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ESTUDOS SURDOS EM ARTICULAÇÃO COM OS ESTUDOS CULTURAIS E ESTUDOS FOUCAULTIANOS EM EDUCAÇÃO Luciane Bresciani Lopes Universidade Federal do Rio Grande do Sul Adriana da Silva Thoma Universidade Federal do Rio Grande do Sul A utilização da expressão “Estudos Surdos” no Brasil, segundo Lopes (2011) é uma tentativa de tradução dos chamados Deaf Studies. A produção dos Deaf Studies “surgiu em centros de pesquisa e programas de graduação no Reino Unido e os Estados Unidos no final da década de 1970 e 1980”. Os Estudos Surdos constituem-se como um campo interdisciplinar na articulação de “conteúdo, críticas e metodologias da antropologia, estudos culturais, literatura, história, filosofia, literatura, arte, cinema, estudos de mídia, arquitetura, psicologia, geografia humana, política e estudos dos direitos humanos, entre outros” (BAUMAN; MURRAY, 2016, p. 272). A articulação dos Estudos Surdos aos Estudos Culturais, “facilita novos olhares para se identificar a realidade da cultura que está envolvendo as lutas dos surdos” (REIS, 2007, p.97). Ao tratar das possibilidades de articulação entre esses campos, bem como dos Estudos Surdos com as produções dos Estudos Foucaultianos, não negamos a existência de outras possibilidades teóricas e investigativas. Buscando por Grupo de Pesquisa que tratem sobre os Estudos Surdos no Diretório dos GP do CNPq, encontramos, como exemplo dentre essas outras possibilidades, o trabalho realizado pelos seguintes grupos de pesquisa: Grupo Estudos Surdos da Universidade Estadual do Ceará UECE que “busca articular, numa perspectiva interdisciplinar, teoria crítica da sociedade capitalista e Estudos Surdos” 1 ; Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Educação NUIPE, do Instituto Federal de Santa Catarina IFSC que contribui “para a produção de conhecimento que articule os Estudos de imagem e de Sociossemiótica com a Educação de Surdos e a Educação Bilíngue” 2 Em nossa universidade, podemos dizer que o contexto acadêmico que existia no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 1 Descrição do Grupo de pesquisa disponível no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1666372865826437 Acesso 09 mai 2017. 2 Informações sobre a linha de pesquisa Estudos Surdos e Educação Bilíngue descrita pelo grupo NUIPE, disponível em http://dgp.cnpq.br/dgp/espelholinha/8305885757629722308339 Acesso 09 maio 2017.

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Page 1: ESTUDOS SURDOS EM ARTICULAÇÃO COM OS ......epistemológica da anormalidade surda e um rompimento da visão binária surdo/ouvinte – na articulação com os Estudos Culturais e

ESTUDOS SURDOS EM ARTICULAÇÃO COM OS ESTUDOS CULTURAIS E

ESTUDOS FOUCAULTIANOS EM EDUCAÇÃO

Luciane Bresciani Lopes

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Adriana da Silva Thoma

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A utilização da expressão “Estudos Surdos” no Brasil, segundo Lopes (2011) é uma

tentativa de tradução dos chamados Deaf Studies. A produção dos Deaf Studies “surgiu em

centros de pesquisa e programas de graduação no Reino Unido e os Estados Unidos no final

da década de 1970 e 1980”. Os Estudos Surdos constituem-se como um campo

interdisciplinar na articulação de “conteúdo, críticas e metodologias da antropologia, estudos

culturais, literatura, história, filosofia, literatura, arte, cinema, estudos de mídia, arquitetura,

psicologia, geografia humana, política e estudos dos direitos humanos, entre outros”

(BAUMAN; MURRAY, 2016, p. 272). A articulação dos Estudos Surdos aos Estudos

Culturais, “facilita novos olhares para se identificar a realidade da cultura que está

envolvendo as lutas dos surdos” (REIS, 2007, p.97).

