eu no tenho confiana plena e clara dessa felicidade, dessa paz. Uma pode ser o resultado da outra. Um homem raramente declara-se satisfeito. Porque assim que ele acha que tudo est bem, ele logo pensa que tudo no est suficientemente bem. (carta 65).

Vincent recebe um salrio exguo e no acredita que poder continuar por muito tempo nesta profisso. Em julho, aps vagar pelo subrbio de Londres comovido pela misria que observa nos outros e em si mesmo, envia uma carta a um pastor pedindo uma posio conectado com a igreja. As razes para essa nova ideia ele exprime na mesma carta, enviada tambm a Tho, para que seu irmo saiba que ele comeou a escrever com o sentimento de 'Pai, eu no sou digno' e 'Pai, tem piedade de mim':O motivo que me permite indicar a mim mesmo para a igreja o meu amor inato pela igreja e por tudo o que se relaciona com ela. Esse amor pode permanecer dormente em mim; mas, de tempos em tempos, ele sempre desperta. Se voc me permitir dizer mais uma coisa, embora eu acredite que seja inadequado e imperfeito, trata-se do Amor de Deus e dos homens. E tambm, quando eu penso em tudo o que j vivi, na casa do meu pai na Holanda, trata-se do sentido de Pai, eu pequei contra o cu, contra ti, e eu no mereo mais ser chamado de seu filho. Faa-me um dos seus servos. Perdoe esse pecador (Carta 69).

Em uma outra carta enviada a seu irmo neste mesma poca, ele escreve: esses poucos meses envolveram-me de forma to intensa na esfera que vai da escola casa do pastor, tanto quanto os prazeres relacionados com essas profisses, da mesma forma como os espinhos me perfuraram, que eu no posso voltar atrs. Portanto, eu tenho que ir em frente! (carta 70). Vincent v-se frequentemente abatido, melanclico consigo mesmo. Sentimentos cristos, como a auto comiserao e desprezo por si o tomam. Ele acredita que a nica maneira de superar tal situao era tornando-se pastor. Eu estou distante de ser o que quero, mas com a ajuda de Deus, eu vencerei. Eu quero ser envolvido com Cristo com fios inquebrveis e sentir esses fios (carta 74).

Finalmente, no mesmo ms de julho, aps ser demitido do cargo de professor, Vincent consegue um emprego como ajudante de um pastor em Isleworth. Em suas cartas Tho, demonstra estar muito contente, vive momentos de xtase em seus sermes. estas cartas, anexa cpias dos longos textos que l nas missas. Numa delas descreve com as seguintes palavras o que pode ser entendido como um momento de realizao ao mesmo tempo que uma reconciliao consigo mesmo: "Quando eu estava de p no plpito, eu me senti como algum que, emergindo de uma caverna subterrnea escura, volta para a luz do dia amigvel" (carta 79). Em maio do ano seguinte, instala-se em Amsterd para dedicar-se mais profundamente aos estudos necessrios ao sagrado ofcio. Pode-se ler nas cartas desta poca o entendimento e a convico de quem sabia exatamente o que estava fazendo. Em 3 de abril escreve para Tho uma longa reflexo onde desenvolve as ideias que o moviam, nos permitindo antever a compreenso que ele mesmo guardava a esta poca sobre questes de cunho tico e moral.

