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154 Estilos da Clínica, 2008, Vol. Xlll, n° 25, 154-179 ESCREVENDO A PSICANÁLISE EM UMA PRÁTICA DE PESQUISA 1 Maria Cristina Poli 1. Contexto da pesquisa em psicanálise: universidade e instituição A inclusão da psicanálise no currículo uni- versitário seria sem dúvida olhada com satisfação por todo psicanalista. Ao mesmo tempo, é claro que o psicanalista pode prescindir completamente da uni- versidade sem qualquer prejuízo para si mesmo.” (Freud, 1919/n.d.). O tema da pesquisa é, ao mesmo tempo, novo e antigo na psicanálise. Antigo pelas relações que al- guns de seus principais autores trilharam na univer- sidade, instituição da qual o termo “pesquisa” pro- vém. Contudo, abordar esse tema demanda sempre que se construam pontes e justificativas, seja para os outros ou para nós mesmos, para a inserção da psi- Dossiê RESUMO A prática da pesquisa em psica- nálise é analisada à luz do con- texto das relações entre institui- ção analítica e universidade, bem como da subversão histórica que o paradigma da linguagem aporta para o estudo do homem pelas ciências. O artigo se pro- põe ainda a pensar a prática da pesquisa dentro de um contexto de formação analítica, conside- rando a noção de “fato clínico” como correlativa da inscrição da psicanálise na cultura. Descritores: pesquisa em psi- canálise; formação psicanalítica; fato clínico; experiência; lingua- gem. Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (LAPPAP/UFRGS).

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ESCREVENDO APSICANÁLISE EM UMA

PRÁTICA DEPESQUISA1

Maria Cristina Poli

1. Contexto da pesquisa empsicanálise: universidade e instituição

“A inclusão da psicanálise no currículo uni-versitário seria sem dúvida olhada com satisfação portodo psicanalista. Ao mesmo tempo, é claro que opsicanalista pode prescindir completamente da uni-versidade sem qualquer prejuízo para si mesmo.”(Freud, 1919/n.d.).

O tema da pesquisa é, ao mesmo tempo, novo eantigo na psicanálise. Antigo pelas relações que al-guns de seus principais autores trilharam na univer-sidade, instituição da qual o termo “pesquisa” pro-vém. Contudo, abordar esse tema demanda sempreque se construam pontes e justificativas, seja para osoutros ou para nós mesmos, para a inserção da psi-

Dossiê

RESUMO

A prática da pesquisa em psica-nálise é analisada à luz do con-texto das relações entre institui-ção analítica e universidade, bemcomo da subversão histórica queo paradigma da linguagemaporta para o estudo do homempelas ciências. O artigo se pro-põe ainda a pensar a prática dapesquisa dentro de um contextode formação analítica, conside-rando a noção de “fato clínico”como correlativa da inscrição dapsicanálise na cultura.Descritores: pesquisa em psi-canálise; formação psicanalítica;fato clínico; experiência; lingua-gem.

Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto

Alegre, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(LAPPAP/UFRGS).

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canálise nesse lugar. Constata-se hoje que a criação de Laboratóriose Grupos de pesquisa em psicanálise na universidade é cada vezmais numerosa. São lugares que visam criar as condições para quea produção de psicanalistas possa encontrar vias efetivas de circu-lação e, também, para que os diálogos entre essas produções possase dar.

O “novo” na abordagem desse tema diz respeito à necessidadeconstante de atualizá-lo diante dos contextos e das interlocuçõesque estão em causa a cada momento, da importância da renovação eda invenção inerentes à pesquisa em psicanálise, e que a justifica, edos desafios políticos que se apresentam e se renovam.

Podemos afirmar, assim, que há um desafio interno ao campoda psicanálise – a renovação/invenção de seu saber e de sua prática,fundada na particularidade de que, para cada analista, como paracada caso clínico, é necessário reinventar toda a psicanálise nova-mente. Isso porque o saber psicanalítico tem a peculiaridade de serespecialmente suscetível ao recalque, e é graças a isso que se podeoperar para buscar, não um conhecimento, mas a posição de enun-ciação que situa a produção de um saber singular.

Na orientação de trabalhos de pesquisa, acompanhamos, emcada aluno, esse processo de construção de uma questão e de umsaber singular no campo da psicanálise. Isso é sempre novo. Talvezum dia os analistas que orientam trabalhos de pesquisa se dediquemà tarefa, importante, de construir uma teoria sobre a transferênciana orientação de pesquisas e sua função no percurso de formaçãoanalítica.

Outro desafio que é sempre novo e renovado é o da relaçãocom os pares dentro do espaço universitário. Isso poderia nos levarmuito longe, desde considerações históricas sobre a relação da psi-canálise com a universidade, até questões do funcionamento buro-crático de órgãos reguladores de pesquisa etc. Sem entrar nos deta-lhes, podemos afirmar que hoje vivemos um momento paradoxal.Por um lado, no Brasil ao menos, a psicanálise nunca teve tanta ex-pressão no meio universitário. Há um número importante de psica-nalistas trabalhando no âmbito acadêmico e que tem uma valiosaprodução. Até uns vinte anos atrás, a psicanálise era uma teoria amais no campo da psicologia e da psiquiatria. Hoje, ela está cada vezmenos presente na psiquiatria, mas é ensinada por psicanalistas napsicologia, por meio de seminários, supervisão e orientação de pes-quisa. É certo que isso tem efeitos, mesmo que num enquadre de

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formação acadêmica de psicólogos, enão em uma instituição de formaçãode analistas.

Além disso, essa comunidade deanalistas que trabalham na universi-dade conseguem constituir circuitosde circulação de transferência que ga-rantem – através dos Laboratórios,grupos de pesquisa e redes inter-uni-versitárias – reconhecimento do va-lor de sua produção pelos órgãos defomento que se reverte em verbas depesquisa, financiamento e incentivo apublicações, eventos etc. Claro queesses dispositivos correm muitas ve-zes o risco de tornarem-se sistemascorporativos, exclusivamente burocrá-ticos e protecionistas. E isso pode sermais prejudicial à produção psicanalí-tica do que o ostracismo. É, contudo,necessário reconhecer que a psicaná-lise, sobretudo lacaniana, tem atual-mente no Brasil um lugar de desta-que e reconhecimento no circuitouniversitário.

Por outro lado, essa visibilidadereinscreve os sistemas de resistênciaao saber psicanalítico. Na prática, ob-serva-se a constância de um embatepolítico – a busca de reconhecimentoda especificidade da pesquisa em psi-canálise junto ao CNPq (ConselhoNacional de Desenvolvimento Cien-tífico e Tecnológico), à ANPEPP (As-sociação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia), aosComitês de Ética em pesquisa etc. Noentanto, se tal reconhecimento fosseassegurado, a expressividade e a con-sistência da psicanálise seriam incluí-

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das no processo universitário de especialização das áreas da psicolo-gia. Nesse sentido, que a psicanálise entre no rol das “especialida-des” não é muito alvissareiro. Há quem, em função disso, ainda sejasaudoso do tempo em que os alunos que queriam estudar psicanáli-se faziam-no em grupos de estudos extra-acadêmicos. Era mais sub-versivo e, por isso mesmo, talvez mais propício à formação analítica.Mas, enfim, são outros tempos.

