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José Manuel Santos Ética da Comunicação Universidade da Beira Interior Covilhã - Portugal

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José Manuel Santos

Ética da Comunicação

Universidade da Beira InteriorCovilhã - Portugal

Índice

1 INTRODUÇÃO 51.1A ética como ciência da comunicação 51.2A Ética no curso da UBI 10

2 PROGRAMA 132.1Parte sistemática 142.1.1Ética e moral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .142.1.2A questão fundamental da ética. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152.1.3Especificidade do discurso ético. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172.1.4Ética e direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .182.1.5Ética e política. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .192.1.6Deontologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .212.2Parte histórica 222.2.1Ética grega.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .23Platão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .23Aristóteles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .242.2.2Cristianismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .272.2.3Éticas iluministas (Kant). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .302.2.4A discussão ética contemporânea. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 322.2.5Éticas deontológicas (Habermas). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342.2.6Éticas teleológicas (MacIntyre, Nussbaum). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37Alasdair MacIntyre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37Martha Nussbaum. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .422.2.7Éticas fenomenológicas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .45

3 PEDAGOGIA 493.1Estratégia pedagógica 493.1.1A questão dos “factos” e dos “valores”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503.1.2Problema da história da ética. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .513.1.3Ética e alunos de comunicação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 513.1.4Aulas Teóricas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .523.1.5Aulas práticas e exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53

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4 ÍNDICE

3.1.6Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .533.2Critérios e métodos de avaliação 54

4 BIBLIOGRAFIA 574.1Dicionários, Introduções e Histórias da Ética 574.2Autores Clássicos (até 1900) 574.3Autores Modernos (Século XX) 584.4Ética da Comunicação 61

Capítulo 1

INTRODUÇÃO

1.1 A ética como disciplina noscursos de comunicação. Aética como ciência dacomunicação

A ética atravessa, desde meados dos anos 80,uma conjuntura favorável. Isto acontece de-pois de uma travessia do deserto que duroudécadas, apesar do talento de alguns gran-des pensadores da disciplina, como Emma-nuel Levinas ou Vladimir Jankélévitch, que,durante essas décadas, continuaram, insen-síveis a modas e ao desprezo a que foramvotados peloZeitgeistdos anos 60 e 70, adesenvolver reflexões profundas e originaissobre questões de moral. Existem diversasrazões para este retorno da ética, não só àcena teórica como à mediática. Embora o au-tor destas linhas considere que existem algu-masboas razõespara esse retorno, tambémcompreende aqueles que se queixam dos ex-cessos do “eticismo” e do “moralismo” quese manifestaram nos últimos tempos, e quecriticam, por razões não menos boas, aquiloque também pode ser visto como uma novamoda. Há que ponderar estes dois tipos derazões.

Mas, antes de explicitar as razões do re-torno da ética e as dos que criticam o eti-

cismo, convém dizer, por uma questão deeconomia argumentativa, que a discussão en-tre os partidários da ética e os seus críticos,que podem ir ao ponto de pensar que ela nãoserve para nada, que é uma disciplina inútil eparasita, está a ter prolongamentos em todosos sectores do saber e da acção. Um des-ses prolongamentos diz justamente respeitoao objecto deste relatório, e pode ser formu-lado sob a forma das duas questões seguin-tes: A primeira é a de saber se um curso deciências da comunicação deve ter uma disci-plina de ética, e, na afirmativa, a segunda, desaber para que é que ela serve.

Há, pois, razões de ordem geral do “re-torno da ética” que, de certa forma, contex-tualizam e, em nosso entender, tornam maisfortes as razões de ordem específica que te-rão de ser acrescentadas para justificar a pre-sença da disciplina de Ética no currículo deum curso de comunicação.

Comecemos então pelas razões de ordemgeral. Uma muito importante, sobretudo noque diz respeito à opinião pública, foi a percade influência das grandes ideologias políti-cas, as quais, nos casos mais paroxísticos,funcionaram como verdadeiras religiões, naorientação das pessoas. Este vácuo resul-tante na descrença nas ideologias, sobretudo

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nas de esquerda, foi sem dúvida favorável aoretorno da ética. Mas se estamos prontos aconceder este factor cultural, não aceitamosa tese que alguns constroem sobre ele, se-gundo a qual a ética também seria uma sim-ples ideologia que viria substituir as ideo-logias desaparecidas, com a função habitualdas ideologias, que seria, neste caso, de es-conder os “factos” problemáticos na era docapitalismo global, camuflar as reais estru-turas do poder na nossa época. Enquantoos media e a opinião estão ocupados a re-flectir sobre a intrincada casuística moral docaso Clinton-Lewinski-Starr, as pessoas (jor-nalistas, leitores, telespectadores e internau-tas) não estariam a pensar, como deviam,nos “verdadeiros problemas” da sociedadeem que vivem. é esta, em poucas palavras,a nova versão da velha crítica marxista daética como instrumento de opressão ideoló-gica ao serviço da “burguesia”. Sem con-testar que também a ética sofre, inevitavel-mente, nas tensões de um espaço público do-minado pelas dinâmicas dos media de massa,aceleradas pelas dinâmicas inerentes aos me-dia electrónicos, efeitos de ideologização, eque, portanto, o moralismo, um dos pioresinimigos da verdadeira ética, é uma realidadena opinião pública de alguns países, recuso-me a deitar fora o bebé com a água do ba-nho. Um tal gesto, de deitar fora o bebé,pode ir desde a pura recusa de razão de serà ética, em nome da referida crítica das ideo-logias, até à sua simples expulsão para o es-paço do privado ou mesmo da intimidade daconsciência de cada um. A primeira recusanão é aceitável por se considerar que o polí-tico, o jurídico e o tecnológico (propriamentemaquínico ou aplicado à gestão das socieda-des, na função que Weber atribuía à buro-cracia, por exemplo) não são suficientes para

orientar as acções humanas, particularmentequando estas se inserem num tecido de rela-ções intersubjectivas. A segunda, a expulsãodo ético para a esfera privada, a sua exclu-são do discurso público, não o é pelo simplesfacto de este ser, hoje, a pedra basilar e legiti-madora de todo o discurso jurídico-político.Não há constituição nenhuma que não partados direitos fundamentais do ser humano eque não se refira à “inalienável dignidade”desse ser para os justificar.1 Ora, a reflexãoética é a única que poderá dar algum con-teúdo a conceitos como “pessoa” ou “dig-nidade”. Para os juristas eles têm a funçãode definições ou axiomas de base, adquiri-dos, sobre os quais é construído o edifício daaxiomática legislativa.2 Por seu turno, o dis-curso político dos governantes, assim comoo dos comentadores deste discurso nos me-dia, tem necessariamente de fazer referênciaàs fontes éticas do direito e da acção polí-tica. Já vão longe os tempos em que bastavaevocar o santo nome dessa deusa chamada“razão de Estado”, para justificar decisõespolíticas dolorosas. Sendo assim, não se vêqualquer razão para banir do espaço públicoa discussão de questões éticas, e, portanto,para criticar o retorno da ética (para além,claro está, dos já referidos inevitáveis efeitos

1 Cf., por exemplo, o Art. 26 daConstituição daRepública Portuguesa: “A lei garantirá a dignidadepessoal [...] do ser humano.” Ou o primeiro pará-grafo do Preâmbulo daLei Fundamental (Grundge-setz)alemã: “Die Würde des Menschen ist unantast-bar.”

2 Cf. a este respeito as considerações de OlivierCayla, professor de Direito Público da Universidadede Rouen, sobre a “ruptura” no actual direito consti-tucional e na teoria jurídica do Estado, “com a ideiadesoberania, ligada à autoridade do Estado”, e o “re-torno de um direito ao serviço de uma ética democrá-tica.” Cayla, 1996, 439.

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ideológicos). Não marcará esse retorno umaindispensável e salutar reflexão da sociedademoderna sobre si própria, sobre os valoresque a poderão fundar?

Uma vez exposta esta razão de ordem ge-ral da bondade do retorno da ética, decorredela, de maneira quase imediata, uma boarazão específica para incluir a disciplina deética num curso de comunicação. Não de-verá estar o profissional da comunicação,que se formou numa Universidade, prepa-rado para compreender e explicar ao públicoas fontes éticas do discurso jurídico-político?Para utilizar correctamente, sem cair em ex-cessos moralistas, conceitos e princípios éti-cos que servirão de critério ao ajuizar de ac-tos políticos?

O retorno da ética não teve apenas lugar noespaço público mais lato, chamado opiniãopública, e no discurso dos políticos e dos me-dia. Ele foi igualmente verificado no espaçomais restrito do discurso dasciências sociaise humanas. Existem, pois, para além de ra-zões sociais, mediológicas e políticas, razõesteóricasdesse retorno, que, em nosso enten-der, também são boas razões. A principalrazão tem a ver com aquilo a que Paul Ra-binow chamou “interpretative turn”3, uma“viragem” que se verificou nas ciências so-ciais na década de 70. Como Habermas re-fere, num artigo, de 1980, sobre “CiênciasSociais reconstrutivasversusciências soci-ais compreensivas” (Rekonstruktive vs. vers-tehende Sozialwissenscahften), no fim dosanos 60 tornou-se patente um “fracasso dasciências sociais convencionais, por não con-seguirem cumprir as promessas teóricas e

3 Rabinow, 1979. Citado e comentado por Haber-mas, 1983, 30.

práticas que tinham feito”4. Essas promes-sas teóricas eram essencialmente duas: a detornar os fenómenos sociais, graças à apli-cação de métodos empíricos e quantitativos,tão transparentes como os físicos, e a de for-necer uma teoria unitária, englobante e geralda sociedade (como prometera a sociologiade Parsons, dada como exemplo, a este res-peito, no referido artigo de Habermas). Atais promessas teóricas estava ligada a es-perança de muitos, entre os cientistas e nãosó, de vir a utilizar as ciências sociais comotecnologias do social. As causas do “fra-casso” devem-se ao “espírito objectivista do-minante”5, aos excessos de um certo empi-rismo aliado a uma ingénua confiança nosmétodos quantitativos, tidos como símbolode “cientificidade”, e, sobretudo, à recusade ver na questão da interpretação algo demuito mais importante e complexo do queum simples “problema técnico” susceptívelde ser resolvido através de “testes destina-dos a tornar mais fiáveis os instrumentos demedida”6. A crise aberta pelo “fracasso” re-ferido por Habermas deu lugar a uma sériede transformações no campo das ciências so-ciais, das quais, como escreve Quentin Skin-ner, “a mais significativa terá sido talvez a re-acção muito difundidacontra o pressupostode que as ciênciasnaturaisoferecem um mo-delo adequado ou tão só relevante para a prá-tica das disciplinassociais”7. Tal como Ha-bermas, também Skinner nota a mudança ra-dical do ambiente metodológico no campodas ciências sociais a partir dos anos 70,caracterizando-se essa mudança por uma re-avaliação em profundidade das relações en-

4 Habermas, 1983, 30.5 Habermas, 1983, 31.6 Habermas, 1983, 29.7 Skinner, 1985, 15.

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tre “factos” e “sentido”, e, por conseguinte,entre “factos” e “valores”. Os puros “factossociais”, por mais rigorosos que tenham sidoos métodos empíricos e quantitativos utiliza-dos no seu estabelecimento e recolha, são,em si, desprovidos de significação, caso nãose tenha em conta a interpretação dos pró-prios agentes sociais e a interpretação dessainterpretação por parte dos cientistas do so-cial. O elementohermenêuticoentrava, as-sim, fortemente, nas ciências sociais, a doisníveis: ao nível do objecto-sujeito (os agen-tes sociais) e ao do sujeito do conhecimento(o cientista). Esta reavaliação obrigou a darum maior relevo a “teorias abstractas e nor-mativas” (Skinner), muitas delas provenien-tes desse laboratório do conceito que é a fi-losofia, o que conduziu, segundo Skinner8,ao descrédito dos mais conhecidos investiga-dores “positivistas” das ciências sociais e dahistória, ciência humana particularmente su-jeita a esse pecado metodológico, os quaisnos anos 50 e 60 vilipendiavam as “gran-des teorias”, vendo nelas um simples pro-duto da “imaginação” de alguns sociólogos(como Parsons, um dos alvos preferidos dacrítica dos “positivistas”) ou filósofos. Outraconsequência importante dessa reavaliação,para além do reforço das posições da herme-nêutica e do trabalho teórico sobre categoriase conceitos “abstractos”, é, enfim, o reposi-cionamento daética no campo da filosofiae das ciências sociais. é sintomático que oartigo de Habermas a que acima nos referi-mos seja a transcrição de uma comunicaçãofeita num congresso organizado em Marçode 1980 na Universidade da Califórnia, emBerkeley, por Paul Rabinow, subordinado aotema, muito significativo:Morality and the

8 Skinner, 1985, 12.

Social Sciences. A ética passa a ocupar umlugar central para as ciências sociais, desdelogo porque em toda a interpretação socialou do social existem elementos de normati-vidade ética. Por outro lado, em teorias so-ciais como a de Hebermas, as normas éticassão consideradas, ao mesmo tempo, normaspragmáticassine qua nondos actos sociaisnucleares que são os que se inserem no “agircomunicacional”.

De tudo isto decorrem algumascon-sequências práticas para a questão da pre-sença da ética nos cursos de comunicação.Uma disciplina de ética é indispensável emtais cursos, por óbvias razões epistemológi-cas, na medida em que a ética ocupa, comose mostrou, uma posição central no campodas ciências sociais contemporâneas, e queboa parte das “ciências da comunicação” sãociências sociais. Na perspectiva de certosteóricos poder-se-ia mesmo afirmar que aética é uma ciência sociala priori. Por ou-tro lado, estando a normatividade ética in-timamente ligada à regularidade pragmáticado “agir comunicacional”, pode-se dizer quea ética é uma ciência da comunicaçãoporexcelência. Esta tese, aliás, pode ser igual-mente demonstrada a partir da relação intrín-seca já estabelecida por Platão, noGórgias,entre a questão ética central,como devo vi-ver? e a questão da comunicação:comoposso/devo comunicar com o outro?9

Resta-nos acrescentar algumas considera-ções sobre razões específicas, de caráctermais pedagógico, a favor da inserção de umacadeira de ética num curso da comunicação.Há muitos éticos, tanto antigos como mo-dernos, que consideram que a sua disciplinanão é apenas uma teoria da vida boa ou das

9 Cf. Platão, 1923.

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normas do dever moral, mas igualmente umapedagogia. Já os grandes filósofos da Anti-guidade discutiam a questão de saber até queponto se podia “ensinar a virtude”, havendoalguns que respondiam a esta questão pelanegativa.

A questão que se põe, neste relatório, é ade saber se, pelo facto de não se poder “ensi-nar a virtude”, a existência de uma disciplinade ética num curso superior deixa de ter ra-zão de ser. A tese defendida neste relatório éque, qualquer que seja a resposta dada a estaquestão controversa, a presença de uma dis-ciplina de ética num curso de comunicaçãoé necessária. A este respeito devemos co-meçar por dizer que o ensino da ética comodisciplina universitária não é um ensino dou-trinário, semelhante ao que poderá ser minis-trado, no ensino básico, por exemplo no con-texto de uma disciplina de “religião e moral”.é óbvio que o ensino da ética no âmbito deum curso superior, e em particular num cursode comunicação, não deve ter um caráctercatequizante. Corresponde isto, aliás, à di-ferença entre os conceitos de “moral” e de“ética”. Isto significa que o argumento dosque rejeitam a disciplina de ética nos cursosde comunicação por temer que o professor“endoutrine” os alunos numa “moral” parti-cular não é válido. Tal não pode ser o ob-jectivo dessa disciplina. Qual é então esseobjectivo?

Um dos objectivos tem a ver com a razãoteórica acima apresentada a favor da ética,que considera necessária essa disciplina de-vido à posição importante que a ética hojeocupa no campo das ciências sociais. Outroobjectivo, não menos importante, prende-secom a razão jurídico-política também já refe-rida: a ética é uma das principais fontes dosdiscursos jurídicos e políticos do espaço pú-

blico contemporâneo, sendo o objectivo dadisciplina dar a conhecer essas fontes.

A estas razões acrescenta-se, agora, umaoutra, de carácter mais pedagógico, que deveser explicitada a partir do conceito decul-tura. Tal como existe, nas sociedades oci-dentais, algo como umacultura políticaouumacultura jurídicaque os profissionais dacomunicação, e de um modo mais geral osagentes da vida pública, têm de dominar comalguma profundidade, e é por isso que es-ses profissionais têm de ser formados numcurso universitário que deve incluir discipli-nas que lhes forneçam essas “culturas”, tam-bém existe umacultura ética, tão complexa edifícil de adquirir como a cultura política oua cultura jurídica, assente em fontes textuais,num estilo particular de pensamento, numareflexão viva, que o profissional da comuni-cação deve conhecer por dentro. Isto sobre-tudo num espaço público como o actual, noqual as referências à ética, no discurso dosresponsáveis políticos e dos media, são cons-tantes e recorrentes.

Sem dúvida que a posse de uma vasta cul-tura ética não livra ninguém de fazer o mal.Mas será que uma licenciatura (ou até umdoutoramnto) em direito já livrou alguém decometer ilegalidades ou crimes? Ora, se nin-guém põe em dúvida a necessidade de umadisciplina de direito num curso de comuni-cação, também não se pode pôr em dúvida,pelas mesmas razões epistemológicas e pe-dagógicas, a existência de uma disciplina deética. Em todo o caso, o argumento de queo estudo da ética não tornaria as pessoas me-lhores, coisa que até está longe de estar pro-vada, não pode ser aceite para a rejeitar.

O que nos pareceplausível, no que diz res-peito à velha, e bela, questão sobre o ser ounão possível “ensinar a virtude”, é que o es-

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forço de reflexão aplicado a questões éticas,feito no âmbito de uma disciplina de ética,possalevar o jovem a ser mais sensível a pro-blemáticas éticas, na sua vida futura, privadaou profissional. Como tal, também nos pa-rece plausível que uma tal disciplina possacontribuir, numa modesta medida, para for-mar o carácter dos alunos.

Uma razão suplementar para a inclusãode uma disciplina de ética num curso uni-versitário de comunicação tem a ver com adinâmica comunicacional que está a afectaros media modernos, e em particular o me-dium dominante que é a televisão. Trata-se de uma dinâmica que surge como im-parável, em particular por ser determinadaem última instância pelo “subsistema” eco-nómico, mas que, manifestamente, colocasérios problemas éticos. Ora, tal como re-feriu Martha Nussbaum, filósofa americanada ética, numa entrevista dada recentementeao jornalista austríaco Klaus Taschwer, tudoleva a crer que aquilo a que chamaríamoso elementosocrático da ética, é, na cul-tura ocidental, o derradeiro “antidoto” capazde nos proteger das consequências culturais“perniciosas” (como diz Nussbaum) de umacerta dinâmica da comunicação mediática:

“As aulas de filosofia moral podem desem-penhar um papel muito importante no pro-cesso de formação de bons cidadãos. O quenós [teóricos da ética] queremos realmente étransmitir processos socráticos de crítica dasnossas próprias tradições. é preciso saber oque significa argumentar com alguém, tendoem conta as premissas e as consequênciasdas nossas posições. Os jovens nos EstadosUnidos são bombardeados comtalkshows,nos quais as pessoas se insultam umas às ou-tras. Estes espectáculos constituem uma in-fluência terrivelmente perniciosa. A filoso-

fia, a reflexão ética, é um antídoto contra essainfluência.”10

1.2 A disciplina de Ética I noCurso de Ciências daComunicação daUniversidade da BeiraInterior: Objectivos einserção no plano de estudosdo curso

No plano de estudos do curso de Ciências daComunicação da Universidade da Beira Inte-rior existem duas cadeiras de ética: Ética I eÉtica II. O objectivo da disciplina de Ética Ié de fornecer uma introdução geral às princi-pais correntes da ética ocidental, dando umparticular relevo à discussão ética contem-porânea. Este relevo justifica-se na medidaem que os teóricos contemporâneos da mo-ral desenvolvem uma reflexão ética nas con-dições da sociedade em que vivemos e paraos que vivem nessa sociedade. Ao mesmotempo, não há nenhum teórico contemporâ-neo da ética que não parta de tradições maisou menos antigas do pensamento ético oci-dental, sendo, assim, indispensável procedera uma introdução destas tradições.

