estudos sobre o projeto do novo código de processo civil · a democracia brasileira vive uma nova...

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ESTUDOS SOBRE O PROJETO DO NOVO CóDIGO DE PROCESSO CIVIL

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estudos sobre o projeto do novo Cdigo de proCesso Civil

2 0 1 3

o r g A n i Z A d o r e s

AlexAndre Freire

Bruno dAntAs

dierle nunes

Fredie didier

Jr.

Jos Miguel gArciA MedinA

luiz Fux

luiz Henrique

Volpe cAMArgo

pedro MirAndA

de oliVeirA

estudos sobre o projeto do novo Cdigo de proCesso Civil

Rua Mato Grosso, 175 Pituba, CEP: 41830-151 Salvador Bahia Tel: (71) 3363-8617 /Fax: (71) 3363-5050 E-mail: [email protected]

Conselho editorial: Dirley da Cunha Jr., Leonardo de Medeiros Garcia, Fredie Didier Jr., Jos Henrique Mouta, Jos Marcelo Vigliar, Marcos Ehrhardt Jnior, Nestor Tvora, Robrio Nunes Filho, Roberval Rocha Ferreira Filho, Rodolfo Pamplona Filho, Rodrigo Reis Mazzei e Rogrio Sanches Cunha.

Capa: Rene Bueno e Daniela Jardim (www.buenojardim.com.br)

diagramao: Caet Coelho ([email protected])

Todos os direitos desta edio reservados Edies JusPODIVM.

Copyright: Edies JusPODIVM

terminantemente proibida a reproduo total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorizao do autor e da Edies JusPODIVM. A violao dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislao em vigor, sem prejuzo das sanes civis cabveis.

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suMrio

prefCio .......................................................................................................... 9Luiz Fux

A ClusulA gerAl do ACordo de proCediMento no projeto do novo CpC (pl 8.046/2010) ..................................................... 13Pedro Henrique Pedrosa nogueira

proCediMento espeCiAl pArA As Aes de fAMliA no projeto do novo Cdigo de proCesso Civil .................................. 25Leonardo Carneiro da CunHa

ApelAo por instruMento: breve leiturA CrtiCA propostA ApresentAdA no plC 8046/2010 ............................................ 35Fernando da FonseCa gajardoni

MediAo, proCesso e Constituio: ConsiderAes sobre A AutoCoMposio de Conflitos no novo Cdigo de proCesso Civil ........................................................................................ 55Fernando Horta tavares

A durAo rAZovel do proCesso e A gesto do teMpo no projeto de novo Cdigo de proCesso Civil ............................ 73antonio do Passo CabraL

Anlise CoMpArAtivA dA CooperAo e ColAborAo entre os sujeitos proCessuAis nos projetos de novo CpC ....... 99CamiLo zuFeLato

ConCretiZAr o prinCpio dA segurAnA jurdiCA: uniforMiZAo e estAbilidAde dA jurisprudnCiA CoMo AliCerCes do CpC projetAdo .................................................................. 123bruno dantas

julgAMento liMinAr do pedido Anlise dos Critrios de ApliCAo e inevitvel CrtiCA eM relAo A suA disCiplinA no projeto do Cdigo de proCesso Civil ................. 143Fernando gonzaga jayme e tereza de assis Fernandes

A efetividAde dA tutelA jurisdiCionAl AtrAvs dA pArtiCipAo do amicus curiae e dA Converso dA deMAndA individuAl eM ColetivA ....................................................... 161maria emLia naves nunes

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o sisteMA reCursAl no substitutivo bArrAdAs ............................. 175gLuCio maCieL gonaLves e andr garCia Leo reis vaLadares

deCiso judiCiAl no fundAMentAdA no projeto do novo CpC: nAs sendAs dA linguAgeM ................................................. 187beCLaute oLiveira siLva

As norMAs proCessuAis ApliCveis fAZendA pbliCA no relAtrio bArrAdAs CArneiro .............................................................. 203Leonardo aLbuquerque marques

sugestes pArA ApriMorAMento dos reCursos Cveis: estudo CrtiCo de AspeCtos relevAntes do relAtrio-gerAl do projeto de novo CpC divulgAdo pelA CMArA eM 19/09/2012 .................................................................................................... 229bruno garCia redondo

dever de MotivAo dAs deCises judiCiAis e Controle dA jurisprudnCiA no novo CpC .......................................................... 245andre vasConCeLos roque

o CresCiMento do pApel do amicus curiae no novo CpC: perspeCtivAs sobre A jurisprudnCiA AtuAl do stf ..................... 263aLexandre gustavo meLo FranCo baHia

tutelA de urgnCiA e tutelA dA evidnCiA: liMites e possibilidAdes de uM regiMe niCo ................................................. 285marCeLLo soares Castro

A tutelA AnteCipAdA no projeto do novo CpC ............................. 303viCente de PauLa maCieL jnior

o efeito vinCulAnte e o prinCpio dA MotivAo dAs deCises judiCiAis: eM Que sentido pode HAver preCedentes vinCulAntes no direito brAsileiro? ....................... 331misabeL de abreu maCHado derzi e tHomas da rosa de bustamante

os Honorrios de suCuMbnCiA reCursAl no novo CpC ........ 361Luiz Henrique voLPe Camargo

ConsiderAes sobre A tutelA de urgnCiA no relAtrio bArrAdAs ................................................................................... 379eduardo de aveLar Lamy

poderes do relAtor no CpC projetAdo ............................................ 391Pedro miranda de oLiveira

As iMportAntes AlterAes firMAdAs eM relAo AtuAo dA preCluso no projeto do novo CpC .......................... 409Fernando rubin

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ApontAMentos pArA A ConCretiZAo do prinCpio dA efiCinCiA do proCesso. ........................................ 431Fredie didier jr.

o novo Cdigo de proCesso Civil: notAs sobre o projeto bArrAdAs ........................................................ 439CamiLLa mattos PaoLineLLi e ronaLdo brtas de CarvaLHo dias

uMA breve notCiA sobre o proCediMento-Modelo AleMo e sobre As tendnCiAs brAsileirAs de pAdroniZAo deCisriA: uM Contributo pArA o estudo do inCidente de resoluo de deMAndAs repetitivAs brAsileiro. ............................................................................. 469dierLe nunes e raFaeL diLLy Patrus

stare decisis vs direito jurisprudenCiAl .................................... 483neLson nery junior e georges abboud

Anlise dos prinCipAis pontos dA propostA de Anteprojeto de uM Cdigo de proCesso Civil sisteMA reCursAl ........................................................................................................... 513Luiz manoeL gomes junior e miriam FeCCHio CHueiri

A eliMinAo dA AudinCiA preliMinAr no projeto do novo Cdigo de proCesso Civil A disCiplinA propostA no "relAtrio-gerAl bArrAdAs" ........................................................... 531Luiz rodrigues Wambier e rita de Cssia Corra de vasConCeLos

o Assessor judiCiAl .................................................................................... 545eduardo jos da FonseCa Costa e LCio deLFino

As trAdies jurdiCAs de civil law e common law .................................................................... 555jaLdemiro rodrigues de atade jr.

o novo CpC e A dignidAde dA pessoA HuMAnA: priMeiros pAssos ruMo Construo de uMA doutrinA HuMAnistA de direito proCessuAl Civil .................................................................. 609eriCk vidigaL

dA CoisA julgAdA no novo Cdigo de proCesso Civil (pls 166/2010 e pl 8046/2010): liMites objetivos e ConCeito .......... 631Luiz deLLore

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A eXeQuibilidAde iMediAtA dA sentenA no novo CpC ............... 645bruno vinCius da rs bodart e iraPu santana do nasCimento da siLva

efiCCiA ConsuntivA no novo CpC e os reCursos Augustos e Angustos ................................................................................. 657zuLmar duarte de oLiveira junior

pArA uMA CoMpreenso AdeQuAdA do sisteMA de preCedentes no projeto do novo Cdigo de proCesso Civil brAsileiro ........................................................................................... 677jos migueL garCia medina, aLexandre Freire e aLonso reis Freire

Ao resCisriA no projeto de novo CpC: do Anteprojeto Ao relAtrio-gerAl dA CMArA dos deputAdos ... 701WeLder queiroz dos santos

A probleMtiCA dos eMbArgos infringentes no projeto do novo Cdigo de proCesso Civil ........................... 725marCeLo navarro ribeiro dantas

reforMA do proCesso Civil: so os reCursos o grAnde vilo? ....................................................... 737teresa arruda aLvim Wambier

MediAo no novo CpC: QuestionAMentos refleXivos ............................................................... 749Fernanda tartuCe

o julgAMento liMinAr de iMproCednCiA do pedido no CpC AtuAl e no projeto do novo CpC .................. 767giLberto gomes brusCHi

o direito proCessuAl Civil CoMo sub-rAMo do direito pbliCo ................................................. 783vitor FonsCa

uMA novA reAlidAde diAnte do projeto de CpC: a ratio decidendi ou os fundAMentos deterMinAntes dA deCiso ..................................................................... 807Luiz guiLHerme marinoni

amicus curiae, reperCusso gerAl e o projeto de Cdigo de proCesso Civil ....................................... 869FeLiPe de meLo Fonte e natLia gouLart Castro

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prefCio

Luiz Fux1

A democracia brasileira vive uma nova era. Foi-se o tempo em que as mais diferentes nuances da vida social era moldadas pela vontade de uma minoria politicamente vitoriosa. No plano do Direito, tantas foram as leis que, em nossa histria, refletiram apenas o iderio de um destacado jurista ou de uma classe predominante, muitas vezes invocando a impossibilidade de consenso acerca de questes sensveis das relaes pblicas e privadas. A codificao encartava o deliberado objetivo de promover a mudana ex abrupto, quando, na verdade, o corpo social que deve definir a regulao que melhor atenda aos seus anseios. Como resultado, vimos nascer estatutos completamente desconectados da realidade prtica. Estendiam-se logorreica-mente em temas de somenos importncia e omitiam-se em pontos fulcrais, apesar da sua pretenso de completude.

