Ética do desporto - análise dos discursos no debate das ide

Upload: carlos-parrilha

Post on 12-Jul-2015

117 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE DE COIMBRA Faculdade de Cincias do Desporto e Educao Fsica

TICA DO DESPORTO: ANLISE DOS DISCURSOS NO DEBATE DAS IDEIAS Estudo de Caso de Duas Colectneas

Joo Carlos Gonalves Fernandes

COIMBRA 2007

UNIVERSIDADE DE COIMBRA Faculdade de Cincias do Desporto e Educao Fsica

TICA DO DESPORTO: ANLISE DOS DISCURSOS NO DEBATE DAS IDEIAS Estudo de Caso de Duas Colectneas

Monografia de Licenciatura realizada no mbito do Seminrio de Sociologia do Desporto, no ano lectivo 2006/2007.

Coordenadora: Mestre Salom Marivoet

Orientadora: Mestre Salom Marivoet

Joo Carlos Gonalves Fernandes COIMBRA 2007

II

ndiceNDICE DE GRFICOS .. NDICE DE QUADROS ... AGRADECIMENTOS .. RESUMO ... INTRODUO . V VI VII IX 1

I ENQUADRAMENTO TERICO . I.1. INSTITUCIONALIZAO DO DESPORTO MODERNO .. I.2. MOVIMENTO OLMPICO E OLIMPISMO I.3. TICA DO DESPORTO .. I.3.1. Concepes e Valores ... I.3.2. Princpios Consagrados .. I.3.2.1. Carta Olmpica e Cdigo de tica do COI .. I.3.2.2. Cdigo de tica do Conselho da Europa (CE) I.3.2.3. Outros Cdigos e Convenes Internacionais I.3.2.4. Princpios ticos do Desporto Consagrados na Legislao Portuguesa ... I.3.3. Quebra de Princpios .. I.4. A PROBLEMTICA DA TICA DO DESPORTO NOS ESPAOS DE DEBATE .. I.4.1. Objecto de Estudo .. I.4.2. Definio de Hipteses .. II METODOLOGIA .. II.1. MODELO DE ANLISE DESAGREGADO .. II.2. INSTRUMENTOS DE RECOLHA DE INFORMAO II.2.1. PROCEDIMENTOS NA ANLISE DE CONTEDO EM LITERATURA . II.2.2. GRELHAS DE ANLISE .... II.3. UNIVERSO E AMOSTRA .

3 5 9 15 16 19 19 20 21 23 24 26 28 28

31 33 34 35 36 37

III ANLISE DOS DISCURSOS ACERCA DA TICA DO DESPORTO ... III.1. NOES, CONCEITOS E TERMINOLOGIA ..

41 43

III

III.1.1. Olimpismo, tica do Desporto e Esprito Desportivo . III.1.2. Fair Play . III.1.3. Verdade Desportiva e Igualdade na Competio III.1.4. Exelncia e Autonomia do Movimento Associativo Desportivo III.1.5. Sntese Conclusiva .. III.2. QUEBRA DE PRINCPIOS E RAZES ... III.2.1. Comportamentos de Quebra de Princpios .. III.2.2. Razes do Enfraquecimento da tica do Desporto . III.2.3. Sntese Conclusiva .. III.3. PROPOSTAS DE PREVENO E CONTROLE ... III.3.1. nfase do Debate . III.3.2. Ensino e Formao .. III.3.3. Regulamentao e Sano ... III.3.4. Sntese Conclusiva ..

44 48 51 53 54 54 55 58 62 63 63 64 66 69

CONCLUSO ... RECOMENDAES ... BIBLIOGRAFIA ...

71 73 75

ANEXOS ANEXO A GRELHAS DE ANLISE DA COLECTNEA DESPORTO, TICA, SOCIEDADE (1990) ANEXO B GRELHAS DE ANLISE DA COLECTNEA TICA E FAIR PLAY NOVAS PERSPECTIVAS, NOVAS EXIGNCIAS (2006) .. ANEXO C QUADROS DE APURAMENTO .

81 83 93 103

IV

ndice de Grficos

Grfico 1 Amostra Grfico 2 Definio de tica do desporto por autores ... Grfico 3 Significados/associaes de tica do desporto (%) ... Grfico 4 Significados/associaes de tica do desporto por colectneas Grfico 5 Definio de esprito desportivo por autores Grfico 6 Significados/associaes de esprito desportivo (%) Grfico 7 Significados/associaes de esprito desportivo por colectneas . Grfico 8 Definio de fair play por autores Grfico 9 Significados/associaes de fair play (%) Grfico 10 Significados/associaes de fair play por colectneas Grfico 11 Definio de igualdade na competio por autores Grfico 12 Significados/associaes de igualdade na competio (%) Grfico 13 Significados/associaes de igualdade na competio por colectneas ... Grfico 14 Mdia de referncia dos comportamentos de quebra de princpios nas colectneas . Grfico 15 Evoluo mdia de referncia dos comportamentos de quebra de princpios . Grfico 16 Apresentao de razes do enfraquecimento da tica do desporto Grfico 17 Razes do enfraquecimento da tica do desporto (%) ... Grfico 18 Razes do enfraquecimento da tica do desporto por colectneas Grfico 19 Apresentao de mudanas sociais Grfico 20 Mudanas sociais (%) Grfico 21 Mudanas sociais por colectneas . Grfico 22 Proposta de preveno e controle (mdia das duas colectneas) .. Grfico 23 Evoluo mdia de referncia do ensino e formao Grfico 24 Distribuio do valor mdio da regulamentao ... Grfico 25 Evoluo mdia de referncia da regulamentao e punio / sano ...

39 44 45 46 46 47 48 49 49 50 51 52 53 55 56 58 59 59 60 61 61 64 65 66 67

V

ndice de Quadros

Quadro I Princpios Fundamentais do Olimpismo consagrados na Carta Olmpica ... Quadro II Excertos do Cdigo de tica do CE ... Quadro III Artigo 79. da Constituio da Repblica Portuguesa .. Quadro IV Excertos da Lei de Bases da Actividade Fsica e do Desporto 16 de Janeiro de 2007 ... Quadro V Dimenses, Variveis e Indicadores ... Quadro VI Colectneas de tica do Desporto publicadas em Portugal .. Quadro VII Comportamentos de Quebra de Princpios .. Quadro VIII Preveno e Controle (Regulamentao e Punio/Sano) ..

20 21 23 23 34 38 57 68

VI

Agradecimentos

Gostaria de agradecer,

professora Mestre Salom Marivoet, pela sua disponibilidade manifestada de uma forma competente e interessada na orientao deste estudo;

a todos aqueles que se preocuparam e me incentivaram ao longo do meu curso;

e em especial minha famlia, pela dedicao, esforo e empenho, em fazer de mim a pessoa que sou hoje.

VII

VIII

Resumo

O presente estudo tem como objectivo aprofundar os contedos das reflexes da tica do desporto, de forma a compreender-se melhor como tm vindo a ser abordados. Com base no contributo dos autores consultados, construmos a problemtica e definimos o nosso objecto de estudo e hipteses de investigao. Atravs da metodologia traada, elabormos quatro grelhas que nos permitiram a anlise de contedo das duas colectneas sobre o tema da tica do desporto seleccionadas no nosso estudo de caso: a primeira a ser publicada no nosso pas Desporto, tica, Sociedade (1990) , e a mais recente tica e Fair Play novas Perspectivas, novas Exigncias (2006). Aps a anlise da informao obtida atravs das grelhas, conclumos que, os contedos da tica do desporto tm vindo a ser, constantemente, abordados ao longo do tempo, sendo esses cada vez de ndole mais prtico, j que se abordam cada vez mais os comportamentos de enfraquecimento da tica do desporto e as razes que levaram a tais prticas, bem como as medidas de preveno e controle desses comportamentos, em vez de se apresentarem definies tericas acerca dos temas, noes ou conceitos. As concluses do nosso estudo permitem-nos afirmar, que no se encontra uma concordncia terminolgico-conceptual nos discursos acerca dos valores e princpios subjacentes tica do desporto, sendo que grande parte dos autores no apresentaram definies, ou limitaram-se a desenvolver os assuntos sem apresentarem uma definio concreta. Os diferentes comportamentos de quebra de princpios, apesar de terem actualmente mais destaque no espao de debate, no se alteraram no tempo, embora as razes que levaram a tais prticas no sejam tratadas de igual forma. J a tnica dos discursos centra-se claramente mais na necessidade do incremento da dimenso formativa do desporto, do que na sano decorrente dos dispositivos normativos, ou mesmo na regulamentao existente. Da anlise e discusso dos resultados recolhidos, podemos assim concluir, que o nosso objecto e respectivas hipteses de estudo foram na sua maioria confirmados, se bem que num dos casos de forma parcial.

IX

AbstractThe present study aims to take a closer look on the content of the reflections on sports ethics, in order to improve the understanding of the way this issue has been addressed. Based on the contribution of the consulted authors, we established our problematic and defined our object of study and research hypotheses. According to the methodology outlined, we produced four grids that allowed us to analyze the content of the two anthologies on the subject of sports ethics selected in our case study: the first published in our country - Desporto, tica, Sociedade (1990) - , and the latest - tica and Fair Play - novas Perspectivas, novas Exigncias (2006). After analysing the information obtained through the grids, we have concluded that the issue of sports ethics has been, consistently, addressed over time, becoming increasingly more practical in character, since the focus of the approaches has been more and more on the behaviours that lead to the weakening of ethics in sport and the reasons behind them, as well as the measures to prevent and control such behaviours, rather than on submitting theoretical definitions on the topics, notions or concepts. The conclusions of our study allow us to state that there isnt a terminologicalconceptual concurrence in the speeches about the values and principles underlying the ethics in sport, and most authors do not present definitions, or merely develop the subjects without offering precise definitions. The different behaviours of breach of principles, although currently given more emphasis in the arena of debate than before, have not changed over time. However, the reasons behind such practices arent all treated in the same manner. As for the focus of the speeches, the emphasis is clearly more on the need to increase the formative dimension of sports, rather than on the penalties imposed by the regulatory devices, or even on the existing regulation. From the analysis and discussion of the results gathered, we may conclude that our object of study and respective hypotheses were mostly confirmed, although in one of the cases only partially.