A disciplina procura, simultaneamente,alargar a cultura éticados alunos, comple-tando conhecimentos já adquiridos no ensinosecundário, eaprofundaressa cultura, ten-tando conduzir o aluno a uma reflexão au-tónoma a partir das fontes da cultura éticaocidental, sobretudo tendo em vista a com-preensão das problemáticas éticas da socie-dade e do discurso público contemporâneos,assim como as relações da ética com a comu-

10 Nussbaum, 2000, 95.

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nicação humana, em geral, e social, em par-ticular. Este último aspecto, a aplicação dosconhecimentos de ética geral à problemáticada comunicação social através dos media demassa, contudo, deverá ser aprofundado nadisciplina deÉtica II, cujos objectivos são,por um lado, o equacionamento da questãoda ética nos media de massa, e, por outrolado, a ética aplicada, ou deontologia, dosprofissionais da comunicação.

A disciplina de Ética I é, pois, preparatóriarelativamente às deÉtica II eDireito da Co-municação(4. ano). Apesar de ser, como jáse disse, uma fonte do direito, a ética é umamatéria demasiado complexa para ser tratadapor umas breves e superficiais consideraçõesno âmbito de outras disciplinas, como, porexemplo, a de direito. Não só devido à com-plexidade, mas igualmente à sua especifici-dade e ao seu estilo muito próprio de refle-xão, uma tal matéria deve ser dada no âmbitode umadisciplina autónomapor um docentecom umapreparação científicaespecífica eadequada.11 Faz, pois, todo o sentido que adisciplina de Ética I seja dada antes da de Di-reito da Comunicação.

A inserção da disciplina no plano de es-tudos faz-se ao nível do 3. ano, ou sejaaproximadamente a meio do curso. Apesarde se tratar de uma disciplina de introdu-ção à ética, ela não está nos dois primeirosanos por exigir alguma maturidade e capaci-dade de reflexão. Por outro lado, a Ética Iencontra-se na sequência das disciplinas deEpistemologia e de Metodologia e Herme-

11 Não pretendemos dizer com isto que o docenteque dá a disciplina de Ética num curso de comunica-ção deva ser licenciado em filosofia. Ela poderá muitobem ser dada por um docente com formação em ciên-cias da comunicação que tenha interesse pela matériae possua um mínimo de cultura na área da disciplina.

nêutica (1. ano), que são disciplinas quedesenvolvem as referidas capacidades de re-flexão, para além de fornecerem aos alunos,sobretudo no caso da segunda, instrumentose hábitos básicos do trabalho científico naárea das ciências humanas. Os conhecimen-tos previamente adquiridos em Epistemolo-gia vão permitir compreender, já no âmbitoda Ética I, como é que o discurso ético searticula com os discursos científicos (das ci-ências exactas, por um lado, e sociais, poroutro).

A ligação com a disciplina deTeoria daComunicação(2. ano) é feita no sentido emque o aluno, depois de ter aprendido, nestadisciplina, as bases puramente funcionais esistémicas do processo de comunicação, as-sim como, na cadeira deSemiótica(1. ano),as suas bases semióticas, vai compreenderem seguida, na disciplina de Ética I (1. se-mestre do 3. ano), que esse processo apre-senta uma importante componente ética.

A disciplina de Ética I apresenta igual-mente uma importante ligação com as dis-ciplinas deSociedade e Comunicação I(3.ano, 1. semestre) eSociedade e Comunica-ção II (3. ano, 2. semestre), nas quais sãoestudadas as funções e efeitos dos media demassa na sociedade contemporânea. A disci-plina de Ética I é indispensável para a com-preensão de uma boa parte das teorias con-temporâneas que estudam os efeitos sociaise as dinâmicas dos media de massa, isto querse trate de teorias que, como a de Jürgen Ha-bermas, têm por base o ideal contrafácticode um “agir comunicacional” “não estraté-gico” e, portanto, eticamente correcto, querdaquelas que, como a de Niklas Luhmann,embora negando a pertinência epistemoló-gica dos ideais contrafácticos, se limitam aanalisar os efeitos sistémicos (importantes e

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reais) dos apelos à moral na sociedade mo-derna. Não é possível abordar tais teoriassociais da comunicação sem um estudo pré-vio das éticas ocidentais, e da discussão con-temporânea em ética.

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Capítulo 2

PROGRAMA

O programa da disciplina apresenta duaspartes, umasistemáticae outrahistórica.

Esta divisão e a importância dada à partehistórica têm a ver com uma das especifici-dade da disciplina. Com efeito, enquanto,por exemplo, em física, para dar o exemplomais estudado na história e na epistemologiadas ciências, as “mudanças de paradigma” ti-veram como efeito a perca praticamente to-tal do estatuto “científico” de uma grandeparte dos conhecimentos adquiridos no âm-bito dos paradigmas anteriores, em ética, aséticas iluministas modernas estão longe deter conseguido destronar, “cientificamente”,de maneira tão evidente como nas ciênciasda natureza, os grandes paradigmas éticosanteriores. Para o estudante de física de hoje,a física de Aristóteles não passa de uma sim-ples curiosidade histórica (totalmente igno-rada, aliás, pela maioria dos estudantes defísica); para o estudante de ética, a éticade Aristóteles constitui, na sua estrutura bá-sica, um modelo de ética que continua a serdefendido por importantes éticos do séculoXX (e XXI). Por conseguinte, uma iniciaçãouniversitária à ética (a nível de graduação)não pode ser tão “sistemática” como no casoda física, da matemática, ou mesmo do di-reito, o que significa que tem de comportaruma importante parte histórica. Uma página

de Platão ou uma de São Paulo, apesar dagrande distância cultural a que as sociedadesem que viveram e escreveram estes autoresse encontram da nossa, continuam (e conti-nuarão no futuro) a ter, aqui e agora, umagrande pertinência para a ética como disci-plina e como teoria da moral.

Naparte sistemáticaprocura-se sobretudodizer o que é a ética, delimitar oobjectodadisciplina, e delimitar epistemologicamente,a partir do objecto e do regime de discurso, aprópria disciplina, quer relativamente a dis-ciplinas que com ela mantêm importantesrelações, como o direito, quer a discipli-nas mais afastadas, como as ciências exac-tas. Por outro lado, o discurso ético tambémdeve ser distinguido de importantes discur-sos não científicos, como o religioso ou o li-terário, com os quais, aliás, poderá estar in-timamente associado. A terminar a parte sis-temática tenta-se esboçar um quadro da ti-pologia ética, ou seja dos principais tipos deéticas existentes na tradição ocidental, e doscritérios utilizados para diferenciar estes ti-pos.

A situação da ética na nossa época, querao nível da discussão teórica, quer do da mo-ral espontânea que se exprime, por exemplo,no discurso dos media, é particularmentecomplexa devido à situação de “secundari-

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dade”, para utilizar uma expressão de RémiBrague1, da cultura europeia. Isto significaque o discurso ético actual é herdeiro de trêsgrandes paradigmas éticos, o grego, o cristãoe o iluminista, que apresentam entre si algu-mas tensões, o que até é natural, visto quese tentaram destronar, sem nunca o teremconseguido totalmente, à medida que foramsurgindo na história cultural do Ocidente.Numa tal situação ético-cultural, uma clari-ficação das três fontes da ética surge comoindispensável para a compreensão da discus-são ética actual, e, em seguida, para proporsoluções para os numerosos problemas éti-cos que uma sociedade tão complexa como aactual apresenta.

Assim, aparte históricado programa co-meça por apresentar, por ordem cronológica,os três grandes paradigmas éticos referidos:a ética grega (2.1), o essencial da moral cristã(2.2.), e a ética iluminista (2.3). A maioratenção será dada, na quarta parte desta se-gunda parte (ponto 2.4 do Programa), à apre-sentação da discussão ética contemporânea.Os contributos dos éticos contemporâneosapresentados, muitos deles ainda vivos e ac-tivos na discussão teórica, serão particular-mente importantes, na medida em que mos-tram aos alunos exemplos vivos da maneiracomo as questões éticas da sociedade actualpodem ser abordadas, na maior parte dos ca-sos através da reactivação de tradições éticasjá com uma longa história, sejam elas antigas(ou seja gregas ou cristãs) ou iluministas.

2.1 Parte sistemática

Como já acima foi dito, o objectivo da partesistemática é de dizer o que é a ética, de-

1 “Secondarité”. Brague, 1992, 113.

limitar o objectoda disciplina, e delimitarepistemologicamente o seu tipo de discursorelativamente aos de outras disciplinas. Namedida em que os paradigmas éticos gregoe iluminista atribuem à ética estatutos epis-temológicos não só diferentes mas opostos,Aristóteles e os neo-aristotélicos actuais con-sideram que a ética é um discurso sobre ocontingente (ou não necessário) ou simples-mente verosímil2; Kant e os seus seguidoresactuais considram que é um discurso sobreo “necessário”, e, por conseguinte, com pre-tensões a uma verdade “apodíctica”3, os mé-todos utilizados são, nos diferentes paradig-mas, diferentes. Daí que se tenha deixadoas questões metodológicas para a parte his-tórica do programa.

2.1.1 Sentido etimológico,definição e distinção dosconceitos de ética e moral

Numa primeira abordagem da questão de sa-ber o que é a ética, começa-se por estudaras etimologias dos termos “ética” e “moral”.O termo gregoethikéapresenta uma duplaetimologia já notada por Aristóteles, o qualo relaciona cométhos, escrito com a vogallonga eta, que tem o sentido de carácter, ecomêthos, escrito com a vogal breve epsilon,que tem o sentido de hábito ou costume. Apartir destes dois conceitos é já possível vero duplo carácter que vai apresentar a éticacomo disciplina. Por um lado, enquanto ci-ência dos costumes, ela apresenta uma ver-tente a que hoje chamaríamos social, tema-tiza um determinado tipo de costumes, cu-jas normas são interiorizadas por socializa-

2 Aristóteles,Eth. Nic., 1084 b.3 Kant, 1906, 35.

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ção e colectivamente aceites numa dada soci-edade. Kant ainda chama à ética, por esta ra-zão, “metafísica dos costumes” (Metaphysikder Sitten). Significando aqui o conceito de“metafísica” que os costumes humanos nãosão uma coisa com origem na natureza (phy-sis). Por outro lado, a ética apresenta outravertente a que poderíamos chamar psicoló-gica, que tem a ver com a consciência moralde cada indivíduo, e, por conseguinte, como modo como o indivíduo dá resposta à nor-matividade social, modo esse que acaba porse cristalizar sob a forma, relativamente está-vel, de um carácter. Oéthosconstitui assim,ainda hoje, uma atitude ética de fundo quetranscende a casuística da normatividade so-cial.

Em todo o caso, este duplo objecto daética, os “costumes” e o “carácter”, conti-nua patente na investigação ética dos nossosdias. Assim, enquanto uma boa parte dos in-vestigadores éticos se ocupam, sobretudo, deéticasocial, ou seja das relações dos indiví-duos na sociedade vistas do ponto de vistaético, há investigadores, como, por exemplo,Lawrence Kohlberg4, que desenvolvem teo-riaspsicológicasda ética, ou seja relativas àaquisição e desenvolvimento da consciênciaética no indivíduo.

Os latinos optaram pelo termomores, quesignifica costumes, para traduzir os termosgregos relativos à ética, tendo, assim, sur-gido o termo “moral”. Enquanto que nalinguagem corrente os termos ética e moralsão muitas vezes utilizados de maneira indis-tinta, praticamente como sinónimos, na lin-guagem do discurso ético estes termos ad-quirem significados mais precisos. “ética” émuitas vezes utilizado para designar adisci-

4 Cf. Kohlberg, 1996.

plina ou a ciência que tematiza as normasmorais, e, no caso dos éticos da correntekantiana, as “fundamenta”. “Moral” é uti-lizado para designar as normas morais queum grupo humano se dá espontaneamente asi próprio, sejam elas objecto de teorizaçãoou não.

Uma outra distinção, mais técnica e histó-rica, entre ética e moral, é a que associa oprimeiro termo sobretudo às éticas gregas outeleológicas (éticas da “vida boa” e daeudai-monia), e o segundo, às éticas da obrigaçãoe do dever “moral”5, grupo que incluiria aséticas da tradição judeo-cristã e as éticas ilu-ministas.

2.1.2 As quatro questões de Kante a questão fundamental daética

Utilizaremos as quatro famosas questões for-muladas por Kant na Introdução às suasLi-ções de Lógica(publicadas em Königsbergem 1800) para uma primeira delimitação doestatuto epistemológico da ética.

São essas questões as seguintes:

1. Was kann ich wissen?

2. Was soll ich tun?

3. Was darf ich hoffen?

4. Was ist der Mensch?”6

Para Kant, a primeira destas questões dizrespeito ao conhecimento teórico, ou seja,mais concretamente, ao conhecimento emcausa nas ciências exactas e da natureza, ela

5 Tugendhat, 1984, 45. Ricoeur, 1990, 202 e segs,237 e segs.

6 Kant, 1800, 448.

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visa marcar os limites do conhecimento po-sitivo que o homem pode pretender alcan-çar da natureza. A segunda, “o que devofazer?”, é, para nós, particularmente impor-tante na medida em que, segundo Kant, ela éa questão à qual “a moral responde”. A ter-ceira, “o que me é permitido esperar?”, dizrespeito ao território mais periférico e rema-nescente do saber, ao futuro mais longínquo,que, em 1800, aAufklärung ainda delega,por razões tácticas, e, sem dúvida, provisó-rias, ao discurso religioso: “ela é, escreveKant, a questão à qual responde areligião”7.Hoje em dia, ciências como aeconomiatêma ambição de responder a esta questão, pelomenos no curto e no médio prazo; por ou-tro lado, como aquilo que se “espera” é, lar-gamente, aquilo que sedeseja, uma disci-plina como a psicanálise também se ocupa,hoje, desta questão. Ao que devemos acres-centar que, nos nossos dias, um certo dis-curso sobre “a técnica” ou “as novas tecnolo-gias”, cujo objecto obsessivo é um “futuro”,mais ou menos longínquo, apaixonadamentedesejado ou temido (o que, epistemologica-mente, é a mesma coisa), largamente ima-ginado e imaginário, pretende responder demaneira exaustiva à terceira questão de Kant,assumindo, assim, objectivamente, o lugardo discurso religioso. A quarta questão, fi-nalmente, delimita muito exactamente o ter-ritório dasciências humanase sociais.

Estas quatro questões continuam a ser, porvárias razões, de um grande interesse epis-temológico. São-no, em primeiro lugar, por-que permitem separar, no campo das ciênciaspropriamente ditas, as ciências humanas dasda natureza; neste contexto Foucault afirmounos anos 60, sem dúvida de maneira excessi-

7 Ibid., idem.

vamente enfática, que, na altura em que Kantformulava a questão 4), “apareceuo homemno horizonte do saber”. Em segundo lugar asquatro questões são interessantes porque se-param claramente dos saberes positivos so-bre o homem e a natureza dois discursos ir-redutíveis à positividade: o ético e o religi-oso. O isolamento das questões do “dever”e do “esperar” marcam esta irredutibilidade.Serve isto para mostrar, entre outras coisas,que por mais “progressos” que se registemnos saberes sobre a natureza, e por conse-guinte na técnica, e sobre o homem, a ques-tão ética não é minimamente afectada nosmodos da sua formulação básica.

Houve, depois de Kant, várias tentativaspara tentar englobar as três primeiras ques-tões, e em particular a n. 2, a questão ética,na questão 4). Já vimos como a economia e apsicanálise, ciências do social humano e dohomem, entram no território da questão 3).Não dependerá aquilo que o sujeito “deve fa-zer” (questão 2) daquilo que ele é enquanto“homem”? Não estará a resposta à questão2) na que é dada à questão 4)? Um dos exem-plos mais paradigmáticos de respostas afir-mativas a estas duas questões é o que nos foilegado pela obra de Freud. A génese do sur-gimento das normas morais no sujeito é ex-plicada através do enredo em causa no cha-mado “complexo de édipo”, no qual o pai(enquantoüber-Ich) desempenha o papel dodever, da obrigação e da lei8. Socialmentea moral é explicada, em Freud, a partir deuma ideia do homem muito próxima da dodireito natural moderno (Hobbes), segundo oqual o homem é um ser naturalmente agres-sivo e dominado por pulsões sexuais virtu-

8 Freud, 1998, 256 segs.

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almente ilimitadas9, surgindo a moral comoo necessário travão que torna possível a so-ciedade. Acontece, porém, que as explica-ções naturalistas da génese da moral (na cri-ança ou na sociedade), por mais bem funda-mentadas e verosímeis que sejam, não po-dem servir para rejeitar uma reflexão racio-nal e consciente sobre as questões de moral,individual e colectiva, que constitui propria-mente o domínio do discurso ético na espe-cificidade que lhe é conferida pela questão2) de Kant. Daí que a própria psicanálise te-nha levado a cabo reflexões no sentido de de-senvolver uma “ética da psicanálise”10, ob-viamente pós-naturalista, onde é reflectida aquestão da responsabilidade ética no âmbitoda prática psicanalítica.

A questão “que devo fazer?” continua,pois, a ser uma questão que está fora do âm-bito daquelas a que as ciências positivas, in-clusivamente as sociais e humanas, podemresponder.

Ainda dentro deste capítulo há que com-parar a formulação kantiana, moderna, daquestão ética, “que devo fazer?”, com a for-mulação antiga, que era a questão de saber“de que maneira devemos viver?”11 As duasfórmulas da questão ética não se sobrepõemtotalmente, a primeira insiste no dever e nanorma, a segunda no género de vida, sendonecessário mostrar, neste capítulo, as impli-cações de cada uma delas. é fácil mostrar,por outro lado, que a independência da ques-tão ética em relação aos saberes positivosé igualmente válida para a fórmula antigada questão, que, aliás, é defendida por mui-tos autores contemporâneos que preconizam

9 Freud, 1991, 454-456.10 Cf. Lacan, 1986.11 Platão, 1923 (Górgias), 500 c.

uma reactivação das éticas antigas (como severá na parte histórica).

2.1.3 Carácter epistemológico suigeneris do discurso ético.ética, ciências exactas,discurso literário

Partindo das quatro questões de Kantaprofunda-se o carácter epistemológicosuigenerisdo discurso que pretende responderà segunda. Trata-se, como já se viu, de umdiscurso que não apresenta um saber posi-tivo, ou seja que não se refere a algo “que é”positivamente, mas que “deve ser”. Não seconfunde, pois, com o discurso das ciências,mesmo as do homem. Resta saber se, nãosendo positivo por não ter um objecto “queé”, obedece a critérios formais de cientifici-dade. Relativamente a esta questão encon-tramos uma divisão entre os éticos que di-vide tanto os antigos como os modernos. En-tre os primeiros Aristóteles, de certa formaem oposição a Platão, considera, como já sedisse, que o discurso ético, baseado essenci-almente numa experiência vivida, não podeambicionar de maneira alguma ao estatutodo verdadeiro discurso científico, que tempor objecto o “necessário”.12 Entre os segun-dos, Kirkegaard afirma enfaticamente a “nãocientificidade”13 do discurso ético. Ao con-trário, os éticos que se colocam na tradiçãokantiana e alguns fenomenólogos, como, porexemplo, Husserl14, reivindicam para a éticaum estatuto formalmente “científico”.

Esta questão deve ser apresentada sem es-

12 Aristóteles,Eth. Nic., 1084 b.13 Cf. o título doPosfácio não científicoàs Miga-

lhas filosóficas; Kierkegaard, 1998.14 Cf. Husserl, 1988.