A nao brasileira evoluiu e assim tambm a sua noo de regime de-mocrtico. constatando-se que nenhum controle por meio da fora tem vida longa, assim como que a imposio da vontade da maioria a anttese do iderio de sociedade livre. Nossa democracia se consolida a pouco e pouco como o governo por meio do debate, tal como imaginada por Amartya Sen.2 Democracia deliberativa que , reconhece como legtimo apenas o domnio da razo, que se produz por instituies sociais canalizadoras dos anseios de quem quer que deseje manifestar-se, em uma arena onde o nico duelo espe-rado o da argumentao. No se trata de extrair o resultado democrtico de um mero clculo matemtico das vontades expressadas, e sim de obt-lo em

1. Professor Titular de Direito Processual Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ministro do Supremo Tribunal Federal

2. SEN, Amartya. A ideia de justia. Trad. Denise Bottman e Ricardo Doninelli Mendes. So Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 15

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um ambiente aberto participao de qualquer interessado e no qual ideias tomam corpo pela persuaso racional.3

nesse novo modelo de debate pblico que o projeto do novo Cdigo de Processo Civil foi gestado.4 No um Cdigo dos juzes, nem dos advogados, dos membros do Ministrio Pblico ou mesmo dos defensores pblicos. Sua preocupao central, como no poderia deixar de ser, com o jurisdicionado. Precisamente por isso, optou-se por um modelo publicista de processo, em contraposio ao sistema puramente individualista to criticado na doutrina ptria e aliengena.5 O processo judicial moderno, para que cumpra sua funo social, deve ser estruturado de forma a dar concretude aos valores que trans-cendem os fins privados inerentes ao modelo clssico e constituem o ncleo da moralidade pblica.6 E a consecuo desse desiderato no prescinde do esforo conjunto e articulado de todos os operadores do direito.7

3. Sobre o conceito de deliberao na esfera pblica, v. HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol II. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. Para um exame profundo da institucionalizao da razo e da importncia do constitucionalismo discursivo para a moderna teoria do Direito, v. ALEXY, Robert. Hauptelemente einer Theorie der Doppelnatur des Rechts. In: Archiv fuer Rechts- und Sozialphilosphie, v. 95, n. 2, april 2009. Wiesbaden: Franz Steiner Verlag, 2009. p. 151-166

4. Os comentrios de Paolo Giovanni Demarchi reforma processual italiana de 2009 encarnam a perspectiva aqui apresentada e so perfeitamente adequados realidade brasileira, in verbis: A reformulao do nosso sistema processual no pode ser deixada iniciativa poltica desta ou daquela legislatura, mas deve ser o fruto de um trabalho conjunto dos vrios operadores da Justia (magistrados, advogados, auxiliares da justia...), que, vivendo cada dia nas aulas dos nos-sos Tribunais, so as mais conscientes testemunhas dos defeitos do sistema atual e das inovaes necessrias. (Traduo livre do texto: Il ripensamento del nostro sistema processuale no pu essere lasciato alliniziativa politica di questa o quella legislatura, ma deve essere il fruto di un lavoro con-diviso dei vari operatori del comparto giustizia (magistrati, avvocati, cancellieri...), che, vivendo ogni giorno nelle aule dei nostri tribunali, sono i pi consapevoli testimoni dei diffeti del sistema attuale e delle innovazioni da apportare. DEMARCHI, Paolo Giovanni. Il nuovo processo civile. Milano: Giuffr, 2009. p. XVI).

5. Para mltiplas vises sobre o tema V. GRECO, Leonardo. Publicismo e privatismo no processo civil. In: Revista de Processo n 164, ano 33. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008; MONTERO AROCA, Juan (coord.). Proceso Civil e Ideologa. Un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos. Valencia: Tirant lo blanch, 2006.

6. FISS, Owen. As bases polticas e sociais da adjudicao. In: Um novo processo civil. Estudos norte-americanos sobre jurisdio, Constituio e sociedade. Coord. da trad.: Carlos Alberto de Salles. Trad.: Daniel Porto Godinho da Silva; Melina de Medeiros Rs. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 111

7. Sobre a reforma do processo civil francs, Loc Cadiet observou que a complexidade das relaes na ps-modernidade, que tem repercusses inevitveis sobre o processo, impe a pesquisa de mecanismos de cooperao, de dilogo, de intercmbio, destinados a alcanar os melhores equi-lbrios normativos. CADIET, Loc. Complessit e riforme del processo civile francese. In: Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, anno LXII, n. 4, dicembre 2008. Milano: Giuffr, 2008. p. 1325-1326

LUIz FUX

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imperioso, ademais, o abandono da suposio, muito bem descrita por Ovdio Baptista, de que a jurisdio se resuma a uma montona e esteriotipada aplicao mecnica da lei, na qual um legislador sbio e previdente previra todos os litgios futuros e lhes dera antecipadamente a soluo adequada.8 O projeto do Cdigo de Processo Civil, atento aos preceitos metodolgicos do ps-positivismo, preocupa-se com o balizamento da atividade jurisdicional na resoluo dos casos difceis.9 O captulo inaugural alberga uma pliade de princpios jurdicos que tornam o Cdigo mais permevel incidncia das garantias fundamentais do processo e facilitam a tarefa do julgador em face de situaes no contempladas nas regras jurdicas. O respeito aos princpios ser dever inarredvel do magistrado e das partes nas hipteses em que necessria a adaptabilidade do procedimento para melhor atender situao sub judice, o que afasta por completo a falcia, por vezes propagada, de que nesses casos o arbtrio da aplicao fria das leis (dura lex, sed lex) seria substitudo pelo arbtrio dos juzes.10 Em uma democracia constitucional deliberativa, no h margem para o arbtrio de quem quer que seja.

A presente obra representa um lmpido retrato desse panorama. Rene ideias, comentrios e proposies de tericos do Direito oriundos das mais diversas reas do labor jurdico, que compartilham sua experincia para unir-se reflexo daqueles que se dedicam exclusivamente Academia. O objetivo comum, como no poderia deixar de ser, a transposio da ideologia huma-nista que predomina na sociedade brasileira ps-88 para a tcnica processual, de modo que em nenhum momento se desvirtue o carter instrumental do

8. SILVA, Ovdio Baptista da. Curso de Processo Civil. Vol. II. Fabris, 1990. p. 249-2509, A respeito do tema, v. ALEXY, Robert. Los principales elementos de mi filosofa del derecho.

In: DOXA, Cuadernos de Filosofa del Derecho, n. 32, 2009. p. 67-84. Na doutrina nacional: BARROSO, Lus Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalizao do Direito o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. In: RPGE, Porto Alegre, v. 28, n. 60, p. 27-65, jul./dez. 2004. Para uma anlise detalhada da aplicao desses novos paradigmas ao exerccio da jurisdio, v. PREz LUO, Antonio-Enrique. Qu significa juzgar? In: DOXA, Cuadernos de Filosofa del Derecho, n. 32, 2009. p. 151-176.

10. Sobre o princpio da adaptabilidade processual e o instrumentalismo, v. BEDAQUE. Jos Ro-berto dos Santos. A efetividade do processo e a tcnica processual. So Paulo: Malheiros, 2006; OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In: Revista de Processo, n. 137. So Paulo: RT, 2006. p 7-31; DINAMARCO, Cndi-do Rangel. A instrumentalidade do processo. 14 ed. So Paulo: Malheiros, 2009; MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Por um processo socialmente efetivo. In: Revista de Processo, n. 105. So Paulo: RT, 2002. p. 183-190; BODART, Bruno Vincius Da Rs. Simplificao e adaptabilidade no anteprojeto do novo CPC brasileiro. In: O Novo Processo Civil Brasileiro Direito em Expectativa. Org. Luiz Fux. Rio de Janeiro: Forense, 2011; FARIA, Mrcio Carvalho de. Neo-constitucionalismo, neoprocessualismo, ps-positivismo, formalismo-valorativo... A supremacia constitucional no estudo do processo. In: tica e Filosofia Poltica, v. 2, 2012. p. 103-117.

PREfCiO

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processo civil. Como alerta Michele Taruffo, a tcnica serve para fabricar o instrumento processual, enquanto a ideologia determina os escopos que o processo deve alcanar. Ambos so conjuntamente necessrios e separadamente insuficientes: a tcnica sem a ideologia vazia, ao passo que a ideologia sem a tcnica impotente.11

Por tudo isso, o novo Cdigo de Processo Civil no pode ser acusado de incorporar uma nica orientao cientfica. Ao revs, sua construo tem razes profundas no debate popular, fruto de uma centena de audincia p-blicas; do acolhimento majoritrio da colaborao dos segmentos cientficos profissionais ,merc do aproveitamento de mensagens eletrnicas do meio jurdico em geral.

Desta sote,como bom filho da Constituio cidad, nada mais justo que atribuir-lhe o nome de Cdigo de Processo Civil democrtico.

Subjaz, por fim a certeza de que a presente obra abordando com in-teligncia mpar o novo sistema processual revela-o altura do Estado De-mocrtico de Direito, lavrado em tintas fortes pelo iderio da nossa nao, inspirado pela proteo de Deus.

11. TARUFFO, Michele. Cultura e processo. In: Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, anno LXIII, n. 1, marzo 2009. Milano: Giuffr, 2009. p. 71

LUIz FUX

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A ClusulA gerAl do ACordo de proCediMento no projeto do

novo CpC (pl 8.046/2010)

Pedro Henrique Pedrosa nogueira1

sumrio: 1. Nota introdutria. 2. O relatrio-geral apresentado pelo Deputado Srgio Barradas e a consagrao da clusula geral de acordo de procedimento. 3. Breve anlise da proposta. 4. A clusula geral do acordo de procedimento e o resgate doutrinrio do conceito de negcio jurdico processual. 5. Acordos de procedimento e o sistema do CPC-1973. 6. Alguns acordos de procedimento segundo o projeto do novo CPC.

1. notA introdutriA

Durante a tramitao legislativa, na Cmara dos Deputados, do Projeto de Lei n 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n 166, de 2010), que visa instituir no Brasil, o novo Cdigo de Processo Civil, foi apresentado o relatrio-geral pelo Deputado Federal Srgio Barradas Carneiro, que condensou a anlise de 900 emendas ao texto aprovado no Senado, alm de centenas de sugestes dirigidas por meio eletrnico, atravs de espao disponibilizado na internet, por iniciativa do Deputado Fbio Trad, presidente da Comisso Especial.

Dentre as modificaes propostas, encontra-se a clusula geral do acordo de procedimento, prevista no art. 172 do texto do relatrio-geral, que ser objeto de anlise neste ensaio.

Nosso objetivo, aqui, , portanto, examinar a modificao proposta.

1. Doutor (UFBA) e Mestre (UFAL) em Direito. Professor de Direito Processual Civil (graduao e mestrado) da Universidade federal de Alagoas (UFAL). Professor e coordenador do curso de Direito da SEUNE. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (iBDP) e da Associao Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP). Advogado.

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2. o relAtrio-gerAl ApresentAdo pelo deputAdo srgio bArrAdAs e A ConsAgrAo dA ClusulA ge-rAl de ACordo de proCediMento

Segundo a proposio contida no art. 172 do texto do relatrio geral, para as causas em que se discutem direitos passveis de autocomposio, autorizada a conveno das partes sobre os direitos, deveres e nus processuais:

Art. 172. Versando a causa sobre direitos que admitam auto-composio, e observadas as normas processuais fundamentais previstas neste Cdigo, lcito s partes, desde que sejam ple-namente capazes, convencionar, antes ou durante o processo, sobre os seus nus, poderes, faculdades e deveres processuais.

1. De comum acordo, o juiz e as partes podem estipular mudanas no procedimento, visando a ajust-lo s especifi-cidades da causa, fixando, quando for o caso, o calendrio para a prtica dos atos processuais.

2 O calendrio vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente sero modificados em casos excepcionais, devidamente justificados.

3 Dispensa-se a intimao das partes para a prtica do ato processual ou para a realizao da audincia cujas datas tiverem sido designadas no calendrio

4 O juiz controlar, de ofcio ou a requerimento, a validade das convenes previstas neste artigo, recusando-lhes aplicao somente nos casos de nulidade ou de insero abusiva em contratos de adeso ou em outros em que uma das partes se encontre em manifesta situao de vulnerabilidade.