X

Introduo

Publicar e dissertar sobre um artigo foi, durante longos anos, aspirao e projecto de quem sempre pugnou pela dignificao de uma carreira profissional assumida em reas diferenciadas da actividade fsica como meio de valorizao cultural do ser humano. Este foi o pressuposto inicial do debate da tica do desporto, enquanto projecto que pretendeu e pretende promover o encontro permanente entre aqueles que, mais de perto, acompanham o alargamento do conhecimento humano nesta rea e os que actuam na realidade concreta das actividades fsicas desportivas, com o objectivo de dar resposta s necessidades e interesses comuns e de enriquecer a capacidade de interveno consciente e crtica no processo ensino-aprendizagem. Somos confrontados, frequentemente, com comportamentos de quebra de princpios de tica do desporto, tendendo cada vez mais a que, valores como a honestidade, lealdade, sinceridade, limpidez de processos, correco de atitudes e o respeito pelos outros e pelas regras, sejam irrelevantes e paream estar em vias de extino. Neste contexto, pareceu-me que seria interessante analisar o que tem vindo a ser dito nos espaos de debate de tica do desporto, de forma a se poder constatar e analisar quais os problemas realmente existentes na sociedade bem como quais as solues apresentadas como controle e preveno para esses problemas. Este estudo visa ento, aprofundar os contedos das reflexes da tica do desporto de forma a compreender-se melhor como estes tm vindo a ser abordados, estudo este que para mim uma rea de interesse, sendo esse o motivo que me levou a efectuar a sua escolha como investigao para a presente dissertao de licenciatura. O facto de tambm j ter efectuado um trabalho deste mbito, de ttulo Estudo da Revista Horizonte: Metaanlise Crtica - Contributo para a Compreenso da Evoluo da Educao Fsica e Desporto em Portugal, na minha licenciatura em Professores do Ensino Bsico Variante de Educao Fsica, da Escola Superior de Educao de Coimbra, foi tambm um factor de deciso na escolha do presente estudo, j que com agora posso colocar em prtica algum dos meus conhecimentos como investigador, bem como aperfeioar os mesmos. Do meu ponto de vista, a pertinncia deste estudo reside na relevncia que esta temtica apresenta, pois no sendo uma temtica de debate do quotidiano, no deixa de

-1-

ser fundamental a sua percepo e a sua compreenso enquanto formadores e profissionais de Desporto e Educao Fsica. Seguidamente, ser apresentado o enquadramento terico, descrevendo em conjunto de contributos de diversos autores, o que permitiu elaborar a problemtica, e assim definir o objecto de estudo e hipteses de investigao. No captulo II, apresentada a metodologia de investigao, nomeadamente as dimenses, variveis e indicadores, de forma a se testarem as hipteses formuladas. No captulo III, apresentam-se e discutem-se os resultados obtidos, sendo de seguida apresentadas as respectivas concluses e recomendaes para trabalhos futuros.

-2-

I ENQUADRAMENTO TERICO

-3-

-4-

I ENQUADRAMENTO TERICO

I.1. INSTITUCIONALIZAO DO DESPORTO MODERNO

A Sociedade que, at ao sculo XVIII, funcionava em torno do religioso, sendo apoiada em princpios fundamentais de carcter transcendente, sofreu uma mudana cultural profunda. Paralelamente desvalorizao do simblico e das condutas rituais, resultado do progresso da cincia e da tcnica, o mundo moderno viu-se a braos com uma crise de instituies, com o declnio da vida religiosa e com uma mudana na escala dos valores (Costa, 1990). Desde ento, que na sociedade inglesa se foram introduzindo mudanas nas prticas fsicas e recreativas que se traduziram no aperfeioamento das definies das regras e procedimentos estabelecidos de forma normalizada, a fim de poderem ser disputados de forma mais alargada. Um dos aspectos destas mudanas prende-se com o aparecimento do ethos amador, tendo-se desenvolvido procedimentos e cdigos de honra que impuseram na participao em prticas desportivas apenas o gosto e o prazer, comeando o desporto por ser sinnimo de divertimento. Segundo Elias (1992), uma outra mudana que permitiu o surgimento do desporto moderno foi a formao de um Estado forte, unificador da nao, que se imps pela normalizao das regras e das condutas sociais, reservando apenas a si o direito de exercer violncia fsica. Na segunda metade do sculo XIX, verificaram-se um conjunto de transformaes nas sociedades ocidentais que introduziram novas mentalidades e produziram alteraes nos processos de produo e reproduo social. Desde logo, assistiu-se a uma melhoria das condies de vida das classes laboriosas, reduzindo-se a sua jornada de trabalho e aumentando os seus tempos livres. O capitalismo desenvolveu-se, e com este o crescimento das urbes e uma modernizao e extenso dos meios de transporte, resultado da revoluo industrial (Costa, 1990). A individualizao, o culto pela diferena, a ruptura com a uniformidade e a rotina, a normalizao niveladora, expressaram-se aos diferentes nveis da sociedade, incluindo o espao desportivo. O culto do corpo, a procura de lazeres activos, a

-5-

informalizao dos espaos de prtica, dos tempos a esta dedicados, tomaram forma na segunda metade do sculo XX (Marivoet, 1998). Na implantao destes novos valores de prtica desportiva, contribuiu a aco do Conselho da Europa, nomeadamente atravs do lanamento de uma campanha denominada Desporto para Todos em 1966, e da consagrao da Carta Europeia do Desporto para Todos anos mais tarde, em 1975, assim como as sucessivas recomendaes que o Comit Director para o Desenvolvimento do Desporto (CDDS) foi realizando junto dos Estados membros, no sentido de definirem polticas de promoo desportiva junto das populaes (Marivoet, 1998). Todos estes factores levaram os Estados a definir polticas de promoo desportiva, criando condies necessrias para o acesso prtica desportiva generalizada a todos os escales etrios, difundindo o gosto pelo exerccio fsico e o desporto, bem como o seu benefcio em termos de sade, criando hbitos, competncias, e sobretudo prazer na sua participao. Neste contexto, assistiu-se a uma diversificao de desportos e transformao de outros j praticados em moldes informais, na busca da diferena, da excitao, e da aventura (Elias, 1992). Sendo assim, o conceito de desporto, que durante o sculo XIX era visto como um divertimento das classes sociais aristocratas, tornou-se necessariamente mais abrangente tendo em conta a realidade que se foi expressando na sociedade. De mero divertimento ou prtica amadora, o desporto foi-se transformando cada vez mais profissional, reforando a nfase na competio. Deste modo, embora no incio do sculo XIX o desporto fosse sinnimo de divertimento, cerca de meio sculo mais tarde foi reconhecidamente entendido como actividade fsica, exercida no sentido do jogo, cuja prtica supe treino, regras e um sistema codificado de avaliao. O ldico, o prazer cedia o lugar ao esforo e ao rendimento do desporto profissional (Costa, 1990). Como consequncia, clubes e federaes foram criados para promover e enquadrar ao desporto de competio, sendo que estes cada vez mais se tm vindo a assemelhar a entidades comerciais que competem entre si. Estas entidades tendem cada vez mais a comercializar a figura do desportista, contribuindo para a promoo do espectculo desportivo de massas, com a participao do Estado, cuja finalidade obter benefcios econmicos e polticos (Elias, 1992). O modelo do desporto moderno, tal como tem sido designado as caractersticas que assumiu no sculo XIX, foi entendido como sinnimo do progresso, da velocidade e -6-

da modernidade, derrubando, assim, o desporto da antiguidade, e os jogos tradicionais que foram a expresso do divertimento no estado puro, da desordem e da descontinuidade. Com efeito, de simples elemento ldico, de tempos livres e da cultura, o desporto assumiu-se como um relevante fenmeno social, relevncia esta que fruto de uma evoluo histrica que tem como marco a segunda metade do sculo XIX, j que o desporto institucionalizado em clubes, ligas e federaes algo que surge somente na Europa com a revoluo industrial. Esta evoluo histrica , de tal forma significativa, j que a expresso sport substitui rapidamente o vocbulo francs desport, vocbulo este que significava divertimento. Esta evoluo marca, naturalmente, as transformaes desencadeadas pela revoluo industrial, seja pelas mutaes suscitadas pela vida urbana seja em razo do aparecimento da noo de tempo livre e dos lazeres a ele inerentes, como j referimos. Segundo Tubino (1999: 17), atravs de Thomas Arnold, um idealista determinado a mudar o mundo, que surge o desporto moderno no sculo XIX. Este reconhecia na sua concepo de desporto trs caractersticas principais: ser um jogo, uma competio, e um meio de formao. No incio do sculo XIX, Thomas Arnold incorporou, no Colgio Rugby em Inglaterra as actividades fsicas praticadas pela burguesia e pela aristocracia inglesas no seu processo educativo, deixando que os alunos orientassem os jogos e criassem regras e cdigos prprios numa atmosfera de fair-play. Essas regras, que surgiam naturalmente da incorporao dos jogos durante as aulas que leccionava, foram rapidamente e amplamente difundidas nas escolas pblicas inglesas e nos clubs livremente criados na sociedade civil. Mais tarde, com a necessidade de criar entidades que coordenassem os jogos, surgiram federaes e clubes, nascendo da uma componente efectiva do movimento desportivo: o associativismo (Tubino, 1999). No final do sculo XIX, inspirado em Thomas Arnold, Pirre de Coubertin, grande humanista francs, percebendo as dificuldades de preservao da paz mundial, achou que o desporto seria um poderoso trunfo contra os conflitos internacionais existentes. Nesse sentido, acreditando no poder do desporto para estimular a convivncia humana, Coubertin iniciou em 1892 o movimento de restaurao dos Jogos Olmpicos, tendo como referncia as Olimpadas da Antiguidade, que chegaram at mesmo a interromper as guerras durante o perodo da sua realizao, como desenvolveremos no ponto seguinte. Junto com o ideal do movimento olmpico,

-7-

consolidaram-se tambm o fair-play e o associativismo como pilares da tica do desporto (Tubino, 1999). O desporto moderno foi crescendo, com novas modalidades, maior nmero de praticantes, autonomia das federaes internacionais, e j com uma interveno permanente do Estado na maioria dos pases, abandonando desta forma um pouco a perspectiva pedaggica e incorporando pouco a pouco um sentido de rendimento. Na dcada de 30, Hitler percebeu que o desporto poderia, pelo seu grande apelo popular, tornar-se um poderoso instrumento de propaganda poltica. Com essa inteno, aproveitando o facto de se realizarem os Jogos Olmpicos de 1936 em Berlim, Hitler organizou a competio no sentido de que fosse um acto internacional de constatao da supremacia da raa ariana. No entanto, o negro americano Jesse Owens, ao conquistar quatro medalhas de ouro, frustrou o plano nazista. Alm dessa utilizao ideolgica das competies desportivas, Hitler e Mussolini usaram as prticas desportivas para a formao das juventudes nazista e fascista, num primeiro ensaio do mau uso do desporto como mecanismo de controlo de massas, como refere Tubino (1999). Apesar de terem denunciado as intenes de Hitler e Mussolini, os vencedores da II Guerra Mundial, com o inicio do que se veio a designar de guerra-fria, transformaram o desporto num dos palcos de disputa entre o modelo capitalista do Ocidente e o socialista do Leste europeu. Esses dois lados, indistintamente, criaram fortes estruturas com o objectivo de obter vitrias desportivas internacionais, que foram usadas na propaganda ideolgica como comprovao de superioridade de cada regime poltico. O exemplo foi seguido at por pases com menos possibilidades socioeconmicas, que passaram a fazer do desporto mais um dos controlos do Estado, como constituiu exemplo o caso portugus durante o Estado-Novo (Marivoet, 2006b). Foi nessa clima que surgiu o chamado chauvinismo da vitria, que pode ser traduzido como a inteno da vitria a qualquer custo, em detrimento do fair-play. Este chauvinismo explica em parte o aparecimento do suborno e do doping no desporto. O doping considerado como o grande flagelo do desporto contemporneo, pois altera o resultado da competio e ao mesmo tempo degrada o atleta, pelos efeitos morais e biolgicos que provoca (Tubino, 1999). As manifestaes de sentido poltico dos eventos desportivos exacerbaram-se principalmente nas Olimpadas, em que se sucederam factos de extremo radicalismo, desde a contestao do movimento Black Power nos Jogos Olmpicos do Mxico, em 1968, com os negros americanos descalando-se no pdio, at ao massacre dos atletas -8-

israelitas pelo grupo terrorista Setembro Negro nas Olimpadas de Munique, em 1972, passando por sucessivos boicotes com motivao ideolgica (Tubino, 1999). O desporto tornou-se, assim, um dos smbolos mais representativos do sculo XX. Actualmente, o desporto apresenta-se cada vez mais como um espao de grande importncia social, sofrendo os impactos das grandes transformaes e mudanas sociais. Segundo Norbert Elias (1992), o desporto moderno tem-se constitudo na sociedade como um espao que permite o afrouxamento dos estados emocionais, na busca da excitao e prazer, ganhando uma ampla importncia social dadas as circunstncias do actual estdio civilizacional, caracterizado por sociedades fortemente normalizadas, e marcadas pela necessidade imposta aos indivduos da no exteriorizao dos seus estados emocionais. Neste contexto, quer a adeso aos espectculo desportivo como espectadores, quer as prticas desportivas no mbito do lazer, contribuem para os indivduos procurarem formas de excitao e de exteriorizao dos seus estados emocionais. Hoje em dia, o que interessa vencer, ganhar, conquistar a vitria a qualquer preo, tal como tem vindo a ser amplamente referido no debate pblico sobre as tendncias do desporto moderno e que iremos continuar a desenvolver ao longo desta investigao.

