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Posições (efêmeras) de autoria e produção de sentido: estudos em um memorial de conceitos 1 (Ephemeral) positions of authorship and meaning translation: studies about a concept memorial Bianca de Paula Roque 2 Camila Camargo Prates 3 Margarete Axt 4 Resumo: Este trabalho é recorte da pesquisa intitulada Interação Dialógica em Ambientes Virtuais de Aprendizagem, vinculada ao Programa Interinstitucional Comunidades de Aprendizagem, Estética do Virtual e Autoria Coletiva (PROVIA/LELIC/UFRGS/CNPq). Objetivou-se apontar alguns percursos de construção conceitual e de sentido de um aluno que participou da disciplina Autoria Coletiva em Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AC-AVA) no curso de Especialização em Informática na Educação (ESPIE/CINTED/UFRGS), evidenciando posições (efêmeras) de autoria e produção de sentido. O aporte teórico-metodológico segue as apreciações sobre dialogismo (M.M.Bakhtin) e os apontamentos sobre interações dialógicas na EAD (M. Axt). O corpus de dados analisado foi um memorial de conceitos e uma proposta adaptada de mapa conceitual elaborados pelo aluno na disciplina. Esses dados reverberam o modo de ensino-aprendizagem proposto na disciplina e apontam uma autoria relativa que emerge em momentos pontuais, não como atributo de um sujeito (autor), mas como posição de enunciação, ligada ao contexto no qual esta enunciação foi proferida, não como uma propriedade de alguém, mas como uma estética da linguagem, um modo de expressar, uma originalidade: acabamento estético derivado de um momento de excedente de visão e de tentativa de conclusibilidade. Palavras-chave: Posições de Autoria; Produção de Sentido; Educação a distância. Abstract: This study is part of the research entitled Dialogical Interaction at Virtual Learning Environments linked to PRO-VIA- Interinstitutional Learning Communities Program, Aesthetics of Virtual and Collective Authorship (PROVIA/LELIC/UFRGS/CNPq). Aimed to point out some paths of conceptual construction and meaning of a student who participated in the discipline Collective Authorship at Virtual Learning Environments (AC-AVA), in a Specialization course in computer science education (ESPIE/CINTED/UFRGS), showing (ephemeral) positions of authorship and production of meaning. The theoretical-methodological contribution follows dialogism (M.M.Bakhtin) and the notes on dialogical interactions in EAD (M. Axt.). The corpus analyzed was a memorial of concepts and a proposal adapted conceptual map developed by the student at the discipline. These data shows the way of teaching and learning that is proposed in the discipline and points a relative authorship which appears on specific moments, not as an authorship of someone, but as a position of enunciation, connected to the context in which this enunciation was given, not as a property of somebody, but as an aesthetic language, a way to express, an originality: finishing aesthetic derived from a surplus of vision and try of conclusion. Keywords: Positions of Authorship; Production of Meaning; Distance education. Estudos a respeito da educação à distância ganham cada vez mais espaço no contexto educacional atual. Disciplinas promovidas em ambientes telemáticos (a 1 Este estudo liga-se ao Projeto Interinstitucional PRO-VIA, o qual integra o LELIC/UFRGS, que busca mapear efeitos do emprego de tecnologias digitais em distintos campos empíricos e contextos, delineando a emergência, nestas circunstâncias, de modos particulares de subjetivação, no plano da produção de sentido e da autoria, das aprendizagens e da construção do conhecimento. 2 Pesquisadora do LELIC, graduada em Pedagogia/UFRGS. [email protected] 3 Pesquisadora do LELIC, graduanda em Pedagogia/UFRGS. [email protected] 4 Docente nos Programas PPGIE/UFRGS e PPGEDU/UFRGS, coordenadora do Laboratório de Estudos em Linguagem, Interação e Cognição, LELIC/UFRGS, pesquisadora do CNPq. [email protected]

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Page 1: estudos em um memorial de conceitos1 (Ephemeral) … · conceptual construction and meaning of a student who participated in the discipline Collective Authorship at Virtual Learning

Posições (efêmeras) de autoria e produção de sentido:

estudos em um memorial de conceitos1

(Ephemeral) positions of authorship and meaning translation: studies

about a concept memorial

Bianca de Paula Roque

2

Camila Camargo Prates3

Margarete Axt4

Resumo: Este trabalho é recorte da pesquisa intitulada Interação Dialógica em Ambientes Virtuais de

Aprendizagem, vinculada ao Programa Interinstitucional Comunidades de Aprendizagem, Estética do

Virtual e Autoria Coletiva (PROVIA/LELIC/UFRGS/CNPq). Objetivou-se apontar alguns percursos de

construção conceitual e de sentido de um aluno que participou da disciplina Autoria Coletiva em

Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AC-AVA) no curso de Especialização em Informática na

Educação (ESPIE/CINTED/UFRGS), evidenciando posições (efêmeras) de autoria e produção de sentido.

O aporte teórico-metodológico segue as apreciações sobre dialogismo (M.M.Bakhtin) e os apontamentos

sobre interações dialógicas na EAD (M. Axt). O corpus de dados analisado foi um memorial de conceitos

e uma proposta adaptada de mapa conceitual elaborados pelo aluno na disciplina. Esses dados reverberam

o modo de ensino-aprendizagem proposto na disciplina e apontam uma autoria relativa que emerge em

momentos pontuais, não como atributo de um sujeito (autor), mas como posição de enunciação, ligada ao

contexto no qual esta enunciação foi proferida, não como uma propriedade de alguém, mas como uma

estética da linguagem, um modo de expressar, uma originalidade: acabamento estético derivado de um

momento de excedente de visão e de tentativa de conclusibilidade.