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conder o seu carácter controverso. Põe-se,neste contexto, a questão subsidiária, de sa-ber se o discurso ético, não sendo científico,é um discurso de tipoliterário. Neste capí-tulo haverá que fazer um esforço para situaro discurso ético, por assim dizer, entre o ci-entífico e o literário. O facto de não ser ci-entífico não implica que o discurso ético nãotenha de obedecer a critérios derigor argu-mentativoe depretensão à universalidade,características que o distinguem nitidamentedo discurso puramente literário (mesmo seneste género incluirmos o chamado “ensaioliterário”). O discurso ético tem de se sub-meter à apreciação de uma comunidade deinvestigadores das questões éticas, que ava-liam a “bondade” dos argumentos a favor deuma ou outra solução apresentada para darresposta a essas questões. O discurso literá-rio, ao contrário, podendo ser um testemu-nho sobre determinadas formas de vida (vi-vidas pelo autor ou por personagens por elecriadas), não tem de modo algum de apre-sentar argumentos generalizáveis a favor oucontra a bondade de tais formas de vida. Istonão impede que a “grande” literatura forneçaum manancial de exemplos susceptíveis deser utilizados pela reflexão da ética.

2.1.4 Ética e direito

Após a delimitação do carácter do ético emcontraste com o puramente científico, por umlado, e o literário, por outro, convém distin-guir a ética de uma disciplina axiológica quelhe está próxima e com a qual apresenta es-treitas relações, que é odireito.

A relação entre ética e direito reveste-se deespecial importância para os futuros profissi-onais da comunicação, que são os alunos docurso, na medida em que a opinião pública

moderna é muito sensível ao facto de deter-minadas acções de individualidades da vidapública, por exemplo, serem absolutamente“legais”, do ponto de vista do sistema jurí-dico vigente, mas, ao mesmo tempo, “mo-ralmente” inaceitáveis do ponto de vista damoral espontânea dessa opinião.

A primeira distinção diz respeito ao factode as questões de moral continuarem ater como suporte uma cultura oral, sendomesmo, em muitos casos, da ordem do im-plícito ou mesmo do não dito e da simples“sensibilidade”. Isto contrasta com a con-cepção do direito que vigora nas sociedadesocidentais modernas, na qual o que é permi-tido e o que não é permitido são objecto deuma codificação estrita, escrita e formal emtextos legislativos. Não devendo ser exigidoà ética, por razões que resta desenvolver, queimite as metodologias formais utilizadas emdireito, deve-se exigir dos que se ocupam deética que explicitem questões que, muitas ve-zes, não são convenientemente articuladas ereflectidas pela opinião.

No que diz respeito às relações comple-xas entre ética e direito, há que insistir so-bretudo no facto de o direito moderno, muitoparticularmente no período a seguir à Se-gunda Guerra Mundial, constituir um retornoao chamado “direito natural”, ligado às fi-losofias do iluminismo, que coloca a axio-logia jurídica numa situação de dependên-cia fundacional em relação à ética.15 Nestecontexto é necessário introduzir as noçõesde “direito natural” e “direito positivo”. Ossistemas jurídicos modernos, que, segundoCayla, retomaram a tradição do “direito na-

15 São os próprios juristas que o reconhecem, cf.Cayla, 1996, que cita uma abundante bibliografia ju-rídica.

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tural”, estão muito dependentes de “direitosfundamentais” que são, finalmente, “direitosdo homem e do cidadão”. A fundamentaçãoteórica destes direitos encontra-se, em últimaanálise, mais na alçada da ética que na da te-oria do direito. Os teóricos das diferentes es-colas do “direito positivo”, ao contrário, pro-curavam tornar o direito o mais autónomopossível, muito particularmente em relaçãoà ética.

2.1.5 Ética e política

O conflito entre ética e política, ou, mais ex-plicitamente, entre consciência moral e ra-zão de estado, é antiquíssimo. NaAntigona,de Sófocles, esse conflito foi magistralmentelevado à cena. A ordem política acaba porlevar a melhor sobre a revolta da consciên-cia moral que teimou em cumprir o seu de-ver; a vitória amarga do político é, ao mesmotempo, a legitimação do uso da violência porparte dos representantes legítimos do estado(condenação à morte da heroína).

Numa tentativa de resolver um conflito aque o trágico confere a fatalidade do des-tino, os pensadores antigos (Platão e Aristó-teles) encaram a ética e a política como es-tando numarelação de continuidade e uni-dade. Em Platão o rigor e a bondade da ca-pacidade de comandar a si próprio, relaçãoética, é transferido para o comando exercidosobre os “muitos”, na relação propriamentepolítica. Por outro lado, o principal objec-tivo do político é “tornar os cidadãos (eti-camente) melhores”. Em Aristóteles a uni-dade entre ética e política está em que ambassão ciências, e práticas, do bem, cujo fim éa eudaimoníaou vida boa. O bem colectivo(dapólis) é, de certo modo, por assim dizerquantitativamente, mais importante que o in-

dividual, o que significa, de algum modo, umascendente da política sobre a ética.16 Toda-via a natureza dos dois bens é “idêntica”, nãose colocando os problemas modernos do co-lectivismo ou do individualismo. Existe cir-cularidade entre os bens do indivíduo e dapólis, até porque sem amigos, e, portanto,sem uma colectividade bem organizada, o in-divíduo não pode aspirar àeudaimonía.

A ideia da independência do político emrelação ao ético, do político como pura artedo equilíbrio dos poderes, da sua distribui-ção justa, e do exercício do poder, será subli-nhada na Modernidade a partir de Maquiavele Hobbes. Esta linha de pensamento condu-zirá à posição de um Carl Schmitt, que vê aessência da axiologia do político na polari-dade dos valoresamigo/inimigo,a qual seriacompletamente independente das axiologiasdo bem e do mal (axiologia moral), do justoe do injusto (domínio do direito) e do belo edo feio (domínio do estético).17

Houve no entanto vários autores, no sé-culo XX, que rejeitaram a tese da indepen-dência absoluta do político, defendida porSchmitt, e tentaram mediatizar o ético e opolítico. Está neste caso Max Weber, coma sua distinção entre “ética de convicções”(Gesinnungsethik) e “ética da responsabili-dade” (Verantwortungsethik)18. A primeiraé a ética do moralista que aplica cegamenteprincípios morais, recusando-se a fazer qual-quer balanço das consequências da sua apli-cação. é o caso, por exemplo, do pacifistaconvicto, que recusa o recurso à violência(e à guerra) em qualquer circunstância. Asegunda é a ética do político “responsável”,

16 Eth. Nic., 1095 b 7.17 Cf. Schmitt, 1927.18 Weber, 1919, 550 e segs.

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que aceita males limitados para evitar malesainda maiores. Neste caso o objectivo finalda política é ético.

A distinção weberiana entreGesinnung-sethikeVerantwortungsethiké típica de umaépoca que, apesar de conferir à política umobjectivo moral, ainda estava pronta a acei-tar certas medidas deRealpolitikda parte dosgovernantes, sobretudo em matéria de polí-tica externa. As coisas mudaram bastante aseguir a 1945. De então para cá acentuou-sea tendência para um cada vez maior controloético do político. Podemos apontar três ra-zões principais para explicar esta tendência.

A primeira é a maior importância dada,nas democracias ocidentais do Pós-Guerra,à noção de “direitos fundamentais do ho-mem”, que assenta, como já dissemos, emprincípios de naturezaintrinsecamente mo-ral. E isto, segundo alguns juristas, em de-terimento do conceito clássico de “sobera-nia”19, que justificava uma grande autonomiado agir dos governantes em prol da chamada“razão de estado”. Como reacção ao traumados “estados totalitários”, as instituições po-líticas encarregadas da protecção dos “direi-tos fundamentais” do indivíduo, particular-mente os tribunais constitucionais, inclusi-vamente em caso de conflito com o próprioestado, foram consideravelmente reforçadasou criadasex nihilo. é neste contexto que seobservou uma progressiva eticização da po-lítica, que não podia deixar de “alastrar” àvida privada dos próprios políticos.

Uma segundarazão desta exigência deética na vida política moderna está no factode os governos estarem muito mais depen-dentes da opinião pública, do que acontecia

19 Cf. Cayla, 1996.

até 194520. Numa época em que os cidadãosse habituaram a uma informação permanentepor parte dos media, os governantes vêem-se obrigados, não só a tornar manifestos osseus actos políticos, mas também a explicá-los em permanência e a justificá-los moral-mente. Nestas condições, é difícil declararagir para fins, ou com recurso a meios, etica-mente menos confessáveis. Isto para já nãofalar numa espécie de espiral eticista indu-zida pela dinâmica muito particular das rela-ções entre os agentes dos media e a “classepolítica”. Esta dinâmica deverá ser estudadamais em pormenor, no âmbito do curso deCiências de Comunicação da UBI, na disci-plina deética II e nas deSociedade e Comu-nicação I e II.

Finalmente, umaterceira razão para umamaior exigência de ética relativamente aosgovernantes deve-se a desenvolvimentos sur-gidos no campo datécnica, que causaram,e causam, uma angústia compreensível nasopiniões ocidentais. A bomba atómica, aproblemática da poluição do meio ambiente(susceptível de pôr em causa, a longo prazo,a sobrevivência da espécie) e, mais recente-mente, a biotecnologia, são, talvez, os maisimportantes desenvolvimentos no campo datécnica a pôr importantes problemas éticos.As pessoas consideram que se trata de tecno-logias demasiado perigosas para serem dei-xadas aos técnicos da tecnociência moderna,por um lado, e à mercê das simples decisõesde políticos, cujo poder, aliás, é cada vezmais diminuto devido aos determinismos do

20 No caso específico português esta viragem dá-se, definitivamente, em 1974. Salazar conseguiu per-petuar, até bastante tarde, uma “retórica do silêncio eda invisibilidade” (como diz J. Gil), em consonânciacom a preeminência atribuída à soberania e à razão deestado pelo seu regime.

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sub-sistema económico-monetário, por ou-tro.

2.1.6 Tipologia ética. Éticaaplicada e deontologia

Neste capítulo, que marca a passagem à partehistórica do programa, são fornecidos e ex-plicados alguns conceitos fundamentais, fre-quentemente usados na discussão ética con-temporânea para distinguir diversostiposdeéticas. Estes conceitos servirão para cons-truir um quadro das éticas, que será utilizado,em seguida, para enquadrar e distinguir aséticas que serão estudadas na parte histórica.

Os primeiros principais conceitos a es-tudar neste capítulo são o parteleolo-gia/deontologia, correlativo da oposiçãoéti-cas teleológicas versus éticas deontológicas.Esta oposição é não só importante para com-preender a passagem histórica das éticas te-leológicas clássicas (gregas e cristãs) às éti-cas iluministas mais estritamente deontoló-gicas, mas igualmente para mostrar a oposi-ção que persiste entre deontologistas e teleo-logistas, na discussão ética actual21.

No seu sentido mais estrito e original otermodeontologia, introduzido em ética porJeremy Bentham22, qualifica uma ética cen-trada nos conceitos dedever e de norma.(Deontologia vem do particípio gregodéon,que significa dever). éticas como a de Kantou, mais recentemente, a de Rawls são deon-tológicas por tentarem, antes de mais, esta-belecer e fundamentar uma obrigação morale a respectiva norma, secundarizando ou ex-cluindo da reflexão a questão da definição de

21 Que será abordada em3.2.4. A discussão éticacontemporânea.

22 Em Deontology or the science of morality, Lon-dres, 1834.

umsummum bonum“substancial”. As éticasteleológicas, ao contrário, colocam no cen-tro da reflexão a definição de umbemiden-tificado com ofim das acções e da vida dohomem. (Teleologia vem detélos, que signi-fica fim).

Relativamente ao conceito dedeontologiaé necessário chamar a atenção para o facto deexistiremdois conceitos bem distintos comeste nome. O primeiro é o que já foi indi-cado, ou seja o que se refere aos sistemaséticos, como o de Kant, que procuram funda-mentar as normas do dever moral. Num se-gundo sentido, aliás mais corrente na lingua-gem ordinária, o termo refere-se aos procedi-mentos considerados jurídica e moralmentebons numa dada área profissional. Deonto-logia, neste sentido, é éticaaplicadaao exer-cício de uma profissão. Fala-se, então, dedeontologia médica, do jornalista, do advo-gado, etc. Em muitos casos aquilo a que sechama “deontologia” não contém apenas re-gras decorrentes da aplicação de uma deter-minada ética (podendo, contudo, as deonto-logias variar em função daética geralde quesão, em parte, a aplicação), mas igualmenteobrigações jurídicas em vigor para a práticada profissão em causa, assim como preceitosque não são nem especificamente éticos nemjurídicos, pertencentes à esfera daquilo a quese chama otacto - uma esfera de conven-ções culturais cuja essência axiológica estámais próxima doestético, das questões debom gosto, do que do ético, mesmo se namaioria dos casos concretos, que a casuísticadas deontologias profissionais deve resolver,o ético e o estético se interpenetram23.

No contexto da distinção entre éticas de-

23 Sobre a questão dotactocomo elemento essen-cial da cultura cf. Gadamer, 1960, 12 e segs.

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ontológicas e teleológicas é necessário cha-mar a atenção para o facto de que existemcasospurosde éticas que são exemplos pa-radigmáticos de um caso ou de outro, e éti-cas que apresentam elementos teleológicose deontológicos. As éticas gregas são niti-damente teleológicas, a ética de Kant é pu-ramente deontológica. Já a ética cristã nãoé, neste sentido, tão “pura”. Ela apresenta,por um lado, um óbvio elemento teleológico,na medida em que a “salvação” é propostacomo o mais altofim na vida de cada indi-víduo, ao mesmo tempo é, de acordo coma herança judaica do cristianismo, uma éticados “mandamentos da lei de Deus”, ou sejauma ética propriamente deontológica.

Um outro critério de classificação das éti-cas, que é por assim dizer transversal ao dadistinção entre éticas deontológicas e teleo-lógicas, diz respeito às relações da ética coma metafísica. Trata-se de uma linha de par-tilha que remonta à distinção kantiana entre“autonomia” e “heteronomia” como “fontesdos princípios da moralidade”24. Uma éticada “autonomia” é aquela em que os princí-pios da moralidade não decorrem da vontadede uma instância diferente da humana (comopor exemplo a vontade de Deus). De ummodo geral as éticas modernas, tanto as clás-sicas como as mais recentes, pretendem tercomo característica principal uma total inde-pendência em relação a pressupostos metafí-sicos ou teológicos.

2.2 Parte histórica

A parte histórica do programa da disciplinaestá dividida em quatro partes. Naprimeira(3.2.1) é feita uma introdução à ética grega

24 Kant, 1906, 65 e segs.

(Platão e Aristóteles). Conhecimentos deética grega são indispensáveis por duas ra-zões: primeiro, porque se trata de uma tradi-ção que continua (e continuará) a estar pre-sente nocommon sensemoral da cultura oci-dental e, segundo, porque esses conhecimen-tos são absolutamente indispensáveis paracompreender a discussão que está a ter lu-gar no campo da teoria ética contemporâ-nea. Nasegundaparte (3.2.2) caracteriza-sebrevemente os principais traços do complexoético a que se poderá chamar, para simplifi-car, ética cristã. é obvio que se trata igual-mente de um elemento muito importante donossocommon sensemoral, que continua aproduzir os seus efeitos, inclusivamente nasteorias éticas secularizadas e na consciênciamoral de não crentes, e de cuja originalidadeé necessário dar conta. Naterceira parte(3.2.3) mostra-se o surgimento da ética ilu-minista moderna, dando conta brevementedo contexto da história das ideias que per-mitiu esta “revolução copernicana” do pen-samento ético. é estudada, neste capítulo, aética mais sistemática e representativa do ilu-minismo, que é a de Kant. Tal como no casoda ética antiga, o estudo da ética de Kant éindispensável para compreender a discussãoteórica contemporânea que está a ter lugarem ética. Esta discussão é dominada pelaoposição entre uma corrente de teóricos quetentam reactivar ideias éticas de Aristóteles euma corrente que parte das ideias de Kant.

Naquartaparte (3.2.4), a mais importanteda parte histórica, dá-se conta da discussãoteórica actual em ética.

Esta parte está dividida em três capítulos.No primeiro (3.2.4.a) são caracterizadas aséticasdeontológicasactuais, éticas dos direi-tos e deveres, de que são exemplos as éticasde Rawls e Habermas. No segundo (3.2.4.b)

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dá-se conta das éticasteleológicasactuais,de que são exemplos as éticas de CharlesTaylor, Alasdair MacIntyre e Martha Nuss-baum. Estas éticas vêm em segundo lugar,na medida em que o seu ponto de partidaé uma crítica de certos aspectos das éticasdeontológicas, como, por exemplo, os dé-fices destas éticas no que respeita ao papeldos sentimentos na acção moral, à questãodo enraizamento cultural da moral e à defini-ção do bem (remetida pelas éticas deontoló-gicas para a esfera privada e para a subjecti-vidade). Algumas éticas teleológicas, comoa de MacIntyre ou a de Nussbaum, são ex-plicitamente neo-aristotélicas, por reactiva-rem ideias de Aristóteles. Não é o caso daética de Taylor. Um breve estudo da éticade Martha Nussbaum permitirá verificar queuma ética neo-aristotélica não é necessaria-mente uma restauração de ideais “conserva-dores”, como rezam algumas sínteses apres-sadas do chamado neo-aristotelismo. Final-mente, no terceiro capítulo (3.2.4.c), dá-seconta de uma abordagemfenomenológicadaética, a partir de algumas considerações so-bre a ética de Emmanuel Levinas. Trata-sede uma abordagem original que escapa, emcerta medida, ao esquematismo da oposiçãoentre éticas deontológicas e teleológicas quedomina a discussão, muito especialmente nomundo anglo-saxónico.

2.2.1 Ética grega.

Platão

A ética de Platão é introduzida através deuma apresentação sistemática (aulas teóri-cas) e de um estudo do diálogoGórgias(au-las práticas). Este diálogo foi escolhido de-vido ao facto de nele a questão da ética ser

tratada em estreita conexão com a da retóricae da comunicação.

Na continuidade da ética de Sócrates, aética de Platão surge como a crítica racio-nalista de uma moral tradicional e conven-cional (representada noGórgias pelo per-sonagem de Pólo) por um lado, e de umamoral a que se poderia chamar “natura-lista”, moral aristocrática defensora do di-reito do mais forte (representada no mesmodiálogo pelo personagem de Calicles). A crí-tica socratico-platónica abre, assim, espaço auma reflexão autónoma, propriamente ética,ao mostrar a insuficiência das respostas datradição e o carácter manifestamente inesté-tico da resposta naturalista (defesa incontro-lada dos mesquinhos interesses pessoais porparte de quem detém o poder) à questão desaber “como devemos viver”.

A partir desta oposição da reflexão moralplatónica a uma tradição não reflectida, porum lado, e a uma “ética” do mais forte quese restringe a uma física do poder (ao ser-viço do qual se colocavam técnicas de comu-nicação, interessadas em eficácia comunica-cional e nada interessadas em reflexão ética),por outro lado, é possível apresentar os prin-cipais traços da ética de Platão.

O primeiro, que partilha com Sócrates,é um racionalismoético, ou seja a convic-ção de que a questão central da ética, sobreas “formas de vida” e a “melhor” forma devida, pode ser formulada e discutida racio-nalmente, independentemente das respostasque a tradição e a religião lhe davam e oscálculos de interesses possam ditar.

O segundo consiste em fazer coincidir obemque é a melhor forma de vida com a sim-ples posse davirtudepelo indivíduo - nisto sedistinguindo Platão, como veremos, de Aris-tóteles, que vai fazer depender a bondade da

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vida boa de uma série de factores “externos”,para além da posse da virtude. Para Platão,quem possui a virtude da justiça possui umbem intrínseco, mesmo que seja vítima dasmaiores injustiças, e é, por isso, “feliz”.