I.2. MOVIMENTO OLMPICO E OLIMPISMO

O Movimento Olmpico contemporneo v como principal idelogo Pierre de Freddy, conhecido por Baro de Coubertin. Educador, filsofo e historiador, empenhou-se na reorganizao dos Jogos Olmpicos, desejando a revalorizao dos aspectos pedaggicos do desporto em detrimento da simples conquista de marcas e quebra de recordes. Coubertin comeou a preocupar-se em desenvolver um modelo de reforma social por meio da educao e do desporto numa perspectiva internacional. Atravs da actividade fsica, pretendia promover uma vida activa e saudvel, apoiada na necessidade de se construir um corpo robusto e saudvel de forma a se promover a

-9-

cultura do msculo, e assim se prepararem os indivduos para combater nas possveis investidas inimigas. Ele observava o desporto como factor directo para o equilbrio entre as qualidades fsicas e intelectuais, e assim, consequentemente, assegurar a paz universal (Rubio, 2001). Depois de obter pouco sucesso com programas de carcter educacional em Frana, seu pas de residncia, Coubertin decide viajar procura de inspirao para o seu projecto desportivo-pedaggico, visitando inmeras escolas inglesas e americanas. Foi, sobretudo, o renascimento do interesse pelos estudos clssicos, fazendo reviver na intelectualidade de ento a fascinao que a cultura helnica exercia sobre a cultura europeia, alm das descobertas de stios arqueolgicos que permitiam desvendar acontecimentos relacionados aos Jogos Olmpicos da Antiguidade, que levou Pierre de Coubertin a tomar para si a tarefa de organizar uma instituio de carcter internacional com a finalidade de cuidar daquilo que seria uma actividade capaz de transformar a sociedade daquele momento: o desporto. Coubertin (1973: 138), afirmou mesmo que el deporte es Rey. Por seu lado, assistiu-se a que as organizaes internacionais procuraram a resoluo dos conflitos, tanto de ordem interna como externa, pelo uso da razo e das leis, e no pelas armas. Dentro desta lgica a competio desportiva constituiu uma forma racionalizada de conflito, sem o uso da violncia, isto , uma confrontao mimtica, (Elias, 1992). Segundo Godoy (2001), os Jogos Olmpicos da Antiguidade tiveram a sua gnese na Antiga Grcia, quando decorria o remoto ano de 776 a.C.. De entre vrias teorias, consta-se que o seu surgimento foi resultado de um acordo estabelecido entre dois reis, Licurgo, de Esparta e fitos, de Elida, com o objectivo de pr fim a uma guerra local entre Elis e Pisa. Havia, portanto o propsito de tornar estas competies um meio de levar os homens a pensarem na paz e a conviverem como amigos. Logo a, se pretendeu que os Jogos Olmpicos fossem um smbolo de paz. Num perodo de quatro em quatro anos, cada plis ou cidade-estado da Grcia dedicava um dia do ano (a primeira lua cheia do vero do hemisfrio Norte) para reverenciar os falecidos nesse quadrinio, e reuniam num campo os pertences dos mortos e abandonavam momentaneamente a cidade, para deixar que os espritos passeassem entre suas lembranas de vida terrena. Isso aps as sacerdotisas acenderem uma chama que os rapazes levavam at o templo do deus-patrono da cidade. Em Corinto, um dos principais portos gregos, situado no istmo que liga a pennsula do - 10 -

Peloponeso ao continente, esses jogos eram chamados de Jogos stmicos. Em Delfos, onde havia o famoso Orculo de Apolo, eram Jogos Pticos. Em Nemia eram Jogos

Nemeus. Este conjunto de jogos, juntamente com os Jogos Olmpicos que se realizavam em Olmpia, perto de Elis, ficaram conhecidos como jogos pan-helnicos (Godoy, 2001). Os Jogos Olmpicos da Antiguidade decorriam no santurio de Zeus em Olmpia, situado na regio ocidental do Peloponeso, a cerca de 15 quilmetros do Mar Inio, prximo da confluncia dos rios Alfeus e Cladeos. Este santurio retira o seu nome ao Monte Olimpo, ponto mais elevado da Grcia continental e que era na mitologia grega a residncia das divindades (Godoy, 2001). Todos os 4 anos, mensageiros partiam de Olmpia para anunciar os prximos jogos em todo o Mundo Grego, anunciando tambm a trgua sagrada, que proibia a guerra durante o perodo dos jogos e que visava proteger os espectadores e atletas durante a ida, a estadia e o regresso dos jogos. As provas s podiam ser realizadas por homens da raa helnica pura. No poderiam participar nos jogos os estrangeiros (os brbaros segundo a mentalidade grega), os escravos e as mulheres. A sua inscrio era bastante rigorosa, pois, trinta dias antes, pelo menos, tinham que se submeter a um treino intensivo. No s os participantes, como os treinadores e os juzes, eram sujeitos a um duro regime de treino, de preparao espiritual, com uma dieta alimentar, sendo proibido o consumo de bebidas alcolicas (Godoy, 2001). Os participantes eram, de uma forma geral, oriundos das classes mais favorecidas, tendo sido iniciados no desporto desde tenra idade. No vinham apenas da Grcia continental, mas de todos os pontos do mundo grego que na Antiguidade inclua as colnias espalhadas pelas costas do Mediterrneo e do Mar Negro. Os vencedores eram galardoados com um simples ramo de coroa de Oliveira Silvestre, que era o prmio que recebiam, smbolo da sabedoria, da paz, da abundncia e da glria. Eram ainda alvo de homenagem na sua cidade natal, onde poderiam receber alimentao gratuita, terem esttuas erguidas em sua honra e serem cantados pelos poetas (Godoy, 2001). Em 393 da era crist, Teodsio I, aboliu oficialmente os Jogos Olmpicos da Antiguidade sobre o pretexto de estes serem uma manifestao do paganismo. O projecto de restaurao dos Jogos Olmpicos como na Grcia Helnica foi apresentado em 25 de Novembro de 1892. A tarefa de promover uma competio - 11 -

desportiva de mbito internacional, espelhada nos Jogos Olmpicos gregos, com carcter educativo e permanente, impunha a criao de uma instituio que desse o suporte humano e material para a realizao de tal evento (Rubio, 2005). Assim, podese afirmar que o Movimento Olmpico teve incio com a primeira sesso realizada em Paris, em Junho de 1894, no anfiteatro da Universidade Sorbonne, na presena de duas mil pessoas (Capinuss, 2007). Constitudo por cerca de 79 delegados, representando 13 pases foi constitudo o Comit Olmpico Internacional (COI), que tinha como misso e inteno a organizao dos Jogos Olmpicos, bem como a normatizao das modalidades disputadas, muitas delas recm-criadas e sem um corpo de regras universalizadas (Capinuss, 2007). A ideia inicial, e que posteriormente foi perpetuada, era a da celebrao de uma competio de carcter internacional, com realizao quadrienal, cujos participantes estariam vinculados a representaes de comits nacionais. Consequentemente, Coubertin idealizou o Movimento Olmpico sustentado na fora dos comits olmpicos nacionais, mas principalmente na associao e actuao dos membros do Comit. O receio de lidar com conflitos internos, e o cepticismo com a democracia, levou Coubertin a estruturar e organizar o COI como uma instituio unipartidria, tendo como documento norteador a Carta Olmpica (Rubio, 2005). A Carta Olmpica constitui ento o dispositivo regulamentar, que define os princpios e o funcionamento da estrutura associativa dirigida pelo Comit Olmpico Internacional. Um dos conceitos norteadores da Carta Olmpica o de Olimpismo, que aparece definido na Carta Olmpica de 2007como:

Uma filosofia de vida, que exalta e combina num conjunto equilibrado as qualidades do corpo, a vontade e o esprito. Ao associar o desporto com a cultura e a educao, o Olimpismo prope-se criar um estilo de vida baseado no jbilo do esforo, no valor educativo do bom exemplo e no respeito dos princpios ticos fundamentais universais.

Aps 100 anos, os autores continuam a definir o conceito de Olimpismo tendo como referncia as ideias originais de Coubertin. Proena (1998), identifica o Olimpismo com uma corrente de modulao do comportamento humano, em que a competio desportiva intervm como factor de unio entre os povos, estabelecendo um caminho de Paz entre as Naes. Segundo Constantino (1998), o Olimpismo hoje um elemento central e estrutural da cultura desportiva moderna, sendo impensvel compreender a situao

- 12 -

actual do desporto desligado das significaes, sentidos e valores trazidos por este ideal. Tambm igualmente impensvel entender o desporto como pedagogia social, sem reconhecer o contributo do Olimpismo. O autor apresenta ainda a ideia de que o movimento olmpico e os Jogos Olmpicos so um reconhecido patrimnio cultural da humanidade, j que sobreviveram a duas guerras mundiais, a inmeros conflitos regionais, ao processo complexo e demorado das descolonizaes, aos boicotes, s presses polticas e ao conflito entre o mundo ocidental e a Europa de Leste. Regidos desde ento por princpios fundamentais contidos na Carta Olmpica, os Jogos Olmpicos tm-se pautado por um conjunto de valores que so a referncia fundamental do Movimento Olmpico at aos dias actuais. Os Jogos Olmpicos da Era Moderna podem ento ser vistos como a base de criao e desenvolvimento do Olimpismo e do movimento olmpico. No entanto, para a concepo destes valores, Pierre de Coubertin associou os seus ideais figura dos Jogos Olmpicos da Antiguidade. A partir da restaurao dos Jogos Olmpicos da Era Moderna, no sculo XIX, estes tornaram-se um evento mundial. A sua realizao deixou de ser restrita apenas Grcia, j que os jogos podem ser organizados em outro pas do mundo, reunindo atletas de quase todos os pases do mundo. Vrias modalidades foram acrescidas, e aos trs primeiros classificados de cada prova, so atribudas medalhas de ouro (primeiro classificado), prata (segundo classificado) e bronze (terceiro classificado). Actualmente as Olimpadas, ou seja, o perodo em que ocorrem as edies dos Jogos Olmpicos, dividem-se em Jogos de Inverno e de Vero interpolados, que so realizados de quatro em quatro anos tal como na Antiguidade. O crescimento da importncia do evento pode ser observado nos nmeros entre Grcia em 1896 e Atenas em 2004. As modalidades saltaram de 9 para 26. Os pases participantes passaram de 13 para 197. De 250 atletas homens na Grcia o total entre mulheres e homens em Atenas ficou em torno de 10 mil. A evoluo dos nmeros um bom indicador de que na actualidade os Jogos Olmpicos adquiriram a importncia e o prestgio que possuam na Antiguidade, tanto para os participantes como para os espectadores, podendo ser caracterizado como um mega-evento (Rubio, 2005). Horne (2006), refere mesmo que os Jogos Olmpicos so um elemento de desenvolvimento de cultura, afirmando:

- 13 -

So in considering Olympic Games events as being, among other things, globally mediated through television, my emphasis will be on understanding the Olympics as na element in the development of global culture.