A carta conduzida pela rememorao de temas discutidos numa conversa que os irmo tiveram em presena um do outro. Van Gogh escreve sobre honra, o que somos e que o devemos fazer com nossas vidas, exatamente onde expe e justifica suas escolhas e atitudes. Meditando sobre o que conversara com Tho, numa frase prendem-se seus pensamentos: 'Somos hoje o que eramos ontem'. Contudo, ainda que se defenda ai uma imutabilidade, no se desconsiderar a necessidade de ensejar-se uma melhora em si mesmo, pois Vincent logo acrescenta: Isto no significa que se deva marcar passo, e no tentar desenvolver-se, ao contrrio, h uma razo imperiosa para faz-lo e para busc-lo (Van Gogh, 2002. p.25). Como desenvolver-se sem que se deixe de ser o que ? A resposta nos oferecida pela descrio do que, para Van Gogh, faz destes homens, que afirmaram serem hoje o que eram ontem, homens honrados. Para ele, tal honra se depreende claramente da constituio que redigiram, que subsistir por todos os tempos, e da qual se disse que tinha sido escrita 'sob as emanaes do cu' e 'com uma mo de fogo' (ibidem). Acreditamos que com estas palavras Van Gogh pretende explicar que a honra destes homens, que permaneceram idnticos mesmo com o transcorrer dos dias, se deve a natureza do que fizeram em suas vidas, mais do que o que eram neles mesmos. Tanto que, prossegue Vincent, no importa se possuem a compreenso do que so, a certeza de que esto predestinados, mais vale trabalhar numa obra, sem duvidar nem hesitar mais (ibidem). A virtude de uma homem encontra-se na determinao com que se dedicou a um trabalho em sua vida, no qualquer trabalho, mas um que possa lhe conduzir a algo de bom. Razo pela qual, concordam os irmo Van Gogh, nosso objetivo em primeiro lugar deve ser o de achar um lugar determinado, e uma profisso qual possamos nos dedicar integralmente (Van Gogh, 2002. p. 26). A esta altura Vincent no duvidava de que estava no caminho para fazer algo de bom com sua vida, no era mais abalado por incertezas e descontentamentos consigo mesmo, acreditava, outrossim, que sendo pastor entregar-se-ia numa atividade pela qual realizaria seu ser. o que podemos extrair das seguintes palavras: No que me diz respeito, devo tornar-me um bom pregador que tenha algo de bom a dizer e que possa ser til no mundo, e talvez fosse melhor eu conhecer um tempo relativamente longo de preparao, e estar solidamente confirmado numa firme convico, antes de ser chamado a falar aos outros... () sensato fazer estas coisas, porque a vida curta e o tempo passa depressa; se nos aperfeioarmos numa nica coisa e a compreendermos bem, alcanamos alm disto a compreenso e o conhecimento de muitas outras coisas (Ibidem. p. 27)

H que se compreender a importncia desta deciso de Van Gogh na formao de seus valores. Os princpios que tomaram razes em seu esprito nesta poca o acompanharam por toda a vida, mesmo quando ele entende que no realizar seu objetivo final sem que modifique seu caminho. Os valores o acompanharo, ainda que ressignificados. Algo que j se manifesta na carta que acabamos de citar, e que determinar decisivamente as escolhas de Vincent, justamente uma estima declarada pelo trabalho rduo e por uma vida humilde e de hbitos simples. Naquele mesmo escrito de abril de 1878, lemos:() uma vitria, aps toda uma vida de trabalho e de esforos, vale mais que uma vitria obtida mais cedo. () preciso no se fiar jamais no fato de viver sem dificuldades ou sem preocupaes ou obstculos de qualquer natureza, mas no se deve procurar ter uma vida muito fcil. () E aquele que continua a guardar a pobreza e que a preza, possui um grande tesouro e ouvir sempre com clareza a voz de sua conscincia () (Ibidem. pp. 27-28).

Contudo, mesmo estando to determinado em prosseguir com os estudos para Teologia em Amsterdam, quatro meses depois a abandona e volta para Etten. Acaba matriculando-se num curso mais curto para missionrios em Bruxelas, mas trs meses se passam e ele no nomeado. O interesse por quadros e paisagens sempre se manifesta nas cartas que envia a seu irmo. Numa de novembro de 78, permeada de referncias diversos quadros e pintores, escreve: Bem que eu gostaria de comear a fazer alguns croquis grosseiros das inmeras coisas que se encontram pela estrada, mas como tudo isto me distrairia de meu prprio trabalho, melhor no comear (Ibidem. p. 33). A fim de continuar com seu trabalho, decide partir para o Borinage, regio ao sul da Blgica. As razes que o conduzem at l, expostas nesta mesma carta, condizem com os valores que acima destacamos. Van Gogh acredita estar ciente do que quer e de como o conseguir; o estudo no lhe parece mais suficiente, ele deseja ir onde suas palavras tero melhor efeito e onde vivenciar sua formao eclesistica na prtica. Quer lanar as sementes de sua palavra num solo onde elas vingaro e v no povo do Borinage, formado em sua maioria por humildes trabalhadores de minas de carvo, o lugar propcio para isto: A experincia ensina que quem trabalha nas trevas, no corao da terra, como os mineiros nas minas de carvo, sensibiliza-se muito com a palavra do Evangelho, e nela tem f (ibidem). Para ilustrar suas razes, acrescenta na carta um trecho de um livro de geografia, que nos permite entender o que chama sua ateno para estas pessoas e desperta seu interesse em ir pregar junto a eles: '() [o mineiro do Borinage] trabalha, enfim, em meio a mil perigos incessantemente renovados; mas o mineiro belga tem um carter alegre, est acostumado a esse tipo de vida, e quando entra na caverna () ele se confia a seu Deus, que v seu trabalho e que o protege, assim como a sua mulher e suas crianas' (ibidem).