O terceiro traço importante da ética pla-tónica reside naquilo a que se poderia cha-mar umapsicologia moral, uma teoria daalma e das suas “partes” que vai permitirexplicar comportamentos eticamente maus,e, em seguida, desenvolver a acção terapêu-tica (nomeadamente na política) adequadapara os evitar. O paradigma da ética, o seumodelo regulador, é amedicina; da mesmamaneira que esta corrige desequilíbrios docorpo, aquela corrige desequilíbrios da alma.Com esta vertente terapêutica e pedagógica,que tem em conta a economia das paixões,Platão vai além do ingénuointelectualismosocrático, a crença segundo a qual o simplesconhecimento do seria suficiente para moti-var a sua prática.

Um quarto aspecto, ainda a referir na éticaplatónica, diz respeito à ligação da ética àmatemáticae à cosmologia. Trata-se, pro-vavelmente, do aspecto mais afastado do es-pírito de Sócrates. O ideal ético definidoem termos de equilíbrio e da proporcionali-dade matemática entre as “partes da alma”é posto em relação de homologia com a har-monia da “alma do mundo” (conceito centraldo Timeu), que possui virtudes e um ordena-mento ideais. Este aspecto da ética de Pla-tão, que estabelece uma união natural entre amatemática, as ciências da natureza e a ética,não constitui uma simples curiosidade histó-rica. A sua actualidade manifestar-se-á a vá-rios níveis da discussão ética do século XX.Tal será o caso na discussão metodológica,quando Husserl, por exemplo, exige para aaxiologia ética uma “necessidade” de carác-

ter lógico e matemático. Tal será o caso,igualmente, quando Charles Taylor refere oeclipse das cosmologias antigas como factorde desorientação do sujeito ético moderno,obrigado a procurar no abismo de si próprio,improváveis equilíbrios e harmonias.

Aristóteles

No âmbito desta disciplina, a importância daética de Aristóteles não é apenas de ordemhistórica, mas igualmente sistemática. Comefeito, esta ética representa na sua formamais acabada um paradigma do pensamentoético que continua a ter uma grande impor-tância na discussão ética dos nossos dias.Esse paradigma é defendido por vários au-tores contemporâneos, que tentam torná-looperativo na situação social e ética em quevivemos, depois de o submeterem às neces-sárias modificações de conteúdo, motivadaspelas óbvias diferenças entre a sociedade emque viveu Aristóteles e a sociedade ocidentalactual.

Para compreender a ética de Aristóteles épreciso partir da questão a que ela dá res-posta, e na qual já está inscrita a estruturateleológicado pensamento ético do estagi-rita. A questão “como viver?”, questão geraldas éticas gregas, já encontrada em Platão,assume aqui a forma: para que é que devoviver? Ou seja: qual deve ser o meu objec-tivo ou “fim” na vida? Na medida em quesou um ser humano ao qual foi dada umavida humana, com todas as suas potencia-lidades, para viver, põe-se a questão de sa-ber o que é que devo fazer com essa vida.Já surge aqui um dos modelos operativos aoqual Aristóteles recorre para ilustrar a es-trutura do bem agir, o modelo do artesão.Da mesma forma que o artesão recebe uma

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Ética da Comunicação 25

matéria-prima para fabricar uma obra aca-bada, que é o seu fim, cada ser humano re-cebe a vida como uma matéria-prima à qualdeverá dar uma forma tanto quanto possívelperfeita, de acordo com um ideal de perfei-ção que será objecto de reflexão. Dar umaboa forma à nossa vida é como realizar umaobra artesanal de acordo com um ideal deperfeição.

é necessário fazer compreender as rela-ções estruturais, e formais, entre os concei-tos centrais do paradigma ético aristotélico:os conceitos de fim, de bem, de vida boa ouconseguida (eudaimonía), que é, ao mesmotempo, o bem supremo, e de virtude. Aquiloque cada um deseja atingir ou realizar navida, o seu “fim”, é para si, obviamente, um“bem”, e mesmo o bem por excelência, o“bem supremo” (tò áriston). Coloca-se emseguida a questão do conteúdo concreto dobem ou daquilo para que cada um deseja vi-ver. Com a resposta a esta questão Aristóte-les desenvolve igualmente uma teoria dos di-ferentesgéneros de vida. Da eleição de umdos quatro fins a que, segundo ele, se podepretender na vida - prazer, riqueza, honras(políticas, militares, etc.), ciência - decorre o“género de vida” necessário à concretizaçãodo fim escolhido.

As reflexões desenvolvidas por Aristóte-les com vista a estabelecer uma hierarquiados bens e dos respectivos géneros de vidaestá, sem dúvida, muito marcada por repre-sentações inerentes à cultura da época. Talé o caso, por exemplo, da desconsideraçãoda vida do comerciante ou da não inclusãoda vida do artesão, do trabalhador manual,na lista dos géneros de vida. O que inte-ressa reter, contudo, do ponto de vista do pa-radigma ético, é o conceito devirtude, ouseja as qualidades ou “excelências” (tradu-

ção literal do termo gregoareté, que designaa virtude) que são necessárias aos diferentesgéneros de vida, à obtenção dos respectivosbens e, em seguida, a relação das diferen-tes virtudes à virtude das virtudes, aoérgon,ou seja à essência ou função do ser humanoem geral. Aquilo que serão as virtudes mo-rais, virtudes daprâxis, como a coragem ou agenerosidade, é concebido em paralelo comvirtudes relativas àstéchnai.

A posse das virtudes, sejam elas morais,intelectuais ou técnicas, é uma das duas con-dições para alcançar o fim natural da vidahumana que é a vida boa oueudaimonía.A outra reside num conjunto de bens queAristóteles qualifica de “exteriores” (ektòsagathós). “é eudaímon, tem uma vida fe-liz, aquele que durante toda a sua vida agede acordo com a virtude e se encontra sufici-entemente provido de bens exteriores.”25 Osbens exteriores compreendem, para além daposse de riquezas e bens materiais da ordemdo ter, bens materiais da ordem do ser, comoser belo ou ser de boas famílias, bens soci-ais, como o facto de ter amigos, assim comoa boa sorte ou fortuna favorável. Esta con-dição, que é, finalmente, uma soma de con-dições, da felicidade mostra, dentro de ummesmo paradigma ético, o realismo de Aris-tóteles relativamente à posição de Sócrates ede Platão, que será igualmente assumida pe-los Estóicos, os quais viam na simples posseda virtude, num equilíbrio imanente da alma,a realização do bem e a concretização da vidaboa, quaisquer que fossem as circunstânciasexteriores. Para Martha Nussbaum o inte-resse da posição de Aristóteles sobre a ques-tão dos bens exteriores não reside priorita-riamente num “realismo” geralmente subli-

25 Eth. Nic., 1101a14.

26 José Manuel Santos

nhado, mas sobretudo no facto de ela expri-mir uma grande sensibilidade relativamenteà “fragilidade do bem humano”, à dificul-dade de reunir, num mundo marcado pela fi-nitude e pela contingência, as condições dobem26. Um outro comentador, Pierre Auben-que, sublinha a modernidade de uma éticaque não ignora a contingência do estar-no-mundo27.

A reactivação actual do paradigma éticoaristotélico insiste muito particularmente noconceito devirtude, no duplo significado queele tem em Aristóteles: qualidades necessá-rias à realização de uma vida plena e conse-guida, por um lado, qualidades que caracte-rizam uma “essência” do humano, oergonpróprio do homem. é, pois, necessário, naleitura de Aristóteles, chamar a atenção paraestes dois aspectos do conceito de virtude,que vão estar no centro da discussão actualem torno das éticas “neo-aristotélicas”.

Na sua exposição do conceito devirtudeAristóteles guia-se frequentemente, como jáse disse, pelo modelo do artesão. Todavia,ele introduz a certa altura (no Livro VI daética a Nicómaco) uma importante distinçãoentreprâxis e téchne, entre duas modalida-des do agir, na qual separa a esfera da ac-ção propriamente moral e política, da do fa-zer poético ou técnico. Trata-se de uma dis-tinção muito importante para o pensamentoético, não só antigo mas igualmente mo-derno, sobre a qual é necessário insistir. Elaestá na base da convicção, ainda hoje larga-mente partilhada, inclusivamente por aque-les que não assumem o paradigma ético aris-totélico, segundo a qual os problemas éticosou políticos não podem ter soluções técnicas.

26 Cf. Nussbaum, 1986.27 Aubenque, 1963, 91.

Na definição do conceito de virtude28 en-contramos a célebre teoria da mediania (“nomeio é que está a virtude”), que sistematizaa ideia já encontrada em Platão, segundo aqual a prática da virtude exprime um equilí-brio entre partes da alma e energias psíqui-cas. A posse das virtudes morais (coragem,generosidade, etc.) exprime-se num agir “deacordo com a mediania”, ou seja consiste emsaber dosear racionalmente paixões e ener-gias anímicas, que só se tornam problemáti-cas quando usadas de maneira desregulada.

No cerne do paradigma ético aristotélicoestá a ideia de que as virtudes propriamentehumanas decorrem de algo como uma vir-tude ou essência, Aristóteles utiliza o termode érgon, geralmente traduzido por função,própria do homem. Para ilustrar esta ideiaAristóteles recorre a comparações do homemcom objectos (lira), órgãos do corpo (olhoque serve para ver) ou animais (cavalo) quechocaram leitores modernos, imbuídos dasideias iluministas da “dignidade humana” eda “autonomia” absoluta da “razão”. A pri-meira é ferida pela comparação do homemcom um animal ou um objecto, a segundaparece ser negada pelo facto de se atribuirao homem uma “função” pré-determinada.Assim, pensa Aristóteles, se a excelência ouvirtude do cavalo, por exemplo, é que essecavalo “seja bom para correr e para transpor-tar o cavaleiro face ao inimigo”, “a virtudede um homem é a disposição que torna essehomem bom e a sua obra boa”29.

Entre os neo-aristotélicos actuais estaideia da “essência” ou “função” do ho-mem vai ter interpretações diferentes. Ma-cIntyre vai interpretá-la num sentido “comu-

28 Eth. Nic., 1106b.29 Eth.Nic., 1106a20.

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nitarista”: ela significaria que o indivíduohumano, para ter uma vida propriamente hu-mana, deve preencher determinadas funçõessociais, que implicam outras tantas virtudes,no seio de uma comunidade. Martha Nuss-baum vai tentar reunir na “essência” as capa-cidades mínimas que permitem dizer que umdeterminado ser é humano e tem uma vidahumana. Essas capacidades vão desde o sim-ples facto de ter um corpo e de poder satis-fazer as ncessidads desse corpo, até às maiselevadas capacidades políticas, que Aristóte-les sintetizou na virtude da “prudência” (ph-ronesis), passando por capacidades tipica-mente humanas como a de rir ou de chorar.Uma vida humana conseguida é aquela emque todas estas capacidades ou virtudes dis-põem de espaço suficiente para se exprimi-rem.

2.2.2 Cristianismo

Na suaShort History of Ethics, de 1966,Alasdair MacIntyre sublinha a “extrema di-ficuldade” que enfrenta quem se dá a si pró-prio a tarefa de “apresentar de maneira ade-quada o contributo do cristianismo para ahistória da ética”30. A “dificuldade” seria detal ordem que para o temerário que se propu-ser levar a cabo uma tal tarefa, a única opçãoque resta será apenas a escolha entre diver-sas formas de “erro”. Um tal aviso não deixade impressionar, vindo de um grande especi-alista de ética, que, ainda para mais, se en-contra particularmente próximo de posiçõescristãs. à sua luz, a tarefa de abordar o temada moral cristã numa disciplina de introdu-ção à ética, para estudantes de comunicação,surge quase como um acto de loucura peda-

30 MacIntyre, 1966, 115.

gógica. Após reflexão, contudo, chegou-seà conclusão que, nesta questão, incluir ounão incluir um tal capítulo no programa, pormaiores e mais mortais que fossem os riscospedagógicos e científicos, era absolutamenteinevitável.

Os riscos começam por estar ligados àenorme complexidade da questão da “moralcristã”. Com a apresentação da ética aristo-télica está dado o paradigma da “moral clás-sica”, prudencial, dos gregos; com a apresen-tação da ética de Kant, o modelo mais siste-mático de uma ética iluminista “moderna”.O caso do cristianismo é muito mais com-plexo. Entre éticas tão diferentes como a deSão Tomás e a de Kierkegaard, ambas in-dubitavelmente “cristãs”, só muito artificial-mente se estabeleceria uma unidade sistemá-tica, ao ponto de ser, finamente, abusivo falarda “moral cristã”. A dificuldade, aliás, co-meça pelo facto de, como nota, com toda arazão, Olivier Boulnois, “o cristianismo nãoser na sua essência uma moral.Il est unefoi, non une loi”. Mas se “o cristianismo éde uma ordem diferente da moral”, escreveainda Boulnois, ele “não pode deixar de sepreocupar com a moral”; mesmo se “nãodepende dela”, ele “enquadra-a, integra-ae transforma-a”31. Pedagogicamente, por-tanto, não se trata de ensinar as “regras” deuma demasiado esquemática “moral cristã”,mas, tarefa mais difícil, de fazer compreen-der de que maneira o espírito do cristianismo“enquadrou”, “integrou” e “transformou” amoral.

Para dizer as coisas mais concretamente,o principal objectivo deste capítulo é de fa-zer compreender o papel que teve o espíritodo cristianismo, a suaWirkungintegradora e

31 Citações tiradas de Boulnois, 1996, 252.

28 José Manuel Santos

transformadora, na génese das morais da mo-dernidade, mesmo, e sobretudo, na das quese concebem como não teológicas e “autó-nomas”, assim como na origem das proble-máticas éticas específicas da modernidade.Há aqui, portanto, dois objectivos. O pri-meiro é mostrar que, para além das aparên-cias ligadas à oposição, demasiado esque-mática, entre “fé” e “saber”, o cristianismofoi, de algum modo, condição de possibili-dade da moral humanista, universal e iguali-tária do iluminismo; moral essa que, por seuturno, está por detrás do projecto político dademocracia moderna. O segundo é mostrarque também os grandes problemas éticos damodernidade, os paradoxos da moral tardo-iluminista (Kierkegaard, Nietzsche), oanti-humanismoe oniilismo, não podem ser com-preendidos, sem ter em conta a vertente maispessimista e trágica do pensamento cristão,aquilo a que MacIntyre, autor que não sepode suspeitar de anti-cristianismo, chama“irracionalismo cristão”32, e que ele opõe ao“racionalismo” de que deram provas os au-tores mais clássicos da tradição cristã (comoSanto Agostinho ou São Tomás) no seu es-forço de integração das éticas gregas.

Antes de tentar atingir estes objectivos fi-nais do capítulo, contudo, é necessário pro-ceder a dois passos prévios: O primeiro émostrar até que ponto e de que maneira oespírito do cristianismo conseguiu “integrar”a ética prudencial clássica, ou seja as éticasgregas. O segundo é mostrar asnovidadesque ele introduziu nessas éticas, as quais,constituem, finalmente, os temas principaisda “ética cristã”.

Relativamente ao primeiro passo, convémsublinhar, de acordo com a investigação mais

32 MacIntyre, 1966, 115.

recente, e em particular com os trabalhosde Peter Brown33, a continuidadedas éticascristãs com as éticas gregas. Como escreveBoulnois, do ponto de vista da ética, “o cris-tianismo não deve ser pensado como um sim-plesrenversementdo paganismo, de acordocom o esquema hegeliano, mas como a suaintegração, na medida em que, em grandeparte, herdou a sábia e sofisticada elaboraçãomoral de Platão, de Aristóteles e dos Estói-cos”34. MacIntyre tem, pois, razão ao afir-mar, emAfter virtue, que, de um modo ge-ral, a ética cristã partilha com as éticas gre-gas, e em particular com a aristotélica, umamesma estruturateleológica, que opõe am-bas às éticas iluministas, as quais estipulamum “dever” independente de “fins”. Devidoà mesma continuidade, a ética cristã conti-nua a ser, tal como a grega, uma ética dafe-licidade - beatitude, no contexto cristão - eda excelência dasvirtudes. Por outro lado,tal como acontece na ética grega, nomeada-mente na dos Estóicos, a ética cristã encarauma harmonia com anatureza(criada porDeus), inclusive com o que há de natural nanatureza humana, como elemento central deuma vida boa - apesar das tensões que surgi-rão entre esta ambição naturalista e a proble-mática do pecado original. São Tomás nãopodia, sem dúvida, encarar a natureza hu-mana, tal como ela é, intrinsecamente afec-tada pelo “pecado”, com a mesma confiançaque Aristóteles; todavia, para o Doutor daIgreja, ela já nos fornece, tal comoela é, “in-dícios” preciosos do quedeve ser.35

33 Cf. em part.The Body and Society, 1988.34 Boulnois, 1996, 252.35 MacIntyre, 1966, 114. MacIntyre considera que

na “concepção protestante” das coisas a natureza hu-mana vai ser vista num tal estado de pecado e corrup-ção que os sinais que dela possam vir não têm qual-

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Uma vez mostrada a continuidade, é ne-cessário mostrar astransformaçõesintrodu-zidas pelo cristianismo nas éticas gregas. Es-tas transformações são, fundamentalmente,quatro.

1. A primeira é a temática da “lei”, he-rança judaica que vai introduzir, ao ladodo elemento teleológico (herdado daética grega), um importante elementodeontológico. No “Sermão da Monta-nha”, Cristo retoma os mandamentos dalei moral judaica36.

2. A segunda é a radicalização douni-versalismoético e da exigênciaiguali-tária, muito para além dos elementosuniversalistas e igualitários já existen-tes nas éticas grega e judaica. Em Aris-tóteles subsiste uma desigualdade “pornatureza” entre escravos e homens li-vres, assim como entre homens e mu-lheres, e uma diferença civilizacionalentre gregos e “bárbaros” (não gregos);no judaismo uma desigualdade por as-sim dizer comunicacional entre os re-ceptores privilegiados da “mensagem”(membros do “povo eleito”) e os outros.O cristianismo, religião de uma “men-sagem” que se pretende, quanto ao con-teúdo e quanto aos receptores, univer-sal (sentido etimológico dekatholikós),suprime todas estas diferenças37, facto

quer relevância moral. Isto explica, por exemplo, aoposição radical que vamos encontrar em Kant entreo dever moral e as “inclinações” naturais, sendo estasúltimas totalmente desprovidas de relevância ética.

36 Cf. Evangelho segundo S. Mateus, 5, 17 e segs.(“Não julgueis que vim a destruir a lei ou os profe-tas; não vim a destruí-los, mas sim a dar-lhes cumpri-mento.”)

37 Este aspecto é particularmente claro na epístolade São Paulo aos Romanos.

que terá importantes consequências éti-cas.

3. A terceira é uma revisão “revolucioná-ria” (aos olhos de um espírito grego) databela das virtudes: nos lugares cimei-ros ocupados, na tabela aristotélica, porvirtudes como a sabedoria, a coragemou amegalopsuchía(grandeza de alma),passam a figurar virtudes que Aristóte-les acharia, sem dúvida, estranhíssimas:amor do próximo(sem limites, inclu-sive dos nossos inimigos),humildade,caridade.

4. Finalmente, a transformação das éticasda vida boa pelo cristianismo conduz auma inflexão das tecnologias do eu (doself), dasaskeseis- já presentes nas éti-cas helenísticas - mas, aí, como sim-ples tecnologias de uma vida boa, mar-cada pela finitude de um cosmos sem“além”, no sentido da “salvação” e deuma aplicação à problemática do mal edo “pecado” inerentes à “carne”. Estaperspectiva salvífica e escatológica, li-gada à questão do pecado, vemexacer-bar um souci de soi, herdado das éti-cas gregas. Foi no contexto destas éti-cas que Foucault, na sua última obra,analisou a questão dosouci de soi. To-davia a transformação da ética da vidaboa pelo cristianismo faz surgir razõesmuito mais fortes para um talsoucidoque as que podiam existir no contextoda finitude do cosmos grego.