(Horne, 2006: 30) No entanto, desde o sculo XIX, que os Jogos Olmpicos tm sofrido algumas alteraes. Pierre de Coubertin ao recuperar a tradio dos Jogos Olmpicos, excluiu categoricamente as mulheres, reservando-lhes a funo de coroar o vencedor. No entanto, a partir do sculo XX, as mulheres foram admitidas a determinadas provas de, nomeadamente, golfe, tnis, tiro ao alvo, vela e patinagem. Em 1928, decidiu-se admitir a participao das mulheres nos Jogos Olmpicos e, a partir dessa data, a participao das mulheres evoluiu em sentido ascendente (Capinuss, 2007). Tambm em 1896, pensou-se que guerras, conflitos, rivalidades e uso da violncia seriam deixados de lado durante as Olimpadas. Imaginava-se que, durante a competio, reinariam o entendimento, a cooperao, o conhecimento mtuo e a solidariedade, o que nem sempre se tem verificado (Rubio, 2005). Dada a importncia e a visibilidade dos Jogos para as Naes no actual quadro global, estes tm sido usados, nos ltimos anos, como espao para confrontos polticos e reivindicaes, tal como se referenciou no captulo I.1 do presente estudo. No entanto, num exemplo de aproximao e reconciliao entre os povos, de que os Jogos Olmpicos pretendem ser smbolo, a Coria do Norte e a Coria do Sul, participaram nos Jogos Olmpicos de Sydney em 2000, e de Atenas em 2004, desfilaram nas cerimnias sob uma nica bandeira, havendo negociaes em estado avanado para que as duas participem a partir de 2008 constituindo uma nica delegao (Wikipdia, 2007). Porm, o mercantilismo, por sua vez, tomou conta dos Jogos Olmpicos, que se tornaram um negcio multimilionrio. A publicidade dos acessrios desportivos, transforma os atletas em homens-anncio. O marketing associa, descaradamente, o consumo de certos produtos aos Jogos Olmpicos e s modalidades nele inseridas. O Olimpismo era inicialmente sinnimo de amadorismo, uma espcie de amor pelo desporto. Contudo, durante o sculo XX, a competio foi cada vez mais alargada a atletas profissionais, tendo-se desde ento generalizado o profissionalismo dos competidores, observando-se assim que o princpio do amadorismo est desvirtuado do seu significado original no contexto desportivo, pois o atleta que representa uma nao tem vnculos com patrocinadores, compromissos com a imprensa, etc.

- 14 -

Durante muitos anos o princpio do amadorismo constituiu uma preocupao do COI, foi apenas veio a ser desconsagrado da Carta Olmpica de 1978 (Marivoet, 2007). At ento, ser acusado de profissional, principalmente em caso de vitria, significava para o atleta ficar sem os ttulos e a expulso do mundo olmpico. Gradualmente esta questo foi perdendo fora na medida em que os interesses econmicos envolvidos com os Jogos Olmpicos se tornaram inseparveis deles. Diante das propores grandiosas que o espectculo desportivo adquiriu j no era possvel para o poder pblico assumir todo o seu encargo. Fora isso, havia a inteno real de veiculao da imagem de empresas competio olmpica, cujos produtos estavam ligados directamente prtica desportiva, um mercado consumidor em crescente expanso (Rubio, 2005). Martin Polley, na sequncia da explicao do processo de passagem do amadorismo para o profissionalismo, afirma que:The growth of subventions, trust funds, appearance fees and marketing have created na elite who can make significant amounts of Money from the sport and its related commercial sector: and the beginnings of na occupational culture that we saw from the 1950s hs developed into a fully Professional culture, in which all leading athletes have agents, contracts, endorsement deals and media profiles.

(Polley, 2000: 107) Em suma, o idealismo e a pureza que Pierre de Coubertin desejava imprimir competio, mantendo o mesmo esprito da Olimpada grega que, alm do carcter competitivo, possua tambm um significado religioso, desapareceu ao longo dos anos, tal como se assistiu a grandes transformaes da sociedade.

I.3. TICA DO DESPORTO

A tica, seja no desporto ou em qualquer sector da sociedade, no se impe, aprende-se, tornando-se uma mais-valia para o indivduo na sua qualidade de vida e na relao com o outro. Assim, a preocupao de respeitar a tica tem vindo a aumentar na sociedade, em consonncia com o desenvolvimento dos povos e das naes. No entanto, como os seus princpios nem sempre so adquiridos, e por isso as prticas no os reproduzem, tambm no espao social desportivo, se assiste a comportamentos de quebra dos princpios ticos consagrados.

- 15 -

I.3.1. Concepes e Valores

Sem dvida que, o desporto transmite uma srie de valores, quer sejam prprios da sociedade em que est inserido, ou estabelecidos pelos seus intervenientes em cada momento histrico. De facto, o desporto exterioriza os valores culturais bsicos do meio em que se desenvolve, actuando assim como um meio de difuso cultural. Os valores enaltecidos na sociedade so tambm expressos no desporto, tais como a honestidade, a lealdade, a sinceridade, a limpidez de processos, a correco de atitudes, o respeito mtuo entre quem participa na competio desportiva, e o respeito inequvoco pelas regras de condutas cvicas e desportivas por parte de quem responsvel pela orientao desportiva. Contudo, estas tendem cada vez mais a serem irrelevantes e a estarem em vias de extino, como afirma Fernandes et al. (2003). Segundo Jorge Bento (1990), a tica do desporto est associada aos valores e ao moralmente bom, sendo ainda vista como a dignidade do homem. No entanto, as noes de desportivismo, tica do desporto ou valores desportivos, tambm so vistas como uma limitao aos esforos dos praticantes, no sentido de vencerem as competies em que participam. J Jorge Adelino (2006), afirma que a tica do desporto reside, essencialmente, na fora das convices de cada um, no carcter educativo e cultural das mudanas procuradas, que tm de tocar o ntimo de cada ser humano, aquilo em que ele verdadeiramente acredita. Ideias como as do respeito pelo adversrio, a recusa de situaes injustas de vantagem, a modstia no momento da vitria e o facto de se saber perder servem para se definir aquilo que melhor e mais civilizado, os limites razoveis dos esforos para vencer, procurando manter as emoes, associadas s vitrias e s derrotas, sempre sob controlo. Alguns autores definem as ideias acima transcritas como ideais de fair play, nomeadamente Otmar Weiss (2006), que afirma que o fair play est associado preservao da igualdade do adversrio ou da equipa adversria, a rigorosa adeso s regras, a renncia a vantagens injustificadas e a um comportamento honesto e honrado para com o adversrio. Marivoet (2006a), afirma ainda que fair play uma marca de camaradagem ou fraternidade, e est associado igualdade na competio com instncias de justia imparciais, lealdade e cooperao como pressupostos de uma convivncia fraternal entre os atletas. - 16 -

No dia-a-dia, constata-se que o desporto, sob aco de diversos factores, afastase, muitas vezes, da confirmao das suas potencialidades e do desempenho do seu papel formativo e educativo, pois na verdade, verifica-se, cada vez mais, um acrscimo significativo de situaes conflituosas, sendo a competio disputada margem das regras e dos regulamentos, decorrendo num envolvimento inadequado, sobretudo para crianas e jovens. No entanto, a prtica do desporto num quadro que respeite os princpios desportivos, pois, uma meta possvel de alcanar, embora bastante difcil, constituindo igualmente uma forma de procurar criar o respeito por valores determinados por uma esfera de aplicao muito mais ampla que o prprio mundo desportivo. Certamente, que todos estes aspectos tero que estar subjacentes a um rduo trabalho, onde os praticantes se submetero consciente e voluntariamente a uma prova para mostrar as suas capacidades, em que devem assumir uma atitude permanente de superao, aspecto indispensvel para dar valor ao acto desportivo e, ao mesmo tempo, mostrar respeito pelo adversrio e por si prprios. Mas, para reforar o valor do acto desportivo e dos seus resultados, necessrio que a conquista da vitria decorra dentro dos limites estabelecidos pelas regras, estando elas prprias em constante evoluo no sentido de garantirem igualdade de circunstncias e de contrariarem a ocorrncia de fraude e de violncia, existindo assim igualdade na competio. Segundo Jorge Adelino (2006), podemos entender a igualdade na competio associada funo do juiz ou do rbitro, que assegura o cumprimento das regras, de modo a garantir a igualdade de oportunidades e o sentido de justia na eleio do vencedor, assim como o respeito pelos adversrios, entendendo e respeitando a sua presena e funo no bom desenrolar de qualquer competio. Segunda esta perspectiva de anlise ou abordagem, e no que se refere aos valores desportivos, pode-se ento dizer, que estes so vistos como a alma do esprito desportivo, podendo este ser definido como:Um conjunto de normas prescritas, isto , constitutivas do desporto, e normas no prescritas nos cdigos desportivos que envolvem comportamentos de acordo com um cdigo de tica humano, que prescreve respeito, tolerncia, igualdade, entre outras formas de comportamento.

(Santos, 2006: 79)

- 17 -

Pode-se ento afirmar que a prtica desportiva pode proporcionar uma correcta transmisso de valores, pelo que a sua qualidade, est dependente das situaes que so criadas na prtica desportiva e sobretudo pelas atitudes e aces dos seus intervenientes. Tal como Leal afirma (1990: 130), a tica pode ser entendida numa perspectiva de um cdigo de valores, atitudes e comportamentos. As regras podem ser diferentes de desporto para desporto, mas os princpios que orientam a interaco desportiva so iguais para todos, isto , o respeito pelos outros ou fair play e a justia da competio implcita na igualdade de oportunidades. No entanto, o fair play comeou a publicitar-se, quando se chegou constatao que havia cada vez mais atitudes e aces nos desportistas aparte das regras pr-estabelecidas ou dos comportamentos esperados, aces estas que eram muitas vezes repostas pessoais traduzidas em violncia para com o adversrio, ou aces baseadas no puro interesse de ganhar sem a observao de qualquer tipo de princpios. Como refere Weiss (2006: 53), para manter o verdadeiro fascnio do desporto, vital sublinhar o princpio de que prefervel o fair play vitria a qualquer preo. Para ultrapassar os comportamentos que no olham a meios para artingir determinados fins, ser necessrio cultivar um conjunto de actividades que devero ser apresentadas aos desportistas. A primeira passa claramente pelo convvio honesto e sincero com o adversrio fora do jogo desportivo. O cultivo da amizade e da empatia poder permitir o ultrapassar de comportamentos em que se procura vencer a todo o custo. A segunda actividade passa pelo valorizar o princpio de honra nos cdigos de fair play desportivo. Para a afirmao deste princpio necessrio uma bsica formao aos prprios desportistas das regras de um jogo, que sero encaradas como mximo principio do prprio jogar (Martins, 2005). Relativamente a este assunto, Carlos Gonalves afirma que para se prevenir a perda de fair play deve-se atribuir grande importncia formao dos intervenientes desportivos. Relativamente ao deporto escolar, o autor afirma mesmo que a valorizao das componentes formativa e educativa das prticas desportivas dever constituir uma preocupao prioritria em todas as actividades (Gonalves, 2006: 110). Em concluso, como afirma Weiss (2006: 64), o papel do fair play no seio do desporto , portanto, de altssima importncia, podendo ser interpretado como o princpio moral do desporto.