Um outro conjunto de questões se abre quando focamos osefeitos da pesquisa em psicanálise nas instituições de formação psi-canalítica. É sempre muito complicado falar de modo genérico, mas,se retomamos a história, é preciso reconhecer que a relação institui-ção/universidade é marcada por idas e vindas que nos fazem pensarno percurso da formiguinha de Escher sobre a banda de Moebius.Freud não conseguiu ingressar na universidade e, em parte, a criaçãoda IPA se deve a isso. Segundo suas próprias palavras: “O fato deque uma organização dessa natureza [a instituição psicanalítica] existe,deve-se, na verdade, à exclusão da psicanálise das universidades. E,é, portanto, evidente que esses sistemas de organização continuarãoa desempenhar uma função efetiva enquanto persistir tal exclusão.”(Freud, 1919/n.d.)

Lacan, quando “excomungado” da IPA, buscou na Escola Nor-mal Superior (ENS), por intermediação de Althusser, um lugar parasediar seu ensino. À criação da Escola Freudiana de Paris, em 1964,seguiu-se da implantação do departamento de psicanálise na univer-sidade de Paris 8 – Vincennes, conduzida por Leclaire. A posiçãoambivalente de Lacan a esse respeito, segundo testemunho de Rou-dinesco (1988), não impediu que até hoje o ensino lacaniano na Françatenha na Universidade um importante lugar de difusão.

Criaram-se, portanto, vias paralelas, às vezes opostas, às vezescomplementares. Em todo caso, lugares distintos. Formalmente, auniversidade caracteriza-se pelo tripé ensino, pesquisa, extensão; ainstituição analítica tem outro tripé: análise, supervisão, transmissão(Rosa, 2001). A oposição ou complementaridade entre esses termoscoloca a questão da função que um lugar e uma posição que marcama diferença presente nestes termos têm para um psicanalista.

É curioso como tanto Freud como Lacan precisaram apoiar-seem uma contestação para sustentar a transmissão. A presença doopositor, do resistente, até mesmo de um sabotador, é onipresentena obra de Freud. Ele chega a criar esses personagens em alguns deseus textos: o opositor em O futuro de uma ilusão, o questionador ingê-

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nuo nas Conferências introdutórias, o “juiz imparcial” no texto sobre aanálise leiga, além, claro, da encarnação mais direta dessas figurasem Jung e Adler, sobretudo.

No texto A história do movimento psicanalítico – escrito após a rup-tura com eles –, Freud expressa sua preocupação por meio de umafórmula que poderíamos repetir ainda hoje: “Pelo menos uma dúziade vezes durante os últimos anos li em relatórios de congressos e deórgãos científicos, ou em resenhas críticas de certas publicações, queagora a psicanálise está morta, derrotada e eliminada de uma vez portodas. A melhor resposta a isso seria nos termos do telegrama deMark Twain ao jornalista que publicou a notícia falsa de sua morte:‘Informação sobre minha morte muito exagerada’. Depois de cadaum desses obituários a psicanálise ganhava novos adeptos e colabo-radores ou adquiria novos canais de publicidade. Afinal de contas,ser declarado morto é melhor do que ser enterrado em silêncio.”(Freud, 1914/n.d.).

Lacan também gostava das oposições. É conhecida a impor-tância que a crítica à psicologia do ego e aos seus personagens tempara ele, e sabemos como pode ser violenta a forma como essa con-testação colocou-se em sua obra. Porém, que isso o tenha feito tra-balhar significa que não se tratava de um embate narcísico, de sim-ples contraposição, mas da possibilidade de construção de um lugarterceiro, o lugar da obra, da inovação. A psicanálise é uma “paranóiadirigida”, dizia Lacan (1998a, p.112), e colocava efetivamente issoem prática na posição de analisante ao longo do seminário.

Além disso, encontramos também, tanto em Freud como emLacan, o reconhecimento da própria voz nessa espécie de alter-egopersecutório. Algumas vezes, Freud é ele mesmo autor dessas opo-sições ao criar personagens que o contradizem. Também Lacan, demodo talvez mais sutil, faz críticas derrisórias de suas próprias pro-posições em diferentes momentos de seu ensino.

Nesse sentido, ter na universidade um espaço de exercício des-sa tensão, dessa oposição, seja entre saberes, seja com os própriosdispositivos, pode fazer bem para a psicanálise, pois esse lugar deresistência pode sustentar essa oposição necessária, ao seu discurso,que lhe permita avançar. Pode, por outro lado, preservar a unidadena instituição: afinal os inimigos estão fora. Nunca escapamos intei-ramente desses fins corporativos. De qualquer modo, isso tambémnos indica o risco que corremos quando aportamos na instituiçãosignificantes que lhe são, a princípio, estrangeiros.

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Seria, então, possível fazer “pes-quisa” na instituição analítica? Issocomeça a acontecer, como tentativasde construir um espaço interno à ins-tituição que inclua os litorais da psi-canálise, as zonas de diálogo, de inde-terminação, de indefinição. Por outrolado, mantém-se o desafio de preser-var a particularidade e especificidadede uma instituição de formação ana-lítica, preservando-a em exteriorida-de com o âmbito da pesquisa

Esses litorais ou zonas de inde-terminação – afinal, quando se estána beira do mar, não se sabe bem ondetermina o mar e começa a areia – po-dem ser variados. Além da questão dapesquisa, a instituição analítica tem hojeo desafio da construção de espaços quepropiciem o exercício da psicanálise emextensão. A prática efetiva, e cada vezmais comum, de psicanalistas em ins-tituições públicas (saúde, assistência,educação, cultura) e privadas (asses-sorias/consultorias), e o retorno des-sas experiências para as instituições deformação em psicanálise, coloca anecessidade de constituição de novosespaços institucionais. A instituiçãoanalítica, hoje, tem a tarefa de repen-sar seus litorais para que esses movi-mentos tenham lugar e possam terconseqüências ainda mais importan-tes para a formulação e sustentaçãodo discurso psicanalítico. Reconhece-se, assim, nessas experiências “extra-clínicas” (a “psicanálise extramuros”)uma função de interrogação da dou-trina, de corte no saber constituído,de reinvenção dos pontos de ignorân-

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cia da qual nós, analistas, somos tri-butários e que nos interessam sobre-maneira como espaços de alteridade(entre opositor, juiz e endereço deuma transmissão) constitutivos donosso campo.