Em outro ensaio2, apresentamos sugesto para ser ento incorporada ao texto do PL 166/2010, aprovado pelo Senado Federal, com objetivo de se introduzir, no ordenamento brasileiro, pelo menos um dispositivo que admitisse de modo expresso a celebrao dos acordos de procedimento. A proposta trazida no relatrio geral do Deputado Srgio Barradas incorpora em grande parte as sugestes que fizemos3 na ocasio.

2. Cf. NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Anotaes sobre os negcios jurdicos processuais no projeto do Cdigo de Processo Civil. In: O Projeto do Novo Cdigo de Processo Civil. 2 srie Estudos em homenagem a Jos Joaquim Calmon de Passos. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 583.

3. A proposta que formulramos estava redigida nos seguintes termos:

Art. 167. Versando o litgio sobre direitos disponveis, e observados as regas e os princpios estabelecidos neste Cdigo, lcito s partes, desde que sejam plenamente capazes, convencionar, antes ou durante o procedimento, sobre os nus, faculdades e deveres processuais.

PEDRO HENRIQUE PEDROSA NOGUEIRA

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No se tem, no Brasil, atualmente, uma possibilidade mais ampla de autorregulao do procedimento como se verifica em outros sistemas jurdicos. possvel ao litigante optar por determinados procedimentos quando a ordem jurdica assim o permite, mas no se admite expressamente uma livre disciplina, de natureza convencional, sobre como a causa deve ser processada. Eis um ponto em o projeto do Cdigo Processo Civil pode ser aperfeioado.

Ser bem vinda e oportuna a introduo, no sistema brasileiro, da per-misso legislativa expressa para celebrao de acordos de procedimento, au-torizando que as partes, em certa medida, regulem a forma de exerccio de seus direitos e deveres processuais e at possam dispor, em certas situaes, sobre os nus que contra si recaiam.

Os acordos de procedimento vo ao encontro da ideia de favorecer e prestigiar, sempre quando possvel, as solues de controvrsias obtidas di-retamente pelos prprios litigantes negociadamente.

Se a soluo consensual do litgio benfica a prpria concretizao da pacificao, nada mais justo do que permitir aos litigantes, inclusive quando no seja possvel a resoluo da prpria controvrsia em si, ao menos disci-plinarem a forma do exerccio das suas faculdades processuais, ou at mesmo delas dispor, conforme o caso4.

3. breve Anlise dA propostA

O texto proposto, ao tempo em que abre espao participao das partes na construo do procedimento, democratizando-o, tambm se preocupa em evitar que esses acordos, na prtica, funcionem como instrumento de abuso de direito, ou de opresso. Por isso, o pacto somente ser admitido (a) quan-do se tratar de direitos passveis de autocomposio, hipteses nas quais as

1. O juiz e as partes podem, de comum acordo, estipular mudanas no procedimento, visando ajust-lo s especificidades da causa, fixando, quando for o caso, o calendrio para a prtica dos atos processuais.

2. Os prazos previstos no calendrio somente sero prorrogados em casos excepcionais, devi-damente justificados.

3. No se admitir a conveno de que trata o caput deste artigo em contratos de adeso, ou quando o litigante se encontre em manifesta situao de vulnerabilidade.

4. Como ressalta Loc Cadiet, as convenes das partes no so apenas instrumentos para soluo da controvrsia, mas tambm tcnica complementar de gesto do processo civil (CADIET, Loc. Les conventions relatives au procs en droit franais. In: Accordi di Parti e Processo. Milano: Giuffr, 2008, p. 19-20).

A CLUSULA GERAL DO ACORDO DE PROCEDIMENTO NO PROJETO DO NOVO CPC (PL 8.046/2010)

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partes j esto autorizadas pelo ordenamento e renunciar integralmente ao prprio direito litigioso e a afastar a prpria jurisdio estatal, com opo pela arbitragem; (b) quando as partes sejam capazes e (c) quando estejam em situao de equilbrio, no se permitindo o acordo de procedimento em contratos de adeso ou em contratos em que figurem partes em situao de vulnerabilidade.

Em alguns sistemas jurdicos, adota-se o modelo de gesto processual, por meio da qual ao juiz dado interferir no desenrolar do procedimento a fim de adequ-lo s especificidades do caso concreto5. A verso inicial do anteprojeto de Cdigo de Processo Civil que tramitou no Senado (PL n 166, de 2010), no art. 107, inciso V, admitia amplamente a adaptao do procedimento pelo juiz, observado o contraditrio. O dispositivo, aps diversas crticas oriundas de variados setores da sociedade, foi retirado e no constou do substitutivo aprovado no Senado.

O enunciado agora proposto admite a adaptao procedimental. En-tretanto, a adaptao, do modo como se props, no se estabelece como resultado de um ato unilateral do juiz, e sim como fruto do consenso entre as partes e o julgador.

Os acordos de procedimento valorizam o dilogo entre o juiz e as par-tes, conferindo-lhes, quando necessrio e nos limites traados pelo prprio sistema, a condio de adaptar o procedimento para adequ-lo s exigncias especficas do litgio; trata-se de instrumento valioso para a construo de um processo civil democrtico.

4. A ClusulA gerAl do ACordo de proCediMento e o resgAte doutrinrio do ConCeito de negCio jurdiCo proCessuAl

A introduo de uma clusula geral para acordos de procedimento trar uma importante conseqncia do ponto de vista doutrinrio: a doutrina processual em geral, que hoje manipula com alguma dificuldade e, em al-

5. Para uma exposio criteriosa do modelo de case management no direito ingls, conferir: ALMEI-DA, Diogo Assumpo Rezende de. O case management ingls: um sistema maduro? In: Revista do Programa de Ps-Graduao em Direito da UFBA, n 21. Salvador: fundao faculdade de Direito da Bahia Editora, 2010, p. 83 e segs. Para uma exposio sobre a expanso da gesto processual na Europa, especialmente na Itlia e na frana, conferir: ANDRADE, rico. As novas perspectivas do gerenciamento e da contratualizao do processo. In: Revista de Processo, n 193. So Paulo: RT, maro/2011, p. 168 e segs.

PEDRO HENRIQUE PEDROSA NOGUEIRA

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guns casos, at com alguma restrio, categorias difundidas no mbito do direito privado, precisar do supedneo da teoria do negcio jurdico para compreender e possibilitar adequada manipulao

O estudo dos negcios jurdicos, historicamente, esteve vinculado ao Direito Privado. Na Cincia Processual, a temtica relativamente recente. Coube doutrina alem elaborar e desenvolver o conceito de negcio jurdico processual6, a partir do final do sculo XIX7-8.

Schnke9, j no sculo passado, admitia as convenes privadas sobre determinadas situaes processuais (v.g. pacto de no executar), mas esses acor-dos no surtiriam efeitos imediatos de carter processual, embora obrigassem os interessados a proceder segundo eles. Lent10 procurou identificar negcios processuais no mbito dos atos processuais praticados pelas partes; seriam verificados quando os efeitos processuais se produziriam quando queridos pela parte. Mais recentemente, tambm Leible11 e Jauernig12 admitem, embora excepcionalmente, a existncia de contratos processuais (v.g. compromisso arbitral), segundo a zPO.

Na Itlia, Chiovenda13 admitiu claramente a figura dos negcios pro-cessuais, visto que em certos atos a lei relaciona, imediatamente, a produo de efeitos com a vontade das partes. Assim se daria com os atos unilaterais praticados com o fim de criar, modificar ou extinguir direitos processuais

6. DENTI, Vittorio. Negozio processuale. In: Enciclopedia del Diritto. Milano: Giuffr, 1978, v. XXVIII, p. 138.

7. WACH, Adolf. Manual de Derecho Procesal Civil, I. Traduo Toms A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1977, p. 28-29, notas 8 e 9 et passim.

8. Para uma resenha das diferentes concepes germnicas, no perodo, sobre a teoria do negcio processual, conferir: FERRARA, Luigi. Studii e Questioni di Diiritto Processuale Civile. Napoli: Jovene, 1908, p. 44 e segs.; PALERMO, Antonio. Contributo alla Teoria degli Atti Processuali. Napoli: Jovene, 1938, p. 66 e segs.

9. SCHNKE, Adolf. Direito Processual Civil. Reviso Afonso Celso Rezende. Campinas: Romana, 2003, p. 148.

10. LENT, Friedrich. Diritto Processuale Tedesco. Traduo Edoardo Ricci. Napoli: Morano, 1959, p. 122.

11. LEIBLE, Stefan. Proceso Civil Alemn. Medelln: Biblioteca Jurdica Dike, 1999, p. 306.12. JAUERNIG, Othmar. Direito Processual Civil. Traduo F. Silveira Ramos. Coimbra: Almedina,

2002, p. 174.13. Antes de Chiovenda, ferrara (fERRARA, Luigi. Studii e Questioni di Diiritto Processuale Civile.

Napoli: Jovene, 1908, p. 43 e segs.) aceitava a noo de negcio jurdico processual por influncia dos autores alemes que o criaram, desenvolveram e discutiram (Wach, Trutter, Bulow, Kho-ler). Sobre a difuso do conceito de negcio jurdico processual na doutrina do processo penal, conferir: PANNAIN, Remo. Le Sanzioni degli Atti Processuali Penali. Napoli: Jovene, 1933, p. 96 e segs.

A CLUSULA GERAL DO ACORDO DE PROCEDIMENTO NO PROJETO DO NOVO CPC (PL 8.046/2010)

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(v.g. renncia, aceitao da herana etc.)14-15-16. Fazzalari, mais recentemen-te, tambm admitiu a existncia dos negcios processuais, que, segundo ele, melhor seriam denominados atos processuais negociais17 (v.g. renncia a alguma faculdade processual).

A doutrina brasileira, quando no recusou valor figura18, simplesmente silenciou sobre o problema, salvo algumas excees19.

Pode-se definir o negcio processual como o fato jurdico voluntrio em cujo suporte ftico esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher

14. CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di Diritto Processuale Civile. Napoli: Nicola Jovene, 1913, p. 775-776. Lio posteriormente repetida em: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de Direito Processual Civil. Traduo Paolo Capittanio. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3, p. 25-26.

15. Nesse sentido, atribuindo carter de negcio processual composio judicial amigvel, mas ne-gando-lhe desistncia e ao compromisso: MICHELI, Gian Antonio. Curso de Derecho Procesal Civil. Traduo Santiago Sents Melendo. Buenos Aires, EJEA, 1970, v. I, p. 292. Aceitando tambm a figura dos negcios processuais, mas com poucas variaes doutrinrias: DONDINA, Mario. Atti Processuali Civili (civili e penali). In: Novissimo Digesto Italiano, I. Torino: UTET, 1957, p. 1.520; ROCCO, Ugo. Diritto Processuale Civile Parte Generale. Napoli: Jovene, 1936, p. 318, zANzUCCHI, Marco Tullio. Diritto Processuale Civile, I. Milano: Giuffr, 1964, p. 419; PALERMO, Antonio. Contributo alla Teoria degli Atti Processuali. Napoli: Jovene, 1938, p. 75; INVREA, francesco. La giurisdizione concreta e la teorica del rapporto giuridico processuale. in: Rivista di Diritto Processuale, v, IX, parte I. Padova: CEDAM, 1932, p. 44; BETTI, Emilio. Negozio Giuridico. In: Novissimo Digesto Italiano, XI. Torino: UTET, 1957, p. 220, dentre outros.

