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CENTRO DE DIREITO DO CONSUMO FACULDADE DE DIREITO UNIVERSIDADE DE COIMBRA ESTUDOS DE DIREITO DO CONSUMIDOR DIRETOR ANTÓNIO PINTO MONTEIRO N.º 15| 2019

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CENTRO DE DIREITO DO CONSUMO

FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE DE COIMBRA

ESTUDOS DE DIREITODO CONSUMIDOR

DIRETORANTÓNIO PINTO MONTEIRO

N.º 15| 2019

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CENTRO DE DIREITO DO CONSUMOFaculdade de Direito da Universidade de Coimbra

TÍTULOEstudos de Direito do Consumidor

DIRETORAntónio Pinto Monteiro

CONSELHO DE REDAÇÃOPaulo Mota PintoPedro MaiaMafalda Miranda BarbosaSandra Passinhas

DESIGN GRÁFICOAna Paula Silva

PAGINAÇÃOCarlos Duarte

[email protected]átio da Universidade | 3004-528 Coimbra

ISSN1646-0375

DEPÓSITO LEGAL151684/00

© DEZEMBRO 2019

CENTRO DE DIREITO DO CONSUMO | FACULDADE DE DIREITO | UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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DOUTRINA

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ALEXANDRE L. DIAS PEREIRA Contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais

MAFALDA MIRANDA BARBOSA Proteção de dados, consentimento e tutela do consumidor

MARIA OLIVEIRA O novo regime jurídico das viagens organizadas e serviços de

viagem conexos: Sujeitos, objeto, garantias e resolução de litígios

MARISA SILVA MONTEIRO O contrato de seguro de saúde:

Contributo para a reflexão acerca da delimitação do tipo à luz do elemento risco e da prática do questionário pelo confronto

entre os modelos do questionário aberto e fechado

SANDRA PASSINHAS O lugar da vulnerabilidade no Direito do Consumidor português

WILLIAM CORNETTA Obsolescência

Da origem ao problema social e seus reflexos à sociedade

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7e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r a

APRESENTAÇÃO

Antes que o ano de 2019 finde, cá estamos a registar a nossa presença com mais um volume dos “Estudos de Direito do Consumi-dor”, na expectativa de que continuemos a merecer a confiança dos nossos Leitores.

Como habitualmente, o presente volume inclui estudos vários, uns da autoria de Colegas da Faculdade, outros pertencentes a colegas de outros mundos, mas todos da autoria de qualificados juristas, abraçados na causa comum da defesa do consumidor.

Contando, também como sempre, com a crítica generosa dos nossos Leitores, apresentamos a todos as nossas vivas saudações.

Coimbra, CDC/FDUC, em Dezembro de 2019

O Director de Estudos de Direito do Consumidor

António Joaquim de Matos Pinto Monteiro

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9e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r a

CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS*

12Alexandre L. Dias Pereira **

ResumoA Diretiva 2019/770 disciplina os contratos de fornecimento de conteú-

dos e serviços digitais estabelecendo diversos direitos do consumidor no caso de não fornecimento e de não conformidade dos conteúdos ou dos serviços com o contrato. O presente trabalho analisa os remédios con-sagrados pela diretiva para a quebra do contrato e identifica aspetos im-portantes que não foram abrangidos pela diretiva.

Palavras-chave contratos de consumo – conteúdos e serviços digitais – meios de ressar-

cimento – mercado único digital

AbstractDirective 2019/770 governs digital content and service provision agree-

ments by establishing various consumer rights in the event of non-provision and non-compliance of the content or services with the contract. This paper analyzes the remedies provided for in the Directive for breach of contract

* Texto elaborado para o Congresso «Direito do Consumidor: Ruturas e Con-tinuidades após as Recentes Alterações Legislativas», organizado pelo Centro de Direito do Consumo em parceria com o Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no dia 22 de novembro de 2019.

** Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Alexandre L. Dias Pereira

and identifies important aspects that were not covered by the Directive.

Keywords consumer contracts – digital contente and services – breach of contract

remedies – digital single market

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

11e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

Introdução

Na economia digital, o fornecimento de conteúdos e serviços digitais é objeto de novos contratos, que têm sido celebrados e regulados ao abrigo da liberdade contratual1. Todavia, a proteção jurídica do consumidor a nível europeu foi considerada insuficien-te e, por isso, um obstáculo ao bom funcionamento do mercado único digital. Segundo dados da Comissão Europeia, por falta de confiança jurídica, só 10% das transações envolveriam operadores europeus com consumidores de outros Estados-Membros, tendo um em cada três consumidores problemas com a aquisição de conteú-dos digitais como música, jogos ou computação em nuvem, sem encontrar respostas adequadas para esses problemas2.

Na União Europeia, a proteção do consumidor no comércio eletrónico foi objeto de diversas medidas, como sejam desde logo a Dir. 2000/31 sobre comércio eletrónico3 e a Dir. 2011/83/UE sobre

1 Ver, por ex., os «Termos de Serviço do Google» <https://policies.google.com/terms?hl=pt-BR>, do Facebook <https://www.facebook.com/legal/terms>, do You-tube < https://www.youtube.com/t/terms> ou dos Recursos Netflix <https://media.netflix.com/pt_pt/terms-and-conditions>

2 <https://ec.europa.eu/info/business-economy-euro/doing-business-eu/contract-rules/digital-contracts/digital-contract-rules_en>

3 Dir. 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno, transposta pelo DL 7/2004 de 7 de janeiro, alterado pelo DL 62/2009 de 10 de março e pela Lei 46/2012 de 29 de agosto. Sobre a proteção do consumidor no comércio eletrónico pode ver-se o nosso ensaio Comércio electrónico na sociedade da informação: da segurança técnica à confiança jurídica (Coimbra, Almedina, 1999) e diversos textos publicados nos Estudos de Direito do Consumidor, tais como «A protecção jurídica do consumi-dor no quadro da directiva sobre o comércio electrónico», «Os pactos atributivos de jurisdição nos contratos electrónicos de consumo», «Comércio electrónico e con-

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r12

Alexandre L. Dias Pereira

direitos dos consumidores4. Mais recentemente, em ordem a pro-mover a confiança jurídica do consumidor - enquanto fator-chave do comércio eletrónico - e com isso o bom funcionamento do mer-cado interno digital foi adotada a Dir. 2019/770 sobre contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais5, a qual faz parte do pacote de modernização legislativa para a realização do mercado único digital da Comissão Juncker6, juntamente com outras medi-das, em especial a Dir. 2019/771 sobre os contratos de compra e venda7, que revogou e substituiu a Dir. 1999/44 sobre as garantias na venda de bens de consumo8. Sendo a noção de bem de con-sumo para efeitos desta diretiva limitada aos bens móveis corpó-

sumidor», «A via electrónica da negociação (alguns aspectos)», e «Consumer Pro-tection Online (in special the expected changes to e-commerce from S-commerce, VR-Commerce and AR-Commerce)», respetivamente n.º 2 (2000: 43-140), 3 (2001: 281-300), 6 (2004: 341-400), 8 (2007: 275-290), e 14 (2018: 9-19).

4 Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, que altera a Diretiva 93/13/CEE do Conselho e a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revo-ga a Diretiva 85/577/CEE do Conselho e a Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 304 de 22.11.2011, p. 64).

5 Diretiva (UE) 2019/770 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2019 sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais.

6 A Digital Single Market Strategy for Europe, COM(2015) 192 final.7 Em especial a Diretiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho

de 20 de maio de 2019 relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens que altera o Regulamento (UE) 2017/2394 e a Diretiva 2009/22/CE e que revoga a Diretiva 1999/44/CE.

8 Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (JO L 171 de 7.7.1999, p. 12).

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

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reos (art. 1/2-b)9, os consumidores de conteúdos e serviços digitais privados não tinham os remédios e as garantias contratuais contra o respetivo fornecedor. Entretanto, alguns Estados-Membros ante-ciparam-se na produção legislativa, regulando especificamente o fornecimento de conteúdos e serviços digitais, como sucedeu no Reino Unido com as “Consumer Protection (Amendment) Regula-tions” de 201410.

1. Não interferência com o direito civil clássico

No direito português não existe ainda um corpo de regras espe-cíficas dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digi-

9 O diploma interno (DL 67/2003, de 8 de abril, alterado pelo DL 84/2008, de 21 de maio) apesar de alargar a noção de bem consumo aos bens imóveis, limitou os bens móveis aos bens corpóreos (art. 1-b/b e 3). Sobre este regime ver por ex. Paulo mota Pinto, «Conformidade e garantias na venda de bens de consumo. A Direc-tiva 1999/44/CE e o direito português», Estudos de Direito do Consumidor, 2 (2000) 199-331.

10 Cf. «The new UK consumer agenda and digital content» <https://www.fresh-fields.com/492380/globalassets/our-thinking/campaigns/digital/mediainternet/pdf/uk-consumer-agenda-and-digital-content-briefing_aw_not.pdf>. Sobre a prob-lemática da proteção do consumidor nos contratos de fornecimento de conteúdos digitais, ver natalie Helberger, m.b. loos, lucie guibault, cHantal mak, lodewijk Pessers, «Digital Content Contracts for Consumers», Journal of Consumer Policy 36/1 (2013) 37-57; lucie guibault, natalie Helberger, Digital Consumers and the Law: Towards a Co-hesive European Framework, Wolters Kluwer, 2012. Entre nós, com mais referências, jorge morais de carvalHo, «Venda de Bens de Consumo e Fornecimento de Conteú-dos e Serviços Digitais – As Diretivas 2019/771 e 2019/770 e o seu Impacto no Direito Português», RED – Revista Eletrónica de Direito 20/3 (2019) 63-87; sobre a proposta de diretiva, podem ver-se também os nossos «Comércio eletrónico de conteúdos digi-tais: proteção do consumidor a duas velocidades?» e «Novos direitos do consumidor no mercado único digital», ambos publicados nos Estudos de Direito do Consumidor,

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Alexandre L. Dias Pereira

tais. O Código Comercial de 1888 e o Código Civil de 1966, ambos anteriores à “revolução digital”, são omissos nesta matéria e mesmo na legislação do consumidor não abundam referência a estes con-tratos. E não obstante é ainda o direito nacional que se aplica nas questões não reguladas pela Dir. 2019/770, como a formação, a validade, a nulidade e os efeitos dos contratos ou a legalidade do conteúdo ou serviço digital, como se lê no considerando 12 da dire-tiva, acrescentando que “A presente diretiva também não deverá determinar a natureza jurídica dos contratos para o fornecimento de conteúdos ou serviços digitais, cabendo ao direito nacional de-terminar a natureza de um contrato, ou seja, se se trata, por exem-plo, de um contrato de venda, de um contrato de serviços, de um contrato de aluguer ou de um contrato sui generis.”

Esta é, aliás, uma questão discutida há mais de duas décadas, em especial no que respeita às licenças de software11 e que não foi objeto de harmonização, ficando antes para o direito interno de cada Estado-Membro, sem prejuízo do regime instituído pela direti-va em ordem à proteção do consumidor e do bom funcionamento do mercado interno. Mas, no fundo, a Dir. 2019/770 pretende inter-ferir o menos possível com o direito civil de cada Estado-Membro, preocupando-se antes em assegurar um elevado nível de defesa do consumidor e a promoção da concorrência no mercado único digital. Dirige-se a problemas concretos experimentados pelos con-

nº 9 (2015) 177-207 e 10 (2016) 155-174.11 Sobre a possível recondução das licenças de software aos tipos contratuais

da compra e venda, da locação e da empreitada, podem ver-se, por ex., os nossos «Programas de computador, sistemas informáticos e comunicações electrónicas: al-guns aspectos jurídico-contratuais», Revista da Ordem dos Advogados 59/III (1999) 915-1000, e «Das licenças de software e de bases de dados (software and database licenses)», Revista Jurídica Portucalense 14 (2011) 9-25.

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

15e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

sumidores relativamente à qualidade e ao acesso, pelos consumi-dores, aos conteúdos e/ou serviços digitais, que podem ser errados ou defeituosos, ou simplesmente inacessíveis. Juntamente com a sua “diretiva gémea” - Dir. 2019/771 -, a Dir. 2019/770 estabelece remédios a favor do consumidor no caso de não cumprimento ou de não conformidade com o contrato (grosso modo, “vícios redibi-tórios”), acautelando todavia o princípio favor negotii, no sentido de a “destruição” destes contratos não ser o primeiro remédio de que o consumidor dispõe.

2. Direitos do consumidor de conteúdos ou serviços digitais contra-tados à distância previstos no DL 24/2014

A Dir. 2019/770 regula o fornecimento de conteúdos e serviços digitais como contratos de consumo. Por isso, o regime agora apro-vado acresce ao já previsto por ex. no DL 24/2014 (alterado por últi-mo pelo DL 78/2018, de 15/10) que transpõe a Dir. 2011/83/UE sobre direitos dos consumidores.

Informação pré-contratual sobre funcionalidade e interoperabilidade

Em sede de informação pré-contratual nos contratos celebra-dos à distância, cabe ao fornecedor indicar a funcionalidade dos conteúdos digitais, incluindo as medidas de proteção técnica, e qualquer interoperabilidade relevante dos conteúdos digitais com equipamentos e programas informáticos de que o profissional te-nha ou possa razoavelmente ter conhecimento, quando for o caso (art. 4-x/z).

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Alexandre L. Dias Pereira

Direito de livre resolução?

No fornecimento de conteúdos digitais sem suporte material o prazo para o exercício do direito de livre resolução conta-se a partir do dia da celebração do contrato (art. 10/1-c). E o consumidor não suporta quaisquer custos relativos ao fornecimento, na totalidade ou em parte, de conteúdos digitais que não sejam fornecidos num suporte material, se o consumidor não tiver dado o seu consenti-mento prévio para que a execução tenha início antes do fim do prazo de 14 dias referido no artigo 10.º e reconhecido que perde com isso o seu direito de livre resolução, ou o fornecedor de bens não tiver fornecido a confirmação do consentimento prévio e ex-presso do consumidor (art. 15/b).

De qualquer modo, o direito de livre resolução é excluído rela-tivamente aos conteúdos digitais não fornecidos em suporte mate-rial se a sua execução tiver início com o consentimento prévio e ex-presso do consumidor e este reconhecer que o seu consentimento implica a perda do direito de livre resolução (art. 17).

Proibição de cobrança de conteúdos digitais não solicitados

De referir ainda, na lei dos contratos à distância, a proibição de cobrança de pagamento por fornecimento de conteúdos digitais não solicitados (art. 28).

3. Fornecimento de conteúdos ou serviços digitais

Em acréscimo ao regime dos contratos à distância, a Dir. 2019/770 regula, em termos de harmonização completa ou plena

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

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(art. 4), os contratos de fornecimento de conteúdos ou serviços di-gitais em questões como a conformidade com o contrato, os re-médios por desconformidade (meios de ressarcimento), e o forne-cimento de conteúdos ou serviços digitais. Os direitos estabelecidos têm natureza imperativa a favor do consumidor de conteúdos e serviços digitais (art. 22).

Partes

Quanto às partes, trata-se de contratos entre profissionais e consumidores (contratos de consumo). Por consumidor entende-se a “pessoa singular que[…] atue com fins que não se incluam no âm-bito da atividade comercial, empresarial, artesanal ou profissional” (art. 2/6).

Todavia, o preâmbulo da diretiva considera que os Estados-Membros são “livres de alargar a proteção concedida aos consumi-dores ao abrigo da presente diretiva por forma a abranger pessoas singulares ou coletivas que não sejam consumidores na aceção da presente diretiva, como, por exemplo, as organizações não-gover-namentais, as empresas em fase de arranque (start-ups) ou PME” (considerando 16). A Dir. 2019/770 mostra-se favorável ao alarga-mento dos remédios especiais de proteção do consumidor a outras entidades que ficam fora da noção de consumidor, mas que ainda assim podem ter uma necessidade de proteção semelhante à dos consumidores enquanto parte mais vulnerável (ou “hiposuficiente”, como se diz no Brasil).

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Objeto

O objeto é composto por conteúdos e serviços digitais, incluindo o carregamento e partilha de conteúdos gerados pelo consumidor. O preâmbulo da diretiva (considerando 19) ilustra exemplificativa-mente a noção de conteúdos e serviços digitais com os programas informáticos, as aplicações, os ficheiros de vídeo, de áudio e de música, os jogos digitais, os livros eletrónicos e outras publicações eletrónicas, por um lado (por ex. “Netflix”, “Spotify”), e os serviços digitais que permitem a criação, o tratamento ou o armazenamen-to de dados em formato digital ou o acesso aos mesmos (e.g. o software enquanto serviço - SaS) tais como a partilha de ficheiros de vídeo e áudio e outro tipo de alojamento de ficheiros (por ex. “YouTube”), o processamento de texto ou jogos disponibilizados no ambiente de computação em nuvem (por ex. “Dropbox”, “Google Drive”), e as redes sociais (e.g. “Facebook”, “Instagram”, “Twitter”). Quanto aos modos de fornecimento dos conteúdos ou serviços di-gitais, distinguem-se o suporte material (e.g. DVD, CD, chaves USB e cartões de memória), o descarregamento feito pelos consumidores para os seus dispositivos (download), a difusão em linha (streaming), o acesso e a utilização de redes sociais e de “armazéns” de con-teúdos digitais12.

Não abrange os conteúdos ou serviços digitais incorporados em ou interligados com bens e que sejam fornecidos com os bens nos termos de um contrato de compra e venda desses bens, inde-pendentemente de os conteúdos ou serviços digitais serem forneci-

12 Sobre os acordos de nível de serviço na computação em nuvem (Cloud Computing Service Level Agreements – SLA) pode ver-se o nosso «Cloud Computing», Boletim da Faculdade de Direito 92/1 (2017) 367-401.

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19e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

dos pelo profissional ou por um terceiro, presumindo-se, em caso de dúvida, que estão abrangidos pelo contrato de compra e venda (art. 3/4). A venda de equipamentos, como telemóveis, televisões ou relógios inteligentes com aplicações normalizadas pré-instaladas e fornecidas nos termos do contrato de compra e venda (e.g. apli-cações de alarme ou de câmara), é regulada pela Dir. 2019/771. Esta diretiva sobre garantias na venda de bens de consumo apli-ca-se não apenas aos tradicionais bens corpóreos, mas igualmente aos «bens com elementos digitais», isto é, “todos os conteúdos ou serviços digitais incorporados ou interligados com esses bens, de tal forma que a ausência desse conteúdo ou serviço digitais impediria os bens de desempenhar as suas funções. Os conteúdos digitais incorporados ou interligados com os bens podem ser quaisquer dados produzidos ou fornecidos em formato digital, tais como sistemas operativos, aplicações e qualquer outro software. O con-teúdo digital pode estar pré-instalado no momento da celebração do contrato de venda ou, nos termos desse contrato, ser instalado posteriormente. Os serviços digitais interligados com um bem po-dem incluir serviços que permitem criar, tratar, aceder ou armazenar dados em formato digital, tais como o software enquanto serviço disponibilizado no ambiente de computação em nuvem, o forneci-mento contínuo de dados de tráfego num sistema de navegação [GPS], ou o fornecimento contínuo de programas de treino perso-nalizado no caso dos relógios inteligentes”13. O preâmbulo esclare-ce ainda que “Se, por exemplo, uma televisão inteligente tiver sido anunciada como incluindo uma determinada aplicação de vídeo, considerar-se-á que tal aplicação faz parte do contrato de compra e venda. Esta solução deverá aplicar-se independentemente de os

13 Considerando 14 da Dir. 2019/771.

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Alexandre L. Dias Pereira

conteúdos ou serviços digitais estarem pré-instalados nos próprios bens ou terem de ser descarregados posteriormente noutros dispo-sitivos e estarem apenas interligados aos bens. […] Tal deverá apli-car-se também se os conteúdos ou serviços digitais incorporados ou interligados não forem fornecidos pelo próprio vendedor, mas sim, nos termos do contrato de compra e venda, por terceiros. A fim de evitar incertezas para os operadores e para os consumidores relati-vamente à questão de saber se o fornecimento dos conteúdos ou serviços digitais faz parte do contrato de compra e venda, deverão aplicar-se as regras da presente diretiva. […]Em contrapartida, se a falta de conteúdos ou serviços digitais incorporados ou interligados não impedir os bens de desempenharem as suas funções ou se o consumidor celebrar um contrato de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais que não faça parte de um contrato de compra e de bens com elementos digitais, esse contrato deverá considerar-se distinto do contrato de compra e venda dos bens, mesmo que o vendedor atue como intermediário nesse segundo contrato com o operador terceiro, e poderá estar abrangido pelo âmbito de apli-cação da Diretiva (UE) 2019/770 se estiverem preenchidas as condi-ções nela previstas. Por exemplo, se o consumidor descarregar uma aplicação de jogo de uma loja de aplicações para um telemóvel inteligente, o contrato de fornecimento da aplicação de jogo é distinto do contrato de compra e venda do próprio telemóvel inteli-gente. […] Outro exemplo é o caso em que é expressamente acor-dado que o consumidor compra um telemóvel inteligente sem um sistema operativo específico e posteriormente celebra com um ter-ceiro um contrato para o fornecimento de um sistema operativo”14.

Assim, uma coisa é o contrato de compra e venda do próprio telemóvel inteligente, incluindo o respetivo suporte lógico, outra é o

14 Considerandos 15 e 16 da Dir. 2019/771.

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

21e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

fornecimento por terceiro de sistema operativo, aplicações ou jogos que não sejam indispensáveis para o bom funcionamento do bem vendido (e.g. computador, telemóvel, televisor ou relógio “smart”).

Por outro lado, a Dir. 2019/770 não se aplica aos serviços de co-municações eletrónicas15, saúde, jogos a dinheiro (lotarias, apostas, casino, póquer), serviços financeiros, software livre, e transmissões cinematográficas digitais. Relativamente à saúde importa referir que, nos termos do preâmbulo, a exclusão dos «cuidados de saú-de» abrange quaisquer conteúdos ou serviços digitais que consti-tuam um dispositivo médico sempre que esse dispositivo médico seja prescrito ou fornecido por um profissional de saúde, mas já não a todo e qualquer conteúdo ou serviço digital que constitua um dispositivo médico, como, por exemplo, aplicações de saúde, que possa ser obtido pelo consumidor sem prescrição ou fornecimento por um profissional de saúde16.

4. Onerosidade: os dados pessoais como possível moeda

O fornecimento dos conteúdos ou serviços é normalmente oneroso, isto é, prestado em troca pelo pagamento de um preço, incluindo o dinheiro ou uma representação digital do valor que é

15 Nessa medida, os contratos de fornecimento de serviços e conteúdos digi-tais não são abrangidos pela Lei 23/96, de 26 de julho (alterada), que regula o for-necimento de serviços públicos essenciais, incluindo os serviços de comunicações eletrónicas, prevendo normas como o dever de os prestadores destes serviços infor-marem regularmente, de forma atempada e eficaz, os utentes sobre as tarifas apli-cáveis aos serviços prestados, designadamente as respeitantes às redes fixa e móvel, ao acesso à Internet e à televisão por cabo (art. 4/3) e a proibição de suspensão da prestação do serviço sem pré-aviso adequado, salvo caso fortuito ou de força maior (art. 5/1 – norma que, de resto, não se aplica aos serviços de comunicações eletrónicas – art. 5/5).

16 Considerando 29 da Dir. 2019/771.

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r22

Alexandre L. Dias Pereira

devido pelos conteúdos ou serviços digitais fornecidos (incluindo dados pessoais). Os conteúdos e serviços digitais são fornecidos muitas vezes de forma gratuita ou em troca por representações digitais de valor, como os vales ou cupões eletrónicos. Tais repre-sentações digitais de valor, incluindo moedas virtuais (bitcoins), são consideradas um meio de pagamento, embora o reconhecimento das bitcoins dependa do direito nacional17. Os dados pessoais sur-gem como moeda de pagamento quando o consumidor permite que o fornecedor dos serviços digitais retire proveitos desses dados, i.e., como se escreve no preâmbulo quando “o consumidor abre uma conta nas redes sociais e indica um nome e um endereço de correio eletrónico que são utilizados para outros fins que não ape-nas o fornecimento de conteúdos ou serviços digitais ou o cumpri-mento dos requisitos legais”18, o mesmo valendo para o consenti-mento do consumidor relativamente a todo o tipo de material que constitua dados pessoais, como fotografias ou mensagens que irá carregar, posteriormente processado pelo profissional para fins de comercialização.

17 Segundo o Banco de Portugal, a aceitação de moeda virtual pelo seu valor nominal não é obrigatória, os direitos de reembolso ao consumidor não estão legal-mente protegidos no caso de pagamento com moedas virtuais, não existe fundo que cubra sua desvalorização, para além de poderem ser utilizadas indevidamente em atividades criminosas, incluindo de branqueamento de capitais e de financia-mento do terrorismo. O Banco de Portugal esclarece que “as entidades que emitem e comercializam moedas virtuais não estão sujeitas a qualquer obrigação de auto-rização ou de registo junto do Banco de Portugal, pelo que a sua atividade não é sujeita a qualquer tipo de supervisão prudencial ou comportamental” e, por isso, na sua Carta Circular nº 11/2015/DPG, recomenda às instituições de crédito, às institui-ções de pagamento e às instituições de moeda eletrónica sujeitas à sua supervisão que se abstenham de comprar, deter ou vender moedas virtuais – ver <https://www.bportugal.pt/page/moedas-virtuais>

18 Considerando 24 da Dir. 2019/770.

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

23e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

Enquanto responsável pelo tratamento de dados, o fornece-dor deve cumprir os deveres previstos no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD)19 e na lei interna de execução do RGPD20. Já as atividades pessoais ou domésticas não são abran-gidas: o RGPD “não se aplica ao tratamento de dados pessoais efetuado por pessoas singulares no exercício de atividades exclusi-vamente pessoais ou domésticas e, portanto, sem qualquer ligação com uma atividade profissional ou comercial. As atividades pessoais ou domésticas poderão incluir a troca de correspondência e a con-servação de listas de endereços ou a atividade das redes sociais e do ambiente eletrónico no âmbito dessas atividades. Todavia, o presente regulamento é aplicável aos responsáveis pelo tratamen-to e aos subcontratantes que forneçam os meios para o tratamento dos dados pessoais dessas atividades pessoais ou domésticas21”.

Assim, por ex., os utilizadores de redes sociais como o “Face-book” ou o “Twitter”, não estão sujeitos ao RGPD, mas a empresa “Facebook Inc.” já é considerada responsável pelo tratamento de dados para efeitos do RGPD. Ora, como o regulamento não preju-dica a aplicação da Dir. 2000/31/CE sobre, nomeadamente, res-ponsabilidade dos prestadores intermediários de serviço previstas nos seus artigos 12 a 15 (art. 2/4), os operadores de redes sociais ou

19 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Di-retiva 95/ 46/CE. Sobre isto pode ver-se o nosso «O Responsável pelo Tratamento de Dados segundo o RGPD (Data Controller According to the GDPR)», Revista de Direito e Tecnologia 1/2 (2019) 143-173.

20 Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, que assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do RGPD.

21 Considerando (18) do RGPD.

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r24

Alexandre L. Dias Pereira

de plataformas de partilha de conteúdos em linha não são consi-derados prestadores intermediários de serviços para efeitos desses artigos22.

5. Princípio da pontualidade e princípio da conformidade com o contrato

Regem os princípios gerais do fornecimento sem demora inde-vida (art. 5/1) e em conformidade com o contrato, e sobre o pro-fissional recai o ónus da prova do fornecimento dos conteúdos ou serviços digitais (art. 12/1).

A conformidade afere-se subjetivamente por diversos fatores (art. 7), quais sejam: a) correspondência à descrição, quantidade, qualidade, funcionalidade, compatibilidade, interoperabilidade e demais características exigidas pelo contrato; b) adequação à fi-nalidade específica pretendida pelo consumidor; c) fornecimento juntamente com os acessórios e instruções de instalação e apoio ao cliente; d) atualização dos conteúdos.

Quanto a requisitos de conformidade objetiva, destacam-se: a) a adequação às utilizações a que os conteúdos ou serviços digi-tais do mesmo tipo normalmente se destinam; b) quantidade, qua-lidades, características de desempenho, inclusive no que respeita à funcionalidade, compatibilidade, acessibilidade, continuidade e segurança, correspondentes às habituais em conteúdos ou serviços

22 Sobre tema, mafalda miranda barbosa, “Data controllers e data processors: da responsabilidade pelo tratamento de dados à responsabilidade civil”, Revista Bolsa, Banca e Seguros 3 (2018) 215-6, em nota.

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

25e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

digitais do mesmo tipo e que o consumidor possa razoavelmente esperar, dada a natureza do conteúdo ou serviço digital e tendo em conta qualquer declaração pública feita pelo profissional ou em nome deste, ou por outras pessoas em estádios anteriores da cadeia contratual, particularmente através de publicidade ou rotulagem23 (valor negocial da publicidade); c) fornecimento juntamente com os acessórios e as instruções que o consumidor possa razoavelmente esperar receber; e d) conformidade com quaisquer versões de teste ou pré-visualizações dos conteúdos ou serviços digitais disponibiliza-das pelo profissional antes da celebração do contrato.

6. Direito às atualizações e direito à integração correta dos conteú-dos e serviços digitais

O consumidor tem o direito a ser informado sobre as atualiza-ções e ao fornecimento das mesmas, incluindo atualizações de se-gurança24 (art. 8/2), e o direito à conformidade com a versão mais

23 Ver, a propósito do possível valor da publicidade, o disposto no artigo 7/5 da Lei do Consumidor, aprovada pela Lei 24/96, de 31 de julho (várias vezes alterada, a última pela Lei 63/2019, de 16 de agosto), nos termos do qual: “ As informações concretas e objetivas contidas nas mensagens publicitárias de determinado bem, serviço ou direito consideram-se integradas no conteúdo dos contratos que se venham a celebrar após a sua emissão, tendo-se por não escritas as cláusulas contratuais em contrário.”

24 A segurança informática (“cibersecurity”) tem um “papel vital” para as redes e a informação, sendo objeto de um regime específico, que também aproveita aos consumidores, estabelecido pela Diretiva (UE) 2016/1148, de 6 de julho de 2016, re-lativa a medidas destinadas a garantir um elevado nível comum de segurança das redes e da informação em toda a União, transposta para o direito interno pela Lei 46/2018, de 13 de agosto (regime jurídico da segurança do ciberespaço). Sobre o

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r26

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recente dos conteúdos ou serviços digitais disponíveis no momento da celebração do contrato (art. 8/6)25.

Além disso, o consumidor tem direito à integração incorreta dos conteúdos ou serviços digitais (art. 9). Nos termos do preâmbulo (considerando 40): “O conceito de funcionalidade deverá enten-der-se por referência ao modo como os conteúdos ou serviços di-gitais podem ser usados. Por exemplo, a ausência ou presença de restrições técnicas, como a proteção através da gestão dos direitos digitais ou de codificação regional podem ter um impacto sobre a capacidade dos conteúdos ou serviços digitais para desempenhar a totalidade das suas funções, tendo em conta a respetiva finalida-de. O conceito de interoperabilidade respeita a se, e em que medi-da, os conteúdos ou serviços digitais são capazes de funcionar com hardware ou software diferente dos que normalmente são usados com conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo. O bom funcio-namento incluirá, por exemplo, a capacidade dos conteúdos ou serviços digitais para trocarem informações com outro software ou hardware e para utilizarem as informações trocadas.

tema pode ver-se o nosso «A proteção dos dados pessoais e o direito à segurança informática no comércio eletrónico», Revista Banca, Bolsa e Seguros 3 (2018) 303-329.

25 Nos termos do preâmbulo, “(44) Uma vez que os conteúdos digitais e ser-viços digitais estão em constante evolução, os profissionais podem acordar com os consumidores o fornecimento de atualizações e características à medida que estas ficarem disponíveis. Por conseguinte, a conformidade dos conteúdos ou servi-ços digitais deverá também ser avaliada em relação à atualização dos mesmos de acordo com o estipulado no contrato. A não disponibilização de atualizações que tenham sido acordadas no contrato deverá ser considerada uma falta de confor-midade dos conteúdos ou serviços digitais. Além disso, as atualizações defeituosas ou incompletas deverão também ser consideradas uma falta de conformidade dos conteúdos ou serviços digitais, visto que tal significaria que essas atualizações não são executadas de acordo com o estipulado no contrato”.

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

27e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

7. “Remédios para a quebra do contrato” por não fornecimento ou por falta de conformidade

A Dir. 2019/770 prevê ainda como direitos do consumidor os chamados remédios para a quebra do contrato (breach of con-tract remedies). Em caso de não fornecimento (art. 13), o consumi-dor pode solicitar ao profissional o fornecimento dos conteúdos ou serviços digitais sem demora indevida, ou num prazo adicional con-vencionado entre as partes; no caso de o fornecedor não cumprir novamente, o consumidor pode rescindir o contrato; mas o direito à rescisão é imediato se o profissional tiver declarado, ou resultar claramente das circunstâncias, que não irá fornecer os conteúdos ou serviços digitais, ou que o momento específico do fornecimento é essencial para o consumidor, e o profissional não fornecer os con-teúdos ou serviços digitais até esse momento ou nesse momento26.

Em caso de falta de conformidade, o consumidor tem direito a que os conteúdos ou serviços digitais sejam repostos em conformi-dade (a título gratuito e sem inconvenientes importantes para si), a beneficiar de uma redução proporcional do preço ou a rescindir o contrato (art. 14). Se a reposição dos conteúdos ou serviços digitais em conformidade for impossível ou impuser ao profissional custos desproporcionados, o consumidor terá apenas direito à redução proporcional do preço ou à rescisão do contrato, podendo todavia exercer estes direitos se a gravidade da falta de conformidade o justificar ou se o profissional tiver declarado, expressa ou tacitamen-te, que não irá repor os conteúdos ou serviços digitais em conformi-dade num prazo razoável ou sem inconvenientes importantes para

26 A essencialidade do prazo de fornecimento pode ser o caso, por ex., de o consumidor contratar o serviço por ocasião do Campeonato Europeu de Futebol.

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o consumidor. Sendo fornecimento oneroso, o consumidor só tem direito a rescindir o contrato se a falta de conformidade não for menor, presumindo-se todavia que não é menor (art. 14/6).