Ao tratar das possibilidades de articulação entre esses campos, bem como dos Estudos

Surdos com as produções dos Estudos Foucaultianos, não negamos a existência de outras

possibilidades teóricas e investigativas. Buscando por Grupo de Pesquisa que tratem sobre os

Estudos Surdos no Diretório dos GP do CNPq, encontramos, como exemplo dentre essas

outras possibilidades, o trabalho realizado pelos seguintes grupos de pesquisa: Grupo Estudos

Surdos da Universidade Estadual do Ceará – UECE que “busca articular, numa perspectiva

interdisciplinar, teoria crítica da sociedade capitalista e Estudos Surdos”1; Núcleo

Interdisciplinar de Pesquisa em Educação – NUIPE, do Instituto Federal de Santa Catarina –

IFSC que contribui “para a produção de conhecimento que articule os Estudos de imagem e

de Sociossemiótica com a Educação de Surdos e a Educação Bilíngue”2

Em nossa universidade, podemos dizer que o contexto acadêmico que existia no

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul –

1 Descrição do Grupo de pesquisa disponível no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil.

http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1666372865826437 Acesso 09 mai 2017. 2 Informações sobre a linha de pesquisa Estudos Surdos e Educação Bilíngue descrita pelo grupo NUIPE,

disponível em http://dgp.cnpq.br/dgp/espelholinha/8305885757629722308339 Acesso 09 maio 2017.

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PPGEDU/UFRGS no final dos anos de 1990, com a introdução da linha de pesquisa “Estudos

Culturais em Educação” na reformulação do PPGEDU/UFRGS, no final dos anos de 1996

(WORTMANN; COSTA; SILVEIRA, 2015), possibilitou a produção de novos olhares sobre

a surdez. O cenário investigativo do Programa naquele período colaborou para a criação e

consolidação do Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais de Surdos –

NUPPES/UFRGS e, consequentemente, para o desenvolvimento de pesquisas articuladas ao

campo dos Estudos Surdos, que buscavam

analisar as representações de surdo e surdez vigentes em diversos textos –

desde os midiáticos até os legais – e conectar tais análises com lutas políticas

de reconhecimento da surdez como criadora de uma cultura e não como uma

marca de deficiência, frente ao mundo ouvinte normalizador. Rejeitando

uma visão clínica da surdez, vários desses trabalhos estão estreitamente

vinculados a ações e posturas políticas dos grupos surdos, em defesa do

direito ao seu reconhecimento cultural. Se esta foi a tendência dominante nos

primeiros trabalhos ligados ao tema, avultam nos últimos anos os estudos

que se debruçam sobre um espectro mais aberto da Cultura Surda.

(WORTMANN; COSTA; SILVEIRA, 2015, p.41)

Nas produções de teses e dissertações nacionais localizadas em repositórios digitais3 a

partir dos termos: “estudos surdos”, a referência ao espaço institucional do NUPPES/UFRGS

é recorrente. Os Estudos Surdos – que se constituem em uma tentativa de inversão

epistemológica da anormalidade surda e um rompimento da visão binária surdo/ouvinte – na

articulação com os Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos em Educação passou a produzir

novos olhares para pensar as questões referentes à surdez, os surdos e sua educação em nosso

país. Segundo algumas produções que fazem referência a emergência dos Estudos Surdos, as

produções desse campo “iniciam no Brasil através do NUPPES [...] quando mestrandos e

doutorandos – surdos e ouvintes – reuniram-se para discutir diversos temas, tendo como

referência os Estudos Culturais” (ROSA, 2011, p.22).

As produções do NUPPES, segundo apresentam os trabalhos disponíveis nos

repositórios digitais, “tiveram impacto na produção acadêmica nacional na década de 1990,

período em que foi criado, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Rio Grande

do Sul (UFRGS), o Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para Surdos”. (RIBEIRO,

2011, p. 15). Assim, “o Estado do Rio Grande do Sul pode ser considerado um precursor de

3 Repositórios digitais: CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Disponível

em: http://bancodeteses.capes.gov.br; BDTD – Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações. Disponível

em: http://bdtd.ibict.br/vufind/; e LUME é o repositório digital da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Disponível em no endereço eletrônico: http://www.lume.ufrgs.br Acesso em 20 abr 2017.

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muitas mudanças ocorridas no campo dos Estudos Surdos” (SCHUCK, 2011, p.38).