Podemos compreender com estas palavras que o interesse e a estima de Van Gogh pela vida humilde e pelo trabalho rduo dos mineiros, descrita no excerto do livro e que ele mesmo encontra quando vai ao Borinage, liga-se profundamente a sua viso crist de mundo. Martrios e ascetismo, fundados e justificados numa redeno divina, pelo o que esta vida torna-se justa e valorizada, so os paradigmas de uma ideologia na qual a misria dos pobres o sinal da dignidade que eles devem reconhecer. Ainda na mesma carta, Vincent apregoa: () caracterstico que, ao vermos a imagem de um abandono indizvel e indescritvel da solido, da pobreza e da misria, o fim das coisas ou seu extremo , surja ento em nosso esprito a ideia de Deus (ibidem. p. 32). o simbolo de Cristo entre os flagelados que marca o esprito de Vincent. Seu Deus o Pai dos miserveis, e a eles, segundo pensa, que deve se unir e pregar. Tanto que, ao instalar-se na cidade de Wasmes e falar aos mineiros, repete a eles estes mesmos temas. s pessoas sujas de carvo, que, pretas, parecem limpa-chamins, o pastor Van Gogh propaga: () Deus quer que, imitando Cristo, o homem leve uma vida humilde sobre a terra, no aspirando coisas elevadas, mas dobrando-se humildade, aprendendo no Evangelho a ser doce e humilde de corao (ibidem. p. 36). Tal a representao que Vincent faz a esta poca destes homens e da maneira como vivem, a qual lhe acompanhar, em certa medida, por muito tempo, mesmo quando no for mais pastor das ovelhas do cristianismo.

Contudo, embora isto no seja dito com muita frequncia entre os comentadores, Van Gogh no desistiu de ser pastor porque ele no possui as qualidades necessrias para este ofcio. Vincent Van Gogh, talvez o mais sbio de uma gerao de tolos, de submissos, de plidos conformados, percebeu, nas trevas das minas do Borinage, o quo opacos e grosseiros eram os ideais da religio que o movera at ali. Vincent perdeu sua f, justamente ele que a tinha pela razo mais verdadeira. Pouco se tem falado sobre isso entre os crticos de arte, to entretidos em apontar o pintor louco. Mas est l, numa longa carta de 15 de novembro de 1879, que uma pobre edio publicada no brasil reduzira 7 linhas incompreensveis, todo o relato de suas decepes e angustias: a lucidez ativa, como dissera Artaud, de um gnio rodeado de conformismo larvar da burguesia do Segundo Imprio (Artaud, 2003. p. 29). Nos seis meses que viver em Wasmes, ele dedicou-se, como nenhum outro terico do cristianismo, convico que o alimentava. Chegou a descer ele mesmo s profundezas de uma mina e ir ter com aqueles homens, no risco e na precariedade em que viviam. Nesta carta ele exprime o quo decepcionada acabara, e chega a lamentar e maldizer o dia em que decidir tornar-se missionrio. Seu irmo Tho, quando o visita meses antes e observa o estado em que se encontra, lhe sugere que se resigne aos trabalhos mais insignificantes, acompanhados por conselhos semelhantes da irm Anna. Mas Vincent Van Gogh, confessadamente um homem de paixes, buscava uma melhoria em sua vida, tinha em si a arte que o movia, a intensidade das paisagens que o afetavam to energicamente que ele no podia mais negar-se ao que elas lhe compungiam. Ento roubou de sua dor uma potncia (ngela. 2011. p. 49), tomou, em suas prprias palavras, o partido da melancolia ativa, enquanto tinha a potncia da atividade, e resolveu, enfim, entregar-se ao desenho e pintura. Contudo, como j dissemos, ele no abdica totalmente de seus valores. Ao contrrio, ele os reafirma em seus quadros, dando-lhes traos que buscam a libertao dos fios que o prendiam ao ascetismo velhaco do cristianismo.