- 18 -

I.3.2. Princpios Consagrados

Os princpios ticos do desporto consagrados, encontram-se na regulamentao desportiva, nomeadamente na Carta Olmpica e nos estatutos e cdigos das organizaes desportivas internacionais e nacionais, em cartas ou convenes emanadas de espaos de concertao inter-governamental, como constitui exemplo o Conselho da Europa e a Unio Europeia e decorrentemente nos quadros legais nacionais.

I.3.2.1. Carta Olmpica e Cdigo de tica do COI

A Carta Olmpica constitui o dispositivo regulamentar, que define os princpios e o funcionamento da estrutura associativa dirigida pelo Comit Olmpico Internacional (COI). Nos princpios fundamentais consagrados na Carta Olmpica em vigor desde 7 de Julho de 2007 (v. Quadro I), o jbilo do esforo constitui um valor educativo na exaltao harmoniosa das qualidades do corpo, a vontade e o esprito. Expressa-se ainda o respeito pelos princpios ticos fundamentais universais, tendo em vista promover uma sociedade pacfica e comprometida com a salvaguarda da dignidade humana. Elevando o desporto categoria de direito humano, a Carta define o princpio da igualdade de acesso (por isso a rejeio de qualquer tipo de discriminao); e ainda o princpio da independncia das organizaes desportivas na organizao, administrao e gesto; estabelecendo-se a cooperao na base do esprito olmpico (compreenso mtua, amizade, solidariedade e fair play).

- 19 -

Quadro I - Princpios Fundamentais do Olimpismo consagrados na Carta Olmpica 1. Olympism is a philosophy of life, exalting and combining in a balanced whole the qualities of body, will and mind. Blending sport with culture and education, Olympism seeks to create a way of life based on the joy of effort, the educational value of good example and respect for universal fundamental ethical principles.

2.

The goal of Olympism is to place sport at the service of the harmonious development of man, with a view to promoting a peaceful society concerned with the preservation of human dignity. The Olympic Movement is the concerted, organised, universal and permanent action, carried out under the supreme authority of the IOC, of all individuals and entities who are inspired by the values of Olympism. It covers the five continents. It reaches its peak with the bringing together of the worlds athletes at the great sports festival, the Olympic Games. Its symbol is five interlaced rings. The practice of sport is a human right. Every individual must have the possibility of practising sport, without discrimination of any kind and in the Olympic spirit, which requires mutual understanding with a spirit of friendship, solidarity and fair play. The organisation, administration and management of sport must be controlled by independent sports organisations. Any form of discrimination with regard to a country or a person on grounds of race, religion, politics, gender or otherwise is incompatible with belonging to the Olympic Movement. Belonging to the Olympic Movement requires compliance with the Olympic Charter and recognition by the IOC.

3.

4.

5.

6.

Fonte: Carta Olmpica de 7 de Julho de 2007, p. 11 (verso inglesa).

No final do sculo XX, foram criadas, no mbito das organizaes desportivas, comisses de tica responsveis pelo cumprimento de cdigos de tica entretanto criados, procedimento que foi iniciado pelo COI em Maro de 1999 com a aprovao do IOC Code of Ethics revisto em 2003, (Marivoet, 2007). O cdigo estabelece a salvaguarda da dignidade dos atletas como um princpio fundamental do Olimpismo, referindo concretamente a rejeio a qualquer forma de discriminao, ou qualquer dano fsico ou mental (onde se inclui a dopagem), a integridade de todos os membros, entre outras matrias relativas organizao e acolhimento dos Jogos Olmpicos.

I.3.2.2. Cdigo de tica do Conselho da Europa (CE)

Em 1992, durante a 7. Conferncia dos Ministros do Desporto dos Estados-Membros do CE, em Rhodes, foi aprovado o Cdigo da tica do Desporto (v. Quadro II). - 20 -

O Cdigo da tica no desporto do Conselho da Europa defende o fair play, constituindo uma declarao de inteno aceite pelos ministros europeus responsveis pelo desporto. Partindo do princpio que as consideraes ticas que esto na origem do fair play no so um elemento facultativo, mas algo essencial a toda a actividade desportiva, toda a poltica e toda a gesto no domnio do desporto, e que se aplicam a todos os nveis de competncia e de envolvimento da actividade desportiva.Quadro II - Excertos do Cdigo de tica do CE INTRODUO 3. O Cdigo fornece um slido quadro tico destinado a combater as presses exercidas pela sociedade moderna, presses estas que se revelam ameaadoras para os fundamentos tradicionais do desporto, os quais assentam no fair play, no esprito desportivo e no movimento voluntrio. AS INTENES DO CDIGO 4. O Cdigo est essencialmente centrado no "fair play" nas crianas e nos adolescentes, que sero os praticantes e vedetas do desporto de amanh. No entanto, o Cdigo dirige-se s instituies e aos adultos que tm uma influncia directa ou indirecta sobre o envolvimento e a participao dos jovens no desporto. 5. O Cdigo engloba a noo do direito das crianas e dos adolescentes de praticar um desporto e dele tirar satisfao, e a noo da responsabilidade das instituies e dos adultos como promotores do "fair play" e garantias do respeito destes direitos. Fonte: Cdigo de tica do Desporto, Conselho da Europa, 1992

I.3.2.3. Outros Cdigos e Convenes Internacionais Ainda que sem poderes vinculativos, o Comit Director do Desenvolvimento do Desporto (CDDS) do CE, dinamizou junto dos Estados-Membros a concertao de polticas que visaram a cristalizao dos princpios ticos do desporto moderno em dispositivos legais introdutrios de quadros sancionatrios, de modo a salvaguard-los, e a prevenir ocorrncias ou prticas que lhes fossem atentatrias. Neste sentido, a concertao inter-Governamental (entre os Ministros do Desporto dos Estados-Membros) no espao do CDDS do CE assumiu a forma de Cartas (Carta do Desporto para Todos de 1975 revista pela Carta do Desporto de 1992, e a Carta Europeia contra a Dopagem no Desporto de 1984), de Convenes (Conveno Europeia Contra a Violncia no Desporto e os Excessos dos Espectadores por Ocasio das Manifestaes Desportivas e Nomeadamente de Jogos de Futebol de 1985; e em substituio da Carta de 1984 a Conveno Europeia contra a Dopagem no Desporto de

- 21 -

1989), bem como a aprovao do Cdigo de tica do Desporto em 1992 (Marivoet, 2007). Como refere a autora, para alm do cdigo de tica atrs referido, em 1992, assistiu-se tambm aprovao do Cdigo de Conduta Antidopagem nas Actividades Desportivas, Resoluo do Conselho e dos Representantes dos Governos dos EstadosMembros reunidos no Conselho. Em 1997, a Unio Europeia veio a estabelecer igualmente linhas de acuao das polticas desportivas europeias, atravs da Declarao n. 29 adoptada pela Conferncia relativa ao desporto, anexa ao Tratado de Amesterdo, em que decorrentemente da liberdade associativa na sociedade civil se reconhece o princpio da independncia do movimento associativo desportivo no espao da Unio Europeia (EU). Na sequncia do Tratado de Amesterdo, a Presidncia da UE aprovou a Declarao de Nice em 2000, que expressa claramente a importncia que atribui autonomia das organizaes desportivas e ao seu direito auto-organizao atravs de estruturas associativas adequadas, entre outros princpios ticos e valores a veicular atravs do desporto. No Conselho Europeu de Nice, foi igualmente aprovada a Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia (Marivoet, 2007). Entretanto, em 2003, a mesma autora refere a criao do World Anti-Doping Code (WADC) da World Anti-Doping Agency/Agncia Mundial Antidopagem (WADA/AMA, onde se define dopagem como a violao das normas antidopagem enunciadas, isto , grosso modo, a utilizao ou tentativa de utilizao de uma substncia (ou da sua quantidade) ou de um mtodo identificado nas listas proibidas da WADA/AMA, e ainda as substncias proibidas em desportos particulares. Ainda em 2003, a Associao Internacional de Federaes de Atletismo adoptou o IAAF Code of Ethics, que segundo Marivoet (2007), constituiu uma verso adaptada do cdigo de tica do COI, concretamente o fair play como o princpio bsico de orientao do atletismo. No ano seguinte, igual procedimento foi seguido pela Unio Ciclista Internacional com a adopo do UCI Code of Ethics. Em 2004, a FIFA aprovou tambm o seu cdigo de tica, revisto dois anos depois com a aprovao do FIFA Code of Ethics Conduct Regulations a 5 de Setembro de 2006.

- 22 -

I.3.2.4. Princpios ticos do Desporto Consagrados na Legislao Portuguesa

A legislao nacional sobre o desporto encontra-se enquadrada pelos princpios constitucionais definidos no artigo 79. (Cultura fsica e desporto) da Constituio da Repblica Portuguesa (v. Quadro III).

Quadro III Artigo 79. da Constituio da Repblica Portuguesa 1 Todos tm direito cultura fsica e ao desporto. 2 Incumbe ao Estado, em colaborao com as escolas e as associaes e colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prtica e a difuso da cultura fsica e do desporto, bem como prevenir a violncia no desporto. Fonte: Constituio da Repblica Portuguesa (stima reviso constitucional - 2005)

Em 1990, o Estado Portugus define em decreto-lei, o princpio da igualdade de acesso na prtica desportiva, decorrente do princpio constitucional do direito ao desporto. Para isso, promulgou a Lei de Bases do Sistema Desportivo, sendo esta posteriormente revista e alterada em 1996. Actualmente, vigora a Lei n.5/2007 de 16 de Janeiro, denominada Lei de Bases da Actividade Fsica e do Desporto (v. Quadro IV). Nos princpios fundamentais ou gerais das respectivas leis de base,Quadro IV - Excertos da Lei de Bases da Actividade Fsica e do Desporto - 16 de Janeiro de 2007 Captulo I (Objecto e princpios gerais) Artigo 2. (Princpio da universalidade e da igualdade) 1 Todos tm direito actividade fsica e desportiva, independentemente da sua ascendncia, sexo, raa, etnia, lngua, territrio de origem, religio, convices polticas ou ideolgicas, instruo, situao econmica, condio social ou orientao sexual. 2 A actividade fsica e o desporto devem contribuir para a promoo de uma situao equilibrada e no discriminatria entre homens e mulheres Captulo II (Polticas pblicas) Artigo 6. (Promoo da actividade fsica) 1 Incumbe ao Estado, s Regies Autnomas e s autarquias locais, a promoo e a generalizao da actividade fsica, enquanto instrumento essencial para a melhoria da condio fsica, da qualidade de vida e da sade dos cidados.