O consumidor pode ainda lançar mão dos remédios por falta de conformidade se a não conformidade dos conteúdos ou servi-ços digitais resultar de infrações a direitos de terceiros, em especial direitos de propriedade intelectual, a menos que o direito nacional determine a nulidade ou a rescisão do contrato de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais nesses casos (art. 10). Por ex. se os serviços forem bloqueados por razões de direitos de autor o consu-midor pode ver a sua tarifa reduzida ou então rescindir o contrato, se o serviço não lhe interessar sem os conteúdos bloqueados. A este propósito interessa referir que a Diretiva sobre direitos de autor e di-reitos conexos no mercado único digital (doravante Dir. 2019/790)27 entre outros aspetos estabelece um conjunto de medidas com vis-ta ao “funcionamento correto do mercado dos direitos de autor”, como sejam um direito conexo sobre publicações de imprensa rela-tivamente a utilizações em linha por prestadores de serviços da so-ciedade da informação, e esclarece que a partilha de conteúdos em linha pelos utilizadores desses serviços implica atos de reprodu-ção e de comunicação ao público e nessa medida depende de autorização do titular de direitos de autor28. Os serviços de partilha

27 Diretiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital e que altera a Diretiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 1996, relativa à proteção jurídica das bases de dados e a Diretiva 2001/29/CE do Par-lamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação.

28 Entendimento recentemente adotado pelo Tribunal de Roma: <http://ipkit-ten.blogspot.com/2019/07/rome-court-finds-videosharing-platform.html>

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

29e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

de conteúdos em linha não são considerados serviços de armaze-namento em servidor para efeitos da limitação de responsabilidade prevista no art. 14 /1 da Dir. 2000/31 sobre comércio eletrónico29. De todo o modo, ficam excluídos os utilizadores que não atuem com caráter comercial ou cuja atividade não gere receitas significati-vas; para promover a concorrência com as grandes plataformas prevê-se um regime especial para as start-up PME, além de se sal-vaguardar a liberdade de expressão30.

De notar que a Dir. 2019/770 “não prejudica o direito de dis-tribuição aplicável a tais bens nos termos da legislação em maté-ria de direitos de autor”, “incluindo a portabilidade dos serviços de

O TJUE tinha já considerado comunicação ao público as hiperligações com fins lu-crativos para conteúdos ilicitamente disponibilizados, devendo nesse caso presumir-se o conhecimento da ilicitude (GS Media C160/15 – “Playboy”) e quando pré-ins-taladas em leitor multimédia que permitem aceder em streaming a um sítio Internet pertencente a um terceiro que disponibiliza essa obra sem autorização do titular dos direitos de autor (Filmspeler C527/15). De igual modo, o TJUE considerou comunicação ao público a colocação à disposição e a gestão, na Internet, de uma plataforma de partilha que, através da indexação de meta-informação relativa a obras protegidas e da disponibilização de um motor de busca, permite aos utilizadores dessa plataforma localizar essas obras e partilha-lhas no âmbito de uma rede descentralizada (peer-to-peer) (Ziggo C-610/15, 14/6/2017 – “The Pirate Bay”), e o fornecimento por uma empresa comercial a particulares de um serviço de gravação à distância, na nuvem, de cópias privadas de obras protegidas pelo direito de autor, através de um sistema informático, intervindo a empresa ativamente no ato de gravação dessas cópias (ac. 29/11/2017, VCAST C265/16). Sobre o tema, pode ver-se o nosso «Comunicação ao público: um «grande direito» na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Euro-peia?», Boletim da Faculdade de Direito 94/II (2018) 1399-1411.

29 Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 8 de Junho de 2000 relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno.

30 Sobre esta diretiva pode ver-se o nosso «Os direitos de autor no mercado úni-co digital segundo a diretiva 2019/790», Revista de Direito Intelectual, 2019/2.

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conteúdos em linha” (considerando 20 e 36, in fine, e art. 3/9). A portabilidade é consagrada num regulamento específico31. Relati-vamente ao direito de distribuição, discute-se o seu esgotamento no caso de fornecimento por transmissão digital. A diretiva dos direi-tos de autor mercado único digital não respondeu a esta questão. Pese embora o modelo de negócio das plataformas de vídeo a pe-dido e de partilha de conteúdos funcionar sobretudo em termos de streaming, isso não impede que continue o modelo alternativo da compra de exemplares digitais para livre utilização, independen-te de ligação à rede e de um serviço associado, e o interesse na possibilidade de revenda desses exemplares, em virtude do esgota-mento do direito de distribuição, à semelhança do que é permitido, segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do regi-me dos programas de computador32. Recentemente, o Advogado-Geral manifestou-se, de iure condito, pelo não esgotamento do di-reito de esgotamento face à Dir. 2001/29, mas deixando a questão em aberto de lege ferenda33. A ser assim, o regime dos conteúdos e serviços digitais será dualista, consoante se trate de programas de

31 Regulamento (UE) 2017/1128 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de junho de 2017 relativo à portabilidade transfronteiriça dos serviços de conteúdos em linha no mercado interno.

32 Acórdão TJUE, de 3 de julho de 2012, proc. C128/11 (UsedSoft).33 Nas conclusões apresentadas, em 10 de setembro de 2019, no proc. C263/18

(Nederlands Uitgeversverbond), apesar de “concluir que existem argumentos jurídi-cos e teleológicos a favor do reconhecimento da regra do esgotamento do direito de distribuição no que diz respeito às obras fornecidas por transferência (download) para uma utilização permanente”, o Advogado-Geral Maciej Szpunar entende que, “no estado atual do direito da União […] o fornecimento de livros eletrónicos por transferência (download) para utilização permanente não se enquadra no direito de distribuição […] mas do direito de comunicação ao público”. Ver sobre o tema, por ex., o nosso Informática, direito de autor e propriedade tecnodigital, Coimbra, Coimbra Editora, 2001.

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

31e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

computador ou de outros bens digitais, embora nos pareça que o esgotamento é sustentável desde já relativamente aos bens digitais incorporados nos chamados “bens com elementos digitais” (tele-móveis, relógios ou televisores “smart”).

8. Exercício do direito de rescisão e seus efeitos

A rescisão exerce-se mediante declaração pelo consumidor ao profissional (art. 15), o qual deve reembolsar o consumidor de todos os montantes pagos no âmbito do contrato, relativos ao pe-ríodo durante o qual teve lugar a não conformidade, salvo no for-necimento oneroso e duradouro em que o reembolso é limitado ao proporcional do preço pago correspondente ao período de não conformidade e a eventual antecipação (art. 16/1). O prazo de reembolso é de 14 dias após a redução do preço ou cessação do contrato e deve ser livre de encargos (art. 18).

Além do reembolso, o profissional deve ainda abster-se de utilizar quaisquer conteúdos, que não sejam dados pessoais, que tenham sido facultados ou criados pelo consumidor aquando da utilização dos conteúdos ou serviços digitais fornecidos pelo pro-fissional (art. 16/3), assistindo ao consumidor o direito de recuperar esses conteúdos digitais, a título gratuito e sem entraves por parte do profissional, num prazo razoável e num formato de dados de uso corrente e de leitura automática (art. 16/4). De igual modo, após a rescisão do contrato, o consumidor deve abster-se de utilizar os conteúdos ou serviços digitais e de colocá-los à disposição de ter-ceiros (art. 17/1), podendo o profissional impedir qualquer utilização posterior, em especial tornando-os inacessíveis ao consumidor ou desativando a sua conta de utilizador (art. 16/5).

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9. Direito de alteração dos conteúdos ou serviços digitais

No caso de fornecimento duradouro, o profissional pode alterar os conteúdos ou serviços digitais para além do necessário para man-ter os conteúdos ou serviços digitais em conformidade, se o contrato estipular razão válida para a alteração, se esta for feita sem custos adicionais para o consumidor e notificada de forma clara e com-preensível ao consumidor, com antecedência razoável, num suporte duradouro, das características e do momento das alterações, infor-mando-o também do seu direito de rescisão no caso de impacto substancial ou da possibilidade de manter os conteúdos ou serviços digitais inalterados, em conformidade, sem custos adicionais (art. 19/1). Sendo que o consumidor tem direito a rescindir o contrato gra-tuitamente se a alteração tiver um impacto negativo no acesso ou na utilização, por si, dos conteúdos ou serviços digitais, a menos que tal impacto seja apenas menor. O prazo para rescindir o contrato é de 30 dias a contar da data de receção da notificação ou do mo-mento em que os conteúdos ou serviços digitais foram alterados pelo profissional, consoante a data que for posterior (art. 19/2).

A diretiva fala em alteração dos conteúdos ou serviços, mas pode o prestador de serviços e/ou fornecedor de conteúdos reser-var o direito de descontinuar o serviço a qualquer momento e mes-mo sem justificação? Lê-se, por ex. nos termos de serviço do Goo-gle, que “O Google também poderá deixar de prestar os Serviços a você ou, incluir ou criar novos limites a nossos Serviços a qualquer momento.” Sendo objetivo da diretiva proteger o consumidor, seria desejável acautelar a sua posição face a ruturas bruscas e injustifi-cadas do serviço. Imagine-se o dano em massa à escala global se o Google descontinuasse os seus serviços sem aviso prévio!

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

33e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

10. Responsabilidade objetiva do fornecedor de conteúdos e ser-viços digitais?

Será aplicável ao fornecedor de conteúdos e serviços digitais o regime da responsabilidade do produtor por danos causados aos consumidores por produtos defeituosos?

A questão está de novo na ordem do dia34. A Comissão Euro-peia elaborou um documento35 nos termos do qual não existem da-dos suficientes para concluir com segurança sobre a necessidade de alargar a diretiva da “Product Liability” aos desenvolvimentos tecnológicos trazidos pelas aplicações informática (software), ob-jetos interligados em termos de IoT (“Internet of Things”) e sistema autónomos36. De igual modo, não é claro que a vulnerabilidade do

34 Ver, por ex., geraint Howells, cHristian twigg-flesner, cHris willett, «Product Liability and Digital Products», EU Internet Law, ed. T. Synodinou et al., Springer, Cham, 2017, 183-195, sustentando que os produtos não tangíveis, tais como aplicativos e ou-tro software não fornecidos em um meio tangível, seriam produtos para efeitos da diretiva sobre responsabilidade do produtor. O artigo faz uma distinção crucial entre informações (de forma tangível ou não tangível) que não devem gerar responsabili-dade e produtos tangíveis ou não tangíveis que não se limitam à mera prestação de informações e cujos defeitos podem causar danos materiais, devendo estes últimos ser abrangidos pela Diretiva 85/374/CEE em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, transposta pelo DL 383/89, de 6 de novembro (com alterações). Entre nós, Henrique Sousa Antunes, «Responsabilidade civil do produtor: os danos res-sarcíveis na era digital», Revista de Direito da Responsabilidade 1 (2019) 1476-1485.

35 Commission Staff Working Document, Evaluation of Council Directive 85/374/EEC of 25 July 1985 on the approximation of the laws, regulations and administrative provisions of the Member States concerning liability for defective products - Accom-panying the document Report from the Commission to the European Parliament, the Council and the European Economic and Social Committee on the Application of the Council Directive on the approximation of the laws, regulations, and adminis-trative provisions of the Member States concerning liability for defective products (85/374/EEC) - SWD(2018)157 final.

36 SWD(2018)157 final, p. 123.

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software face a ataques cibernéticos ou falhas na atualização de software de segurança devam ser consideradas defeito nos termos da diretiva. O documento constata a divergência doutrinal sobre a qualificação do software como produto para efeitos da diretiva37 e indica jurisprudência do TJUE segundo a qual o software pode ser um dispositivo médico se for destinado pelo produtor a ser usado especificamente para um ou mais fins médicos. Nesse sentido, o atual Regulamento dos dispositivos médicos38 inclui expressamente o software na lista de possíveis “dispositivos médicos” (art. 2), es-clarecendo o preâmbulo que “o software, por si só, é qualificado como dispositivo médico quando especificamente destinado pelo fabricante a ser utilizado para um ou vários fins médicos indicados na definição de dispositivo médico, ao passo que o software de uso geral, mesmo quando utilizado num contexto de saúde, ou o software previsto para fins relacionados com o estilo de vida e o bem-estar, não são um dispositivo médico. A qualificação de um software, quer como dispositivo quer como acessório, deverá ser independente da localização do software ou do tipo de intercone-xão entre este e um dispositivo” (considerando 19).

37 Ver, entre nós, joão calvão da silva, Responsabilidade civil do produtor, Coimbra: Almedina, 1990, 609-614 (considerando que “A definição de produto, con-tida no art. 3.º, abrange os suportes materiais em que a obra intelectual se materia-liza, fixa e comunica, pois são coisas móveis corpóreas, embora inconfundíveis com a obra intelectual em si — bem imaterial” – p. 613); pode ver-se também o nosso Comércio electrónico na sociedade da informação, cit., 110 s.

38 Regulamento (UE) 2017/745 do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de abril de 2017 relativo aos dispositivos médicos, que altera a Diretiva 2001/83/CE, o Re-gulamento (CE) 178/2002 e o Regulamento (CE) 1223/2009 e que revoga as Diretivas 90/385/CEE e 93/42/CEE do Conselho.

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CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

35e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

Mais acrescenta o referido documento de trabalho da Comis-são que o software é um componente de muitos produtos e que o produtor responde pelo produto final como um todo, concluin-do que “for products which include software at the moment they were put into circulation by the producer, the Directive could ad-dress liability claims for damages caused by defects in this software. The more open nature of new products, where the producer is no longer able to control software or other technical features subse-quently installed in or learned by the product may however pose a challenge for establishing claims under the Directive. / In conclusion, while there is little evidence of practical problems, the distinction between products and services may in the future no longer be per-tinent. Hence, there is a need to clarify what products and features are covered by the Directive”39.

11. Conclusão

No âmbito realização do mercado único digital foi identificada uma lacuna de proteção do consumidor de serviços e conteúdos digitais suscetível de prejudicar o bom funcionamento do mercado interno. Nesse sentido, o acervo da União Europeia sobre proteção do consumidor no comércio eletrónico, constituído nomeadamen-te pelas diretivas 2000/31 e 2011/83, foi reforçado pela Dir. 2019/770 sobre os contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, juntamente com outras medidas, em especial sua diretiva gémea, a Dir. 2019/771 sobre os contratos de compra e venda, que revogou

39 SWD(2018)157 final, p. 52.

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Alexandre L. Dias Pereira

e substituiu a Dir. 1999/44 sobre as garantias na venda de bens de consumo. A diretiva sobre contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais não pretende harmonizar questões internas do direito civil, desde logo a qualificação destes contratos nos tipos contratuais legais. Não obstante, consagra direitos do consumidor no caso de não fornecimento e de não conformidade dos conteú-dos ou dos serviços com o contrato. Os remédios para a “quebra do contrato” integram imperativamente o conteúdo destes contra-tos, qualquer que seja a sua ordenação na tipologia legal dos con-tratos, prevalecendo, enquanto lei especialíssima, nas relações de consumo e podendo até ser alargada a outros sujeitos que possam justificar proteção semelhante.

Todavia, alguns aspetos não foram regulados, como sejam o esgotamento do direito de distribuição na propriedade intelec-tual, ou a aplicação da responsabilidade do produtor ao fornece-dor de conteúdos e serviços digitais. É expetável que surjam novos desenvolvimentos sobre estas matérias, que face à harmonização completa estabelecida, surgirão primeiro no direito da União Europeia, reforçando a sua “soberania regulatória” na Internet40.

40 Sobre esta problemática pode ver-se o nosso «Direito ciberespacial: “soft law” ou “hard law”? Estudos em Homenagem ao Prof. J.J. Gomes Canotilho, org. alves correira, jónatas macHado, joão loureiro, vol. III, Coimbra Editora, 2012, p. 685-710, com mais referências.

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR*

1Mafalda Miranda Barbosa

1. Introdução

O texto que agora se apresenta parte de duas coordenadas básicas – a necessária proteção de dados pessoais e a imperiosa tutela do consumidor –, que se congregam simbioticamente.

A confluência entre os dois domínios estabelece-se em dois planos.

Por um lado, denota-se ao nível das relações creditícias esta-belecidas pelo sujeito enquanto consumidor. Na verdade, o titular dos dados pessoais pode assumir-se, também, como um consumi-dor que, nessa qualidade, tem de fornecer alguns dos seus dados pessoais ao profissional com quem contrata. É que se é certo que o consumidor tem direito à proteção dos seus dados pessoais, não é menos verdadeiro que a contratação implica (ou pode implicar ou mesmo ter de implicar) o fornecimento de certos elementos da identidade do sujeito, qualificados como dados pessoais. Há, por-

* Texto elaborado para o Congresso «Direito do Consumidor: Ruturas e Con-tinuidades após as Recentes Alterações Legislativas», organizado pelo Centro de Direito do Consumo em parceria com o Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no dia 22 de novembro de 2019.

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Mafalda Miranda Barbosa

tanto, que estabelecer um equilíbrio necessário entre a proteção do consumidor titular de dados e as regras da contratação.

Por outro lado, a intencionalidade problemática da relação entre o consumo e a proteção de dados constata-se num plano que ultrapassa a mera contratualidade da relação estabelecida. As modernas relações de produção e consumo, caracterizadas pela sua complexidade, e a sociedade de informação em que vi-vemos tornam claros os contornos do que pretendemos identificar.

Os dados pessoais dos consumidores são cada vez mais enca-rados como uma commodity, como bens que podem ser transa-cionados com valor económico, levando a que os profissionais que com eles contratem possam ter a tentação de os utilizar para além das específicas finalidades para que foram recolhidos. O acesso a tais dados pode envolver uma vantagem contratual importantíssi-ma para os profissionais, que, acedendo a essa informação, podem dirigir aos consumidores campanhas de marketing e outras formas agressivas de venda. Os autores falam, a este propósito, de duas linhas responsáveis por uma maior vulnerabilidade dos consumido-res: por um lado, a assimetria informacional; por outro lado, a mo-netarização das informações pessoais1. A isto acresce a introdução da inteligência artificial no tratamento de dados, com a criação de perfis de consumo e a construção de bancos de dados2. São cada

1 Departamento de Proteção e defesa do consumidor, Proteção de dados pes-soais nas relações de consumo: para além da informação creditícia, Brasília, 2010, 11, considerando que “a informação pessoal, especificamente, desponta como uma verdadeira commodity em torno da qual surgem novos modelos de negócio que, de uma forma ou de outra, procuram extrair valor monetário do intenso fluxo de informações pessoais proporcionado pelas modernas tecnologias da informação”.

2 Departamento de Proteção e defesa do consumidor, Proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da informação creditícia, 27, conside-

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vez mais frequentes, na web, as técnicas de monitorização da ati-vidade on line dos utilizadores. E a partir delas muitos são os perigos que se podem constatar3.

Em primeiro lugar, a utilização de dados comportamentais recolhidos na internet pode conduzir a um fenómeno de boxing, isto é, pode levar a que apenas seja veiculada publicidade que se adapte ao perfil do consumidor, o que implica uma limitação da possibilidade de escolha da pessoa em concreto4.

Em segundo lugar, podem-se abrir as portas a comportamen-tos discriminadores. Uma dessas formas de discriminação consiste na adoção do método do adaptative pricing, ou seja, na variação dos preços em função do perfil do consumidor: a proposta nego-cial apresentaria um preço mais elevado aos consumidores que se mostrassem aptos a aceitar aquela oferta por um maior preço5. Por

rando que “a sistematização de grandes volumes de informação tornou-se possível com o advento do processamento automatizado de informações, por meio de ban-cos de dados automatizados. O aumento no volume de tratamento de informações pessoais assim conseguido não foi, porém, meramente quantitativo, pois resultou na viabilização de várias práticas de coleta, tratamento e utilização de informações pessoas que antes, na perspetiva dos arquivos manuais, eram impossíveis ou não se justificariam. Assim, uma série de novas possibilidades para a utilização de dados pessoais surgiu com o advento dos bancos de dados pessoais automatizados”.

3 Sobre a criação de perfis, cf., igualmente, rafael Zannatta, Perfilização, Discri-minação e Direitos: do Código de Defesa do Consumidor à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, https://www.researchgate.net/publication/331287708_Perfiliza-cao_Discriminacao_e_Direitos_do_Codigo_de_Defesa_do_Consumidor_a_Lei_Ge-ral_de_Protecao_de_Dados_Pessoais

4 Departamento de Proteção e defesa do consumidor, Proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da informação creditícia, 69.

5 Departamento de Proteção e defesa do consumidor, Proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da informação creditícia, 70, conside-rando que aqui estaria em causa a violação do princípio da igualdade.

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outro lado, poderia estar em causa uma discriminação em sentido estrito, negando-se o acesso a determinados bens a certos consu-midores em função do seu perfil de risco6.

Significa isto que, embora a proteção de dados pessoais seja mais ampla do que um instrumento de tutela do consumidor, os dois domínios protetivos se relacionam naturalmente. Já é, aliás, há lon-go tempo que se colocam problemas que convocam os dois nichos problemáticos: pensemos, por exemplo, da disciplina das comuni-cações não solicitadas, vulgo spam7.

A proteção de dados deve, portanto, assumir-se como um im-portante instrumento de proteção do consumidor.

2. O quadro legal em matéria de proteção de dados: breve referência

2.1. A lei n.º67/98, de 26 de outubro e a proteção de dados

Em Portugal, até à entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados e, subsequentemente, da Lei n.º58/2019,

6 Departamento de Proteção e defesa do consumidor, Proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da informação creditícia, 70, consi-derando que “determinados perfis poderiam ver negado o acesso a determinados bens ou serviços (por exemplo, uma negativa quanto à compra de um determinado bem por se verificar no perfil a consulta anterior a sites que tratam de proteção ao crédito, sugerindo ao fornecedor - sem dados concretos - que tratar-se-ia de um potencial inadimplente)”.

7 Cf. a Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Ju-lho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas, cujo artigo 13.º dispõe, no seu n.º1, que “a

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41e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

de 8 de agosto8, a matéria relativa à proteção de dados pessoais era, não exclusiva, mas preferencialmente, disciplinada pela Lei

utilização de sistemas de chamada automatizados sem intervenção humana (apa-relhos de chamada automáticos), de aparelhos de fax ou de correio eletrónico para fins de comercialização direta apenas poderá ser autorizada em relação a assinan-tes que tenham dado o seu consentimento prévio”. Este sistema de opting-in estaria depois compensado por um sistema de opting-out, nos termos do artigo 13.º/2 (“se uma pessoa singular ou coletiva obtiver dos seus clientes coordenadas eletrónicas de contacto para correio eletrónico, no contexto da venda de um produto ou ser-viço, nos termos da Diretiva 95/46/CE, essa pessoa singular ou coletiva poderá usar essas coordenadas eletrónicas de contacto para fins de comercialização direta dos seus próprios produtos ou serviços análogos, desde que aos clientes tenha sido dada clara e distintamente a possibilidade de recusarem, de forma gratuita e fácil, a uti-lização dessas coordenadas eletrónicas de contacto quando são recolhidos e por ocasião de cada mensagem, quando o cliente não tenha inicialmente recusado essa utilização”). Cf., entre nós, a Lei n.º41/2004, de 18 de Agosto, cujo artigo 13.º-A dispõe, n.º1, que “está sujeito a consentimento prévio e expresso do assinante que seja pessoa singular, ou do utilizador, o envio de comunicações não solicitadas para fins de marketing direto, designadamente através da utilização de sistemas automatizados de chamada e comunicação que não dependam da intervenção humana (aparelhos de chamada automática), de aparelhos de telecópia ou de correio eletrónico, incluindo SMS (serviços de mensagens curtas), EMS (serviços de mensagens melhoradas) MMS (serviços de mensagem multimédia) e outros tipos de aplicações similares”, determinando o n.º2 que tal “não impede que o fornecedor de determinado produto ou serviço que tenha obtido dos seus clientes, nos termos da Lei de Proteção de Dados Pessoais, no contexto da venda de um produto ou serviço, as respetivas coordenadas eletrónicas de contacto, possa utilizá -las para fins de marketing direto dos seus próprios produtos ou serviços análogos aos transa-cionados, desde que garanta aos clientes em causa, clara e explicitamente, a pos-sibilidade de recusarem, de forma gratuita e fácil, a utilização de tais coordenadas no momento da respetiva recolha; e por ocasião de cada mensagem, quando o cliente não tenha recusado inicialmente essa utilização”.

8 Trata-se da lei que vem assegurar a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de da-dos pessoais e à livre circulação desses dados. No seu artigo 66.º/1 é expressamente revogada a lei n.º67/98, de 26 de Outubro.

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n.º67/98, de 26 de outubro. Nos termos do artigo 5.º da lei n.º67/98, de 26 de Outubro, os dados pessoais, entendidos como qualquer in-formação, de qualquer natureza e independentemente do respeti-vo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável, deviam ser tratados de forma lícita e com respeito pelo princípio da boa-fé; deviam ser recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, não podendo ser posteriormente tratados de forma incompatível com essas finalida-des; deviam ser adequados, pertinentes e não excessivos relativa-mente às finalidades para que fossem recolhidos e posteriormente tratados; deviam ser exatos e, se necessário, atualizados, devendo ser tomadas as medidas adequadas para assegurar que fossem apagados ou retificados, quando inexatos ou incompletos, tendo em conta as finalidades para que tinham sido recolhidos; e deviam ser conservados de forma a permitir a identificação dos seus titula-res apenas durante o período necessário para a prossecução das finalidades da recolha ou do tratamento posterior.

A lei partia do pressuposto de que os dados pessoais perten-cem ao domínio exclusivo do seu titular. Por isso, o tratamento dos dados pessoais dependia do seu consentimento, nos termos do ar-tigo 6.º Lei n.º67/98.

Este consentimento teria de ser específico e informado. Quer isto dizer que o consentimento do titular só seria válido se ele tivesse exato conhecimento do alcance da autorização que estava a con-ceder e que, portanto, haveria de ser previamente informado sobre questões essenciais como as referidas no artigo 10.º Lei n.º67/98; e, por outro lado, que ele só seria válido para a finalidade específica que fosse indicada pelo responsável pelo tratamento dos dados. Daí a importância da regra que determinava que os dados pes-

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soais apenas podiam ser recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, não podendo ser posteriormente tratados de forma incompatível com essas finalidades, bem como daqueloutra segundo a qual, entre as informações relevantes que haveriam de ser prestadas ao titular dos dados, se contava a informação relativa ao destinatário dos dados. A mesma intencionalidade presidia à regra contida no artigo 20.º/1 Lei n.º67/98. Na verdade, ao prestar o seu consentimento, o titular dos dados autorizava uma intromissão no seu direito em determinados moldes e com um certo alcance, razão pela qual a transferência desses dados para um Estado não europeu devia assegurar um nível de proteção adequado. Caso este inexistisse, então, a referida transmissão só podia operar me-diante o consentimento do titular, salvo hipóteses especiais exce-cionadas pelo legislador9.

Para além das informações prestadas no momento da recolha dos dados, o seu titular tinha direito a obter do responsável pelo tra-tamento, livremente e sem restrições, com periodicidade razoável e sem demoras ou custos excessivos a confirmação de serem ou não tratados dados que lhe dissessem respeito, bem como informação sobre as finalidades desse tratamento, as categorias de dados so-bre que incidia e os destinatários ou categorias de destinatários a quem seriam comunicados os dados; a comunicação, sob forma inteligível, dos seus dados sujeitos a tratamento e de quaisquer in-formações disponíveis sobre a origem desses dados; o conhecimen-

9 É também a natureza específica do consentimento que determina que “no caso de recolha de dados em redes abertas, o titular dos dados deva ser informado, salvo se disso já tiver conhecimento, de que os seus dados pessoais podem circular na rede sem condições de segurança, correndo o risco de serem vistos e utilizados por terceiros não autorizados” – cf. artigo 10.º/4 Lei n.º67/98.

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to da lógica subjacente ao tratamento automatizado dos dados que lhe digam respeito. Tratava-se de garantias consagradas no artigo 11.º Lei n.º67/98, às quais presidia, em parte, a mesma inten-cionalidade que colorava o consentimento em geral, mas apenas no que respeita aos dados recolhidos e tratados com base no con-sentimento do titular.

Nos termos do artigo 11.º/6 Lei n.º67/98, “no caso de os dados não serem utilizados para tomar medidas ou decisões em relação a pessoas determinadas, a lei pod[ia] restringir o direito de acesso nos casos em que manifestamente não exist[ia] qualquer perigo de vio-lação dos direitos, liberdades e garantias do titular dos dados, desig-nadamente do direito à vida privada, e os referidos dados fo[ssem] exclusivamente utilizados para fins de investigação científica ou con-servados sob forma de dados pessoais durante um período que não exceda o necessário à finalidade exclusiva de elaborar estatísticas”10.

Este direito de acesso era tido como fundamental para que o ti-tular dos dados pudesse confirmar ou infirmar o cumprimento das fina-lidades e ainda para exercer o direito à retificação, ao apagamento ou ao bloqueio dos dados cujo tratamento não cumprisse o disposto na lei, nomeadamente devido ao carácter incompleto ou inexato desses dados, conforme explicitava o artigo 11.º/1 d) lei n.º68/98. Além disso, dispunha o artigo 5.º/1 d) Lei n.º67/98 que o titular dos da-dos tinha direito à sua atualização e à retificação dos dados inexa-tos ou incompletos, tendo em conta as finalidades para que haviam sido recolhidos ou para que fossem tratados posteriormente.

10 Isto mostra, claramente, que, para além do direito à identidade que é por esta via tutelado, se pretende com a regulamentação encontrar mecanismos de salvaguarda da vida privada.

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Queria isto dizer que, mesmo depois de colhidos os dados, du-rante o período de tratamento, o titular dos mesmos continuava a poder controlá-los de algum modo.

Nos termos do artigo 12.º Lei n.º67/98, aquele titular tinha ainda direito de, salvo disposição legal em contrário, e pelo menos nos casos referidos nas alíneas d) e e) do artigo 6.º, se opor em qualquer altura, por razões ponderosas e legítimas relacionadas com a sua si-tuação particular, a que os dados que lhe dissessem respeito fossem objeto de tratamento, devendo, em caso de oposição justificada, o tratamento efetuado pelo responsável deixar de poder incidir sobre esses dados. Tinha ainda a possibilidade de se opor, a seu pedido e gratuitamente, ao tratamento dos dados pessoais que lhe disses-sem respeito previsto pelo responsável pelo tratamento para efeitos de marketing direto ou qualquer outra forma de prospeção, ou de ser informado, antes de os dados pessoais terem sido comunicados pela primeira vez a terceiros para fins de marketing direto ou utiliza-dos por conta de terceiros, e de lhe ser expressamente facultado o direito de se opor, sem despesas, a tais comunicações ou utiliza-ções. Tratava-se da consagração do que vinha sendo conhecido na doutrina por direito de oposição do titular dos dados pessoais11.

Obtido o consentimento, o responsável pelo tratamento dos dados devia notificar a Comissão Nacional de Proteção de Dados

11 Sobre os direitos inerentes à proteção de dados, cf. alexandre de sousa Pi-nHeiro, Privacy e proteção de dados pessoais: a construção dogmática do direito à identidade informacional, AAFDL, Lisboa, 2015, 658 e s., falando de direito de in-formação, cujo conteúdo difere consoante os dados tenham sido recolhidos direta ou indiretamente e se consubstancia no “direito a ser informado de forma que se consubstancie um tratamento leal”; de direito de acesso, enquanto “direito a acom-panhar as vicissitudes dos tratamentos”; direito de oposição, enquanto “limitação às consequências não consentidas expressamente na recolha de dados pessoais”. So-bre o ponto, para uma análise mais desenvolvida, em diálogo com o autor, mafalda

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(CNPD) do tratamento de dados a que ia proceder. Em determina-das situações, exigia-se, contudo, mais do que a notificação, fican-do a atuação do responsável dependente da autorização prévia da CNPD12. Era o que acontecia, entre outros casos, quando se lida-va com os chamados dados sensíveis. Relativamente a estes, não se partia da possibilidade de tratamento uma vez obtido o consenti-mento do seu titular, mas da proibição de tratamento, como regra. Nos termos do artigo 7.º/1 Lei n.º67/98, era proibido o tratamento de dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem ra-cial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos13. Haveria, contudo, possibilidade de tratamento de tais dados quando uma disposição legal o admitisse, quando houvesse autorização da CNPD, se por motivos de interesse público importante esse tratamento fosse in-

miranda barbosa, “Proteção de dados e direitos de personalidade: uma relação de interioridade constitutiva. Os beneficiários da proteção e a responsabilidade civil”, Estudos de Direito do Consumidor, n.º12, 2017, 75-132 (= “Proteção de dados e direi-tos de personalidade: uma relação de interioridade constitutiva. Os beneficiários da proteção e a responsabilidade civil”, AB Instantia, ano V, n.º7, 2017, 13-47).

12 Artigo 27.º e s. Lei n.º67/98.13 Sobre a identificação de dados sensíveis, cf. alexandre de sousa PinHeiro, Pri-

vacy e proteção de dados pessoais, 723. Explica o autor que a conjugação entre o artigo 35.º CRP e o artigo 7.º Lei n.º67/98 “não apresenta uma tipificação de toda a informação desta natureza”, permitindo-se a ampliação dos dados sensíveis através da “cláusula aberta da vida privada”. O autor dá o exemplo do fumo do cigarro que tem sido entendido pela CNPD como um dado sensível, por ser “um hábito da vida passível de comportamentos discriminatórios”.

Veja-se, igualmente, Pilar nicolás jiméneZ, La protección jurídica de los datos genéticos de carácter personal, Comares, Granada, 2006 e teodoro de almeida, “O direito à privacidade e a proteção de dados genéticos: uma perspetiva de direito comparado”, Boletim da Faculdade de Direito, 79, 2003, 355 s.

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dispensável ao exercício das atribuições legais ou estatutárias do seu responsável, ou quando o seu titular desse expressamente o seu consentimento para o referido tratamento. Devia, em qualquer dos casos, haver garantias de não discriminação e ficar salvaguardado o cumprimento de especiais medidas de segurança constantes no artigo 15.º Lei n.º67/98.

O tratamento de dados sensíveis seria, assim, possível, nos ter-mos do n..º3 do artigo 7.º Lei n.º67/98, se fosse necessário para pro-teger interesses vitais do titular dos dados ou de uma outra pessoa e o titular dos dados estivesse física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento; se fosse efetuado, com o consentimento do ti-tular, por fundação, associação ou organismo sem fins lucrativos de carácter político, filosófico, religioso ou sindical, no âmbito das suas atividades legítimas, sob condição de o tratamento respeitar ape-nas aos membros desse organismo ou às pessoas que com ele man-tenham contactos periódicos ligados às suas finalidades, e de os dados não serem comunicados a terceiros sem consentimento dos seus titulares; se dissesse respeito a dados manifestamente tornados públicos pelo seu titular, desde que se pudesse legitimamente de-duzir das suas declarações o consentimento para o tratamento dos mesmos; ou se fosse necessário à declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial e fosse efetuado exclusivamente com essa finalidade.