Aps aquela carta de novembro de 79, Vincent rompe com seu irmo e passa nove meses sem lhe enviar uma s palavra. Em julho do ano seguinte escreve uma longa reflexo sobre os tormentos, as decepes e os anseios de sua vida at ento. Nesta carta vemos como Vincent est decidido em empreender uma mudana. Acredita encontrar-se num momento decisivo. Contudo, confessa a seu irmo, embora mudado, sou o mesmo e meu tormento no mais do que este: no que eu poderia ser bom? (Van Gogh, 2002. p.44). Tal tormento para ele como que uma priso, um sentimento que embota suas foras e entreva sua vontade de ser til aos outros. Refere-se a um curso gratuito da universidade da misria como um lugar onde se pode aprender mais do imagina, e em fatos da histria, como a Revoluo Francesa, e nas obras dos grandes artistas, seja em livros ou quadros, como grandes coisas onde h uma potncia soberana que se manifesta e que, quem quer que a elas dedique estudo e as ame, encontrar Deus nelas (ibidem. p. 46). Para ele, () a melhor maneira de conhecer Deus amar muito (ibidem). Em relao a si mesmo, acredita poder ser distinguido de um tipo de () vagabundo por preguia e fraqueza de carter, pela dignidade de sua prpria natureza (...) (ibidem. p. 47) . Numa bela passagem, Vincent descreve a imagem do que pensa ser a prpria condio em que se encontra:() um outro vagabundo, o vagabundo que bom apesar de si, que intimamente atormentado por um grande desejo de ao, que nada faz porque est impossibilitado de faz-lo, porque est como que preso por alguma coisa, porque no tem o que lhe necessrio para ser produtivo, porque a fatalidade das circunstncias o reduz a este ponto, um vagabundo assim nem sempre sabe por si prprio o que poderia fazer, mas por instinto, sente: 'No entanto, eu sirvo para algo, sinto em mim uma razo de ser, sei que poderia ser um homem completamente diferente. No que que eu poderia ser til, para o que poderia eu servir; existe algo dentro de mim, o que ser ento?' (ibidem).

Van Gogh deseja ardentemente a libertao desta priso que, para ele, () s vezes se chama preconceito, mal-entendido, ignorncia, falta disto ou daquilo, desconfiana, falsa vergonha (ibidem. p. 48). J antev o que significa escolher ser artista na sociedade em que vive. Ainda que a pintura j fizesse parte da histria de sua famlia, seu pai, seu irmo e seus tios no acreditam que ele possa ter sucesso neste caminho. Contudo, viaja para Courrires, onde visita o ateli do pintor Jules Breton. Nas cartas que se seguem, pede que Tho lhe envie gravuras de Millet, que tanto lhe influenciar no incio de sua obra, afim de que possa estud-los para melhorar sua tcnica. Chega a enviar esboos ao irmo para que este os avalie. Em setembro, volta pra Bruxelas e torne-se amigo do pintor Van Rappard, com quem tambm manter uma correspondncia por vrios anos. Numa carta deste mesmo ms, em que descreve sua vigem para Courrires, vivendo numa situao de mendigagem, ele escreve:Por mais que esta etapa tenha sido dura para mim, e que eu tenha voltado esgotado, os ps machucados e num estado mais ou menos melanclico, no me arrependo, pois vi coisas interessantes, e aprende-se a ver com os olhos mais justos nas duras provas da prpria misria. (). Pois bem, e foi no entanto nesta grande misria que eu senti renascerem minhas energias e que disse a mim mesmo: seja como for, eu vou me reerguer de novo, retomarei o lpis que abandonei no meu grande desalento, e recomearei a desenhar, e desde ento parece que tudo mudou para mim (). Foi a grande e prolongada misria que me desencorajou a tal ponto que eu no consegui fazer mais nada (Van Gogh, 2010. pp. 51-52).

