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ETHOS: MORAR NO COTIDIANO Prof. Marcos Aurélio Fernandes

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ETHOS: MORAR NO COTIDIANO

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

Haverá paradeiro para o nosso desejo? Arnaldo Antunes

• http://letras.terra.com.br/arnaldo-antunes/44206/• Haverá paradeiro para o nosso desejo

Dentro ou fora de um vícioUns preferem dinheiroOutros querem um passeio perto do precipício

• Haverá paraísoSem perder o juízo e sem morrerHaverá pára-raioHaverá pára-raioPara o nosso desmaioNum momento preciso

• Uns vão de pára-quedasOutros juntam moedas antes do prejuízoNum momento propícioHaverá paradeiro para isso?

• Haverá paradeiroPara o nosso desejoDentro ou fora de nós?Haverá paraíso

Ethos: paradeiro

• A palavra “Ethos” significa morada. Nos evoca a experiência de paradeiro, estadia, lar.

Heráclito e o paradeiro do homem

• Um fragmento de Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.C) nos dá um aceno a respeito do Ethos como a Morada do Homem.

• Ηθος ανθρωπου δαιµων - êthos anthrôpou• Ηθος ανθρωπου δαιµων - êthos anthrôpoudaímon (Frag. 119).

• Nós podemos traduzir:

• “A morada (o habitual, o ordinário, o cotidiano) é para o homem o lugar em que o divino (o extraordinário, o maravilhoso) lhe advém”.

• Poderíamos traduzir (interpretar) ainda:

“O cotidiano é para o homem o lugar do mistério”

“O comum e ordinário da vida de todos os dias é “O comum e ordinário da vida de todos os dias é para o homem o lugar em que se lhe manifesta o maravilhoso”

• Aristóteles nos legou uma história a respeito de Heráclito que nos ensina a mesma coisa:

• “Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de observa-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se observa-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele encorajou os visitantes espantados a entrar, pronunciando as seguintes palavras: ‘mesmo aqui, os deuses também estão presentes”.

• Ειναι γαρ και ενταυθα θεους (eînai gàr kaìentautha theoús) – “também aqui os deuses estão presentes”.

• O olhar dos visitantes é o olhar impertinente da curiosidade. Querem ver e ter a sensação de ter curiosidade. Querem ver e ter a sensação de ter visto algo raro e excitante, diferente do ordinário, oposto à vida cotidiana: um pensador. Esta expectativa os frustra. Vêem um pobre homem, tiritando-se de frio e tentando se aquecer junto ao forno. Eles não acham o espetáculo nada “interessante”.

• O pensador pode ler nos seus olhos a decepção. Reconhece que, para eles, basta sentir a falta de uma sensação esperada para que desistam de seu intento. Daí, as palavras que desistam de seu intento. Daí, as palavras encorajadoras e gentis: ειναι γαρ καιενταυθα θεους (eînai gàr kaì entauthatheoús) – “também aqui os deuses estão

presentes”.

• Heráclito faz daquela ocasião um convite para que os visitantes reconheçam que a experiência dos deuses é uma experiência de pensamento. Em que sentido? No sentido de que os deuses são, originariamente, aquilo que se mostra a um olhar que tem o pasmo da admiração com o ser, são, originariamente, aquilo que se mostra a um olhar que tem o pasmo da admiração com o ser, que é o mais cotidiano, o mais familiar, o mais ordinário, o mais comum, o mais simples, o mais modesto, o que nós já sempre ignoramos e passamos por cima, em tudo quanto olhamos e consideramos.

• E como os gregos chamavam este olhar? Resposta: θεωρια (theoría). Θεωρειν(theoréin) é o olhar compenetrado, que, no ordinário, surpreende o extraordinário, no ordinário, surpreende o extraordinário, no comum, o único e raro, no familiar, o estranho, no banal, o maravilhoso, no simples, o mais rico e originário.

• Os gregos chamavam esse olhar de theorein, theoria. Os latinos, por sua vez, nomearam esse olhar por contemplatio, contemplação. Theoria é uma ação, isto é, um trabalho e um empenho. E trata-se não de uma ação neutra, mas de uma ação apaixonada, a saber, apaixonada pela revelação do real na transparência da realidade. Trata-se do empenho de ver, isto é, de receber a revelação da realidade em seu doar-se e retrair-se mais originário. realidade em seu doar-se e retrair-se mais originário.

• É o olhar do θαυµαζω (Thaumádzo), isto é, da ad-miração, que colhe e recolhe a o esplendor fulgurante do mistério da realidade.

• Trata-se de um ver simples daquilo que é absolutamente simples. Este perceber é, antes de tudo, um receber e acolher. É manter-se aberto para acolher e receber, como dádiva, o apresentar-se e o presentear-se da realidade, do ser.