2. Os muros (ou extramuros)da psicanálise e aprodução do objeto naprática de pesquisa

A expressão “extra-clínica” ou“extramuros” para referir-se a práti-cas que excedem ao denominadosetting analítico é curiosa. Lembramosde Lacan, quando diz no seminário Osaber do psicanalista: “eu falo aos mu-ros” (Lacan, 1971-72/inédito) Ele re-fere-se aos muros do hospital Saint-Anne no qual está proferindo seuseminário. Situa neles, alegoricamen-te, a barreira impermeável de divisãoentre o interno e o externo que carac-teriza um hospital psiquiátrico e quesitua a loucura como esse espaço se-gregado, excluído da circulação. Étambém, evidentemente, uma queixaque ele profere, do mesmo tipo quelhe faz dizer em vários seminários deseus últimos anos: “vocês me escu-tam? Vocês estão mesmo me escutan-do?” Ou ainda: “por que ainda estãoaqui? É mesmo surpreendente queainda (encore) estejam aqui”. Os “mu-ros” são essa barreira de resistência,que toma a forma de impermeabili-dade, de segregação ou de transferên-

cia infinita que persiste e resiste a dis-solução.

O próprio Freud sabia que, aopropor a transferência como a molado tratamento analítico, estava pro-pondo o antídoto e o veneno em umasó substância. Transferência é resis-tência – necessária à construção deuma passagem. “Extramuros” podeser, então, um muro em excesso, ummais-muro ou, ainda, uma ultrapassa-gem, um além do muro.

“Clínica ampliada” ou “clínicaaberta” (Costa, 2007) são nomes quecontemporaneamente têm sido usa-dos para designar esses outros espa-ços nos quais o dispositivo psicanalí-tico da transferência pode operar.Como um analista pode fazer incidiraí o seu discurso? Como interpretar,cortar, pontuar – enfim, analisar, nes-se contexto? Freud indicou suas dú-vidas e expectativas quanto a isso: “Eunão diria que uma tentativa desse tipo,de transportar a psicanálise para a co-munidade cultural, seja absurda ou queesteja fadada a ser infrutífera. Mas te-ríamos de ser muito cautelosos e nãoesquecer que, em suma, estamos lidan-do apenas com analogias e que é peri-goso, não somente para os homensmas também para os conceitos, arran-cá-los da esfera em que se originarame se desenvolveram.” (Freud, 1929/n.d.)

Vale lembrar que, apesar de suaexemplar prudência nesse terreno hí-brido, Freud – desde o início, e ao lon-go de toda a sua obra – incluiu emsuas análises expressões individuais e

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coletivas do inconsciente, estudou-ase conceitualizou-as quase sem discri-minar a sua procedência. Observa-se,portanto, que no trabalho de pesqui-sa que Freud conduz, esses murosentre singular e coletivo, entre clínicae cultura, dobram-se de um jeito queproduz tensões, mas sem perder apermeabilidade.

Quem é o Freud pesquisador?Aos que querem aprender a fazer umatese, costumamos indicar que é inte-ressante ler alguma já feita. Se essa teseé em psicanálise podemos, então, re-comendar que não leiam apenas uma,mas quatro: Estudos sobre a histeria, Ainterpretação dos sonhos, Os chistes e sua

relação com o inconsciente e Psicopatologia

da vida cotidiana. Em todas essas obrasencontramos a mesma estrutura rigo-rosa de trabalho de um pesquisador:uma revisão bibliográfica que defineo estado da questão até aquele mo-mento; um levantamento de dados,exemplos, ilustrações do fenômenopesquisado e uma interpretação des-ses elementos a partir de uma hipóte-se nova que dialoga com as teoriasanteriores, acrescentando algo denovo.

É realmente surpreendente quepossamos observar nessas quatroobras de Freud, nos quatro pilares dateoria psicanalítica – as formações doinconsciente –, uma estrutura tão se-melhante, ao mesmo tempo clássicae inovadora. Inovadora porque, ape-sar de seguir os cânones da ciênciaquanto à estrutura argumentativa, aconstrução do objeto é absolutamen-

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te nova. Vamos situar alguns pontos dessa inovação que podem nosservir de guia para a prática de pesquisa em psicanálise hoje:

1) os objetos/fenômenos escolhidos por Freud não são quaisquer.Hoje sabemos que eles perfazem o conjunto das formações do in-consciente. Mas Freud não sabia disso de antemão. Ele não tinhauma teoria sobre as formações do inconsciente que o conduziu aestudar essas expressões. O que havia era o desejo de ciência que omovia. Em relação a isso, o que essas expressões têm em comum éa de serem fenômenos relegados pela ciência e pelo status quo inte-lectual. (É certo que Freud se apóia em alguns cientistas ou filósofosque haviam se interessado, mesmo que lateralmente, por esses fenô-menos. Mas ele mesmo, às vezes, se culpava por haver se dedicado acoisas tão “insignificantes” como um chiste.) Além disso, não eramapenas fenômenos relegados pela ciência, mas inexplicáveis por ela.Tratava-se, portanto, de elementos que produziam (e ainda produ-zem) furo no saber. Objetos a da pulsão epistemofílica. Ser relega-do, nesse sentido, é expressão de um “não querer saber nada disso”.O descaso aqui é irmão do recalque;2) a segunda característica é a de serem fenômenos que podem serqualificados como universais e atemporais. Sonhar, produzir lapsos,sintomas e chistes participam da qualidade do humano, são patri-mônios da humanidade. Isso porque são, todos, atinentes ao campoda linguagem e à função da fala, como dirá Lacan;3) um terceiro elemento igualmente presente é a forma como emcada um deles se situa a dobra entre individual e coletivo. Nos chistes,isso é evidente, e sua característica mais marcante. O que os colocalado a lado das demais formações do inconsciente é essa mesmaestrutura. Vejamos: quando aborda os sintomas histéricos, Freudpropõe uma analogia que não é apenas um artifício de retórica. Elecompara o sintoma conversivo com um monumento histórico, querepresenta um acontecimento, permitindo seu esquecimento. Talinterpretação vale tanto para o sintoma histérico como para o mo-numento, isto é, para a forma como se lida com os fatos históricosem uma dada sociedade. Nos sonhos – expressão que parece ser oíndice máximo do que há de mais íntimo a cada um – esse elementocoletivo é expresso na homologia de seu enigma com os hieróglifosegípcios, os ideogramas orientais, essa língua cifrada, meio letra, meiodesenho, que está na origem da escrita alfabética. Os sonhos são,por assim dizer, nossa Pedra da Roseta. Por fim, os lapsos. Freud

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não deixa de indicar quão contagiosoé um esquecimento e, da mesma for-ma como a gente se esquece de umnome, acontece também de povosinteiros esquecerem um fato marcantede sua história.

Podemos, portanto, encontrar naobra de Freud um dos principaisensinamentos para a elaboração deuma pesquisa em psicanálise: a cons-trução da questão, a produção do ob-jeto a ser estudado. Hoje, podemosafirmar, genericamente, que “é o mé-todo que cria o objeto”. Ou seja, queas características do que vamos pes-quisar são absolutamente dependen-tes do tipo de estilete que se utilizapara recortá-lo. Este “estilete” emparte é a teoria, mas é também, e prin-cipalmente, a posição do analista, deseu desejo de analista, na construçãoda questão.