Palavras-chave: Posições de Autoria; Produção de Sentido; Educação a distância.

Abstract: This study is part of the research entitled Dialogical Interaction at Virtual Learning

Environments linked to PRO-VIA- Interinstitutional Learning Communities Program, Aesthetics of

Virtual and Collective Authorship (PROVIA/LELIC/UFRGS/CNPq). Aimed to point out some paths of

conceptual construction and meaning of a student who participated in the discipline Collective Authorship

at Virtual Learning Environments (AC-AVA), in a Specialization course in computer science education

(ESPIE/CINTED/UFRGS), showing (ephemeral) positions of authorship and production of meaning. The

theoretical-methodological contribution follows dialogism (M.M.Bakhtin) and the notes on dialogical

interactions in EAD (M. Axt.). The corpus analyzed was a memorial of concepts and a proposal adapted

conceptual map developed by the student at the discipline. These data shows the way of teaching and

learning that is proposed in the discipline and points a relative authorship which appears on specific

moments, not as an authorship of someone, but as a position of enunciation, connected to the context in

which this enunciation was given, not as a property of somebody, but as an aesthetic language, a way to

express, an originality: finishing aesthetic derived from a surplus of vision and try of conclusion.

Keywords: Positions of Authorship; Production of Meaning; Distance education.

Estudos a respeito da educação à distância ganham cada vez mais espaço no

contexto educacional atual. Disciplinas promovidas em ambientes telemáticos (a

1 Este estudo liga-se ao Projeto Interinstitucional PRO-VIA, o qual integra o LELIC/UFRGS, que busca

mapear efeitos do emprego de tecnologias digitais em distintos campos empíricos e contextos, delineando

a emergência, nestas circunstâncias, de modos particulares de subjetivação, no plano da produção de

sentido e da autoria, das aprendizagens e da construção do conhecimento. 2 Pesquisadora do LELIC, graduada em Pedagogia/UFRGS. [email protected]

3 Pesquisadora do LELIC, graduanda em Pedagogia/UFRGS. [email protected]

4 Docente nos Programas PPGIE/UFRGS e PPGEDU/UFRGS, coordenadora do Laboratório de Estudos

em Linguagem, Interação e Cognição, LELIC/UFRGS, pesquisadora do CNPq. [email protected]

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distância) ganham destaque devido às características das tecnologias computacionais:

acesso rápido às informações e existência de um modo de comunicação que rompe com

a presencialidade corporal, o que nos parece corresponder às demandas de uma

sociedade pós-moderna. Algumas metodologias de ensino-aprendizagem buscam

formas de ampliação dos conhecimentos dos alunos, para que eles não apenas decorem

os conceitos trabalhos em aula, mas que consigam transcender seus entendimentos a

cerca destes conceitos para além da sala de aula.

Neste artigo, procurou-se estabelecer relações entre autoria e processos de

ensino-aprendizagem de uma disciplina realizada nessa modalidade de educação à

distância (EAD). A proposta deste estudo é apontar alguns percursos de construção

conceitual e de sentido de um aluno que participou da disciplina Autoria Coletiva em

Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AC-AVA), no curso de Especialização em

Informática na Educação (ESPIE/CINTED/UFRGS), evidenciando posições de autoria.

AC-AVA, interação dialógica e metodologia da pesquisa

A disciplina AC-AVA foi realizada predominantemente à distância na

plataforma virtual TelEduc5, da qual utilizaram:

Ambiente síncrono para discussão: os chats;

Ambiente assíncrono: os fóruns;

Portfólio para postagens de trabalhos (memorial de conceitos e mapas

conceituais);

Correio para postagens rápidas.

Fez-se uso também do Equitext6, ferramenta utilizada para a construção de

narrativas coletivas, e do Forchat7. A disciplina objetivou problematizar os conceitos de

autor, leitor e texto por um viés bakhtiniano.8

O corpus de dados utilizado nesta pesquisa é um memorial de conceitos e uma

proposta adaptada de mapa conceitual9, que foram trabalhos exigidos na disciplina,

5 O TelEduc é um ambiente para realização de cursos a distância através da Internet. Está sendo

desenvolvido no Nied (Núcleo de Informática Aplicada a Educação) sob a orientação da Profa. Dra.