Situações havia, por fim, em que era possível a recolha e tra-tamento de dados sem ser necessário o consentimento do titular do direito. Tal ocorria, nos termos do artigo 6.º Lei n.º67/98, quando estivesse em causa a execução de contrato ou contratos em que o titular dos dados fosse parte ou de diligências prévias à formação do contrato ou à declaração da vontade negocial efetuadas a seu

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pedido; o cumprimento de obrigação legal a que o responsável pelo tratamento estivesse sujeito; a proteção de interesses vitais do titular dos dados, se este estivesse física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento; a execução de uma missão de interes-se público ou o exercício de autoridade pública pelo responsável pelo tratamento ou pelo terceiro a quem os dados fossem comuni-cados; a prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados fossem comunicados, desde que não devessem prevalecer os interesses ou os direitos, li-berdades e garantias do titular dos dados. Em causa a prossecução de interesses legítimos ou a salvaguarda de interesses superiores do titular dos dados, em situações em que não fosse possível prestar o consentimento; noutras hipóteses, porque se entra no domínio contratual ou pré-contratual, era ainda a autonomia da vontade a ditar a possibilidade de recolha e tratamento de dados por alguém que não o titular dos mesmos.

2.2. O Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016, e a Lei n.º58/2019, de 8 de agosto

O Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016, não altera a intencionalidade da disciplina legal em vigor até então, mas reforça alguns dos direitos dos titu-lares dos dados e torna mais rigorosos alguns procedimentos. Além disso, parece modificar a relação de forças entre a recolha e trata-mento de dados consentidos pelo titular e as outras finalidades de tratamento. Na verdade, enquanto ao nível da lei n.º67/98 a regra era a do tratamento de dados com base no consentimento do titu-lar dos mesmos, embora houvesse a previsão de situações em que

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dele se podia prescindir; nos termos do Regulamento (EU) 2016/679, nas condições de licitude do tratamento de dados o consentimen-to do titular surge na mesma posição que os restantes fundamentos.

Importa, por isso, acompanhar algumas (mas não todas) das altera-ções introduzidas à tutela dos dados pessoais pelo referido regulamento.

Desde logo, é o conceito de dados pessoais que parece so-frer uma ampliação. Se, nos termos da al. a) do artigo 3.º da Lei n.º67/98, eram definidos como qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respetivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificá-vel, sendo considerada identificável a pessoa que possa ser identi-ficada direta ou indiretamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social, o artigo 4.º/1 RGPD vem estabelecer como dado pessoal qualquer informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável, sendo considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identida-de física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou so-cial dessa pessoa singular. Não obstante a diversa formulação, cre-mos que a ampliação da noção não é senão aparente. De facto, a falta de referência aos dados de localização ou identificadores por via eletrónica, bem como aos elementos da identidade genéti-ca não condenava à sua exclusão do âmbito de relevância da lei n.º67/98. Aliás, o TJUE, no acórdão de 19 de Outubro de 2016 (Proc. C-582/14), em atenção à Diretiva 95/46/CE, do Parlamento Europeu

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e do Conselho, que a Lei n.º67/98 vem transpor para o ordenamen-to jurídico interno (devendo, por isso, ser interpretada de acordo com o direito comunitário), considera que o endereço de proto-colo internet dinâmico (IP) é um dado pessoal. De outro modo não poderia, aliás, deixar de ser, atenta a intencionalidade predicativa da disciplina, vertida não só na noção de dado pessoal, como nos princípios norteadores do tratamento de dados.

Estes estão, agora, especificados no artigo 5.º Regulamento. De certo modo, reproduzem o que já estava anteriormente con-sagrado. O tratamento de dados pessoais deve ser feito de forma lícita, transparente e de acordo com o princípio da boa-fé. Acres-centa-se, relativamente ao artigo 5.º/1 a) Lei n.º67/98, a transpa-rência, sem que, contudo, isso signifique que ela estivesse ausente do regime legal. Além disso, os dados apenas podem ser recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com es-sas finalidades. Quer isto dizer que o artigo 5.º/1 b) Regulamento reproduz o conteúdo do artigo 5.º/1 b) Lei n.º67/98, esclarecendo, contudo, que o tratamento posterior para fins de arquivo de inte-resse público, fins de investigação científica ou histórica ou fins esta-tísticos não é considerado incompatível com as finalidades iniciais. Consagra-se, igualmente, o princípio da minimização de dados, isto é, estes devem ser adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados, em absoluta correspondência com o artigo 5.º/1 c) Lei n.º67/98; o princípio da exatidão (os dados pessoais devem ser exatos e atuali-zados sempre que necessário, devendo ser adotadas todas as me-didas adequadas para que os dados inexatos, tendo em conta as finalidades para que são tratados, sejam apagados ou retificados

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sem demora), em sintonia com o artigo 5.º/1 d) Lei n.º67/98; o prin-cípio da limitação da conservação (os dados pessoais devem ser conservados de uma forma que permita a identificação dos titu-lares dos dados apenas durante o período necessário para as fi-nalidades para as quais são tratados), que reproduz sensivelmente a solução consagrada no artigo 5.º/1 e) Lei n.º67/98, embora se esclareça, agora, que os dados pessoais podem ser conservados durante períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusi-vamente para fins de arquivo de interesse público, fins de inves-tigação científica ou histórica ou fins estatísticos; e o princípio da integridade e confidencialidade. Quanto a este último, ausente do elenco de condições a que devem obedecer os dados pessoais de acordo com a Lei n.º67/98, significa que os referidos dados devem der tratados de uma forma que garanta a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito e con-tra a sua perda, destruição ou danificação acidental, adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas. Não obstante a referida omissão, importa considerar que ele já se extrairia de uma análise sistemática do regime legal em vigor em Portugal.

Tal como sob a vigência da Lei n.º67/98, de acordo com o RGPD, o tratamento de dados pessoais só é lícito se existir consen-timento do seu titular ou, em alternativa, se se verificar uma das se-guintes situações: se o tratamento for necessário para a execução de um contrato no qual o titular dos dados é parte, ou para diligên-cias pré-contratuais a pedido do titular dos dados; se o tratamento for necessário para o cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito; se o tratamento for necessário para a defesa de interesses vitais do titular dos da-dos ou de outra pessoa singular; se o tratamento for necessário ao

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exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autori-dade pública de que está investido o responsável pelo tratamento; se o tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, ex-ceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades funda-mentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança.

Apesar da similitude de formulações, há algumas diferenças a assinalar. Assim, e mesmo sem nos referirmos a condições de licitude não especificadas na Lei n.º67/98 e consagradas no Regulamento, deixa de se partir do princípio do consentimento para colocar em pé de igualdade as situações em que o tratamento de dados é feito com base nele ou com base nas outras circunstâncias ali espe-cificadas. Há, também, a relevar as alterações ao nível do próprio consentimento, que passa a ter de obedecer, pelo menos aparen-temente, a condições mais estritas de obtenção. Este consentimen-to é, como veremos, livremente revogável a todo o tempo, o que se vem a consubstanciar num direito ao esquecimento.

Nos termos do artigo 17.º Regulamento, o titular tem o direito de obter do responsável pelo tratamento o apagamento dos seus dados pessoais, sem demora injustificada, e este tem a obrigação de apagar os dados pessoais, sem demora injustificada, quando os dados pessoais deixem de ser necessários para a finalidade que motivou a sua recolha ou tratamento; quando o titular retire o con-sentimento em que se baseia o tratamento dos dados nos termos do artigo 6.º/1 a) ou do artigo 9.º/2 a) e se não existir outro fun-damento jurídico para o referido tratamento; quando o titular se oponha ao tratamento nos termos do artigo 21.º/1, e não existam interesses legítimos prevalecentes que justifiquem o tratamento,

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ou o titular se oponha ao tratamento nos termos do artigo 21.º/2; quando os dados pessoais foram tratados ilicitamente; quando os dados pessoais tiverem de ser apagados para o cumprimento de uma obrigação jurídica decorrente do direito da União ou de um Estado-Membro a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito; quando os dados pessoais tiverem sido recolhidos no contexto da oferta de serviços da sociedade da informação referida no artigo 8.º/1. Este direito ao esquecimento apresenta determinados limites. Designadamente, ele não poderá ser exercido quando o tratamen-to se revele necessário ao exercício da liberdade de expressão e de informação; ao cumprimento de uma obrigação legal que exija o tratamento prevista pelo direito da União ou de um Estado-Mem-bro a que o responsável esteja sujeito, ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade pública de que esteja investido o responsável pelo tratamento; quando haja mo-tivos de interesse público no domínio da saúde pública; quando estejam envolvidos motivos de arquivo de interesse público, fins de investigação científica ou histórica ou fins estatísticos, e o direito ao esquecimento tornasse impossível ou prejudicasse gravemente a obtenção dos objetivos desse tratamento; ou quando esteja em causa o exercício de um direito num processo judicial.

Para além do direito ao esquecimento, o titular dos dados tem também direito, nos termos do artigo 16.º, a obter, sem demora in-justificada, do responsável pelo tratamento a retificação dos dados pessoais inexatos que lhe digam respeito ou que sejam completa-dos os dados incompletos sejam completados; nos termos do artigo 18.º, a obter do responsável pelo tratamento a limitação do trata-mento, se se aplicar uma hipóteses previstas no preceito (direito de limitação); nos termos do artigo 20.º, de receber os dados pessoais

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que lhe digam respeito e que tenha fornecido a um responsável pelo tratamento, num formato estruturado, de uso corrente e de leitura automática, e o direito de transmitir esses dados a outro res-ponsável pelo tratamento sem que o responsável a quem os dados pessoais foram fornecidos o possa impedir, desde que o tratamento se baseie no consentimento ou num contrato e desde que o trata-mento seja realizado por meios automatizados (direito de portabili-dade); nos termos do artigo 21.º, de se opor a qualquer momento, por motivos relacionados com a sua situação particular, ao trata-mento dos dados pessoais feito de acordo com o artigo 6.º/1/ e) ou f), ou no artigo 6.º/4. Neste caso, o responsável pelo tratamento cessa o tratamento dos dados pessoais, a não ser que apresente razões impe-riosas e legítimas para esse tratamento que prevaleçam sobre os inte-resses, direitos e liberdades do titular dos dados.

O RGPD vem, igualmente, reforçar alguns dos deveres que re-caem sobre os responsáveis (controllers) pelo tratamento dos da-dos, incrementando a segurança na matéria. Estes deveres são extensíveis, nos termos do regulamento, aos subcontratantes (pro-cessors) e aplicam-se mesmo que estes sujeitos estejam sediados fora da União Europeia. Fundamental é que os dados incidam sobre titulares europeus.

O reforço da segurança passa, a este nível, inter alia, pela aplicação, tanto no momento de definição dos meios de tratamento como no momento do próprio tratamento, de medidas técnicas e organizativas adequadas, como a pseudonimização, a garantir a efi-cácia dos princípios da proteção de dados, nos termos do artigo 25.º/1 Regulamento. De acordo com o n.º2 do mesmo artigo 25.º “o responsá-vel pelo tratamento aplica, ainda, as medidas técnicas e organizativas para assegurar que, por defeito, só sejam tratados os dados pessoais

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que forem necessários para cada finalidade específica do tratamento. Essa obrigação aplica-se à quantidade de dados pessoais recolhidos, à extensão do seu tratamento, ao seu prazo de conservação e à sua acessibilidade. Em especial, essas medidas asseguram que, por defeito, os dados pessoais não sejam disponibilizados sem intervenção humana a um número indeterminado de pessoas singulares”. Outras medidas técnicas e organizativas estão previstas no artigo 32.º RGPD.

Prevêem-se, igualmente, outras regras, quais sejam o estabe-lecimento de códigos de conduta, a realização de privacy impact assessements, a notificação obrigatória das autoridades em caso de violação de dados pessoais, a nomeação de um encarregado de proteção de dados.

3. O consentimento

Do que ficou dito até ao momento, podemos concluir que o consentimento assume uma importância vital ao nível da proteção de dados pessoais. Ainda que ele surja, agora, em pé de igualdade com outros fundamentos de licitude do tratamento desses dados, o certo é que perdura na economia da disciplina normativa como um elemento central de legitimação da atuação de terceiros. Além disso, cumpre uma importante missão ao assegurar, ao longo de todo o período de tratamento de dados, o controlo dos mesmos por parte do seu titular.

Importa, por isso, atentar na natureza e nas características do consentimento. Mas antes, importa olhar para o consentimento em geral, tecendo sobre ele algumas considerações.

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3.1. O consentimento em geral

O consentimento do titular de um direito traduz-se na autoriza-ção que o mesmo dá para que haja interferência o seu direito. Na ausência desta autorização, o ato seria ilícito. Assim, pelo contrário, dá-se por totalmente justificado. Não se estranha, por isso, que o consentimento seja apresentado em termos doutrinários como uma causa de exclusão da ilicitude ou uma causa de justificação.

Mas, em rigor, o consentimento leva-nos, consoante a sua mo-dalidade, mais longe, pois, se em algumas situações o que está em causa é uma mera tolerância do titular do direito, a afastar a ilici-tude do comportamento de um terceiros, noutras situações pare-ce que, com ele, se confere, efetivamente, um poder jurídico ou um poder fáctico de agressão. Na verdade, os autores costumam distinguir três tipos de consentimento: i) consentimento vinculante; ii) consentimento autorizante; iii) consentimento tolerante14. O pri-meiro implica a atribuição de um poder jurídico de agressão; o se-gundo envolve um poder fáctico de agressão; já o terceiro pode ser encarado como uma verdadeira causa de exclusão da ilici-tude do ato15. A tripartição é relevante, devendo estar presente

14 Cf. orlando de carvalHo, Teoria Geral do Direito Civil, Sumários desenvolvidos para uso dos alunos do segundo ano do curso jurídico de 1980/81, Centelho, Coim-bra, 1981, 91 s.

15 Sobre o ponto, cf. brandão Proença, Direito das Obrigações – Relatório sobre o programa, o conteúdo e os métodos de ensino da disciplina, Publ. Universidade Católica, Porto, 2007, 183, sustentando que o consentimento do lesado apresen-ta uma configuração que o diferencia das outras causas de exclusão da ilicitude: “quando limitado pela ordem jurídica (ex. proibição da eutanásia) e pelos bons cos-tumes (piercing) revela uma vontade dispositiva ao legitimar o facto lesivo, quer sob a forma autorizante (artigo 81.º/2), quer sob a forma tolerante (artigo 340.º/1)”. O autor distingue este problema daqueloutro atinente à culpa do lesado, porque “no

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na tentativa de compreensão dos contornos da problemática em sede de proteção de dados.

O consentimento não pode ser genérico, devendo ser presta-do para cada ato em especial. Por outro lado, o lesado tem de ter consciência do alcance do ato para o qual está a consentir, razão pela qual, tratando-se de uma questão que envolva conhecimen-tos técnicos ou outros, deve ser cumprido em relação a ele um de-ver de informação/esclarecimento. Fala-se, assim, por referência a certos domínios, como no caso da responsabilidade médica, de consentimento informado. Assim também será, como veremos, ao nível da proteção de dados.

O consentimento não pode, por outro lado, violar os bons cos-tumes ou ser contrário a uma proibição legal, conforme dispõe o

consentimento existe uma atitude declarativa expressa ou tácita” e nas hipóteses concursivas “o lesado tem uma conduta material que concorre para o dano ou o agrava”, donde, no primeiro caso, há exclusão da responsabilidade (por falta de um dos pressupostos dela) e, no segundo, uma redução da indemnização. Para Brandão Proença, também a assunção do risco se distingue do consentimento pre-sumido: “excetuando o caso do boxe, onde há a atribuição de um poder de lesão, relativamente aos danos típicos sofridos em desportos que impliquem contacto físico (futebol, corridas, etc), mais do que ver aí um consentimento tácito ou uma acei-tação tácita e recíproca dos riscos de acidentes, é mais rigoroso falar-se de uma assunção não culposa dos riscos de danos, desde que o lesante não tenha tido uma conduta dolosa”. Mais acrescenta o autor que “a irregularidade do consentimento” (prestado, por exemplo, para a participação num jogo ilícito), “não afastando a culpa do lesado, nem a ilicitude do ato lesivo, submete a hipótese ao âmbito de aplicação do artigo 570.º CC” – cf. p. 184.

Cf., a este propósito, mafalda miranda barbosa, Lições de responsabilidade civil, Princípia, 2017, considerando que as causas de justificação operam a diferentes ní-veis: 1) excluem o nexo de ilicitude que em concreto se deve erigir, pela transferên-cia do risco para uma esfera diversa da do agente imediato; 2) coenvolvem uma tolerância do ordenamento jurídico; 3) conferem uma verdadeira autorização do ordenamento para agir.

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artigo 340.º/2 CC. No que tange aos direitos de personalidade, de acordo com o artigo 81.º CC, ele não pode igualmente violar a ordem pública.

Além disso, pode presumir-se, nos termos do artigo 340.º/3 CC, que dispõe que se tem por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumí-vel. Mesmo quando não seja presumido, o consentimento pode ser, salvo expressa previsão em contrário, tácito. Importa, contudo, re-lembrar que o consentimento tácito não se confunde com as situa-ções de autocolocação em risco ou de heterocolocação em risco consentida. Na verdade, embora nestas duas hipóteses se possa vir a excluir (ou a reduzir) a indemnização em função da falta de imputação objetiva, quando se coteja a esfera de risco do lesante com a esfera de risco do lesado, o certo é que o ato não deixa de ser ilícito por si, o que quer dizer que, havendo consentimento, não se colocará o problema de uma eventual redução da indem-nização ao contrário do que ali pode suceder. Originariamente, a transposição das figuras da autocolocação e da heterocolocação em risco para o quadro da responsabilidade civil operou-se por via da recondução das figuras para o consentimento do lesado, numa orientação jurisprudencial que haveria de receber o repúdio poste-rior de autores como Larenz16. Tal ambivalência doutrinal, associa-

16 Cf. larenZ, Lehrbuch des Schuldrechts I, Allgemeiner Teil, 14 Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 1987, 467 s. Dando conta disso mesmo, v. Hermann lange/go-ttfried scHiemann, Handbuch des Schuldrechts, Schadensersatz, 3. Aufl., Mohr, Tübin-gen, 2003, 641. Cf., também, deutscH, Allgemeines Haftungsrecht, 2. völlig neuge-staltete end erw. Aufl., Carl Heymanns Köln, Berlin, Bonn, München, 1996, 375. A este propósito, veja-se, ainda, cHristoPHe QuéZel-ambrunaZ, Essai sur la causalité en droit de la responsabilité civile, Dalloz, 2010, 491 s.

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da a uma nem sempre clara eficácia das figuras17, arrasta, ainda, consigo a questão de saber se a operacionalidade delas se derra-ma em sede de culpa ou de ilicitude18. Estamos em crer que é por via da imputação que deve ser pensado o problema: não é a cul-pa que surge diminuída por intermédio da atuação do lesado; não é a ilicitude, polarizada no resultado, que se apaga; mas o nexo de imputação ou nexo de responsabilidade, que permite reconduzir aquele resultado lesivo – em que se consubstancia o juízo de des-conformidade com o ordenamento jurídico – ao comportamento do lesante, que se exclui. Sendo a atuação de cada um dos sujeitos intervenientes livre, é uma esfera de responsabilidade – sem a qual a autonomia não vai pensada – que é exercitada, sendo mister descobrir, no confronto entre as duas, qual funciona como polo de atração do evento danoso sobrevindo. Para tanto, entram em jogo os deveres conformadores da liberdade positivamente alicerçada – os deveres do tráfego – para, na análise deles em face das cir-cunstâncias do caso concreto, percebermos qual o seu âmbito e finalidade. Ou seja, quando pudermos reconhecer na conduta do lesado um comportamento livre, há que, em simultâneo, determinar se os deveres do tráfego que preenchem a esfera de responsabili-

17 Debate-se, na verdade, sob formulações não coincidentes, se a invocação delas determina a exclusão da responsabilidade do lesante ou dá origem à redução da indemnização, de acordo com a contribuição daquele e do lesado. Veja-se, ain-da, a questão da analogia entre o consentimento e a autocolocação em risco pela participação em atividades perigosas e a posição aduzida pelo Bundesgerichtshof quanto ao ponto. Veja-se jörg fedtke e ulricH magnus, “Contributory negligence under German Law”, Unification of Tort Law: contributory negligence, Principles of European Tort Law, vol. 8, European Centre of Tort and Insurance Law, Kluwer Law International, Londo, New York, 2004, 83.

18 Cf., uma vez mais, Hermann lange/gottfried scHiemnann, Handbuch des Schul-drechts, 643.

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dade do lesante se estendem à obliteração da lesão verificada e, concomitantemente, se os deveres que sobre o lesado impendem para proteção da sua própria esfera foram ou não postergados19-20..

Como veremos, o consentimento ao nível da proteção de da-dos apresenta peculiaridades que afastam algumas das considera-

19 A alteração de perspetiva a que se alude em texto não é privada de signifi-cado prático-normativo. Na verdade, afastar a operacionalidade do consentimen-to do lesado – tradicionalmente visto como uma causa de exclusão da ilicitude e, como tal, uma exceção apta a afastar in totu o direito à indemnização – para se fa-lar de schuldhafte Selbstgefährdung permite a transição de uma solução de tudo ou nada para uma repartição da indemnização entre lesante e lesado. Firme-se uma ideia: a perspetivação do problema à luz da noção de nexo de imputação ou nexo de ilicitude não contende com nenhuma das consequências a que se alude. Na ver-dade, é possível verificar-se a entrada em cena de uma esfera de responsabilidade do lesado, sem que isso consuma a eficácia irradiada a partir da esfera de risco/res-ponsabilidade assumida pelo lesante. Sobre o ponto, cf. mafalda miranda barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação. Contributo para a compreensão da natureza binária e personalística do requisito causal ao nível da responsabilidade civil extracontratual, Princípia, 2013.

20 A propósito do consentimento do ofendido, cf. Hermann LANGE/Gottfried SCHIEMANN, Handbuch des Schuldrechts, 648 s. Note-se, a este ensejo, que os auto-res integram a análise da problemática no quadro da tematização do Handeln auf eigene Gefahr. E sublinhe-se a lição que ali se colhe a propósito da participação em eventos desportivos. Assim, dizem-nos que é necessário estabelecer uma diferencia-ção: quem participa num combate de boxe está a aprovar o comportamento do autor das lesões, mesmo que estas ocorram. Mas, na maioria dos desportos, a ex-pectativa é que não haja lesões graves. Explicitam, aliás, que “mesmo quem integra uma corrida de motos num terreno difícil não consente em todos os ferimentos, mas apenas nos da dimensão do perigo”. O problema abordado pelos autores – e de que aqui só damos breve sinal – comporta dimensões assaz interessantes e repercu-te-se com acutilância em termos prático-normativos. Na verdade, cf. pág. 649: será que a observância das regras desportivas, por si só, isenta o agente da responsabi-lidade? O problema é tanto mais interessante quanto passa pela noção exata do alcance do ilícito nestes casos concretos. Resultará ele, unicamente, da preterição das regras desportivas? Como ensinam Lange e Schiemann, seria estranho que, pe-rante uma ameaça de lesão de acordo com as regras do jogo, pudesse ser admitida

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ções expendidas até ao momento. Poderá, no entanto, ser interes-sante questionar em que medida, tendo em conta que, subjacente ao direito à proteção de dados pessoais estão outros direitos, não pode falar-se, em relação a estes, de uma autocolocação em risco ou de uma heterocolocação em risco consentida21.

3.2. O consentimento ao nível da proteção de dados

3.2.1. O papel do consentimento

O consentimento assume, conforme resulta do exposto ante-riormente, um papel fundamental na economia da proteção de dados pessoais, surgindo como fundamento de legitimação (e, consequentemente, de licitude) do tratamento de dados que seja feito. Pode, ainda, surgir como fundamento específico de licitude

a legítima defesa ou a pretensão de uma omissão preventiva. Isto mostra, ademais, que os desportistas só se podem defender através das regras do jogo, estando, por-tanto, a dispor sobre o seu próprio corpo. Fundamental é que o perigo do jogo se reflita na lesão sofrida. De todo o modo, continua problemática a via de exclusão da indemnização: culpa ou ilicitude entram uma vez mais em diálogo.

Vide, também, Adelaide Menezes LEITÃO, Normas de protecção e danos pura-mente patrimoniais, Almedina, Coimbra, 2009, 664, distinguindo-o da atuação a risco próprio (Handeln auf eigene Gefahr), porque entende que no último caso não há consentimento na lesão, mas só na colocação em perigo. Cf., no mesmo sentido, Hermann LANGE/Gottfried SCHIEMANN, Handbuch des Schuldrechts, 641; DEUTSCH, Allgemeines Haftungsrecht, 375; LARENZ, Lehrbuch, I, 467 s.

21 Cf., a propósito da relação entre a proteção de dados pessoais e os direitos que lhe subjazem, mafalda miranda barbosa, “Proteção de dados e direitos de per-sonalidade: uma relação de interioridade constitutiva. Os beneficiários da proteção e a responsabilidade civil”.

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quando estejam em causa dados sensíveis (dados que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religio-sas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, dados biomé-tricos que identifiquem uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde, dados relativos à vida sexual ou orientação se-xual)22. Nesta hipótese, o consentimento deve revestir característi-cas especiais.

O facto de se afirmar que o consentimento é uma das causas de legitimação para o tratamento de dados não significa que seja a única causa. Sequer significa, como já explicitámos, que seja a principal causa de legitimação do tratamento de dados. Pelo con-trário, o artigo 6.º RGPD prevê outros fundamentos de licitude; e o artigo 9.º/2 RGPD admite o tratamento de dados sensíveis para além das hipóteses de consentimento.

Consoante esclarece o grupo de trabalho do artigo 29.º, embora por referência ao anterior quadro normativo, não só existem diversos fundamentos de legitimação do tratamento de dados, como a mesma situação de base pode convocar mais do que um fundamento de lici-tude. A consciência deste pormenor é extremamente importante: na verdade, se cada fundamento se orienta por uma finalidade concre-ta, a mobilização de um desses fundamentos não legitima o respon-sável a tratar os dados para lá dessa finalidade. Nessa medida, pode ser necessário convocar, no que respeita ao tratamento suplementar, o consentimento. Assim, por exemplo, se o tratamento de dados for ne-cessário para a execução de um contrato na qual a pessoa em cau-sa é parte, ele é autorizado pelo artigo 6.º/1 b) RGPD. Ao invocar-se

22 Sobre o ponto, cf. Parecer do grupo de trabalho do artigo 29.º 15/2011, ado-tado em 13 de julho de 2011.

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este fundamento não se pode ir além do que é necessário, de acordo com a finalidade que preside ao fundamento, o que significa que, se o contraente pretender tratar os dados para outros fins, deverá obter o devido consentimento específico23. Ou seja, para a mesma situação de facto, confluem diversos fundamentos de legitimação do tratamento. Baseando-nos num exemplo oferecido pelo mesmo grupo de traba-lho, mas adaptando-o ao novo quadro regulativo, podemos dizer que, se A compra ao stand X um automóvel, este procede ao trata-mento de dados necessários para celebrar o contrato, legitimado de acordo com o artigo 6.º/1 b) RGPD; procede ao tratamento de dados necessário para solicitar os documentos do veículo, legitima-do de acordo com o artigo 6.º/1 c) RGPD; procede ao tratamento de dados associados aos serviços de gestão de clientes, legitimado de acordo com o artigo 6.º/1 f) RGPD, e necessitando para trans-ferir dados a um terceiro para as suas atividades de marketing do consentimento do titular dos dados, de acordo com o artigo 6.º/1 a) RGPD.

Em contrapartida, em determinadas situações, o consentimen-to não será necessário. Basta para tanto que se verifique um outro fundamento de legitimação. Se em causa estão dados necessá-rios para a execução de um contrato (ou mesmo para a sua ce-lebração), então pode prescindir-se do consentimento. A prática generalizada por parte de certos comerciantes no sentido de, por força da entrada em vigor do RGPD, exigirem reiteradamente a prestação do consentimento pelos seus clientes não se justifica, ex-ceto se em causa não estiver apenas a celebração e execução do

23 Parecer do grupo de trabalho do artigo 29.º 15/2011, adotado em 13 de julho de 2011, 9 s. Explica-se, aí, que, na prática, se poderá ter de obter o consentimento como uma condição adicional para uma certa do tratamento.

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r64

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contrato. Repare-se que, apesar de o artigo 6.º/1 b) RGPD falar em execução do contrato, devemos entender o preceito no sentido de abranger igualmente a sua celebração, dado que a execução de que se cura a pressupõe necessariamente. De outro modo, aliás, não se compreenderia a referência contida na mesma norma às diligências pré-contratuais.

Por outro lado, a possível confluência de mais do que um fun-damento de legitimação do tratamento de dados pode conduzir a soluções diferenciadas. Vejamos: o RGPD determina que os dados só podem ser conservados de uma forma que permita a identifica-ção dos titulares dos dados apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados. Imagine-se que, num determinado hotel, são solicitados determinados dados de identi-ficação do cliente no momento da reserva e, posteriormente, no momento do check-in. O fundamento para o tratamento deles ou de alguns deles não deve ser o consentimento, na medida em que os dados em questão são essenciais para a celebração e execu-ção do contrato. Já em relação a outras finalidades poder-se-á exigir o consentimento. Pergunta-se, porém, em relação a todos, se os mesmos não deveriam ser eliminados depois de terminada a estadia do cliente. A resposta não pode ser senão negativa. Na verdade, parece que os responsáveis pelo hotel – e responsáveis pelo tratamento de dados – podem tratar os dados, armazenando-os, com fundamento na sua necessidade para efeito de interesses legítimos por si prosseguidos. Basta, para tanto, que se invoque a necessidade comercial de gestão de clientes. Mas, não estando em causa o consentimento, não será possível usar esses dados para efeitos de campanhas promocionais do hotel, nem tão-pouco se poderá defender que se podem manter os dados indefinidamente.

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Em suma, o consentimento não é o único fundamento de li-citude do tratamento de dados, embora seja uma das causas de legitimação desse tratamento. Para a mesma situação de base, podem confluir vários fundamentos, sendo necessário determinar, em concreto, qual está em causa para, analisando-o à luz das fina-lidades que lhe subjazem, se aferir da efetiva licitude dele.

Importa, contudo, sublinhar um aspeto importantíssimo. Nos termos do artigo 13.º/1 c) e do artigo 14.º/1 c), o responsável pelo tratamento de dados deve informar o titular dos dados acerca do fundamento desse tratamento, antes de ele iniciar e relativamente a uma finalidade específica. Ora, consoante esclarece o grupo de trabalho do artigo 29.º “o responsável pelo tratamento, se optar por invocar o consentimento para qualquer parte do tratamento, deve estar preparado para respeitar essa opção e parar essa par-te do tratamento se um indivíduo retirar o consentimento (…). não pode passar do consentimento para outros fundamentos legais. Por exemplo, não lhe é permitido utilizar retroativamente o fundamento do interesse legítimo para justificar o tratamento, se forem deteta-dos problemas com a validade do consentimento”24.

3.2.2. O quando e o como do consentimento. O problema das mo-dalidades e da forma do consentimento

Se o consentimento surge como fundamento da legitimação do tratamento de dados, então ele tem de situar-se antes do início

24 Orientações do grupo de trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, 26.

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desse tratamento. Ora, se o quando do consentimento não levanta dúvidas, no que respeita ao como, às suas modalidades e à forma que deve revestir, maiores dificuldades emergem.

No quadro da anterior disciplina, entendia-se que consenti-mento devia ser dado de forma inequívoca. Isto não significava, porém, que ele não pudesse ser tácito.

Nos termos do artigo 217.º CC, as declarações de vontade po-dem ser expressas ou tácitas, salvo determinação legal em contrário. Ora, sendo certo que não estaremos necessariamente diante de de-clarações negociais, o artigo 295.º CC manda aplicar aos atos jurídi-cos que não sejam negócios jurídicos as disposições próprias destes, desde que a analogia das situações o justifique. O caráter inequívo-co do consentimento não era posto em causa pela natureza conclu-dente do comportamento que o consubstanciasse, tanto mais que o citado artigo 217.º CC define a declaração tácita como aquela que “se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”25.

O grupo de trabalho do artigo 29.º vinha admitir expressamen-te qualquer forma para o consentimento, embora se afastassem as omissões. Falava-se, entre outras, da assinatura de um formulário, de declarações orais, de um comportamento concludente, do en-vio de um pedido de informações, na medida em que o consenti-mento fosse necessário para lhe dar resposta25. O caráter expresso do consentimento só era exigível quando se lidasse com categorias especiais de dados, considerados sensíveis.

25 Pensemos, por exemplo, numa hipótese de gravação de uma chamada tele-fónica, sendo o utente do serviço alertado de que, se não der o seu consentimento, deverá contactar o prestador de serviço pelos meios de comunicação alternativos. A prossecução da chamada, nestes casos, deve ser entendida como expressão tácita do consentimento do titular dos dados pessoais.

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR

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Nos termos do artigo 7.º RGPD, o responsável pelo tratamento deve poder demonstrar que o titular dos dados deu o seu consen-timento para o tratamento dos seus dados pessoais. Ademais, se o consentimento do titular dos dados for dado no contexto de uma declaração escrita que diga também respeito a outros assuntos, o pedido de consentimento deve ser apresentado de uma forma que o distinga claramente desses outros assuntos de modo inteligí-vel e de fácil acesso e numa linguagem clara e simples.26Onde a Lei

Já será diferente a ponderação nos casos de captação de imagem por via de videovigilância. Se um comerciante utiliza câmaras de vigilância por motivos de se-gurança, colocando um aviso a alertar todos aqueles que acedam ao estabeleci-mento comercial em questão de que estão a ser filmados, com forma de prevenir eventuais atos ilícitos, parece dispensar-se o consentimento, nos termos do artigo 6.º/e) Lei 67/98.

A propósito das câmaras de vigilância, tenha-se, ainda, em conta o interessante problema, a propósito do âmbito de aplicação da diretiva europeia, de determinar quando é que estamos diante de recolha de dados para uso doméstico e da ques-tão da utilização de câmaras em casa de uma pessoa por motivos de segurança – cf. alexandre de sousa PinHeiro, Privacy e proteção de dados pessoais, 721 s.

Relativamente à forma do consentimento, veja-se alexandre de sousa PinHeiro, Pri-vacy e proteção de dados pessoais, 595, referindo-se à diretiva europeia na matéria, transposta pela lei portuguesa. Diz-nos o autor que “a referência à manifestação explícita de vontade não resolve as dúvidas quanto à forma de expressão, dado que a natureza tácita de um comportamento não colide com a sua comunicação explícita. Decorre com clareza da diretiva que não se exclui o consentimento oral. Relativamente à natureza explícita do consentimento, deve considerar-se que não seria praticável um sistema em que, para todas as fases de tratamento, fosse ne-cessário o consentimento do titular. A recolha do consentimento deve ser, portanto, interpelada como funcionalizada ao tratamento, sendo este composto pela multi-plicidade de fases que a proposta de alteração prevê” – cf. pág. 595, nota 2257.