16. Concepo bem particular foi a desenvolvida por Carnelutti. Parte o autor italiano da premissa de que as noes de direito subjetivo e negcio jurdico seriam correlatas. A partir da, enumera as caractersticas do negcio processual: (a) ser um ato de exerccio de um poder cuja finalidade prtica consista em determinar a conduta alheia por meio de seu efeito jurdico, (b) sendo o poder jurdico exercitado um direito subjetivo. Uma ampla relao de atos concretos poderiam ser reconduzidos ao conceito de negcio processual (compromisso, requerimentos das partes, revogaes etc.) (CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil, III. Traduo Hiltomar Martins Oliveira. So Paulo: Classic Book, 2000, p. 124-125).

17. fAzzALARI, Elio. Instituies de Direito Processual. Traduo Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006, p. 416.

18. Recusam a figura do negcio processual, no Brasil: DINAMARCO, Cndido Rangel. Instituies de Direito Processual Civil, II. 6. ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 484; KOMATSU, Roque. Da Invalidade no Processo Civil. So Paulo: RT, 1991, p. 141; MITIDIERO, Daniel. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, II. So Paulo: Memria Jurdica, 2005, p. 16; CMARA, Alexandre freitas. Lies de Direito Processual Civil, I. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 248; GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 18. ed. So Paulo: Saraiva, 2007, v. 2, p. 6. Os argumentos apresentados so similares: no processo no haveria espao para o au-torregramento da vontade, uma vez que os efeitos de possvel ocorrncia dos atos dos sujeitos do processo j estariam previamente disciplinados pela lei.

19. Calmon de Passos adota posio intermediria. Assume que, em tese, a figura do negcio processual poderia ser admitida em nosso direito. Nada obstante, as declaraes negociais das partes, para produzirem efeitos no processo, necessitariam da intermediao judicial (PASSOS, J. J. Calmon de. Esboo de uma Teoria das Nulidades Aplicada s Nulidades Processuais. Rio de Janeiro: forense, 2005, p. 69-70).

PEDRO HENRIQUE PEDROSA NOGUEIRA

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a categoria jurdica ou estabelecer, dentre dos limites fixados no prprio ordenamento jurdico, certas situaes jurdicas processuais20. No negcio jurdico, h escolha da categoria jurdica, do regramento jurdico para uma determinada situao21. Conforme bem sintetizou Paula Sarno Braga, Sero negcios processuais quando existir um poder de determinao e regramento da categoria jurdica e de seus resultados (com limites variados)22.

Seguramente que o autorregramento da vontade, na sua relao com as normas processuais cogentes, encontrar limites significativamente maiores do que no espao que lhe deixado no mbito do direito privado23. Apesar disso, parece inquestionvel a existncia de um espao deixado aos diversos sujeitos processuais, para que possam influir e participar na construo da atividade procedimental24, sem que isso represente o reflexo ou a consagrao de uma postura neoprivatista25, pois no se est defender os limites, em maior ou menor extenso, desse campo de autonomia, mas sim e somente a sua prpria existncia.

Os acordos de procedimento26 so espcies de negcios jurdicos proces-suais bilaterais e como tal devem ser tratados doutrinariamente.

20. NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negcios Jurdicos Processuais: Anlise dos provimentos judiciais como atos negociais. Salvador: Tese de Doutorado da UFBA, 2001, p. 109 et passim.

21. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurdico (Plano da Existncia). 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2000, p. 166.

22. BRAGA, Paula Sarno. Primeiras Reflexes sobre uma Teoria do fato Jurdico Processual: Plano de Existncia. In: Revista de Processo. So Paulo: RT, junho, 2007, n 148, p. 312.

23. Chiovenda j dizia: designando um ato processual o carter de negcio jurdico, nem por isso se afirmou que o direito reconhea vontade da parte a mesma importncia que lhe pode reconhecer no direito privado. (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de Direito Processual Civil. Traduo Paolo Capittanio. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3, p. 26). No mesmo sentido: MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Convenes das Partes sobre Matria Processual. In: Temas de Direito Processual, terceira srie. So Paulo: Saraiva, 1984, p. 91; DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 12. ed. Salvador: Jus Podivm, 2010, v. 1, p. 263.

24. GRECO, Leonardo. Os atos de disposio processual Primeiras reflexes. In: MEDINA, Jos Miguel Garcia et al. (Coords.). Os Poderes do Juiz e o Controle das Decises Judiciais Estudos em Homenagem Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. So Paulo: RT, 2008, p. 291.

25. Barbosa Moreira utilizou-se da expresso neoprivatismo para designar o conjunto de concepes doutrinrias contrrias exacerbao do elemento publicstico no processo civil, com a concen-trao de podres do juiz, sobretudo em matria probatria (MOREiRA, Jos Carlos Barbosa. O Neoprivastimo no Processo Civil. In: Temas de Direito Processual, nona srie. So Paulo: Saraiva, 2007, p. 87 e segs.).

26. Paulo Hoffman (HOffMAN, Paulo. Saneamento Compartilhado. So Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 185) prefere utilizar a nomenclatura transao processual, enquanto Gajardoni (GA-JARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilizao Procedimental. So Paulo: Atlas, p. 215) opta pela expresso flexibilizao procedimental voluntria. Barbosa Moreira (MOREiRA, Jos Carlos Barbosa. Convenes das Partes sobre Matria Processual. In: Temas de Direito Processual,

A CLUSULA GERAL DO ACORDO DE PROCEDIMENTO NO PROJETO DO NOVO CPC (PL 8.046/2010)

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5. ACordos de proCediMento e o sisteMA do CpC-1973

Como se sabe, a escolha do procedimento um negcio jurdico feito pelo autor ao ajuizar a demanda27. No raro estar o demandante autorizado pelo sistema a optar por um dentre dois ou mais procedimentos admissveis para tutela do direito subjetivo material afirmado28 (para se pleitear o reco-nhecimento de um crdito fiscal pode-se ajuizar uma ao ordinria, mas se revela admissvel tambm o ajuizamento de mandado de segurana, v.g.). Esse ato de escolha configura um negcio jurdico processual unilateral.

A prpria utilizao do procedimento sumrio, previsto no art. 275 do CPC-197329, em lugar do tradicional rito ordinrio revela tambm uma es-colha de feio tipicamente negocial. Pontes de Miranda falava no princpio da preferibilidade do rito ordinrio30 para indicar que o demandante estava autorizado pelo sistema a renunciar a faculdade de se valer da via sumarssima, mais expedita, para se utilizar das vias ordinrias. Em outras palavras, o uso do procedimento ordinrio no lugar do sumrio no seria causa de nulidade31.

Dinamarco ainda props diferenciar a escolha do procedimento esta proibida pelo ordenamento processual , da escolha do processo. Assim, quando a lei previsse uma tutela diferenciada em prol do demandante, este poderia renunciar benesse e fazer a opo pelas vias ordinrias. Escolher

terceira srie. So Paulo: Saraiva, 1984, p. 89 e segs.) examinou, com mincias, o problema dos negcios processuais celebrados pelas partes, em matria processual, embora preferisse adotar outra nomenclatura (convenes processuais)

27. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2010, v. 1, p. 262.

28. Como lembram Klippel e Adonias, havendo cumulao de pedidos (CPC-1973, art. 292), o uso do procedimento comum ordinrio pode ser opo do demandante (KLIPPEL, Rodrigo; BASTOS, Antnio Adonias. Manual de Processo Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 365).

29. Na redao originria do art. 275 do CPC-1973, utilizava-se, no dispositivo, a denominao procedimento sumarssimo, posteriormente modificada para procedimento sumrio, com o advento da Lei n 9.245/95.

30. MiRANDA, Pontes de. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, III. 4. ed. Rio de Janeiro: forense, 1997, p. 544.

31. Em sentido contrrio, entendendo que o uso do procedimento sumrio previsto no art. 275 do CPC-1973 seria obrigatrio, no havendo a opo ao demandante: PIMENTEL, Wellington Moreira. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, III. 2. ed. So Paulo: RT, 1979, p. 60; PASSOS, J. J. Calmon de. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, III. 9 ed. Rio de Janeiro: forense, 2005, p. 261. Outros admitem uma autntica escolha do procedimento nos casos de cumulao de pedidos, em que havendo previso de procedimento diverso para cada um dos pedidos cumulados, admite-se a cumulao com a adoo do rito ordinrio (CPC-1973, art. 292, 2). Nesse sentido: LOPES, Joo Batista. Curso de Direito Processual Civil, I. So Paulo: Atlas, 2005, p. 134.

PEDRO HENRIQUE PEDROSA NOGUEIRA

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a tutela jurisdicional seria projeo da liberdade de demandar, segundo a convenincia de cada um32.

J Calmon de Passos se apresenta refratrio a qualquer possibilidade de acordo entre os litigantes sobre a adoo do rito sumrio e vice-versa (o ordi-nrio no lugar do sumrio), pois no Direito Processual Civil predominariam regras cogentes, subtraindo o poder dispositivo das partes; alm disso, no haveria no Cdigo preceito autorizador dessa conveno33.

Parece-nos, nada obstante, perfeitamente admissvel, no direito brasileiro em vigor, cogitar da possibilidade do pacto de escolha do procedimento.

O ponto de partida para a aceitao do acordo de procedimento est na ideia de que ao autor lcito, em certas situaes, escolher o rito da demanda a ser ajuizada34. Trata-se a de poder de autorregramento da vontade, que se apresenta limitado, verdade, mas existe e no pode ser desprezado.

No sistema em vigor, para as hipteses em que dado ao demandante optar por um ou outro procedimento35 no haveria justificativa para recusar que essa opo fosse estabelecida consensualmente, entre autor e ru. Eis a um espao deixado pelas normas cogentes processuais para atuao da autonomia de vontade dos litigantes.

De fato, como o autor pode decidir, unilateralmente, se vai ajuizar uma demanda sob o rito ordinrio ao invs do rito sumrio; ou uma ao ordinria no lugar de uma ao monitria, no h razo para recusar validade a um negcio jurdico cujo objeto seja justamente essa escolha.

Essa liberdade de pactuao, em outros tempos, durante a vigncia do Regulamento 737 de 1850, j chegou a ser at mais ampla do que a admi-tida sob a gide do CPC-1973, porquanto ali era expressamente autorizada

32. DINAMARCO, Cndido Rangel. Instituies de Direito Processual Civil, II. 6 ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 476.

33. PASSOS, J. J. Calmon de. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, III. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 104.