Esta quarta transformação poderá servir paraabordar a importantetensão, que atravessoutoda a relação do cristianismo com a ética aolongo dos séculos, entreindivíduoecomuni-dade, entre dois ideais de vida antagónicos:

30 José Manuel Santos

vida solitária e vida “secular” ou “mundana”.Uma dada interpretação do cristianismo, doponto de vista ético, ou seja da forma a darà nossa vida, pode “levar a que as pessoasdeixem de procurar o fim da sua vida no seiode umacomunidadehumana, para o procurarnumasalvação individualfora dessa comu-nidade”38. Uma tal atitude, que leva a pri-vilegiar a relação pessoal e directa do indi-víduo com Deus, está na origem das experi-ências místicas atestadas na história do cris-tianismo e pode explicar filosofias que Ma-cIntyre subsume sob o já referido conceitode “irracionalismo cristão”. A problemáticado indivíduo e do individualismo na moder-nidade39, a procura de “auto-realização” e de“autenticidade”, aparece, assim, vista à luzda questão da história da relação do cristi-anismo com a ética, como a herança secu-larizada de uma problemática cristã. Toda-via, o cristianismo também desenvolveu éti-cas que privilegiam o elemento “comunita-rista” da tensão em causa, numa atitude que,aliás, se adequa naturalmente com o supremomandamento do “amor do próximo”. Estaséticas, de que a de São Tomás fornece umbom exemplo, são, pela sua natureza, de ca-racterprudenciale, por conseguinte, racio-nalista.

2.2.3 Éticas iluministas (Kant)As éticas iluministas marcam uma nítidaruptura na estrutura do pensamento ético oci-dental. Para compreender uma tal ruptura énecessário ter em conta alguns aspectos cen-trais daepistemé(no sentido geral dado por

38 MacIntyre, 1966, 115.39 Que será estudada, no âmbito da disciplina de

ética I, no capítulo dedicado às éticas teleológicascontemporâneas, a partir da obra de Charles Taylor.

Foucault a este conceito) iluminista. Estaruptura e estes aspectos continuam, aindahoje, a marcar o horizonte da reflexão ética.

O primeiro aspecto a ter em conta dizrespeito a dois saberes correlativos sobre omundo e o homem - cosmologia e antropo-logia. As éticas antigas, grega e cristã, esta-vam dependentes de representações do cos-mos, nas quais o ser humano ocupava umdeterminado lugar na hierarquia dos seres.O cosmos grego dava ao homem um lugarque, apesar de estar marcado pela contingên-cia de princípio e pela condição da mortali-dade, e, portanto, da finitude, estava inseridonuma ordem eterna. A narrativa cósmico-teológica que o cristianismo levou à cena nopalco do cosmos aristotélico, dava a cada ho-mem, ainda mais que um simples lugar nummundo amável, um papel de relevo na histó-ria do mundo, ou seja, numa linguagem mo-derna, dáva-lhe razões ainda mais fortes paraviver a partir de uma concepção da vida boa(ideal) inserida numa ordem cósmica (real).Ora, os conhecimentos que as novas ciên-cias da natureza, astronomia e física, come-çaram a fornecer a partir de Galileu, e, jáno tempo de Kant, de Newton, vieram aba-lar profundamnte os pressupostos cosmoló-gicos que serviam de pano de fundo às éticasantigas e cristãs da vida boa, e, finalmente,impossibilitar que se encontrasse na (nova)ordem do cosmos uma qualquer matriz paraa ordem das acções dos humanos. O horrorsentido por Pascal perante a nova imagemdo cosmos dada pelas ciências da naturezailustra bem esta impossibilidade: “Le silenceéternel de ces espaces infinis m’effraie.”40

O atributo da “infinidade” destrói o carác-ter idílico que, apesar da contingência, ainda

40 Pascal, 1971, 428.

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marca o “mundo fechado” (Koyré) e finitodo cosmos grego. O “silêncio eterno” signi-fica que num tal universo Deus será neces-sariamente, caso exista, um “Dieu caché”41.A natureza e o cosmos deixam de ser pro-vas da existência de Deus (de onde a neces-sidade do “pari”, da pura “aposta” pascali-ana na “salvação” e no “além”); correlativa-mente, a “fé” (independente de qualquer co-nhecimento) adquire nova importância paraa salvação (“la foi sauve”), e separa-se do“saber” das ciências.

Para a antropologia e para a ética - asduas disciplinas estão intimamente ligadas -a nova situação da questão cosmológica vaiter uma importância determinante. Na im-possibilidade de definir a “natureza humana”a partir de uma ordem cósmica, os pensado-res do iluminismo vão tentar defini-la, porassim dizer,em si. Da época de Descartese Hobbes à de David Hume multiplicam-seos tratados “do homem” ou da “natureza hu-mana”. Ao mesmo tempo, a questão éticadeixa de ser a formulada por Platão: “comoviver?”, ou seja como vivernum dado cos-mos?, mas a formulada por Kant: “o quedevo fazer?”, ou seja como encontrar no ho-mem, tal como o pensa a nova antropologia,uma lógica própria para as suas acções. Doponto de vista dos discursos da época, estaevolução traduz-se na insistência na “autono-mia” do sujeito ético, por um lado, e da éticarelativamente à religião e à teologia, por ou-tro lado.

Esta “lógica” poderá assumir aspectosbastante diferentes, e mesmo antagónicos,dentro do paradigma das éticas iluminis-tas, consoante a concepção de “natureza hu-mana” de que se partir e da metodologia a

41 Pascal, 1971, 214.

que se der preferência. Ela poderá ser uma“logique du coeur”, ou seja dos sentimentos,ou uma lógica das “razões da razão” (Pas-cal). O método será empírico, baseado na ex-periência e no conhecimento do homem (an-tropologia), no primeiro caso, ilustrado pelaética de Hume, ou dedutivo e apriorístico,partindo de “conceitos da pura razão”42, nosegundo, ilustrado pela ética de Kant. Nesteúltimo caso, a crítica do recurso à antropo-logia em ética tem os seus limites, visto quetambém aqui se tomou a decisão antropoló-gica de considerar o homem, enquanto su-jeito ético, como “ser racional”. Comum aestas duas abordagens opostas da ética háum pressuposto epistemológico que consti-tui um outro aspecto daepisteméiluminista.Do ponto de vista epistemológico, a ética, deacordo com a crítica generalizada do pensa-mento teleológico, deixa de partir da ideiade um conhecimento dos fins. Ao conheci-mento do lugar do homem no cosmos, cor-respondia, naturalmente, um conhecimentoda melhor forma de vida e, portanto, dos“fins” de uma vida propriamente humana, edas “virtudes” necessárias à sua realização.Em vez de causasfinais para agir, o éticoprocura, agora, motivos ou móbiles, causaseficientesda acção, que podem ser ou bemsentimentos (Hume) ou bem um “dever” pu-ramente racional (Kant).

Kant é o pensador que leva mais longe alógica dos pressupostos epistemológicos ilu-ministas em ética. Tal como Hume, ele con-sidera que a ética não se pode apoiar numpensamento ontológico e teleológico que in-fere um “deverser” a partir do “ser”, ou sejaque preconiza uma forma de vida ideal, a re-alização de um determinado “fim” ou “bem”,

42 Kant, 1906, 5, 6.

32 José Manuel Santos

partindo de uma concepção da natureza hu-mana. Isso seria cometer o pecado lógico aque Hume deu o nome de “falácia natura-lista”, pecado geral das éticas anteriores aoiluminismo. Ao contrário do céptico Hume,contudo, Kant não considera que a razão hu-mana não tem capacidade para prescreverum “dever ser”, e que o conhecimento hu-mano do homem só pode explicar a poste-riori os móbiles de acções que residem, pri-mordialmente e em última instância, em sen-timentos e paixões. A posição de Hume fazsurgir o paradoxo iluminista da “liberdade”:de que vale o homem ter-se emancipado deentidades transcendentes para encontrar emsi próprio as razões da sua própria acção, sea sua vontade se torna escrava de “sentimen-tos”, “inclinações” e “paixões”? Não fica-ria nesse caso prisioneiro do elemento na-tural da natureza humana, elemento sujeitoao determinismo das leis da natureza? Doponto de vista de Kant, a solução do para-doxo exige que a lógica do agir “por dever”,do agir verdadeiramente moral, seja total-mente independente de “inclinações” natu-rais, aspirações à felicidade ou cálculos deinteresse e utilidade, e tenha a sua fonte ape-nas na razão. “Liberdade” é a independên-cia da razão do “ser racional” em determinara máxima da sua acção sem constrangimen-tos sentimentais, pulsões naturais, perspec-tivas de felicidade, ameaças de sanções oupromessas de compensações.

Esta oposição radical de um “dever moral”que corresponde a um agir absolutamente ra-cional, conforme à razão prática, a todas as“inclinações” naturais, leva a uma justifica-ção ou fundamentação desse dever atravésde um método processual, puramente for-mal, dedutivista e contra-intuitivo. Assim,enquanto, por exemplo, na ética grega o res-

peito do outro é justificado pela necessidadede o indivíduo ter “amigos”, ou seja, ter re-lações sociais, para ser feliz, e no contextocristão através da experiência do “amor”, afórmula kantiana que exprime a obrigação derespeitar o outro, o “imperativo categórico”,não pode recorrer, para se justificar, nem aargumentos pragmáticos nem a intuições da-das em experiências vividas. A moral, se-gundo Kant, não só não necessita, mas deve-se interditar o recurso à intuição para se fun-dar na razão.

Este modelo formal de justificação do de-ver moral, da ética kantiana, vai ser aper-feiçoado, na segunda metade do século XX,por teóricos como Karl-Otto Apel e JürgenHabermas, continuando, contudo, a ser criti-cado por éticos da tradição fenomenológica,assim como por teóricos que procuram re-activar o modelo teleológico das éticas pré-iluministas, devido, sobretudo, ao seu carác-ter formalista e contra-intuitivo.

2.2.4 A discussão éticacontemporânea

A discussão ética contemporânea pode seresquematizada a partir de uma oposição defundo entre éticas de tipodeontológico, queretomam a linha argumentativa da ética deKant, reformulando-a a partir de metodolo-gias filosóficas recentes (ou seja, muito pos-teriores a Kant), em particular o pragma-tismo e a filosofia analítica inspirada pelochamado “linguistic turn” (baseado no pen-samento do segundo Wittgenstein), e éticasde tipoteleológico, que, de um modo geral,tentam actualizar o modelo epistemológicodas éticas gregas, segundo o qual o objec-tivo da ética é responder à questão “como vi-ver?”, através da definição de um bem subs-

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tancial e da descrição de uma forma ideal de“vida boa”. Na medida em que a concretiza-ção do ideal de vida boa implica a presençae o desenvolvimento de determinadas capa-cidades humanas ou virtudes, às éticas tele-ológicas também se pode chamaréticas dasvirtudes.

Uma ética é ditadeontológica(do gregotò déon, o dever, particípio substantivado doverbo unipessoaldeô, ser preciso, ser neces-sário) quando avalia acções ou opções emfunção de normas que estipulamdeveresouobrigações; uma ética é ditateleológica(dosubstantivo gregotélos, fim) quando avaliaacções ou opções em função da sua eficáciaou contributo para a realização de um deter-minadofim, normalmente identificado com obem por excelência ou bem supremo (sum-mum bonum). Mais recentemente, foi in-troduzido na discussão ética o termoconse-quencialismo43 para caracterizar as éticas te-leológicas, na medida em que nestas os actossão avaliados em função das suas consequên-cias, e não de normas deontológicas estabe-lecidas a priori. No entanto, os dois termosnão são sinónimos. Se é verdade que to-das as éticas teleológicas são consequencia-listas, visto que nelas as acções são avaliadasem função das consequências que possam terou não ter para a realização do fim consi-derado bom, pode haver éticas consequen-cialistas que não sejam, no sentido estritodo termo, teleológicas. Trata-se, neste caso,de éticas que não definem positivamente um“bem supremo”, não sendo por isso teleo-lógicas no sentido estrito, mas que avaliam

43 A introdução sistemática deste conceito em teo-ria ética deve-se à filósofa inglesa Gertrud ElisabethAnscombe, uma aluna e discípula de Wittgenstein,num artigo de 1958, “Modern Moral Philosophy”. Cf.Anscombe, 1981.

as acções na perspectiva das consequênciasque estas possam vir a ter, a mais ou me-nos longo prazo, para umsummum malum,que deve ser evitado a todo o custo. Umcaso paradigmático de uma ética deste tipoé a “ética da responsabilidade” de Hans Jo-nas, na qual as acções, em especial as quese apoiam emtécnicasque potenciam detal modo o agir humano que lhe conferemconsequências incalculáveis para os própriosagentes, são avaliadas na perspectiva da pos-sibilidade de umsummum malumque seria aauto-destruição da espécie humana ou a des-truição das condições de vida na Terra, naconsequência de acções irreflectidas e irres-ponsáveis no contexto da moderna tecniciza-ção daLebenswelt.

O programa da disciplina prevê o desen-volvimento de algumas teorias éticas maisrepresentativas das linhas deontológica e te-leológica. No que diz respeito às éticas doprimeiro tipo optou-se pela apresentação daética de Jürgen Habermas, por ela ser, no seugénero, uma das que mais influência está ater na discussão actual. A justificar esta op-ção está também o facto de na “ética do dis-curso” de Habermas o conceito de comuni-cação ter um papel teórico central.

Quanto às éticas teleológicas, começa porse apresentar o exemplo mais discutido e tal-vez mais característico deste tipo de éticas: a“ética das virtudes” de Alasdair MacIntyre.Este autor é particularmente interessante, namedida em que o seu projecto ético parte deuma crítica sistemática das éticas deontoló-gicas iluministas, permitindo assim uma re-flexão crítica sobre a tradição ética que vaide Kant a Rawls e Habermas. Não podemos,no entanto, deixar de ter em conta que a ten-tativa de MacIntyre de reactivar e adaptar aonosso tempo uma ética de tipo grego, e, mais

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precisamente, aristotélico, deu lugar a mui-tas críticas, e não só por parte de represen-tantes da linha deontológica, como Haber-mas, devido sobretudo ao carácter “conser-vador” ligado ao conceito macintyreano de“comunidade”. Torna-se, assim, necessáriomostrar que a reactualização, aqui e agora,do paradigma ético grego, nas suas diversasversões, inclusive na aristotélica, não tem demodo algum de ser “conservador” ou “reac-cionário”. Este objectivo pode ser atingidocom a apresentação da ética de Martha C.Nussbaum, que desenvolve uma ética neo-aristotélica, e essencialista, por assim dizer“de esquerda”, consequentemente colocadana base de uma teoria política que qualificade “Aristotelian social democracy”44. Aindadentro da perspectiva dos autores contempo-râneos que se apoiam nos impulsos dos gran-des éticos gregos será igualmente estudadoum texto de Hannah Arendt45, no qual estaautora reactualiza o núcleo do pensamentosocrático, momento ao mesmo tempo funda-mental e fundador do pensamento ético oci-dental. Por uma questão de limites de temponão se apresentam três autores contemporâ-neos, sem dúvida importantes, que levaramigualmente a cabo uma reactualização de pa-radigmas éticos gregos: Iris Murdoch, Mi-chel Foucault e Bernard Williams - podendoestes autores, no entanto, ser objecto de tra-balhos escritos de estudantes que se interes-sem especialmente pelo tema. Finalmente,falar-se-á de uma ética que apresenta impor-tantes traços teleológicos, sem no entanto re-correr a qualquer paradigma ético herdadodos gregos, assentando, ao contrário, numestudo do movimento de ideias que conduziu

44 Nussbaum, 1990.45 Arendt, 1971.

à constituição do sujeito ocidental moderno,um estudo das“sources of the self”a par-tir do início da Idade Moderna: a “ética daautenticidade” de Charles Taylor.

A terminar a parte histórica do programaapresentar-se-á brevemente algumas éticasque escapam aomain streamda discussãoética contemporânea, dominada pela oposi-ção entre éticas deontológicas e teleológicas,que não são classificáveis dentro desta di-cotomia, e que são, talvez por isso, muitasvezes, injustamente esquecidas pelos manu-ais ou introduções à ética. Estão neste casoas éticas fenomenológicas, como as de MaxSchellere EmmanuelLevinas.

2.2.5 Éticas deontológicas(Habermas)

As éticas deontológicas contemporâneasprosseguem por novos meios e a partir de no-vas bases o esforço kantiano defundamentarpor métodos analíticos, argumentativos e de-dutivos as normas do dever moral. As teoriaséticas de John Rawls, Karl-Otto Apel ou Jür-gen Habermas são bons exemplos deste tipode éticas. Tais éticas são ditas deontológicasjustamente por estabelecerem um “dever”explicitamente formulável, opondo-se, nesteaspecto, aorelativismo, e sem se procuparemcom a definição de umbemsubstancial, deuma forma de vida boa ou de virtudes ade-quadas à concretização dessa vida, opondo-se, neste outro aspecto, às éticasteleológi-cas (antigas e contemporâneas). As éticasdeontológicas modernas são igualmente, aomesmo tempo que são éticas do dever, éticasdosdireitos46, na medida em que correlativa-

46 Nas classificações dos manuais há autores queoptam por lhes chamar “éticas deontológicas”, ou-

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Ética da Comunicação 35

mente ao estabelecimento de normas moraisse garantemdireitos das pessoas. Por outrolado estas éticas são ditascognitivistas, namedida em que consideram possível provar a“verdade” de uma proposição prescritiva, ouseja ética, com a mesma certeza epistemo-lógica com que se prova a verdade de umaproposição descritiva. Deste ponto de vistaessas éticas opõem-se aoemotivismoe aode-cisionismo, afirmando este que as proposi-ções éticas apenas exprimem decisões sub-jectivas, e, portanto, não susceptivis de se-rem “verdadeiras” ou “falsas”, e aquele quetais proposições exprimem simples preferên-cias subjectivas, motivadas, em última aná-lise, por estados emocionais. Ainda por mo-tivos epistemológicos e metodológicos, aséticas deontológicas cognitivistas opõem-sefrontalmente àsfenomenológicas, na medidaem que se apoiam apenas na razão discursivae assumem a forma de uma “fundamenta-ção”, ou seja desprezando completamente aproblemática das emoções, recorrendo a umaargumentação puramente conceptual, dedu-tivista e formal, e rejeitando explicitamente orecurso àintuição47 (pecado mortal na pers-pectiva fenomenológica), enquanto as segun-das se apoiam naexperiênciae naintuição,dando considerável importância à problemá-tica dasemoções, e centrando a tarefa daética na compreensão damotivaçãodo agirmoral (e não na fundamentação de regras enormas).

Não havendo tempo para abordar todas aséticas deontológicas contemporâneas, optou-se por uma apresentação da ética de Haber-mas, na medida em que se trata de uma ética

tros “éticas dos direitos”. Neste último caso está, porexemplo, Esperanza Guizán, 1995, 256 e segs.

47 Hebermas, 1983, 66.

que, ao contrário, por exemplo, da de Rawls,recorre muito explicitamente a umateoria dacomunicação.Pode-se mesmo dizer que, en-quanto que Rawls renova o paradigma kanti-ano articulando-o com uma versãosui gene-ris da teoria do contrato social distributivo,que assume a forma de uma teoria da justiçasocial, Habermas dá-lhe por base umateo-ria da linguagem e da comunicaçãoassentenuma “pragmática” - isto é numa teoria prag-mática da linguagem de origem peirciana -considerada “universal”.

Esta “universalidade” da pragmática deHabermas já significa, aliás, uma certa ate-nuação das exigências do fundacionalismokantiano: Ao contrário do que acontecena “pragmática transcendental” do seu co-lega e amigo Karl-Otto Apel, a pragmáticade Habermas é dita apenas “universal” porjá não exigir uma “transzendentale Letztbe-gründung”, uma “fundamentação transcen-dental absoluta”, limitando-se a uma fun-damentação feita a partir do procedimentodos sujeitos do agir no contexto da suaLe-benswelt(mundo da vida). Uma tal pers-pectiva tende, portanto, a atenuar o “for-malismo” da fundamentação apriorística etranscendental de Kant, a estabelecer, pela“pragmática”, uma ponte entre a pureza dasnormas éticas e o “mundo da vida” em quese movem os sujeitos concretos.