Um sonho, por exemplo, podeser estudado também por um neu-rocientista, que tentará nos provarque os ratos também sonham por-que emitem ondas cerebrais seme-lhantes às que emitimos quando dor-mimos. Esse sonho, no entanto, nãotem nada a ver com o sonho tal comoa psicanálise o concebe. Ou seja, nãoé o fenômeno em si que define nos-so modo de pesquisar, mas a rede(significante) ou o anzol (do desejo:Che vuoi?) que jogamos para apanhá-lo. O objeto vem com a rede e se con-funde com ela; ele traz o anzol paraapanhar quem o lançou. É o retornoda mensagem, na medida em que o

objeto da psicanálise é, em sua pró-pria definição, um fato de linguagem.Ela é por princípio social, mas seuuso é necessariamente individual,como as formações do inconscienteindicadas acima.

Para concluir esse ponto, deixe-mos indicadas as linhas daquilo quepretendemos desenvolver a seguir. Aoeleger o campo da linguagem comoseu campo de pesquisa, a psicanáliseinaugura um novo paradigma. Ele nãose limita, certamente, à pesquisa psi-canalítica. As chamadas ciências hu-manas – antropologia, lingüística etc.– são tributárias da subversão, que trazconseqüências para o campo do sa-ber científico, contida no fato de ohomem ser um ser falante, ser sujeitoà linguagem. A obra de Freud se situanessa virada (a “virada lingüística”).Ele quer fazer da psicanálise uma ciên-cia natural, mas opera com um méto-do interpretativo que produz um ob-jeto nada natural: o inconsciente, aspulsões, o desejo etc.

Segundo Rosa (2001), Lacan, emO seminário, livro 11, reformula a ques-tão “a psicanálise é uma ciência?” para“o que é uma ciência que inclua a psi-canálise?” Se pensarmos na trajetóriade Freud na invenção da psicanálise,encontramos dois passos fundamen-tais: a passagem do fato acontecido àfantasia e da hipnose e sugestão paraa transferência. Esses dois passos im-plicam numa reviravolta nos “muros”do saber. É uma mudança na formade produzir a questão que implicanecessariamente uma mudança na

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implicação, no topos de onde o pes-quisador/analista se situa nessa pro-dução.

Essa reviravolta pode ser expres-sa como o faz Lacan, ao dizer que “osujeito está em uma exclusão internaa seu objeto.” (Lacan, 1998b, p. 875)Não apenas no sentido que é lá entãoque temos de buscá-lo – no interiorda fantasia e da transferência – mastambém que é lá que temos de pro-duzi-lo.

Ou seja, mais do que uma ciên-cia, a psicanálise é uma ética. Tambémna prática de pesquisa, ela produz osujeito, não apenas o descobre. “Eunão procuro, acho.” (Lacan, 1990)

3. Linguagem e experiência:um paradigma para apesquisa

Uma afirmação de Freud, bastan-te conhecida e referida quando se tra-ta de pensar o tema da pesquisa, en-contramos na própria definição depsicanálise em seu artigo para a enci-clopédia. Segundo o autor: “Psicaná-lise é o nome de (1) um procedimen-to para a investigação de processosmentais que são quase inacessíveis porqualquer outro modo, (2) um método(baseado nessa investigação) para otratamento de distúrbios neuróticos e(3) uma coleção de informações psi-cológicas obtidas ao longo dessas li-nhas, e que gradualmente se acumulanuma nova disciplina científica.”

(Freud, 1923/n.d.)

Investigação/pesquisa, tratamen-to e metapsicologia são, portanto, ascaracterísticas indicadas. Também nopós-escrito ao texto sobre a análiseleiga, Freud (1927/n.d.) atribui à psi-canálise essa peculiaridade: a de ser oúnico método no qual investigação ecura coincidem.

Essa investigação, como se sabe,Freud a estende a si mesmo, pratican-do algo conhecido pelo espírito cien-tífico, principalmente no campo damedicina, durante o século XIX: pro-var da própria invenção. Ele aplica emsi sua ciência, submete-se à associa-ção livre e testemunha isso em cartase textos. Como um bom cientista, nãoé de “si” que ele fala, nem de um “si”,como quem constrói um personagem– o que o colocaria no campo da lite-ratura e da arte; ele fala do “isso” queo habita. E ali ele encontra uma con-dição de máxima intimidade que, noentanto, o aproxima de forma irrevo-gável de seus pacientes e, por exten-são, de todos os seres falantes.

Quais as condições culturais paraque Freud tenha dado esse passo?Lacan introduziu essa pergunta comsua noção de “sujeito moderno” e nospôs a trabalhar em torno dela. Os tra-balhos de pesquisa no campo da psi-canálise, em alguma medida, têm sem-pre de formular uma resposta a estaquestão que seja condizente com otema pesquisado.

Temos aqui, portanto, um pontode encontro, um litoral com a críticacultural (sustentado pela filosofia e

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pela sociologia) que é interessantemencionar.

O encontro desse “isso” que per-faz o enlace entre o mais singular e omais universal da experiência é abor-dado por Agamben (2005) no textoInfância e história. Ele trabalha o temada experiência – termo herdado deBenjamim – para problematizar ascondições de sua produção nacontemporaneidade. Vamos recorrera esse filósofo por meio do diálogoque ele permite estabelecer com a psi-canálise, com a concepção de sujeitomoderno, introduzida por Lacan.

Agamben menciona duas passa-gens literárias que demonstram o en-contro com o “isso” da experiência(a in-fância – sem fala – da experiên-cia) na narrativa autobiográfica de seusautores. São duas experiências de que-da, uma narrada por Montaigne e ou-tra por Rousseau. A de Montaigne, umtrecho dos Essais, é assim narrada:“Um dia, eu estava a passear, não lon-ge de casa, em um cavalo pequeno etrôpego, quando um de meus servi-çais, grande e forte, montando umbaio brioso que tinha uma boca im-possível, mas era fresco e vigoroso,para fazer-se de valente e superar osseus companheiros, incitou-o a todabrida em minha direção, precipitou-se como um colosso contra o pequeno

homem e seu pequeno cavalo, fulminando-os

com o seu peso e com o seu ímpeto elançando-nos, um e outro, de pernas para o

ar: e eis o cavalo abatido por terra,completamente atordoado, e eu, dezou doze passos mais adiante, morto,

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estendido de bruços, a espada que tinha na mão a mais de dez pas-sos, o cinturão em pedaços, sem mais nenhum movimento ou cons-ciência, como uma raiz.... Quando recomecei a ver, foi com umavista tão turva, débil e morta, que discernia apenas a luz... quanto àsfunções da alma, estas nasciam passo a passo com as do corpo. Vi-me todo ensangüentado, porque minha camisa estava manchada dosangue que havia vomitado... Parecia-me que minha vida não mesustivesse senão à flor dos lábios: fechei os olhos para ajudar-me,era esta a impressão, a empurrá-la para fora, e sentia prazer nalanguidão e no abandono.” (Montaigne, citado por Agamben, 2005,pp.48-49, itálico nosso)

