eternizadas setembro__10

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Carlos Drummond de Andrade Fazedor de homens William Shakespeare Coletânea escolhida Giuseppe Guiaroni A palavra querida Manuel Bandeira O inútil luar Manuel Bandeira Vou-me embora pra Pasárgada Raquel de Queiroz Telha de vidro Giuseppe Guiaroni A máquina de escrever Giuseppe Guiaroni Dia das mães Carlos Drummond de Andrade - Resíduo J. G. de Araújo Jorge O verbo amar

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Page 1: Eternizadas  setembro__10

Carlos Drummond de Andrade – Fazedor de homens

William Shakespeare – Coletânea escolhida

Giuseppe Guiaroni – A palavra querida

Manuel Bandeira – O inútil luar

Manuel Bandeira – Vou-me embora pra Pasárgada

Raquel de Queiroz – Telha de vidro

Giuseppe Guiaroni – A máquina de escrever

Giuseppe Guiaroni – Dia das mães

Carlos Drummond de Andrade - Resíduo

J. G. de Araújo Jorge – O verbo amar

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Fazedor de Homens

Todo homem é uma ilha... É bom ser uma ilha distante

tanto quanto é bom ser um homem.

Todo homem possui uma ponte pois é preciso sair da ilha, seguro.

A ponte de um homem é um braço estendido.

Todo homem é um mundo. O mundo roda no sistema egocêntrico

de suas realidades, pequenos alumbramentos,

medos e coragens.

E quando o homem encara o mundo e se depara - homem-mundo, mundo-homem,

volta à ilha: Todo homem ama sua ilha.

II

O homem faz o homem. E porque fez o homem, sem nem o

homem querer aufere direitos do homem. Diz a ele: Cresça!

E ele fica mais alto.

Diz ao homem: Trabalhe!

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E ele usa o corpo. Diz ao homem: Viva! E ele respira e existe. Diz ao homem: Ame! E ele não sabe como.

Mas diz ao homem: Procrie! E ele faz homens.

Um dia ele morre.

Se a vida foi longa para viver - é curta para morrer -

porque o homem não fez, não escolheu, não pensou nada.

III

O que faz um homem diferente de outro homem é o que ele pensa.

O que o transforma, também, de um simples fazedor de homens,

num criador de homens.

Todo homem é uma vontade. E se deixa de ser vontade

teme a perda de sua posse. Todo homem é uma consciência.

Nela inclui o seu saber e a parte maior do não saber,

e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.

Todo homem é seu corpo. E sabe dele em contraste com outro corpo,

tal é a sua medida. Como também, a medida de um homem é a sua carência:

porque é assim que ele se assume, porque é assim que ele se liberta.

Quanto mais ele precisa mais ele é maior. E dá.

Pede. Reivindica. Exige, quanto pode. Luta e sofre.

Todo homem quer deixar sua ilha.

Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto, não destrói as pontes.

Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha. A ponte fica ali, só ponte.

E o homem fica ali, só homem.

Carlos Drummond de Andrade

Publicado no Jornal Última Hora (RJ) de 23/04/73

Título

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Soneto 18 - Shakespeare

Devo igualar-te a um dia de verão? Mais afável e belo é o teu semblante: O vento esfolha Maio inda em botão,

Dura o termo estival um breve instante.

Muitas vezes a luz do céu calcina, Mas o áureo tom também perde a clareza:

De seu belo a beleza enfim declina, Ao léu ou pelas leis da Natureza.

Só teu verão eterno não se acaba Nem a posse de tua formosura;

De impor-te a sombra a Morte não se gaba Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

Enquanto houver viventes nesta lida, Há-de viver meu verso e te dar vida.

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Se Nada Há de Novo

Se nada há de novo e tudo o que há já dantes era como agora é,

só ilusão a criação será: criar o já criado para quê?

Que alguém me mostre, sobre um livro antigo como quinhentas translações astrais, a tua imagem, na inscrição, no abrigo

do espírito em seus signos iniciais. Que eu saiba o que diria o velho mundo

deste milagre que é a tua forma; se te viram melhor, se me confundo,

se as translações seguem a mesma norma. Mas disto estou seguro: antigos textos

louvaram mais com bem menores pretextos.

William Shakespeare, in "Sonetos" Tradução de Carlos de Oliveira

A Noite não me Deu nenhum Sossego

Como voltar feliz ao meu trabalho

se a noite não me deu nenhum sossego?

A noite, o dia, cartas dum baralho

sempre trocadas neste jogo cego.

Eles dois, inimigos de mãos dadas,

me torturam, envolvem no seu cerco

de fadiga, de dúbias madrugadas:

e tu, quanto mais sofro mais te perco.

Digo ao dia que brilhas para ele,

que desfazes as nuvens do seu rosto;

digo à noite sem estrelas que és o mel

na sua pele escura: o oiro, o gosto.