Nestas condições, é, pois, natural que aprincipal novidade da estratégia fundacio-nalista de Habermas seja a substituição do“princípio monológico” do discurso funda-dor, que caracteriza a fundamentação deKant, por um “princípio dialógico”. Isto sig-nifica que a lógica interna, a coerência ima-nente ao discurso deum“ser racional” - queé ao mesmo tempo sujeito moral e sujeito dodiscurso teórico fundamentador - não chega

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para fundamentar a norma ética. O ”univer-sal” habermasiano não é apenas formal e pu-ramente apriórico como o de Kant, mas con-creto; o pragmatismo obriga a introduzir al-guma empiria na forma pura. O princípiodialógico remete para uma racionalidadere-sultantede uma experiência comunicacional,do usode factoda linguagem. Em ética, esteprincípio leva Habermas a exigir uma refor-mulação do imperativo categórico kantiano,que deixa de ser simples expressão de umarazão prática “monológica” para passar a serconclusão de uma razão intersubjectiva e di-alógica, que exige, por princípio, os muitos ea sua respectiva intercomunicação: “Em vezde impor a todos os outros uma máxima queeu exijo ser lei universal, eu devo submeter aminha máxima a todos os outros, a fim de ve-rificar pela discussão a sua pretensão à uni-versalidade.”48

Para além de permitir atenuar o abismoentre o formalismo da norma e a complexi-dade do “mundo da vida”, isto é da experi-ência, o princípio dialógico fornece ao teó-rico da ética a vantagem de dispor de umobjecto cuja experiência concreta já é inter-subjectiva e tem de obedecer às normas porele próprio impostas: as do uso da lingua-gem. Nestas condições o objectivo da funda-mentação passa pela tentativa de aproximaro mais possível as normas da ética e as nor-mas “pragmáticas” do uso da linguagem, atéfazer daquelas as condições de possibilidadedestas.

Para tal, a polaridade moral tradicional en-tre obeme omal, ou em termos normativosentre o que se deve e não se deve fazer, entrecomo se deve e não deve agir, é traduzida emdois modos distintos de agir e de utilizar a

48 Habermas, 1983, 77.

linguagem: um “agir comunicacional” e um“agir estratégico”. O segundo poderá consis-tir na violência pura, na ameaça da sua utili-zação ou no recurso “estratégico” à lingua-gem para satisfação de interesses pessoais.O primeiro passa necessariamente pelo usoda linguagem - sendo a elisão de outras for-mas de comunicação o primeiro acto reduci-onista, entre muitos, desta teoria. O que per-mite estabelecer a ponte entre a pragmáticada linguagem e a ética é o conceito central deGeltungsansprüche, “pretensões à validade”,oriundo da teoria dos actos de linguagem (deAustin e Searle). A separação radical en-tre dois níveis do uso da linguagem, entredois tipos de “actos de linguagem”, oilocu-tório e operlocutório, (sendo o actolocutó-rio o acto linguístico na sua materialidade),acompanhada do pressuposto - nova medidareducionista - que só o ilocutório é o actoautêntico e o perlocutório um simples apên-dice que se pode dispensar, leva à conclusãoquetodo e qualqueracto de fala avança uma“pretensão à validade”. Tal seria a suaúnicarazão de ser. A pretensão à validade pode seruma pretensão à verdade, no caso das pro-posições descritivas, com cópula em “ser”,ou uma pretensão à validade normativa, nocaso das proposições prescritivas, com có-pula em “dever”. Partindo destas premissas,a tese central da teoria do agir comunicacio-nal é que, da mesma maneira que no contextoepistemológico, descritivo, o uso puramenteilocutório da linguagem conduz à verdade,no contexto normativo, a “força ilocutória”dos actos de fala, a racionalidade suposta-mente imanente à linguagem, conduziria acertezas normativas. No caso de desacordosno contexto da coordenação de acções colec-tivas, uma discussão entre as partes, mem-bros de uma comunidade ideal de comunica-

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ção, levaria a “consensos”, tanto no que tocaaos critérios normativos como das decisõesconcretas a tomar.

Uma tal teoria ética está particularmenteadaptada, enquanto ideal assumidamentecontrafáctico, a servir de princípio reguladorpara a opinião pública, numa sociedade ondese espera uma participação de todos nas deci-sões colectivas, através de uma discussão li-vre, racional e argumentada num espaço pú-blico inteiramente transparente. é de certomodo natural que se pense que também osproblemas de ordem ética possam ser resol-vidos por esse procedimento, inicialmentepolítico. Uma tal ética, contudo, apresentavários pontos críticos, sobretudo ligados àssucessivas medidas reducionistas que tomapara demonstrar as suas teses centrais. Jáfalámos do reducionismo que consiste embanir da teoria ética tudo o que é extra-linguístico, a começar pela problemática dossentimentos. As críticas vindas dos éticoscontemporâneos da tradição fenomenológicaprendem-se sobretudo com este aspecto e,de um modo mais geral, com a exclusão,da teoria ética, daexperiênciaem toda asua amplitude e complexidade49. Neste as-pecto, as críticas gerais vindas da fenomeno-logia coincidem com críticas mais particu-larizantes formuladas no próprio campo da“teoria crítica”, por teóricos da “terceira ge-ração” desta corrente, como, por exemplo,Axel Honneth. Para este, “o que motivaos comportamentos de protesto das classesmais baixas (Unterschichten) [na sociedadeactual] não é a orientação por princípios mo-rais positivamente formulados, masa expe-

49 Cf., a este respeito, as críticas da “ética do dis-curso” feitas pelo fenomenólogo Werner Marx, 1986,7.

riência da violação de concepções de justiçadadas intuitivamente”.50

Ao nível da própria tematização da lingua-gem a hegemonia absoluta do ilocutório e oanátema geral lançado sobre o perlocutório- comparável ao anátema platónico, igual-mente obsessivo e demasiado geral, lançadosobre a “retórica” - constituem igualmenteuma forma de reducionismo e uma forte hi-poteca. Habermas não nos dá razões sufici-entemente fortes para submeter o uso da lin-guagem à lógica pouco subtil, pesadamenteprocessual e, por assim dizer, mecanicistado ilocutório. Com a exclusão do perlocu-tório não é só a retórica manipuladora queencontramos na propaganda política vulgarou nas técnicas da publicidade que é postaem causa, mas igualmente todo o recurso a“segundos sentidos”, a usos “indirectos” dalinguagem e a técnicas retóricas como airo-nia ou amaiêuticaque, em pensadores comoSócrates ou Kierkegaard, foram armas deci-sivas do discurso da ética.

2.2.6 Éticas teleológicas(MacIntyre, Nussbaum)

Alasdair MacIntyre

O projecto de A. MacIntyre de reactivar umaética teleológica de tipo aristotélico, obvia-mente adaptada às peculiaridades da socie-dade moderna e conforme a exigências epis-temológicas de hoje, tem como propedêuticaum diagnóstico do estado actual do discursomoral corrente, não o dos filósofos profissi-onais, mas o dos intervenientes na políticae nos media. O que caracteriza esse dis-

50 “Erfahrungder Verletzung derintuitiv gegebe-nen Gerechtigkeitsvorstellungen.” Honneth, 1994,86. Sublinhado por J.M.S..

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curso é o relativismo e a confrontação, emúltima instância, de princípios antagónicosque se apresentam como igualmente legíti-mos do seu ponto de vista ético. O caso dastouradas de Barrancos (aldeia do Sul de Por-tugal) é um bom exemplo destes dissensosmorais característicos dos discursos públicosmodernos: nele se opõem duas legitimidadeséticas tão absolutas como irreconciliáveis, ados que defendem o direito à “identidadecultural” e a dos que defendem os “direitosdos animais”. O problema ético da moderni-dade não é uma “crise dos valores”, expres-são que poderia sugerir a iminência do seudesaparecimento, mas, ao contrário, o seuexcesso, a multiplicação dos princípios éti-cos irreconciliáveis. Uma das teses centraisde MacIntyre é de pensar “que o fracasso doprojecto iluminista de fundamentação racio-nal da ética fornece o fundo histórico (histo-rical background) que permite compreendera situação crítica em que se encontra a nossaprópria cultura”51, ou seja a referida inde-cidibilidade ética. Para provar esta tese eleleva a cabo uma genealogia crítica da moraliluminista moderna. Foi esta uma moral ela-borada no século XVIII por pensadores in-seridos nacultura protestante da Europa doNorte, o que explica que os principais expo-entes do projecto de fundamentação da mo-ral sejam escoceses como David Hume ouAdam Smith, ou um prussiano como Imma-nuel Kant; o que explica, igualmente, que,já no século XIX, tenha sido o luterano di-namarquês Soeren Kierkegaard o primeiro amostrar que o agir ético assenta numa deci-são “absoluta”, ou seja impossível de funda-mentar, e que tenha sido o alemão FriedrichNietzsche, filho de um pastor protestante, a

51 MacIntyre, 1985, 39.

retirar dessa impossibilidade algumas con-sequências escandalosas. Esta preocupaçãode MacIntyre pelo enraizamento histórico damoral e da ética é um dos traços distinti-vos das éticas teleológicas contemporâneas,opondo-se ao estilo de argumentação univer-salista, logicista, prossessual e supra-culturaldas éticas deontológicas.

A necessidade de “fundamentar” a moralsurge a partir do momento em que os dis-cursos que integravam os seus mandamen-tos numa ordem cosmológica e/ou teológicaperdem a sua autoridade. “Fundamentar” é,assim, encontrar no próprio sujeito moral,agora “autónomo”, razões de cumprir man-damentos que, do ponto de vista dos con-teúdos, são idênticos aos que tinham origemem potências “heteronómicas” como a von-tade de Deus ou a ordem cósmica (não matar,não roubar, não mentir, etc.).52 A fundamen-tação da ética coincide com a interrogaçãodesse ser, o homem, que, na linguagem drás-tica de Foucault, surge pela “primeira vez”,com o despontar da modernidade, no hori-zonte do saber ocidental. O discurso moraltorna-se antropológico. Ao nível do discursode opinião - representado pelos grandesopi-nion makersda época como Voltaire ou Di-derot - a moral deixa de ser vista do ladoda tradição, principal alvo da crítica ilumi-nista pelo seu carácter pretendidamente arbi-trário e “irracional”, para ser vista como algoque brota espontaneamente dos “sentimen-tos” e da “razão”,53 ou seja que constitui uma

52 MacIntyre tem razão em insistir no facto de oséticos iluministas aparentemente mais iconoclastas,como Diderot ou Kierkegaard, não terem modificadoem nada os valores centrais que receberam por educa-ção da tradição moral cristã.

53 Cf. os artigos “morale” e “bien” doDictionnairephilosophiquede Voltaire, 1961.

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consequência de desejos “naturais”, ineren-tes à própria “natureza humana”. Ao nível dodiscurso teórico da fundamentação da éticaos mandamentos da moral começam por serjustificados pelos sentimentos “naturais” dealtruismo ou simpatia (Hutcheson, Hume),que estariam presentes na maioria dos sereshumanos. Uma tal fundamentação apresentainúmeras fraquezas, a começar pelo carácterinstável e vacilante de desejos e sentimen-tos, mesmo na consciência de um só indiví-duo. Sem ter a pretensão de fundar, o apeloao sentimento em questões morais continuaa estar bem representado nadoxa da cul-tura contemporânea, espelhando-se numre-lativismo largamente partilhado, e no “emo-tivismo” de éticas mais recentes como a deG.E. Moore.

A crítica dos sentimentos “altruistas”como elementos fundamentadores da moralleva MacIntyre a adoptar a posição de Ni-etzsche, que via em tais sentimentos umasimples “ficção”54. Resta a fundamentaçãoda moral pela razão, na linha inauguradacom insuperável coerência por Kant, e hojereforçada por filósofos que se dedicam a ci-mentar o clássico, e portanto belo, edifí-cio kantino, injectando-lhe betões proveni-entes da filosofia analítica e do pragmatismo,ou seja recorrendo a ferramentas e materi-ais que ainda não estavam à disposição dosconstrutores do conceito nos finais do sé-culo XVIII. Apercebendo-se das fraquezasda moral dos sentimentos e, de um modomais geral, do discurso antropológico comofundamentador da norma moral enquanto in-condicionalmente obrigatória, Kant evacuanão só a tradição mas igualmente todos oselementos antropológicos do discurso funda-

54 MacIntyre, 1985, 49.

dor, a começar pelos sentimentos, paixõese inclinações. A própria razão deixa de serum simples predicado do humano para pas-sar a ser a de qualquer “ser racional”. Toda-via, a crítica de MacIntyre à ética kantiananão pode conduzir, pelos motivos já invo-cados na crítica do “emotivismo”, a um re-torno à moral dos sentimentos. ética da ra-zão e ética dos sentimentos são, no fundo,duas estratégias opostas do fundacionalismoiluminista que se destroem reciprocamente,aquilo que cada uma prova é, mais do quea “fundamentação” da ética, a impossibili-dade da outra. Daí que os dois grandes fi-lósofos da moral que fecham o ciclo do ilu-minismo clássico, Kierkegaard e Nietzsche,concluam pela impossibilidade da tarefa dafundamentação. A acção eticamente boa jápressupõe, pensa Kierkegaard, uma “atitudeética” e, por conseguinte, uma “opção abso-luta” (absolute Wahl), pré-ética e que nadajustifica, ou seja infundamentável (seja pelosentimento ou pela razão), do sujeito.

MacIntyre está de acordo com a conclu-são negativa de Kierkegaard e Nietzsche; nãoestando, no entanto, de acordo com as con-sequências que estes retiram do fracasso doprojecto fundacionalista, que são o puro de-cisionismo kierkegaardiano e a redução damoral a uma simples física (ou biologia)do Wille zur Macht, no caso de Nietzsche.Para MacIntyre o erro original que está nabase das aporias iluministas em matéria deética e do fracasso do projecto fundacio-nalista é uma concepção moderna, radical-mentea-teleológica, da racionalidade55, par-tilhada por todos osAufklärer, incluindo oscríticos da “razão prática” kantiana, comoKierkegaard e Nietzsche. O racionalismo

55 MacIntyre, 1985, 81.

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iluminista é o resultado de uma crítica ra-dical da razão humana destinada a mostraros seuslimites. A razão está habilitada adeterminar causas de fenómenos ou acal-cular meios para atingir fins que lhe sejampropostos, a demonstrar teoremas a partir depremissas. é, portanto, uma razão essenci-almente calculadora, incapaz de intuir a es-sência das coisas ou, em matéria de ética,os fins últimos do indivíduo ou do homem.No fundo, o iluminismo restringe a razão aoque os escolásticos chamavam “razão discur-siva”, o que significa a negação da “razãointuitiva” (noés, em Aristóteles,intellectus,em S. Tomás) no homem. Sem discutir asrazões que esta restrição epistemológica po-derá ter, sem dúvida, em matéria de ciênciasexactas, MacIntyre não a admite em maté-ria de moral, na medida em que a questãoética essencial não é apenas a de saber se asminhas acções estão de acordo com a raci-onalidade processual de uma razão formal,se estão conformes a uma norma ética ditadapela razão, mas se elas têm um sentido quesó pode ser formulado a partir do momentoem que dou à minha vida um “fim”, em quevivo para alguma coisa - ou bem, como diráNietzsche, numa linguagem teleológica her-dada dos gregos, em que respondo à pergunta“que tipo de homem quero ser?”

A parte positiva do projecto de MacIntyrevai consistir, por conseguinte, na edificaçãode uma ética teleológica, de tipo aristotélico,adaptada à nossa época. Uma tal ética teráde definir um bem substancial, ou seja um“fim” da vida humana, o que significa queterá de regressar a uma definição aristoté-lica da “natureza do homem” que a antro-pologia moderna havia rejeitado em nome,particularmente, da “liberdade”. Para Sar-tre, por exemplo, um dos autores que leva

esta antropologia até aos seus limites maisextremos, a liberdade de cada ser humano,em cada instante da sua vida, impede que sefale de toda e qualquer natureza ou essên-cia universal do homem, a qual comprome-teria irremediavelmente essa liberdade. Ora,se a ética tem de responder à questão “paraque vivo?”, ela terá de dizer em que con-siste, idealmente, uma “vida boa” - o mesmoé dizer uma vida “humana”, no sentido maiselevado do termo - e quais são as qualida-des essenciais, ouvirtudes, para concretizaressa vida. A noção de virtude, e a discus-são das virtudes tidas por essenciais numavida idealmente boa, estarão, pois, no cen-tro de uma ética de tipo teleológico, a qualfaz parte daquelas a que se dá o nome, nadiscussão actual, deéticas das virtudes. Talcomo Aristóteles, MacIntyre considera quea educaçãodas virtudes é uma tarefa impor-tante que a própria ética deve problematizar(ou seja, a tarefa do ético não se restringeà “fundamentação”), e que a questão da ra-cionalidade do agir ético não deve ser sepa-rada da da emotividade, “inclinação” (na lin-guagem de Kant), ou sentimento. Esta sepa-ração radical da “razão” e do “sentimento”,aliás, teria sido, na óptica de MacIntyre, umadas principais causas do fracasso do fundaci-onalismo iluminista. Portanto, mais concre-tamente, se a pedagogia das virtudes deve,sem dúvida, fazer apelo à razão, não pode,também, deixar de ser uma educação senti-mental, no sentido mais próprio, e, portanto,inactual, do termo.

De um ponto de vista mais teórico, o quejustifica o empreendimento de MacIntyre deedificar uma ética de tipo aristotélico adap-tada aos dias de hoje passa pela refutaçãodaquilo a que se chama, desde Hume,falá-cia naturalista, ou seja a falácia que se co-

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meteria ao inferir conclusões de cópula em’dever’ a partir de premissas com cópula em’ser’. Tal é o argumento com que Hume teriadado o golpe de mesericórdia ao modelo tra-dicional, ou seja telelógico, dos raciocíniose juízos mais geralmente utilizados nas éti-cas pré-iluministas, que consiste em inferirda definição do queéo homem ou a naturezahumana, o queele deveser - i.e. como deveviver, comportar-se, etc.. Baseando-se numaargumentação já bastante desenvolvida emfilosofia analítica em torno da falácia natura-lista, MacIntyre tenta mostrar56 que existemconceitos, a que ele chama “funcionais”, cu-jas definições do ser pressupõem juízos emdever. Assim, por exemplo, quando se defineo relógio como sendo um aparelho destinadoa medir com exactidão o tempo, pressupõe-se que ele não adianta nem atrasa, ou, numapalavra, que odefiniens deve ser um bomre-lógio. Um relógio que não funciona ou queatrasa muito deixa de ser, propriamente, umrelógio, para ser, por exemplo, um objectodecorativo.

é com a ajuda desta noção de “conceitofuncional” que MacIntyre interpreta a con-troversa passagem daética a Nicómaco57,na qual Aristóteles tenta mostrar o que deveser o ergon (natureza, função) do homem.Para McIntyre existe entre os termos “ser hu-mano” e “boa vida humana” a mesma rela-ção que entre “tocador de citara” e “bom to-cador de citara”, no exemplo dado por Aris-tóteles, ou bem entre “relógio” e “bom reló-gio”, no exemplo dado por MacIntyre.

Entramos aqui no núcleo problemático deuma ética de tipo teleológico. A primeiraobjecção é que uma ética deste tipo teria

56 MacIntyre, 1985, 83.57 1095 a 16.

de assentar, como acontece em Aristóteles,naquilo a que o próprio MacIntyre chamauma “biologia metafísica”, ou seja um sis-tema, em última análise de natureza metafí-sica, que nos diga qual a “função” de cadatipo de seres no cosmos; só no âmbito de umtal sistema a “função do homem” ganhariasentido. MacIntyre escapa a esta objecção aodefender que a função eticamente relevante,ou seja que permite descrever o que é ideal-mente uma vida humana boa, se pode inter-pretar a partir da sua socialidade, do facto deo homem ser um ser social.