A Emergência dos Estudos Surdos em Educação no Brasil é o tema da pesquisa de

mestrado de Lopes (2016), que teve início em 2015 e será concluída em 2017. Segundo os

resultados parciais da pesquisa, pode-se afirmar que a atmosfera política e acadêmica que

existia no PPGEDU/UFRGS nos anos de 1990 possibilitou a emergência dos Estudos Surdos

em Educação no Brasil e um novo olhar que institui uma narrativa sobre a surdez como uma

identidade cultural e uma diferença política. A partir da construção de um quadro das teses e

dissertações produzidas pelo NUPPES (1996 – 2006) verificamos a recorrências de termos e

conceitos que possibilitaram a produção deste artigo, no qual nos interessa questionar sobre:

Como as produções do PPGEDU/UFRGS, a partir da segunda metade dos anos de 1990 e

início dos anos 2000, articulavam conceitos e noções desenvolvidos pelos Estudos Culturais e

Estudos Foucaultianos nas produções do campo dos Estudos Surdos em Educação?

Para responder a esse questionamento, neste trabalho analisamos produções

desenvolvidas por pesquisadores surdos e ouvintes do Núcleo de Pesquisas em Políticas

Educacionais para Surdos sob a orientação do professor Carlos Skliar nos cursos de Mestrado

e Doutorado do referido Programa, conforme quadro a seguir:

Quadro 1 - Teses e Dissertações produzidas por pesquisadores do NUPPES/UFRGS4

Autor (a) Título Ano/

Nível

Palavras-chave5

Gladis

Teresinha

Taschetto Perlin

Histórias de vida surda:

identidades em questão

1998/

ME

Identidade; Surdos; Cultura;

Diferença; Subjetividade;

Discursos.

Wilson de

Oliveira

Miranda

Comunidade dos surdos:

olhares sobre os contatos

culturais

2001/

ME

Comunidade dos Surdos;

Cultura Surda;

Identidade Surda; LIBRAS;

Educação dos Surdos;

Estudos Surdos.

Adriana da

Silva Thoma

O cinema e a flutuação das

representações surdas: “Que

drama se desenrola neste

filme? Depende da perspectiva

...”

2002/

DO

Pedagogia cultural; Cinema;

Educação de surdos; Cultura;

Discurso; Representação

Gladis

Teresinha

Taschetto Perlin

O ser e o estar sendo surdos:

Alteridade, diferença e

identidade

2003/

DO

Surdos; Povo Surdo;

Diferença; Alteridade

4 Outras pesquisas foram desenvolvidas por integrantes do NUPPES, porém nem todas estão disponíveis em

bancos de Teses e Dissertações. Para nossa análise, nesse artigo, utilizamos apenas aquelas que foram

localizadas nos bancos pesquisados. 5 Palavras-chave conforme constam nas pesquisas.

Page 4: ESTUDOS SURDOS EM ARTICULAÇÃO COM OS ......epistemológica da anormalidade surda e um rompimento da visão binária surdo/ouvinte – na articulação com os Estudos Culturais e

Márcia

Lise Lunardi

A produção da anormalidade

surda nos discursos da

educação especial

2003/

DO

Normalização; Surdez;

Educação Especial;

Discurso.

Madalena Klein Tecnologias de governamento

na formação profissional dos

surdos

2003/

DO

Educação de Surdos;

Formação profissional;

Dispositivo; Tecnologias de

governamento;

Governamentalidade Fonte: Quadro organizado pelas autoras a partir da proposta de mestrado de Lopes (2016)

Como podemos ver no quadro, além de conceitos de autores que trabalham no campo

dos Estudos Culturais – como representação, identidade e cultura – noções de Michel

Foucault – entre as quais discurso, norma e governamento –, também eram recorrentes nas

produções do período analisadas. A seleção destas pesquisas se deu em razão do interesse

analítico deste artigo e com base no recorte conceitual definido, ou seja, nas articulações entre

o campo dos Estudos Surdos com os Estudos Culturais e os Estudos Foucaultianos em

educação. Na seção seguinte apresentaremos a análise dessas articulações.