• Os poetas e os pensadores são aqueles que vigiam para que os homens aprendam a experimentar na vida de todos os dias o maravilhoso que é ser, que é viver.maravilhoso que é ser, que é viver.

• Nos convidam a habitarmos a cotidianidade de maneira atenta e cuidadosa.

• Hoje vamos aprender um pouco com eles.

Ionesco

• A luz é o mundo transfigurado. É, por exemplo, na primavera, a metamorfose gloriosa do caminho lamacento da minha infância. De uma só vez, o mundo adquire uma beleza inexplicável... Lembro-me que certo dia um pessimista chegou à minha casa. Naquele tempo, eu morava num rés-do-chão, à Rua Claude Terrasse. Minha filha era ainda um bebê e não dispúnhamos de muito espaço: havíamos posto sua roupa a secar dentro de casa. Ora bem, este amigo posto sua roupa a secar dentro de casa. Ora bem, este amigo chegou dizendo que aquilo não era vida, que a vida não era bela, que havia a indignidade, a tristeza, que tudo era sór-dido, que nossa casa era triste e feia etc. E eu respondi: “Mas eu acho que é muito, muito linda; essas roupas penduradas no cordel ao meio do quarto – é muito bonito isso”. O amigo me olhou, admirado e desdenho-so. “Sim” – insistia eu “basta saber olhar bem, é preciso ver. É admirável. Não importa qual seja a maravilha, tudo é uma epifaniagloriosa, o mais pequeno objeto resplandece”.

• Porque, repentinamente, eu tivera a impressão de que a roupa, sobre o cordel, era duma beleza insólita, o mundo virgem, refulgente. Eu conseguira vê-la com olhos de pintor para suas qualidades de luz. A partir disso, tudo parecia belo, tudo se transfigurava. Do mesmo modo, qualidades de luz. A partir disso, tudo parecia belo, tudo se transfigurava. Do mesmo modo, veja essa casa em frente à minha. Ela é feia, com suas janelas triangulares. Pois bem, ela resplandece, se eu a olho com amor e boa vontade; quero dizer, ela se ilumina subitamente, é um fato que se manifesta. Todo mundo pode ter essas impressões (BONNEFOY, 1970).

Tom Jobim

• Vamos ouvir e apreciar a letra de “Borzeguim”, ela nos fala da sacralidade do cotidiano...• http://letras.terra.com.br/tom-jobim/86158/• Borzeguim, deixa as fraldas ao vento

E vem dançarE vem dançarHoje é sexta-feira de manhãHoje é sexta-feiraDeixa o mato crescer em pazDeixa o mato crescerDeixa o matoDeixa o matoNão quero fogo, quero água(deixa o mato crescer em paz)Não quero fogo, quero água(deixa o mato crescer)Hoje é sexta-feira da paixão sexta-feira santaTodo dia é dia de perdãoTodo dia é dia santoTodo santo dia

• Ah, e vem João e vem MariaTodo dia é dia de foliaAh, e vem João e vem MariaTodo dia é diaO chão no chãoO pé na pedraO pé no céuO pé no céuDeixa o tatu-bola no lugarDeixa a capivara atravessarDeixa a anta cruzar o ribeirãoDeixa o índio vivo no sertãoDeixa o índio vivo nuDeixa o índio vivoDeixa o índioDeixa, deixa

• Escuta o mato crescendo em pazEscuta o mato crescendoEscuta o matoEscutaEscuta o vento cantando no arvoredoPassarim passarão no passaredoDeixa a índia criar seu curumimVá embora daqui coisa ruimSome logoVá emboraVá emboraEm nome de Deus é fruta do matoBorzeguim deixa as fraldas ao ventoE vem dançarE vem dançarO jacu já tá velho na fruteiraO lagarto teiú tá na soleiraUirassu foi rever a cordilheiraGavião grande é bicho sem fronteiraCutucurimGavião-zãoGavião-ão

• Caapora do mato é capitãoEle é dono da mata e do sertãoCaapora do mato é guardiãoÉ vigia da mata e do sertão(Yauaretê, Jaguaretê)Deixa a onça viva na florestaDeixa o peixe n'água que é uma festaDeixa o índio vivoDeixa o índioDeixaDeixaDeixaDizem que o sertão vai virar marDiz que o mar vai virar sertãoDeixa o índioDizem que o mar vai virar sertãoDiz que o sertão vai virar marDeixa o índioDeixaDeixa

GUIMARÃES ROSA

• “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”milagre que não estamos vendo”

Adélia Prado

• CASAMENTO

• Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como 'este foi difícil' 'prateou no ar dando rabanadas' 'prateou no ar dando rabanadas' e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.

De Terra de Santa Cruz (1981)

Minha mãe achava estudoa coisa mais fina do mundo.