é, pois, partindo de uma definição do ho-mem como ser social que MacIntyre pensaescapar ao fundamento metafísico da éticaaristotélica, que consiste em remeter parauma ordem cósmica na qual o ser humanoocupa um determinado lugar. Da socialidadedo homem MacIntyre deduz asvirtudesqueum tal ser deve desenvolver para que a vidaem comunidade seja harmoniosa. é destamaneira que ele tenta elaborar uma ética ra-cionalista substancial, por oposição ao raci-onalismo puramente formal dos iluministas,e, em particular, de Kant. MacIntyre objectaa este que ele não nos dá “nenhuma boa ra-zão”58 para obedecermos ao imperativo ca-tegórico. Só face à perspectiva de um bemsubstancial há “boas razões” para um deter-minado comportamento, cuja bondade sejaintuitivamente compreensível.

A fragilidade teórica de uma ética das vir-tudes, como a de MacIntyre, que faz assen-tar os seus valores em tradições comunitá-rias, provém, sobretudo, do carácter intrin-secamente plural da sociedade moderna noque diz respeito aos valores. O próprio Ma-cIntyre reconhece que os valores “comuni-

58 MacIntyre, 1981, 46.

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taristas” só se podem constituir de maneirasólida no seio de “pequenas comunidades”.Ora, o problema ético do mundo contempo-râneo reside justamente no facto de os novosmeios de comunicação porem em causa asculturas homogéneas características das co-munidades antigas, normalmente de reduzi-das dimensões devido ao isolamento, à pre-caridade dos antigos meios de comunicação.Alguns críticos59 vêem, assim, no projecto“comunitarista” de reconstituir uma ética ho-mogénea no seio de uma comunidade restritaque dá valor às tradições, um tipo de ética aque Bergson chamaria “estática”, uma tenta-tiva que, para além do seu carácter “conser-vador”, pode conduzir a processos de “exclu-são”.

Martha Nussbaum

Acontece que as fraquezas imputadas ao pro-jecto “comunitarista” de MacIntyre, de re-activar uma ética teleológica, não chegampara excluir definitivamente a ideia de reac-tivar, no nosso mundo, as ideias mais inte-ressantes do filosofema aristotélico no con-texto da ética. A prová-lo está o trabalhoda filósofa Martha Nussbaum60, que paraalém de se ter notabilizado na interpretaçãoda filosofia prática antiga, e da do estagi-rita em particular61, desenvolveu uma formade neo-aristotelismo que escapa aos escolhosdo “comunitarismo”, e, facto notável, apli-cou essa teoria ética na qualidade de consul-tora política, para questões de política de de-senvolvimento e ajuda aos países do terceiro

59 Referidos em Guisán, 1995, 317.60 Actualmente, professora de filosofia naLaw

Schoolda Universidade de Chicago.61 Sobretudo com o trabalhoThe Fragility of Go-

odness, 1985.

mundo, doWorld Institut for Developmentand Economic Researchdas Nações Unidas.

Nussbaum começa por rebater a ideia feitade que o aristotelismo conduz necessaria-mente a posições éticas ou políticas “con-servadoras”. Ela filia-se a si própria numatradição “liberal” (no sentido anglo-saxónicodo termo, que equivale, de certo modo, aoconceito continental de “esquerda”) da in-terpretação do “Aristóteles histórico”, inici-ada no princípio do século por eruditos comoSir David Ross, que se opõe à tradição to-mista e medieval da interpretação de Aristó-teles (“Aristóteles tomista”), na qual se in-clui MacIntyre62. Dito isto, é óbvio que Nus-sbaum partilha com MacIntyre um núcleoteórico aristotélico que consiste no essencia-lismo, na ideia de que a ética não pode esca-par a uma definição da “essência” ou “fun-ção” do homem, no recurso ao conceito devirtude que dele decorre, e na estrutura te-leológica da teoria ética, ligada à ideia deuma “vida boa”. A diferença está na inter-pretação destes elementos fundamentais dofilosofema ético do estagirita. Nussbaumcomeça por acentuar o universalismo con-tido na ideia de “essência do homem”, paranão deixar o monopólio do universal às éti-cas deontológicas. Vivemos numa época detriunfo do relativismo, na qual o lugar co-mum das mais diferentes teorias éticas é oanti-essencialismo. Na condenação do es-sencialismo observam-se curiosas aliançasentre deontologistas kantianos, como Rawls(que para assegurar a pureza do seu norma-tivismo processual remete as discussões so-bre o “homem” e o bem para a esfera pri-vada, e, portanto, para a relatividade subjec-tiva) e anti-universalistas pós-modernos (aos

62 Nussbaum, 1992, 202.

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quais poderiamos juntar os velhos existenci-alistas, como, por exemplo, Sartre) que con-sideram a definição de algo como a essên-cia do homem não só epistemologicamenteduvidosa mas, sobretudo, politicamente in-correcta, pois potencialmente repressiva, porimpor, na sua inevitável aplicação, um mo-delo “ocidental” do humano a “outras cultu-ras”. Chega-se, assim, a uma não menos cu-riosa aliança entre comunitaristas conserva-dores e teóricos pós-modernos em princípioanti-conservadores63, no contexto, por exem-plo, da discussão sobre medidas concretasde apoio a países do terceiro mundo. A de-fesa intransigente das tradições ancestrais,dos primeiros, encontra-se com a apologianão menos intransigente das “outras cultu-ras”, dos segundos, rejeitando ambos cate-goricamente qualquer intervenção ocidental,mesmo nos casos como o de uma campanhade vacinação, como no exemplo referido porNussbaum64.

Nussbaum assume, assim, numa atitudeteórica manifestamenteunzeitgemäß(inac-tual e intempestiva), a defesa de uma posi-ção atacada por teóricos de praticamente to-dos os quadrantes na discussão contemporâ-nea, ou seja a defesa doessencialismoan-tropológico, como base de uma ética tele-ológica aplicável no mundo de hoje. Talcomo para MacIntyre, para Nussbaum a de-finição de uma essência do homem não temde estar dependente de um sistema de pen-

63 Nos exemplos citados Nussbaum refere-se a“discipulos de discipulos de Jacques Derrida”, 1998.

64 Nussbaum, 1998, 197. No exemplo dado porNussbaum, uma antropóloga derridiana critica umacampanha de vacinação contra a varíola, levada a cabona União Indiana, pelo facto de essa intervenção “oci-dental” ter perturbado a crença local numa deusa as-sociada à protecção contra essa doença).

samento de carácter metafísico ou teológico.No entanto, ao contrário do filósofo escocês,Nussbaum não considera que a alternativa àsdefinições metafísicas seja uma concepçãodo homem imanente a tradições que se for-mam no contexto de comunidades restritas.O aristotelismo de Nussbaum, ao contráriodo de McIntyre, não conduz a formas de umcomunitarismo, tendencialmente tradiciona-lista e anti-cosmopolita, que os críticos maisseveros acusam de ser “provinciano” ou “pa-roquial”, e até mesmo susceptível de desen-volver “sentimentos de exclusão xenófoba,racista, etc.”65. Sem diminuir a importânciado factor cultural em ética, Nussbaum nãorecorre à tradição ou à comunidade para de-finir a essência do homem, mas a algo comouma antropologia mínima e universal, o que,aliás, já acontece no próprio Aristóteles. Di-zer o que é a essência do homem é “dizerquais são as propriedades verdadeiramentecentrais de uma humanidade comum a to-dos os seres humanos”66. Estas propriedadesconstituem “virtudes não relativas” do pontode vista cultural67, aparecendo aqui o sen-tido original (aristotélico) do conceito de vir-tude, ou seja sãocapacidadesque podem serdesenvolvidas de maneiras diferentes e emgraus diferentes em diferentes culturas, oupessoas, mas cuja ausência total faria sair daesfera do humano. Enquanto MacIntyre in-siste em “virtudes” especificamente culturaistransmitidas por tradição, Nussbaum, utili-zando o termo de uma maneira muito fiel aAristóteles, mas num sentido pouco comumna linguagem corrente actual, começa porpensar no conjunto de “virtudes” que consti-

65 Guisán, 1995, 317.66 Nussbaum, 1998, 208.67 Nussbaum, 1993.

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tuem os predicados básicos da condição hu-mana, como, por exemplo, o ser mortal, oter um corpo humano, o ter faculdades cog-nitivas e uma razão prática que permite acada ser humano “conduzir a sua vida”, ofacto de ser dotado de sentido de humor ede sentido lúdico, o facto de ter relações depertença mútua com outros humanos (affili-ation), etc.68. Mais do que “funções”, os ele-mentos desta lista constituem “capacidadespotenciais” ou virtuais do ser humano69. Apassagem da “potência” ao “acto”, da virtu-alidade aodesenvolvimentoda capacidade éo fundamento ontológico (propriamente aris-totélico) que vai permitir uma interpretaçãoética do humano. Se esse ser for entendidocomo um telos, ou seja como inevitável pas-sagem do potencial ao actual, aquilo que seespera é que ele desenvolva as suas capacida-des, e, deste modo, é lógico (e não falacioso)que partindo de juízos de cópula em “ser” seinfiram conclusões em “dever”. Nussbaumconclui, assim, que “o conceito de homemou do humano nos obriga a um reconheci-mento moral”70.

A “vida boa” é vista, então, como o de-senvolvimento sem obstáculos e, idealmente,no mais alto grau das capacidades humanas.Disto resulta não apenas o dever moral dereconhecer a cada ser humano a possibili-dade e liberdade de desenvolver as suas ca-pacidades, mas igualmente a obrigaçãopo-lítica, decorrente da ética, para o Estado epara os governantes, de “garantir a todos osseres humanos [pertencentes a esse Estado]as condições e recursos que lhes permitamdesenvolver e exercer essas capacidades”71.

68 Nussbaum, 1998, 211.69 Ibid., 217.70 Ibid., 219.71 Ibid., 217.

é óbvio que numa época de “globalização”este imperativo político adquire um campode aplicação supra-nacional e torna-se apli-cável às relações entre países ricos e pobres.Neste contexto Martha Nussbaum encontraem Aristóteles numerosas passagens que vãono sentido desta conclusão e que permitem,sem dúvida, ver no estagirita um pai espiri-tual da social-democracia e um crítico poten-cial das actuais concepções ultra-liberais doEstado e da “globalização” da economia.

Ao contrário do que se passa noutros neo-aristotélicos esta definição de vida boa é su-ficientemente vaga e lata para permitir dife-rentes versões culturais e mesmo individuaisde uma tal vida. Aliás, este individualismoestá de acordo com o espírito da ética aris-totélica da vida boa, segundo a qual cada in-divíduo desenvolve as capacidades e talentosque considera mais de acordo com o seu ca-rácter e mais importantes para o seu projectode vida. (é livre, por exemplo, de escolherentre “vida activa” e “vida contemplativa”,dois géneros de vida igualmente providos dedignidade).

Também Michel Foucault insistiu, na sualeitura das éticas gregas em geral, nos seusaspectos individualistas72, os quais, justa-mente, as tornariam interessantes para a cul-tura da modernidade. Leituras dos gregoscomo as de Foucault ou de Nussbaum estãonos antípodas da de MacIntyre, que tenta uti-lizar um pressuposto paradigma “comunita-rista” das éticas antigas contra o individua-lismo moderno. Ao mesmo tempo que per-mite versões culturalistas específicas ou in-dividualistas, a definição vaga da vida boaa partir das “virtudes não relativas” do hu-mano, dada por Nussbaum, não deixa de es-

72 Foucault, 1985, 325.

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tabelecer algo como umaminima moraliaque permite criticar e condenar sem apelopráticas manifestamente inumanas existen-tes em certas culturas ou tradições, como,por exemplo, a tortura ou a excisão ritual doclitoris (esta última ainda hoje praticada emcertos países africanos). Ao contrário do re-lativista pós-moderno que recusa toda e qual-quer intervenção ou simples crítica de prá-ticas culturais não europeias por receio deincorrer nos terríveis pecados do “eurocen-trismo” ou do “logocentrismo”, uma aristo-télica como Nussbaum dispõe, tal como oséticos de inspiração kantiana, de um instru-mento conceptual eficaz para condenar cer-tas práticas. Nussbaum apoia-se no “con-ceito de ser humano”, os kantianos no de“dignidadedo ser racional”, outras escolas,entre as quais certas éticas cristãs, no con-ceito de “pessoa”. A primeira considera, noentanto, que a sua posição tem a vantagemde recorrer a um conceito muito maiscon-cretoe próximo da nossa experiência que osoutros73, o que, mais uma vez, mostra a pro-ximidade das éticas teleológicas em relaçãoàs éticas fenomenológicas.

2.2.7 Éticas fenomenológicas

A abordagem fenomenológica da problemá-tica ética é bastante distinta, e mesmo, noque toca a metodologia e objectivos, oposta,às abordagens deontológicas de tipo kanti-ano (em qualquer das suas versões, quer ado próprio Kant, quer as mais recentes deRawls, Habermas ou outros). O objectivoda fenomenologia, em matéria de ética, nãoé a dedução, justificação e fundamentaçãode normas pretensamente universais do de-

73 Ibid., 219.

ver ditadas por uma “razão prática” - tarefaque surge aos olhos do fenomenólogo como“construtivismo” (no sentido crítico dado aotermo por Husserl, que opõe a “construção”de aparelhos conceptuais a um método fe-nomenológico que assenta na “intuição daspróprias coisas”), formalismo e intelectua-lismo - mas descrever, caracterizar e analisaros elementos e momentos propriamente éti-cos da experiênciahumana.

Em fenomenólogos como Levinas ouWerner Marx, ao contrário do que ainda erao caso em Husserl, esta metodologia de des-crição e análise da experiência não implicaum ideal positivista da neutralidade e do dis-tanciamento “científico” do observador rela-tivamente ao objecto, que é, neste caso a pró-pria experiência. Na selecção dos elemen-tos da experiência considerados significati-vos para a estrutura do fenómeno ético, ofenomenólogo não pode deixar de se guiarpelasua própria experiênciae pelo jogo dosseus sentimentos. Encontramos aqui doiselementos que, mais uma vez, afastam as éti-cas fenomenológicas das deontológicas e, decerto modo, as aproximam das teleológicas(embora, como veremos, também haja ele-mentos que as distingam destas): a priori-dade dada aosentimento(liminarmente des-prezado nas éticas deontológicas) sobre ara-zão,no campo da ética,74 e o enraizamentoda ética na experiência e, portanto, na cul-tura.

A diferença essencial entre éticas deonto-lógicas e fenomenológicas poderá ser, talvez,tematizada através da oposição entre os con-ceitos defundamentaçãoe motivação;o ob-jectivo da primeira é “fundamentar” a norma,ou seja “provar” a sua necessidade absoluta,

74 W. Marx, 1986, 7.

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num estilo argumentativo anti-intuicionista,o mais próximo possível do da demonstra-ção de um teorema matemático, e dando pro-vas de uma ilimitada e ingénua confiança no“poder ilocucional” da linguagem da “argu-mentação” racionalizante, da razão discur-siva. Considera-se implicitamente que o aca-tamento da norma por parte de um sujeito re-duzido a um puro “ser racional” (ou a mem-bro de uma comunidade de seres puramenteracionais, nas éticas deontológicas mais re-centes), e, por conseguinte, o sucesso práticoda ética, está dependente da tarefa de “funda-mentação”. Na ética fenomenológica o ob-jectivo é muito mais modesto, e mais com-patível com os limites da linguagem e coma finitude humana: o fenomenólogo é con-duzido a uma reflexão sobre uma experiên-cia crucial, tratada como uma cena ética ori-ginal. Dessa reflexão resulta não o enunci-ado de normas ou regras de vida, mas algocomo umaatitude éticaou um ethos. é apartir desta atitude, que se exprime indirecta-mente no discurso, que se opera a passagemdo elemento estritamentedescritivo, carac-terístico do método e do discurso fenomeno-lógicos, para o elementoapelativo, necessa-riamente presente num discurso ético. Talcomo em Kierkegaard a comunicação éticanão é directa mas “indirecta”; não pode con-sistir numa grosseira e frontal prescrição “di-recta” de normas. A experiência que moti-vou o fenomenólogo à atitude ética motivaráo leitor, dependendo o sucesso desta segundamotivação do talento do primeiro paraexpri-mir um “testemunho”. Daqui resulta, paraa ética, nomeadamente no caso da ética fe-nomenológica de Levinas, um estilo muitopeculiar na argumentação e na utilização daliguagem, baseado, aliás, numa reflexão teó-rica aprofundada sobre a questão da lingua-

gem. O objectivo do discurso não é provar,“fundamentar” um “dito”, masexprimir, noslimites do dizível uma experiênciasui gene-ris. Não há aqui qualquer apologia do ine-fável, mas, ao contrário, um esforço inauditopara conquistar terreno ao inexprimido. Omeio desta conquista é a vivacidade de umdire (dizer) que Levinas opõe a umdit (dito)que representa a petrificação da palavra nalinguagem do conceito. Resulta daqui um es-tilo que se permite todos os recursos da lin-guagem literária na descrição da experiênciaética. Tal não se deve nem a uma falta derigor filosófico nem ao desejo de fazer exer-cícios de estilo, mas antes - na mais pura fi-delidade à intuição original da fenomenolo-gia, que é fidelidade às “próprias coisas” - auma necessidade imposta pela própriacoisaética, por um lado, e à consciência dos limi-tes da linguagem na sua interacção com umaexperiência - neste caso a experiência ética -que jamais poderá ser considerada como pu-ramente linguística, por outro lado.

Mas em que consiste, finalmente, segundoLevinas, o âmago da experiência ética?

A experiência ética original reside numarelação eu-tu absolutamente assimétrica.Longe de tender para uma comunicabilidadeigualizante e uma transparência que acabariapor anular a dualidade, a relação eu-tu con-duz, por mais próxima que seja, a uma hete-ronomia absoluta. Do ponto de vista ético,a máxima poderia ser mesmo: quanto maispróximo mais distante. Isto, porque aquiloque funda a assimetria é a percepção da ab-solutafragilidade do outro, a escuta do seuapelo inaudível “não me matarás!”. Esteapelo funda uma responsabilidade absolutaque é, literalmente, responsividade, obriga-ção de responder a um apelo, obrigação denão indiferença. é nesta obrigação, que de-

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corre de uma experiência original e me torna“escravo” do outro, que se funda o dever mo-ral. O dever moral não se funda, em Levinas,na “autonomia” de uma razão prática (Kant),mas naheteronomiada alteridade absolutado outro.

Em Levinas, a objecção de Hume à “falá-cia naturalista” - à passagem abusiva de juí-zos descritivos em ’ser’ a juízos prescritivosem ’dever’ - não é rebatida através da inte-gração conceptual do dever nos raciocíniose cálculos da razão prática (Kant) ou de umargumento analítico que mostra que na defi-nição de certos conceitos é necessário incluiros fins das coisas que eles subsumem, di-zer para que servem, e, portanto, dizer o que“devem ser” (como acontece em MacIntyre),mas através de uma experiência que consti-tui uma espécie de facto moral absoluto e úl-timo, não susceptível de ser justificado logi-camente. Da presença do rosto do outro, quepode ser traduzida por uma proposição em’ser’, resulta um apelo moral, uma proposi-ção que é da ordem do dever - ’Não mata-rás!’

Do ponto de vista de um pensamento ar-gumentativo, formalista, conceptual e uni-versalista é óbvio que uma ética como a deLevinas apresenta inúmeras fraquezas. Filo-soficamente, contudo, a sua coerência é de-fensável. Da mesma maneira que Bergsonmostrou que a experiência ética está paraalém dos cálculos da inteligência e abre anovas formas do “possível”, Levinas mostra,servindo-se dos instrumentos da fenomeno-logia, que a ética abre a uma nova dimen-são da experiência, dimensão do “infinito”,à qual a metafísica ocidental, ontologia daidentidade, do um e da “totalidade”, perma-nece fechada. A crítica das “filosofias da to-talidade” constitui, assim, uma propedêutica

filosófica à ética da alteridade absoluta (e dorespeito absoluto do outro) e um argumentoa seu favor.