- 23 -

I.3.3. Quebra de Princpios Muitas das chamadas doenas do desporto moderno so atribudas importncia excessiva que dada s vitrias por aqueles que nele se encontram envolvidos. O aparecimento do doping (em portugus dopagem), da violncia, das injrias aos rbitros, do fazer batota, das agresses entre os praticantes deste modo originado pelo reforo do conceito de que a vitria a nica coisa que interessa, colocando de parte os valores inerentes tica do desporto. Vrios so os autores que apresentam os comportamentos que levam quebra de princpios da tica do desporto. Como exemplo, Eckhard Meinberg, no seu artigo intitulado Para uma nova tica do Desporto, refere-se dopagem, violncia e corrupo, afirmando que:Quase todas as modalidades desportivas tm, no obstante os esforos em contrrio, o seu maior ou menor escndalo de doping; () Na proximidade do culto do doping e das injeces surgem sempre as corrupes e as actividades de bastidores a elas associadas. Alm disso merece crtica a brutalidade crescente dos actores, pelo que agresso e dominao no constituem estados de excepo no desporto.

(Meinberg, 1990: 72)

Carlos Gonalves, no seu artigo intitulado tica e Fair Play: Contributos para uma Valorizao Qualitativa das Prticas Desportivas, refere, tal como Eckhard Meinberg, a dopagem, a violncia e a corrupo como comportamentos de quebra de princpios, acrescentando ainda a quebra de fair play e o racismo e a xenofobia.Assiste-se multiplicao de casos de corrupo, ao mercantilismo dos atletas, ao uso frequente da violncia, verbal e fsica, ingesto de substncias dopantes cada vez mais sofisticadas, ao abandono progressivo dos princpios e valores inerentes ao fair play, ao aumento despudorado do casos de racismo e xenofobia nos terrenos desportivos.

(Gonalves, 2006: 94)

Na literatura, a violncia aparece frequentemente ligada quebra de princpios, e o desporto parece ser quase a nica actividade em que a violncia controlada e testemunhada por um pblico se oferece como parte integrante de uma competio. No entanto, no devemos responsabilizar exclusivamente o fenmeno desportivo pela violncia verificada nos seus recintos, uma vez que os desvios comportamentais verificados na sociedade, resultantes de conflitos sociais vigentes (falta de emprego, invaso dos grandes centros urbanos por parte das populaes rurais, falta de

- 24 -

expectativas futuras para os jovens, etc.), contribuem para um acrscimo da violncia no desporto, visto que todas as frustraes acumuladas so transferidas para o recinto desportivo (Monteiro, 1997). Relativamente a este assunto, Lus Arajo, no seu artigo intitulado tica, sociedade contempornea e desporto, afirma mesmo que:O que acontece de negativo no desporto se traduz no triunfo da agressividade e da violncia, explcitas ou disfaradas, que potenciam uma concepo competitiva da vida, simbolicamente comparvel vontade de domnio de que nos falou Nietzsche, que no seu paroxismo conduz experincia da guerra que, por sua vez, faz prevalecer a destruio fsica e a submisso do adversrio, transformando em inimigo a abater.

(Gonalves, 2006: 94) Entre a literatura constata-se tambm que os autores apresentam vrias razes que levam ao enfraquecimento da tica do desporto. Os autores referem que estas razes de enfraquecimento esto associadas s mudanas sociais, exacerbao da vitria, formao ou carcter pessoal, e s presses e influncias exercidas sobre os intervenientes do desporto. Relativamente a este assunto, vrias so as citaes de autores que suportam esta afirmao, nomeadamente:J no uma multido hiante que no estdio olmpico est suspensa do feito do atleta a exigir-lhe que bata o ltimo recorde. o mundo que, ferozmente vido da ultrapassagem, com os olhos postos na televiso, vai ensalmando os atletas: mais depressa mais alto mais longe E, violentando os limites do corpo, o atleta realiza o portento que o metamorfoseia num hbrido de humano e divino.

(Feio, 1990: 53)Um certo dia, aps mais uma exploso de raiva mais intensa, o seu treinador mandou-o para casa durante duas semanas, dizendo-lhe que, se decidisse voltar, um novo episdio como aquele levaria sua expulso do clube.

(Adelino, 2006: 170)A chegada ao desporto, e em especial a determinadas modalidades, dos agentes atletas veio, em alguns casos especficos, aumentar a predisposio para a utilizao de substncias ou mtodos dopantes.

(Horta, 2006: 234)Quanto mais uma modalidade est profissionalizada, maior nfase se d vitria () e quanto mais importantes forem as consequncias econmicas, ou outras, de uma vitria, maior ser a probabilidade de se violarem as regras do desporto a favor de outros interesses.

(Weiss, 2006: 59)

- 25 -

Face a estas dinmicas do mundo desportivo, bem como as razes que as proporcionaram, h necessidade de se intervir e assim prevenir e controlar os comportamentos que levam quebra dos princpios da tica do desporto. Na literatura, comum encontrar-se como medidas de preveno e controle as medidas ligadas formao e ao ensino, regulamentao e punio e sano. Relativamente a esta temtica, e como exemplo, os autores afirmam que:Reconhece-se que os aspectos ticos derivados de um cdigo deontolgico dos treinadores tem sido um aspecto praticamente descurado nos seus programas de formao, pelo que importar conceder-lhes a importncia devida.

(Gonalves, 1990: 99)

O esprito desportivo entendido na perspectiva de um cdigo tico de valores, atitudes e comportamentos, deve fazer parte do processo educativo e formativo dos jovens, considerando o valor cultural do desporto.

(Leal, 1990: 131)

Os factos parecem apontar para uma tendncia na mobilizao das instncias polticas no estabelecimento de espaos de concertao com vista definio de compromissos, bem como de aces legislativas que lhe atribuem poderes de fiscalizao, preveno e sano dos actos que colocam em causa os princpios ticos consagrados.

(Marivoet, 2006a: 17)

Os treinadores, dirigentes, atletas e media devem estimular os atletas a envolver-se em actividades de interesse social e punir os que realizem actos de agresso e violncia.

(Serpa, 2006: 123)

Concluindo, pode-se afirmar que no dia-a-dia, os valores podem ser expressos como a realidade desejvel de atingir. Sendo assim, no desporto, podem incluir-se no s os critrios de xito, como o alcanar de objectivos, a vitria ou o jogar bem, mas tambm, o fair play como princpio da tica do desporto ou o esprito desportivo, aspectos inerentes qualidade da interaco ocorrida durante a prtica desportiva.

I.4. A PROBLEMTICA DA TICA DO DESPORTO NOS ESPAOS DE DEBATE

Como se comeou por referir na Introduo do presente trabalho, pretende-se aprofundar os contedos das reflexes da tica do desporto de forma a compreender-se melhor como estes tm vindo a ser abordados. - 26 -

A tica, seja na actividade desportiva ou em qualquer ramo da sociedade, no se impe, pois adquirida, isto , aprende-se. No entanto, nem sempre os princpios ticos so aculturados, no se encontrando uma adequao das prticas nos diferentes espaos sociais, como tambm constitui exemplo o desportivo. Segundo Marivoet (2006a), a tica, enquanto realidade sociolgica, poder ser observada na determinao que os princpios fundamentais orientadores da aco num dado contexto histrico exercem nas formas de cooperao ou solidariedade, nos usos e costumes que decorrentemente se estabelecem ao nvel das regras de conduta. Vrias so as tentativas de definir e estabelecer medidas que levem ao fortalecimento dos princpios ticos consagrados no desporto, pois inmeros so os regulamentos, cdigos e dispositivos legais existentes. Mas, as questes da tica no so tanto a da criao de cdigos e documentos sobre o tema, mas sim o modo como os actuais se aplicam e se analisam no quotidiano, influenciando os valores e as crenas de cada um. Para Marivoet, a tica do desporto, bem como os conflitos a que ela se encontram associados, nomeadamente a quebra dos seus princpios, no poder ser dissociada das mudanas de valores que se tm vindo a tornar visveis nas sociedades ocidentais (Marivoet, 2006a: 35). A autora refere ainda, que a tica tender a assumir novos contornos quando se verificam profundas mudanas sociais (Marivoet, 2006a: 12). Na medida em que a tica implica um conjunto de regras ou normas que tornam mais claro e suportvel a convivncia, no s da pessoa para consigo mesma, mas sobretudo de si para com os outros, tem que se considerar o desporto como uma actividade muito especial neste campo. Com efeito, no desporto, as regras so seguramente um princpio que o tornam a si mesmo vivel. No h prtica desportiva sem uma dada orientao, pois existem sempre objectivos e rumos, que fazem do desporto uma actividade de desafio ou de confronto controlado. Como vrios autores tm referido, o desporto tem vindo a registar alteraes ao longo do tempo nomeadamente a diferenciao das prticas ou actividades e a radicalizao dos interesses em prol da vitria nos quadros competitivos (Bento, 1990; Gonalves, 1990; Marivoet, 2006; Serpa, 2006; Weiss, 2006). Ainda assim, grande parte dos autores refere os princpios ticos do desporto moderno, reafirmando a importncia da sua preservao (Arajo, 1990; Constantino, 1990; Costa, 1990; Feio, 1990; Gonalves, 2006; Grande, 1990; Marivoet, 2006; Santos, 2006). - 27 -

Porm a importncia da vitria tem levado procura de todos os meios para se atingir os fins colocando em causa os comportamentos ticos do desporto. Nestes comportamentos, encontra-se a dopagem, como referem nomeadamente Eckhard Meinberg (1990), Carlos Gonalves (2006) e Lus Horta (2006). No conjunto dos comportamentos de quebra dos princpios ticos surge ainda a violncia, quer entre os atletas (Arajo, 1990; Gonalves, 2006; Serpa, 2006), quer tambm ao nvel dos adeptos ou do pblico em geral (Leal, 1990; Marivoet, 2006; Weiss, 2006). O racismo e a xenofobia so tambm comportamentos referenciados pelos autores, nomeadamente por Noronha Feiro (1990), Carlos Gonalves (2006) e por Salom Marivoet (2006). Face a esta situao, assiste-se procura de medidas que procedam preveno e ao controle destes comportamentos de quebra, nomeadamente a regulamentao, tendo em vista o cumprimento dos dispositivos normativos existentes, quer ao nvel das organizaes desportivas, quer dos dispositivos legais. No entanto, so vrios os autores chamados ao debate neste captulo que referem a importncia da formao como medida de preveno e controle, como por exemplo Carlos Gonalves (1990), Silva Leal (1990) e Lus Horta (2006).

I.4.1. Objecto de Estudo

Tendo em conta as limitaes temporais e de recursos inerentes a este tipo de trabalhos, houve necessidade de delimitar a anlise do problema em estudo. Sendo assim, definiuse como objecto de estudo que, o debate da tica tem vindo a centrar-se na reafirmao dos valores e princpios do desporto moderno e a necessidade da sua preservao, nas mudanas que percorrem as sociedades contemporneas, suas implicaes na quebra dos princpios ticos do desporto, sano das infraces e preveno.

I.4.2. Definio de Hipteses

No sentido de se aprofundar o objecto de estudo enunciado, foram traadas trs hipteses de investigao. A primeira sugere que no existe uma concordncia terminolgico-conceptual nos discursos acerca dos valores e princpios da tica do desporto (H1); Como segunda hiptese, considermos que os diferentes

comportamentos de quebra de princpios tm vindo a alterar-se no espao de debate ao longo do tempo, assim como as razes que levaram a tais prticas no so tratadas de - 28 -

igual forma (H2); A terceira hiptese sugere que a tnica dos discursos tem vindo a centrar-se mais na necessidade do incremento da dimenso formativa do desporto, do que na sano decorrente dos dispositivos normativos, ou mesmo na regulamentao existente (H3).