Mais adiante Montaigne prossegue: “Eu tinha o estômago opri-mido pelo sangue coagulado e as minhas mãos para ali corriam sozi-nhas, como o fazem freqüentemente aonde prure, contra o parecerde nossa vontade.... Cada um sabe por experiência própria que exis-tem partes de nós que se movem, levantam-se abaixam-se sem pedirpermissão. Estas paixões, que não nos tocam senão através da casca,não se podem dizer nossas. Para torná-las nossas, é preciso que ohomem nelas tenha se empenhado completamente; e as dores queos pés e as mãos sentem enquanto dormimos, estas não nos perten-cem.” (Montaigne citado por Agamben, 2005, pp.49-50)

Percebe-se nessa narrativa o ponto de encontro com o que cons-titui o solo comum da experiência, nessa indeterminação do eu, oele, o nós. Com a queda do “eu”, no desfalecimento, o mais íntimoe o mais estrangeiro se aproximam: “extimidade”, é o neologismocriado por Lacan (1988).

Podemos pensar que a queda retratada pelo escritor é uma ale-goria das perdas dos referentes simbólicos pré-modernos que seencontra na origem do que Freud trabalhará como “inconsciente”.Segundo Agamben: “Estes episódios [de Montaigne e de Rousseau]são como dois estafetas isolados que anunciam o emergir e o alas-trar-se do conceito de inconsciente no século XIX .... Pois certa-mente, na idéia de inconsciente, a crise do sujeito moderno da expe-riência – ou seja, da experiência que se funda sobre o sujeito cartesiano– chega à sua evidência máxima. Como manifesta claramente a suaatribuição a uma terceira pessoa, a um Es, a experiência inconscientenão é, de fato, uma experiência subjetiva, não é uma experiência doEu.... Todavia, a psicanálise mostra-nos precisamente que as experi-ências mais importantes são aquelas que não pertencem ao sujeito,mas a ‘aquilo’ (Es).” (Agamben, 2005, p.51).

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Essa passagem que instaura osujeito moderno, o sujeito da psica-nálise, pode ser narrada por diferen-tes vieses. Hannah Arendt (2005), porexemplo, menciona a invenção do te-lescópio – a possibilidade do homemver-se do ponto de vista do universo– como a alegoria máxima dessa mu-dança de posição do sujeito. Interes-sante essa figura porque transmite demodo imediato a duplicação do sujei-to no campo da ciência – aquele quevê e aquele que é visto; o pesquisadore o objeto da pesquisa. Ela refere cri-ticamente o alheamento da experiên-cia que tal perspectiva cientifica intro-duz, indicando que o método daintrospecção (na origem da psicolo-gia) é um modo de se olhar com osolhos da mente (como um telescópiointerno).

Freud e a psicanálise são frutosdesse contexto. Porém, percebe-se aíum passo a mais nessa divisão que oolhar da ciência promove e que dizrespeito ao trabalho com o campo dalinguagem. É neste campo que as opo-sições binárias, as clivagens cedemlugar a uma outra torção que implicana relação entre enunciado e enuncia-ção, entre eu e Outro, entre verdade eficção. Termos que não são excluden-tes nem contraditórios: eles têm umarelação de “extimidade”, cujas malhasda experiência são tecidas pela lingua-gem e na linguagem.

Um importante autor a situar ascondições dessas mudanças no cam-po da cultura e da ciência é Foucault.No livro As palavras e as coisas

(Foucault, 1990), ele se propõe a ler aentrada na modernidade a partir daconsideração do modo de conceber eabordar a relação da linguagem como mundo. O que ele indica – sendotalvez excessivamente simplista coma riqueza dos elementos que ele aporta– é a ruptura entre as palavras e ascoisas, quebra do signo lingüístico,desnaturação da linguagem (sua arbi-trariedade) como marco de entrada namodernidade: “A profunda interde-pendência da linguagem e do mundose acha desfeita. O primado da escri-ta está suspenso. Desaparece entãoessa camada uniforme onde se entre-cruzavam indefinidamente o visto eo lido, o visível e o enunciável. Ascoisas e as palavras vão separar-se. Oolho será destinado a ver e somente aver; o ouvido somente a ouvir. O dis-curso terá realmente por tarefa dizero que é, mas não será nada mais queo que ele diz.” (Foucault, 1990, p. 59).

O interessante é perceber o quan-to a concepção pré-moderna de umarelação imanente ou transcendente dalinguagem com as coisas – que toma-va a natureza como um texto a ser lidoe a linguagem como uma nomencla-tura – se sustentava em um referenteexterno: Deus ou o Cosmos. Com aperda desse referente, resta a cada ume/ou às ideologias e à ciência a cons-tituição das condições para a produ-ção de significações.

No inicio do livro, Foucault ilus-tra esse momento de ruptura, de des-naturalização do mundo, através deuma análise do quadro de Velázquez

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“As meninas”, tela na qual, segundosuas palavras: “o que olha e o que éolhado permutam-se incessantemen-te. Nenhum olhar é estável, ou antes,no sulco neutro do olhar que trans-passa a tela perpendicularmente, osujeito e o objeto, o espectador e omodelo invertem seu papel ao infi-nito.... Somos vistos ou vemos? Nomomento em que colocam o espec-tador no campo do olhar, os olhosdo pintor captam-no, constrangem-no a entrar no quadro, designam-lheum lugar ao mesmo tempo privile-giado e obrigatório, apropriam-se desua luminosa e visível espécie e a pro-jetam sobre a superfície inacessívelda tela virada. Ele vê sua invisibilida-de tornada visível ao pintor e trans-posta em uma imagem definitiva-mente invisível a ele próprio.”(Foucault, 1990, p. 21).

Ele segue nessa preciosa descri-ção do quadro, demonstrando seuefeito de captura e de produção deenigma: o que é representado na tela?Qual o meu lugar no quadro? – duasquestões que se sobrepõem na cenaque inclui o espectador e que interro-gam diretamente a função da repre-sentação, a relação cópia-modelo.

Esta interrogação vai ser levadaàs últimas conseqüências quando sepercebe ao fundo do quadro um es-pelho que reflete a imagem do casalreal – o rei e a rainha. Percebe-se, en-tão, que são eles o modelo do pintor.Mas a artimanha de Velázquez é co-locar a nós, os espectadores, nesse lu-gar. Como se dissesse: o poder real é

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contingente, depende de quem venha a ocupar uma determinadaposição. Tal é o valor subversivo da tela, a desmontagem de umalógica de poder que sustenta e organiza o campo das representa-ções. Foucault demonstra que no lugar de uma relação biunívoca,objeto-representação, temos um lugar vazio. É esse lugar vazio, quemarca a incompletude do campo do Outro, que vai dar lugar à hipó-tese freudiana do inconsciente.