E assim Vincent Van Gogh ps-se em busca do bom e do belo em sua arte. Vemos nesta longa citao que ele j alimenta esta poca uma compreenso acerca da misria um tanto quanto mais distinta da sua fase, podemos dizer, mais crist. De alguma forma, ele entende o quo prejudicial foram aqueles dias. Toma sua misria por um instrumento pedaggico para seu amadurecimento, e no um estado louvvel e digno em si, ao qual deva resignar-se. Como ele mesmo nos explica ainda nesta mesma carta, a pobreza impede que surjam os bons espritos, o velho provrbio de Pallizy, que encerra alguma verdade e que totalmente verdadeiro se entendermos sua verdadeira inteno e seu alcance. (ibidem. p.53). A fim de nos aprofundarmos nesta transformao que pouco a pouco vai se operando no esprito de Vincent, muito nos ser til nos remetermos s analises que ele mesmo faz de alguns de seus quadros, objetivando mostrar como tais valores ai reaparecem. Nossa investida passar agora a um outro procedimento, ncleo duro de nossa empreitada expositiva, qual seja: destacar trechos nos quais Vincent Van Gogh nos revela que a escolha dos temas de sua pintura no era casual ou de carter puramente esttico, buscando meramente o belo ou a exatido nas representaes da realidade. Sua esttica totalmente orientada por suas preocupaes ticas e morais. Tal anlise buscar destacar o contedo, no que se refere aos temas escolhidos, e a forma, no que se refere s tcnicas empregadas, das telas pintadas no primeiro perodo de sua arte.

A obra de Vincent passou por varias transformaes, paralelas as transformaes de sua prpria personalidade. Em todas as pocas de seu amadurecimento, encontraremos nas cartas relatos em que o autor nos fala de seus interesses e anseios artsticos. Destarte, seria uma arbitrariedade defender aqui que em todas as fases de sua pintura Van Gogh conduzido pelas mesmas convices e interesses, sem que isto fosse provado atravs de um estudo de todas as cartas. Ao mesmo tempo, no h espao para tanto e este artigo no se pretende uma pesquisa de tamanha envergadura. Razo pela qual nos limitaremos as cartas que compreendem a primeira fase da pintura de Vincent.

inegvel a influncia do pintor francs Jean-Franois Millet (1814-1875) nos primeiros trabalhos de Van Gogh, tanto em relao estilstica dos quadros, quanto aos temas, em sua maioria trabalhadores humildes e condies precrias de subsistncia. Nas cartas, Vincent se refere a ele como pai Millet, e so vrios os trechos em que o toma como conselheiro, sobretudo porque acredita totalmente no que ele diz (ibidem. p. 132). Outros nomes recorrentes so os de escritos como Vitor Hugo, Charles Dickens, Honor de Balzac e mile Zola, os quais tanto se dedicaram em expor as condies de opresso em que vivem os trabalhadores do sculo XIX. Em relao aos livros de Zola, o pintor escreve que em sua opinio so os melhores sobre a poca atual (ibidem. p.70). Apenas estas referncias j nos serviriam como justificativa das caractersticas principais da obra de Van Gogh nesta sua primeira fase: mineiros, teceles e camponeses pintados em paisagens de desolao e em tons escurecidos. Quando digo que sou um pintor de camponeses, isto bem real e voc ver adiante que ai que eu me sinto em meu ambiente (ibidem. p. 131).

Contudo, Vincent no influenciado apenas pelos autores com que tem contato. As coisas que l e as imagens que admira nos quadros refletem um mundo que ele mesmo experienciou em sua vida. Sua vivncia nas minas do Borinage e em tantos outros lugares por onde passou, somada a compreenso de sua experincia pessoal atravs do contato com a obra de escritores e pintores, manifesta-se de maneira muito expressiva em suas primeiras telas e esboos. Eu me envolvi to intimamente com a vida dos camponeses de tanto v-la continuamente e todos os dias que realmente no me sinto atrado por outras ideias (ibidem), ele nos diz nesta mesma carta de abril de 1885. Esta mesma justificativa reaparece quando ele concorda com seu irmo na opinio de que, sem uma tal vivncia, aqueles que tambm se dedicaram a pintar os camponeses no o conseguiram com tanta eficincia. () voc escreve que quando os citadinos pintam camponeses, por mais que seus personagens sejam magnificamente bem pintados, involuntariamente, entretanto, eles nos lembram mais os habitantes dos arrabaldes parisienses. Eu tambm j tive esta impresso (), mas isto deriva justamente do fato de que, na maioria das vezes, os pintores no se envolvem pessoalmente com a vida dos camponeses. Por outro lado, Millet disse, 'na arte preciso das o sangue' (ibidem. p. 132).