Mas dia a dia alonga-se a jornada

e cada noite a noite é mais fechada.

William Shakespeare, in "Sonetos"

Tradução de Carlos de Oliveira

Meus Olhos Veem Melhor se os Vou Fechando

Meus olhos veem melhor se os vou fechando.

Viram coisas de dia e foi em vão,

mas quando durmo, em sonhos te fitando,

são escura luz que luz na escuridão.

Tu cuja sombra faz a sombra clara,

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como em forma de sombras assombravas

ledo o claro dia em luz mais rara,

se em sombra a olhos sem visão brilhavas!

Que benção a meus olhos fora feita

vendo-te à viva luz do dia bem,

se a tua sombra em trevas imperfeita

a olhos sem visão no sono vem!

Vejo os dias quais noites não te vendo,

e as noites dias claros sonhos tendo.

William Shakespeare, in "Sonetos (43)"

Soneto 107

Medos, nem alma capaz de prever

Medos, nem alma capaz de prever

Os sonhos de porvir do mundo inteiro,

Podem o meu amor circunscrever,

Nem dar-lhe fado triste por certeiro.

A Lua seu eclipse superou,

Os agourentos de si podem rir,

A incerteza agora se firmou,

A paz proclama olivas no porvir.

Com o orvalho dos tempos refrescado

O meu amor a própria morte prende

E em meus versos vivo consagrado,

Enquanto as tribos mudas ela ofende.

Aqui encontrarás teu monumento,

E o bronze dos tiranos vai com o vento.

Soneto 54

Oh, como a beleza parece mais bela

com o doce ornamento que a verdade produz! A rosa tão bela, mas mais bela a julgamos

Pelo doce aroma que nela seduz.

As rosas silvestres têm a cor tão profunda Quanto a tintura das rosas perfumadas,

Têm os mesmos espinhos e brincam tão vivamente Quando o sopro do verão expõe os botões velados;

Mas exibem-se apenas para si mesmas, Vivem esquecidas e murcham obscuras; Morrem sozinhas. As doces rosas, não;

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De suas doces mortes surgem as mais doces essências.

e assim também a ti, a bela e adorável mocidade, Fenecido o frescor, revela em versos tua verdade.

Soneto 73

Em mim tu vês a época do estio

Em mim tu vês a época do estio

Na qual as folhas pendem, amarelas,

De ramos que se agitam contra o frio,

Coros onde cantaram aves belas.

Tu me vês no ocaso de um tal dia

Depois que o Sol no poente se enterra,

Quando depois que a noite o esvazia,

O outro eu da morte sela a terra.

Em mim tu vês o brilho da pira

Que nas cinzas de sua juventude

Como em leito de morte agora expira

Comido pelo que lhe deu saúde.

Visto isso, tens mais força para amar

E amar muito o que em breve vais deixar.

William Shakespeare

Resumo

William Shakespeare foi um poeta e dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais

influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de "Bardo do

Avon" (ou simplesmente The Bard, "O Bardo").

Nasceu em 26 de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon onde também foi criado.

Foi um poeta e dramaturgo respeitado em sua própria época, mas sua reputação só viria a atingir o nível

em que se encontra hoje no século XIX. Os românticos, especialmente, aclamaram a genialidade de

Shakespeare, e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência que George Bernard

Shaw chamava de "bardolatria". No século XX sua obra foi adotada e redescoberta repetidamente por

novos movimentos, tanto na academia e quanto na performance. Suas peças permanecem extremamente

populares hoje em dia , e são estudadas, encenadas e reinterpretadas constantemente, em diversos

contextos culturais e políticos, por todo o mundo.

William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário.É bem conhecida a

coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes e

William Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar

que o Calendário gregoriano já era utilizado na Espanha desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra

sua adoção somente ocorreu em 1751. Daí, em realidade, Miguel de Cervantes faleceu dez dias antes de

William Shakespeare.

Título

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A palavra Querida...

Giuseppe Ghiaronni

A palavra "querida", está para a garganta, como o mel para a boca e a mulher para o olhar. Quando um santo do céu, se dirige a uma santa,

de face imaculada e expressão comovida, é assim, penso, que ele a deve chamar:

oh!querida!

Querida é um substantivo espiritual, é um nome. É um fio emocional de um ouro cristalino,

que se estende e que atrai um destino e um destino... Que alinhava e que enleia uma vida e uma vida.

Não é somente um modo de tratar, é um nome,

Assim como Izabel, Marina, Margarida... No entanto é mais que isso, é um nome divino,

que em si define um sonho, um sentimento e um bem.

Querida, não é só uma palavra, é alguém, alguém que tem a vida em nossa própria vida. Querida quer dizer eu mesmo e mais alguém...

oh! querida!