26 Parecer do grupo de trabalho do artigo 29.º 15/2011, 13-14. Atente-se, ainda, nos exemplos oferecidos nas páginas 24 e seguintes: — Um hotel solicitava aos seus clientes que colocassem a sua morada postal num formu-

lário em papel no caso de desejarem receber informações promocionais por correio; a colocação da morada no formulário poderia funcionar como consentimento;

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n.º67/98 falava de consentimento inequívoco, colocando-se o pro-blema de saber se ele poderia ser tácito e chegando-se à conclu-são que o caráter não expresso da declaração, nos termos do arti-go 217.º CC, não contrariava a inequivocidade dele, diz-se agora que o responsável deve poder demonstrar que o titular dos dados deu o seu consentimento. Ora, trata-se de uma questão probatória, que não pode ser confundida com a modalidade da declaração em causa. Em rigor, mesmo que se exigisse que o consentimento fosse prestado segundo uma determinada forma – algo que o regu-lamento não dispõe –, nos termos do artigo 217.º/2 CC, tal caráter formal não impediria que ela fosse emitida tacitamente, desde que a forma tivesse sido observada quanto aos factos de que a decla-ração se possa deduzir.

Haverá, contudo, de ter em conta o artigo 4.º/11 Regulamen-to. Neste define-se o consentimento como “uma manifestação de vontade, livre, específica, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de tra-

— À saída de um hotel, um funcionário pergunta se o cliente está interessado em fornecer a morada para envio de informação promocional; se o cliente fornecer a morada está a prestar o seu consentimento;

— Num formulário web de reserva de quartos num hotel, existe uma caixa de diálogo visível para as pessoas selecionarem se pretenderem aderir a um pro-grama de fidelização; a seleção da caixa deve ser vista como uma forma de consentimento expresso.

— Um fornecedor de jogos on-line exige aos jogadores que indiquem a sua idade, nome e morada para efeitos de participação num jogo; surge um aviso que indica que, ao utilizar o sítio web, e ao fornecer informações os utilizadores consentem no tratamento dos seus dados para efeitos de envio de informação comercial, tanto pelo fornecedor, como por terceiros; não há consentimento, por não existir uma manifestação inequívoca.

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69e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

tamento”27. Ora, embora haja alusão à natureza explícita da ma-nifestação da vontade, o regulamento afirma que esta tem lugar mediante declaração ou ato positivo inequívoco. A dualidade a que assim somos conduzidos parece depor no sentido da admissibi-lidade de um comportamento concludente, desde que inequívoco e explícito. Simplesmente, se é de admitir, à luz do ordenamento jurídico português, e atenta a amplitude com que se compreen-dem os comportamentos declarativos, que haja consentimento tá-cito, desde que prestado de forma inequívoca, haverá, também, e não obstante, que ter em conta quer que o responsável por aquele deve poder demonstrar que o titular dos dados deu o seu consenti-mento para o tratamento dos seus dados pessoais28, quer o disposto a este propósito no considerandum 32 do RGPD. Pode ler-se aí que “o consentimento do titular dos dados deverá ser dado mediante um ato positivo claro que indique uma manifestação de vontade livre, específica, informada e inequívoca de que o titular de dados consente no tratamento dos dados que lhe digam respeito, como por exemplo mediante uma declaração escrita, inclusive em for-mato eletrónico, ou uma declaração oral. O consentimento pode ser dado validando uma opção ao visitar um sítio web na Internet, selecionando os parâmetros técnicos para os serviços da socieda-de da informação ou mediante outra declaração ou conduta que indique claramente nesse contexto que aceita o tratamento pro-posto dos seus dados pessoais. O silêncio, as opções pré-validadas

27 O artigo 3.º/h) Lei n.º67/98 não falava de manifestação explícita, limitando-se a definir o consentimento como “qualquer manifestação de vontade, livre, específi-ca e informada, nos termos da qual o titular aceita que os seus dados pessoais sejam objeto de tratamento”.

28 Releva a este ensejo a diferença entre as formalidades ad probationem e ad substantiam.

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ou a omissão não deverão, por conseguinte, constituir um consen-timento. O consentimento deverá abranger todas as atividades de tratamento realizadas com a mesma finalidade. Nos casos em que o tratamento sirva fins múltiplos, deverá ser dado um consentimento para todos esses fins. Se o consentimento tiver de ser dado no segui-mento de um pedido apresentado por via eletrónica, esse pedido tem de ser claro e conciso e não pode perturbar desnecessaria-mente a utilização do serviço para o qual é fornecido”. Exclui-se expressamente – e em consonância com a regra ditada pelo artigo 218.º CC – a relevância do silêncio como declaração de vontade, mas persistem dúvidas acerca do comportamento concludente como via de manifestação da vontade do sujeito. Nada se esta-belecendo a este respeito, valem, entre nós, numa interpretação sistemática dos preceitos do regulamento, as regras atinentes às declarações negociais, aplicáveis a esta questão ou diretamente ou por força do artigo 295.º CC29. Parece, contudo, que, atentas as exigências probatórias e a necessidade de interpretar o corpo do regulamento à luz dos seus considerandi, há quem defenda a exigência de uma declaração expressa, que não equivale, contu-do, a uma declaração escrita. Atentemos, porém, nas orientações do grupo de trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, nas quais se pode ler que “um «ato positivo inequívoco» significa que o titular dos dados deve agir deliberadamente para consentir o tratamento em causa”. As-sim, “a utilização de opções pré-assinaladas que o titular dos dados é obrigado a modificar para recusar o tratamento («consentimen-to baseado no silêncio») não constitui por si só um consentimento

29 Sobre o ponto, cf., ainda, Paulo mota Pinto, Declaração tácita e comporta-mento concludente no negócio jurídico, Almedina, Coimbra, 1995.

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inequívoco”30. Mas considera-se que, “no âmbito dos requisitos do RGPD, os responsáveis pelo tratamento têm liberdade para desen-volver um fluxo de consentimento que se adeque às respetivas or-ganizações. A este respeito, as ações físicas podem ser considera-das um ato positivo inequívoco em conformidade com o RGPD”.

Dois importantes exemplos são fornecidos pelo grupo de traba-lho: “deslizar o dedo por uma barra no ecrã, assentir com a cabeça em frente a uma câmara inteligente, rodar o telemóvel no sentido dos ponteiros do relógio ou movimentá-lo de forma a desenhar no ar o número oito podem ser opções para indicar concordância, desde que sejam fornecidas informações claras e desde que seja evidente que o movimento em causa significa concordância com um pedido específico”; “fazer descer a página com o cursor ou com o dedo num sítio web não satisfaz o requisito de um ato positivo e inequívo-co. Isto porque o aviso de que continuar a percorrer a página cons-titui consentimento pode ser difícil de distinguir e/ou pode não ser visto quando o titular dos dados estiver a percorrer rapidamente a página através de grandes quantidades de texto, uma vez que essa ação não é suficientemente inequívoca”31. A distinção entre ambos parece residir não na dicotomia entre declarações expressas e táci-tas32, mas entre comportamentos positivos e inequívocos e omissões silentes. É, portanto, a essa luz que nos devemos orientar.

30 Orientações do grupo de trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, 18

31 Orientações do grupo de trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, 19.

32 Pense-se no exemplo de A que, perante a solicitação para que forneça a sua morada se quiser que os seus dados sejam tratados para efeitos de marketing direto, dá essa informação, sem mais nada dizer. Não estamos diante de uma decla-ração expressa e, não obstante, parece ser suficiente para efeitos de validade do consentimento

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No caso dos dados sensíveis – categorias especiais de dados previstos no artigo 9.º RGPD – exige-se o consentimento explícito. De acordo com o grupo de trabalho do artigo 29.º, “em termos jurídicos, entende-se que «consentimento explícito» tem o mesmo significado que «consentimento expresso». Abrange todas as situa-ções em que as pessoas são confrontadas com a oportunidade de dar ou não o seu acordo para um uso especial ou divulgação da in-formação pessoal que lhes diz respeito e respondem ativamente a essa questão, verbalmente ou por escrito. Normalmente, o consen-timento explícito ou expresso é dado por escrito, com a aposição de uma assinatura manuscrita. Por exemplo, é dado consentimento explícito quando a pessoa em causa assina uma autorização que estabelece claramente porque é que o responsável pelo tratamen-to pretende recolher e tratar os dados”33.

33 Parecer do grupo de trabalho do artigo 29.º 15/2011, 29-30. Cf. Orientações do grupo de trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento na aceção do Re-gulamento (UE) 2016/679, 20 s.: a referida declaração escrita não é a única maneira de obter consentimento explícito e não se pode dizer que o RGPD recomenda de-clarações escritas e assinadas em todas as circunstâncias que exigem um consen-timento explícito válido. Por exemplo, num contexto digital ou em linha, o titular de dados pode emitir a declaração necessária preenchendo um formulário eletrónico, enviando uma mensagem de correio eletrónico, carregando um documento digita-lizado com a assinatura do titular dos dados ou utilizando uma assinatura eletrónica. Em teoria, a utilização de declarações orais também pode ser suficiente para obter um consentimento explícito válido. Contudo, pode ser difícil para o responsável pelo tratamento provar que todas as condições aplicáveis ao consentimento explícito válido foram satisfeitas quando a declaração foi gravada. Uma organização tam-bém pode obter consentimento explícito através de uma conversa telefónica, des-de que as informações acerca da escolha sejam leais, inteligíveis e claras, e desde que a organização solicite uma confirmação específica ao titular dos dados (p. ex. pressionar uma tecla ou fornecer confirmação oral)”.

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3.2.3. O consentimento livre e esclarecido

O consentimento tem de ser prestado livremente34.

Para o ser, tem de ser esclarecido. Daí que o titular dos dados tenha direito à prestação de uma série de informações, por parte do responsável, que lhe permitem compreender a natureza e o al-cance do ato, bem como lhe permitirão acompanhar o tratamento que deles seja feito. O direito à informação de que se cura tem um âmbito e uma intencionalidade mais vastos do que de mero instrumento de esclarecimento conducente à licitude do consenti-mento. Por um lado, ele continua a existir, quando o tratamento dos dados se baseie noutros fundamentos que não essa autorização do titular; por outro lado, ele revela-se essencial para que o titular dos dados pessoais possa acompanhar o tratamento que deles seja feito. Parece, aliás, ser esta a ratio do direito à informação a que se refere o artigo 15.º RGPD e que surge associado ao direito de acesso do titular dos dados. Tal direito de acesso é subsequente à recolha dos dados.

Por outro lado, a concretização do direito à informação, tal como acontecia no âmbito da lei n.º67/98, vai ser diverso consoan-te os dados tenham sido recolhidos diretamente junto do seu titular ou não. É esta a solução que decorre dos artigos 13.º e 14.º RGPD.

34 Cf. o artigo 7.º/4 Regulamento, nos termos do qual “o avaliar se o consen-timento é dado livremente, há que verificar com a máxima atenção se, designa-damente, a execução de um contrato, inclusive a prestação de um serviço, está subordinada ao consentimento para o tratamento de dados pessoais que não é necessário para a execução desse contrato”. Infra, teceremos esclarecimentos im-portantes sobre este preceito.

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Embora não confinado à necessidade de garantir a plena li-berdade, o esclarecimento prévio ao consentimento para o trata-mento de dados é condição imprescindível para que o mesmo pos-sa ser considerado livre, e, como tal, válido. De outro modo, o titular dos dados não acederia à compreensão do âmbito e da dimensão do consentimento que estaria a prestar.

A informação a que se alude deve ser simples, clara, com-preensível por um titular de dados pessoais mediamente escla-recido35. Deve, além disso, ser completa e ser prestada antes do consentimento ser dado, não bastando que esteja disponível num qualquer local36. Sublinhe-se que, quando o consentimento é pres-tado através de um formulário elaborado de forma prévia, unilate-ral e rígida por uma das partes, se devem aplicar as regras contidas no DL n.º446/85, relativas aos contratos de adesão, donde os requi-sitos da comunicação e da informação contidos nos artigos 5.º e 6.º do citado diploma se devem aplicar.

Mas, a natureza livre do consentimento levanta outras ques-tões relevantíssimas.

O considerandum 43 do RGPD dispõe que, «a fim de assegurar que o consentimento é dado de livre vontade, este não deverá constituir fundamento jurídico válido para o tratamento de dados pessoais em casos específicos em que exista um desequilíbrio ma-nifesto entre o titular dos dados e o responsável pelo seu tratamen-to, nomeadamente quando o responsável pelo tratamento é uma autoridade pública pelo que é improvável que o consentimento tenha sido dado de livre vontade em todas as circunstâncias asso-ciadas à situação específica em causa».

35 Parecer do grupo de trabalho do artigo 29.º 15/2011, 22.36 Parecer do grupo de trabalho do artigo 29.º 15/2011, 22.

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As autoridades públicas como a polícia não devem basear o tratamento de dados no consentimento, isto é, não podem ir além do que a lei lhes permite, invocando um qualquer consentimen-to37. Isto explica-se pelo facto de, por força do estatuto de auto-ridade, não haver um absoluto domínio da vontade por parte do titular dos dados. Do mesmo, o grupo de trabalho do artigo 29.º esclarece que, por exemplo, tratando-se de scanners corporais em espaços públicos, como zonas de embarque de aeroportos, o con-sentimento não será inteiramente livre, por o cliente temer atrasos no embarque e a perda do voo, de tal modo que o fundamen-to para o tratamento de dados deve encontrar-se nas razões de segurança pública e não no consentimento. Poderá também não haver consentimento livre quando o titular dos dados se encontra

37 Parecer do grupo de trabalho do artigo 29.º 15/2011, 19. Veja-se, porém, os esclarecimentos contidos nas Orientações do grupo de

trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, 7. Os exemplos aí oferecidos são paradigmáticos: “Um município local está a planear realizar obras de manutenção rodoviária. Uma vez que essas obras podem perturbar o trânsito durante muito tempo, o município oferece aos cidadãos a opor-tunidade de se registarem numa lista de correio eletrónico para receberem atualiza-ções sobre a evolução das obras e os atrasos previstos. O município deixa bem claro que não existe obrigação de participar e solicita o consentimento para utilizar os endereços de correio eletrónico (exclusivamente) para este efeito. Os cidadãos que não derem o seu consentimento não deixarão de beneficiar de qualquer serviço essencial do município nem deixarão de exercer qualquer direito, pelo que poderão dar ou recusar livremente o seu consentimento para esta utilização dos seus dados. Todas as informações sobre as obras de manutenção rodoviária também estarão disponíveis no sítio web do município”; “Uma escola pública solicita aos estudantes consentimento para utilizar as suas fotografias numa revista estudantil impressa. O consentimento nestas situações seria uma verdadeira escolha desde que não fosse negado aos estudantes o ensino ou os serviços a que têm direito e estes pudessem recusar a utilização das referidas fotografias sem ficarem prejudicados”. Significa isto que as autoridades públicas não estão impedidas de legitimar o tratamento de dados no consentimento.

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numa situação de dependência (por exemplo, numa relação labo-ral) ou quando possa temer a recusa de uma prestação essencial (v.g. uma prestação médica)38. O dado pode ser particularmente interessante do ponto de vista do consumidor. Em determinados domínios, em que se lide com serviços públicos essenciais e em que o prestador do serviço atua em regime de monopólio, pode estar ausente a liberdade que se requer, se se constatar que, em face das circunstâncias concretas, o consumidor teme poder perder a prestação para si vital.

Exclui-se, assim, a liberdade do consentimento sempre que haja uma situação de dependência, coação ou necessidade39. Al-gumas decisões de instâncias europeias são paradigmáticas desta ideia, ao considerem que os sites que só viabilizam o acesso a titu-lares que concordem em aceitar os chamados cookies não estão em conformidade com o RGPD.

Ademais, no mesmo considerandum 43, podemos ler que «pre-sume-se que o consentimento não é dado de livre vontade se não for possível dar o consentimento separadamente para diferentes opera-ções de tratamento de dados pessoais, ainda que seja adequado no caso específico, ou se a execução de um contrato, incluindo a prestação de um serviço, depender do consentimento apesar de o consentimento não ser necessário para a mesma execução».

38 Parecer do grupo de trabalho do artigo 29.º 15/2011, 19.39 Orientações do grupo de trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento

na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, adotadas em 28 de novembro de 2017 e revistas em 10 de abril de 2018. Considera-se, aí, que “o elemento «livre» implica uma verdadeira escolha e controlo para os titulares dos dados. Regra geral, o RGPD prevê que se o titular dos dados não puder exercer uma verdadeira escolha, se sentir coagido a dar o consentimento ou sofrer consequências negativas caso não consin-ta, então o consentimento não é válido”.

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR

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Imagine-se que a empresa A faz depender do consentimento dos seus clientes, em simultâneo, quer a possibilidade de receberem comunicações promocionais dos vários serviços que são lançados no mercado, quer a possibilidade de, no final do período de fide-lização, serem contactados para a renegociação das condições contratuais. Estando em causa diferentes operações de tratamento de dados, com finalidades diversas, não é possível agrega-las, de tal modo que o não consentimento em relação a uma faça decair a outra. Na verdade, a importância da renegociação das condi-ções contratuais pode coartar a liberdade de escolha em relação às restantes operações de tratamento de dados. Esta tem sido, no entanto, uma prática reiterada entre alguns prestadores de servi-ços na área das comunicações móveis40- 41.

Problemas interessantes têm-se, igualmente, levantado no to-cante ao contrato de seguro. Este é comumente qualificado como

40 Na ligação entre os consumidores e a proteção de dados, haveremos ainda de ter em conta algumas regras especiais: nos termos do artigo 13.º-A Lei n.º41/2004, está sujeito a consentimento prévio expresso do assinante que seja pessoa singular, ou do utilizador o envio de comunicações não solicitadas para fins de marketing dire-to, designadamente através da utilização de sistemas automatizados de chamada e comunicação que não dependam da intervenção humana (aparelhos de chamada automática), de aparelhos de telecópia ou de correio eletrónico, incluindo SMS (servi-ços de mensagens curtas), EMS (serviços de mensagens melhoradas) MMS (serviços de mensagem multimédia) e outros tipos de aplicações similares, o que não impede que o fornecedor de determinado produto ou serviço que tenha obtido dos seus clientes, no contexto da venda de um produto ou serviço, as respetivas coordenadas eletróni-cas de contacto, possa utilizá-las para fins de marketing direto dos seus próprios pro-dutos ou serviços análogos aos transacionados, desde que garanta aos clientes em causa, clara e explicitamente, a possibilidade de recusarem, de forma gratuita e fácil, a utilização de tais coordenadas, no momento da respetiva recolha, e por ocasião de cada mensagem, quando o cliente não tenha recusado inicialmente essa utilização.

41 Veja-se, ainda, Orientações do grupo de trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, adotadas em 28 de no-

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um contrato aleatório: as partes submetem-se a uma “álea, a uma possibilidade de ganhar ou perder”42, consistindo a onerosidade na “circunstância de ambas estarem sujeitas ao risco de perder, em-bora, no final de contas, só uma venha a ganhar”43. Percebe-se, por isso, perfeitamente que o risco surja como um elemento essencial do contrato, por meio do qual se estabelece o sinalagma entre as partes44, ao ponto de se projetar na disciplina legal dispensa-da ao contrato, quer ao nível da formação deste45, quer ao nível da sua execução posterior. De acordo com o artigo 24.º/1 da Lei do Contrato de Seguro, “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exa-tidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva

vembro de 2017 e revistas em 10 de abril de 2018, 6, considerando que “se o con-sentimento estiver agregado a uma parte não negociável das condições gerais do contrato, presume-se que não foi dado livremente. Assim sendo, não se considera que o consentimento foi dado de livre vontade se o titular dos dados não o puder recusar nem o puder retirar sem ficar prejudicado”.

42 c. a. mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por A. Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, 403.

No mesmo sentido, cf. manuel de andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Coimbra, Almedina, 1963, 57 s.; meneZes cordeiro, Tratado de direito civil português, I, Parte Geral, I, Almedina, Coimbra, 2003, 477; Pedro Pais de vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2010, 449; luís Poças, O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, Almedina, Coimbra, 2013, 123 s.

A posição não é, porém, incontroversa. Sobre os argumentos contrários à qua-lificação, vide luís Poças, O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro,126 s.

43 c. a. mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 403. 44 margarida lima rego, “O risco e as suas vicissitudes”, Temas de direito dos

seguros a propósito da nova lei do contrato de seguro, Almedina, Coimbra, 2016. 45 A este propósito, cf. Luís Poças, O dever de declaração inicial do risco no

contrato de seguro, 47 s. e n.123.

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ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”. A declaração tem por finalidade munir o segurador do conhecimen-to necessário para, estabelecendo o cálculo exato do risco e do correspondente valor do prémio, poder conscientemente decidir se aceita ou não a celebração do negócio46: sem o conhecimento exato dos contornos do risco, a vontade do segurador não poderá ser considerada livre. A necessidade de avaliação do risco por par-te do segurador implica, portanto, o seu acesso a informação que diz exclusivamente respeito ao tomador do seguro ou ao segurado. E é a este nível que complexos problemas se colocam, por força da tutela que os ordenamentos jurídicos (e que o ordenamento ju-rídico português) reconhecem à proteção de dados. Em face do Regulamento Geral de Proteção de Dados, torna-se mais rigoroso o tratamento de categorias especiais de dados. Ao contrário do que previa a lei n.º 67/98, deixa de ser possível o tratamento de dados

46 Cf., a este propósito, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Maio de 2014, www.dgsi.pt.

No plano doutrinal, veja-se, igualmente, luís Poças, O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, Almedina, 2013; filiPe albuQuerQue matos, “As decla-rações reticentes e inexatas no contrato de seguro”, Estudos em homenagem ao Pro-fessor Doutor António Castanheira Neves, II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, 468 s.; filiPe albuQuerQue matos, “Uma outra abordagem em torno das declarações inexatas e reticentes no âmbito do contrato de seguro. Os artigos 24.º a 26.º DL n.º72/2008, 16 de Abril”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Figueiredo Dias, IV, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, 622 s.; júlio gomes, “O dever de informação do (candidato a) tomador de seguro na fase pré-contratual, à luz do DL n.º72/2008, 16 de Abril”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, II, Almedina, 2011, 393 s.; joana galvão teles, “Deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado”, Temas de Direito dos Seguros a propósito da nova lei do contrato de seguro, Almedina, 2012, 251 s.; vanessa louro, “Declaração inicial do risco no contra-to de seguro: análise do regime jurídico e breve comentário à jurisprudência recente dos tribunais superiores”, Revista eletrónica de direito, n.º2, 2016.

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sensíveis mediante disposição legal que o autorize ou mediante au-torização da CNPD, quando por motivos de interesse público esse tratamento seja indispensável ao exercício das atribuições legais ou estatutárias do seu responsável ou quando o titular dos dados tiver dado o seu consentimento expresso. A legitimação para o tra-tamento de dados sensíveis só pode agora fundar-se nas exceções previstas no artigo 9.º/2 RGPD. E, se é certo que tal tratamento pode ter lugar quando o titular dos dados tiver dado o seu consentimento explícito para uma ou mais finalidades específicas, o Regulamento sublinha, no seu considerandum 43, como já vimos e agora relem-bramos, que, “presume-se que o consentimento não é dado de li-vre vontade se não for possível dar consentimento separadamente para diferentes operações de tratamento de dados pessoais, ainda que seja adequado no caso específico, ou se a execução de um contrato, incluindo a prestação de um serviço, depender do con-sentimento apesar de o consentimento não ser necessário para a mesma execução”. Ora, no caso do contrato de seguro, a presta-ção do serviço por parte da seguradora fica dependente do con-sentimento, pela urgência de avaliação do risco que depende de factos atinentes à esfera do segurado. Mas, porque esse consenti-mento é necessário para a execução do contrato – diríamos que para a própria celebração deste –, cremos afastar-se a presunção de falta de liberdade a que se refere o considerandum citado47.

47 Parece também ser esta a ponderação que é feita pelo grupo de traba-lho do artigo 29.º. Cf. Orientações do grupo de trabalho do artigo 29.º relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, 6. Pode ler-se, aí, que, “ao avaliar se o consentimento é dado livremente, importa ter em conta a situação específica em que o consentimento está subordinado à execução de um contrato ou à prestação de um serviço, tal como descrito no artigo 7..º, n..º 4. O artigo 7..º, n..º 4, foi redigido de forma não exaustiva com palavras como «designadamente», significando que pode haver uma variedade de outras situações que se enquadram

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR

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É certo que, no caso concreto, e abstraindo da natureza específi-ca dos dados que possam vir a ser recolhidos pela seguradora, a legitimação para o tratamento de dados não se encontraria na alínea a) do artigo 6.º/1 RGPD («o titular dos dados tiver dado o seu consentimento para o tratamento dos seus dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas»), mas na alínea b) do mes-mo preceito («o tratamento for necessário para a execução de um contrato no qual o titular dos dados é parte, ou para diligências pré-contratuais a pedido do titular dos dados»). Simplesmente, não se pode ignorar a existência de um ato de vontade por parte do titular de dados que, servindo de base à celebração do contrato de seguro, não pode deixar de ser tido em conta na compreensão do consentimento.

Maiores problemas podem, contudo, surgir se a celebração do contrato de seguro for imposta por força de uma disposição legal ou no seio de um complexo contratual que una partes diversas. Pense-se, por exemplo, na obrigação de o segurado transmitir ao segurador, no quadro da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, um dado (relevante para a

nesta disposição. Em termos gerais, qualquer elemento que constitua pressão ou in-fluência desadequada sobre o titular dos dados (que se pode manifestar de formas muito diversas) e que o impeça de exercer livremente a sua vontade tornará o con-sentimento inválido». E acrescenta-se um exemplo ilustrativo: “Uma aplicação para telemóvel de edição de fotografias solicita aos utilizadores que ativem a localização por GPS para fins de prestação dos serviços. A aplicação também os informa de que utilizará os dados recolhidos para efeitos de publicidade comportamental. Nem a geolocalização nem a publicidade comportamental em linha são necessárias para a prestação do serviço de edição de fotografias, indo além da concretização do serviço principal prestado. Uma vez que os utilizadores não podem utilizar a aplica-ção sem darem o seu consentimento para estes efeitos, o consentimento não pode ser considerado livre”.

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avaliação do risco) acerca da sua saúde. Mas pense-se, também, na transmissão de dados relativos a aspetos clínicos, no seio da ce-lebração de um contrato de seguro de vida, que o sujeito se vê impelido a concluir para obter um crédito à habitação. Poderemos aí considerar que há efetiva liberdade?

Repare-se, ainda, que o consentimento para o tratamento de dados deve ser prestado separadamente, não se confundindo com a declaração negocial propriamente dita, nem tão-pouco com a declaração inicial de risco.

3.2.4. A especificidade do consentimento

O consentimento não pode ser genérico, mas específico, isto é, orientado para as finalidades a que o responsável se propõe, nos termos dos artigos 12.º e seguintes RGPD. De outro modo, não se poderia falar de um consentimento livre: a declaração do sujeito não traduziria um ato de vontade amadurecido se a autorização fosse prestada em geral, sem atender ao alcance e aos fins do tra-tamento que vai ser efetuado. O consentimento que seja prestado para legitimar o tratamento de dados tem, então, de ter em conta as finalidades associadas a esse tratamento. Dito de outro modo, o consentimento deve ser prestado para um específico tratamento ao qual preside uma específica finalidade. Isto está em consonân-cia com o princípio da limitação das finalidades, nos termos do qual os dados pessoais são recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com as mesmas.

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR

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3.2.5. A revogabilidade do consentimento

O consentimento é livremente revogável a todo o tempo. O arti-go 7.º/3 Regulamento especifica que “o titular dos dados tem o direi-to de retirar o seu consentimento a qualquer momento”, embora a re-tirada do consentimento não comprometa a licitude do tratamento efetuado com base no consentimento previamente dado. Esta ideia é concretizada por via da consagração do direito ao esquecimento.

A regra não se distancia sobremaneira da que disciplina o con-sentimento em geral. Nos termos do artigo 81.º/2 CC, o consentimento é sempre revogável. Prevê-se, contudo, aí, a obrigação de indemniza-ção dos prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte.

O preceito deve ser – para além da problematização da natu-reza da responsabilidade concretamente em causa – interpretado de forma cautelosa. Na verdade, atentas as diversas modalidades de consentimento, parece que a limitação da responsabilidade às legítimas expectativas goradas não deve abranger as hipóteses de consentimento vinculante.

Independentemente do quantum indemnizatório, a questão que se deve colocar é a de saber se também no tocante aos da-dos pessoais se deve aplicar a regra da compensabilidade dos da-nos que a revogação possa acarretar.

3.2.6. A capacidade para consentir

A propósito do caráter livre do consentimento, importa consi-derar que o Regulamento estabelece regras atinentes ao consenti-mento por menores. Dispõe o artigo 8.º que “quando for aplicável o

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artigo 6.º/1 a), no que respeita à oferta direta de serviços da socie-dade da informação às crianças, dos dados pessoais de crianças é lícito se elas tiverem pelo menos 16 anos. Caso a criança tenha menos de 16 anos, o tratamento só é lícito se e na medida em que o consentimento seja dado ou autorizado pelos titulares das responsabilidades parentais da criança”. A esta solução já seria possível chegar com base nas regras próprias do ordenamento jurídico português. Para tanto seria, no entanto, necessário pers-crutar a natureza do direito à proteção de dados. Refira-se que os Estados-Membros podem dispor no seu direito uma idade inferior para os efeitos referidos, desde que essa idade não seja inferior a 13 anos.

De acordo com o artigo 16.º da Lei n.º58/2019, de 8 de agosto, “nos termos do artigo 8.º do RGPD, os dados pessoais de crianças só podem ser objeto de tratamento com base no consentimento previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do RGPD e relativo à oferta direta de serviços da sociedade de informação quando as mesmas já tenham completado 13 anos de idade. Caso a criança tenha idade inferior a 13 anos, o tratamento só é lícito se o consen-timento for dado pelos representantes legais desta, de preferência com recurso a meios de autenticação segura”. Significa isto que o legislador português, usando a prerrogativa que é concedida aos diversos Estados membros pelo artigo 8.º RGPD, fixou a idade mínima para prestar o consentimento nos 13 anos.

Parece haver, desta forma, um desvio em matéria de capaci-dade no que respeita ao regime privatístico geral.

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR

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4. As novas regras europeias: o consumidor, a proteção de dados e os deveres de informação.

O consumidor é, por ser pessoa, titular de dados pessoais. Ao entrar em contacto com um profissional, no âmbito da relação de consumo que se firma, pode ter de transmitir alguns desses dados, ordenados à proteção de outros direitos de personalidade.

Quando sejam necessários para a celebração/execução de um contrato, a legitimação não reside no consentimento, embora assente ainda na vontade, exceto naquelas hipóteses excecionais em que a celebração do contrato é imposta. Fora dessas hipóteses, e descontados os restantes fundamentos de licitude do tratamen-to de dados, o consentimento assume importância crescente. Este pode ser chamado a operar a sua eficácia quando, no seio de uma relação contratual, esteja em causa um tratamento adicional de dados para além dos que se considerem imprescindíveis para a celebração do próprio negócio.

Haja ou não consentimento, o qual deve obedecer a regras específicas, o responsável pelo tratamento de dados é obrigado a cumprir em relação a eles uma série de deveres de cuidado. Além disso, o tratamento em causa não pode deixar de ser orientado pelas finalidades específicas para que foi dado o consentimento.

Acresce que, sendo violados direitos subjacentes à proteção de dados, sempre se poderá questionar qual a eficácia excluden-te do consentimento a este nível. Duas parecem ser as ideias de que não nos podemos esquecer a este nível: em primeiro lugar, se o consentimento se orienta por uma finalidade específica, a le-são de direitos subjacentes aos dados pessoais e à sua tutela não estará abrangida pela sua relevância; em segundo lugar, sempre

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se poderá dizer que, em relação a estes direitos que integram o que a outro propósito designamos por relação de interioridade constitutiva, o titular dos dados não prestou o seu consentimento, isto é, não prefigurando o resultado lesivo, não o autorizou, limitando-se a sua autorização aos dados em si mesmo. Isto significa que não se excluiria a ilicitude – falando-se, quanto muito, de uma heterocolocação em risco consentido –, viabilizando-se a problematização de uma even-tual responsabilidade civil. Esta, aliás, avultaria por via da segunda modalidade de ilicitude, sempre que se detetasse a violação de de-veres consagrados nas disposições regulamentares que pudéssemos interpretar como disposições legais de proteção de interesses alheios.

Estas considerações são extremamente importantes se aten-tarmos nos riscos que a sociedade de informação dos nossos dias acarreta para os dados pessoais de cada um. O simples controlo dos dados pessoais, através do consentimento, e a possibilidade de acompanhamento posterior desses dados podem não ser suficien-tes para salvaguardar os titulares dos perigos que os tempos moder-nos acarretam, mesmo tendo em conta os deveres de informação com que o responsável pelo tratamento de dados fica onerado.

O que se afirma compreende-se se rememorarmos o que ficou inscrito ab initio. Na verdade, os perigos da utilização abusiva de dados pessoais para os consumidores não ficam confinados ao es-trito domínio das relações contratuais que estabeleçam. Pelo con-trário, há aspetos que ultrapassam uma específica relação credití-cia e que não podem deixar de ser tidos em conta. Tais riscos são, sobretudo, potenciados pelo uso da inteligência artificial e pela navegação num ambiente virtual. Dir-se-ia, portanto, que a discipli-na protetiva que resulta do RGPD há de ser complementada com regras que garantam a efetiva tutela dos consumidores.

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR

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As instâncias europeias mostram-se conscientes desta reali-dade. Isso mesmo se constata pelas recentes alterações propos-tas ao quadro normativo, por via da proposta de Diretiva sobre o enforcement e modernização do direito europeu do consumidor. Introduzindo alterações nas Diretivas dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE); na Diretiva sobre cláusulas abusivas (Diretiva 93/13/CEE); na Diretiva dos preços (Diretiva 98/6/CE); na Diretiva sobre práticas comerciais desleais (Diretiva 2005/29/CE), esta nova proposta de diploma europeu não deixa de lado preocupações evidentes em matéria de proteção de dados.