34. O STJ j decidiu: O emprego do procedimento ordinrio, em vez do procedimento sumrio ou mesmo especial, no causa de nulidade do processo, pois prejuzo algum traz para o recorrente, uma vez que no rito ordinrio a possibilidade de dilao probatria mais ampla, em atendimento garantia constitucional de ampla defesa. (STJ. RESP 844357-SP. Rel. Ministro Francisco Falco. DJ 09.11.2006)

35. Outro exemplo de negcio jurdico processual de escolha de procedimento est no acordo entre os litigantes sobre a converso do processo de inventrio para arrolamento sumrio (CPC-1973, art. 1.031 e 1.032).

A CLUSULA GERAL DO ACORDO DE PROCEDIMENTO NO PROJETO DO NOVO CPC (PL 8.046/2010)

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a conveno negocial das partes sobre a eleio do procedimento sumrio para qualquer causa36.

Admissvel tambm se revela a conveno das partes sobre o procedimento para as causas de juizados especiais, nas hipteses em que no se esteja a tratar de competncia absoluta. Tratando-se de opo procedimental37, nada obsta a que essa eleio se faa por conveno. Assim, num determinado contrato lcito aos contratantes estipular que eventuais demandas decorrentes da avena devam seguir o rito dos juizados especiais38.

No cabe certamente cogitar de acordo de procedimento para as hip-teses em que o sistema no d ao litigante a liberdade de opo. Assim, v.g., inadmissvel seria um negcio jurdico para eleio do procedimento sumrio em substituio do procedimento especial da demanda de demarcao (CPC-1973, art. 946).

6. Alguns ACordos de proCediMento segundo o pro-jeto do novo CpC

Ser admitida a celebrao de variadas formas de acordos de procedimento a partir do novo art. 172 do projeto (texto do relatrio geral). Assim sucede, v.g., com o pacto de no recorrer, o pacto sobre a prova, o pacto sobre o procedimento probatrio39, o calendrio processual40 etc.

36. Art. 245. Esta frma de processo extensiva a qualquer aco, si as partes assim convencionarem expressamente.

37. Irretocvel a observao de Joel Dias figueira Jr.: fica ao talante do autor a escolha do proce-dimento que lhe parea mais apto a fim de melhor adequar a ao de direito material ao de direito processual (FIGUEIRA JR., Joel Dias. Manual dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais. So Paulo: RT, 2006, p. 53).

38. Obviamente que a validade dessa conveno se condicionaria adequao do valor da causa e da complexidade da pretenso a ser deduzida. Assim, v.g., tratando-se de pretenso a receber crdito, de menor complexidade e de valor inferior a quarenta salrios mnimos, no haveria bice e nem razo para recusar valor a um acordo no qual se pactuasse a escolha do procedimento previsto na Lei n 9.099/95, com renncia opo pela demanda sob o rito ordinrio, sumrio ou at mesmo monitrio, em tese tambm admitidos.

39. Assim sucederia, v.g., com a estipulao prvia entre as partes da ordem de oitiva das testemunhas arroladas etc.

40. A previso do calendrio processual, semelhantemente ao que j se encontra em outros ordenamentos, a exemplo do francs (cf. art. 764 do CPC francs) e, mais recentemente, do italiano (cf. art. 81-bis do Codice, introduzido pela Legge 18 giugno 2009, n 69), estabelece mecanismo importante de adaptao procedimental, a permitir que os prazos, sobretudo na instruo, sejam fixados de maneira adequada e possam ser cumpridos mais facilmente, sem a necessidade de sucessivas inti-maes dirigidas s partes, ou de sucessivos pedidos de prorrogao de prazos dilatrios.

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Percorrendo o texto do projeto do novo Cdigo de Processo Civil, possvel identificar vrios exemplos de acordos de procedimento. Assim su-cede com a renncia recproca ao prazo, a conveno processual de dilao de prazo no-peremptrio, o acordo de substituio de bem penhorado, a eleio negocial do foro, o acordo para a suspenso do processo (art. 288, II), o adiamento negociado da audincia (art. 347, I).

O texto do projeto do Cdigo de Processo Civil, a partir do relatrio geral do Deputado Srgio Barradas, traz a vantagem de possibilitar a ampla manipulao do acordo de procedimento, atravs do uso da tcnica legislativa da clusula geral, caracterizadas por revelar disposies normativas que utilizam em sua linguagem uma tessitura aberta, conferindo ao juiz um poder (com-petncia) de, no caso concreto, criar, complementar ou desenvolver normas jurdicas mediante o reenvio para elementos cuja concretizao pode estar fora do sistema, mas que se nele reinserem pelo ingresso na fundamentao da deciso, permitindo o respectivo controle41.

As partes podero firmar o pacto de no recorrer, ou acordo de instncia, o que significa a estipulao, no curso do processo, para que uma demanda tramite apenas em uma determinada instncia. Trata-se de um acordo de excluso do procedimento em grau de recurso. Estipular que o processo fin-dar perante o juzo de primeiro grau significa, em outras palavras, renunciar mutuamente ao recurso. As partes, que obviamente tm a liberdade para escolher se recorrem ou no em face de determinada deciso, decidem mani-festar, desde logo, reciprocamente, a vontade de no interpor recurso contra a futura deciso. No direito francs, o pacto de renncia bilateral ao recurso, depois de ajuizada a ao, admitido no art. 41 do Code de Procdure Civile42.

O acordo sobre a prova, a conveno sobre a distribuio do nus pro-batrio, a escolha bilateral do perito para o processo, permitindo que a prova pericial a ser produzida pudesse ser resultado da eleio negocial de profis-

41. MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um sistema em construo As clusulas gerais no Projeto do Cdigo Civil brasileiro. In: Revista de Informao Legislativa, n 139, ano 35. Braslia: Senado federal, jul/set, 1998, p. 8. Adotam essa noo no plano da Cincia do Direito Processual: DIDIER JR., Fredie. Clusulas Gerais Processuais. In: Revista de Processo, n 187, ano 35. So Paulo: RT, set/2010, p. 70-71; HENRIQUES FILHO, Ruy. Clusulas Gerais no Processo Civil. In: Revista de Processo, n 155, ano 33. So Paulo: RT, jan/2008, p. 344-345.

42. Sobre o assunto: CADIET, Loc. Les conventions relatives au procs en droit franais. In: Accordi di Parti e Processo. Milano: Giuffr, 2008, p. 27. O CPC portugus, no art. 681, n 1, autoriza expressamente o pacto de prvia renncia ao recurso.

A CLUSULA GERAL DO ACORDO DE PROCEDIMENTO NO PROJETO DO NOVO CPC (PL 8.046/2010)

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sional de confiana dos prprios litigantes, tambm representam acordos de procedimento.

A previso do calendrio processual (expressamente consagrado nos 1 e 2 do art. 172 do projeto na verso do relatrio geral do Deputado Srgio Barradas), semelhantemente ao que j se encontra em outros ordenamentos, a exemplo do francs (cf. art. 764 do CPC francs) e, mais recentemente, do italiano (cf. art. 81-bis do Codice, introduzido pela Legge 18 giugno 2009, n 69), estabelece mecanismo importante de adaptao procedimental, a permitir que os prazos, sobretudo na instruo, sejam fixados de maneira adequada e possam ser cumpridos mais facilmente, sem a necessidade de sucessivas intimaes dirigidas s partes, ou de sucessivos pedidos de prorrogao de prazos dilatrios.

O acordo de procedimento tambm ser admitido, e preferencialmente celebrado por ocasio da audincia preliminar, para que, como proposto por Paulo Hoffman43, seja ajustado sobre a entrega de laudos periciais parciais, com dispensa de percia imparcial, sobre a ampliao ou modificao do ob-jeto litigioso, sobre a fixao dos pontos controvertidos por mtuo acordo, sobre a dispensa da produo de provas.

Como se v, a partir do art. 172 do projeto, lcito s partes conven-cionarem certas modificaes no procedimento, assim como praticar atos dispositivos de alguns direitos ou faculdades processuais. Essas convenes podem se revelar mais um importante instrumento de concretizao de direitos fundamentais processuais (direito durao razovel do processo, direito ao devido processo legal).

43. HOffMAN, Paulo. Saneamento Compartilhado. So Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 198-199.

PEDRO HENRIQUE PEDROSA NOGUEIRA

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proCediMento espeCiAl pArA As Aes de fAMliA no projeto do novo Cdigo de proCesso Civil

Leonardo Carneiro da CunHa1

sumrio: Procedimentos especiais. 2. O sistema do projeto do novo CPC em tema de pro-cedimentos. 3. Estrutura do procedimento comum e sua flexibilidade no projeto do novo CPC. 4. Dificuldade para criao de procedimentos especiais no projeto do novo CPC. 5. Procedimento especial para as aes de famlia no projeto do novo CPC. 6. Concluso.

1. proCediMentos espeCiAis

Os procedimentos especiais constituem as formas de procedimento para a obteno de tutela jurdica quando, por algum dado do direito material, ou do documento em que se funda a demanda, ou da pessoa autora, ao legislador pareceu ser inadequada a forma ordinria ou algumas regras jurdicas2.

O processo deve, como se percebe, ser adequado realidade do direito material, valendo dizer que o procedimento previsto em lei para determinado processo deve atender s finalidades e natureza do direito tutelado. preciso, enfim, haver uma adequao do processo s particularidades do caso concreto.

Por essa razo, existem vrios procedimentos especiais, estruturados em virtude das peculiaridades do direito material. Significa que a tutela jurisdicio-

1. Mestre em Direito pela UFPE. Doutor em Direito pela PUC/SP. Ps-doutorado pela Universidade de Lisboa. Professor adjunto da faculdade de Direito do Recife (UFPE), nos cursos de graduao, mestrado e doutorado. Professor colaborador do curso de mestrado da Universidade Catlica de Pernambuco. Membro do Instituto Iberoamericano de Direito Processual e do instituto Brasilei-ro de Direito Processual. Diretor de Relaes Institucionais da Associao Norte e Nordeste de Professores de Processo. Procurador do Estado de Pernambuco e advogado.

2. MIRANDA, franciso Cavalcanti Pontes de. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1977, t. 13, p. 3.

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nal pleiteada pela parte autora h de ser proferida em procedimento adequado satisfao do interesse material ou do direito subjetivo a que se visa proteger3.

Assim, caso o direito material de que a parte alegue ser titular contenha alguma nota particular ou revista o timbre de direito especial, a lei, via de regra, confere-lhe um procedimento igualmente especial. O procedimento sofre, assim, influncia das peculiaridades do direito material4.

A construo de procedimentos diferenciados no decorre de uma nica razo, nem h elemento comum para a especialidade. Costuma-se afirmar que os procedimentos especiais so estruturados pela combinao das diversas formas de cognio, as quais, uma vez manipuladas pelo legislador, permite a adoo de meios adaptados s especificaes do direito material ou da correlata pretenso5. o critrio que concretiza a efetividade da tutela jurisdicional e o princpio do devido processo legal, exatamente porque somente haver processo efetivo e devido, se houver adequao.

H, entretanto, outras razes que sugerem a criao de procedimentos especiais, sobretudo as histricas. Com efeito, o direito processual brasileiro caracteriza-se pela multiplicidade de procedimentos especiais, que s se justificam por motivos histricos6.