O referente da significação não está mais, portanto, no exteriordo quadro. Cabe a cada um, a cada vez, refazer o circuito, ser pegona armadilha e se safar dela. Essa experiência, que poderíamos cha-mar de vertiginosa, de Unheimlich, é o solo da experiência freudiana.O fato de sua pesquisa ter começado justamente pelo estudo dasafasias, expressão desse vazio na relação entre as palavras e as coisas,também é prova disso. Nesse lugar, Freud perguntou pelo incons-ciente, pelo desejo.

A construção de um saber na psicanálise passa por esse circuitoque o quadro de Velázquez, através da leitura de Foucault, nos fazpercorrer. Um desfazer das certezas apriorísticas – não são as meni-nas o objeto do quadro – um mergulho na cena se deixando apanharpelo enigma, e uma apropriação do seu lugar na produção de umsaber que seja condizente com seu lugar na estrutura, o que requersituar-se na psicanálise, em sua transmissão e herança e construir aíseu lugar de enunciação.

Para que isso seja possível, no entanto, é preciso partir desseato original de aceitar a queda de um referente exterior, operação decastração simbólica que incide sobre a cultura na aurora damodernidade, mas que precisa ser refeita a cada vez, por cada um. Éela, a castração, que permite a emergência da psicanálise como exer-cício de uma ética que resiste à obturação desse “não saber”.

4. Escritas da clínica

“Na psicanálise tem existido desde o início um laço inseparávelentre cura e pesquisa. O conhecimento trouxe êxito terapêutico. Eraimpossível tratar um paciente sem apreender algo de novo; foi im-possível conseguir nova percepção sem perceber seus resultados be-néficos. Nosso método analítico é o único em que essa preciosaconjunção é assegurada.” (Freud, 1927/n.d.).

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Essa imbricação entre cura e pes-quisa na psicanálise é afirmada porFreud em diferentes momentos. Elanos indica a importância e a necessi-dade de interrogarmos o lugar e a fun-ção do caso clínico num trabalho depesquisa em psicanálise. Abordare-mos esse tema dentro da perspectivado trabalho que viemos fazendo –qual seja, de situar as condições deprodução de uma pesquisa em psi-canálise e o modo de operar o para-digma da linguagem que ela colocaem causa. Cabe retomar, para tanto,alguns elementos.

Primeiro, vale salientar que aquestão da verdade na psicanálise ficasempre remetida para o interior da lin-guagem, o lugar vazio no qual o sujei-to da enunciação e os efeitos de signi-ficação se produzem. Em termos maisamplos e conceituais, Freud denomi-na “umbigo do sonho” esse ponto,esse elemento, esse solo comum daexperiência e da linguagem que tocana dimensão do irrepresentável dosexo e da morte.

Dentro da própria teorizaçãopsicanalítica, esse elemento pode sersituado no caso clínico. Conformeexpressa Lacan: “O que é a clínicapsicanalítica? ... a clínica é o real en-quanto impossível de suportar.” (ci-tado por Porge, 2007, p. 10). Se to-marmos o real como aquilo que resistea se fazer representar, o que “não cessade não se escrever”, temos justamen-te o encontro com o extremo singu-lar do caso, presente em cada transfe-rência, que resiste a ser posto em

discurso, a ser incluído no trabalho doconceito.

Por outro lado, e em certo senti-do, paradoxalmente, não há psicaná-lise, e muito menos pesquisa em psi-canálise, sem o encontro desse real.Nesse sentido, o trabalho de pesquisaopera nessa tensão, nessa interface derecobrimento impossível entre o sim-bólico dos significantes disponibiliza-dos pela teoria psicanalítica e o realda clínica.

Alguns autores que desenvolve-ram trabalhos sobre os casos clínicosde Freud indicam a importância daescrita do caso. Chiantaretto (1999) éum deles. Ele afirma que é a escritado caso que garante a Freud a possi-bilidade de fundar a teoria psicanalíti-ca. Isso porque é sua característicajustamente sustentar-se – como solode experiência que afirma sua especi-ficidade – na singularidade do caso.

É o trabalho com esse singularque Freud, ao escrever os casos clíni-cos, vai tentar transmitir. SegundoErik Porge (2007), para Freud não éapenas uma escolha escrever ou nãoescrever o caso. É antes uma necessi-dade, tendo em vista a constituição docampo psicanalítico como tal. Dito deoutro modo, para que Freud fundas-se a psicanálise e a fizesse valer, ouseja, encontrasse uma via para a trans-missão de seus princípios e de suaexperiência, ele precisava passar pelaescrita do caso. Porge acrescenta ain-da que: “A fórmula que se impôs en-tre nós é que a especificidade da clíni-ca psicanalítica, do estabelecimento de

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um fato clínico, de uma verdadeiranova clínica reside no método de suatransmissão. Se trata de encontrar olaço adequado entre a clínica e o quese transmite dela. O método consti-tui esse laço.” (Porge, 2007, p. 10)

Encontramo-nos aí com o temada transmissão como co-extensivo àescrita do caso. É justamente atravésdele que a articulação com o tema dapesquisa em psicanálise se justifica.Pois, fazer pesquisa em psicanálise é,como indicamos, ser afetado por sua“discursividade” (Foucault, 2001). Éincluir-se como autor na sua produ-ção, o que significa envolvimento emsua transmissão. É nesse sentido que,na psicanálise, não se pesquisa paracomprovar o que já se sabe. Pesquisa-se, antes, para dar testemunho de umencontro com o real, com esse pontoda experiência que resiste ao saber eque opera pela via privilegiada datransmissão na psicanálise: a transfe-rência.

Nesse sentido, cabe precisarmoso que estamos chamando de clínica ese a escrita do caso, hoje, segue osmesmos parâmetros do tempo deFreud. Em relação a esse segundoponto, adiantamos desde já que não.A escrita do caso teve na obra deFreud um lugar de fundação do cam-po que não está mais em questão hoje.Por isso, ninguém conseguiria, nemLacan conseguiu, escrever casos clí-nicos como Freud escrevia. O casoescrito por Lacan (caso Aimée), as-sim como aqueles escritos por MelanieKlein, Dolto e outros, introduzem

sempre algum elemento de inovaçãoconceitual que é extensivo ao modo,como o caso é apresentado. Esta, viade regra, não é uma operação corri-queira.

Normalmente, o caso é trabalha-do como “fato clínico”. Como sus-tenta Cyssau (1999) ao definir “fatoclínico”: “O caso não é toda a clínica,mas o acontecimento na clínica” (p.61). Esse acontecimento é, segundoessa autora, reconhecível por dois ele-mentos: seu efeito de ruptura, de cor-te que bascula a teoria e a inclusão dosujeito nesse corte (fazer corpo à essaexperiência). Trata-se, portanto, dereconhecer aí o ponto de encontro eenlace entre a insuficiência do apare-lho conceitual e a inscrição do circui-to pulsional. Isso é mais forte do quedizer que algo se produziu e “fez enig-ma”. O enigma pode ser uma formade encobrimento, de véu, ao já contera solução em sua própria formulação.Somos tentados a dizer que o “fatoclínico”, no sentido que Cyssau o de-fine, faz sintoma: o sintoma de ter deproduzir uma pesquisa.