Articulações teóricas e produção de novos olhares sobre a surdez, os surdos e a educação

dos surdos

A partir do Quadro 1, onde apresentamos dados gerais das pesquisas que compõem o

material empírico para esse artigo, construímos o Quadro 2, organizado para apresentar as

referências no campo de Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos em destaque nas teses e

dissertações analisadas. Elencamos, como base na análise inicial do Quadro 1, três conceitos

recorrentes na produção do NUPPES inscrita no campo dos Estudos Culturais, que são:

Representação, Identidade e Cultura, bem como, três conceitos do campo dos Estudos

Foucaultianos: Discurso, Norma e Governamento, conforme apresentamos no quadro a

seguir:

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Quadro 2: A articulação de conceitos e noções desenvolvidos pelos Estudos

Culturais e Estudos Foucaultianos nas produções do campo dos Estudos Surdos em

Educação do NUPPES/UFRGS

Noções conceitos utilizados –

Definição nas obras referidas

Noções conceitos utilizados –

Autores das teses e dissertações

ES

TU

DO

S C

UL

TU

RA

IS R

EP

RE

SE

NT

ÃO

Costa (2001, p. 40): representação é

“uma noção que se estabelece

discursivamente, instituindo significados

de acordo com critérios de validade e

legitimidade estabelecidos segundo

relações de poder, e não como um

conteúdo que é espelho e reflexo de uma

“realidade” anterior ao discurso que a

nomeia”.

Woodward (2000, p. 17): “representação,

compreendida como um processo

cultural que estabelece identidades

individuais e coletivas e os sistemas

simbólicos nos quais ela se baseia

fornecem possíveis respostas às

questões”.

Perlin (2003, p. 79): “O povo surdo foi

narrado através da representação da

invalidez”.

Thoma (2002, p. 141): “As contra-

estratégias dessa política de representação

[surdez como fatalidade] são hoje uma das

lutas da comunidade surda que reivindica

seu reconhecimento a partir de outros

discursos e de outras representações”.

IDE

NT

IDA

DE

Silva (2000, p. 96): “De acordo com a

teorização pós-estruturalista que

fundamenta boa parte dos Estudos

Culturais contemporâneos, a identidade

cultural só pode ser compreendida em

sua conexão com a produção da

diferença, concebida como um processo

social discursivo.”

Hall (1997, p.13): “O sujeito pós-

moderno é conceptualizado como não

tendo uma identidade fixa, essencial ou

permanente. A identidade torna-se uma

“celebração móvel”: formada e

transformada continuamente em relação

às formas pelas quais somos

representados ou interpelados nos

sistemas culturais que nos rodeiam”.

Perlin (1998, p. 09): “A partir da

interpretação que faço de Hall (1997), é

possível a exploração das identidades do

sujeito surdo. É possível conceber uma

visão situacional do sujeito surdo. Para

uma concepção do sujeito surdo como

portador de identidades culturais, preciso

vê-los dentro da diferença. Está na

diferença, na maleabilidade das

representações, as possibilidades da

construção e desconstrução das identidades

surdas”.

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CU

LT

UR

A

Nelson, Treichler e Grossberg (1995,

p.14): “é entendida tanto como uma

forma de vida – compreendendo ideias,

atitudes, linguagens, práticas, instituições

e estruturas de poder – quanto como toda

uma gama de práticas culturais: formas,

textos, cânones, arquitetura, mercadorias

produzidas em massa, e assim por

diante”.

Silva (2000, p. 32): “Na teorização

introduzida pelos Estudos Culturais,

sobretudo naquela inspirada pelo pós-

estruturalismo, a cultura é teorizada

como campo de luta entre os diferentes

grupos sociais em torno da significação”.

Perlin (1998, p. 33): “A cultura surda como

diferença se constitui numa atividade

criadora. Símbolos e práticas jamais

conseguidos, jamais aproximados da

cultura ouvinte. Ela é disciplinada por uma

forma de ação e atuação visual. Já afirmei

que ser surdo é pertencer a um mundo de

experiência visual e não auditiva”.

Thoma (2002, p. 171): “‘Culturas surdas’,

assim, se referem ao modo de vida distinto

pelo qual os/as surdos/as se organizam e os

significados e valores por eles/as

compartilhados. Falar em culturas surdas

significa assumir que existe um grupo de

pessoas que interpreta o mundo, expressa

sentimentos e compartilha ideias e valores

de forma mais ou menos semelhante.”