Heloísa Vieira da Rocha do Instituto de Computação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas),

a partir de uma metodologia de formação de professores construída com base na análise das várias

experiências presenciais realizadas pelos profissionais do núcleo. O ambiente é parte integrante da

dissertação de mestrado "Formação a Distância de Recursos Humanos para Informática Educativa" de

autoria de Alessandra de Dutra e Cerceau. O Nied, como uma de suas linhas de pesquisa, tem realizado

diversos cursos a distância através do TelEduc desde 1998, acompanhando progressivamente o

desenvolvimento do ambiente. Servidor: teleduc.cinted.ufrgs.br. Versão 3.3.8. Pagina na Web:

http://teleduc.cinted.ufrgs.br/pagina_inicial/index.php 6 http://equitext.pgie.ufrgs.br

7 Ferramenta de comunicação síncrona e assíncrona desenvolvida no Laboratório de Estudos em

Linguagem, Interação e Cognição da Faculdade de Educação – UFRGS. O Forchat funde, num mesmo

espaço, simultaneamente, as funções de Chat, Fórum e Mural. Sua estrutura visa impulsionar e

potencializar os processos de produção de autoria, envolvendo a emergência de novos sentidos, bem

como uma construção conceitual, continuamente realimentada a partir de novas contribuições, tornando

visíveis novas e sutis diferenciações, novas e mais ricas composições:

http://www.lelic.ufrgs.br/forchat/index.htm 8 Vale destacar que a obra do autor M. Bakhtin fundamenta a metodologia interacional dialógica utilizada

pelas formadoras na disciplina, bem como é proposta de estudos da disciplina, além de ser de base

teórico- metodológica para esse trabalho. 9 A expressão mapas conceituais foi inspirada na proposta de J. D. Novak, embora, nesta pesquisa,

cumpram uma função um pouco diferente. Enquanto, na proposta de Novak, vinculada a uma abordagem

piagetiana, compreende-se os mapas como uma representação visual do conhecimento e preocupa-se com

as relações lógicas, semânticas, inclusive hierárquicas entre um dado grupo de conceitos, nesta pesquisa,

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servindo então de subsídio tanto para a construção do processo de aprendizagem

realizado pelo próprio aluno (retomando seu processo de aprendizado ao longo da

disciplina e refletindo sobre ele) quanto para estas análises.

De acordo com a proposta teórico-metodológica da disciplina, entendemos um

memorial de conceitos como um trabalho de caráter intimista, mais pessoal, diferente de

um resumo dos textos utilizados, por exemplo, ou um artigo com caráter dissertativo.

Nele o aluno precisa, durante todo o decorrer da disciplina, problematizar sua trajetória

e seus aprendizados, analisando conjuntamente os conceitos trabalhados na disciplina.

Já o mapa conceitual pode ser compreendido como uma representação esquemática

visual: ele mostra conceitos que cada aluno selecionou como significativos, a partir das

leituras e discussões realizadas; ou ainda, algum novo conceito que tenha emergido

desses movimentos de reflexão, possibilitando a transcrição para o “plano material” de

uma espécie de mapa mental dos percursos de aprendizagem. Tanto o mapa quanto o

memorial, foram elaborados paralelamente, e entregues ao grupo de formadoras em

diferentes momentos previstos no plano da disciplina.

Vale salientar que a referida disciplina transcorreu sob a metodologia da

interação dialógica10

. Essa metodologia difere das correntes pedagógicas ditas

progressistas ou tradicionais, porque as bases que sustentam tais perspectivas estão

alicerçadas em um entendimento de sujeito e linguagem que divergem da corrente da

metodologia em questão, estando mais próxima de uma visão pós-estruturalista. A

linguagem deixa de ser um meio estável e eficiente de se estabelecer comunicação. No

âmbito específico da EAD, ao qual pesquisamos, professores costumam transmitir

determinados conhecimentos preocupando-se com alunos que “respondem ou não

respondem”, se os alunos estão ou não aprendendo. Isso ocorre porque tais

metodologias, apesar de já pensarem na heterogeneidade de cada aluno nos seus modos

de aprender, ainda promovem práticas pedagógicas que se engendram na construção de

um sentido único e puro, do qual todos (professores e alunos) devem conhecer. As

palavras, apesar de terem um sentido que pode ser comum, em um determinado

contexto, em um diálogo, não produzem um significado único. Assim como a

metodologia da disciplina, entendemos que não exista um destinatário utópico,

onipresente. Na metodologia interacional dialógica, a interação não se dá pelos

sujeitos11

, mas como o próprio nome já pontua, pelos diálogos. O corpo orgânico strito

sensu sofre um importante deslocamento para uma interação “através dos discursos ou

entre os discursos.” (AXT, 2006, p.206).

Essa metodologia, bem como o quadro metodológico desta pesquisa, segue as

apreciações sobre dialogismo (M. Bakhtin) e os apontamentos sobre interações

dialógicas na EAD (M. Axt). Tudo porque ambos colocam o conceito de dialogismo

como alicerce de todas as relações, ou seja, colocam o diálogo como modo de relação

possível em todo tipo de comunicação, que não se limita apenas a uma conversa verbal,

face a face, mas entre uma pessoa e um texto, por exemplo. Para Bakhtin, o outro tem

compreendem-se os mapas como constelações conceituais, vinculados a uma abordagem baktiniana.

Entende-se que os conceitos se ligam pelas relações de sentido e não se instituem sozinhos ou

isoladamente, um conceito se estabelece sempre na relação com outros conceitos, na corrente ou no fluxo

dialógico do pensamento e da comunicação marcada por um contexto específico. 10

AXT, Margarete. ELIAS, Carime Rossi. COSTA, Janete Sander. SOL, Elena Lídia. SILVEIRA,

Paloma Dias. Interação dialógica: uma proposta teórico-metodológica em ambientes virtuais de

aprendizagem. In: RENOTE: revista novas tecnologias na educação [recurso eletrônico]. Porto Alegre,

RS. Vol. 4, n. 1 (jul. 2006), [10 p.] 11

O sujeito, nesta vertente teórica, deixa de ser o centro e a existência de uma consciência humana, fonte

de toda significação e ação, passa a ser compreendida como uma invenção social. O sujeito passa a ser

categorizações e divisões estabelecidas pela linguagem e pelo discurso.