- 29 -

- 30 -

II METODOLOGIA

- 31 -

- 32 -

II METODOLOGIA

Neste captulo ser apresentada a metodologia utilizada no desenvolvimento da presente investigao, decorrente do objecto de estudo definido. Assim, ser exposto o modelo de anlise e os instrumentos de recolha de informao, bem como a caracterizao do universo e da amostra em estudo.

II.1. MODELO DE ANLISE DESAGREGADO

Com base nos contributos dos autores consultados, definiu-se no captulo anterior a problemtica, o objecto de estudo e as hipteses de investigao. Tendo em vista a verificao das hipteses levantadas, foram definidas cinco grandes dimenses Valores e Princpios; Comportamentos de Quebra de Princpios; Razes do Enfraquecimento da tica do Desporto Moderno; Preveno e Controle; Perodo Temporal -, desagregadas em variveis e indicadores de acordo com as recomendaes de Quivy e Campenhoudt (1992). No quadro V, na pgina seguinte, esto delimitadas as variveis desagregadas em indicadores, bem como as cinco dimenses em que se encontram agrupadas, tal como acima referimos.

- 33 -

Quadro V Dimenses, Variveis e Indicadores

DIMENSES

VARIVEIS

INDICADORES

1. Valores e Princpios

2. Comportamentos de Quebra de Princpios

1.1. Olimpismo 1.2. tica do Desporto 1.3. Fair Play 1.4. Igualdade na Competio 1.5. Autonomia do Movimento Associativo Desportivo 1.6.Excelncia 1.7. Esprito Desportivo 1.8. Verdade Desportiva 2.1. Violncia 2.2. Racismo e Xenofobia 2.3. Dopagem 2.4. Corrupo 2.5. Quebra de fair play/Jogo sujo 3.1. Mudanas Sociais 3.2. Exacerbao da Vitria 3.3. Formao Pessoal/Carcter Pessoal 3.4. Presses/Influncias 4.1. Formao/Ensino 4.2.1. Cdigos de Conduta 4.2.2. Dispositivos Normativos 4.2.3. Disciplina 3.1.1. Econmico 3.1.2. Sucesso/Fama 3.1.3. Supremacia

3. Razes do Enfraquecimento da tica do Desporto Moderno

4. Preveno e Controle 4.2. Regulamentao 4.3. Punio/Sano 5.1. Primeira Publicao 5.2. ltima Publicao

5. Perodo Temporal

II.2. INSTRUMENTOS DE RECOLHA DE INFORMAO

Para se analisarem as variveis definidas, foram elaboradas grelhas de anlise, de forma a se poder estudar o contedo descrito na literatura, e assim se aprofundar os contedos das reflexes da tica do desporto, tendo em vista uma melhor compreenso de como estes tm vindo a ser abordados.

- 34 -

II.2.1. Procedimentos na Anlise de Contedo em Literatura

A anlise de contedo hoje uma das tcnicas comuns na investigao emprica realizada nas diferentes cincias sociais. Berelson (1954, Ap. Bardin, 2006) definiu a anlise de contedo como uma tcnica de investigao que permite a descrio objectiva, sistemtica e quantitativa do contedo manifesto da comunicao. Bardin (2006), resume o objectivo da anlise de contedo, ao explicitar que o termo anlise de contedo um conjunto de tcnicas de anlise das comunicaes visando obter, por procedimentos, sistemticos e objectivos de descrio do contedo das mensagens, indicadores que permitam a inferncia de conhecimentos relativos s condies de produo/recepo dessas mensagens. A abordagem de anlise de contedo tem por finalidade, a partir de um conjunto de tcnicas parciais, mas complementares, explicar e sistematizar o contedo da mensagem e o significado desse contedo. Para isso necessrio analisar cuidadosamente o texto, passando-o por um processo de identificao e classificao de termos, procurando identificar as frequncias ou ausncias de itens, ou seja, categorizar. A escolha dos critrios de classificao depende daquilo que se procura ou que se espera encontrar, bem como da experincia e conhecimento do indivduo que se encontra a realizar esse trabalho (DUrung, 1974). Pode dizer-se que a anlise de contedo um conjunto de tcnicas de explorao de documentos que procura identificar os principais conceitos ou os principais temas abordados num determinado texto. Comea-se, geralmente, por uma leitura atravs da qual, o pesquisador estabelece vrias relaes de ideias, termos e conceitos, entre o texto analisado e as suas prprias anotaes, at que comecem a surgir os contornos das suas primeiras unidades de registo. Estas unidades de registo, palavras ou conjunto de palavras vo formando temticas e so definidas passo a passo, conduzindo o pesquisador na procura das informaes contidas no texto. O objectivo de toda a anlise de contedo o de assinalar e classificar de forma exaustiva e objectiva todas as unidades de registo existentes no texto. A definio precisa e a ordenao rigorosa destas unidades de registo ajudaro o pesquisador a controlar as suas prprias perspectivas, ideologias e crenas, ou seja, controlar a sua prpria subjectividade, mantendo-se imparcial na anlise do texto. O objectivo final da anlise de contedo fornecer indicadores teis aos objectivos da pesquisa. O - 35 -

pesquisador poder assim interpretar os resultados obtidos relacionando-os ao prprio contexto de produo do documento. Segundo Bardin, (2006), para se efectuar uma anlise de contedo, existem condies a ter em conta, nomeadamente: i) os dados de que dispe o pesquisador encontram-se j dissociados da fonte e das condies gerais em que foram produzidos; ii) o pesquisador coloca os dados num novo contexto que constri com base nos objectivos e no objecto da pesquisa; iii) para proceder a inferncias a partir dos dados, o pesquisador recorre a um sistema de conceitos analticos cuja articulao permite formular as regras da inferncia. A anlise de contedo oferece um modelo experimental bem definido, que parte de uma concepo orientada ao entendimento do objecto de estudo. A anlise de contedo trata ento da decomposio de um discurso e da elaborao de um discurso novo atravs da utilizao de traos de significao, resultado de uma relao entre as condies de produo do discurso a analisar, e as condies de produo da anlise.

II.2.2. GRELHAS DE ANLISE

Tendo em conta as recomendaes descritas no ponto anterior, foram construdas quatro grelhas de anlise com vista operacionalizao das hipteses estabelecidas (v. Anexos A e B). Para verificao da hiptese 1 (no existe uma concordncia terminolgicoconceptual nos discursos acerca dos valores e princpios da tica do desporto), foi construda uma grelha para avaliar a dimenso Valores e Princpios (v. Anexos A e B, Quadro 2). Esta grelha tem como objectivo analisar os conceitos, noes e terminologia dos discursos apresentados pelos autores, sendo descritas citaes dos autores em relao s variveis da primeira dimenso. Para isso, foram lidos os textos da nossa amostra e transcritas as citaes para a grelha. Na operacionalizao da hiptese 2 (os diferentes comportamentos de quebra de princpios tm vindo a alterar-se no espao de debate ao longo do tempo, assim como as razes que levaram a tais prticas no so tratadas de igual forma), foram construdas duas grelhas. Na primeira, pretendeu-se estudar os comportamentos de quebra de princpios, referenciando-se qual a percentagem de abordagem dos autores em relao a cada comportamento, tendo-se contado o nmero de linhas do texto que os autores - 36 -

dedicaram a esse assunto, sendo posteriormente esse nmero convertido para percentagem (v. Anexos A e B, Quadro 3). Relativamente segunda grelha de operacionalizao da hiptese 2, forma analisadas as razes do enfraquecimento da tica do desporto. Atravs de um sistema de cruzes, pretendeu-se apenas fazer o registo da meno ou no dessas mesmas razes, por parte dos autores (v. Anexo A e B, Quadro 4). Por fim, para a operacionalizao da hiptese 3 (a tnica dos discursos tem vindo a centrar-se mais na necessidade do incremento da dimenso formativa do desporto, do que na sano decorrente dos dispositivos normativos, ou mesmo na regulamentao existente), foi construda uma grelha de anlise das medidas de preveno e controle referidas pelos autores. Deste modo, com o objectivo de se verificar qual o espao de debate que os autores dedicaram aos conceitos inerentes a esta temtica, contou-se o nmero de linhas do texto que os autores lhe dedicaram, sendo posteriormente esse nmero convertido para percentagem (v. Anexo A e B, Quadro 5). Aps ter sido efectuado o preenchimento das grelhas, foram calculadas as mdias e os desvios padres, sendo estes clculos adicionados s grelhas, e posteriormente construdos os quadros de apuramento que deram origem aos quadros de resultados ou grficos, levados ao texto no captulo III (v. Anexo C).

II.3. UNIVERSO E AMOSTRA

Como universo de anlise, escolhemos as colectneas publicadas no nosso pas, em que a tica do desporto se encontrou como tema central de debate, identificadas no quadro 2, na pgina seguinte (v. Quadro VI).

- 37 -

Quadro VI Colectneas de tica do Desporto publicadas em Portugal

TTULO

ANO

ENTIDADE ORGANIZADORA

AUTORESNuno Grande Jorge Bento Lus Arajo Noronha Feio Antnio Costa Eckhard Meinberg J. Manuel Constantino Carlos Gonalves Corlia Vicente Hans-Joachim Appell Ovdio Costa Silva Leal Francisco Sobral Erwin Hahn Carlos Gonalves Jos Gomes Pereira Jos Barata Moura Salom Marivoet Vitor Pereira Vitor Ferreira Gyrgy Szilgyi Jaume Cruz Antnio de Paula Brito Jorge Proena Anbal Justiniano Joo Boaventura J. Manuel Constantino David Sequerra Jos Braz J. Manuel Constantino Jorge Proena Manoel Gomes Tubino Jorge Crespo Manuel Brito Jorge Olmpio Bento Jos Brs Carlos Gonalves Jaume Cruz Feliu Teotnio Lima Olmpio Coelho Antnio Santos Carlos Gonalves Jorge Adelino Lieke Vloet Lus Horta Otmar Weiss Salom Marivoet Sidnio Serpa

Desporto, tica, Sociedade

1990

Universidade do Porto Faculdade de Cincias do Desporto e de Educao Fsica

Desporto de Alta Competio. Que FairPlay? III Seminrio Europeu sobre Fair-Play

1997

Cmara Municipal de Oeiras (Movimento Europeu para o Fair-Play)

Olimpismo, Desporto e Educao

1998

Universidade Lusfona

O Desporto, a Educao e os Valores por uma tica nas actividades fsicas e desportivas

2005

Universidade Lusfona

tica e Fair Play novas perspectivas, novas exigncias

2006

Confederao do Desporto de Portugal

Como o universo de anlise um pouco vasto, face aos recursos temporais disponveis para a elaborao do presente estudo, foram seleccionadas duas colectneas para constituir a amostra do nosso estudo de caso. As colectneas seleccionadas foram a

- 38 -

primeira a ser publicada no nosso pas Desporto, tica, Sociedade (1990) e a mais recente tica e Fair Play novas perspectivas, novas exigncias (2006) j que nos interessou fazer uma anlise ao longo do tempo, ou seja, uma comparao relativamente s mudanas em termos longitudinais. A amostra compreendeu um total de 21 autores, correspondendo 62% da nossa amostra aos da colectnea de 1990 (13), e 38% os da de 2006 (8), (v. Grfico 1).Grfico 1 Amostra