ES

TU

DO

S F

OU

CA

UL

TIA

NO

S

DIS

CU

RS

O

Foucault (1996, p.52): [os discursos

podem ser entendidos] “como práticas

descontínuas, que se cruzam por vezes,

mas também se ignoram ou se excluem”.

Foucault (1996, p. 10 e p. 49): “o

discurso não é simplesmente aquilo que

traduz as lutas ou os sistemas de

dominação, mas aquilo por que, pelo que

se luta, o poder do qual nos queremos

apoderar” [...] “O discurso nada mais é

do que a reverberação de uma verdade

nascendo diante de seus próprios olhos”.

Miranda (2001, p.31): “Enquanto o

conhecimento sobre os surdos e a surdez

for produzido no campo de educação

especial, os discursos dificilmente

ultrapassarão duas ciências: a psicologia e

a biologia. Nestes discursos do

conhecimento não existe comunidade surda

nem identidade surda”.

Lunardi (2003, p. 101): “A partir de um

conjunto de formações discursivas que

envolve, aqui, os saberes da medicina, da

fonoaudiologia, da psicologia e da

Educação Especial, vou fazer um exercício

para mostrar como esses discursos, que

fazem parte dos materiais produzidos pelo

MEC/SEESP, colocam em funcionamento

instrumentos disciplinares que sejam

capazes de produzir sobre os sujeitos

surdos práticas de normalização que traçam

um limite entre os que estão de acordo com

a normalidade e os que não estão”.

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NO

RM

A

Ewald (1993, p.108): [norma é] “uma

maneira de um grupo se dotar de uma

medida comum segundo um rigoroso

princípio de auto-referência, sem recurso

a nenhuma exterioridade, quer seja a de

uma ideia quer a de um objecto”.

Foucault (2000, p. 302): “De uma forma

mais geral ainda, pode-se dizer que o

elemento que vai circular entre o

disciplinar e o regulamentador, que vai

se aplicar, da mesma forma, ao corpo e à

população, que permite a um só tempo

controlar a ordem disciplinar do corpo e

os acontecimentos aleatórios de uma

multiplicidade biológica, esse elemento

que circula entre um o outro é a ‘norma’.

A norma é o que pode tanto se aplicar a

um corpo que se quer disciplinar quanto

a uma população que se quer

regulamentar”.

Perlin (2003, p. 38): “Sinalizando com

Foucault, a norma estabelece a deficiência

e conseqüentemente hoje, deficientes todos

aqueles com uma “necessidade especial”.

Em vista disto, em confronto com a norma,

o corpo surdo, em termos teóricos foi

transportado para o quadro da deficiência”.

Klein (2003, p. 95): “Os surdos, referidos à

espécie humana, são diagnosticados,

nomeados, identificados como indivíduos

“anormais”, portadores de “desvios”,

estando sujeitos às práticas de correção”.

Lunardi (2002, p.109): “Assim, nesse

processo de normalização, o padrão de

referência sempre é o ouvido normal”.

[grifo da autora]

GO

VE

RN

AM

EN

TO

Foucault (1997, p. 101): [governamento

se refere a] “técnicas e procedimentos

destinados a dirigir a conduta dos

homens”.

Klein (2003, p. 97): “No governamento

da diversidade, os estranhos são

inventados e capturados pelos discursos

da norma e nomeados de diferentes

maneiras: estranhos, anormais,

deficientes, incapazes”.

Lunardi (2003, p. 150): “Em nome

desse descontrole da exclusão, desse

suposto afastamento dos excluídos, a

inclusão, enquanto processo de

normalização, é uma forma de

dominação, de controle e de

‘governamento’”.

Com a construção do Quadro 2 podemos analisar a articulação dos conceitos,

conforme referenciados no original e as articulações possíveis naquelas produções

acadêmicas. Os conceitos de identidade e cultura contribuíram para a produção de um

discurso sobre a surdez que buscava inscrever os surdos enquanto pertencentes a uma minoria

linguística e sujeitos culturais. No movimento de produções acadêmicas do NUPPES/UFRGS

no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, as pesquisas rompiam com a ideia da surdez

como deficiência narrada pelo discurso clínico e do surdo como sujeito a ser educado no

espaço da educação especial.