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papel fundamental na constituição da existência do homem enquanto sujeito social,

porque ele não existe fora de suas relações com o outro, fora de diálogos.

Junto ao conceito de dialogismo, Bakhtin (2006) introduz o conceito de

enunciado entendido como unidade real da comunicação que se diferencia da frase e da

oração porque é vivo, é delimitado pela alternância dos sujeitos, e é dependente do

contexto em que foi proferido. Se o aluno disse no chat: “Preciso de ajuda”, e repete a

mesma frase em seu memorial, por exemplo, não pode ser considerado o mesmo

enunciado, pois estão em contextos diferentes. O enunciado é único e tem relação com

outros enunciados alheios, depende sempre da resposta de outro, pois todo o enunciado

é dirigido a alguém, e procede de um enunciado anterior a ele.

Entendeu-se, tanto na disciplina, pelas formadoras, quanto nesta análise, pelas

pesquisadoras, que um memorial de conceitos é formado por cadeias dialógicas de

enunciados que dialogam entre si. Sabe-se que o texto do aluno, não é puro porque ele

dialogou com outros textos para redigi-lo, conversou com outras pessoas, (con)viveu em

outros meios onde “apreendeu” estes e outros conhecimentos. As formadoras desta

disciplina, ao fazerem uma leitura atenta do texto do aluno, dialogam com o texto

(escrevendo em outra cor no corpo do memorial), visando estabelecer relações a partir

dos conceitos da disciplina sobre a produção existente, mas evitando cair numa atitude

impositiva, que “apagaria” os processos de produção de sentido estabelecidos neste

texto. As formadoras são parte constitutiva da produção, mas são descentradas da

posição de detentoras das respostas. Logo, todos os memoriais da disciplina, apesar de

trabalharem sobre os mesmos conceitos e com os mesmos textos, foram diferentes.

Na pesquisa realizada, nós pesquisadoras passamos também a dialogar com o

texto, e não há como se estabelecer a tradução fiel do que o aluno quis dizer, porque na

medida em que o memorial é lido, fazemos relações, a partir da nossa historicidade e

produzimos sentidos que não são os mesmos produzidos por esse aluno, nem os

mesmos produzidos pelas formadoras. Neste contexto, não há como haver neutralidade

na pesquisa. Hoje, se o próprio aluno relesse seu texto, ele já não seria mais o mesmo,

produziria outros sentidos a partir desse texto, porque já dialogou com outros textos, já

teve outras experiências. Aceitando que a subjetividade está sempre implicada na

pesquisa, se propôs estabelecer um diálogo entre o memorial e os textos que o estudam.

Utilizamos nossas historicidades (a bagagem de leituras, as experiências), enquanto

pesquisadoras, para realizar a leitura do memorial do aluno, no qual se procurou fazer

um deslocamento deste lugar de pesquisadoras e reconhecer o lugar do aluno, de onde

fala/ escreve e para quem dirige seu texto/ enunciado (ou seja, como aluno que escreve

para uma equipe de formadoras).

Autoria e memorial de conceitos

Diante da análise dos sujeitos pela linguagem, nesta pesquisa, vê-se a queda do

sujeito racional, guiado por razão, no qual a linguagem apenas seria o meio de

exteriorizar a consciência deste sujeito. Para Bakhtin, o sujeito é social e produzido pela

linguagem, só existindo no plano dos discursos. Perante esse deslocamento, no

movimento do aluno ao escrever seu memorial, o conceito de autoria proposto por

autores como M. Bakhtin e M. Foucault destitui o individuo (o autor) como proprietário

do que escreve, instituindo a autoria como um fenômeno complexo, explicado através

de outras denominações como autor-criador (Bakhtin) e função autor (Foucault). Apesar

de os autores terem trajetórias conceituais diferentes, ambos podem ser colocados em

relação, na medida em que estabelecem uma ressignificação do papel do indivíduo

como autor dos discursos.

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Nem sempre o texto foi compreendido como um bem ou produto. De acordo

com Juciane Cavalheiro (2008), na Antiguidade, os contadores não se importavam em

transmitir um modelo, pelo contrário, os contadores modificavam a história de acordo

com a sua vontade. Foucault (2002) na obra “O que é um autor” aponta que a

necessidade efetiva de se ter um responsável pela obra se dá a partir da Idade Média,

quando o autor torna-se “passível de ser punido” (p.47). Na época, autoridades políticas

e religiosas passaram a censurar os discursos considerados transgressores, e a

identificação dos textos era imprescindível para se condenar os responsáveis, o que

fazia o ato de autorar ser carregado de riscos. Com o surgimento do regime de

propriedade sobre os textos, promulgam-se, também, regras para estabelecer os direitos

do proprietário, dos editores, da reprodução e etc. (ibidem).