Não é.A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,ela falou comigo:"Coitado, até essa hora no

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,ela falou comigo:"Coitado, até essa hora no

serviço pesado".Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com

água quente.Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.

“Solar”

“Minha mãe cozinhava exatamente:

Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.

Mas cantava”.

(O coração disparado)

Fernando Pessoa

“A espantosa realidade das coisas

É minha descoberta de todos os dias.

Cada coisa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra

E quanto isso me basta” (Fernando Pessoa).

CONFÚCIO E O CAMPONÊS

• Confúcio contenplava as cataratas de Lu-Liang. A cortina de água tem a altura de dez homens em pé, um em cima do outro. Depois da queda, a corrente impetuosa de águas espumantes se precipita ao longo de quarenta milhas, entre as rochas. Nem tartarugas, peixes ou crocodilos poderiam nadar nesse turbilhão.poderiam nadar nesse turbilhão.

• Viu, porém, um homem nadando na torrente. Crendo tratar-se de um suicida cansado dos sofrimentos da vida, mandou que seus discípulos o salvassem da morte. A uns cem passos abaixo, porém, o homem saiu da água, sacudiu alegre os cabelos molhados e cantarolava.

• Disse Confúcio: “Pensei que você fosse um espírito. Vejo, porém, que e mortal. Diga-me, por favor, em que consistem a técnica e o método de sua natação?”.

• Respondeu-lhe o mortal: “Não sei. Instalei-me na terra, enraizei-me no habito do cotidiano; no desempenho recolhido do habitat diário, alojei-me na fluência da vida; aos poucos a fluência da vida se tornou o habitáculo da minha natureza como a lei perfeita da regência do corpo. Caio na água, desço e subo com ela, na correspondência à sua doação. Não há técnica nem método”.

• Perguntou-lhe Confúcio: “O que significa instalar-se no habito do • Perguntou-lhe Confúcio: “O que significa instalar-se no habito do cotidiano, alojar-se na fluência da vida, tomar corpo na regência da lei perfeita?”.

• Respondeu-lhe o homem: “Sou camponês. Nasci na terra. Moro nela. Isso se chama paz, o recolhimento do diário. Da paz flui a vida. Deixar fluir a vida no recolhimento diário e o habito. Isso se chama: ser. Com o tempo, o ser toma corpo, cresce como fruto da vida, prenhe de vigor. Tudo é uno. Cada caminho e ressonância da vida. Isso se chama: liberdade ou espírito. E só isso, nada mais”.

Do Ethos à Ética (A. Buzzi)

“O gosto de acolher a doação da realidade, conquistada na ação engajada, inspira a identidade humana a elaborar uma forma ou regra de vida. É só analisar o corpo do trabalhador! Seu agir representa uma forma ou rega de vida!trabalhador! Seu agir representa uma forma ou rega de vida!

Essa forma ou regra de vida, emergente da ação, é chamada de ética porque conduz a identidade humana à morada (ethos), isto é, à correspondência do sentido íntimo do doar-se da realidade.

• A ética é, pois, uma forma de vida, a permanente luta da identidade humana por manter-se no sentido do doar-se da realidade, apreendido na ação engajada. apreendido na ação engajada.

• Por firmar-se no crescente sentido da doação da realidade, a forma de vida ética é mais estável e fiel que a forma de vida estética, que se baseia no sentimento do prazer.

• Para praticar a forma de vida ética, a identidade humana precisa, pois, lutar por liberar-se em prol do olhar da realidade em oferenda e lutar para agir no respeito à sua doação.

• O olhar da realidade, qual aurora trazendo as • O olhar da realidade, qual aurora trazendo as oferendas do dia, pede uma atitude de respeito. Não só o olhar da criança e do escravo tem força de condenar a violência do tirano e de lhe impor o dever de respeitá-los, mas também o olhar de todas as coisas:

• O olhar das pedras, das árvores, dos pássaros, dos rios. Acima de qualquer recompensa de prazer ou de lucro, acima de qualquer prescrição jurídica, é o inocente olhar da prescrição jurídica, é o inocente olhar da realidade que move a identidade humana à ação de engajar-se nela e com ela entrelaçar-se numa forma ou regra de vida de respeito e mútua promoção.

• A forma ou regra de vida ética, instituída para ancorar na inefável doação da realidade, testemunha que a identidade humana está na predisposição, isto é, na liberdade, de sair de si mesma para abrigar-se no outro.

• Na forma de vida ética, a identidade humana se • Na forma de vida ética, a identidade humana se entrelaça ao inefável de sua situação num agir de respeito, cuidando de sua incessante proveniência. Para um tal agir de respeito e cuidado, precisa ser um espelho de cem olhos imaculados”

• A. Buzzi: “A identidade humana no mundo: modos de realização”. Vozes, 2002, p. 68s.