A criao de procedimentos especiais tem por finalidade excluir a ordina-riedade ou o procedimento comum de alguns casos expressamente escolhidos pelo legislador. A especialidade do procedimento nem sempre, todavia, signi-

3. Galeno Lacerda denomina essa situao instrumental de princpio da adequao (Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, v. 8, t. 1, p. 18-20). Conferir, igualmente, SILVA, Clvis do Couto e. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. So Paulo: RT, 1977, v. 9, t. 1, p. 1-16.

4. fABRCiO, Adroaldo furtado. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. 8, t. 3, p. 10.

5. A propsito, Kazuo Watanabe que assim esclarece: atravs do procedimento, em suma, que se faz a adoo das vrias combinaes de cognio considerada nos dois planos mencionados, criando-se por essa forma tipos diferenciados de processo que, consubstanciando um procedimento adequa-do, atendam s exigncias das pretenses materiais quanto sua natureza, urgncia da tutela, definitividade da soluo e a outros aspectos, alm de atender s opes tcnicas e polticas do legislador. Os limites para a concepo dessas vrias formas so os estabelecidos pelo princpio da inafastabilidade do controle jurisdicional e pelos princpios que compem a clusula do devido processo legal. (Da cognio no processo civil. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2000, p. 124). De igual modo, conferir: DIDIER JR., Fredie. Cognio, construo de procedimentos e coisa julgada: os regimes de formao da coisa julgada no direito processual civil brasileiro. GENESIS Revista de Direito Processual Civil. Curitiba, out.-dez. 2001, v. 22.

6. SILVA, Clvis do Couto e. Ob. cit., p. 7. No mesmo sentido: MIRANDA, francisco Cavalcanti Pontes de. Ob. cit., p. 3-4.

LEONARDO CARNEIRO DA CUNHA

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fica excluso da ordinariedade. s vezes, essa ordinariedade persiste e apenas se modifica algum momento inicial; ou apenas se alude a que se manteve a forma ordinria, a despeito da especialidade da pretenso e da ao7.

Os procedimentos especiais so, enfim, concebidos para determinadas hipteses, em que se afasta o procedimento comum. Algumas vezes, a especia-lidade est apenas na limitao da cognio, ou na combinao de atividades que seriam, cada uma, exercida num procedimento, ou num encurtamento do procedimento, ou no acrscimo de uma fase, ou na supresso de uma etapa, ou na especificidade de uma prova. Os procedimentos especiais so, muitas vezes, variaes do procedimento comum, concebidos para adequar-se o processo quelas realidades especficas.

2. o sisteMA do projeto do novo CpC eM teMA de proCediMentos

Contrariamente ao Cdigo de 1973, o projeto do novo CPC contm uma parte geral em que se renem as disposies comuns aplicveis gene-ralidade dos processos.

O sistema eleito pelo CPC de 1973, na classificao dos procedimentos cognitivos, foi inovador relativamente legislao anterior. Nele h basica-mente um procedimento comum, que se subdivide em ordinrio e sumrio. Ao procedimento comum contrapem-se os procedimentos especiais, que podem ser de jurisdio contenciosa ou de jurisdio voluntria.

No sistema escolhido pelo projeto do novo CPC, fez-se uma bipolariza-o entre procedimento comum e procedimentos especiais. O procedimento comum no contm mais qualquer subdiviso, de maneira que no h, no projeto do novo CPC, um equivalente ao atual procedimento sumrio. Se o caso comportar alguma peculiaridade que o remeta a algum procedimento especial, este que haver de ser adotado. Do contrrio, segue-se o procedi-mento comum, aplicvel, enfim, generalidade dos casos.

Da se percebe que o projeto do novo CPC inova ao estabelecer efetiva-mente um procedimento comum, com a funo de procedimento-padro, a servir de modelo aos demais procedimentos, cujas regras so-lhes aplicadas subsidiariamente.

7. MIRANDA, francisco Cavalcanti Pontes de. Ob. cit., p. 4.

PROCEDIMENTO ESPECIAL PARA AS AES DE FAMLIA NO PROJETO DO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL

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3. estruturA do proCediMento CoMuM e suA fleXi-bilidAde no projeto do novo CpC

No projeto do novo CPC, o procedimento comum est estruturado de forma bem detalhada. No sendo caso de indeferimento da petio inicial nem de julgamento liminar de improcedncia, o juiz ordenar a citao do ru para que este comparea audincia de conciliao ou de mediao, a ser realizada, prioritariamente, por cmara especializada em conciliao ou mediao.

No procedimento comum, a audincia inicial no ser realizada, se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composio consen-sual, ou se no se admite, no processo, a autocomposio. preciso que haja manifestao de ambas as partes para que no haja a audincia: o autor j dever manifestar-se assim na petio inicial, devendo o ru dizer que no tem interesse na autocomposio por petio apresentada at dez dias antes da audincia.

No obtida a autocomposio, ou no realizada a audincia por um daqueles dois motivos, poder o ru apresentar contestao, na qual dever alegar toda a matria de defesa e apresentar, caso queira, reconveno. Da se seguem as providncias preliminares e o saneamento, com a produo de provas em audincia, com a prolao de sentena.

A exemplo do que ocorre no atual CPC, o projeto prev o julgamento conforme o estado do processo, quando, ento, pode haver a extino do processo ou o julgamento antecipado do mrito. H, nesses casos, abreviao do rito, deixando-se de instaurar toda a fase instrutria e dispensando-se a realizao de audincia de instruo e julgamento.

No projeto do novo CPC, h tambm a previso do julgamento ante-cipado parcial do mrito, que ocorre quando um ou mais dos pedidos ou parcela deles mostrar-se incontroverso ou estivem em condies de imediato julgamento.

No sendo caso de julgamento antecipado do mrito, haver audincia preliminar para preparar a instruo. Nela o juiz, em cooperao com as partes, alm de resolver as questes processuais pendentes e especificar as questes de fato sobre as quais recairo as provas, ir definir a distribuio do nus da prova, podendo, ainda, delimitar as questes de direito relevantes para a deciso do mrito.

No bastasse isso, possvel haver acordos de procedimento e o calendrio processual, de forma que as partes podem convencionar, antes ou durante o

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processo, sobre seus nus, poderes, faculdades e deveres processuais. De co-mum acordo, o juiz e as partes podem estipular mudanas no procedimento, visando a ajust-lo s especificidades da causa, fixando, quando for o caso, o calendrio para a prtica dos atos processuais.

A isso tudo acresce que, no projeto do novo CPC brasileiro, generalizou-se a atipicidade da tutela antecipada, seja a conservativa, seja a satisfativa. Presentes os requisitos genricos para sua concesso, o juiz poder determinar arresto, sequestro, busca e apreenso ou qualquer outra medida conservativa. Tambm poder, presentes os requisitos genricos, conceder a tutela anteci-pada satisfativa. No haver mais requisitos casusticos, e exigentes, devendo a medida ser concedida a partir do preenchimento dos requisitos genricos. Apenas in concreto, a depender das peculiaridades do caso, que poder ser concedida a medida conservativa ou satisfativa.

Observa-se que o projeto do novo CPC permite a flexibilizao do pro-cedimento comum. O juiz pode julgar antecipadamente o mrito, de forma total ou parcial; pode conceder tutela antecipada, satisfativa ou conservativa; pode distribuir dinamicamente o nus da prova; pode delimitar as questes de direito que sero discutidas e enfrentadas no julgamento; pode, ainda e em conjunto com as partes, estipular mudanas no procedimento, com alterao, inclusive, dos prazos processuais.

4. difiCuldAde pArA CriAo de proCediMentos es-peCiAis no projeto do novo CpC

J se viu, no item 1 supra, que os procedimentos especiais so concebidos para determinadas hipteses, a fim de ajustar o processo ao direito material. A construo de procedimentos especiais resulta da limitao da cognio, ou da combinao de atividades que seriam, cada uma, exercida num procedimento, ou num encurtamento do procedimento, ou do acrscimo de uma fase, ou da supresso de uma etapa, ou da especificidade de uma prova.

O CPC de 1973 foi originariamente estruturado de maneira a que cada atividade judicial fosse desempenhada num processo especfico. Da haver um processo de conhecimento, um de execuo e um cautelar. No poderia haver a combinao de atividades no mesmo processo. Quando havia tal combinao, o procedimento era especial. o caso, por exemplo, da ao de nunciao de obra nova, que combina atividades diversas.

Com a generalizao da tutela antecipada como tcnica de julgamento e com a quebra daquela estrutura rgida que impedia a comunicao de ativi-

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dades diversas no mesmo processo, o juiz passou a poder combinar cognies diversas no mesmo procedimento.

Ao lado disso, e conforme j restou acentuado no item 3 supra, o procedi-mento comum, no projeto do novo CPC, flexvel, podendo haver adaptaes ao caso concreto e ajustes convencionais do procedimento.

Isso tudo dificultou a estruturao de procedimentos especiais. No impediu, entretanto, que houvesse procedimentos especiais no projeto do novo CPC. Alguns so mantidos por tradio e por necessidade, enquanto outros so criados com a finalidade de marcar a especificidade do direito ou a necessidade de determinada atividade ali presente. o caso das aes de famlia: o procedimento especial para as ao de famlia difere muito pouco do procedimento comum, mas sua especialidade est justamente na necessidade de registrar a necessidade e a importncia da realizao de atos destinados tentativa de autocomposio entre as partes, conforme ficar melhor explicitado no prximo item.

5. proCediMento espeCiAl pArA As Aes de fAMliA no projeto do novo CpC

Ao exercer a funo de casa revisora, a Cmara dos Deputados tomou a iniciativa de fazer incluir, no projeto do novo CPC, um captulo especfico dedicado ao procedimento especial para as aes de famlia.

As normas contidas no referido captulo aplicam-se aos processos conten-ciosos de divrcio, reconhecimento e extino de unio estvel, de guarda, de visitao e de filiao. No h previso de separao judicial, numa inequvoca demonstrao de que a Cmara dos Deputados tomou partido na discusso e considerou extinta a separao judicial.

Se, por um lado, no h previso, nas normas pertinentes ao procedi-mento especial das aes de famlia, da separao judicial, tambm no h, por outro lado, sua excluso expressa. Desse modo, para quem defende a manuteno, no sistema brasileiro, da ao de separao judicial, esta pode perfeitamente ser utilizada, com a adoo do referido procedimento. Os critrios de hermenutica permitem extrair do texto dos artigos dedicados ao procedimento especial para as aes de famlia a norma que contempla tambm a separao judicial.

Caber, enfim, doutrina e jurisprudncia definir se a ao de sepa-rao judicial ainda se mantm no ordenamento jurdico brasileiro. E, em

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caso positivo, havero de considerar inserida a separao judicial no mbito do mencionado procedimento especial.

As normas concernentes ao procedimento especial para as aes de famlia no abrangem a ao de alimentos. Esta continua a ser regida por legislao prpria, seguindo o procedimento especfico ali previsto. Tambm devem continuar a reger-se por legislao especfica as aes que veiculem interesse de criana ou adolescente. Subsidiariamente, aplicam-se as normas do pro-cedimento especial para as aes de famlia.