Diante desse contexto, a função autor vem a caracterizar o “modo de existência,

de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”

(idem, p.46). Foucault assinala que apesar de, inicialmente, a autoria ser marcada por

uma função de coação, posteriormente, ela promove uma legitimidade das informações

científicas e da produção literária, e constrói “um certo ser racional a que chamamos de

autor” (idem, p.50). E, no ato de apontar o autor como um constructo social, para se

caracterizar um modo de ser dos discursos, Foucault declara um desaparecimento do

autor proprietário da obra, já que toda palavra está dentro de um sistema da linguagem,

não há como se pronunciar palavras que nunca foram ouvidas/ ditas.

Nesse contexto, em que o sujeito passa a não ser mais dono do seu próprio dizer,

ao pensarmos na produção do memorial pelo aluno e na proposta deste artigo, o que se

pode estabelecer são posições relativas de autoria, não como uma propriedade de

alguém, mas como uma posição de enunciação ligada ao contexto em que foi proferida

e marcada por um excedente de visão do autor–criador12

. O processo de aprendizagem

do aluno está estritamente ligado a produção de sentidos e posições de autoria.

Compreendemos a aprendizagem como um processo interacional e interdependente de

outro (interlocutor/ texto), no qual o aluno, conseguindo estabelecer relações entre os

enunciados, dialogando, estabelece posições enunciativas, autora.

A escolha do memorial analisado foi aleatória, uma vez que o que está em

análise são a metodologia e os deslizamentos de sentido deste aluno em específico,

assim como poderia ser de qualquer outro aluno da disciplina, pois ocorreu uma única

disciplina, porém os deslizamentos de cada aluno foram particulares e diversificados.

Nosso intuito é traçar alguns percursos dos deslizamentos de sentido ocorridos neste

trabalho, a partir dos conceitos utilizados na disciplina referentes a texto, autor e leitor.

Vale mencionar que o memorial do aluno foi analisado em sua integra e, para

auxiliar na compreensão da trajetória do sujeito, também utilizamos as suas escritas nos

fóruns e chats. Neste artigo mostraremos trechos relevantes de toda a escrita do referido

aluno na disciplina, nos quais encontramos escopo para o que foi até aqui exposto.

Mapa conceitual

12

Para Bakhtin (2006), o autor criador só pode ser definido dentro da própria enunciação, a voz do autor

criador não é a de um autor (indivíduo), mas “um ato de apropriação refratada de uma voz social qualquer

de modo a poder ordenar o todo estético” (FARACO, 2005, p.40), porque “a palavra atua como uma

expressão de certa posição valorativa do homem indivíduo.” (BAKHTIN, 2006, p.288). Assim, o autor

criador é uma posição axiológica, porque refrata modos peculiares desse sujeito compreender o mundo,

mas refratante na medida em que ocorre um complexo jogo de reordenamento e recorte de discursos

sociais para mostrar esses ângulos de visão (excedente de visão). Nesse ato criativo de organizar o todo

estético, a partir do excedente de visão há uma tentativa de conclusibilidade, devido a uma atitude-

responsiva de todo interlocutor de responder a alguma coisa e na espera de uma resposta.

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O fio condutor que o aluno utilizou no mapa conceitual foi Comunidades

Virtuais de Aprendizagem (CVA), o que se acredita ser do interesse do aluno, pois sua

formação acadêmica é na área da educação. O mapa é como “uma rede”, na qual cada

enunciado se conecta (mais de uma vez) com outro, podendo se estabelecer diversas

relações e produções de sentido com a mesma palavra.

Os conceitos que o aluno utilizou no mapa foram: texto, relações dialógicas,

alteridade, autoria coletiva, diálogo, coletivo, individual, vozes, ação colaborativa e

ferramentas de interação. Lembramos que nosso olhar voltou-se para os conceitos mais

utilizados pelo aluno13

, ou sobre os quais ele fez mais questionamentos, quais sejam:

alteridade, autor e texto.

Memorial de conceitos

RECORTE 1 - análise do primeiro subtítulo do memorial do aluno: “Conceitos

mais simples, mas não menos importantes”

Ao intitular a passagem de “conceitos simples”, o aluno parece se sentir a

vontade com os conceitos abordados neste subtítulo. No transcorrer da introdução,

percebe-se que ele destaca o conceito pontos de deriva que vai se somando com outros

conceitos no memorial como: alteridade, ferramentas de interação coletiva, discurso

dialógico, discurso monológico, conforme excerto abaixo:

Pontos de deriva: São falas marcadas pelas reticências, pelos pontos de interrogação onde são

abertas possibilidades para inserção de outros sentidos diferentes do sentido vigente, ou seja, abrem-se

outras possibilidades para o autor desenvolver o seu pensamento e muitas vezes fugir daquilo que ele

pensara/havia criado ao elaborar o texto. São momentos para reflexão do leitor. [...]

Sabe-se que as ferramentas Equitext e Forchat proporcionam práticas pedagógicas que

incentivam a aprendizagem e transformam a dinâmica de ensino a partir da utilização das máquinas

13

No decorrer do artigo o estudante analisado será chamado de “aluno”, para preservar seu anonimato. Os

outros alunos que forem citados receberão a letra inicial dos seus nomes.