Na esteira do pensamento de Michel Foucault, compreendemos que os discursos

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produzem efeitos. Esses efeitos podem ser vistos, no presente, por exemplo, na legislação e

políticas de inclusão escolar que, entre outras ações: 1) instituíram o ensino da Língua

Brasileira de Sinais em todos os cursos de formação de professores e de fonoaudiologia; 2)

geraram o aumento da matrícula de alunos surdos em classes comuns na rede regular de

ensino, 3) provocaram a diminuição do número de matriculas de alunos surdos nas escolas

especiais/bilíngues para surdos e 4) contribuíram para o aumento de matrículas de alunos

surdos com deficiências associadas em escolas e/ou classes bilíngues etc.

As teses e dissertações analisadas, quando utilizavam o conceito de representação,

traziam a compreensão deste como “significante” (SILVA,2000, p. 97), entretanto, algumas

das produções recorriam a uma análise que tratava de apresentar as representações dos surdos

em uma relação binária (surdo versus ouvinte). Não por acaso, a tese de Perlin (2003), assim

como citado no Quadro 2, trata do olhar sobre os surdos centrado em uma concepção

corretiva e normalizadora desses sujeitos. Uma parte significativa das produções trata das

representações sobre a surdez, muito centradas à ideia de como os surdos eram vistos pelos

ouvintes e de como os próprios surdos se narravam. Ou seja, várias das pesquisas analisavam

e problematizavam as representações, a norma e os processos de normalização da surdez

buscando desconstruir as narrativas “ouvintistas”6 predominantes até então.

Ao tratar da norma, normalidade e normalização, as pesquisas analisadas

questionavam as práticas corretivas e normalizadoras a que os surdos eram expostos tomando

como referência uma norma ouvinte. Neste aspecto, questionam o lugar da surdez no discurso

clinico-terapêutico e as intervenções para a produção de uma normalidade. O outro extremo

deste questionamento é a produção de uma norma surda, que hoje podemos observar quando

se estabelecem “modelos de ser surdo, servindo como balizas para que ações de normalização

sejam investidas na e pela própria comunidade surda, quando essa estabelece um tipo normal

de ser surdo a ser seguido” (LOPES; VEIGA-NETO, 2006, p. 83).

Outra noção recorrente é a de discurso a partir do pensamento de Michel Foucault.

Para Silva (2000, p.43), o discurso “não descreve simplesmente objetos que lhe são

exteriores: o discurso “fabrica” os objetos sobre os quais fala”. Apresentar a surdez fabricada

pelo discurso clínico e uma fabricação da surdez pelo discurso cultural foi um dos

movimentos analíticos recorrentes nas teses e dissertações do período pesquisado. Entretanto,

6 Ouvintismo foi um termo cunhado por Perlin e Skliar em analogia a “racismo”, “machismo” e outros ismos que

pressupõem relações de poder verticais, onde um grupo é visto como superior a outro. No caso, ouvintismo se

refere à imposição das representações dos ouvintes sobre os surdos. Porém, essa forma vertical de entender o

poder difere do entendimento que Foucault dá ao termo. Para ele, o poder é horizontal, está nas relações,

acontece em rede.

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compreendemos que o exercício de inscrever a surdez em uma outra ordem discursiva

significava, para aqueles pesquisadores, romper com a lógica da deficiência que subjulgava os

surdos e os expunham à processos corretivos de escolarização.

Na produção dessa nova ordem discursiva sobre a surdez, observamos análises que

tratam das estratégias de governamento para produzir sujeitos produtivos e incluídos no jogo

neoliberal. A tese de Klein (2003), por exemplo, aponta para a construção de projetos do

governo federal para a fabricação de sujeitos competitivos no mercado de trabalho. Na linha

do pensamento foucaultiano, Lunardi (2003) trabalha a inclusão educacional dos surdos como

uma forma de condução das condutas, referindo-se à noção de governamento no qual

ninguém pode estar fora do jogo. Ou seja, se a inclusão escolar é um imperativo de Estado,

governar as condutas surdas passa pela garantia de acessibilidade para a produção de uma

escola para todos.