O projeto do novo CPC estabelece que, nas aes de famlia, sero empreendidos todos os esforos para a soluo consensual da controvrsia, devendo o juiz contar com o auxlio de profissionais de outras reas de co-nhecimento para a mediao e conciliao. Alis, o projeto do novo CPC, na parte geral, especificamente no 2 de seu artigo 3, que est contido no captulo relativo s normas fundamentais do processo, dispe que o Estado promover a autocomposio como meio alternativo para a soluo dos conflitos. A realizao de conciliao ou mediao dever ser estimulada por magistrados, advogados, defensores pblicos e membros do Ministrio Pblico, inclusive no curso do processo judicial.

Bem se v que constitui norma fundamental do processo a promoo da autocomposio, com estmulo mediao e conciliao. A propsito, oportuno consignar que h, no projeto do novo CPC, normas especficas sobre os mediadores e conciliadores e sua atuao, com a previso de que todos os tribunais criaro centros judicirios de soluo de conflitos e ci-dadania, responsveis pela realizao de sesses e audincias de conciliao e mediao, alm de desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposio.

Com funo didtico-pedaggica, o projeto do novo CPC, nos 3 e 4 do artigo 166, esclarece que o conciliador atuar preferencialmente nos casos em que no tiver havido vnculo anterior entre as partes, podendo su-gerir solues para o litgio, sendo vedada a utilizao de qualquer tipo de constrangimento ou intimidao para que as partes conciliem. J o mediador atuar preferencialmente nos casos em que tiver havido vnculo anterior entre as partes, auxiliando os interessados a compreender as questes e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicao, identificar, por si mesmos, solues consensuais que gerem benefcios mtuos.

Por a j se percebe que a mediao constitui o meio de autocomposi-o mais adequado para as aes de famlia, pois h, na grande maioria dos

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casos, vnculo anterior entre as partes. As tcnicas de mediao so as mais adequadas para a grande parte das questes que envolvem litgios de famlia.

Ainda segundo o projeto do novo CPC, o juiz, nas aes de famlia, poder, de ofcio ou a requerimento, determinar a suspenso do processo enquanto os litigantes submetem-se a mediao extrajudicial ou a atendi-mento multidisciplinar.

Nas disposies sobre a produo de provas, o projeto do novo CPC prev o exame psicolgico ou biopsicossocial. Embora inserido em disposies gerais, relativas a qualquer caso, sua aplicao s aes de famlia inegvel, sobretudo em casos relacionados com hipteses de alienao parental, ou de abuso, ou de violncia domstica, ou de dificuldade de convivncia.

Nesse exame, o laudo pericial deve ter por base ampla avaliao psicolgica ou biopsicossocial, conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes, exame de documentos do processo, histrico do rela-cionamento familiar, cronologia de incidentes e avaliao da personalidade dos sujeitos envolvidos na controvrsia. A percia h de ser realizada por profissional ou equipe multidisciplinar habilitados, exigida, em qualquer caso, aptido comprovada por histrico profissional ou acadmico.

Se a causa envolver a discusso sobre fatos relacionados a abuso ou alienao parental, o juiz, ao tomar o depoimento do incapaz, deve fazer-se acompanhar de especialista que o auxilie na conduo do interrogatrio.

O que marca o procedimento especial para as aes de famlia no projeto do novo CPC a obrigatoriedade da audincia de mediao ou conciliao. Essa audincia deve ocorrer igualmente no procedimento comum. Nesse pon-to, os procedimentos assemelham-se, de modo que, recebida a petio inicial, deve o juiz designar audincia de mediao ou conciliao, a ser realizada, preferencialmente, por centros de mediao e conciliao. A diferena est em que, no procedimento comum, possvel ser dispensada a audincia. J no procedimento especial para as aes de famlia a audincia obrigatria, no podendo ser dispensada.

Com efeito, a audincia de conciliao ou mediao, no procedimento comum, no ser realizada, se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composio consensual, ou se no se admite, no processo, a autocomposio. O detalhe que marca o procedimento especial para as aes de famlia a obrigatoriedade da audincia de mediao ou conciliao: haver sempre.

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Para estimular a conciliao ou mediao, h outro detalhe marcante no procedimento especial das aes de famlia: o mandado de citao conter apenas os dados necessrios para a audincia, no devendo estar acompanhado de cpia da petio inicial.

Significa que o ru, nas aes de famlia, deve ser citado, sem receber cpia da petio inicial. Ser apenas informado de que h uma audincia qual deve comparecer. O objetivo estimular a autocomposio, subtrain-do do ru o acesso aos termos da petio inicial, que, em aes de famlia, contm, muitas vezes, termos imprprios, acusaes exageradas, arroubos da impetuosidade decorrente do desgaste havido entre as partes, o que acirra os nimos e dificulta, seno impossibilita, a autocomposio.

certo que o advogado do ru ter acesso, antes da audincia, aos termos da petio inicial, podendo saber do que se trata. Cabe-lhe, entretanto, manter a prudncia e a discrio decorrentes da tica profissional, deixando de repassar ao cliente os exageros das afirmaes, das impropriedades, da impetuosidade, do aodamento e das angstias revelados na leitura da petio inicial.

As aes de famlia, no projeto, teriam, ento, um procedimento especial marcado pela ausncia de cpia da petio inicial no mandado de citao e, igualmente, pela obrigatoriedade da audincia de mediao ou conciliao. Procura-se estimular a autocomposio, que se revela como a melhor opo para disputas familiares e para a futura tranquilidade de todos os envolvidos no litgio.

A audincia de mediao ou conciliao poder dividir-se em tantas sesses quantas forem necessrias para viabilizar a soluo consensual, sem prejuzo de serem concedidas medidas judiciais destinadas a evitar o pereci-mento do direito.

A citao do ru, nas aes de famlia, h de ser realizada com antece-dncia mnima de quinze dias da data designada para a audincia, sendo feita, preferencialmente, por via postal. No CPC de 1973, vedada a citao postal nas aes de famlia, devendo ser feita por oficial de justia. No projeto do novo CPC, deixa de haver tal vedao. A citao s poder ser feita por via postal, se o citando por um incapaz, caso em que a citao realizar-se- por oficial de justia. No havendo incapacidade, a citao segue a regra geral da via postal. No h razo para no permitir a citao postal em aes de famlia. A presena do oficial de justia ostensiva, constituindo mais um complicador para a tentativa de soluo consensual da disputa, que, nesse caso, ainda mais prioritria. Ademais, a falta da cpia da petio inicial permite perfeitamente que a citao seja realizada por via postal.

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Feita a citao, haver a audincia de mediao ou conciliao. Na au-dincia, as partes devem estar acompanhadas de seus advogados ou defensores pblicos.

O Ministrio Pblico, nas aes de famlia, somente intervir quando houver interesse de incapaz. Nesses casos, o Ministrio Pblico ser ouvido antes da homologao de eventual acordo.

Frustrada a tentativa de autocomposio, o juiz determinar a intimao do ru, em audincia, pessoalmente ou na pessoa de seu advogado, para que oferea contestao, entregando-lhe, ento, cpia da petio inicial, passando, a partir da, a ser adotado o procedimento comum, com observncia da regra do nus da impugnao especificada dos fatos.

Se nem o ru nem seu advogado estiverem presentes audincia, a inti-mao para oferecimento da contestao deve ser feita por via postal ou por edital, se for o caso.

6. ConCluso

A Cmara dos Deputados acrescentou ao projeto do novo CPC o pro-cedimento especial para as aes de famlia, cujas disposies aplicam-se aos processos contenciosos de divrcio, reconhecimento e extino de unio est-vel, de guarda, de visitao e de filiao. No h previso de separao judicial.

Tal procedimento no alcana a ao de alimentos, que continua a se submeter ao procedimento especfico previsto em sua lei de regncia. De igual modo, tal procedimento no alcana as aes concernentes criana e ao adolescente.

As regras do procedimento comum servem para o procedimento espe-cial das aes de famlia. O detalhe deste ltimo est na obrigatoriedade da audincia de mediao ou conciliao, bem como na realizao de citao postal sem cpia da petio inicial; o propsito estimular a realizao de autocomposio pelas partes.

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ApelAo por instruMento: breve leiturA CrtiCA propostA ApresentAdA

no plC 8046/2010

Fernando da FonseCa gajardoni1

sumrio. 1. Introduo. 2. Justificativa da insero no Sistema da apelao por instrumento. 3. Crticas aos motivos determinantes da proposta: 3.1. A m compreenso do que seja o tempo morto do processo; 3.2. Falta de dados estatsticos. 3.3. A responsabilidade objeti-va como fator limitativo da execuo provisria. 4. Mais crticas: 4.1. Importao indevida de modelos estrangeiros; 4.2. Absoluta falta de conscincia ambiental; 4.3. Desnecessidade da mudana frente aos avanos do processo eletrnico; 4.4. Jurisprudncia defensiva e m--formao do instrumento; 4.5. Elevao do custo do processo; 4.6. Sucumbncia recproca; 4.7. Incompatibilidade da apelao por instrumento com a remessa necessrio. 4.8. A crtica maior: mais uma vez ignoramos a importncia do art. 24, XI, da Constituio Federal. 5. Concluso. 6. Bibliografia.

1. introduo

Os hbitos higinicos da populao mudam conforme a evoluo tec-nolgica e cientfica. Certamente os costumes de hoje so diferentes dos do passado. E tambm o sero no futuro.

Na idade mdia, na Europa, no se tomava um banho dirio (at pela inexistncia de gua encanada, duchas eltricas, banheiras de hidromassa-gem, etc.). Semanalmente, juntava-se uma quantidade de gua num grande recipiente e toda a famlia tomava banho naquela gua. Primeiro entrava o chefe da famlia. Depois os homens, devidamente escalonados por idade (dos mais velhos aos mais novos). A seguir, se banhavam as mulheres, tambm por idade. E, por ltimo, caso houvesse, as crianas e os bebs. A gua ao tempo

1. Professor Doutor de Direito Processual Civil da faculdade de Direito de Ribeiro Preto da USP (FDRP-USP) e do programa de Mestrado em Direitos Difusos e Coletivos da UNAERP (Univer-sidade de Ribeiro Preto). Doutor e Mestre em Direito Processual pela faculdade de Direito da USP (FD-USP). Juiz de Direito no Estado de So Paulo

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do banho do beb j estava to suja, que vem deste tempo o ditado recomen-dando cuidados para no jogar fora a gua do banho com a criana dentro.

Pois bem. A comisso de juristas que sustenta os trabalhos de depura-o do anteprojeto do Cdigo de Processo Civil na Cmara dos Deputados (PLC 8046/2010) sem embargo do carter democrtico e de ter o evidente propsito de contribuir e melhorar a qualidade do processo civil brasileiro , parece que no observou a recomendao que vem desde a Idade Mdia.

Com o pretexto de trocar a gua do banho, de renovar a sistemtica do recurso de apelao (estabelecendo que, doravante, a interposio do recurso se far por instrumento), acabou por jogar fora a gua do banho junto com o beb; em vez de se pensar em melhoria na estrutura judicial para o pro-cessamento das apelaes no padro atual (na gesto judicial), prope que se jogue fora todo um modelo (o beb) que bem vinha servindo aos propsitos a que se destinava.