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tecnológicas no processo educacional, permitindo que o aprendiz aperfeiçoe o seu interesse e

participação no processo de aprendizagem. Sendo a reflexão uma dessas possibilidades. Através deste

estudo, foi possível constatar que as pausas, marcadas no texto pelas reticências e outras formas de

pontuação, representam um espaço indeterminado, de transição, de incertezas, consistindo numa

abertura para que sentidos paralelos aos vigentes possam ser inscritos. Configurando lugares para

inserção de outros sujeitos na narrativa, tais marcas parecem relacionar-se à especificidade deste texto

de autoria coletiva, no qual o não - um é uma condição do estabelecimento do um. O Equitext tem muito

a nos mostrar, além de nos ensinar que na escrita o outro é muito importante. As marcas lingüísticas de

não-dito, paralelamente ao dito, denunciam a heterogeneidade presente na língua.

Ele inicia explanando sobre o conceito pontos de deriva que, conforme o texto

“Era uma vez...”, são as marcas (pontos de interrogação, reticências) nos enunciados

que possibilitam brechas para inserção de outros sentidos, possibilitam identificar

marcas de heterogeneidade, criatividade, deslocamentos de sentido. Esse conceito é

vinculado pelo aluno às participações nas ferramentas Forchat e Equitext que foram

utilizadas ao longo da disciplina. Faz uma abordagem referente à dinâmica das

ferramentas de interação coletiva que promovem a reflexão e o interesse dele pela sua

aprendizagem. Essas especificidades das ferramentas que representam condições

favoráveis para a negociação de idéias/sentidos, a cooperação, o respeito às

individualidades, os tempos e limites de cada um, são características de uma educação

contemporânea que vem ao encontro da formação acadêmica do aluno na área da

educação e seu fascínio pela obra de Paulo Freire.

Percebe-se o deslizamento de sentido quando ele relaciona conceito pontos de

deriva, conceito ferramentas de interação coletiva (Equitext e Forchat) e conceito

alteridade, no momento em que menciona a importância do outro, de colocar-se no

lugar desse outro na relação interpessoal considerando-o, valorizando-o. Segundo

Bakhtin (2006), apenas no intermédio do outro haverá a possibilidade do diálogo, de

pontos de deriva e de autoria já que, é preciso deslocar-se para o lugar desse outro, ver o

mundo pelos seus olhos e retornar a si mesmo, enriquecido pela viagem para constituir a

própria identidade, crenças e novas aprendizagens.

Neste trecho, percebe-se que o conceito autoria fica subentendido (não-dito), já

que a autoria conforme Bakhtin (2006) aparentemente se inscreve nas brechas do texto.

Por entre essas marcas linguísticas é que se promove a criação, a invenção, sempre a

partir de algo que não foi dito, que não foi escrito.

Aqui, inicia-se novo parágrafo no memorial. Percebe-se que há um salto no

texto:

Já o Discurso monológico é o discurso de uma só voz. A abordagem de Bakhtin é dialógica/ polifônica. A

construção da linguagem é interindividual, a partir do cruzamento de discursos do emissor e do receptor

e envolvem uma carga de sentidos ideológicos, culturais, acumulados em casa palavra, e aqui entra a

intersubjetividade.

Há uma lacuna, falta uma ponte de ligação entre o conceito de alteridade e o

conceito de discurso monológico. Nesse parágrafo, o aluno destaca o conceito discurso

dialógico/ polifônico em “abordagem de Bakhtin é dialógica/ polifônica” que são as

várias vozes, de diferentes gêneros textuais, de diferentes interlocutores presentes no

enunciado. Segundo Bakhtin (2006),

[na] relação criadora com a língua não existe palavras sem voz, palavras de

ninguém. Em cada palavra há vozes às vezes infinitamente distantes,

anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.),

quase imperceptíveis e vozes próximas que soam concomitantemente. (p.330)

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Para Bakhtin (2006), toda fala, todo discurso é dialógico, podendo ser

monofônico ou polifônico. O discurso monológico não quer dizer que tenha apenas uma

única voz, mas que uma das vozes seja dominante, não permitindo uma abertura para

outras. O discurso monológico pode ser entendido como discurso autoritário, no qual,

abafam-se as vozes, escondem-se os diálogos, e passa a ser entendido como verdade

única, absoluta e incontestável (BARROS, 2007). Entretanto, para Bakhtin (2006), até

mesmo no discurso mais autoritário e monológico “estão presentes relações dialógicas”

(p.332), no plano da constituição da linguagem.

No enunciado do aluno, porém, os sentidos produzidos para o conceito de

discurso monológico deslizam de forma diversa da pensada pelo autor Bakhtin ao

mencionar que “o discurso monológico é o de uma única voz”. É importante destacar

que, apesar de o sentido do conceito do aluno não condizer com o que o autor propôs,

não quer dizer que não houve um aprendizado, uma vez que tratamos de um leitor

iniciante na lingüística, mas que os sentidos produzidos por ele foram ao encontro de

outros conceitos. A palavra monólogo, por exemplo, de acordo com o dicionário14

significa “discurso de uma só pessoa”.

Infere-se que a analogia que o aluno faz do conceito discurso monológico possa

ter relação com a proposta de ensino-aprendizagem de Paulo Freire e a crítica que esse

autor faz quanto ao monologismo da comunicação em sala de aula na produção de

conhecimento. Tudo porque, conforme já foi mencionado, o aluno tem graduação na

área da educação e parece expor uma afinidade com as obras de Paulo Freire. Apesar de

a proposta freiriana defender o respeito à cultura do aluno, evitando impor saberes que

não lhe fazem sentido, instituindo ao professor uma posição de respeito ao outro

(MORAES, 2006) a linguagem na obra de Paulo Freire, ainda é compreendida como

meio fidedigno na transmissão do conhecimento. A metodologia da interação dialógica

respeita este saber do aluno.