Sustentar a prática de pesquisacomo um sintoma, requer reconhecê-la como decorrente, do lado do ana-lista, de seu lugar na neurose de trans-ferência. Para que o analisante entrena transferência é necessário que oanalista fique alienado à posição deobjeto a do fantasma. A passagem des-ta posição a sua queda – o “des-ser”do analista, como propõe Lacan – é aoperação que a análise põe em causa.Propor o “fato clínico”, tal como de-

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finido acima, como o objeto de uma pesquisa em psicanálise, impli-ca em reconhecê-lo, neste movimento de alienação e queda, naquiloque dessa operação resta do lado do analista. Tal precisão é impor-tante, posto que o autor de uma pesquisa não está na posição deanalisante. É como analista que o pesquisador conduz sua aborda-gem do “fato clínico”, isto é, do real de sua experiência.

Retomemos Freud para pensar alguns desses elementos. Des-tacaremos, nesse momento, um de seus mais famosos casos: o dohomem dos ratos (Freud, 1909/1998). Freud inicia a narrativa comuma série de elementos sobre a técnica terapêutica da psicanálise, atomada de notas sobre o caso e as dificuldades atinentes à escrita epublicação de casos clínicos, do mesmo modo como já fizera no casoDora. São elementos importantes que lhe permitem construir a parti-cularidade de sua posição de psicanalista, seja na escuta do caso, sejaem sua narração, seja nas conseqüências conceituais que dela decor-rem. Poderíamos indicar muitos pontos para análise, mas no contextodeste trabalho sobre o tema da pesquisa destacamos os seguintes:

1) diante da dificuldade de expor as intimidades do paciente, Freud(1909/1998) argumenta que “é muito mais fácil divulgar os segre-dos mais íntimos do paciente do que os fatos mais inocentes e tri-viais a respeito dele: enquanto os primeiros não esclareceriam suaidentidade, os outros pelos quais ele é geralmente reconhecido, tor-ná-lo-iam óbvia a qualquer um” (p. 10);2) a diferença entre exatidão e verdade – destacada do texto porLacan (1998b) – ao recomendar que não se tome notas durante asessão porque elas falseariam a verdade do caso. Nas palavras deFreud (1909/1998, p.13): “sinto-me obrigado a apresentar um alertacontra a prática de anotar o que o paciente diz durante o tempo realdo tratamento. A conseqüente retirada de atenção do médico preju-dica mais o paciente do que um acréscimo de exatidão que se possaconseguir na reprodução de seu caso clínico.”;3) por fim, que “os resultados científicos da psicanálise são, presen-temente, apenas um co-produto de seus objetivos terapêuticos, epor esse motivo é, com freqüência, exatamente nos casos em que otratamento falha que muitas descobertas são feitas.” (Freud, 1909/1998, p.54).

Não passa despercebido a um leitor atento que tais preceitostécnicos não são sem relação com as próprias características, singu-

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laridades, do caso clínico trabalhado.Freud sustenta ali, na transferênciacom o homem dos ratos, as razõesdesses seus argumentos. Como elemesmo expressa em outro momentoda narrativa desse caso, o sintoma naneurose obsessiva costuma passar des-percebido. O obsessivo sabe, muitomais que o histérico, dissimular seumal-estar na vida cotidiana. Assim queexpor as intimidades do paciente nãorevela sua identidade, posto que nin-guém as conhece. Além disso, o tipode clivagem que opera nesta neuroseé bastante semelhante à que situa adiferença entre exatidão e verdade. Oobsessivo funciona na lógica da exa-tidão, na busca extenuante da preci-são, e essa é sua estratégia principalpara desconhecer a verdade do dese-jo. Por fim, é curioso que justamenteno caso em que Freud apresenta umêxito terapêutico é que ele vai susten-tar a importância da “falha” do trata-mento para novas descobertas cientí-ficas. Que o êxito seja uma falha, nalógica dessa neurose, pode tambémser ilustrado, com humor negro, pelaleitura da forma paradoxal comoFreud conclui a escrita do caso: “Asaúde mental do paciente foi-lherestabelecida pela análise que relateinestas páginas. Como tantos outrosjovens valorosos e promissores, elemorreu na Grande Guerra.” (Freud,1909/1998, p. 89).

Além das conseqüências concei-tuais que tais considerações trazempara a própria noção de neurose ob-sessiva, elas indicam o quanto o tra-

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balho de escrita do caso foi, paraFreud, o apoio necessário para veicu-lar as especificidades do trabalho ana-lítico. Podemos afirmar que, de algu-ma forma, a escrita do caso, sua“alienação ao” e “contaminação pelo”estilo discursivo do paciente, foi ne-cessária para a elaboração desse qua-dro clínico (Mahony, 1991). Para es-crever, e assim transmitir, a psicanálise,ele se vale do que, no caso, pode ope-rar na transferência com o paciente,do que pode “ler” nas formações doinconsciente.Tal escrita não se dá nemin absentia, nem in effligie, segundo suaexpressão sobre a importância da pre-sença do analista na transferência(Freud, 1912/n.d.).

Um último elemento, ainda, quegostaríamos de deixar indicado é, naverdade, algo que poderia passar poruma simples curiosidade: Freud nãoapenas descreveu a neurose obsessi-va, ele a inventou. Trata-se de umainovação nosológica proposta por ele.Podemos pensar que também outrosquadros clínicos, como a histeria ou aparanóia, foram “inventados” porFreud, na medida em que ganharamum sentido absolutamente novo napsicanálise, mesmo que os significan-tes já existissem no campo médico.Porém, que a “neurose obsessiva” te-nha sido uma nomeação própria, umsignificante novo, não me parece ca-sual. Os elementos clínicos estrutu-rais, apontados por Freud em sua des-crição da neurose obsessiva, são pordemais semelhantes à interpretaçãoque ele propõe para os fundamentos

do laço social e o mal-estar na culturapara que seja mera coincidência. Naverdade, acreditamos poder afirmarque a essa invenção nosográfica,corresponde, na outra ponta da ban-da de Moebius, a interpretação cultu-ral que a invenção da psicanálise,como estrutura discusiva, promove.

Como podemos ler no livro deMahony (1991) sobre o caso do ho-mem dos ratos: “a neurose obsessivaé a doença da humanidade no ser hu-mano”. Temos aqui um apoio impor-tante para pensar que quando um tra-balho de pesquisa em psicanálise seproduz, ele incide sempre nesses doiseixos: no irredutível do sujeito e noirredutível do campo do Outro, emum real compartilhado. Como produ-zir esse enlace e esse corte, tal é a artedo pesquisador na psicanálise.