8; 38%

13; 62%

Colectnea de 1990

Colectnea de 2006

- 39 -

- 40 -

III ANLISE DOS DISCURSOS ACERCA DA TICA DO DESPORTO

- 41 -

- 42 -

III ANLISE DOS DISCURSOS ACERCA DA TICA DO DESPORTO

Atravs do presente estudo pretende-se compreender, como tm vindo a ser abordados os contedos das reflexes da tica do desporto. Neste sentido, com base na reviso bibliogrfica de que se deu conta no Captulo I, definiu-se como objecto de estudo que, o debate da tica tem vindo a centrar-se na reafirmao dos valores e princpios do desporto moderno e a necessidade da sua preservao, nas mudanas que percorrem as sociedades contemporneas, suas implicaes na quebra dos princpios ticos do desporto, sano das infraces e preveno. No sentido de se aprofundar o objecto de estudo traado, formulmos trs hipteses, tendo-se definido um conjunto de pressupostos metodolgicos na sua operacionalizao, tal como vimos no captulo anterior, e consequentemente sido construdas as grelhas e os respectivos quadros de anlise (v. Anexos A e B). Uma vez preenchidas as grelhas com a informao retirada das colectneas seleccionadas para o presente estudo de caso, construmos os quadros de anlise que permitem organizar a informao, procedendo-se aos clculos necessrios anlise dos resultados, em Excel, tendo em vista a discusso das hipteses de estudo, como se passa a apresentar no presente captulo. Este captulo estar dividido em trs grandes sub-pontos, sendo que cada um pretende dar resposta a uma das hipteses formuladas.

III.1. NOES, CONCEITOS E TERMINOLOGIA A primeira hiptese pressupunha, que no existiria uma concordncia terminolgicoconceptual nos discursos acerca dos valores e princpios da tica do desporto. Com vista discusso desta primeira hiptese, ir-se-o analisar as noes, conceitos ou terminologia subjacentes aos discursos dos autores, sendo estes agrupados em quatro pequenos grupos de anlise. No primeiro grupo sero analisados os conceitos ou noes de tica do desporto, esprito desportivo e olimpismo, no segundo o de fair play, no terceiro os de verdade desportiva e igualdade na competio, e finalmente, no quarto grupo, sero analisados os de excelncia e autonomia do movimento associativo desportivo.

- 43 -

III.1.1. Olimpismo, tica do Desporto e Esprito Desportivo

Algumas colectneas associam usualmente a tica do desporto ao olimpismo, como constitui exemplo a colectnea Olimpismo, Desporto e Educao (1998), da a introduo do termo olimpismo na nossa anlise. Relativamente ao termo olimpismo, constata-se que, apenas um dos autores analisados apresentou a sua definio (v. Quadro 2, no Anexo A). Trata-se de Silva Leal, no seu artigo intitulado Fronteiras entre a tica mdica e a tica do Desporto, referindo-se ao olimpismo na sequncia de uma chamada de ateno relao do homem com uma realidade tica no desporto, como afirma:

No prprio desporto a mxima citius, altius, fortius do olimpismo moderno ajuda o Homem a aproximar-se cada vez mais da perfeio de si prprio, respondendo assim positivamente s exigncias ticas da sua existncia.

(Leal, 1990: 127)

No que se refere tica do desporto, constata-se que, dos 21 autores analisados, 57% apresentam uma definio (12 autores), conforme se pode ver no grfico 2. Porm, proporcionalmente, encontram-se mais autores a apresentar uma definio na colectnea de 1990 do que em 2006, respectivamente 62% (8) e 50% (4).Grfico 2 Definio de tica do desporto por autores

100% 80% 60% 40% 20% 0% Total Colectnea 1990 Com explicitao Colectnea 2006 62 43 38 50

57

50

Sem explicitao

Fonte: AAVV (1990) Desporto, tica, Sociedade. Porto: FCDEF - UP; AAVV (2006), tica e Fair Play novas Perspectivas novas Exigncias. Lisboa. Confederao do Desporto de Portugal.

Centrando a nossa anlise no conjunto dos 12 autores que apresentam uma definio de tica do desporto, verifica-se uma correlao significativa entre, respectivamente, cada

- 44 -

uma das colectneas e o total (1990 de 0,933; 2006 de 0,552)1. Assim, os autores analisados associam maioritariamente tica do desporto a convices/moral/civismo (50%) e respeito pelas regras/normas/cdigos (42%), (v. Grfico 3).Grfico 3 Significados/associaes de tica do desporto (%)

Convices/moral/civismo

50

Normas /cdigos

42

Valores/princpios

25

Cooperao/solidariedade

8

0

10

20

30

40

50

60

Fonte: AAVV (1990) Desporto, tica, Sociedade. Porto: FCDEF - UP; AAVV (2006), tica e Fair Play novas Perspectivas novas Exigncias. Lisboa. Confederao do Desporto de Portugal.

Podemos ainda concluir da anlise do grfico 3, que a associao da tica do desporto aos valores e princpios, referido por 25% dos autores (3). Apenas 1 autor (8%), referiu que a tica do desporto est relacionada com a cooperao e solidariedade, mais propriamente Salom Marivoet. A autora, no artigo intitulado tica e Prtica nas Organizaes Desportivas. Um itinerrio de reflexo, afirma que:

A tica, enquanto realidade sociolgica, poder ser observada na determinao que os princpios fundamentais orientadores da aco num dado contexto histrico exercem nas formas de cooperao ou solidariedade, nos usos e costumes que decorrentemente se estabelecem ao nvel das regras de conduta.

(Marivoet, 2006a: 11) Ainda que se tenha encontrado uma correlao significativa entre as associaes referidas pelos autores em cada uma das colectneas com o total que acabmos de analisar, como foi referido anteriormente, esta no se verifica entre a de 1990 e a de 2006 (0,216; cf. n. 1). Como se pode ver no grfico 4, apenas se encontra uma proximidade da definio de tica do desporto associada s convices/moral/civismo.

1

As correlaes foram calculadas segunda a frmula:

- 45 -

Grfico 4 Significados/associaes de tica do desporto por colectneas50 50 50

50 45 40 35 30 (% ) 25 20 15 10 5 0

38

25

25

0Normas/ cdigos Valores/ princpios Convice s/ moral/ civismo

0Cooperao/ solidarie dade

Colectnea 1990

Colectnea 2006

Fonte: AAVV (1990) Desporto, tica, Sociedade. Porto: FCDEF - UP; AAVV (2006), tica e Fair Play novas Perspectivas novas Exigncias. Lisboa. Confederao do Desporto de Portugal.

Podemos assim concluir, com base nos dados em anlise, que apesar de apenas pouco mais de metade dos autores analisados apresentarem uma definio de tica do desporto, esta se encontra fortemente associada s convices/moral/civismo, o que contraria em parte a nossa hiptese inicial. De facto, a falta de concordncia terminolgico-conceptual na definio de tica do desporto, encontra-se apenas entre as duas colectneas. Em relao ao termo esprito desportivo, constata-se que, dos 21 autores analisados, 33% apresentam uma definio (7 autores), conforme se pode ver no grfico 5. Porm, proporcionalmente, encontram-se mais autores a apresentar uma definio na colectnea de 2006 do que em 1990, respectivamente 50% (4) e 23% (3).Grfico 5 Definio de esprito desportivo por autores

100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%

50 67 77

50 33 23

Total

Colectnea 1990 Com explicitao

Colectnea 2006

Sem explicitao

Fonte: AAVV (1990) Desporto, tica, Sociedade. Porto: FCDEF - UP; AAVV (2006), tica e Fair Play novas Perspectivas novas Exigncias. Lisboa. Confederao do Desporto de Portugal.

- 46 -

Centrando a nossa anlise no conjunto dos 7 autores que apresentam uma definio de esprito desportivo, verifica-se uma correlao significativa entre respectivamente cada uma das colectneas e o total (1990 de 0,598; 2006 de 0,598). Assim, os autores analisados associam maioritariamente esprito desportivo a valores/atitudes (43%), bem como a cumprimento das normas/cdigos (43%), (v. Grfico 6).Grfico 6 Significados/associaes de esprito desportivo (%)

Valores/atitudes Cumprimento das Normas/Cdigos Sinnimo de Fair Play Associado tica do Desporto Honestidade/Lealdade 0 5 10 29

43

43

14 14 15 20 25 30 35 40 45 50

Fonte: AAVV (1990) Desporto, tica, Sociedade. Porto: FCDEF - UP; AAVV (2006), tica e Fair Play novas Perspectivas novas Exigncias. Lisboa. Confederao do Desporto de Portugal.

Podemos ainda concluir da anlise do grfico 6, que a associao do esprito desportivo ao fair play, referido, por 29% dos autores (2). Apenas 1 autor (14%), referiu que o esprito desportivo est associado tica do desporto, mais propriamente Jorge Bento. O autor, no artigo intitulado procura de referncias para uma tica do Desporto, afirma que na necessidade de novos ensaios para uma tica do Desporto () No nos bastar o charme de um esprito desportivo, com contornos ticos difusos, (Bento, 1990: 25). Tambm apenas 1 autor, referiu que o esprito desportivo est relacionado com honestidade e lealdade, mais propriamente Jorge Adelino. O autor, no artigo intitulado A tica Desportiva na Viso de um Treinador, afirma que, nele esto includas as ideias de honestidade, lealdade, igualdade de oportunidades, justia, integridade e respeito (pelos outros, por si prprio e pelas regras institudas), (Adelino, 2006: 144). Ainda que se tenha encontrado uma correlao significativa entre as associaes referidas pelos autores em cada uma das colectneas com o total que acabmos de analisar, como temos vindo a referir, esta no se verifica entre a de 1990 e a de 2006 (-

- 47 -

0,286; cf. n. 1). Como se pode ver no grfico 7, no se encontra uma proximidade da definio de esprito desportivo entre as duas colectneas.Grfico 7 Significados/associaes de esprito desportivo por colectneas70 6050 50 67

50 40 (% ) 30 20 100 0Valores/ ati tude s Si nnimo de Fai r Play

33 25 25

33

0Associado tica do Desporto

0

C umprime nto das Normas/C di gos

Honestidade / Le aldade

Colectnea 1990

Colectnea 2006

Fonte: AAVV (1990) Desporto, tica, Sociedade. Porto: FCDEF - UP; AAVV (2006), tica e Fair Play novas Perspectivas novas Exigncias. Lisboa. Confederao do Desporto de Portugal.

Podemos assim concluir, com base nos dados em anlise, que apesar de apenas um tero dos autores analisados apresentarem uma definio de esprito desportivo, h pouco consenso na sua explicao, encontrando-se associada, na maioria dos casos, aos valores/atitudes e ao cumprimento das normas/cdigos. De facto, a falta de concordncia terminolgico-conceptual na definio de esprito desportivo, encontra-se apenas entre as duas colectneas.

III.1.2. Fair Play

No que respeita ao termo fair-play, dos 21 autores em estudo, 48% apresentaram as definies deste termo (10 autores), conforme se pode ver no grfico 8, na pgina seguinte. Porm, proporcionalmente encontram-se mais autores a apresentar uma definio na colectnea de 2006 do que em 1990, respectivamente 75% (6) e 31% (4).

- 48 -

Gr