RECORTE 2 - análise do segundo subtítulo do memorial do aluno: “Os conceitos

mais complexos que me fizeram refletir. Estes conceitos me afetaram mais e

conseqüentemente se tornaram mais significativos para mim.”

Para o aluno, os conceitos “mais complexos” parecem ser aqueles que ele não

estava familiarizado, os que produziram divergência de sentidos e que, portanto, foram

mais “trabalhosos”, desprenderam mais de sua atenção. Nessa parte do memorial, o

aluno afirma ter mudado seus paradigmas quanto o conceito de texto.

No memorial ele descreve todo o seu processo de elaboração do conceito,

justapondo as falas dos colegas e formadores, dialogando com esses enunciados no

memorial. Esse modo de construção nos faz inferir que o aluno compreendeu não só

como elaborar um memorial (no que diz respeito a realizar uma trajetória, um

mapeamento da própria aprendizagem), mas apontar o processo de aprendizagem

proposto pela metodologia da interação dialógica, no qual a autoria coletiva é modo de

construção conceitual entre sujeitos do discurso.

O trecho a seguir interessou as pesquisadoras, pois o aluno demonstra

inquietude, expõe uma dúvida:

14

http://www.dicionariodoaurelio.com/Monologo. Acesso em 22/07/2010.

Page 9: estudos em um memorial de conceitos1 (Ephemeral) … · conceptual construction and meaning of a student who participated in the discipline Collective Authorship at Virtual Learning

O texto, “Estética da criação verbal” de Mikhail Bakhtin, na página 331, diz o seguinte: “Não

há textos puros, nem poderia haver.” Essa citação incomodou-me muito, causou-me algumas dúvidas e

conflitos15

.

Procurou-se destacar do memorial três mensagens retiradas da ferramenta

assíncrona de interação (fórum). Segundo o aluno, a mensagem da formadora contribuiu

para sua aprendizagem lhe esclarecendo sua dúvida:

Aluno: "Acredito que existem textos puros. Por exemplo, quem foi a primeira pessoa no universo que

falou, escreveu e/ou comentou sobre a água, este texto, por exemplo, não seria um texto puro? Quem foi

a primeira pessoa que comentou, falou e/ou escreveu sobre o gás carbônico? Este texto, elaborado por

esta pessoa, não seria um texto puro? Pois, sendo eles o primeiro escritor a comentar, falar e/ou escrever

sobre estes assuntos, são idéias dele, criadas por ele, sem ter lido nem escutado nada sobre este assunto,

porque foram idéias deste autor. Ou seja, ele escreveu isto sem ter escutado outras vozes... Por isso,

acredito que este tipo de texto é puro. Ou não é?" [...]

S: “Compreendo e concordo com a afirmação de Bakhtin de que '... não há textos puros, nem poderia

haver'. Mesmo sendo a primeira vez que o assunto ou o texto é tratado/escrito e, consequentemente, seu

autor será o primeiro a abordá-lo, as idéias abordadas por ele foram, necessariamente, compostas a

partir de fragmentos de outras idéias já abordadas anteriormente e mesmo sem ter lido nem escutado

nada sobre o tema, os vários fragmentos que compõe esse assunto foram, muito provavelmente, de

alguma forma, abordados.”

Formadora: Aluno, estive lendo a resposta do S e a achei excelente; mas gostaria de acrescentar: ocorre

que cada palavra é tecida por uma multidão de fios ideológicos, portanto, ela carrega em si um

inumerável nº de vozes, quem quer que tenha se pronunciado sobre qualquer assunto, carrega em si

essas vozes...

Na teia discursiva em que se estabelece as enunciações, não só a formadora

responde, mas o S também. A formadora se utiliza da mensagem de outro aluno e a

complementa, ou seja, essa formadora responde a dois alunos ao mesmo tempo. É

interessante atentar que a discussão sobre o conceito texto, referente à pureza do

mesmo, traz o conceito de autoria subentendido nas enunciações em “foi a primeira

pessoa no universo que falou.”. É importante destacar que no memorial o aluno

estabelece duas posições de autoria quanto ao conceito texto e autoria. Ele, ao

mencionar o conceito de pontos de deriva, também fala sobre o conceito de texto:

Através deste estudo, foi possível constatar que as pausas [pontos de deriva], marcadas no texto16

pelas

reticências e outras formas de pontuação, representam um espaço indeterminado, de transição, de

incertezas, consistindo numa abertura para que sentidos paralelos aos vigentes possam ser inscritos.

(Recorte 1).

Na inter-relação do conceito de texto e pontos de deriva fica, também,

subentendido o conceito de autoria ao mencionar “o implícito (o que o texto não diz) e

a intertextualidade (a relação do texto com outros textos) das quais se estabelecem as

relações de sentido” (ORLANDI, 1998, p.10). A produção de sentido na relação entre

os conceitos texto e pontos de deriva subentendendo o conceito autoria converge com

a obra de Mikhail Bakhtin. Na mensagem destacada do fórum, entretanto, a produção de

sentidos entre o conceito texto e pureza, o sentido do conceito autoria diverge da obra

de Bakhtin, pois encontra-se ligado a um sentido de autor (pessoa).