Assim, se, por um lado, reforça a obrigatoriedade de dar cum-primento ao RGPD, nos termos da proposta para a nova redação do n.º4 do artigo 13.º da Diretiva 2011/83/UE, por outro lado, parece alargar o âmbito da proteção que é devida. Designadamente, am-plia-se o âmbito de relevância do diploma, tornando-o aplicável, também, aos contratos de fornecimento de conteúdos digitais que não sejam suportados por um meio tangível e aos contratos de for-necimento de serviços digitais, no quadro dos quais, o consumidor se obriga a fornecer dados pessoais ao profissional, exceto se os dados pessoais fornecidos pelo consumidor forem exclusivamente tratados pelo profissional com o propósito de fornecer o conteúdo digital. E, subsequentemente, reforçam-se os deveres de informa-ção a cargo dos profissionais, para os ajustar aos modernos meios de comunicação, às especificidades deste tipo de contratos e aos perigos que o ambiente digital acarreta48. Nos termos do conside-

48 Para além da questão da proteção de dados, denota-se uma especial aten-ção no que respeita à necessidade de reforçar deveres de informação no quadro dos contratos de fornecimento de conteúdos digitais e serviços digitais e bem assim no quadro dos contratos celebrados em marketplaces. A este propósito, passa a

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randum 45 da proposta de diretiva, os profissionais podem perso-nalizar o preço das ofertas para consumidores específicos ou cate-gorias específicas de consumidores, baseando-se em automated decision-making and profiling of consumer behaviour. Mas, nesse caso, devem informar claramente que os preços apresentados são personalizados com base nas decisões automatizadas, de modo a que o consumidor possa ter em conta o potencial risco da sua decisão de aquisição do produto. Estabelece-se, por isso, uma es-pecífica obrigação de informação nesta matéria, sem prejuízo da aplicação do RGPD, que determina que os titulares de dados não podem ser submetidos a automatizadas tomadas de decisão, in-cluindo através de profiling. Reforçam-se, assim, algumas das obri-gações e direitos que já decorreriam do RGPD.

De facto, o RGPD dispõe que «o titular dos dados deverá ter o direito de não ficar sujeito a uma decisão, que poderá incluir uma medida, que avalie aspetos pessoais que lhe digam respeito, que se baseie exclusivamente no tratamento automatizado e que produ-za efeitos jurídicos que lhe digam respeito ou o afetem significativa-mente de modo similar, como a recusa automática de um pedido de crédito por via eletrónica ou práticas de recrutamento eletrónico sem qualquer intervenção humana. Esse tratamento inclui a defini-ção de perfis mediante qualquer forma de tratamento automatizado de dados pessoais para avaliar aspetos pessoais relativos a uma pes-

considerar-se, de acordo com a redação proposta para a Diretiva 2005/29/CE, que não especificar, aquando de uma venda feita num Marketplace, se o vendedor é um consumidor ou um profissional constitui uma prática enganosa. Sobre o ponto, embora não se referindo aos marketplaces, mas com notas que podem ser presti-mosas, cf. antónio Pinto monteiro/mafalda miranda barbosa, “A imposição das obri-gações decorrentes do DL n.º67/2003, de 8 de abril, ao intermediário na venda”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 147.º, n.º4011, 2018, 368-386.

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR

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soa singular, em especial a análise e previsão de aspetos relaciona-dos com o desempenho profissional, a situação económica, saúde, preferências ou interesses pessoais, fiabilidade ou comportamento, localização ou deslocações do titular dos dados, quando produza efeitos jurídicos que lhe digam respeito ou a afetem significativamen-te de forma similar. No entanto, a tomada de decisões com base nesse tratamento, incluindo a definição de perfis, deverá ser permi-tida se expressamente autorizada pelo direito da União ou dos Es-tados-Membros aplicável ao responsável pelo tratamento, incluindo para efeitos de controlo e prevenção de fraudes e da evasão fiscal, conduzida nos termos dos regulamentos, normas e recomendações das instituições da União ou das entidades nacionais de controlo, e para garantir a segurança e a fiabilidade do serviço prestado pelo responsável pelo tratamento, ou se for necessária para a celebração ou execução de um contrato entre o titular dos dados e o responsá-vel pelo tratamento, ou mediante o consentimento explícito do titu-lar. Em qualquer dos casos, tal tratamento deverá ser acompanhado das garantias adequadas, que deverão incluir a informação especí-fica ao titular dos dados e o direito de obter a intervenção humana, de manifestar o seu ponto de vista, de obter uma explicação sobre a decisão tomada»49.

Os outros problemas a que aludimos – relacionados com a pu-blicidade comportamental – devem-nos fazer refletir. As regras do consentimento são um importante instrumento para fazer face aos riscos que a nossa sociedade de informação arrasta para os titu-lares de dados pessoais. Contudo, podem não ser bastantes. Na

49 Veja-se os artigos 13.º/2 f); 14.º/2 g); 15.º/1 h) RGPD, relativamente às informa-ções a prestar no caso de profiling; o artigo 21.º relativamente ao direito de oposi-ção, e, com grande importância, o artigo 22.º RGPD.

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verdade, no momento em que presta o seu consentimento para a recolha de dados, por exemplo, ao navegar num determinado site, o consumidor pode não ter a consciência exata do impacto que o seu assentimento poderá ter no futuro, em termos de campa-nhas publicitárias. Devem, portanto, ser impostos determinados me-canismos que garantam a identificabilidade da publicidade com que o consumidor é “constantemente” invadido como verdadeira publicidade comportamental, relembrando-o da possibilidade de revogar o seu consentimento a qualquer tempo. A este propósito, poderia ser importante estabelecer a obrigatoriedade de uma re-visão periódica do consentimento, adotando-se um mecanismo de ongoing consent50.

50 Departamento de Proteção e defesa do consumidor, Proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da informação creditícia, 43 s.

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91e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r a

O NOVO REGIME JURÍDICO DAS VIA-GENS ORGANIZADAS E SERVIÇOS DE

VIAGEM CONEXOS: SUJEITOS, OBJETO, GARANTIAS E RESOLUÇÃO DE LITÍGIOS

1Maria Oliveira *

Cela rend modeste de voyager;on voit quelle petite place on occupe dans le monde.

Gustave FlaubertCorrespondance (1850-1854)

Sumário: 1. Introdução 2. Os sujeitos no contrato de viagem organizada e de

serviços de viagem conexos na Diretiva e no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março. 2.1. Os viajantes. 2.2. Os operadores, os organizadores e os re-talhistas. 3. O objeto do contrato de viagens organizadas e de serviços de viagem conexos na Diretiva e no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março. 4. As garantias dos viajantes na Diretiva e no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março. 4.1. Responsabilidade pela execução da viagem organizada. 4.2. Proteção do viajante em caso de insolvência dos organizadores. 4.3. pro-teção do viajante em caso de insolvência aplicável aos serviços de viagem conexos. 5. Os meios alternativos de resolução alternativa de litígios emer-gentes de contratos de viagem organizados e de serviços de viagem con-exos. 5.1. Provedor do Cliente da Associação Portuguesa de Agências de Viagens e Turismo. 5.2. Comissão Arbitral. 5.3. Arbitragem. 5.4. Comparação entre os meios de resolução de litígios. 6. Conclusões. 7. Abreviaturas.

* MSc, MCIArb, Jurista, Mediadora.

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1. Introdução

Volvidos cerca de dois anos sobre a apresentação, em julho de 2013, pela Comissão Europeia do respetivo projeto1-2, o Parlamento Europeu e o Conselho adotaram a Diretiva (UE) 2015/2302, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagens conexos (Diretiva) 3-4. Assume, no contexto da nova Di-

1 Initial appraisal of a European Commission Impact Assessment European Commission proposal on Package travel and assisted travel arrangements, disponível em https://publications.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/f31308a0-cd-60-4a5d-8487-1f2972835e5f/language-en/format-PDF (4.11.2018).

2 Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comi-té Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões “adaptar as normas da UE sobre viagens organizadas à era digital”, COM/2013/0513 final, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:52013DC0513&from=EN (19.01.2019).

3 Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de no-vembro de 2015 relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagens conexos que altera o Regulamento (CE) n.º 2006/204 e a Diretiva 2011/83/EU do Parlamen-to Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho, disponí-vel em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32015L2302 (4-11-2018).

4 Esta sucedeu à Diretiva do Conselho 90/314/CEE, de 13 de junho de 1990 (Di-retiva de 1990) relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organi-zados, que expressamente revogou, a qual já consagrava um leque muito alargado de direitos dos consumidores no que se referia, designadamente, “aos requisitos de informação, à responsabilidade dos operadores pela execução de uma viagem or-ganizada e à proteção em caso de insolvência do organizador e do retalhista.” - Di-retiva, Considerando (1).

Expressamente, se reconhece que o “quadro legislativo” subjacente à Direti-va de 1990 carecia ser ajustado “à evolução do mercado” de modo a torná-lo “mais adequado ao mercado interno, eliminar ambiguidades e colmatar lacunas jurídicas existentes” pelo que havia de “adaptar o âmbito de proteção de modo a ter em conta essa evolução, a aumentar a transparência e a reforçar a segurança jurídica dos viajantes e operadores.” - Diretiva, Considerando (2).

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retiva central relevância a identificação da designada “zona cin-zenta” em que se encontravam as “combinações de serviços de viagem” subtraídos à disciplina da Diretiva de 1990, que se viu ul-trapassada, por um lado, por novas formas de comercialização de tais serviços, através da Internet, e, por outro, por novos hábitos de consumo em que os mesmos já não assumiriam a forma de “viagens pré-organizadas tradicionais, sendo muitas vezes combinados de forma personalizada.”5

A questão que, desde já, se coloca é a de saber como os le-gisladores europeus responderam aos desafios decorrentes da identificada transformação do mercado das viagens ocorrida nas últimas duas décadas. O preâmbulo da Diretiva enuncia, de for-ma detalhada, os pressupostos e as metas em que assentaram as medidas legislativas adotadas, facultando, desta feita, uma visão geral das políticas que, sobre esta matéria, se pretenderam definir e estabelecer.

Apresenta igualmente central importância a imposição, aos Estados-Membros, de um nível máximo de harmonização legislativa6,

5 Diretiva, Considerando (2).6 Diretiva, artigo 4.º: “salvo disposição em contrário na presente diretiva, os

Estados-Membros não podem manter nem introduzir no direito nacional disposições divergentes das previstas na presente diretiva, nomeadamente, disposições mais ou menos estritas que tenham por objetivo garantir um nível diferente de proteção do viajante.” De resto, a harmonização total pode entender-se como uma tendência, conforme constatam virgílio macHado, joão almeida vidal, afonso Pedro ribeiro café “A Diretiva (ue) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do conselho na Integração em rede da união Europeia no Setor do Turismo”, in Revista internacional de Derecho del Turismo- Ridetur, Vol. 1, Número 1 (2017), p. 23, disponível em https://www.uco.es/ucopress/ojs/index.php/ridetur/article/view/6482 (12.01.2019), ao observarem que “em áreas como o direito do consumo [se tem] assistido a um movimento de au-mento do nível de harmonização na transposição das regras entre os Estados-mem-

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bros, que acaba por subverter a definição deste instrumento legislativo da União, transformando estas diretivas praticamente em regulamentos.” Ainda segundo estes autores, Segundo estes autores esta propensão encontra suporte normativo no di-reito da União Europeia, desde logo no artigo 114.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia que pugna pela adoção de medidas relativas à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros que tenham por objeto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno. No que respeita, em particular, ao direito europeu do consumo, a harmonização máxima foi adotada na Diretiva relativa a práticas comerciais desleais (2005/122/CE), na Diretiva de crédito ao consumo (2008/48/CE), na Diretiva de timeshare (20087122/CE) e na Diretiva relativa aos direitos dos consumidores (2011/83/EU). No entanto, a imposição, na Diretiva, de um nível máximo de harmonização não colhe um consenso generalizado. Para alguns autores, como francesco morandi, stePeHne keiler, “The Di-rective on package travel and linked travel arrangements: The traveller protection in a full harmonisation approach” in The New Package Travel Directive, esHtl|inatel, 2017, p. 401, a opção legislativa no sentido de assegurar o nivelamento do grau de proteção é “politicamente controversa”, antevendo o risco de alguns Estados-membros pode-rem introduzir, nos respetivos ordenamentos jurídicos, normas menos protetoras que as vigentes o que seria prejudicial para os consumidores. Entendem que o artigo 4.º da Diretiva “deve ser interpretado com cuidado, de modo a evitar o risco de alguns Estados-membros se sentirem encorajados a implementar normas que sejam menos protetoras do que as vigentes, prejudicando os direitos dos consumidores ao nível in-terno.” Idênticas preocupações levaram ernst füricH, “The Implementation of the New Package Travel Directive in Germany and its Critical Issues”, in The New Package Travel Directive, esHtl|inatel, 2017, p. 101, a chamar a atenção para o risco de o princípio da harmonização plena poder constituir um dos maiores problemas da Diretiva já que po-deria ter como efeito obrigar certos Estados-membros a reduzir os respetivos padrões de proteção dos consumidores conforme, segundo previa, iria ocorrer na Alemanha. Por seu turno, micHael wukoscHitZ, “Extraordinary” Legislative Shortcomings in the New PTD”, in The New Package Travel Directive, esHtl|inatel, 2017, p. 142, considera que, por via do princípio da harmonização plena, é deixada aos Estados-membros uma possibilidade muito limitada de, ao transpô-la para o direito interno, introduzir uma formulação melhor do que a da Diretiva, cabendo ao Tribunal de Justiça da União Europeia criar soluções para os tópicos “remendados” pelo legislador. Já em 2017, afonso Pedro ribeiro café, “Package Travel Directive: Contractual Parties and Level of Harmonisation”, in The New Package Travel Directive, esHtl|inatel, 2017, p. 345, antevia que o princípio da harmonização máxima seria portador de dificuldades de transpo-sição, designadamente, no que respeitava a aspetos essenciais, designadamente, a

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por contraste com a Diretiva de 1990, que facultava “uma ampla margem de manobra relativamente à sua transposição”7-8. Os legisladores europeus encontraram fundamento para esta opção normativa no entendimento de que “as divergências consideráveis entre o direito dos vários Estados-Membros” são geradoras de uma “fragmentação jurídica” a qual, por seu turno, é causadora de “custos mais elevados para as empresas” e de “obstáculos àquelas que pretendem exercer as suas atividades além-fronteiras, limitando, assim, as escolhas dos consumidores9.

Por outro lado, a Diretiva alargou, de forma muito significativa, o âmbito de aplicação subjetivo relativamente à anterior. Do lado da procura, contrariamente, ao que ocorria na Diretiva de 1990 que se limitava a identificar a figura do “consumidor” 10 no novo regime é identificado o “viajante”11 com base no entendimento de que “os

diferença entre o conceito de viagens organizadas e serviços de viagem conexos. No entanto, atendendo a que a Diretiva entrou em vigor em 1 de julho de 2018, o tempo transcorrido não é, salvo melhor opinião, ainda suficiente para aferir do respetivo im-pacto na dinamização do mercado interno das viagens organizadas e serviços cone-xos e na consolidação dos direitos dos viajantes no espaço europeu.

7 Diretiva de 1990, Artigo 8.º - “Os Estados-membros podem adotar ou manter, no domínio regulado pela presente diretiva, disposições mais rigorosas para defesa do consumidor.”

8 Diretiva, Considerando (4).9 Diretiva, Considerandos (4) e (5).10 Diretiva de 1990, Artigo 2.º n.º 4 - “Para efeitos da presente Diretiva, entende-

se por consumidor a pessoa que adquire ou se compromete a adquirir a viagem organizada («o contratante principal») ou qualquer pessoa em nome da qual o contratante principal se compromete a adquirir a viagem organizada («ou outros beneficiários») ou qualquer pessoa a quem o contratante principal ou um dos outro beneficiários cede a viagem organizada («o cessionário»).

11 Diretiva, artigo 3.º - “Para efeitos da presente Diretiva entende-se por «viajante» qualquer pessoa que procure celebrar um contrato ou esteja habilitada a viajar com base num tal contrato, no âmbito da presente diretiva.”

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viajantes que adquirem viagens organizadas ou serviços de viagem conexos são, na sua maioria, consumidores na aceção do direito do consumidor da União.” Entendem os legisladores europeus que “con-sumidores e representantes das pequenas empresas ou profissionais que reservam viagens relacionadas com a sua atividade comercial ou profissional através dos mesmos canais de reserva que os consumido-res (…) precisam muitas vezes de um nível de proteção equivalente”12.

Pela parte da oferta, a Diretiva abandonou, no que respeita à comercialização de viagens organizadas, a identificação clássica de “operador” 13 e “agência” 14 e em seu lugar identifica os “opera-dores” 15, “organizadores” 16 e “retalhistas” 17 cuja atividade se pode desenvolver “de forma tradicional ou em linha”.

12 Diretiva, Considerando (7).13 Diretiva de 1990, artigo 2.º n.º 2 - “Para efeitos da presente Diretiva entende-se por

operador a pessoa que organiza viagens organizadas de forma não ocasional e as vende ou propõe para venda, diretamente ou por intermédio de uma agência.”

14 Diretiva de 1990, artigo 2.º n.º 3 - “Para efeitos da presente Diretiva entende-se por agência a entidade que vende ou propõe para venda a viagem organizada elaborada pelo operador.”

15 Diretiva, artigo 3.º, n.º 7: “Para efeitos da presente Diretiva entende-se por «operador» qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue, inclusive, através de outra pessoa que atue em seu nome ou por usa conta, para fins relativos à sua atividade comercial, empresarial, artesanal ou profissional, quer atue como organizador, retalhista, operador que facilita serviço de viagem conexos ou como prestador de um serviço de viagem.”

16 Diretiva, artigo 3.º, n.º 8 - “Para efeitos da presente Diretiva entende-se por «organizador» qualquer pessoa que combine, venda ou proponha para venda viagens organizadas, diretamente, por intermédio de outro operador ou conjuntamente com outro operador, ou o operador que transmite os dados do viajante a outro operador, nos termos do ponto 2, alínea b), subalínea v.”

17 Diretiva, artigo 3.º, n.º 8 - “Para efeitos da presente Diretiva entende-se por «retalhista», um operador distinto do organizador que venda ou proponha para venda viagens organizadas combinadas por um organizador.”

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Em consonância com os princípios enformadores deste novo regime jurídico, o conceito de viagem organizada foi, igualmente, ampliado e definido com maior precisão, com base num critério objetivo que tem subjacente a forma como os serviços de viagem são apresentados ou adquiridos o que conduz a que um grande nú-mero de contratos de viagem, anteriormente estranhos ao regime regulatório da Diretiva de 1990, ficassem abrangidos pelas regras protecionistas do atual enquadramento normativo.18 Uma das ino-vações mais protuberantes da nova Diretiva terá, porventura, sido a introdução do conceito de “serviços de viagem conexos” 19-20 completamente distinto do de “viagens organizadas, “mediante os quais os operadores em linha ou tradicionais facilitam a aquisição de serviços de viagem pelos viajantes, implicando a celebração de contratos com diferentes prestadores de serviços de viagens, in-clusive, através de processo interligados de reserva, que não apre-sentem as características das viagens organizadas e aos quais não seja adequado aplicar todas as obrigações aplicáveis às viagens organizadas.”

Por via do alargamento do âmbito de aplicação operado pela nova Diretiva, o regime de proteção dos viajantes, mormente, em caso de insolvência do organizador, que já existia na Diretiva de 1990 21, foi amplamente reforçado, ficando os Estados-membros obrigados a “assegurar que os viajantes que adquirem uma viagem organiza-

18 Diretiva, Considerandos (9) a (13).19 Diretiva, Considerando (9).20 “Linked travel arrangements” ou “LTA”.21 Diretiva de 1990, artigo 7.º - “O operador e/ou agência que sejam partes no

contrato devem comprovar possuir meios de garantias suficientes para assegurar, em caso de insolvência ou de falência, o reembolso dos fundos depositados e o repatriamento do consumidor.”

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da sejam plenamente protegidos.”22. Neste sentido, “os Estados-membros onde estejam estabelecidos os organizadores deverão assegurar que estes deem garantias de reembolso de todos os pagamentos efetuados pelos viajantes ou por conta destes e, na medida em que a viagem organizada inclua o transporte dos pas-sageiros, do repatriamento dos viajantes, em caso de insolvência dos organizadores.”23 Paralelamente, é imposta aos operadores que facilitam serviços de viagem conexos a obrigação de fornecer proteção em caso de insolvência “no que respeita ao reembolso dos pagamentos que recebam e, na medida em que sejam res-ponsáveis pelo transporte de passageiros, ao repatriamento dos viajantes, e deverão informá-los em conformidade”. 24 -25- 26

Face ao que antecede, afigura-se evidente que a Diretiva in-troduziu, com caráter vinculativo, por via da imposição de uma har-monização legislativa plena, alterações significativas no panorama

22 Diretiva, Considerando (7)23 Diretiva, Considerando (39).24 Diretiva, Considerando (43).25 A Diretiva operou, ainda, alterações relevantes no que respeita à proteção

dos viajantes por via do reforço da responsabilidade dos retalhistas e organizadores pela prestação de informações pré-contratuais [Considerandos (24) a (28] e pela correta execução do contrato de viagem organizada, detalhando determinadas matérias, tais como o direito de rescisão, alterações contratuais e respetivas consequências jurídicas [Considerandos (29) a (38)].

26 Em informação divulgada em 1 de julho de 2018, data da entrada em vigor das disposições da Diretiva, a Comissão Europeia anunciou “o reforço da proteção no que diz respeito às férias organizadas”, proclamando “uma proteção clara para serviços turísticos mais bem definidos” o que era possível, particularmente, “graças a um alargamento do conceito de viagem organizada (…), informações mais claras para os viajantes” (…) e “um novo conceito de «serviços de viagem conexos». Comissão Europeia, Ficha de Informação, 1 de julho de 2018, “UE reforça a proteção no que diz respeito às férias organizadas”, disponível em https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/factsheet_package_holidays_2018.07_pt_web.pdf (06.01.2019).

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99e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

jurídico das viagens organizadas e dos serviços de viagem conexos, com a ambição de uniformizar a legislação dos Estados-membros neste domínio, de modo a intensificar o comércio transfronteiriço, consolidar o mercado interno, reforçar as garantias dos viajantes e introduzir um sistema mais justo ao colocar sob a sua disciplina ope-radores tradicionais, em linha e facilitadores de serviços de viagem conexos. Este regime é, pois, manifestamente ambicioso, sendo previsível que a sua aplicação tenha um impacto muito significativo no ordenamento jurídico dos Estados-Membros.

Conforme decorre do respetivo artigo 1.º, a Diretiva tem por objetivo, “contribuir para o bom funcionamento do mercado inter-no e para alcançar um nível de defesa do consumidor elevado e o mais uniforme possível, através da aproximação de determina-dos aspetos das disposições legislativas, regulamentares e admi-nistrativas dos Estados-Membros em matéria de contratos celebra-dos entre viajantes e operadores relativos a viagens organizadas e serviços de viagem conexos.” De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março de 2018 (Decreto-Lei), que entrou em vigor no dia 1 de julho de 2018, este diploma operou a transposição para a ordem jurídica nacional da Diretiva de 2015. Por via do n.º 1 do mesmo artigo, procedeu, ainda, à revogação do Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de maio. Estatui o respetivo artigo 1.º subordinado à epígrafe “Objeto e âmbito” que este diploma “estabelece o regime de acesso e de exercício da ati-vidade das agências de viagens e turismo” (n.º 1) e “transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015” (n.º 2). 27

27 Como claramente flui do que ficou dito relativamente aos objetivos e fundamentos da Diretiva, a atividade das designadas “agências de viagens e

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Afigura-se inequívoco que o objeto deste diploma, ou seja, o regime de acesso e de exercício da atividade de agências de via-gens e turismo, não é consistente com os objetivos da Diretiva que impõe uma padronização jurídica dos contratos celebrados entre viajantes e operadores relativos a viagens organizadas e serviços de viagem conexos no espaço europeu. Ora, esta aparente incon-gruência constitui a porta de acesso ao problema de pesquisa.

Assim, considerando as alterações introduzidas pela Diretiva, no que respeita:

— Ao alargamento do respetivo âmbito de aplicação, do lado da procura, aos viajantes, que podem não ser consumidores e, do da oferta, a operadores, independentemente da atividade comer-cial que prosseguem;

— À ampliação do conceito de viagens organizadas e à intro-dução de uma nova categoria, os serviços de viagens conexos;

— Ao reforço das garantias dos viajantes ocorrendo a insolvên-cia do organizador,

turismo” é uma matéria que lhe é inteiramente estranha. De facto, nenhuma disposição se lhes faz expressamente referência o que, naturalmente é resultado objetivo e lógico do facto, a todos os títulos, inquestionável, de que, por um lado, a Diretiva se foca no próprio objeto da relação contratual que se estabelece entre o viajante e os prestadores dos serviços, genericamente designados “operadores”. O respetivo n.º 1 do artigo 2.º ao estabelecer que a Diretiva “é aplicável a viagens organizadas propostas para venda ou vendidas por operadores a viajantes e a serviços de viagens conexos facilitados por operadores a viajantes” é, quanto a este aspeto bem elucidativo. Por outro lado, para efeitos da Diretiva, a figura central é a do “operador” que, de acordo com a definição da mesma constante, pode ser qualquer pessoa independentemente da atividade que prossiga desde que intervenha em qualquer dos contratos abrangidos pela mesma, não carecendo de ser uma agência de viagens e turismo tradicional.

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i. Será que o legislador português, no seu labor de trans-posição, observou os imperativos da harmonização ple-na, acolhendo, conforme lhe competia, os objetivos da Diretiva?

ii. Será que os viajantes adquirentes, em Portugal, de servi-ços de viagem, passaram a beneficiar de um regime mais vantajoso e protetor por comparação com o anteriormen-te vigente, tal como almejavam os legisladores europeus?

iii. Será, ainda, que estes viajantes dispõem , para além dos judiciais, de meios alternativos adequados à resolução de litígios emergentes do incumprimento dos contratos cele-brados com os organizadores?

Para responder a estas questões, o presente artigo ocupa-se dos aspetos relacionados com a harmonização legislativa, os sujeitos e o objeto do contrato de viagem organizada e serviços de viagem conexos, da proteção de que beneficia o viajante/consumidor durante a execução do contrato de viagem organizada, em caso de insolvência do organizador/retalhista, bem como dos meios extrajudiciais de que o viajante dispõe para fazer valer os seus direitos verificado o incumprimento do contrato celebrado com o organizador.

2. Os sujeitos no contrato de viagem organizada e de serviços de via-gem conexos na Diretiva e no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março

2.1. Os viajantes

A Diretiva de 1990 identificava como intervenientes do contrato de viagem o consumidor, o operador e a agência de viagens. O

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operador era, fundamentalmente, o organizador, ou seja, quem organizava e vendia, diretamente, ou através de uma agência, viagens organizadas. A agência correspondia à figura do retalhista, isto é, quem vendia ou propunha para venda a viagem organizada pelo operador 28-29. Apenas os “clientes” que tivessem a qualidade de “consumidores” poderiam beneficiar do pagamento dos seus créditos “decorrentes do incumprimento de serviços contratados às agências de viagens e turismo”, por meio do acionamento do Fundo de Garantia de Viagens e Turismo (FGVT)30-31.

28 Na verdade, a Diretiva de 1990 estava alinhada com as políticas europeias de proteção dos consumidores, o que nos tratados se verifica a partir de 1986, com o “Ato Único Europeu” em 1 de julho de 1987, por via do disposto no artigo 169.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, subsequentemente, em 1992, com o Tratado de Maastricht e, finalmente, em 1997, com Tratado de Amesterdão.

29 Machado et alii, ob. cit. sustentam que a única diretiva onde o consumidor não era considerado uma pessoa singular, eximindo-se ao princípio de que a relação de consumo protegida pelo direito comunitário era sempre B2C (business to consumer), era a Diretiva de 1990. O legislador nacional, aparentemente, não terá acolhido essa orientação, tendo, ao invés, adotado um critério híbrido na definição jurídica dos adquirentes de viagens organizadas a agências de viagens. Assim, no que respeitava à matéria contratual e execução do contrato, o Decreto-Lei n.º 61/2011, na redação do Decreto-Lei n.º 199/2012, de 29 de agosto referia-se ao “cliente” e não ao consumidor. Do mesmo modo, era perante o “cliente” que as agências de viagens e turismo, ao abrigo do referido normativo, eram responsáveis “pelo pontual cumprimento das obrigações resultantes da venda de viagens turísticas”. Ademais, estavam estas entidades obrigadas a “celebrar um seguro de responsabilidade civil que [cobrisse] os riscos decorrentes da sua atividade garantindo o ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados a clientes ou a terceiros por ações ou omissões da agência ou dos seus representantes” – Decreto-Lei n.º 61/2011, artigos 29.º, 30. 35º e 36.º.

30 Tal opção legislativa, de caráter restritivo, justificar-se-ia pelo facto de constituir para as agências de viagens e turismo mais que um encargo, um risco vultuoso, afetar tal garantia a estes pagamentos, extensível a todos os clientes. Por outro lado, muito embora o diploma em causa fosse omisso quanto à noção de

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103e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

31A nova Diretiva, no propósito de, não apenas de dotar o consu-midor, enquanto tal, de um elevado grau de proteção, mas, sobre-tudo, de alargar o seu âmbito de aplicação a todos os “viajantes”, resolveu, desta feita, as dificuldades interpretativas a respeito da definição de consumidor que a Diretiva de 1990 gerou. Conforme atrás referido, esta opção inscreve-se no objetivo da Comissão de estender o seu âmbito de aplicação a um universo de destinatários tão amplo quanto possível. Com efeito, note-se, os legisladores eu-ropeus apenas se referem ao “consumidor” no artigo 1.º em que se enunciam, de entre os vários objetivos da Diretiva, o de “alcançar um nível de defesa do consumidor o mais elevado e uniforme possí-vel”. Assim, não existe, no corpo do diploma, qualquer outra referên-cia ao “consumidor”, contrariamente ao que ocorria na Diretiva de 1990, mas a “viajante” pelo que é pertinente concluir que qualquer pessoa, singular ou coletiva, consumidor ou profissional, fica abrangi-

“consumidor” é certo que a constante da Lei de Defesa do Consumidor é transversal no nosso ordenamento jurídico e, portanto, supletivamente aplicável.

Idem, artigos 31.º, 33.º e 34.º.31 Porém, quanto às demais normas constantes tanto do referido diploma de

transposição como dos que lhe sucederam, o conceito adotado é o de “cliente”, naturalmente mais abrangente que o de consumidor abarcando qualquer entidade, pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, consumidor ou comerciante. Assim, enquanto os clientes das agências de viagens e turismo, conceito que abrangia operadores e retalhistas, beneficiavam do regime contratual especial do referido diploma legal no que respeitava, por exemplo, à obrigação de informação prévia (artigo 16.º), informação sobre a viagem (artigo 21.º), cessão da posição contratual (artigo 22.º), alteração do preço (artigo 23.º), direito de rescisão pelo cliente (artigo 28.º), incumprimento (artigo 27.º) e assistência a clientes (artigo 28.º) e do seguro de responsabilidade civil para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhes forem causados por ações ou omissões da agência ou dos seu representantes, apenas aos “consumidores” era outorgada a faculdade de acionar o FGVT para obter o reembolso das quantias pagas verificado o incumprimento do contrato de viagem, imputável à agência.

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da pelo regime da nova Diretiva, beneficiando, sem quaisquer restri-ções, das normas protecionistas, na mesma consagradas, em parti-cular, em caso de insolvência do operador.

Uma vez mais, é no preâmbulo que se encontram os fundamen-tos para esta opção. Por um lado, os legisladores europeus partem do pressuposto de que os viajantes que adquirem viagens organi-zadas ou serviços de viagem conexos são “na sua maioria consumi-dores na aceção do direito da União.” Por outro, os “representan-tes das pequenas empresas ou profissionais que reservam viagens relacionadas com a sua atividade comercial ou profissional, através dos mesmos canais de reserva que os consumidores (…) precisam, muitas vezes de um grau de proteção equivalente.” Donde, pros-seguem, “a diretiva deverá ser aplicada aos viajantes de negócios, inclusivamente, os profissionais liberais, os trabalhadores indepen-dentes ou outras pessoas singulares, caso não reservem serviços de viagem com base num acordo geral”, concluindo que as pessoas protegidas pela Diretiva devem ser designadas por “viajantes” para evitar a confusão com a definição do termo “consumidor”, utilizado noutra legislação da União.

Para esta opção legislativa contribuiu, ainda, o objetivo de “harmonizar” as disposições da Diretiva com as convenções inter-nacionais que regem os serviços de viagem e com a legislação da união sobre os direitos dos passageiros” 32. Com efeito, nos referidos instrumentos normativos, a proteção é-lhes conferida independen-temente de serem ou não consumidores33-34-35.

32 Diretiva, Considerando (35).33 Regulamento (CE) n.°261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de

11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque

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34 35Conforme se pode entrevir nos interstícios deste texto, a ques-tão subjacente não é meramente semântica. Com efeito, a alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º que exclui da aplicação da Diretiva “as viagens organizadas e serviços de viagem conexos adquiridos com base num acordo geral para a organização de viagens de negó-cios” não resolve, cabalmente, as dúvidas de natureza interpretati-va que suscita pois não existe, por um lado, uma definição unívoca para tais acordos e, por outro, as empresas, ainda que de grandes dimensões, sempre poderão contornar esta limitação por meio de mecanismos contratuais mais favoráveis que as eximam da limita-ção legal. Na verdade, esta norma suscita dificuldades de inter-pretação e integração ficando por esclarecer a razão pela qual a proteção do viajante pode ficar afetada pela forma como as enti-dades contratualizam as viagens, se individualmente, se por via de um contrato geral. Esta questão não é, de todo, pacífica. Machado et alii 36 e Café37 coincidem no entendimento de que a ratio da nor-ma é pouco clara e que a justificação dos legisladores europeus no

e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.°295/91, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32004R0261 (21.12.2018).

34 Decreto-Lei n.º 39/2002, que aprovou a Convenção para a unificação de certas regras relativas ao transporte aéreo internacional, feita em Montreal em 28 de maio de 1999, disponível em https://www.abreucarga.pt/Files/System/AbreuCarga/Docs/Conven%C3%A7ao_Montreal.pdf (21.12.2019).

35 2012/22/UE: Decisão do Conselho, de 12 de dezembro de 2011, relativa à adesão da União Europeia ao Protocolo de 2002 à Convenção de Atenas de 1974 relativa ao Transporte de Passageiros e Bagagens por Mar, com exceção dos artigos 10.º e 11.º, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELE-X%3A32012D0022 (21.12.2019).

36 virgílio macHado et alii, ob. cit..37 afonso café, ob. cit..

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sentido de evitar o excesso de regulação na mesma viagem carece de fundamento 38- 39 .Segundo Franceschelli 40, a inclusão das viagens de negócios no âmbito da Diretiva, não obstante ser uma manifesta-ção da força expansionista do Direito do Turismo, carece de justifica-ção dado que diferentes são os propósitos de quem viaja em férias ou por motivos profissionais, pois somente aos primeiros faz sentido aplicar a disciplina da compensação por “férias estragadas.”