Considerações Finais

Para responder ao objetivo deste texto, de analisar a articulação dos conceitos e noções

desenvolvidos pelos Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos nas produções do campo dos

Estudos Surdos em Educação, a partir da segunda metade dos anos de 1990 e início dos anos

2000, no PPGEDU/UFRGS, analisamos algumas dissertações e teses e verificamos a

produção de um discurso sobre a surdez, os surdos e sua educação resultante do envolvimento

dos pesquisadores com as pautas de luta da comunidade surda. Nesse sentido, julgamos

importante destacar que as pesquisas do NUPPES/UFRGS, realizadas através de estudos

etnográficos e análises textuais, eram produzidas com uma forte articulação entre a academia,

movimento surdo, comunidade surda e escolas de surdos.

A partir dessas primeiras produções no campo dos Estudos Surdos no Brasil,

observamos a recorrência e proliferação do uso de conceitos como identidade surda, diferença

surda, cultura surda, povo surdo etc. Porém, assim como os Estudos Culturais e os Estudos

Foucaultianos, os Estudos Surdos se configuram, no contexto investigativo do

PPGEDU/UFRGS, desde então, como um trabalho intelectual de vocação política e “um

pensamento sem garantias”.

Outra questão importante de ser trazida aqui é que, daquele período até então, as

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produções do campo dos Estudos Culturais desenvolvidas pelos pesquisadores do

NUPPES/UFRGS – hoje, parte deles, reunidos no GIPES – tem aprofundado as análises sobre

questões mais atuais, como as produções culturais da comunidade surda, educação bilíngue e

políticas de inclusão escolar. Nas atuais pesquisas, Observamos uma hipercrítica do próprio

trabalho intelectual realizado nos anos de 1990, no sentido de tentar entender o que se ajudou

a construir a partir daquela produção na atualidade – “o que estamos ajudando a fazer de nós

mesmos” – pois os efeitos não podem ser previstos. Um exemplo disso é a captura das lutas

surdas por reconhecimento da sua língua de sinais e da cultura surda pelo Estado, que utiliza

essa conquista para colocar a inclusão escolar em funcionamento, enquanto que o movimento

surdo apresenta a escola bilíngue como nova pauta de suas latas.

A área da Educação de Surdos teve muitos ganhos com as produções dos Estudos

Surdos em articulação com os Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos, porém as lutas hoje

são outras. Como dissemos acima, naquele período, as produções acadêmicas tinham uma

forte articulação com o movimento surdo, a comunidade surda e as escolas de surdos, o que

segue acontecendo, porém com outras pautas. O trabalho de Braga (2006), Para além do

Silêncio: Outros olhares sobre a surdez e a educação de surdos, que analisa as produções

desenvolvidas por pesquisadores do NUPPES, mostra que embora os pesquisadores tenham

“feito o esforço de não querer dizer o que é melhor para a educação de surdos, em um sentido

universal” ao analisar as recorrências enunciativas verificou que as produções determinavam

“um tipo de modelo, de militância e de comunidade surda a ser seguida” (BRAGA, 2006, p.

09). Outro exemplo é o trabalho de Gomes (2011), O imperativo da cultura surda no plano

conceitual: emergência, preservação e estratégias nos enunciados discursivos, que apresenta

a atualização do discurso sobre a cultura surda o trabalho de que não pretende afirmar ou não

a existência de uma cultura surda, mas entender porque se tornou imperativo para o

movimento surdo afirmar a existência dessa cultura.

Ao tentarmos mostrar como as produções do campo dos Estudos Surdos em Educação

do PPGEDU/UFRGS, a partir da segunda metade dos anos de 1990 e início dos anos 2000,

articulavam conceitos e noções desenvolvidos pelos Estudos Culturais e Estudos

Foucaultianos, não tivemos a intenção de esgotar as análises, mas de oferecer um breve

panorama do que vêm sendo produzido na educação de surdos a partir da constituição e de

expansão de um campo de estudos – os Estudos Surdos – que olha para a surdez tendo como

base em referenciais culturais que buscam desconstruir as narrativas de falta e incapacidade

dos surdos e os situam como sujeitos da diferença.

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