A fala da formadora, destacada em negrito, segundo o aluno, abre possibilidades

de transformação. Na mensagem, ela destaca o conceito de palavra para Bakhtin com

intuito de apontar a impossibilidade da pureza textual na medida em que cada palavra “é

15

Na edição do ano de 2006 do livro a “Estética da criação verbal” de Bakhtin a referida página passa a

ser de número 309. A edição que o aluno utilizava era a do ano de 1998. 16

Grifo nosso.

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tecida por uma multidão de fios ideológicos”. Então, o aluno explica a sua

transformação:

Este texto deixou de ser puro porque este referido autor poderia ter escutado algo a respeito do que

escreveu.

No enunciado, a relação existente entre o conceito de texto e pureza é

divergente, o texto para o aluno analisado deixa de ser puro convergindo com a obra

Mikhail Bakhtin. O sentido produzido na relação entre os dois conceitos desliza para o

conceito autoria. O conceito autoria deixa de ser subentendido e encontra-se marcado

no texto. Entretanto, neste enunciado está baseado na existência de um proprietário

sobre o texto que é divergente da obra do autor.

RECORTE 3 - considerações do aluno a cerca do conceito texto e coletivo e os

conceitos autoria e coletiva

Ao longo do texto, o aluno procura definir que toda autoria é coletiva, a partir de

autores presentes ou ausentes (em outros tempos e espaços). Ele sugere que talvez um

enunciado do ano de 1980 esteja presente no seu memorial. Não contempla ao abordar o

conceito autoria, o conceito texto. No enunciado a relação do conceito autoria é

estabelecida com o conceito coletiva. Ele destaca uma mensagem, proveniente da

ferramenta fórum, de uma colega, para mencionar a importância do contexto na

elaboração do texto. Ele aponta uma dúvida em relação ao conceito de texto coletivo e

o conceito único, há um deslizamento de sentido do qual o conceito de autoria e

coletiva, mencionado anteriormente, não é abrangido.

Já neste recorte abaixo, o aluno escreve sobre uma coletividade na autoria do

próprio texto. E relaciona essa atitude responsível a Bakhtin, quando menciona não

haver um álibi na existência, sendo dever de cada um ter uma posição responsável e

respondível por si e pelos outros e, como sendo único e não-substituível, ele brinca que

“deixa sua marca”: seu texto, também único, mas construído coletivamente:

Na autoria coletiva a interação a relação dialógica e o texto coletivo foram interessantes para

compreendermos melhor este novo conceito de texto coletivo. A partir desta aprendizagem relato que o

próprio texto que construi é uma autoria coletiva, tendo em vista que utilizei as falas, os exemplos, os

comentários, as citações de muitos colegas e professoras, além da minha própria vivência com as

interações e trocas. [...] Cada um de nós ocupa um lugar e um tempo únicos na vida, uma existência que

é concebida não como um estado passivo, mas ativamente, como um acontecimento. (Clark & Holquist,

1998 p.90).

Um texto coletivo como o produzido pelo Equitext é construído “ao redor de

uma teia conceitual” (AXT et al, 2003), e que só foi possível naquele espaço de tempo e

com aquelas pessoas envolvidas nos diálogos. Apesar do enunciado abranger um

sistema da linguagem que é comum a todos os interlocutores, que pode ser reproduzido

e repetido (BAKHTIN,2006) o enunciado é único e singular em relação ao momento do

qual foi produzido.

Algumas considerações

Os sentidos produzidos pelo aluno, para alguns conceitos, muitas vezes

divergem dos que Bakhtin propõe, o que não significa dizer que não houve um

aprendizado, mas que os sentidos produzidos pelo aluno foram ao encontro de outros

conceitos não contemplados na obra bakhtiniana.

Page 11: estudos em um memorial de conceitos1 (Ephemeral) … · conceptual construction and meaning of a student who participated in the discipline Collective Authorship at Virtual Learning

É importante destacar que o aluno estabelece duas posições de autoria quanto ao

conceito de “texto” em seu memorial: uma ligada ao conceito de “pontos de deriva” e

outra ligada ao conceito de “pureza” e, em ambos os conceitos, fica subentendido o

conceito de “autoria”. No memorial, o aluno se refere ao conceito de “autoria”, mas

ligado ao conceito de “coletiva”. Entretanto, no mapa conceitual percebe-se que não há

ligação entre o conceito de “texto” e “autoria coletiva”, o que nos faz visualizar onde se

pode encontrar uma “brecha” para que as formadoras agissem numa atitude ético-

responsiva, para com o aluno. É na produção de diálogos referentes à autoria que

formadoras e alunos contribuiriam para que este aluno pudesse continuar a produção de

seu memorial. Torna-se possível visualizar, neste memorial, que o conceito de “autoria”

está persistindo nas produções de sentido desse aluno, uma vez que se mostra como uma

aparente relação não estabelecida em seu pensamento, conforme a produção do seu

mapa. As posições de autoria para com o conceito de “texto” abrem possibilidades para

interações quanto ao conceito de “autoria”. Esse conceito deveria ser foco para as

formadoras investirem em relação à aprendizagem deste aluno em específico, na ocasião

de obterem mais tempo para a realização deste trabalho.

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