Vemos atravs desta citao como o estudo de uma tradio de textos e quadros, conjuntamente com uma experincia prtica em condies precrias, imprimem no trabalho de Van Gogh uma carter bem especfico. E possvel acrescentar ainda um outro elemento a tudo isto, ainda mais til as pretenses aqui almejadas. Trata-se da compreenso do valor moral que Vincent adquiriu de uma vida de hbitos simples. Comentando a indiferena experimentada por Millet e outros pintores e a dificuldade em vender seus quadros justamente por conta do tema escolhido, Vincent cita um outro pintor, Sensier, para quem um tal indiferena seria muito difcil () se sentisse a necessidade de calar belos sapatos e se tivesse uma vida palaciana, mas, dizia ele, 'j que ando de tamancos, eu me sairei bem' (ibidem. p. 131). Ao que ele acrescenta, referindo-se a si mesmo e as suas preocupaes com relao aquisio de bens materiais: Tambm espero jamais perder de vista 'que se trata de andar de tamancos'; quero dizer com isto que se trata de ficar contente em ter o que beber, o que comer, onde dormir e com que se vestir. Trata-se em suma de ficar contente com o que tm os camponeses (ibidem. p. 131-132).

Aquela antiga valorizao da misria pela misria, bela em si mesma porque fundada simplesmente na imagem do flagelo de Cristo, parece ser substituda por uma considerao em que a humildade no digna apenas pela misria e o sofrimento que envolve, mas pelo sentimento de no querer mais do que o suficiente para viver e criar. Vincent pode agora criticar a explorao dos trabalhadores sem ir contra seus valores e ideais, pois alimenta agora uma compreenso da humildade que no resulta da ideologia burguesa e seus interesses em justificar a escravido. o que ele faz quando, numa carta a seu irmo, se refere ao quo so mau remunerados os teceles (ibidem. p. 128).

Embora de tal forma se justifique a escolha destes personagens e da maneira como vivem como tema principal de seus quadros, para Vincent no o bastante, isto , no basta apenas escolher quem ou o que pintar, mas preciso tambm que se reflita sobre o como pint-los. Como ele mesmo nos explica, () mais que as pessoas, existem regras, princpios ou verdades fundamentais, tanto para o desenho quanto para a cor, aos quais preciso recorrer quando se encontra algo de verdadeiro (ibidem. p. 135). O que ele tem em mente a necessidade de buscar uma tcnica que vise no apenas a beleza dos quadros ou uma representao perfeita da realidade. Seu realismo vai alm porque ela almeja exprimir, atravs de tons escuros e traos rudez, a rudeza e obscuridade da prpria vida dos camponeses. Como ele mesmo confessa: Por mim, estou convencido que afinal obtm-se melhores resultados pintando-os em sua rudeza que conferindo-lhes uma beleza convencional (ibidem. p. 137). Significativo neste sentido o elogio que faz, mais uma vez, a Millet: Para pintar a vida do campons, preciso ser mestre em tantos temas. Que bom isto sobre os personagens de Millet: seu campons parece ter sido pintado com a terra que semeia! (ibidem. p. 136).

Para Van Gogh, a pintura da vida dos camponeses coisa sria e, no que me diz respeito, eu me censuraria se no tentasse fazer quadros de tal forma que provoquem srias reflexes nas pessoas que pensam seriamente na arte e na vida (ibidem. p. 137). Para conseguir este objetivo, ele desenvolve um estudo sobre as cores e o uso da luz, afim de que se veja e sinta a atmosfera que envolve a vida destas pessoas; Van Gogh busca imprimir esta atmosfera em seus quadros, pois entende que s assim conseguir tocar o esprito de quem os observa. Como ele insistentemente ressalta, () temos que pintar os camponeses como se fssemos um deles, sentindo, pensando como eles mesmos. () Como se no pudssemos ser diferentes (ibidem). Pois Vincent est tomado pela ideia de que () os camponeses constituem um mundo parte, em muitas coisas muito melhor que o mundo civilizado (ibidem. p. 137-138).