Querida é um adjetivo estranhamente feito de carinho, ciúme, adoração, ternura.

Ninguém dirá "querida" a uma mulher impura,

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pois parte da expressão fica em ecos no peito daquele que a usou...

A expressão querida não é bem para ser falada, nem ouvida. É para que uma alma pense e outra a sinta.

Sempre será maldita uma mulher que minta, em silêncio atendendo a alguém que assim a chama,

se não se ouviu chamar, antes que ele falasse, por um tic no peito e um carinho na face,

se não é profundamente a querida que o ama!

Que cruel, que infiel esta mulher fingida, que se deixa chamar de querida e, não ama,

oh!querida!

Querida, quer dizer a que eu amo e estremeço, a que é a minha amante, a minha amiga e irmã,

conheço-a mais que a mim e a tudo que conheço, e com ela eu esqueço o ontem e o amanhã.

A palavra querida é a articulação do primeiro vagido instintivo e inconsciente.

É Deus na nossa boca e o céu na nossa frente,

é ter mundos no olhar, ter estrelas na mão, é ser um fio d´água e uma constelação...

é partilhar da grande Vida Universal, é viver, mas viver como anjo e animal, é encontrar o espaço e resumir a vida, é trilhar confiante uma senda perdida é ser quase divino é ser quase brutal,

é ter uma utopia entre a sala e o quintal é prender-te, sentir-te integrada, diluída em meus braços, em mim,

infiltrada em meus poros, depois que eu derrubei os gigantes e os toros da floresta do mundo e a transpus triunfante!

É te chamar "querida" e ver o teu semblante

transtornado de luz, uma luz comovida...

É chegares o ouvido ao meu peito anelante e ouvir meu coração dizer de instante em instante:

Oh! querida... querida...

Título

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Manuel Bandeira

O inútil luar

É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria

A sua imensa, a sua eterna Melancolia...

Dormem as sombras na alameda

Ao longo do ermo Piabanha. E dele um ruído vem de seda

Que se amarfanha. . .

No largo, sob os jambolanos, Procuro a sombra embalsamada.

(Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado. Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .

Talvez se lembre aqui, coitado! De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel . . . Dobra-o direito, ajusta as pontas,

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E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas . . .

Com outro moço que se cala, Fala um de compleição raquítica. Presto atenção ao que ele fala:

— É de política.

Adiante uma senhora magra, Em ampla charpa que a modela, Lembra uma estátua de Tanagra.

E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar: — "Mamãe não avisou se vinha.

Se ela vier, mando matar Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria

A sua imensa, a sua eterna Melancolia . . .

Título

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Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente

Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

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Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo É outra civilização

Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der

Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Título

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Telha de Vidro

Por Rachel de Queiroz

Quando a moça da cidade chegou

veio morar na fazenda,

na casa velha...

Tão velha! Quem fez aquela casa foi o bisavô...

Deram-lhe para dormir a camarinha,

uma alcova sem luzes, tão escura!

mergulhada na tristura de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,

mas mandou buscar na cidade uma telha de vidro...

Queria que ficasse iluminada

sua camarinha sem claridade...

Agora,

o quarto onde ela mora

é o quarto mais alegre da fazenda, tão claro que, ao meio dia, aparece uma

renda de arabesco de sol nos ladrilhos

vermelhos,

que — coitados — tão velhos só hoje é que conhecem a luz doa dia...

A luz branca e fria

também se mete às vezes pelo clarão

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da telha milagrosa...

Ou alguma estrela audaciosa

careteia

no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia! — Você me disse um dia

que sua vida era toda escuridão

cinzenta,

fria, sem um luar, sem um clarão...

Por que você na experimenta?

A moça foi tão vem sucedida...

Ponha uma telha de vidro em sua vida!

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Giuseppe Ghiaroni

A Máquina de Escrever

Mãe, se eu morrer de um repentino mal, vende meus bens a bem dos meus credores:

a fantasia de festivas cores que usei no derradeiro Carnaval.

Vende ese rádio que ganhei de prêmio por um concurso num jornal do povo, e aquele terno novo, ou quase novo,

com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos que me davam uns ares inocentes.

Já não precisarei de duas lentes para enxergar os corações amigos.

Vende , além das gravatas, do chapéu, meus sapatos rangentes. Sem ruído

é mais provável que eu alcance o Céu e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso requer apenas a expressão do olhar.

Já não precisarei do meu sorriso para um outro sorriso me enganar.

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Vende meus olhos a um brechó qualquer que os guarde numa loja poeirenta,

reluzindo na sombra pardacenta, refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte, libertando minha alma pensativa

para ninguém chorar a minha morte sem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupa para pagar àqueles a quem devo.

Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa esta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas, de teclas bambas,tique-taque incerto. De ano em ano, manda-a ao conserto e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas que eram meu humílimo tesouro,

mas não! ainda que ofereçam ouro, não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta meus fantasmas da dúvida e do mal,

ela que é minha rude ferramenta, o meu doce instrumento musical.

Bate rangendo, numa espécie de asma, mas cada vez que bate é um grão de trigo. Quando eu morrer, quem a levar consigo

há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma tortura sentir nas bambas eclas solitárias um bando de dez unhas usurárias

a datilografar uma fatura.

Deixa-a morrer também quando eu morrer; deixa-a calar numa quietude extrema,

à espera do meu último poema que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar, conservando os meus íntimos instantes,

e, nas noites de lua, não te espantes quando as teclas baterem devagar.

Título

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Giuseppe Ghiaroni

Dia das Mães

Mãe! eu volto a te ver na antiga sala

onde uma noite te deixei sem fala dizendo adeus como quem vai morrer.

E me viste sumir pela neblina, porque a sina das mães é esta sina: amar, cuidar, criar, depois... perder.

Perder o filho é como achar a morte. Perder o filho quando, grande e forte,

já podia ampará-la e compensá-la. Mas nesse instante uma mulher bonita, sorrindo, o rouba, e a velha mãe aflita

ainda se volta para abençoá-la

Assim parti, e nos abençoaste. Fui esquecer o bem que me ensinaste,

fui para o mundo me deseducar. E tu ficaste num silêncio frio,

olhando o leito que eu deixei vazio, cantando uma cantiga de ninar.

Hoje volto coberto de poeira e te encontro quietinha na cadeira,

a cabeça pendida sobre o peito. Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.

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Quero acordar-te, mas não sei se devo, não sinto que me caiba este direito.

O direito de dar-te este desgosto, de te mostrar nas rugas do meu rosto

toda a miséria que me aconteceu. E quando vires e expressão horrível da minha máscara irreconhecível,

minha voz rouca murmurar: ''Sou eu!"

Eu bebi na taberna dos cretinos, eu brandi o punhal dos assassinos, eu andei pelo braço dos canalhas.

Eu fui jogral em todas as comédias, eu fui vilão em todas as tragédias,

eu fui covarde em todas as batalhas.

Eu te esqueci: as mães são esquecidas. Vivi a vida, vivi muitas vidas,

e só agora, quando chego ao fim, traído pela última esperança,

e só agora quando a dor me alcança lembro quem nunca se esqueceu de mim.

Não! Eu devo voltar, ser esquecido. Mas que foi? De repente ouço um ruído;

a cadeira rangeu; é tarde agora! Minha mãe se levanta abrindo os braços

e, me envolvendo num milhão de abraços, rendendo graças, diz: "Meu filho!", e chora.

E chora e treme como fala e ri, e parece que Deus entrou aqui,

em vez de o último dos condenados. E o seu pranto rolando em minha face quase é como se o Céu me perdoasse,

me limpasse de todos os pecados.

Mãe! Nos teus braços eu me transfiguro. Lembro que fui criança, que fui puro.

Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta que eu compreendo o que significa: o filho é pobre, mas a mãe é rica!

O filho é homem, mas a mãe é santa!

Santa que eu fiz envelhecer sofrendo, mas que me beija como agradecendo

toda a dor que por mim lhe foi causada. Dos mundos onde andei nada te trouxe,

mas tu me olhas num olhar tão doce que , nada tendo, não te falta nada.

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Dia das Mães! É o dia da bondade

maior que todo o mal da humanidade

purificada num amor fecundo.

Por mais que o homem seja um mesquinho,

enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho

cantará a esperança para o mundo!

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Resíduo

Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco Ficou um pouco de luz captada no chapéu. Nos olhos do rufião de ternura ficou um pouco (muito pouco). Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos pouco, pouco, muito pouco. Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama, do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco. Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio um pouco ficou, um pouco nos muros zangados, nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo

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no pires de porcelana, dragão partido, flor branca, ficou um pouco de ruga na vossa testa, retrato. Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal, um pouco de mim em Londres, um pouco de mim algures? na consoante? no poço? Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os peixes não o evitam, um pouco: não está nos livros. De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil... De tudo ficou um pouco: de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco; vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada, e minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina. De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

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e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe, fica sempre um pouco de tudo.

Às vezes um botão. Às vezes um rato.

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O verbo amar JG de Araujo Jorge

Te amei: era de longe que te olhava e de longe me olhavas vagamente...

Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente, que a alma da gente faz escrava.

Te amava: como inquieto adolescente, tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava

adivinhando esse mistério ardente do mundo, em cada beijo que te dava.

Te amo: e ao te amar assim vou conjugando

os tempos todos desse amor, enquanto segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,

e é por ti que o repito no meu canto: te amei, te amava, te amo e te amarei!

(Poema de JG de Araujo Jorge do livro -Bazar de Ritmos- 1935)

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