5. A prática de pesquisa ea transmissão: entre arestauração do saber e anomeação de um real

No dicionário de psicanálise, deRoudinesco e Plon (1998), podemosler no verbete “neurose obsessiva” asseguintes considerações: “o sujeito émergulhado num verdadeiro infernodo qual nunca consegue escapar. Poisbem, esse inferno não é outra coisasenão a versão patológica de um sis-tema institucional patriarcal e judái-co-cristão do qual, aliás, Freud tantoenaltece as fraquezas quanto os méri-

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tos. De fato, em sua análise do ho-mem dos ratos e, mais tarde, em To-

tem e tabu, ele liga os progressos daciência e da razão ao advento do pa-triarcado, com isso mostrando que ofreudismo, como expressão dessaciência e dessa razão, pode servir deproteção contra as diversas tentativasde abolição da família e contra o ine-lutável declínio do pai na sociedadeocidental do séc. XX.... Assim, a neu-rose obsessiva inventada por Freudseria sempre, para ele, um verdadeiroobjeto de fascinação, na medida emque põe em cena a essência da rela-ção edipiana.” (Roudinesco & Plon,p.540).

Vemos aí algo da relação que in-dicamos acima, entre a neurose ob-sessiva e a interpretação freudiana domal-estar na cultura. Muitos outrosaspectos poderiam ser destacados.Chama a atenção, contudo, nesta ob-servação dos autores do dicionário, ainclinação de Freud pelo re-estabele-cimento da função do pai, em declíniona modernidade. O “fascínio” deFreud pela neurose obsessiva seria,então, decorrente de uma identifica-ção com o mote fantasmático dessaneurose: salvar o pai a qualquer cus-to, restaurar sua função, mesmo quepara isso seja preciso renegar o fatodele estar morto.

No seminário sobre a ética dapsicanálise, Lacan (1988) interpretaesta faceta da inclinação freudiana narelação ao complexo paterno. Efeti-vamente, ele propõe uma crítica à pro-posição normalizante da abordagem

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freudiana ao complexo de Édipo. Lacan retoma neste ponto argu-mentos já apresentados no seminário “O mito individual do neurótico”(Lacan, 2008), no qual apresenta uma leitura do caso do homem dosratos. O que Lacan indica é – entre outras coisas e dizendo de modomuito sintético – o quão patogênico (e não normalizante, como queriaFreud) pode ser a alienação do neurótico à sustentação imaginária(e, portanto, duplicada) de um pai simbólico. Outra coisa é a redu-ção do pai à função significante – “morte” – ao significante do“Nome-do-pai”. Tal inscrição significante implica em poder fazer oluto do pai morto.

Ainda neste seminário sobre a ética da psicanálise, Lacan inter-roga tal posição na própria origem da invenção freudiana, na criaçãodesse novo significante: “psicanálise”. Nos capítulos dedicados aotema da sublimação, ele propõe uma leitura inovadora do tema dacriação. Lacan situa a relação entre real e significante de modo quenão seja a da eliminação do primeiro pelo segundo, ou seja, que nãoconceba a operação sublimatória como uma simbolização – e, nessesentido, “uma elevação” a uma esfera mais nobre – do real. Ele in-verte essa lógica ao indicar que a sublimação eleva um objeto à dig-nidade da Coisa (das Ding) (Lacan, 1988, p. 141). Trata-se, antes, dedesprover o objeto de seus atributos imaginários, apresentando-ocomo elemento mínimo, traço discreto que permite discernir, con-tornar, um real. Tal é a função exemplar do oleiro: a construção deum vaso como contorno do vazio, a produção de uma borda quecrie um suporte para que esse vazio opere no lugar de objeto degozo estético.

O que isso nos ensina sobre a criação freudiana? O próprioLacan o indica ao dizer que Freud tem que se haver com a constataçãode que o pai está morto e que isso implica em reconhecer que Deus(o Pai do pai) estava, ele também, desde sempre morto. Isto é: nuncaexistiu. Apesar disso, e mesmo por isso, o Nome-do-Pai segue ope-rando.

Lacan, portanto, atribui à invenção da psicanálise uma funçãocultural nada humilde: trata-se da possibilidade de tirar conseqüên-cias da morte de Deus afim de que o Nome-do-Pai possa, enquantosignificante mestre, ter efetividade. Contudo, ele também deixa en-trever que, para Freud, o significante “psicanálise” pode operar nosentido de restituir o pai morto. E é aí que ele erra o alvo. É aí que apsicanálise pode se confundir com um sintoma obsessivo: uma reli-gião privada.

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Dossiê

Tais considerações não são semrelação com o tema da “pesquisa empsicanálise”. Pois se esta prática requera atualização e reinvenção do ato defundação freudiano, o modo como seopera com o significante – se visandorestituir à vida o pai morto ou reduzi-lo à função de nome, de borda, de umreal – faz toda diferença. Podemos, defato, conduzir nossas pesquisas demodo a propor uma restauração dafunção simbólica e, então, faremos dateoria analítica um modo de obturar afalha constitutiva de nossa relação como saber. É a teoria que, no extremo des-sa proposição, se situa como uma meta-interpretação, seja das expressões sin-gulares de mal-estar, seja das coletivas.Ou podemos – de modo mais condi-zente com o propósito da posição ana-lítica tal como indicada por Lacan –nos limitar à tarefa, de todo modo nadasimples, de construir uma pequenaborda que permita a nomeação de umponto do real que nos é dado testemu-nhar em nossa experiência.

WRITING THE PSYCHOANALYSIS INRESEARCH PRACTICE

ABSTRACT

The research practices in psychoanalysis is analysedin the context of the relations between analytical anduniversity institution, as well as the historicalsubversion that the paradigm of language brings forthe study of the Man by sciences. The article aimsstill think the research in psychoanalysis in the contextof analytical formation, considering the notion of“clinical fact” as correlative of the inscription ofpsychoanalysis in culture.Index terms: research in psychoanalysis; psycho-analytic formation; clinical fact; experience; language.

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ESCRIBIENDO EL PSICOANÁLISIS ENUNA PRÁCTICA DE INVESTIGACIÓN

RESUMEN

La práctica de la investigación en psicoanálisis se exa-mina bajo el contexto de la relación entre instituciónanalítica y universidad, así como la subversión históri-ca que el paradigma del lenguaje contribuye al estudiodel hombre por las ciencias. El texto se proponetambién a pensar la practica de investigación en elcontexto de formación analítica, teniendo en cuentala noción de “hecho clínico” como un correlato de lainscripción del psicoanálisis en la cultura.

Palabras clave: investigación en psicoanálisis;formación psicoanalítica; hecho clínico; experiencia;lenguaje.

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NOTA

1 Esse artigo é resultante do trabalho de

pesquisa “O campo da linguagem na fala e

na escrita como fundamento do discurso e

da experiência psicanalítica”, financiado pelo

MCT/CNPq.

[email protected]

Recebido em junho/2008

Aceito em agosto/2008

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