Importa agora analisar por que forma abordou o legislador nacio-nal, vinculado ao princípio da harmonização legislativa plena, o conceito de viajante na norma de transposição. Assim, de acordo com o disposto na alínea q) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, «viajante» é “qualquer pessoa que procure celebrar um contrato ou esteja habilitada a viajar com base num contrato de viagem, nomeadamente, os consumidores, as pessoas singula-res que viajem em negócios, bem como os profissionais liberais, os trabalhadores independentes ou outras pessoas singulares, desde que não estejam abrangidas por um acordo geral para a organiza-

38 virgílio macHado et alii, ob. cit. ilustram tal entendimento com o seguinte exemplo: “Se pensarmos (…) numa deslocação de um docente de uma universidade, que seja parte num contrato geral para a aquisição de viagens em trabalho dos seus funcionários, a um congresso científico fora do país, não conseguimos perceber qual a diferença, a nível de necessidade de proteção do viajante, desta relação jurídica relativamente a outra em que o contrato geral não tenha sido celebrado.”

39 Os primeiros ilustram tal entendimento com o seguinte exemplo: “Se pensarmos (…) numa deslocação de um docente de uma universidade, que seja parte num contrato geral para a aquisição de viagens em trabalho dos seus funcionários, a um congresso científico fora do país, não conseguimos perceber qual a diferença, a nível de necessidade de proteção do viajante desta relação jurídica relativamente a outra em que o contrato geral não tenha sido celebrado.”

40 vicenZo francescHelli, “Causa and Consideration in Tourism Contracts in the frame of the EU 2015/2302 Directive”, in The New Package Travel Directive, esHtl|inatel, 2017, p. 34.

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ção de viagens de negócios.” É por demais notório que esta defini-ção de viajante diverge da constante da Diretiva, introduzindo, um elenco de vários “tipos de viajantes” que têm em comum a carac-terística de serem pessoas singulares de onde, aparentemente, se excluem pessoas coletivas, tais como as empresas.

Do mesmo modo, o conceito de “acordo geral para a orga-nização de viagens de negócios” no diploma nacional não é con-sistente com a norma europeia. Segundo dispõe a alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º da Diretiva esta “não é aplicável a viagens orga-nizadas e serviços de viagem conexos adquiridos com base num acordo geral para a organização de viagens de negócios entre um operador e outra pessoa singular ou coletiva que atue para fins que se insiram no âmbito da sua atividade comercial, empresarial, arte-sanal ou profissional.” Porém, na disposição equivalente no diploma de transposição, a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, lê-se que “para efeitos do presente decreto-lei considera-se «acordo geral para a organização de viagens de negócios» a relação contratual estabelecida entre uma agência e uma pessoa coletiva ou singular no âmbito da sua atividade comercial, empre-sarial, artesanal ou profissional, com vista à aquisição de uma plura-lidade de serviços de viagens e/ou serviços de viagens conexos por um período determinado.” Do cotejo das referidas normas, resulta que o legislador nacional não se conformou com os exatos termos da Diretiva quanto à definição de viajante, por um lado e, por ou-tro, quanto ao conceito de “acordo geral para a organização e viagens de negócios.” Conforme acima se referiu, a Diretiva veio, inequivocamente, abranger no seu âmbito de aplicação, pessoas físicas e morais, pelo que os contratos B 2 B, ou seja, em que os adquirentes sejam empresas, estão sujeitos à sua disciplina. Além

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disso, limita e restringe o conceito de “acordo geral para a organi-zação de uma viagem de negócios” do que resulta um enquadra-mento jurídico distinto. Torres 41 sustenta que, “o acordo geral para a organização de viagens de negócios pressupõe um elevado número e não uma simples pluralidade.”Assim sendo, a definição introduzi-da pelo legislador nacional é, à revelia da Diretiva, limitativa e, por consequência, “fraudatória” e conflitua com a disciplina europeia. Neste sentido, sublinha, “a indicação do legislador europeu é no sen-tido inverso, referindo, expressamente, no Considerando (7) que esse acordo geral visa «um elevado número de serviços»”. Nesse sentido, sublinhando que nesta matéria “o legislador europeu pretendeu ino-var” não conferindo “qualquer flexibilidade aos Estados-membros”, preconiza que “a expressão “pluralidade de serviços”, por ser bem mais restrita que “elevado número de serviços”, deve ser substituída por esta “de molde a que um conjunto significativo de viagens profis-sionais não seja excluído da proteção do novo quadro europeu.” De referir, a propósito da definição de “acordo geral” que a Comissão, no workshop de 25 de fevereiro de 2015, 42 exemplificando, subsumiu nesse conceito “um «acordo plurianual” com um dado prestador de serviços com base no qual os peritos viajavam para Bruxelas para participar em reuniões.” Nessa ocasião, recomendou aos Estados-membros, a fim de evitar definições divergentes, que no processo de transposição se abstivessem de introduzir definições que limitassem o objetivo da Diretiva, devendo, pelo contrário, recorrer para o efeito, tanto quanto possível, à terminologia utilizada no Considerando (19).

41 carlos torres, Diretiva das viagens organizadas (III), disponível em https://www.turisver.com/opiniao-directiva-das-viagens-organizadas-cont-por-carlos-torres/ (13.01.2019).

42 Transposition of Directive (EU) No 2015/2302 on package travel and linked travel arrangements Workshop with Member States 25 February 2015, disponível em https://ec.europa.eu/newsroom/just/item-detail.cfm?item_id=35324 (11.02.2019).

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Do exposto, resulta que o legislador nacional não terá respeita-do o princípio da harmonização plena a que estava obrigado, no que concerne à definição de viajante e à exceção de aplicação da Diretiva quando os serviços são adquiridos com base num “acor-do geral” por limitar o conceito, quando, na realidade a intenção dos legisladores europeus foi a de o alargar de modo a incluir na disciplina da Diretiva o maior número possível de contratos.

2.2. Os operadores, os organizadores e os retalhistas

O propósito de regulamentar o mercado das viagens organiza-das e serviços de viagens conexos levou a Comissão a abandonar, por redutora, à luz do novo contexto, a identificação, do lado da oferta, de operadores/organizadores e retalhistas. Merecem parti-cular relevância as novas definições introduzidas pela Diretiva. O con-ceito de operador é central, abrangendo os organizadores, que corres-ponde ao de operador da Diretiva de 1990, os retalhistas, os operadores que facilitam serviços de viagem conexos e os prestadores de serviços de viagem.

Nos termos da Diretiva 43 o operador pode ser uma pessoa sin-gular ou coletiva, de natureza pública ou privada que, nos con-tratos pela mesma abrangidos, em nome próprio ou através de representante, atue para fins relativos à sua atividade comercial, empresarial, artesanal ou profissional, quer como organizador, reta-lhista, operador que facilite serviços de viagem conexos ou presta-

43 Diretiva, artigo 3.º alínea 7).

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dor de um serviço de viagem. Conforme referem Machado et alii 44 à luz da nova Diretiva, “qualquer ator que exerça a sua atividade empresarial no lado da oferta, seja entidade pública ou privada, de natureza empresarial, artesanal ou profissional e esteja inserida, por alguma razão, nos serviços oferecidos ao viajante de viagem organizada ou serviços de viagem conexos é um operador.” Este, por seu turno, pode ser um organizador ou um retalhista. O primeiro, o organizador, é um operador que pode ser qualquer pessoa que combine, venda ou proponha para venda viagens organizadas, diretamente, por intermédio de outro operador ou conjuntamente com outro operador que transmita dados de viagem.45 O segun-do, retalhista, é um operador, distinto do organizador, que venda ou proponha para venda viagens organizadas combinadas por um organizador46.

É a própria Diretiva que clarifica estes conceitos ao referir que “determinar se um operador age na qualidade de organizador de uma determinada viagem organizada deverá depender da sua participação na organização da viagem em causa e não da for-ma como descreve a sua atividade. Para determinar se um opera-dor é um organizador ou um retalhista, deverá ser indiferente que o operador intervenha do lado da oferta ou se apresente como um agente que atue por conta do viajante”47. Assim, o que releva não é a forma como o operador qualifica a sua atividade, mas como, do ponto de vista substantivo, atua, podendo, de acordo com a situação em concreto, ser considerado organizador, retalhista ou

44 virgílio macHado et alii, ob. cit.45 Diretiva, artigo 3.º alínea 8).46 Diretiva, artigo 3.º alínea 9).47 Diretiva, Considerando (22).

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facilitador de serviços de viagem conexos. De resto, sublinhe-se, é entendimento da Comissão que o retalhista pode, inclusivamente, ser um grande armazém ou um supermercado48.

Decorre, com clareza, deste novo enquadramento normativo que é pretérito o conceito clássico de “agência de viagens” e, por consequência, ausente da Diretiva na sua parte dispositiva, a qual não lhe faz qualquer menção, contrariamente ao que acontecia na Diretiva de 1990. Com efeito, deixou de se prever a existência de agências de viagens e turismo que conforme referem Machado et alii 49 terá sido “a qualificação legal tradicional da empresa turística que, durante muitos anos, foi a base da distribuição das viagens turísticas e de grande parte dos serviços que as compunham.”

Em suma, à questão de saber se é necessário ser-se um organi-zador ou mesmo uma agência de viagens para comercializar via-gens organizadas, a Diretiva respondeu de forma negativa confor-me decorre do seu âmbito de aplicação.

Importa, para melhor compreensão da norma de transposição, o Decreto-Lei n.º 17/2018, ter em conta o diploma que transpôs a Di-retiva de 1990 a qual incorporou as respetivas normas num diploma que estabelecia o acesso e exercício da atividade das agências de viagens, orientação que se manteve em todas as sucessivas al-terações. Assim, enquanto o objeto da Diretiva de 1990 consistia na regulamentação das viagens organizadas, o diploma de transposi-ção e todos os que se lhe sucederam, tiveram por objeto regular o

48 Transposition of Directive (EU) No 2015/2302 on Package Travel and Linked Travel Arrangements Workshop with Member States 13 June 2016, p. 13, disponível em https://ec.europa.eu/newsroom/just/item-detail.cfm?item_id=35324 (19.01.2019).

49 virgílio macHado et alii, ob. cit.

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regime de acesso e de exercício da atividade das agências de via-gens e turismo estabelecendo o respetivo elenco de atividades pró-prias e acessórias conforme dispunha o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 61/2011. 50. Machado et alii 51 anteciparam que tendo em conta a regra da harmonização completa este regime não poderia subsistir na transposição da Diretiva que “abre o espectro da atividade de operador a qualquer pessoa jurídica, no sentido amplíssimo exposto no seu artigo 3.º n.º 7 e, bem assim, que a referida “distinção entre operadores” seria obrigatória aquando da respetiva transposição. Porém, surpreendentemente, não foi este o entendimento do legis-lador nacional. Assim, tal como no Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de maio, este diploma “estabelece o regime de acesso e de exercício da atividade das agências de viagens e turismo” (artigo 1.º).

Acresce que, não obstante reproduzir as definições da Diretiva quanto aos conceitos de “operador” [artigo 2.º alínea h)], “organi-zador” [artigo 2.º alínea i)] e “retalhista” [artigo 2.º alínea l)], o di-ploma adita a de “agência de viagens e turismo” [artigo 2.º alínea b)] nos seguintes termos: “Para efeitos do presente decreto-lei con-sideram-se «agências de viagens e turismo» as pessoas singulares ou coletivas que atuem como operador e desenvolvam as ativida-des referidas no n.º 1 do artigo seguinte.” Por seu turno o artigo 3.º do mesmo diploma, à semelhança do que acontecia no revogado Decreto-Lei n.º 61/2011, estabelece o elenco das atividades que

50 Entre as próprias incluía-se a organização e venda de viagens turísticas [n.º 1 alínea a)], a reserva de serviços em empreendimentos turísticos [n.º 1 alínea c)] ou a venda de bilhetes e reserva de lugares em qualquer meio de transporte [n.º 1 alínea d)]. Por via do disposto n.º 1 do artigo 4.º do deste diploma, as agências de viagens e turismo detinham o exclusivo do exercício, em território nacional, do exercício de tais atividades.

51 virgílio macHado et alii, ob. cit..

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as agências de viagens e turismo desenvolvem, a título principal e acessório, merecendo particular atenção a alínea a) do n.º 1 em que se qualifica como atividade própria, a título principal, a organi-zação e venda de viagens organizadas e a facilitação de serviços de viagens conexos, quando o facilitador receba pagamentos do viajante, respeitantes a serviços prestados por terceiros.” Paralela-mente, o Decreto-Lei n.º 17/2018, consagrou, à semelhança dos an-teriores diplomas sobre a mesma matéria, no âmbito da Diretiva de 1990, o princípio da exclusividade das agências de viagens para o exercício das ditas atividades apesar de utilizar, para tanto, uma formulação artificiosa e pouco transparente. Na verdade, enquan-to na versão anterior do diploma se referia que “só as agências de viagens e turismo inscritas no Registo Nacional das Agências de Via-gens e Turismo (RNAVT) (…) podem exercer em território nacional as (referidas) atividades” na formulação atual lê-se que “só as pessoas singulares ou coletivas inscritas no RNAVT (…) podem exercer em território nacional” as atividades a que atrás se faz referência52. A inscrição no RNAVT é, pois, condição sine qua non para o exercício em Portugal das atividades em apreço tal como decorre do artigo 6.º do Decreto-Lei para qualquer uma das entidades identificadas na Diretiva que, por via deste método de “conversão forçada”, in-dependentemente da atividade que exerçam e da forma por que o façam, são no nosso ordenamento jurídico “agências de viagens e turismo”,apesar de a Diretiva, de harmonização máxima, reitera-se, ter, em consonância com os princípios que postula, abolido tal classificação. Consequentemente, ao fazer depender o acesso à atividade das agências de viagens e turismo da inscrição no RNAVT,

52 Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de maio, artigo 4.º e Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, artigo 4.º.

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o referido diploma obriga à subscrição do FGVT e contratação de um seguro de responsabilidade civil.

No sentido da desconformidade do direito interno com a lei europeia relativamente a esta questão se pronunciou Torres 53 que a propósito do anteprojeto já alertava que “a transposição não pode limitar-se às agências de viagens, vai muito para além delas. Uma secreta transposição, tamanho S, quando o legislador europeu im-põe uma alargada transposição XXXL.” Para este autor, enquanto o legislador europeu alargou o âmbito de aplicação da legislação sobre viagens a todas as entidades que tivessem a qualidade de “operador”, não apenas as agências de viagens tradicionais, mas a todos os prestadores de serviços que combinem serviços de via-gens, designadamente, unidades hoteleiras, empresas de aluguer de veículos, empresas de alojamento local, o legislador português “operou a transposição dessas importantes normas tão somente para as agências de viagens.”

Do mesmo modo, a manutenção no Decreto-Lei n.º 17/2018, do regime especial de livre prestação de serviços reconhecido às agências de viagens e turismo legalmente estabelecidas noutro Estado Membro da União Europeia ou do espaço económico eu-ropeu para a prática da atividade de agência de viagens e turis-mo em território nacional é desconforme com a Diretiva. Tal como na anterior versão do diploma, esta possibilidade é condicionada e apenas aceitável se o exercício dessa atividade se desenvolver “de forma ocasional e esporádica” e sujeita à “apresentação pré-

53 carlos torres, Opinião|O restrito âmbito de transposição da Diretiva das viagens organizadas, Publituris, 5 de março de 2018, disponível em https://www.publituris.pt/2018/03/05/opiniao-restrito-ambito-transposicao-da-directiva-das-viagens-organizadas-grosseira-ilegalidade/ (18.01.2019).

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via ao Turismo de Portugal, I.P.” de documentação, em forma sim-ples, comprovativa da contratação de garantias equivalentes” à subscrição do FGVT (artigos 37.º e 38.º) e seguro de responsabilida-de civil (artigos 41.º e 42.º). Esta questão ganha particular interesse tendo em devida conta a Diretiva n.º 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos serviços do mercado interno54. A licença não é obrigatória para os operadores europeus se tive-rem proteção contra insolvência, de acordo com a legislação do Estado-membro. Ademais, os operadores de Estados terceiros que se registem como empresa na União Europeia e disponham de pro-teção contra a insolvência ao abrigo da lei de outros Estados-mem-bros beneficiam de reconhecimento mútuo. As consequências da “grosseira ilegalidade” a que se refere Torres 55 produzem efeitos jurídicos relevantes, quer a nível interno como europeu. Os viajantes ficam prejudicados vendo, por esta via, mitigada ou esvaziada a proteção que a Diretiva lhes confere quando contratam com ope-radores que não sejam as tradicionais agências de viagens.

Por outro lado, ao estabelecer, ou melhor, manter, já que esta disposição não é inovadora sendo importada, com leves ajustes, do revogado Decreto-Lei n.º 61/2011, no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, uma lista de atividades próprias, a título principal ou acessório, das agências de viagens e turismo, que continuam a be-neficiar de um regime de monopólio, na atividade de combinação de serviços de viagem, o legislador nacional fere de ilegalidade e sanciona com pesadas coimas os operadores que, à luz da Direti-va, legitimamente, combinem e comercializem serviços de viagem. Veja-se a este propósito o n.º 1 do artigo 46.º do diploma de trans-

54 Diretiva n.º 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, Artigo 30.º.55 carlos torres, ob. cit.

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posição que qualifica como contraordenação muito grave a infra-ção do disposto no n.º 1 do citado artigo 4.º, sancionável com uma coima que pode ir de € 2.500,00, tratando-se de pessoa singular a € 44.000,00, se praticada por uma grande empresa.

Consagra, ainda, o legislador nacional, um regime de exceção ao princípio da exclusividade da atividade das agências de via-gens e turismo, conforme se alcança da alínea a) do n.º 2 do citado artigo 4.º onde se lê que “não estão abrangidos pelo exclusivo re-servado às agências de viagens e turismo a comercialização direta dos seus serviços pelos empreendimento turísticos, pelos estabeleci-mentos de alojamento local, pelos agentes de animação turística, pelas empresas transportadoras e pelas empresas de aluguer de carros ou de outros veículos a motor. No entanto este preceito mais não é que a repetição, mutatis mutandis, da norma equivalente do Decreto-Lei n.º 61/2011.

Em suma, o legislador nacional não se deixou imbuir da letra ou do espírito da Diretiva, assumindo, ao invés, uma atitude osten-sivamente conservadora, desconforme com os ditames da nova legislação europeia a que está vinculado. Na verdade, limitou-se a introduzir leves ajustes no pretérito Decreto-Lei n.º 61/2011, man-tendo, no essencial a sua estrutura, omitindo, o que de essencial deveria merecer consagração legal na norma de transposição.

3. O objeto do contrato de viagens organizadas e de serviços de viagem conexos na Diretiva e no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março

A Comissão pretendeu sujeitar à disciplina da Diretiva os ser-viços de viagem que, por não se enquadrarem na definição de

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viagem organizada, deixavam os consumidores desamparados por não beneficiarem do regime de proteção na insolvência. Por ou-tro lado, foi sensível à situação, claramente injusta, decorrente do facto de os operadores que comercializavam viagens organizadas es-tarem sujeitos a um regime mais gravoso, ou seja, às obrigações decor-rentes da Diretiva de 1990, enquanto os operadores que se limitavam a agir como facilitadores, criando, no entanto, para o consumidor, a aparência de uma viagem organizada, se eximiam ao inerente enqua-dramento jurídico56.

A proteção dos viajantes adquirentes de serviços de viagem conexos foi, na verdade, a motivação impulsionadora do alarga-mento do âmbito da Diretiva por comparação com a de 1990, atra-vés da introdução a par do conceito de “viagens organizadas”, o de “serviços de viagens conexos”, com o que se pretendeu englo-bar na sua alçada ambas as realidades. Não obstante se reconhe-

56 Na comunicação dirigida pela Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões (vide NR 2) é ilustrado com um exemplo muito claro a situação que se pretendia regular: “Thomas reservou um voo para a Tailândia diretamente no sítio Web da companhia aérea X. Quando efetuou a reserva, foi-lhe proposto alojamento num hotel. Decidiu adquirir ambos os serviços, tendo pago um preço global no sítio Web dessa companhia aérea. O seu amigo James tinha, entretanto, adquirido alojamento no mesmo hotel e um voo com a mesma companhia aérea no âmbito de uma viagem pré-organizada pelo grupo de turismo Y. Quando se encontravam na Tailândia, a companhia aérea X faliu e o seu voo de regresso foi cancelado. Thomas teve de organizar ele próprio a sua viagem para regressar a casa, o que lhe custou mais € 700 para além do que já havia pago pelo bilhete original. James, pelo contrário, foi repatriado sem custos adicionais graças à proteção proporcionada em caso de insolvência pelo grupo de turismo Y.” Referindo-se à inclusão na disciplina da Diretiva dos “novos serviços combinados de viagem mais comuns”. Conclui a Comissão que “se a presente proposta já estivesse em vigor, Thomas teria sido repatriado sem quaisquer custos adicionais, exatamente como James.”

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cer, por um lado, que a estes serviços não seria “adequado aplicar todas as obrigações aplicáveis às viagens organizadas” e, por outro que “constituindo um modelo de negócio alternativo que muitas vezes faz concorrência às viagens organizadas”, por imperativos de lealdade na concorrência e proteção dos viajantes, deve ser-lhes aplicável “a obrigação de fazer prova suficiente de que se possui garantia para cobrir, em caso de insolvência, o reembolso dos pa-gamentos e o repatriamento dos viajantes”57. Previamente à análise do regime das viagens organizadas e serviços de viagens conexos, há que precisar o conceito de “serviço de viagem”, comum a am-bas as modalidades, sendo de sublinhar que o legislador nacional que operou a transposição foi, neste particular, fiel às definições dos legisladores europeus58.

Assim, são “serviços de viagem” o transporte de passageiros, o alojamento que não seja parte integrante do transporte de passa-geiros e não tenha fins residenciais”, o aluguer de carros ou veículos a motor ou de motociclos que exijam uma carta de condução da categoria A (de acordo com a legislação aplicável) ou qualquer outro serviço de viagem que não seja parte integrante e um serviço de viagem, na aceção dos mencionados serviços59. Foi aditado um

57 Diretiva, Considerandos (9) e (13).58 Diretiva, artigo 3.º (1) e Decreto-Lei n.º 17/2018, artigo 2.º alínea m).59 Esta enunciação e as inerentes definições não são, no entanto, consensuais.

De referir, a este propósito, a título de exemplo, que a Comissão admite que o conceito de “fins residenciais” é indeterminado e, por conseguinte, existe o risco de os Estados-membros poderem falseá-lo ou criar normas divergentes, fixando, por exemplo, aleatoriamente, na sua legislação, prazos de duração dos contratos. Transposition of Directive (EU) No 2015/2302 on Package Travel and Linked Travel Arrangements Workshop with Member States 13 June 2016, p. 12, disponível em https://ec.europa.eu/newsroom/just/item-detail.cfm?item_id=35324 (19.01.2019).

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novo elemento ao elenco dos serviços de viagem – o aluguer de carros ou de outros veículos a motor60 ou de motociclos 61, apesar de se poder entender que se trata apenas da clarificação de uma prá-tica corrente no anterior quadro normativo. Quanto aos designados “outros serviços” 62 estes cobrem um âmbito muito vasto incluindo, por exemplo, a aquisição de “bilhetes para concertos, eventos des-portivos, excursões ou parques de diversões, visitas guiadas, passes de esqui e aluguer de equipamento desportivo, como equipamen-tos de esqui, ou tratamento termais.”

Conforme já referido, a nova Diretiva é, em boa medida, o re-sultado de uma intenção firme da Comissão, no sentido de atualizar o conceito de viagens organizadas tendo em conta a evolução do mercado e a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Eu-ropeia. O n.º 2 do artigo 3.º da Diretiva, integralmente reproduzido na alínea p) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 17/2018 é, claramen-te, uma manifestação deste propósito. Assim, é definida uma lista exaustiva de relações contratuais entre prestadores de serviços de viagem e viajantes abrangendo situações diversas cobertas pela disciplina do diploma. Em comum, a viagem organizada implica a combinação de, pelo menos, dois tipos diferentes de serviços de viagem para efeitos da mesma viagem ou férias, critério que, afinal,

60 Na aceção do artigo 3.º, ponto 11, da Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos.

61 Nos termos do artigo 4.º, n.º 3, alínea c), da Diretiva 2006/126/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à carta de condução.

62 Diretiva, Considerando (17).

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já constava do anterior regime63. Da comparação entre a Diretiva de 1990 e a nova Diretiva é por demais evidente que o conceito de viagem organizada foi consideravelmente alargado passando a abranger qualquer combinação de serviços de viagem que apre-sente as características que os viajantes normalmente associam a este tipo de viagens, em particular a combinação de diferentes ser-viços de viagens num único produto de viagem, assumindo o orga-nizador a responsabilidade pela sua correta execução”64. A Diretiva acolheu, naturalmente, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia no caso conhecido como “Club Tour”65 segundo a qual “deverá ser indiferente o facto de os serviços de viagem serem combinados antes de ser estabelecido qualquer contacto com o viajante ou a pedido ou segundo as escolhas feitas por este”66.

Do elenco das viagens organizadas decorre que estas se agru-pam em duas distintas modalidades: as que resultam da celebra-ção de um contrato único relativo à globalidade dos serviços67 e as que implicam a celebração de contratos distintos com diferentes prestadores de serviços de viagem68. Constam do diploma de trans-posição as definições da Diretiva, quanto a esta matéria.

Relativamente às modalidades de viagem organizada previs-tas no artigo 2.º alínea a) e b) i), ii) e iii) 69 da Diretiva, o Consi-

63 Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de maio - artigo 15º n.º 2.64 Diretiva, Considerando (8).65 Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 30 de abril de 2002,

Club Tour – Viagens e Turismo, S.A./Alberto Carlos Lobo Gonçalves Garrido v Club Med Viagens, Lda., C-400/00, ECLI:EU:C 2002:272.

66 Diretiva, Considerando (8).67 Diretiva, artigo 2.º n.º 2 a) e Decreto-Lei n.º 17/2018, artigo2.º p) i).68 Diretiva, artigo2.º n.º 2 b) e Decreto-Lei n.º 17/2018, artigo2.º p) ii).69 Correspondente ao artigo 2.º p) i) e ii)) 1), 2) e 3) do Decreto-Lei n.º 17/2018,

de 8 de março.

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derando (10) esclarece que a preocupação subjacente foi a de “definir com maior precisão o conceito de «viagem organizada» em função de outros critérios objetivos respeitantes sobretudo à forma como os serviços de viagem são apresentados ou adquiridos e re-lativamente aos quais os viajantes tenham expetativas legítimas de estarem protegidos.”

Se as aludidas modalidades de viagem organizada não suscitam questões de maior monta, já os designados “pacotes”, “experiências” ou “gift boxes” 70, por um lado e os ditos “pacotes dinâmicos, “click through booking” ou “click through package” merecem particular interesse. Os primeiros resultam de serviços combinados após a celebração de um contrato através do qual o operador dá ao viajante a possibilidade de escolher entre uma seleção de diferentes tipos de viagem. As empresas que divulgam e promovem estas viagens são “organizadores” enquanto que as que as disponibilizam junto do público em geral e as comercializam são “retalhistas”71. A segunda modalidade referida, o “pacote dinâmico”, “click through booking” ou “click through package” 72 ocorre quando o nome do viajante, detalhes do pagamento e o endereço de correio eletrónico são transmitido entre diferentes operadores através de “links” sendo a confirmação da reserva emitida no período de 24 horas.

70 Diretiva, artigo 3.º n.º 2 b) iv) e Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, artigo 2.º p) n.º 4.

71 Como por exemplo as marcas “Odisseias” ou “Lifecooler”.72 Diretiva, artigo 3.º n.º 2 b) v e correspondente artigo 2.º p) 5) do Decreto-Lei

n.º 17/2018.

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Merece particular interesse o disposto na parte final do artigo 3.º n.º 2 b) da Diretiva segundo o qual os serviços turísticos, que não sejam parte integrante do transporte de passageiros, alojamento ou aluguer de veículo a motor ou motociclos forem combinados com um destes, apenas constituem uma viagem organizada se representarem uma parte significativa do respetivo valor ou se ti-verem sido publicitados como elemento essencial da viagem ou férias. Se a segunda parte do preceito pode não suscitar grandes dúvidas, sendo consensual que, por exemplo, um programa de via-gem à Disneylândia Paris, que inclua entradas para o parque cons-titua uma viagem organizada, já a primeira coloca , desde logo, a questão de se saber o que se deve entender por “parte significa-tiva do preço.”O esclarecimento dos legisladores europeus quan-to a esta questão está patente no Considerando (18) onde se lê: “Se outros serviços turísticos representarem 25% ou mais do valor da combinação, deverá considerar-se que representam uma propor-ção significativa do valor da viagem organizada ou do serviço de viagem conexo.”Porém, na prática, esta solução pode enfrentar dificuldades de aplicação já que, por via de regra, o adquirente de uma viagem organizada desconhece qual o valor de cada um dos respetivos componentes pois a mesma é comercializada por um preço global. Esta indeterminação prejudica e desvirtua, natu-ralmente, a aplicação deste preceito. Fürich73 pronunciou-se neste sentido, ao referir que caso o retalhista não revelar um preço to-tal ou não referir expressamente no contrato que se trata de uma “viagem organizada” ou “tudo incluído” dúvidas subsistirão relati-vamente à natureza do serviço. Para ultrapassar esta dificuldade propõe que a percentagem específica seja incluída no diploma de

73 ernst füricH, ob. cit., p.110.

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transposição de modo a evitar uma interpretação por parte dos tri-bunais, “duvidando que todos estes encontrem a clarificação no Con-siderando (18) da Diretiva. O legislador nacional não enveredou por este caminho, ficando, pois, as partes no contrato de viagem sujeitas às contingências e incertezas suscitadas pelo referido autor. Importa ainda clarificar que não existe uma viagem organizada se os serviços forem escolhidos e adquiridos após a mesma ter sido iniciada 74-75 .A este propósito os legisladores europeus alertaram para o risco de um possí-vel desvio à Diretiva, “o que sucederia se os organizadores e retalhistas oferecessem ao viajante a possibilidade de escolher antecipadamente serviços turísticos adicionais e só propusessem a celebração do contra-to relativa a esses serviços depois de iniciada a execução do primeiro serviço de viagem”76.

Como se referiu, a par com as viagens organizadas, a Diretiva introduziu a nova figura, dos designados “serviços de viagens cone-xos” que, de acordo com a definição do respetivo artigo 3.º n.º 5, consistem em “pelo menos dois tipos diferentes de serviços de via-gem adquiridos para efeitos da mesma viagem ou das mesmas fé-

74 Diretiva, artigo 3.º n.º 2 in fine e Decreto-Lei n.º 17/2018, artigo 2.º n.º 3.75 carlos torres, ob. cit. p. 310, sublinha a importância da combinação de

serviços como pressuposto da existência de uma viagem organizada através do seguinte exemplo: se no sítio da Internet de um hotel se faz uma reserva de um quarto e se aluga um veículo para a mesma viagem ou férias, estamos perante uma viagem organizada. Pelo contrário, se o viajante reservou online o alojamento e ao chegar à unidade hoteleira, alguns dias mais tarde, para beneficiar de uma oferta promocional, alugou um veículo publicitado no website do hotel ou na receção, não estamos perante uma viagem organizada mas, pelo contrário, um serviço de viagem autónomo, complementado com outro serviço de viagem autónomo, não constituindo uma viagem organizada ou um serviço de viagem conexo.

76 Diretiva, Considerando (18) in fine.

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rias que não constituam uma viagem organizada e que resultem da celebração de contratos distintos com diferentes prestadores de serviços de viagem, se um operador facilitar: por ocasião da mesma visita ou contacto com o respetivo ponto de venda, a escolha separada e o pagamento de cada serviço de viagem pelos viajantes; ou de forma direcionada, a aquisição de pelo menos um serviço de viagem adicional a outro operador, caso o contrato com esse outro operador seja celebrado, o mais tardar 24 horas depois da confirmação da reserva do primeiro serviço de viagem”.

Conforme se alcança desta disposição legal, a definição de ser-viços de viagem conexos comporta duas situações distintas: a da alínea a) respeita a reservas separadas efetuadas através de um úni-co ponto de venda, sítio na Internet ou estabelecimento, enquanto a da alínea b) prevê a existência de reservas separadas efetuadas através de sítios na Internet diferentes mas associados e a segunda reserva é efetuada, o mais tardar, 24 horas após a confirmação da primeira. Ambas têm em comum que os pagamentos são relativos a contratos distintos celebrados com diferentes operadores tendo em vista a concretização da mesma viagem ou férias sendo que os que as distinguem é a existência, na previsão da alínea b), de sítios na Internet que são associados pelo facilitador, servindo para efetuar reservas separadas77.

77 O Considerando (13) da Diretiva exemplifica, a este propósito, o caso em que o viajante, ao receber a confirmação de uma reserva para um serviço de viagem, como por exemplo, uma viagem de avião ou de comboio, recebe um convite para marcar um serviço adicional no destino, designadamente, uma estadia num hotel através de um link para o site de reservas do fornecedor ou intermediário.