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Capítulo 3

PEDAGOGIA

3.1 Problemas pedagógicosespecíficos da disciplina.Estratégia pedagógica

O ensino de uma matéria como a ética co-loca problemas pedagógicos muito específi-cos, impondo, por conseguinte, estratégiaspedagógicas bem adaptadas a tais proble-mas. Não se ensina ética como, por exem-plo, se ensina física ou biologia. A vida eo comportamento dos humanos, que é o ob-jecto sobre o qual se debruça a ética, nuncapoderá ser vista com a neutralidade cientí-fica com que observamos a vida das bactériasou o comportamento dos electrões. Emboraestando de acordo com Max Weber, quandoeste afirma que o docente universitário nãodeve utilizar a sua posição privilegiada paratransmitir a sua concepção do mundo ou osseus valores pessoais, ou seja para “catequi-zar”, também estamos cientes dos limites doobjectivismo, quando se trata de ensinar umamatéria como a ética.

Outra dificuldade reside no facto de aética, apesar da pretensão à “universalidade”que reivindicam muitas teorias éticas, terraí-zes numa cultura. Em Portugal, as éticasculturalmente relevantes numa disciplina deética geral não são a de Confucius ou a de

Maomet, mas as de Platão, de Cristo, deKant, de Levinas e de outros.

Dificuldades suplementares são as ineren-tes ao carácterhistóricoe acumulativo que aética apresenta na nossa época. Numa disci-plina de um curso de física actual, a física deAristóteles, por exemplo, é uma simples cu-riosidade histórica, que a maioria dos alunosignoram. Eles não precisam dela para com-preender a física clássica e a física moderna.Já a ética de Aristóteles, continua a ser, hoje,uma referência imprescindível para os teóri-cos da ética do início do século XXI, que ne-nhum estudante universitário de uma cadeirade ética se pode dar ao luxo de ignorar. Oestudo actual da ética exige, portanto, a com-preensão de saberes e tradições teóricas quese foram acumulando ao longo dos tempos, eque formam, ainda hoje, estratos sucessivose sobrepostos do solo cultural em que pensa-mos a vida dos humanos e as normas que de-vem orientá-la. é necessária uma grande ha-bilidade e competênciahermenêuticasparainterpretar éticas - como, por exemplo, a dePlatão ou a formulada nos Evangelhos - queforam concebidas em sociedades muito di-ferentes da nossa, mas que continuam a ser,hoje, contributos imprescindíveis para a re-flexão sobre questões de moral. A reflexãoética contemporânea, a construção das teo-

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rias éticas para a sociedade complexa em quevivemos faz-se, em grande parte, com mate-riais teóricos e intuições que nos foram lega-dos, e que temos de saber adaptar aos novostempos. Este aspecto histórico da ética ac-tual, contudo, não exclui de maneira algumaa criatividade. E o carácter hermenêuticonão exclui o rigor científico. Nem todas asinterpretações são pertinentes, interessantes,frutuosas.

Uma particularidade importante a ter emconta na leccionação desta disciplina de éticageral é o facto de ela não se destinar a alunosde um curso de filosofia, a futuros profissio-nais da teoria e do conceito, mas a alunos deum curso de comunicação, a futuros profissi-onais da comunicação.

Face a estes problemas, que têm a ver comas especificidades da matéria e as particula-ridades dos alunos de um curso de comuni-cação, que estratégias pedagógicas adoptar?

3.1.1 A questão dos “factos” edos “valores”

.Como já foi dito na introdução a este re-

latório, as aulas de ética dadas numa univer-sidade não podem ter o carácter de uma “ca-tequese”, nem mesmo o das aulas de “reli-gião e moral”, dadas no ensino secundário.Por outro lado, o estudo das teorias éticasno âmbito desta disciplina também não sepode limitar à apresentação de “factos” cul-turais, como fez Max Weber no seu estudosobre a “ética Protestante”. Não se trata deuma disciplina desociologiada moral, masde uma disciplina de éticatout court. A so-lução deste problema pedagógico - com que“espírito” apresentar a ética? - está, portanto,numaterceira via. Esta não é uma via medi-

ana ou do compromisso, mas uma viaparaalém do endoutrinamento e da indiferença“científica” positivista. Esta última atitude,aliás, seria própria de um ideal de “ciência”que consideramos, na área das ciências hu-manas em geral, ultrapassado. (Uma justifi-cação sintética deste posição foi dada na In-trodução deste relatório). A estratégia peda-gógica que nos parece apropriada à resolu-ção deste problema começa por consistir emidentificar adimensão do ético, emsensibili-zar para os problemas e conflitos éticos quese colocam em todas as sociedades, e muitoespecialmente para as questões de naturezaética que se colocam na sociedade contem-porânea. Num segundo momento trata-se dereactivar a estratégia ao mesmo tempocientí-fica e pedagógicainaugurada pelo pensador,e grande pedagogo, que podemos considerarpai fundador da disciplina: Sócrates. Con-siste este segundo momento numa interro-gação “socrática”, crítica, das normativida-des implícitas nos comportamentos quotidia-nos ou explicitadas nas teorias éticas. Comoafirmou, recentemente, Martha Nussbaum, oobjectivo do teórico da ética na posição dedocente consiste, antes de mais, em “trans-mitir processos socráticos de crítica das nos-sas próprias tradições”1. Portanto, a estraté-gia pedagógica a seguir não é nem a do ser-mão de moral, nem a da simples descrição de“factos”, mas a dasensibilizaçãoàs questõeséticas e ao aprofundamento dareflexãocrí-tica sobre essas questões. O objectivo da dis-ciplina não é fornecer um catálogo de regrasde bom comportamento, mas, como diz Nus-sbaum, de “transmitir processos” de pensa-mento, de interrogação, de crítica das tradi-ções.

1 Nussbaum, 2000, 95.

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3.1.2 Problema da história e daacumulação das teoriaséticas

. O facto de sermos herdeiros de uma longahistória da teorização ética e de várias tradi-ções de pensamento, como a ética grega e ocristianismo, que até podem estar em conflitoentre si sobre questões essenciais, pode levara um certo cepticismo relativamente ao va-lor pedagógico do ensino da história da éticaocidental. Não levará um tal ensino a acen-tuar o cepticismo relativamente à capacidadeda reflexão teórica em chegar a conclusões“definitivas” sobre as questões éticas? Nãoacentuará ele, ao mostrar a pluralidade dassoluções apresentadas na história, a tendên-cia a um relativismo que, segundo alguns2,é o grande mal da cultura da modernidade?Face a este tipo de dúvidas devemos come-çar por chamar a atenção para um facto: Anossa cultura, a cultura da modernidade eu-ropeia, é hiper-“secundária”, no sentido dadoa este conceito por Rémi Brague, ou seja, foiacumulando, na sua longa história, núcleosherdados de tradições sucessivas. Neste sen-tido, seria uma ilusão pensar que o problemada pluralidade dos valores, que se acentuacom o grau de “secundaridade” de uma cul-tura, poderia ser resolvido com a restauraçãode um “discurso de verdade” unitário e ho-mogéneo, próprio das culturas “primárias”.Por outro lado, no que diz respeito à ética,o problema também não se resolve pelo mé-todo da avestruz, que consistiria emnão pen-sar a pluralidade das teorias e tradições quea história nos legou, e em produzir um dis-curso moralizante, sem falhas e dispensadorde “certezas”. Hannah Arendt mostrou bem

2 Cf., por exemplo, Taylor, 1992.

que, do ponto de vista ético, nada é mais pe-rigoso do que a opção pelonão pensamentocomo método para tornar mais firmes as con-vicções morais.3

A solução do problema pedagógico emcausa passa, pois, por um conceito a quechamariacultura ética. Um dos objectivosda disciplina consistiria na aquisição, apro-fundamento e alargamento de uma culturaética, ou seja no estudo das principais fontesda reflexão teórica ocidental sobre questõeséticas. Longe de provar a incapacidade dopensamento teórico e justificar o relativismo,a diversidade das tradições e teorias apenasmostra a complexidade da experiência hu-mana e a diversidade das respostas dadas aosdesafios postos à “condição humana”. Umacultura ética é, assim, dispensadora de ins-trumentos para a reflexão da complexa situ-ação presente, ou seja para participar na dis-cussão ética que está a ter lugar.

3.1.3 Ética e alunos decomunicação

. Sem dúvida que os alunos a que se desti-nam as aulas de ética num curso de comuni-cação não pretendem vir a ser profissionaisdo conceito e da teoria ética, mas profissi-onais da comunicação numa sociedade dita“da informação e da comunicação”. é, pois,necessário adequar os objectivos da disci-plina aos objectivos do curso e dos seus alu-nos. Em nosso entender, os alunos dos cur-sos universitáriosde comunicação não es-tão de modo algum dispensados de adquirir eaprofundar aquilo a que chamámos “culturaética”. é certo que não se lhes pode exigirque desenvolvam um esforço de reconstru-

3 Arendt, 1971.

52 José Manuel Santos

ção histórica, em matéria de história da fi-losofia moral e de discussão de novas teo-rias éticas, como se exigiria a alunos de umcurso de filosofia. Todavia, a aquisição eo aprofundamento da cultura ética por partedestes alunos são necessários até um certograu. Isto, por várias razões, de que já apon-támos algumas. Sem pretender à exaustivi-dade apontamos as principais:

1. A dimensão ética é uma das que estãoem causa no processo de comunicação,sendo a ética, a este título, uma ciênciada comunicação.

2. Face aos recorrentes apelos à “moral” eà “ética” no discurso dos media, o pro-fissional da comunicação só poderá fa-lar de ética, e invocar a ética, com co-nhecimento de causa, ou seja se for de-tentor de uma cultura ética.

3. A discussão que está a ter lugar nocampo da teoria ética diz respeito aocerne da cultura contemporânea. O pro-fissional da comunicação deve estar emmedida de compreender essa discussão,o que nela está em jogo, e as consequên-cias das conclusões dela retiradas paratratar questões tão concretas como a dodesenvolvimento técnico, a da ajuda aospaíses mais pobres, a da democracia re-presentativa, etc.

4. O desenvolvimento de tecnologias no-vas, em particular na área da medicinae da genética, coloca questões que nãosão de ordem técnica, cuja resoluçãoexige uma discussão ética, a qual pres-supõe, mais uma vez, uma larga culturaética.

Estas estratégias e objectivos pedagógicossão desenvolvidos em aulasteóricasepráti-casque se apoiam numa determinadabibli-ografia. Nas aulas práticas são executadosdeterminadostipos de exercícios. Passamosa analisar, muito sinteticamente, estes quatroconceitos.

3.1.4 Aulas Teóricas. Nas aulas teóricas o docente expõe e desen-volve as matérias constantes do programa.A matéria deve ser apresentada de maneiraclara, sistemática e com vivacidade. Deveser feito um esforço para apresentar da ma-neira mais clara possível as relações maiscomplexas entre ideias ou conceitos, as quaisabundam numa matéria como a ética, sem,no entanto, cair na simplificação abusiva eno simplismo.

Apresentando o pensamento ético um ele-vado grau de abstracção (aproximando-se,em autores como Kant, de uma abstracçãológica ou matemática) deve o docente recor-rer, sempre que possível, a exemplos de apli-cação.

O autor destas linhas não concorda comuma certa crítica, actualmente muito emvoga, do modelo das aulas teóricas e magis-trais. A função das aulas teóricas é confe-rir a uma matéria complexa e variada umacerta unidade orgânica, mais facilmente as-similável, num primeiro tempo, pelo alunodo que os conhecimentos por assim dizer“em bruto”, que estão nos livros ou são da-dos por outras fontes (como as famosas “no-vas tecnologias da informação”). A viva-cidade do discurso oral, em presença, e aforma específica que o docente dá à matériaconferem-lhe a unidade perceptível de umaGestalt (figura). A crítica das aulas teóri-

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Ética da Comunicação 53

cas em nome dos “saberes” que o aluno jápossuiria e das multiplas fontes de informa-ção de que ele dispõe hoje (televisão, revis-tas, Internet, etc.), para além de partir de umaingenuidade rousseauista que pressupõe um“bom aluno” (modelo análogo, em ciência,do que é o “bom selvagem”, no que se re-fere à moral) próximo do génio sequioso desaber, não tem em conta a capacidade inte-gradora de saberes e de dar forma ao conhe-cimento, que o docente tem e o aluno aindanão tem. A aula teórica não é apenas fonte deinformações, mas funciona também, e sobre-tudo, como matriz estruturante dos conheci-mentos adquiridos de maneira dispersa porum aluno que, normalmente, ainda não temas capacidades de problematizar, sintetizar edar forma aos saberes plenamente desenvol-vidas.

3.1.5 Aulas práticas e exercícios

. As aulas práticas são, sobretudo, dedica-das à leitura e interpretação de textos de au-tores antigos, modernos e contemporâneosda ética. A estes exercícios de hermenêuticaaplicada e de análise de textos acrescentam-se os exercícios de síntese, ou seja nos quaisse faz apelo a vários autores da área da ética emesmo a conhecimentos de outras áreas paratratar um tema ou uma questão.

No caso da leitura de autores antigos, é ne-cessário que os alunos aprendam a separar osaspectos mais “pitorescos” ou mais ligadosà cultura e à sociedade da época, os quais,na nossa perspectiva, são uma pura curiosi-dade histórica, das estruturas profundas dopensamento e das teses-chave desses auto-res, as quais, em muitos casos, nada perde-ram, ainda hoje, da sua “actualidade”. Ostextos antigos podem ser particularmente es-

timulantes, não apenas por defenderem te-ses que ainda são “actuais”, e que nós par-tilhamos, mas sobretudo pela enormefres-cura com que as exprimem e demonstram.Essa frescura, que contrasta com uma certasecura técnica de alguns autores modernos econtemporâneos, constitui uma razão peda-gógica suplementar para o seu estudo.

No que diz respeito aos autores mais re-centes, os alunos devem compreender atéque ponto os seus argumentos e teses respon-dem às questões que a cultura contemporâ-nea, em que os alunos vivem, formula.

Do ponto de vista metodológico, nas aulaspráticas o docente relembra aos alunos técni-cas de leitura, comentário e análise de textos.Em princípio, tais técnicas já deviam ter sidoadquiridas nas disciplinas de “metodologia”.

3.1.6 Bibliografia. A bibliografia da disciplina está divididaem três partes: 1) Bibliografia “obrigatória”,2) instrumentos de trabalho e 3) bibliografiacomplementar.

Da bibliografia “obrigatória” fazem parte,por um lado, os principais textos que servemde base às aulas teóricas e os textos estuda-dos nas aulas práticas. Trata-se de um grupolimitado de textos que o aluno deverá estudarpara efectuar com êxito testes de “frequên-cia” ou exames. As perguntas feitas nes-tes testes ou exames referem-se à matériadada nas aulas teóricas e aos conteúdos des-tes textos, que foram objecto de estudo nasaulas práticas. é óbvio que, tendo em contaos limites de tempo e as outras disciplinasque os alunos têm de frequentar, a biblio-grafia “obrigatória” é necessariamente limi-tada. Fazem parte deste grupo bibliográfico:dois textos de autores clássicos gregos (um

54 José Manuel Santos

diálogo de Platão, alguns “livros” daéticaa Nicómacode Aristóteles), um texto repre-sentativo da ética iluminista (normalmente aFundamentação da Metafísica dos Costumesde Kant), três ou quatro textos de autores doséculo XX (por exemplo: Jürgen Habermas,Alasdair MacIntyre, Hannah Arendt, MarthaNussbaum, Charles Taylor, etc.).

Do grupo bibliográfico “instrumentos detrabalho” fazem parte os dicionários de ética,as histórias da ética e as introduções à ética.Os alunos são aconselhados a fazer um usoactivo destes instrumentos na preparação detrabalhos escritos e exposições orais.

Para a preparação de trabalhos escritos oucomentários orais de textos, o docente for-nece aos alunos bibliografias complementa-res, apropriadas ao tema ou aos autores apro-fundados no trabalho em causa.

3.2 Critérios e métodos deavaliação

O conjunto dos elementos de avaliação devepermitir avaliar as seguintes capacidades: 1)a assimilação dosconhecimentosrelativos àmatéria dada, 2) as capacidades deexpres-são oral e escritanecessariamente utilizadasno uso e na exposição desses conhecimentos,3) a estruturado raciocínio e origor da ar-gumentação, 4) as capacidades dereflexão,utilizadas nainterpretaçãodas fontes de co-nhecimento (autores, textos, informações) ena formulação e resolução de problemas equestões postas, de maneira explicita ou não,pela matéria (ou seja na “problematização”da matéria), 5) apertinênciae acriatividadeno uso autónomo dos conhecimentos.

Destas cinco capacidades a avaliar de-correm oscritérios a utilizar na avaliação.

Exige-se: um mínimo de conhecimentos as-similados, uma expressão oral e escrita dequalidade minimamente aceitável, uma ca-pacidade de reflexão razoável, um mínimode rigor na argumentação. No que diz res-peito à criatividade, não poderá ela, talvez,ser exigida a alunos médios (de nível 10, 11ou 12), sendo um factor distintivo de alunosbons, e, sobretudo, dos muito bons ou ex-celentes. Já a pertinência na utilização dosconhecimentos deve ser exigida a todos.

Na avaliação das provas haverá que pon-derar os coeficientes a atribuir às diferentescapacidades demonstradas.

A fim de melhorar as capacidades emcausa, os alunos efectuarão exercícios etestes de diversos tipos, escritos e orais. Taisexercícios são, simultaneamente, vistos dolado do docente, métodos de avaliação.

1. Exercícios orais: 1.1. Explicaçãoe comentário de texto. 1.2. Participaçãoem discussão.

Nos exercícios do tipo 1.1. o alunoex-plica, nas suas próprias palavras, os princi-pais conceitos de um texto breve (2 a 10 pá-ginas), desmonta a argumentação utilizadapelo autor e comenta a posição que esteexprime no texto, relacionando-a, eventual-mente, com as de outros autores. Poderá,além disso, formular uma tomada de posi-ção própria, devidamente argumentada, so-bre os diversos aspectos da temática tratadapelo autor. O comentário oral tem a dura-ção de 15 a 25 minutos e é imediatamenteseguido por uma correcção do professor.

No exercício de tipo 1.2. o aluno toma po-sição, oralmente, de maneira breve, relativa-mente ao comentário oral de outro aluno, po-dendo apontar aspectos do texto comentado

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Ética da Comunicação 55

que o primeiro aluno não viu ou não compre-endeu.

Tendo em conta que se trata de alunosde um curso decomunicação, os exercíciosorais são particularmente importantes.

2. Exercícios escritos: 2.1. Teste de“frequência”. 2.2. Trabalho escrito.

O teste de frequência tem a duração deduas horas e é composto por dois exercícios:I) explicação e comentário de um texto breve(entre meia página e uma página), II) res-posta a uma pergunta de desenvolvimento, àescolha entre duas perguntas. Cada um des-tes exercícios vale 10 valores. A nota doteste, de 0 a 20, é a soma das notas obtidasem cada um dos dois exercícios. Na avali-ação e classificação dos dois exercícios doteste são utilizados os critérios acima defini-dos.

As provas de exame apresentam a mesmaestrutura do teste de frequência. Os exames(época normal e de recurso) destinam-se aosalunos que não dispensaram de exame ouàqueles que, tendo obtido nota positiva no“controlo contínuo” de conhecimentos, de-sejam subir essa nota.

O trabalho escrito é uma pequena mono-grafia (de 5 a 10 páginas) sobre um tema daárea da disciplina. O aluno poderá escolherum entre os diversos temas propostos pelodocente ou, então, escolher ele próprio umtema que propõe ao docente. No tratamentodo tema o aluno deverá utilizar uma biblio-grafia, que poderá ser aconselhada pelo do-cente, de, pelo menos, três autores.

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Capítulo 4

BIBLIOGRAFIA

Esta bibliografia não tem, obviamente,a pretensão de ser exaustiva. Para alémde se indicar as referências dos textoscitados neste relatório, o objectivo é daruma orientação ao leitor português. In-felizmente, a bibliografia em português émuito escassa. No que diz respeito aostextos em alemão: sempre que possí-vel foram indicadas traduções em portu-guês ou, pelo menos, em inglês ou fran-cês.

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