Torna-se compreensvel que, numa outra carta de abril de 1885, onde descreve o processo de criao de seu quadro Os comedores de Batata (figura 1), talvez o que mais exprima as caractersticas e os anseios desta poca, Vincent se dedique at mesmo a descrever a cor da moldura e da parede em que o quadro deve ser colocado, condies estas que se no forem atendidas, ele simplesmente nem deve ser visto (...) pois no mostra seu valor (ibidem. p.136) . Para Vincent, deve-se atender tais exigncias, caso se queira v-lo como deve ser visto (ibidem. p. 137). Vale, afim de que enfim se compreenda o que se disse at aqui, lermos todo o trecho em que ele nos explica seus objetivos ao pintar este quadro: Apliquei-me conscientemente em dar a ideia de que estas pessoas que, sob o candeeiro, comem suas batatas com as mos, que levam ao prato, tambm lavraram a terra, e que meu quadro exalta portanto o trabalho manual e o alimento que eles prprios ganharam to honestamente.

Quis que ele fizesse pensar num modo de vida totalmente diferente do nosso, de gente civilizada. Assim, portanto, no desejo nem um pouco que todo mundo o ache nem sequer mesmo belo ou bom.

Um campons mais belo entre os campos em suas roupas de fusto, do que aos domingos quando vai igreja ridiculamente vestido como senhor.

E, da mesma forma, seria um erro, na minha opinio, dar a uma pintura de camponeses um certo polimento convencional. Se uma pintura de camponeses cheira a toucinho, a comida, a batatas, perfeito! Isso no nocivo; se um estbulo cheira a esterco, bom! por isto mesmo que um estbulo; se os campos tm um cheiro de trigo maduro ou de batatas, ou de guano e de esterco justamente a que est a sade, especialmente para as pessoas da cidade.

Atravs de quadros como estes, eles aprendem algo de til. () Certamente voc ouvir dizer: que borro, prepare-se para isto como eu mesmo j me preparei. Mas certamente acabaremos por fazer algo de verdadeiro e honesto (ibidem. pp. 137-138).

Ainda que guarde traos semelhantes com a maneira crist de representar a realidade, esperamos que seja possvel, depois de tudo o que se disse sobre a transformao pela qual passou o esprito de Vincent, compreender de que forma a humildade e a dignidade ressaltada neste quadro diferem-se daquela pregada pelo Van Gogh pastor. interessante notar que o trabalho do camponeses que ai ressaltado possui um relao um tanto distinta daquele do mineiro. Este ltimo sofre sob o peso da explorao, pois o produto de sua labuta serve mais burguesia que o explora do que a ele mesmo. Enquanto os camponeses comem do alimento que eles prprios ganharam to honestamente, isto , trabalham para o prprio sustento.

Outro quadro que descrito por Vincent, no qual no apenas seu contedo, mais sobretudo o relato que dele faz, nos permite ver com clareza como suas intenes ao pintar estavam a servio de uma crtica, bem stil talvez, a igreja e a religio crist, o intitulado Cemitrio de Camponeses (figura 2). Como pode ser observado, o quadro tem como imagem um cemitrio e uma igreja em runas. A morte, tal o tema que Vincent pretende tratar em sua tela. Contudo, se compararmos as palavras do pastor Van Gogh, naquela mesma carta de novembro de 1878 em que exprime seu interesse de ir at o Borinage para pregar junto aos mineiros, com as palavras do Vincent Van Gogh pintor, que se esfora por exprimir sua viso de mundo nas telas que pinta, veremos que sua viso da morte assume aqui traos bem distintos. Na carta de 78, ao comentar a imagem de uma procisso de cavalos velhos, e como tal viso o lembrou de uma gravura () que no tem um valor artstico muito grande, mas que contudo me chamou a ateno e me impressionou (ibidem. p. 31), em que cavalos j no fim da vida aparecem retratados em meio a uma paisagem desoladora, Van Gogh escreve: uma cena triste e profundamente melanclica e que deve impressionar qualquer um que saiba e sinta que um dia ns tambm deveremos passar pelo que se chama de morte, e que o fim da vida humana so lgrima ou cabelos brancos. O que existe alm um grande mistrio que s Deus conhece, e que nos revelou de maneira irrefutvel por sua palavra, que h uma ressurreio dos mortos.

O pobre cavalo, o velho servidor fiel, est paciente e passivo, corajoso apesar de tudo, e por assim dizer decidido, como a velha guarda que disse: A guarda morre mas no se rende, e espera sua ltima hora (ibidem. p. 32).