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O diploma de transposição foi fiel à definição da Diretiva quan-to à definição de serviços de viagem conexos78. Todavia, o regime constante do respetivo artigo 34.º merece alguma ponderação, resultando incongruente a separação entre os meros facilitadores de serviços de viagens conexos e as agências de viagens que fa-cilitam os mesmos serviços além de potencialmente geradora para o viajante de alguma incerteza quanto ao objeto do contrato. Ma-chado et alii 79 abordam a questão controversa da distinção entre serviços de viagens conexos dos designados “pacotes dinâmicos”, “construídos pela doutrina” no âmbito da Diretiva de 1990, permi-tindo aos “turistas construir o seu próprio pacote a la carte, esco-lhendo o voo, hotel, excursões, transferes, aluguer de automóveis, viagens de comboio, seguro de viagem, entre outros, baseando-se, geralmente na oferta de vários prestadores de serviços turísticos co-nectados diretamente via internet através de uma agência de via-gens”. Para estes autores, à luz da legislação anteriormente vigente, em Portugal os pacotes dinâmicos careciam ser “vendidos por uma agência de viagens”, “permitiam a recombinação automática (on-line) dos elementos da viagem feita diretamente pelos turistas em tempo real”, “o preço final era dado após a construção do paco-te, sem discriminação das parcelas que o compõem” e devia “o contrato ser celebrado com a agência e não com os prestadores de serviços que, em concreto, prestam os serviços que compõem o pacote.” Reconheciam que, de acordo com o enquadramento jurídico anterior, a comercialização de viagens turísticas [era] feita exclusivamente através de agentes de viagens.” Porém, admitem que este regime de exclusividade conhecia uma exceção, relativa-

78 Decreto-Lei n.º 17/2018, artigo 2.º n.º 1 n).79 virgílio macHado et alii, ob. cit.

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mente à “comercialização de serviços que não constituam viagens organizadas, feita através de meios telemáticos ou da Internet, por empreendimentos turísticos, empresas transportadoras, estabeleci-mentos, iniciativas ou projetos declarados de interesse para o turis-mo e entidades que prossigam atribuições públicas de promoção de Portugal ou das suas regiões, enquanto destino turístico.” No en-tanto, como bem observam, para um consumidor médio, era duvi-doso, perante um portal de uma companhia aérea, por exemplo, saber se após haver adquirido uma passagem aérea, o serviço de reserva de alojamento estaria disponibilizado por aquela entidade ou por outro prestador de serviços, o que, naturalmente, poderia ter efeitos negativos caso tivesse necessidade de reclamar por incum-primento ou cumprimento defeituoso do contrato. Entendem que o traço distintivo entre viagens organizadas e serviços de viagem conexos será o facto de naquele “o operador com quem primeiro se contrata [transmite] aos outros operadores o nome do viajante, os dados relativos ao pagamento e o endereço de correio eletróni-co.” Como refere Berenguer 80 a distinção radica na circunstância de não existir apenas um único responsável pela boa execução dos serviços de viagem na qualidade de organizador e o viajante não beneficia da mesma proteção garantida às viagens organiza-das. Fullana81, por seu turno, questiona se existe justificação para a existência de um tratamento diferenciado para os designados “cli-ck through packages” e os serviços de viagem conexos, prevendo

80 c. berenguer alabadejo, “Lights and Shadows of the New Directive (EU) 2015/2302 of the European Parliament and the Council of 25 November 2015 on package travel and travel related services” in International Journal of Scientific Management Tourism, 2016, Vol. 2, n.º 2, pp 33-34.

81 antonia PaniZa fullana, “Reassessment of the liability of tourism traders in the Directive (EU) 2015/2302 of the Parliament and of the Council of 25 November 2015 in The New Package Travel Directive, esHte|inatel, 2017, p. 145.

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que, em certos casos, seria difícil para um “viajante médio” saber se estaria perante uma ou outra modalidade. Prossegue a autora que, por este motivo e para evitar confusão, os operadores estão obrigados a informar os viajantes acerca da natureza dos serviços que prestam, “a qual deve coincidir com a verdadeira natureza do serviço ou produto contratado”. Um dos traços distintivos seria, pois, “o preço global/preço discriminado para cada um dos servi-ços contratados”, sendo que apenas no primeiro caso em que o organizador fornece os serviços por um preço global, estaríamos perante uma viagem organizada.

Figura - Viagens organizadas, viagens “à medida” e serviços de viagem conexos82

82 GTP|Headlines disponível em https://news.gtp.gr/2018/06/22/new-eu-packa-ge-travel-directive-come-effect-july-2018/ (11.02.2019).

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O quadro supra ilustra graficamente este entendimento, dis-tinguindo, as viagens organizadas oferecidas pelos organizadores aos seus clientes, das que os diversos componentes são escolhidos pelos clientes e finalmente, os serviços de viagem conexos em que um facilitador, de forma direcionada, facilita a celebração de con-tratos distintos com outros prestadores de serviços.

4. As garantias dos viajantes na Diretiva e no Decreto-Lei n.º 18/2018, de 8 de março

4.1. Responsabilidade pela execução da viagem organizada

A Diretiva define, com detalhe, o regime da responsabilidade do organizador pela correta execução dos serviços de viagem in-cluídos no contrato de viagem, quer sejam executados pelo próprio organizador ou por outros prestadores de serviços de viagem83. Nos casos em o organizador/retalhista não supra a falta de conformida-de, constatada durante a execução do serviço de viagem organi-zada incluído no respetivo contrato, dentro de um prazo razoável fixado pelo viajante 84 ou quando for impossível encontrar alterna-tivas ou estas forem recusadas pelo mesmo 85 estão previstas con-sequências jurídicas as quais consistem na redução adequada do preço e/ou no direito a uma indemnização adequada por parte do organizador/retalhista por quaisquer danos sofridos pelo viajante. 86

83 Diretiva, artigo 13.º.84 Diretiva, artigo 13.º n.º 6.85 Diretiva, artigo 13 n.º 7).86 Diretiva, artigo 14.º n.º s1 e 2.

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Acresce, ainda, que, nas referidas circunstâncias, se a viagem organizada incluir o transporte de passageiros, o organizador deve proporcionar também “o repatriamento do viajante num meio de transporte equivalente, sem demora injustificada e sem custos su-plementares para o viajante”87.

As disposições relativas à responsabilidade do organizador du-rante a execução do contrato foram transpostas para o direito in-terno constando dos artigos 28.º (Incumprimento), 29.º (Redução do preço e indemnização por danos), artigo 30.º (Assistência a via-jantes), artigo 33.º (Contacto com a agência organizadora atra-vés da agência retalhista) e artigo 35.º (Da responsabilidade das agências de viagens – princípios gerais)88. Importa reter como, na ausência de norma específica da Diretiva, o Decreto-Lei resolveu garantir, através da subscrição de um seguro de responsabilidade civil obrigatório para todas as entidades que se inscrevessem no Re-gisto Nacional de Agências de Viagens e Turismo (RNAVT) condição para operar em Portugal no mercado das viagens, o qual obedece a uma apólice normalizada89. Assim, tal como nos regimes anterio-res, foi mantida a obrigatoriedade de constituição de um seguro

87 Diretiva, artigo 13.º n.º 6 § 3.88 Não será aqui abordada a questão de saber se o legislador nacional foi, nesta

matéria em particular, fiel ao desiderato europeu no que à transposição concerne. No entanto, não se pode deixar de reiterar o facto, manifestamente dissonante da Diretiva, mas, ainda assim, coerente com a letra e espírito do lusitano legislador, o, de se fazer, expressamente, menção às agências de viagens quando, na realidade, a norma europeia, de harmonização máxima, ter vocação abrangente, reconhecendo no seu âmbito de aplicação qualquer operador, independentemente da atividade que prossegue.

89 generali – Condições gerais de seguro obrigatório de responsabilidade civil das agências de viagens e turismo, disponível em http://ww4.generali.pt/documentos/documentacao_produtos/Apolice%20Resp.%20Civil%20Viagens%20e%20Turismo.pdf (17.02.2019).

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de responsabilidade civil, desta feita, com um montante mínimo de cobertura no valor de € 75.000,00 por sinistro, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados a clientes ou a terceiros por ações ou omissões da agência e o risco acessório do repatriamento dos clientes e sua assistência, bem como assistência médica e medicamentosa, necessários em caso de acidente e ou doença ocorridos durante a viagem 90-91.

Outro aspeto importante a reter, resulta da remissão efetuada no artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, em apreço, para o artigo 30.º do mesmo diploma, de onde decorre que está ex-cluído o risco acessório de repatriamento em caso de insolvência. Com efeito, este preceito refere-se expressamente aos deveres de assistência aos viajantes que impendem sobre as agências de via-gens e turismo numa situação de normal execução do contrato. Por estranho que pareça, não faz qualquer alusão ao repatriamento, mas, pelo contrário, limita a responsabilidade da agência ao dever de “assegurar os custos de alojamento necessários, se possível de categoria equivalente, por um período não superior a três noites” quando, por “circunstâncias inevitáveis e excecionais o viajante não puder regressar”, risco que, aparentemente, não está coberto

90 Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março artigo 41.º.91 A este propósito, de salientar que o acionamento do seguro é efetuado

pelo tomador e segurado que, de acordo com a cláusula 16ª da respetiva apólice, se obrigam em caso de sinistro coberto pelo contrato “a comunicar tal facto, por escrito, ao segurador, no mais curto prazo de tempo possível, nunca superior a 8 dias a contar do dia da ocorrência ou do dia em que tenha conhecimento da mesma, explicitando as suas circunstâncias, causas eventuais e consequências.” Desta feita, caso a agência de viagens e turismo não reconheça a sua responsabilidade e não comunique o sinistro à seguradora, de nada vale, para o viajante este seguro, ficando obrigado a recorrer à via judicial para ver reconhecido, nomeadamente, o direito a uma indemnização compensatória.

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pelo seguro. Neste contexto, afigura-se duvidosa, na prática, a efi-cácia deste seguro para um viajante em situação de carência de assistência no decurso da viagem.

4.2. Proteção do viajante em caso de insolvência dos organizadores

A Diretiva impõe a obrigação de assegurar que “os organiza-dores estabelecidos no seu território garantam o reembolso de to-dos os pagamentos efetuados pelos viajantes ou por conta destes na medida em que os serviços em causa não sejam executados em consequência da insolvência do organizador92. Impõe-se, desde já, delimitar o conceito de insolvência para efeitos do regime em apreço já que o mesmo pode assumir diferentes interpretações em cada um dos Estados-membros, o que prejudicando a sua aplica-ção uniforme93-94. Porém, para o legislador europeu, não obstante a referência a uma expressa “declaração de insolvência” o que,

92 Diretiva, artigo 17.º.93 Em Portugal o conceito jurídico de situação de insolvência encontra-se

definido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas sendo declarada pelo tribunal, embora baste que seja meramente iminente, no caso de apresentação do devedor à insolvência.

94 Código da insolvência e da recuperação de empresas, Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 8/2018, de 2 de março, artigo 3.º n.º 1: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”; n.º 4 “Equipara-se à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.”; artigo 4.º n.º 1 – A insolvência é declarada pelo tribunal – disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_estrutura.php?tabela=leis&artigo_id=&nid=85&nversao=&tabela=leis&so_miolo= (26.01.2019).

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pelo menos entre nós carecia de uma intervenção judicial, natu-ralmente, complexa e morosa, seria suficiente a constatação de “problemas de liquidez do organizador”, conforme se alcança do Considerando (39) onde se lê: “(…) os Estados-membros deverão garantir que a proteção esteja disponível logo que, em consequên-cia de problemas de liquidez do organizador, os serviços de viagem não sejam ou não venham a ser total ou parcialmente executados ou no caso de os prestadores de serviços exigirem o respetivo pa-gamento aos viajantes.” Para a Comissão95, o objetivo subjacente “é o de clarificar que o repatriamento não pode ser recusado sim-plesmente porque não existe uma declaração oficial de insolvên-cia, o que está em linha com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia”.96 Assim sendo, a garantia deve estar disponível “logo que” se verifique o incumprimento em consequência da in-solvência do operador. Acresce que “a garantia é mobilizada, a título gratuito, para assegurar os repatriamentos e, se necessário, o financiamento do alojamento anterior ao repatriamento.” Ademais, “relativamente aos serviços de viagem que não tenham sido presta-dos, os reembolsos são efetuados sem demora injustificada após o pedido do viajante.”97 MacDonald98 esclarece que de acordo com a Diretiva “a insolvência não exige qualquer ato ou declaração ju-dicial ou administrativa.” Com efeito, somente esta interpretação é consistente com as preocupações de celeridade no acionamento

95 Transposition of Directive (EU) No 2015/2302 on package travel and linked travel arrangements Workshop with Member States 26 February 2017, p. 4 disponível em https://ec.europa.eu/newsroom/just/item-detail.cfm?item_id=35324 (11.02.2019).

96 Caso C-364/96 Verein für Konsumenteninformation.97 Diretiva, artigo 17.º n.º 5.98 marc macdonald, “Linked travel arrangements and their protection under the new

Package Directive”, in The New Package Travel Directive, esHtl|inatel, 2017, p. 91.

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desta garantia vocacionada, em primeira linha, para incutir confian-ça aos viajantes na contratação de uma viagem e, por outro, para ultrapassar, de forma eficaz e efetiva as dificuldades inerentes à in-terrupção de uma viagem organizada motivada por súbitas e ines-peradas dificuldades financeiras do organizador.

Para os legisladores europeus, os Estados-Membros mantêm o poder discricionário quanto à forma como deve ser acordada tal proteção, desde que assegurem a sua efetividade e o acionamento dos inerentes mecanismos de forma eficaz, “garantindo o reembol-so de todos os pagamentos efetuados pelos viajantes ou por conta destes e, na medida em que a viagem organizada inclua o trans-porte de passageiros, do repatriamento dos viajantes” ou, em al-ternativa uma proposta de continuação da viagem organizada”99.

A este propósito, a Comissão esclareceu que não obstante o modo como era realizado pela entidade responsável pela proteção em caso de insolvência “deverá ser o que, do ponto de vista do viajante, ofe-reça a melhor resposta e seja a mais eficiente100. No entanto, salientou que o artigo 17.º n.º 4 exige que que “a garantia seja mobilizada a título gratuito para assegurar os repatriamentos e, se necessário, o financia-mento do alojamento anterior ao repatriamento” de modo a obviar a que os viajantes “abandonados” sejam deixados à sua sorte, limitados à obtenção de um reembolso a posteriori das despesas em que incor-reram. Conclui que “a entidade afeta à proteção na insolvência deve, em qualquer caso, estar imediatamente disponível para assistir os via-jantes e custear o respetivo voo de regresso.” Quanto à possibilidade

99 Diretiva, Considerando (39).100 Transposition of Directive (EU) No 2015/2302 on package travel and linked travel

arrangements Workshop with Member States 26 February 2017, p. 4 disponível em https://ec.europa.eu/newsroom/just/item-detail.cfm?item_id=35324 (11.02.2019).

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de continuação da viagem, a Comissão entende que, ao abrigo desta norma, deve ser dada aos viajantes a possibilidade de “finalizarem as suas férias”, devendo uma entidade responsável “assumir o papel de organizador em lugar do organizador insolvente”101.

A Diretiva impõe regras quanto aos requisitos da garantia em apreço, ou seja, “deve ser efetiva e cobrir os custos razoavelmente previsíveis e abranger os montantes de pagamentos efetuados pe-los viajantes ou por conta destes e respeitantes a viagens organiza-das, tendo em conta o período de tempo decorrido entre os adian-tamentos e os pagamentos finais e o termo da viagem organizada, bem como o custo estimado dos repatriamentos em caso de insol-vência do organizador”102. Também quanto a este aspeto, os legis-ladores europeus fornecem, na parte preambular, detalhados crité-rios interpretativos de modo a que os Estados-membros, ainda que no âmbito dos seus poderes discricionários atrás referidos, garan-tam que as respetivas opções legislativas sejam aptas assegurar a suficiência desta medida protetora. Neste sentido, o Considerando (40) prevê que a garantia tanto possa ser estimada segundo o cri-tério dos pagamentos dos viajantes ou do volume de negócios do organizador. No primeiro caso “a garantia tem de abranger uma percentagem suficientemente alta do volume de negócios do or-ganizador no que respeita a viagens organizadas e pode depender de fatores como o tipo de viagens organizadas vendidas, incluindo o meio de transporte, o destino da viagem, bem como eventuais restrições legais ou os compromissos do organizador relativamente aos montantes dos pré-pagamentos que pode aceitar e o prazo de pagamento antes da viagem organizada.” Quanto ao segundo,

101 Idem p.3.

102 Diretiva, artigo 17.º n.º 2.

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“caso a cobertura necessária possa ser calculada com base nos dados comerciais mais recentes, por exemplo o volume de negó-cios do último exercício, os organizadores deverão ser obrigados a adaptar a proteção em caso de insolvência na eventualidade de riscos acrescidos, incluindo o aumento significativo de viagens organizadas.” MacDonald 103 entende que calcular o valor da ga-rantia “é um exercício controverso e implica alguma adivinhação” não obstante os critérios definidos na parte preambular da Diretiva. Relativamente a este aspeto, a Comissão manifestou, de forma vi-gorosa e inquestionável, o seu entendimento quanto à suficiência da garantia no sentido de que se o sistema for estruturalmente de-sadequado para garantir uma proteção plena ou se os mecanis-mos de controlo não se mostrarem apropriados, existe o risco de os Estados-membros serem responsabilizados por incumprimento do direito da União Europeia tal como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Apenas não existirá responsabilidade se o reembolso for apenas parcial, quando o risco seja “extremamente improvável” ou quando “os custos não sejam previsíveis104.

Em suma, não obstante a Diretiva conferir aos Estados-Membros uma ampla margem de discricionariedade quanto à forma de transposição do artigo 17.º relativo à proteção na insolvência de organizadores e retalhistas, o certo é que são impostas regras

103 marc macdonald, ob. cit.104 A Comissão referiu os processos apensos C-178/94, C-179/94 e C-118/94 a

C-190/94 Dillenkofer e Outros, Caso C-140/97 Rechberger e Outros e o Caso C-430/13 Baradics e Outros in Transposition of Directive (EU) No 2015/2302 on package travel and linked travel arrangements Workshop with Member States 26 February 2017, p. 4 disponível em https://ec.europa.eu/newsroom/just/item-detail.cfm?item_id=35324 (11.02.2019).

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com as quais os Estados-membros têm de se conformar, quais sejam: a) a suficiência da garantia para a cobertura integral dos custos decorrentes da situação de insolvência do organizador; b) a finalidade da garantia; c) a obrigatoriedade de prestação de informação normalizada sobre a proteção em caso de insolvência pelos meios que se mostrarem adequados; d) o imediato repatriamento dos viajantes, a título gratuito, se a viagem organizada incluir o transporte de passageiros; e) o financiamento do alojamento anterior ao repatriamento; f) a possibilidade de continuação da viagem, assumindo a entidade responsável pela garantia o papel do organizador insolvente; g) o reembolso dos serviços prestados sem demora injustificada; h) a gratuitidade na mobilização da garantia.

Importa, agora avaliar como o legislador nacional correspondeu a tais requisitos no diploma de transposição. Neste sentido, é pertinente citar Machado et alli 105 que vaticinaram em 2017, ou seja, antes da publicação e, porventura, da divulgação do projeto do diploma de transposição, que o “Fundo Solidário [tal como então existia tinha] um limite anual de pagamentos de €1.000.000,00, o que [podia] ser claramente insuficiente para fazer face a um processo de insolvência de um «grande» facilitador de serviços conexos.” A fim de ultrapassar tal dificuldade preconizavam o aumento da capacidade do “Fundo Solidário” nos casos de insolvência, embora tal não devesse ser efetuado com as regras então existentes, penalizadoras para muitas pequenas e médias empresas” chamadas a contribuir para a garantia de um risco para o qual elas próprias pouco ou nada [concorriam].” Na verdade, a previsão da

105 virgílio macHado et alii, ob. cit.

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manutenção do Fundo de Garantia de Viagens e Turismo (FGVT) no diploma de transposição veio a confirmar-se, o qual determina que o mesmo, com um montante máximo de € 4.000.000,00 se mantém em vigor106. Tal como no anterior enquadramento normativo, o financiamento do FGVT é assegurado pelas agências de viagens e turismo mediante uma contribuição única de € 2.500,00, a prestar no momento da inscrição no Registo Nacional de Agências de Viagens e Turismo (RNAVT). As mesmas agências podem ser chamadas a prestar uma contribuição adicional sempre que o FGVT atinja um valor inferior a € 3.000.000,00 de modo a repor o seu valor mínimo acima indicado. O montante da contribuição adicional é variável, repartido por sete escalões, consoante o valor da prestação de serviços efetuados, respetivamente, inferior a 1 milhão de euros, no limite mínimo, ou superior a 100 milhões de euros, no máximo, podendo variar entre 200,00 e 15.000,00 euros107. Assim, não obstante a contribuição inicial ter um valor idêntico para grandes organizadores ou pequenos retalhistas, as subsequentes, apenas necessárias a repor o montante mínimo do FGVT, são ajustadas à dimensão dos contribuintes.

A flexibilidade deste mecanismo pode garantir, ainda que à custa dos agentes cujo risco de insolvência é menor, a suficiência da garantia para a cobertura integral dos custos decorrentes da insolvência de um operador. Porém, contrariamente ao que é aconselhável, ou seja, dimensionar a garantia em função da situação em concreto que se pretende prevenir, existe um completo desfasamento entre o valor e o efetivo risco inerente à atividade. É certo que o FGVT ainda não foi testado para responder a uma

106 Decreto-Lei n.º 17/2018, artigo 37.º.107 Decreto-Lei n.º 17/2018, artigo 38.º.

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situação grave e de dimensão considerável pelo que qualquer apreciação a este respeito não pode ultrapassar o domínio da mera conjetura, mas não deixa de ser verdade que, pelo menos, aparentemente, não existe qualquer critério para a fixação do respetivo valor108.

Já no que respeita à finalidade desta garantia, algumas questões se perfilam que merecem alguma reflexão, decorrentes da redação do artigo 37.º do diploma de transposição. De acordo com o disposto no n.º 2 onde se lê: “O FGVT (…) responde solidariamente pelo pagamento dos créditos de viajantes decorrentes de serviços contratados às agências de viagens e turismo.” O n.º 4 do mesmo preceito vem repetir o transcrito segmento com uma ligeira reformulação ao determinar que “os valores que integram o FGVT respondem solidariamente pelos créditos dos viajantes relativamente a serviços contratados a agências de viagens e turismo” precisando, no entanto, que satisfazem o reembolso em três situações distintas, a saber:

a. “dos pagamentos efetuados pelos viajantes ou por conta destes na medida em que os serviços contratados não sejam prestados por força da insolvência da agência de viagens e turismo;”

b. “dos montantes entregues pelos viajantes referentes ao incumprimento ou cumprimento defeituoso de contratos celebrados com agências de viagens e turismo;”

108 De referir que cada Estado-membro adotou o seu próprio mecanismo de proteção do viajante o qual pode consistir, para além de fundo de garantia, noutras formas, tais como garantia bancária, seguro obrigatório, ou outras.

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c. “das despesas suplementares suportadas pelos clientes em consequência da não prestação dos serviços ou da sua prestação defeituosa.”

Ora, constata-se, com clareza que, em primeiro lugar, o FGVT tem uma vocação abrangente sendo suficiente pressuposto para o seu acionamento o mero incumprimento contratual, em sentido lato, por parte da agência de viagens, independentemente da sua causa ou origem. Desta feita, pode responder perante um viajante caso o organizador nacional com quem contratou, ainda que reconhecido pela sua solidez financeira, cumprir defeituosamente uma cláusula do contrato de viagem organizada celebrado entre ambos. Tal pode ocorrer, por exemplo, quando o alojamento disponibilizado no destino não tem as características do que havia sido contratado ou não são fornecidas as refeições constantes do programa de uma viagem organizada.

Da conjugação do disposto nos n.º 2 e 3 do artigo 39.º do diploma de transposição decorre que caso a agência de viagens e turismo que tenha sido condenada a reembolsar o cliente, por via do indicado incumprimento, o não faça, o FGVT assume o pagamento, devendo a devedora repor o montante no prazo máximo de 15 dias. Duas são as consequências que se retiram deste regime. Por um lado, o FGVT vê diminuído o seu valor o que pode determinar o chamamento dos demais contribuintes, porventura mais zelosos dos seus deveres para com os clientes, a proceder à reposição nos termos acima assinalados. Por outro, a entidade faltosa incorre numa contraordenação grave, prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 46.º e cominada com uma coima que, para uma grande empresa, varia entre € 2.500,00 e € 20.000,00. Ponderadas as circunstâncias do caso em concreto, a empresa relapsa pode

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encontrar neste regime uma ampla janela de oportunidades, sendo certo que, nestes casos, não há lugar ao cancelamento oficioso da respetiva inscrição no RNAVT, reservado apenas às agências de viagens e turismo relativamente às quais haja uma declaração de insolvência ou dissolução109 .

Quanto a este aspeto, afigura-se pertinente questionar se esta proteção que o viajante beneficia sem que tenha de prestar qualquer contrapartida, somente pelo simples facto de contratar uma viagem organizada a uma agência de viagens e turismo inscrita no respetivo registo em Portugal, é conforme com os ditames da harmonização legislativa plena. Aparentemente a resposta deve ser negativa pois o nível de proteção, por via desta imposição não pode ser inferior nem superior ao prescrito pela Diretiva110.

No que concerne à obrigatoriedade de prestação de informação normalizada, a leitura das “fichas informativas” Parte A e Parte B constantes do Anexo II111 ao diploma revelam-se manifestamente desconformes com o que o mesmo prescreve, assegurando, indevidamente, ao viajante que “se o organizador ou o retalhista

109 Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, artigo 9.º n.º 2.110 A questão da harmonização plena foi abordada no trabalho anterior, para o

qual se remete.111 Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, Anexo II - “Se o organizador ou, em

alguns Estados-membros, os retalhistas for considerado insolvente, os pagamentos serão reembolsados. Se o organizador ou, se aplicável, o retalhista for declarado insolvente após o início da viagem organizada e se o transporte estiver incluído na viagem organizada é garantido o repatriamento dos viajantes. XY subscreveu uma proteção em caso de insolvência com YZ [entidade que garante a proteção em caso de insolvência, por exemplo, um fundo de garantia ou uma companhia de seguros]. Os viajantes podem contactar esta entidade ou, se aplicável, a autoridade competente (contactos, incluindo nome, endereço geográfico, endereço de correio eletrónico e número de telefone) se for recusada a prestação de serviços devido à insolvência de XY.”

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for declarado insolvente após o início da viagem organizada e o transporte estiver incluído na viagem organizada é garantido o repatriamento dos viajantes.” Ora, não deixa de ser absurda a menção, entre parêntesis retos, a uma entidade não identificada “que garante a proteção em caso de insolvência, por exemplo, um fundo de garantia ou uma companhia de seguros.” A mera reprodução do texto correspondente da Diretiva, sem a identificação da entidade no espaço para o efeito deixado em branco, é bem demonstrativa da ausência de compreensão da norma europeia por parte do legislador nacional.

Impõe-se, ainda, avaliar quais as respostas oferecidas aos viajantes, vítimas das consequências decorrentes da insolvência de uma agência de viagem e turismo, com a qual contrataram uma viagem organizada, imagine-se, para um destino remoto, no qual se encontram, sem meios para custear o alojamento e a viagem de regresso. Apenas uma, a decorrente do disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 37.º, ou seja, os viajantes custearão, a expensas próprias, os serviços contratados que não foram cumpridos, transporte aéreo e alojamento, se for o caso, e chegados a Portugal, acionarão o FGVT pelos meios previstos no artigo 39.º, ou seja, recorrendo a um tribunal, judicial ou arbitral, ao Provedor do Cliente da Associação Portuguesa de Agências de Viagens e Turismo (APAVT) ou à comissão arbitral a que se refere o artigo 40.º, todos artigos do Decreto-Lei n.º 17/2018.

Desta feita, o requisito “sem demora injustificada” não se mostra observado, sendo inequívoco que o viajante terá que suportar todas as despesas decorrentes da viagem de regresso, incluindo, se for o caso, o repatriamento, e somente depois acionar um dos meios previstos para a obtenção do reembolso que lhe for devido. Mais grave ainda, uma vez que não existe em Portugal uma

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“entidade afeta à proteção da insolvência”, os viajantes ficam abandonados à sua sorte, providenciando, por sua iniciativa, os serviços alternativos que, por via da insolvência do operador não lhe foram prestados. Tais circunstâncias podem ser causadoras de grandes constrangimentos se o viajante se encontrar em destinos mais longínquos ou “exóticos” ou se não tiver disponibilidade financeira para suportar os custos com o repatriamento, nos quais se podem incluir, para além do transporte, o alojamento, alimentação e comunicações. A questão que subsiste é a de saber se nestas circunstâncias qual seria a resposta das autoridades nacionais competentes, sobretudo se estiver em causa uma operação de envergadura considerável.

Acresce que não se pode afirmar que o viajante, através de um dos meios de que dispõe (judiciais ou extrajudiciais) será reembolsado dos serviços contratados sem demora injustificada.

Com efeito, a Comissão Arbitral deve convocada dez dias após a entrega do pedido, mas, no entanto, ainda que tal se verifique, nada é referido na lei quanto ao prazo de pagamento. Na verdade, atento o disposto nos n.º s 2 e 3 do artigo 39.º do dito Decreto-Lei, as agências de viagens responsáveis dispõem de dez dias para proceder ao pagamento, sendo que caso tal não se verifique, o mesmo é efetuado através do FGVT, tendo as agências responsáveis a obrigação de repor o “montante utilizado no prazo de 15 dias, a contar da data do pagamento pelo FGVT.” Ora, afigura-se inequívoco que esta disposição não é aplicável às agências em situação de insolvência. O mesmo se diga relativamente ao Provedor do Cliente das Agências de Viagens e Turismo, que dispõe de 30 dias, contados da apresentação da queixa, para proferir a sua decisão, para além dos quais, o cliente lesado deve solicitar, junto

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do Turismo de Portugal, I.P., o reembolso que tiver sido determinado através do FGVT112.

Assim, é inquestionável que Portugal não observou nas normas de transposição a que estava vinculado, não existindo quaisquer meios que satisfaçam as necessidades dos viajantes nas circunstâncias assinaladas, de insolvência do organizador, de regresso ou, tão-pouco, de continuação da viagem.

4.3. Proteção do viajante em caso de insolvência aplicável aos serviços de viagem conexos

Uma das maiores inovações da Diretiva foi a criação da figura dos serviços de viagem conexos e do facilitador desses serviços, con-forme atrás analisado. Os “serviços de viagem conexos113 podem resultar de duas situações distintas: a) reservas efetuadas através de um único ponto de venda, website ou estabelecimento físico; b) reservas separadas, efetuadas através diferentes sítios, na Internet, sendo que a segunda é feita antes de decorridas 24 horas sobre a confirmação da primeira. Em ambos os casos estamos perante con-tratos separados celebrados com diferentes operadores para cada um dos serviços que fazem parte da mesma viagem ou férias com a diferença de que na segunda situação existem websites interligados

112 Estatuto do Provedor do Cliente das Agências de Viagens e Turismo, dis-ponível em http://www.provedorapavt.com/system/resources/BAhbBlsHOgZmS-SJUMjAxNi8wMS8xMy8wOS8xMi8zNi80OTAvRVNUQVRVVE9fRE9fUFJPVkVET1JfRE9f-Q0xJRU5URV9WRl8yMDA5XzE4X0Zldl8yMDA5LnBkZgY6BkVU/ESTATUTO%20DO%20PROVEDOR%20DO%20CLIENTE%20VF%202009%20-%2018%20Fev%202009.pdf (10.02.2019).

113 Diretiva, artigo 3.º, 5).

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pelo114 facilitador, utilizados para efetuar reservas separadas115. Do mesmo modo, para os “serviços de viagem conexos” os legisladores europeus impuseram aos Estados-membros a obrigação de “assegu-rar que os operadores que facilitem serviços de viagem conexos ga-rantam o reembolso de todos os pagamentos que recebam dos via-jantes, na medida em que o serviço de viagem que faz parte de um serviço de viagem conexo não seja executado em consequência da declaração da sua insolvência. Se tais operadores forem a parte responsável pelo transporte de passageiros, a garantia abrange o repatriamento do viajante. MacDonald116 conclui que o facilitador apenas tem que assegurar proteção dos viajantes se receber paga-mentos, caso contrário, não está obrigado a constituir tais garantias, à exceção da que cobre os prejuízos dos viajantes decorrentes da sua própria insolvência. Por outro lado, se receber pagamentos rela-tivos a outros serviços que façam parte do serviço de viagem conexo de que é facilitador, a sua garantia deve contemplar os prejuízos decorrentes da insolvência do fornecedor que, consequentemente, não prestou o serviço.

Uma vez mais, o legislador nacional, ignorando os ditames da harmonização legislativa plena, criou uma solução original que se revela no artigo 34.º do diploma de transposição. Com efeito, reco-nhece duas espécies de facilitadores de serviços de viagem cone-xos: os facilitadores propriamente ditos e as agências de viagens e turismo que facilitem serviços de viagem conexos. Aparentemente, apenas os primeiros têm o dever de prestar ao viajante a informa-ção de que não beneficia dos direitos aplicáveis às viagens orga-

114 macdonald, ob. cit., p. 80.115 Diretiva, artigo 19.º.116 macdonald, ob. cit., p. 80.

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nizadas e que cada prestador de serviços será o único responsável pela correta execução contratual do seu serviço e, bem assim, fa-cultar a ficha informativa normalizada constante do anexo III ao referido Decreto-Lei. Com efeito, as agências de viagens e turismo que facilitem serviços de viagens conexos não estão abrangidas por esta obrigação. Porém, do cotejo do n.º 1 alínea b) com o n.º 3 do referido 34.º, resulta que tanto os meros facilitadores como as agências de viagens e turismo têm a obrigação de garantir o reem-bolso de todos os pagamentos recebidos dos viajantes na medida em que o serviço de viagem que faz parte de um serviço conexo não seja executado em consequência da sua insolvência. Ora, se para as agências de viagens e turismo a contribuição para o FGVT é, por si, garantia suficiente, já o mesmo não se pode dizer no que respeita aos meros facilitadores porquanto a mesma está vedada às entidades não inscritas no RNAVT.

Desta feita, salvo melhor opinião, ao mero facilitador de ser-viços de viagens conexos não resta outra alternativa que não seja a de se converter em agência de viagens e turismo de modo a eximir-se ao regime do n.º 6 do mesmo preceito aplicável às via-gens organizadas, nomeadamente, quanto a redução do preço e indemnização por danos (artigoº 29.º) e assistência aos viajantes (artigo 30.º).

Este regime não encontra na Diretiva qualquer correspondên-cia e afigura-se complexo e tortuoso, além de potencialmente, enganador. A preocupação dos legisladores europeus no sentido de tornarem clara e percetível para os viajantes as consequências decorrentes da aquisição de uma viagem organizada ou de um

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serviço de viagem conexo, ficam esbatidas no nosso ordenamento jurídico onde a “zona cinzenta” a que se refere o Considerando (2) da Diretiva, obstinadamente, se perpétua.

5. Os meios de resolução alternativa de litígios emergentes de con-tratos de viagens organizadas e de serviços de viagem conexos

Estando assente que, por via da Diretiva, o viajante beneficia de um elevado nível de proteção contratual, que se estende às situações de falta de liquidez do organizador, tratando-se de via-gens organizadas, ou do facilitador, no caso dos serviços de viagem conexos, é pertinente questionar se lhe são garantidos, pelo orde-namento jurídico nacional, meios adequados a fazer valer os seus direitos de reembolso e de indemnização, de forma efetiva, eficaz e célere. Com efeito, de pouco ou nada servirá um regime jurídico substantivo exigente e musculado se, na prática, o beneficiário não encontrar formas idóneas correspondentes que lhe permitam agir, tempestivamente, de modo a obter pleno ressarcimento e a justa compensação.

Conforme atrás se referiu, não obstante a Diretiva impor um grau máximo de harmonização legislativa, é, naturalmente, omissa quan-to aos meios conferidos aos viajantes lesados para obterem a devi-da compensação, ocorrendo a insolvência do organizador ou do facilitador de serviços de viagem conexos ou o incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de viagem organizada. Toda-via, no que respeita a situações relativas à insolvência do organiza-

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dor, os legisladores europeus determinaram que os Estados-membros devem dispor de mecanismos céleres e eficazes tendo em vista, se for o caso, o repatriamento do viajante e as despesas em que este incorrer com alojamento ou outras.