Com efeito, a sistemtica proposta ao recurso de apelao no PLC 8046/2010 (no que interessa ao tema deste breve estudo) a seguinte:

Art. 1023. A apelao, interposta por petio perante o tri-bunal competente para julg-la, conter:

I os nomes e a qualificao das partes;

II os fundamentos de fato e de direito;

III o pedido de nova deciso.

1. No sendo eletrnicos os autos do processo, para fim de anlise do pedido de efeito suspensivo, o apelante ins-truir a petio de interposio do recurso com cpia das seguintes peas:

I sentena apelada;

II petio inicial, contestao, rplica, parecer do Ministrio Pblico, laudo pericial, se houver;

III certido de intimao da sentena ou de outro docu-mento que ateste a tempestividade do recurso;

IV qualquer outro documento que lhe parecer conveniente.

2 O apelante instruir a apelao com certido que ateste a inexistncia de qualquer dos documentos referidos no 1, a ser expedida pelo cartrio no prazo de vinte e quatro horas, independentemente do pagamento de qualquer despesa.

3 Caso falte alguma cpia, o apelante ser intimado a complementar a formao do instrumento em cinco dias, sob pena de no conhecimento do recurso.

FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

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4. No sendo eletrnicos os autos, o relator, se entender necessrio, requisitar ao juzo de primeiro grau a remessa imediata da ntegra dos autos do processo.

5. No caso previsto no 1 deste artigo, sendo interposta mais de uma apelao no mesmo processo, incumbe Secreta-ria do Tribunal unificar os autos, evitando duplicao de peas.

6 Para o exerccio do juzo de retratao, quando permi-tido, o apelante informar ao juzo que proferiu a sentena a interposio do recurso.

7 No sendo eletrnicos os autos, o apelante tem de juntar, no juzo que proferiu a sentena, a cpia da apelao, no prazo de trs dias a contar da sua interposio. O no cumprimento desta exigncia, desde que arguido e provado pelo apelado, importa inadmissibilidade da apelao.

Art. 1024. A apelao ser protocolada perante o tribunal competente para julg-la, interposta por via postal, por meio eletrnico ou por outra forma prevista em lei.

Pargrafo nico. Distribuda a apelao, o relator, se no for caso de rejeio liminar, declarar os efeitos em que a recebe e intimar o apelado para apresentar as suas contrarrazes; no sendo eletrnicos os autos, a intimao ser acompanhada da contraf da apelao.

Art. 1025. A apelao ser, em regra, recebida sem efeito suspensivo. Ser, todavia, recebida com este efeito, a reque-rimento do apelante, se o relator considerar que da imediata produo de efeitos da sentena poder resultar dano grave, de difcil ou impossvel reparao, sendo provvel o provi-mento do recurso.

1 Recebida a apelao sem efeito suspensivo, a sentena apelada comear a produzir os seus efeitos.

2 Alm de outras hipteses previstas em lei, comea a produzir efeitos, imediatamente aps a sua publicao, a sentena que:

I homologa diviso ou demarcao de terras;

II condena a pagar alimentos;

III extingue sem resoluo do mrito ou julga improcedentes os embargos do executado;

IV julga procedente o pedido de instituio de arbitragem;

V confirma, concede ou revoga tutela antecipada;

VI decreta a interdio.

3 O captulo da sentena que confirma, concede ou revoga a tutela antecipada impugnvel na apelao.

APELAO POR INSTRUMENTO: BREVE LEITURA CRTICA PROPOSTA APRESENTADA NO PLC 8046/2010

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O que se pretende demonstrar nos tpicos abaixo o quo desvantajosa a aprovao da proposta de introduo da apelao por instrumento no Brasil2. Afinal, em um processo imparcial de tomada de decises como se quer acreditar ser o de construo de um Novo3 Cdigo de Processo Civil , indispensvel que todos os atores afetados possam participar do debate (inclusive os juzes de carreira e os gestores das cortes de 2 grau); que seja possvel uma avaliao justa de todos os interesses, vantagens e desvantagens, implicados; e que apenas as decises discursivamente justificadas sejam acei-tveis, algo que no me parece acontecer no tema em debate.

2. justifiCAtivA dA insero no sisteMA dA ApelAo por instruMento

Os defensores da nominada apelao por instrumento, sustentam a via-bilidade da proposta, sinteticamente, sob trs fundamentos.

O primeiro, no sentido de que ao se determinar a interposio do recurso diretamente no Tribunal de 2 grau, diminui-se profundamente o tempo de tramitao do recurso de apelao e, por conseguinte, do processo. Sustentam uma estimativa de que haveria uma reduo em torno de 1/3 do tempo do processo, e que ao se encaminhar a apelao diretamente ao Tribunal, sem esperar a subida dos autos do processo como regra hoje, no haveria repre-samento da distribuio do recurso e encaminhamento dos autos ao relator.4

2. Proposta que vai muito alm da tese sustentada por alguns autores, de que partir do novo conceito de sentena introduzido pela Lei 11.232/2005 (art. 162, 1, do CPC/73), seria cabvel apelao por instrumento contra os pronunciamentos que, apesar de no findarem o procedimento em 1 grau de jurisdio, tivessem contedo previsto no art. 267 e 269 do CPC (v.g., o que reconhece a ilegitimidade de uma das partes e, quanto a ela, extingue o processo sem anlise do mrito; a deciso saneadora que reconhece a prescrio parcial da pretenso; a o pronunciamento judicial que indefere a inicial quanto a um dos pedidos; etc.). Alm de no concordar, em absoluto, com o conceito de sentena proposto a partir da leitura isolada do dispositivo vez que se sente, em interpretao sistemtica do CPC/73, ser da essncia deste tipo de pronunciamento ter ele o efeito de findar o procedimento em 1 grau de jurisdio , a recorribilidade destas decises interlocu-trias (tidas por alguns como sentenas) bem suportada pelo manejo do agravo de instrumento.

3. Novo, usado mesmo entre aspas, porque h fundada dvida de que estejamos mesmo diante da proposta de um novo Cdigo de Processo Civil. Afinal, conforme aguda crtica de Gregrio Assagra de Almeida e Luiz Manoel Gomes Jr., a proposta de aperfeioamento do sistema processual civil no rompe com o modelo ento vigente, mas sim prope uma reviso do que j temos hoje (Um novo Cdigo de Processo Civil para o Brasil. Rio de Janeiro: Gz Editora, 2010).

4. Consta expressamente do relatrio do Deputado Srgio Barradas Carneiro (PT-B), relator da pro-posta na Cmara: Inova-se, porm, em dois pontos: prev-se a interposio da apelao diretamente no tribunal e se modifica a regulamentao do efeito suspensivo desse recurso. A grande inovao pro-posta por este relatrio a respeito da apelao diz respeito ao modo de sua interposio. Esta passaria

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O segundo argumento em prol da apelao por instrumento seria o de evitar a interposio de recurso contra a deciso do juiz de primeiro grau que recebesse a apelao l interposta. De fato, na medida em que o recurso seria interposto, por instrumento, diretamente no Tribunal, o prprio relator do recurso (e no mais o juiz de primeiro grau) definiria em quais efeitos seria processado o apelo, o que, no sentir da Comisso, acabaria com eventuais agravos interpostos para controle do juzo de admissibilidade e atribuio de efeitos hoje corrente no primeiro grau.

O terceiro argumento alinhavado pelos defensores da proposta vem no sentido de prestigiar a sentena, em regra, como comando de eficcia imediata, criando vantagens para que o vencedor no 1 grau, desde logo, dar incio efetivao do julgado. Pois sendo a apelao ofertada por instrumento, per-maneceriam os autos em 1 grau, de modo que o vencedor poderia, salvo se atribudo efeito suspensivo ao apelo pelo 2 grau, dar incio execuo imediata, porm provisria, do julgado, sem necessidade de extrao de autos suplementares ou expedientes afins. Aumentando-se a facilidade material para a execuo provisria, ponderam os adeptos da ideia, aumentar-se-ia, por conseguinte, a sensao de eficcia dos comandos de primeiro grau.

3. CrtiCAs Aos Motivos deterMinAntes dA propostA

Cientificamente falando, as bases de sustentao da proposta da insero da apelao por instrumento no Brasil no me parecem slidas o suficiente.

3.1. A m compreenso do que seja o tempo morto do processo

Em estudo clssico sobre o tema, Vincenzo Vigoriti estabelece que a circunstncia temporal do processo pode ser analisada sob um duplo aspecto: um estrutural e outro funcional.

No aspecto estrutural, salienta o renomado processualista italiano que h tempos de espera e tcnicos; os tempos de espera (tempo morto), aqueles

a ser interposta diretamente perante o tribunal de segunda instncia, adotando-se um sistema que desde 1995 vem sendo adotado, com sucesso, para o agravo de instrumento (itlico nosso). Regula-se o modo como ser formado o instrumento da apelao no caso de no serem eletrnicos os autos: exige-se algumas peas, hiptese em que os autos originais ficaro com o juzo de primeira instncia e sero utilizados para a documentao dos atos referentes liquidao e ao cumprimento da sentena. Se o relator entender necessrio o envio da ntegra dos autos, requisit-los- ao juzo de primeira instncia. Com isso, acelera-se o processo substancialmente, aproveitando-se das facilidades que o processo em autos eletrnicos propicia.

APELAO POR INSTRUMENTO: BREVE LEITURA CRTICA PROPOSTA APRESENTADA NO PLC 8046/2010

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necessrios para que a causa ritualmente introduzida seja tomada em conside-rao (juntada de documentos, subida concluso, trnsito dos autos, etc.); os tempos tcnicos, aqueles necessrios instruo e deciso da demanda (prazo para alegaes, audincias, etc.).

Os primeiros (os tempos de espera) podem ser reduzidos atravs de mecanismos de conteno da demanda, modificao das leis de organizao judiciria e investimentos no Judicirio. Os segundos (os tempos tcnicos), atravs de alteraes na disciplina do processo.5

Portanto, estruturalmente falando, a acelerao do trmite processual de-pende da reduo dos tempos tcnicos e de espera do processo. E, para tanto, mister que medidas extraprocessuais (investimentos e gesto administrativa do Judicirio, alterao na organizao judiciria), extrajudiciais (mecanismos de conteno das demandas, como os meios alternativos de soluo das contro-vrsias) e judiciais (modificaes na disciplina do processo) sejam tomadas.6

Os defensores da apelao por instrumento sustentam que o interpor do recurso diretamente no Tribunal diminuiria, de modo acentuado, o tempo de processamento do recurso e, por conseguinte, do trmite do processo (estimado em 1/3).

5. Vincenzo Vigoriti, Costo e durata del processo civile: spunti per uma riflessione. Rivista di Diritto Civile, Padova, Cedam, v. 32, n 3, p. 322-324 (319-325), 1986.

6. Tratei exaustivamente desta questo em meu Tcnicas de Acelerao do Processo. Franca-SP: Lemos e Cruz, 2003, p. 60. Na ocasio, sustentei, ainda, que num amplo quadro