A representao da morte que pretende fazer em seu quadro de 85 parece ser um tanto diferente daquela que ele fizera na carta de 78. Pelo ou menos o que acreditamos poder-se depreender da explicao que o prprio pintor faz, sete anos depois, do que tinha em mente ao pint-lo:() quis exprimir como esta runa demonstra que h sculos os camponeses de l so enterrados nos prprios campos que lavraram durante a vida , quis dizer o quo simples o fato de morrer e ser enterrado, to tranquilamente como a queda de uma folha de outono nada mais que um pouco de terra revolvida uma pequena cruz de madeira. L onde termina a relva do cemitrio, os campos dos arredores traam, alm do muro, uma ltima linha sobre o horizonte como um horizonte marinho. E esta runa me conta como uma f, uma religio ficou carcomida, por mais que tenha tido fundamentos slidos, e como, entretanto, para os pequenos camponeses, viver e morrer e sempre ser a mesma coisa que para a relva e as florzinhas (sic) que ali crescem, naquela terra de cemitrio, o fato de germinarem e murcharem, singelamente.

'As religies passam, Deus permanece, disse Victor Hugo, a quem tambm acabem de enterrar (carta 418. p. 141-142).

Esta monumental estrutura destroada que aparece ao centro do quadro, escurecendo toda a paisagem, assim como a sombra que ela mesma cria no canto esquerdo inferior, podem ser tomadas como a imagem do que sobrou em Vincent de sua religio. Ainda que ele diga, com as palavras de Victor Hugo, que Deus permanece, o Deus que ele tem em seu esprito no parece ser o de antes: Deus Senhor de um servo resignado a misria que o glorifica pelo poder redentor dos olhos de seu Pai. No mais uma moral, enquanto esta pode ser compreendida como um conjunto de valores transcendentes e externos a quem os toma, mas uma tica o que o move agora, enquanto uma reflexo sobre sua prpria experincia individual. Vemos aqui no mais o pastor Van Gogh, consolador dos oprimidos, mas Vincent, o Pintor, que deseja exaltar e glorificar a Natureza, em sua simplicidade e beleza fulgurantes, buscando unir-se a Ela pela sua maneira de pintar, como tambm ressaltou Artaud, () coisas da natureza inerte como se estivesse em plena convulso (Artaud, 2003.p.45). No o "enlouquecido e inconformado", mas Vincent Van Gogh "(...) da Ordem do Infinito, do tamanho de tudo que maior, da beleza insondvel capaz de salvar" (Calou, 2011. p. 49).Referncias.

ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Traduo Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2003.

Calou, ngela. Quase um fantasma. In: Eu tenho medo de Grki e outros contos. Fortaleza: Grfica LCR, 2011. pp. 47-50.

VAN GOGH, V. Cartas a Tho. Porto Alegre: L&M, 2002. 420p.

_____________. Van Goghs Letters. Traduo de Johanna Van Gogh-Bonger, edio e tradues adicionais por Robert Harrison e Outros. In: BROOKS, David, The Van Gogh Gallery [em linha]. Site endossado e apoiado pelo Museu Oficial de Van Gogh em Amsterd. [Consulta: 17-07-2015]. Disponvel em ANEXOS

Figura 1.

Vincent Van Gogh

Os Comedores de Batatas

Nuenen, Abril 1885

leo sobre Tela

81,5 x 114,5

Amsterd, Rijksmuseum

Vincent Van Gogh FoundationFigura 2.

O Cemitrio de Camponeses leo sobre tela 65,0 x 88,0 centmetros. Nuenen: final de maio-incio de junho de 1885 Van Gogh Museum Para agir neste mundo necessrio sacrificar a si mesmo. Quem se faz missionrio de um pensamento religioso no tem outra ptria seno este pensamento. O homem no est neste mundo somente para ser feliz, nem mesmo para ser honesto. Ele est para realizar grandes coisas para a sociedade, para alcanar a nobreza e superar a vulgaridade em que se encontra a existncia de quase todos os indivduos.

Quando fizermos referncias apenas ao numero da carta, trata-se de tradues das originais em ingls extradas do site HYPERLINK "http://www.vggallery.com/letters/main.htm"http://www.vggallery.com/letters/main.htm. Quando colocarmos o ano e a pgina, trata-se de citaes da edio publicada no Brasil em 2002.