Constata-se que, não obstante as profundas alterações que nesta matéria foram introduzidas pela Diretiva, o legislador nacional manteve, sem variações relevantes, o que o anterior diploma dis-punha sobre esta matéria. Desde logo, impõe-se sublinhar que não existe qualquer mecanismo legal que corresponda, positivamente, às preocupações dos legisladores europeus, no sentido de intervir, de forma expedita, em caso de insolvência do operador, garantin-do ao viajante o repatriamento ou a continuação da viagem, sem que este tenha de suportar, para tanto, os inerentes encargos. Na verdade, o Decreto-Lei n.º 17/2018 mantém, no essencial, o regime de acionamento do FGVT constante do revogado Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de maio117 ao estipular no n.º 4 do artigo 37.º que os valores que integram o FGVT respondem solidariamente pelos cré-ditos dos viajantes relativamente a serviços contratados a agências de viagens e turismo, garantindo o respetivo reembolso de quantias pagas em três situações distintas. A primeira, decorrente da insolvên-cia da agência de viagens e turismo, assegurando o reembolso dos pagamentos efetuados pelos viajantes que, por tal circunstância, foram lesados em virtude da falta de prestação de serviços contra-tados. A segunda, cobrindo o reembolso dos montantes entregues pelos viajantes referentes ao incumprimento ou cumprimento defei-tuoso dos contratos celebrados com agências de viagens e turismo. Finalmente, o reembolso de despesas suplementares suportadas pe-

117 Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de maio, artigo 33.º.

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los clientes em consequência da não prestação de serviços ou da sua prestação defeituosa.

As formas de acionamento do FGVT encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 39.º do referido diploma onde se lê que “Os viajan-tes interessados em obter a satisfação de créditos resultantes do incumprimento de contratos celebrados com agências de viagens e turismo podem acionar o FGVT por requerimento escrito dirigido ao Turismo de Portugal, I.P., devendo apresentar, em alternativa: a) sentença judicial ou decisão arbitral transitada em julgado, da qual conste o montante da dívida exigível, certa e líquida; b) decisão do Provedor do Cliente da APAVT, da qual conste o montante da dívida exigível, certa e líquida, desde que aquele esteja inscrito na lista de entidades de Resolução Alternativa de Litígios, nos termos da Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, na sua redação atual; c) requerimento solicitando a intervenção da Comissão Arbitral a que se refere o ar-tigo seguinte, instruído com documentos comprovativos dos factos alegados e identificação das agências de viagens e turismo organi-zadora e retalhista envolvidas.”

Resulta da conjugação dos referidos preceitos que, nas assina-ladas circunstâncias, a lei é detalhada quanto aos meios ao alcan-ce do viajante para fazer valer o direito ao reembolso, através do FGVT, de quantias pagas identificando, para o efeito, além da via judicial118, as decisões proferidas por três distintos meios extrajudi-ciais, quais sejam, o Provedor do Cliente das Agências de Viagens e Turismo, a Comissão Arbitral e os tribunais arbitrais.

118 Apesar de não serem mencionados expressamente mencionados os Julga-dos de Paz, que não são tribunais judiciais, devem considerar-se, igualmente com-petentes para o efeito. Conselho Superior dos Julgados de Paz, disponível em http://www.conselhodosjulgadosdepaz.com.pt/ (29.11.2019).

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Tal como se encontra redigido, sob a forma de lista, este precei-to impele ao entendimento de que qualquer uma das referidas vias, todas aptas a alcançar o mesmo objetivo, ou seja, o acionamento do FGVT, são equivalentes. Todavia, conforme a seguir se analisará , esta conclusão é falaciosa já que cada um dos referidos meios dife-re, não apenas quanto à inerente natureza jurídica, mas igualmente, no que respeita à competência e procedimento, não sendo, pois, indiferente, para o viajante lesado, o recurso a um ou outro. Importa, antes de mais, antecipar que a Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2013/11/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de maio de 2013, estabele-ce os princípios e regras a que deve obedecer o funcionamento das entidades de resolução de litígios de consumo e o enquadramento jurídico das que funcionam em rede119.

5.1. Provedor do Cliente da Associação Portuguesa de Agências de Viagens e Turismo

A decisão do Provedor do Cliente da APAVT constitui um meio idóneo para obter o acionamento do FGVT, na condição de esta entidade estar inscrita na lista de entidades de RAL nos termos da Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro120-121. Com efeito, esta inscrição efetivou-se pelo que figura na referida lista, organizada pela Dire-

119 Lei n.º 144/2015, 8 de setembro, disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mos-tra_articulado.php?nid=2425&tabela=leis&ficha=1&pagina=1&so_miolo=& (01.12.2019).

120 Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, artigo 39.º.121 Vide, em geral, sandra PassinHas, “Alterações recentes no âmbito da Reso-

lução Alternativos de Litígios de Consumo, “O Contrato - Na gestão do Risco e na Garantia da Equidade”, Instituto Jurídico – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2015.

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ção-Geral do Consumidor (DGC) em absoluta paridade com os Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo de competência genérica e especializada122.

Todavia, tal como decorre da análise de Carvalho et alii123 este reconhecimento suscita as maiores dúvidas e reservas quanto à res-petiva conformidade com o regime constante do sobredito diplo-ma. Em primeiro lugar, estes autores consideram impossível “afastar as suspeitas de que a sua atuação não é independente e impar-cial” e que, portanto, preenche os requisitos enunciados no artigo 8.º n.º 6 d) da Lei n.º 144/2015 relativamente à ausência de vínculo funcional e separação de qualquer estrutura operacional. Ainda que relativamente à verificação desta exigência legal dúvidas pu-dessem subsistir, o certo é que, segundo referem, estão previstos requisitos adicionais para controlo da independência e imparcia-lidade que não se mostram assegurados tais como “a designação através de processo transparente e conduzido por um órgão cole-gial, composto de forma paritária por representantes de associa-ções profissionais e de consumidores, a inamovibilidade durante um período de tempo razoável, a inexistência de vínculo hierárquico ou funcional com a empresa ou a previsão de um período de nojo

122 Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, que transpõe a Diretiva 2013/11/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução al-ternativa de litígios de consumo, estabelece o enquadramento jurídico dos meca-nismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo, e revoga os Decretos-Leis n.º s146/99, de 4 de maio e 60/2011, de 6 de maio, disponível emhttps://dre.pt/web/guest/pesquisa//search/70215248/details/normal?q=Lei+n%C2%BA144%2F2015 (29.11.2019).

123 jorge morais de carvalHo, joão Pedro Pinto-ferreira, joana camPos de carva-lHo, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, Coimbra 2017, p.174

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dentro do qual essa pessoa não possa trabalhar para a empresa ou entidade próxima desta.” Para além disso, entendem estes auto-res que apesar de o Estatuto124“garantir, à partida, a independên-cia e imparcialidade do Provedor do Cliente, a solução apresenta (…) desvantagens”, designadamente, por ser impossível garantir [a sua] efetiva imparcialidade” asseverando, no entanto, que “seria interessante que as suas decisões fossem tornadas públicas, ainda que sem identificação das partes ou que, pelo menos, fosse dada informação (comprovada pela DGC) sobre a percentagem de de-cisões favoráveis às empresas e aos consumidores”125.

A competência desta entidade, designada “órgão indepen-dente da APAVT”126 flui da alínea e) do artigo 2.º do respetivo Estatu-to onde se lê que “Ao Provedor do Cliente compete dirimir conflitos entre agências de viagens e turismo associadas da APAVT e os seus clientes, mediante a elaboração de decisões tomadas na base da lei e da equidade.” Desde logo sobressai a aparente incongruência na formulação desta norma já que não é conciliável o recurso si-multâneo à lei e à equidade, por um lado, e ainda que se interprete a norma no sentido de que tal possibilidade é alternativa, fica por responder, já que o Estatutos são omissos a este respeito, a questão

124 Estatuto do Provedor do Cliente das Agências de Viagens e Turismo, disponí-vel em http://www.provedorapavt.com/system/resources/BAhbBlsHOgZmSSJUM-jAxNi8wMS8xMy8wOS8xMi8zNi80OTAvRVNUQVRVVE9fRE9fUFJPVkVET1JfRE9fQ0xJRU5UR-V9WRl8yMDA5XzE4X0Zldl8yMDA5LnBkZgY6BkVU/ESTATUTO%20DO%20PROVEDOR%20DO%20CLIENTE%20VF%202009%20-%2018%20Fev%202009.pdf (10.02.2019).

125 jorge morais de carvalHo, et alii, ob. cit., p. 174 consideram que a utilização, pelas empresas, dos provedores pode ser “uma forma de justificarem mais facilmen-te perante os seus clientes a recusa de participação nos procedimentos RALC junto de outras entidades, concluindo que “os provedores do cliente não deviam ser in-cluídos na lista das entidades RALC organizada pela DGC.”

126 Estatuto do Provedor do Cliente das Agências de Viagens e Turismo, artigo 1.º.

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de saber quando o Provedor alicerça a sua decisão numa ou nou-tra regra e com que fundamentos. Importa referir que nos termos da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV)127, os árbitros julgam segundo o direito constituído, a menos que as partes determinem, por acordo, que julgam segundo a equidade. Ora, a intervenção do Provedor do Cliente não obedece a nenhum dos procedimentos RAL enun-ciados na alínea i) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 144/2015, ou seja, a mediação, a conciliação ou a arbitragem. Atendendo a que, segundo na definição de “entidades de RAL” constante da alínea b) deste preceito, se inclui a obrigatoriedade de possibilitarem a re-solução de litígios abrangidos pelo dito diploma através de um dos elencados procedimentos, é questionável a conformidade legal da respetiva qualificação, pela qual é responsável a DGC.

O Estatuto apelida a iniciativa processual de “queixa” a qual deve ser apresentada por escrito, no prazo de 20 dias úteis a contar do fim da viagem a que respeita128-129. Flui do Estatuto que qualquer viajante lesado pode recorrer a esta entidade desde que a agên-cia de viagens e turismo contra quem reclama seja associada da APAVT. Paralelamente, não existe qualquer limite, quanto ao valor ou à matéria, ao pedido formulado junto do Provedor, podendo o

127 Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, Lei da Arbitragem Voluntária, artigo 39.º n.º 1 “Os árbitros julgam segundo o direito constituído, a menos que as partes deter-minem, por acordo, que julgam segundo a equidade” disponível em https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-/search/218957/details/normal?q=Lei+da+arbitragem+volun-t%C3%A1ria (29.11.2019).

128 Cit. Estatuto do Provedor do Cliente das Agências de Viagens e Turismo, arti-gos 13.º e 14.º.

129 Afigura-se inquestionável que o facto de o viajante não ter apresentado queixa no referido prazo não preclude o direito de recorrer a outras instâncias, quais sejam, os tribunais judicias, os julgados de paz ou até mesmo a Comissão Arbitral a que se refere a alínea c) do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março.

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“queixoso” peticionar, não apenas o reembolso de quantias pagas por incumprimento do contrato imputável à agência, mas igual-mente pedidos indemnizatórios por danos morais ou patrimoniais, de entre outras pretensões. Todavia, a esta decisão falece poder executório já que o Provedor do Cliente não é uma entidade juris-dicional apenas podendo impor sanções à agência associada se esta não observar o determinado, ao abrigo do respetivo Estatuto.

Que consequência advêm para o “viajante-queixoso” nestas circunstâncias?

Caso a recomendação preveja um valor de reembolso, a mes-ma permitir-lhe-á acionar o FGVT através do qual verá satisfeito o seu crédito pela forma acima explanada. Porém, se para além ou em alternativa, a decisão lhe reconheça o direito a uma indemni-zação por danos morais ou patrimoniais, pelas razões aduzidas, não terá outra opção que não seja recorrer à via judicial ou, se tiver a qualidade de consumidor, a um centro de arbitragem de conflitos de consumo a fim de obter uma decisão favorável que lhe permita obter o ressarcimento devido130 . Por outro lado, se a recomenda-ção lhe for desfavorável, o “queixoso” pode apresentar reclama-ção junto do Provedor do Cliente, sem prejuízo, é certo, de recorrer a outros meios à sua disposição (tribunais, julgados de paz, centros de arbitragem ou Comissão Arbitral) já que a mesma apenas é vin-culativa para a agência de viagens e turismo131 o que, naturalmen-te, importa maiores delongas e, porventura, despesas acrescidas.

130 Sobre o processo nos Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo, vide subcapítulo “5.3. Arbitragem.”

131 Cit. Estatuto do Provedor do Cliente das Agências de Viagens e Turismo, arti-gos 13.º e 14.º.

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5.2. Comissão Arbitral

A Comissão Arbitral, prevista no n.º 1 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 março, dispõe de competência para apreciar pedidos de reembolso dos viajantes através do FGVT relativamen-te a quantias despendidas em resultado da insolvência, incumpri-mento ou cumprimento defeituoso de contratos celebrados com agências de viagens e turismo. De acordo com o n.º 6 do artigo 40.º do mesmo diploma “é uma entidade de Resolução Alternati-va de Litígios, aplicando-se-lhe as disposições e regime previstos na Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, na sua redação atual e a Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro132 . Desde logo, é de notar que esta quali-ficação, efetuada por via normativa, se afigura extravagante atenden-do a que, de acordo com o disposto no Decreto-Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, é a DGC, na sua qualidade de autoridade nacional, que dispõe de competência para organizar a inscrição e divulgação da lista de entidades de RAL e, bem assim, proceder à respetiva inscrição na mesma.133Ademais, apesar de qualificada como uma entidade de RAL, a Comissão Arbitral não figura na referida lista, o que não deixa de ser motivo de estranheza, já que, conforme refere Sandra Passinhas, a inscrição é obrigatória134, sendo tal omissão porventura reveladora da ausência de reconhecimento, por parte da DGC, da qualificação em causa. Esta entidade é constituída por um repre-sentante do Turismo de Portugal, I.P., que preside, um representante da APAVT e um representante de uma associação de defesa do

132 Cit. Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, Lei da Arbitragem Voluntária.133 Decreto-Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, artigos 15º e 16.º.134 Sandra Passinhas, ob.cit. p. 366.

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consumidor ou de uma entidade adequada de defesa do viajante, no caso deste não ser consumidor, a qual é indicada pelo Turismo de Portugal, I.P.135-136.

Conforme referido, a sua atividade rege-se pela LAV, de onde decorre que o legislador lhe reconhece a natureza de um tribunal arbitral. Igualmente este aspeto merece particular consideração. Os árbitros devem ser independentes e imparciais tal como precei-tua o n.º 3 do artigo 9.º da LAV. Ora, os Estatutos da APAVT deter-minam que esta entidade “é uma associação patronal” compe-tindo-lhe, mormente, “exercer todas as atividades que, no âmbito dos presentes estatutos e da lei, contribuam para o progresso dos seus associados” e “valorizar, pelos meios ao seu alcance, a ativi-dade dos agentes de viagens e turismo, nos seus aspetos moral, social, técnico e económico”137. Por seu turno a missão da DECO - Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor consiste em “defender os direitos e legítimos interesses dos consumidores, con-tribuir para resolver os seus problemas e ajudá-los a exercer os seus direitos fundamentais”138. Donde, afigura-se inequívoco que tanto uma como a outra entidade estão comprometidas com os respe-tivos associados, pelo que, por definição, não são independentes. Quanto ao Turismo de Portugal, I.P., não sendo questionável a sua independência como entidade pública, o certo é que a sua inter-

135 No regime anterior, constante do Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de maio, arti-go 34.º, integrava, ainda a Comissão Arbitral, um representante da Direção-Geral do Consumidor.

136 Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, artigo 40.º.137 Estatutos da APAVT, disponível em http://www.apavtnet.pt/estatutos-da

-apavt (18.02.2019).138 DECO, “Quem somos”, disponível em https://www.deco.proteste.pt/info/os-

nossos-servicos/quem-somos (18.02.2019).

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venção na resolução de litígios entre particulares não se inscreve na respetiva missão ou atribuições, tais como definidas na respe-tiva lei orgânica139. Desta feita, a Comissão Arbitral, aliás como a própria designação indicia, não é, na sua essência, um verdadeiro tribunal arbitral, aproximando-se mais de uma comissão paritária140.

139 Decreto-Lei n.º 129/2012, de 22 de junho, que aprova a orgânica do Instituto do Turismo de Portugal, I.P., artigo 3.º n.º 1 – “O Turismo de Portugal, I. P., tem por mis-são o apoio ao investimento no setor do turismo, a qualificação e desenvolvimento das infraestruturas turísticas, a coordenação da promoção interna e externa de Por-tugal como destino turístico e o desenvolvimento da formação de recursos humanos do setor, bem como o controlo, inspeção e regulação da exploração e prática de jogos de fortuna ou azar de base territorial (jogos de base territorial) e de jogos de fortuna ou azar, de apostas desportivas à cota e de apostas hípicas, mútuas e à cota, quando praticados à distância, através de suportes eletrónicos, informáticos, telemáticos e interativos, ou por quaisquer outros meios (jogos e apostas online)”.

140 Diferente poderia ser o entendimento se dispusesse das atribuições da “enti-dade afeta à proteção da insolvência” a que a Comissão se refere, imediatamente disponível para assistir os viajantes e custear o respetivo voo de regresso”. Package Travel Directive Transposition Workshops, workshop de 16.02.2017, disponível em ht-tps://ec.europa.eu/newsroom/just/item-detail.cfm?item_id=35324 (13.02.2019).

No entanto, nessas circunstâncias, a Comissão Arbitral apenas pode conde-nar a agência de viagens insolvente a reembolsar os pagamentos efetuados pelos viajantes ou por conta destes na medida em que os serviços não sejam prestados em consequência dessa circunstância. Atendendo à deficitária situação financei-ra da empresa faltosa, o reembolso seria efetuado através do FGVT, por meio do procedimento descrito no referido diploma, ou seja, a Comissão Arbitral dispõe de 20 dias após a sua convocação para deliberar acerca do pedido, após o que noti-fica a empresa inadimplente para proceder ao pagamento da quantia em que foi condenada, em 10 dias. Finalmente, não havendo, como de resto seria previsível, pagamento por parte desta, é acionado o FGVT, sendo que não está determina-do qualquer prazo para o efeito. Ora, é por demais evidente, que este mecanismo não é apto a dar resposta tempestiva ao viajante, impedido de continuar a viagem ou regressar em consequência de “problemas de liquidez do organizador” para os quais a Diretiva pretendeu dar cabal solução. Desta feita, há que entender que em Portugal, os viajantes terão, necessariamente, de ter capacidade financeira para suportar os inerentes custos.

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O procedimento descrito aplica-se, igualmente, a situações de mero incumprimento ou cumprimento defeituoso, em que são res-ponsáveis agências de viagens e turismo solventes, havendo, no entanto, um litígio entre estas e os seus clientes.

Resta referir que o procedimento na Comissão Arbitral, para além das normas legais que regem a sua atividade, não está su-jeito a um regulamento ou estatuto específico à semelhança do que ocorre com o Provedor do Cliente. Desta feita, os viajantes que recorram a esta entidade de RAL e até mesmo as agências de via-gens que não sejam demandadas com frequência, desconhecem os procedimentos adotados, sendo certo que tal como acima refe-rido, é-lhe aplicável a LAV. No entanto, é sabido que, ao abrigo da legislação anteriormente vigente, em que não era feita qualquer menção a esta Lei, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou recursos interpostos das deliberações da Comissão Arbitral, o que justifica a sua natureza jurisdicional 141-142..

Releva neste regime que se o viajante apresentar o seu pedi-do na Comissão Arbitral, apenas poderá obter a quantia relativa à condenação da agência ao reembolso total ou parcial, do va-lor pago pela viagem e o reembolso de despesas efetuadas, já

141 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de março de 2012, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/be982a784e44c-ca7802579c7005bdbae?OpenDocument&Highlight=0,comiss%C3%A3o,arbitral (18.02.2019).

142 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de maio de 2014, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/35cbd9591c2c-1d9080257d39003b3850?OpenDocument&Highlight=0,comiss%C3%A3o,arbitral,turis-mo (18.02.2019).

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Maria Oliveira

que são as únicas componentes da reclamação que podem ser pagas através do FGVT extravasando os poderes desta entidade o conhecimento de outras matérias. Desta feita, se o viajante lesado pretender, para além do reembolso, uma indemnização por danos morais ou patrimoniais, terá de recorrer à via judicial ou, verificados os pressupostos para tanto necessários, a um centro de arbitragem de conflitos de consumo143.

5.3. Arbitragem

A decisão arbitral transitada em julgado constitui, a par com a decisão do Provedor do Cliente da APAVT e a deliberação da Co-missão Arbitral, um dos meios expressamente reconhecidos pelo De-creto-Lei n.º 17/2018, para acionar o FGVT. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1.º da LAV, qualquer litígio de natureza patrimonial que, por lei não esteja cometido aos tribunais do Estado ou a arbi-tragem necessária, pode, mediante convenção de arbitragem, ser submetido à decisão de árbitros. A convenção de arbitragem se, de acordo com o n.º 2 do referido diploma, tiver por objeto um litígio atual, designa-se por compromisso arbitral e por cláusula compromis-sória se relativa a litígios emergentes de determinada relação jurídica contratual (ou extracontratual). Sendo uma forma de resolução de litígios de cariz privado, a arbitragem pode ser ad hoc, se conduzida sem recurso a uma entidade administrativa, ficando na disponibili-dade das partes a fixação das normas processuais por que se rege, ou institucional, caso em que se submete às regras procedimentais adotadas por um centro de arbitragem.

143 Sobre esta matéria, vide subcapítulo 5.3. Arbitragem.

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O NOVO REGIME JURÍDICO DAS VIAGENS ORGANIZADAS

159e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

Em Portugal a arbitragem institucional com competência em matéria de consumo encontra-se assegurada por uma rede de arbi-tragem, criada pela citada Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, mo-nitorizada pela DGC, da qual fazem parte os centros de arbitragem autorizados a prosseguir as atividades de informação, mediação e arbitragem de litígios de consumo. Os centros de arbitragem são as principais entidades de RAL que permitem aos consumidores recorrer a meios extrajudiciais para a resolução de litígios que os opõem a for-necedores de bens e prestadores de serviços. Todo o território nacio-nal está coberto pela jurisdição dos centros de arbitragem de confli-tos de consumo de competência genérica, já que o Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC), de âmbito nacional, reveste caráter supletivo relativamente aos restan-tes. Os fornecedores de bens e prestadores de serviços podem efe-tuar uma adesão plena a um centro de arbitragem o que confere ao consumidor o direito de impor a arbitragem à empresa aderente. Conforme doutrina dominante, a declaração de adesão não cons-titui, por si, uma convenção de arbitragem, a qual apenas se cele-bra quando o consumidor aceita a proposta através da reclamação que apresenta no centro de arbitragem contra a empresa144. No en-tanto, a relevância da adesão plena das empresas aos centros de arbitragem e os obstáculos de acesso que se colocavam perante o consumidor quando as empresas reclamadas não eram aderentes ou não aceitavam a arbitragem, encontram-se atualmente, em lar-ga medida, ultrapassados em resultado da recente alteração da Lei da Defesa do Consumidor, operada pela Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto. Com efeito, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 14.º da dita Lei, na redação deste diploma, os consumidores que assim o desejem, podem recorrer aos centros de arbitragem de conflitos

144 Neste sentido, jorge morais de carvalHo et alii, ob. cit., p. 177.

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de consumo legalmente autorizados quando os litígios sejam de re-duzido valor económico, ou seja, até € 5.000,00 submetendo-os à mediação ou à arbitragem145.

Dito isto, a questão que importa esclarecer consiste em apurar se, para além da arbitragem ad hoc, os viajantes que tenham a qua-lidade de consumidores podem recorrer a um centro de arbitragem de conflitos de consumo de competência genérica para resolver li-tígios emergentes de contratos de viagem organizada. Ora, não se vislumbra qualquer impedimento legal sendo que, por via desta alte-ração normativa, podem fazê-o, sem que a agência de viagens se possa validamente opor. Esta possibilidade vem, sem sombra de dú-vida, alargar o elenco dos meios disponibilizados aos consumidores para dirimir conflitos com agências de viagens e turismo, reforçando as suas garantias processuais.

Admite-se que a adesão plena aos centros de arbitragem ins-titucionalizados por parte das agências de viagens e turismo não constitua uma prática comum, de entre outras razões, pelo facto de o legislador reconhecer o Provedor do Cliente e a Comissão Arbitral como meios com competência específica. No entanto, por com-paração com estas entidades, os centros de arbitragem oferecem maiores vantagens e garantias ao consumidor, sendo-lhe facultadas três distintas formas de resolução do litígio em presença: mediação, conciliação e arbitragem. Optando pela mediação ou mesmo por um procedimento conciliatório, em que é possível pôr termo ao dife-rendo recorrendo aos interesses em presença, contornando a estrita aplicação da lei, o consumidor e, bem assim, as empresas podem

145 Lei de Defesa do Consumidor, disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=726A0014&nid=726&tabela=leis&pagina=1&fi-cha=1&so_miolo=&nversao=#artigo (28.11.2019)

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O NOVO REGIME JURÍDICO DAS VIAGENS ORGANIZADAS

161e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

obter um desfecho amigável, benéfico para ambos, nomeadamen-te, por potencialmente poder assegurar a continuidade da respetiva relação comercial. Ademais, as partes veem asseguradas todas as garantias inerentes ao processo arbitral, quais sejam, a imparcialida-de dos árbitros e o princípio do contraditório.

A sentença arbitral, que equivale a uma sentença proferida por um tribunal judicial de 1.ª instância é suscetível, se previsto no Regulamento do Centro de Arbitragem, de recurso para o Tribunal da Relação. Finalmente, verificando-se o incumprimento da agên-cia de viagens e turismo, a sentença proferida pelo tribunal arbitral abre a via do acionamento do FGVT para efeitos de obtenção de reembolsos de quantias pagas e, igualmente, sendo título executivo, permite ao consumidor instaurar o adequado procedimento judicial se estiver em causa, por exemplo, a condenação em indemnização por responsabilidade contratual da empresa inadimplente.

5.4. Comparação entre os meios de resolução de litígios

Finalmente, a questão que se coloca consiste em saber se os viajantes, aos quais é reconhecido um regime de proteção rigoroso e exigente, por via da Diretiva, beneficiam das formas de resolução de litígios acessíveis aos consumidores em geral e se, porventura, os meios específicos, previstos no diploma de transposição, atrás referi-dos146, lhes permitam resolver os litígios que os opõem aos operado-

146 Provedor do Cliente da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turis-mo ou da Comissão Arbitral convocada pelo presidente do Turismo de Portugal, I.P.

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Maria Oliveira

res de viagens organizadas ou facilitadores de serviços de viagem conexos, em caso de incumprimento ou de insolvência, de forma mais eficaz e tempestiva. Aparentemente o Provedor do Cliente e a Comissão Arbitral, entidades RAL com competência especializada em litígios emergentes de incumprimento de contratos de viagem, oferecem aos viajantes, por comparação com os consumidores em geral, maior proteção e garantias. Porém, tal conclusão é, conforme se viu, meramente ilusória, se se atentar nas referidas limitações que a atividades destas duas entidades de RAL comporta. É, pois, perti-nente questionar se existem, porventura, razões para a sua perpetua-ção enquanto entidades RAL.

Tomemos como exemplo, um processo submetido à Comissão Arbitral em 2011, cuja deliberação consistiu na condenação da agência de viagens a proceder ao reembolso integral do valor pago pela viagem e despesas documentadas, a qual foi confirmada, em sede de recurso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa147. Os clientes lesados adquiriam a uma agência de viagens uma viagem de lua de mel ao México. A cliente mulher, por ser de nacionalidade brasileira, carecia de visto, não tendo, porém, a agência de viagens prestado informação a este respeito. Chegados ao destino, foram forçados a regressar e, consequentemente, impedidos de realizar a viagem contratada. Ora, tivessem estes viajantes recorrido ao tribunal, julga-do de paz ou se porventura fosse possível submeter o litígio em cau-sa a um centro de arbitragem de conflitos de consumo, poderiam obter, para além do reembolso, uma indemnização compensatória pelo “dano das férias estragadas”, de natureza não patrimonial, mas suficientemente grave para merecer a tutela do direito.

147 Citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de março de 2012.

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O NOVO REGIME JURÍDICO DAS VIAGENS ORGANIZADAS

163e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

Com efeito, na prática, o reembolso, por si só, pode apenas envolver quantias irrisórias, por comparação com os prejuízos de-correntes do incumprimento ou cumprimento defeituoso do contra-to de viagem organizada, situação, notoriamente vantajosa para as agências de viagens e turismo, por esta via aliviadas do paga-mento de indemnizações compensatórias. De facto, para obter tal ressarcimento, os clientes lesados têm que recorrer, nos casos em que tal é possível, à arbitragem ou, em geral, à via judicial, o que envolve maior dispêndio de meios e cujo desfecho é moroso e in-certo. Duvida-se, porém, que esta informação esteja disponibilizada ou seja prestada de forma clara. Finalmente, há que ter em conta que, por via do regime atrás descrito, a APAVT exerce um controlo efetivo sobre o contencioso entre os clientes e as agências de viagens e turismo, quer através das decisões proferidas pelo Provedor do Cliente da APVT, rela-tivamente às respetivas associadas, e a todas, sem exceção, por via da participação, nas deliberações da Comissão Arbitral.

6. Conclusões

A Diretiva (EU) 2015/2302, de 25 de novembro contém, na sua génese, a ambição de regulamentar, de forma abrangente e inclu-siva o mercado das viagens na União Europeia, tendo introduzido alterações muito significativas no regime jurídico das viagens orga-nizadas e serviços de viagem conexo. Reveste-se de central rele-vância a imposição de um nível máximo de harmonização legisla-tiva com o que se pretendeu criar um verdadeiro mercado interno e assegurar um elevado nível de proteção aos viajantes. A Diretiva

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Maria Oliveira

foi transposta para a ordem jurídica nacional pelo Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março. No entanto, em muitos aspetos, o diploma de transposição não se revela consonante com a norma europeia e, em consequência, os adquirentes de viagens em Portugal não beneficiam do regime mais vantajoso e protetor, por comparação com o anterior, que a mesma consagra. Com efeito, enquanto que esta pretendeu alargar o respetivo âmbito de aplicação a todos os viajantes, o legislador nacional limitou-o às pessoas singulares excluindo, desta feita, um elevado número de viajantes. Por outro lado, o Decreto-Lei assenta no conceito de agência de viagens e turismo, inteiramente estranho à Diretiva, a qual apenas reconhece operadores e prestadores de serviços de viagem assim qualificados pela forma como atuam no mercado e não como descrevem a sua atividade. Donde, os viajantes que contratem serviços de via-gem com operadores que não sejam as tradicionais agências de viagens não estão ao abrigo do enquadramento normativo da Di-retiva. Ademais, a proteção contra a insolvência do organizador assume para os legisladores europeus importância fulcral pelo que impõem aos Estados-membros que assegurem a existência de uma garantia efetiva e eficiente que cubra os custos razoavelmente pre-visíveis, a qual deve estar disponível, “sem demora injustificada”, logo que, em consequência de problemas de liquidez do organiza-dor, os serviços de viagem não sejam, total ou parcialmente, exe-cutados permitindo, se for o caso, o repatriamento ou a continua-ção da viagem. Para corresponder a esta determinação, o diploma de transposição limitou-se a manter o mecanismo do FGVT, para o qual são contribuintes as agências de viagens e turismo, o qual responde solidariamente pelo pagamento dos créditos dos viajan-tes por incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato por

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O NOVO REGIME JURÍDICO DAS VIAGENS ORGANIZADAS

165e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

parte da agência de viagens. Todavia, o legislador nacional não identificou a entidade responsável em Portugal pela proteção, em caso de insolvência do operador, nem os meios de acionamento previstos que permitem uma resposta imediata e efetiva, obrigan-do, assim, a que os viajantes tenham de assegurar, a expensas pró-prias, as inerentes despesas e somente, após o regresso, diligenciar no sentido do acionamento do FGVT tendo em vista a obtenção do reembolso devido. O Decreto-Lei nº17/2018 prevê que tal possa ser efetuado para por meio de apresentação de decisão arbitral, decisão do Provedor do Cliente da APAVT ou por deliberação da Comissão Arbitral. O Provedor do Cliente e a Comissão Arbitral es-tão reconhecidas, a primeira pela DGC e a segunda pelo diploma de transposição, como entidades de RAL, cujos princípios, regras e enquadramento jurídico estão previstos na Lei nº144/2015, de 8 de setembro que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2013/11/EU sobre a resolução alternativa de litígios de consumo. Do ponto de vista doutrinal, existem reservas quanto à conformidade destas entidades com a referida Lei, designadamente, no que res-peita aos procedimentos por que se regem. Para além disso, ape-sar de, aparentemente, ser indiferente o recurso a uma ou outra entidade, existem diferenças significativas. O Provedor do Cliente da APAVT aprecia pedidos de reembolso e de indemnização, mas apenas têm competência para emitir recomendações às agên-cias associadas, sem valor jurisdicional. Ao invés, as deliberações da Comissão Arbitral, onde a APAVT e a DECO têm assento, têm valor equivalente a uma sentença arbitral, mas, no entanto, esta entidade apenas pode conhecer de pedidos de reembolso, veri-ficado a insolvência da agência de viagens ou o incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de viagem. No entanto,

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Maria Oliveira

os viajantes que tenham a qualidade de consumidores viram re-conhecido o seu direito de acesso aos Centros de Arbitragem de Litígios de Consumo, cuja atividade é inteiramente consistente com os princípios consagrados na referida Lei n.º 144/2015, por via da a recente alteração da Lei de Defesa do Consumidor, operada pela Lei nº63/2019, de 16 de agosto, a qual veio permitir-lhes dirimir os litígios, de valor não superior a € 5.000,00, que os opõem a agências de viagens e turismo.

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O NOVO REGIME JURÍDICO DAS VIAGENS ORGANIZADAS

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7. Abreviaturas

APAVT Associação Portuguesa de Agências de Viagens e Turismo

DECO Associação portuguesa para a Defesa do Consumidor

DGC Direção-Geral do Consumidor

Decreto-Lei Decreto-Lei n.º 17/2018

Diretiva Diretiva (UE) 2015/2302, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos servi-ços de viagens conexos

Diretiva de 1990 Diretiva 90/3/314/CEE do Conselho, de 1990

Diretiva RAL Diretiva 2013/11/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de maio de 2013

Estatuto Estatuto do Provedor do Cliente das Agências de Viagens e Turismo

FGVT Fundo de Garantia de Viagens e Turismo

LAV Lei da Arbitragem Voluntária

RAL Resolução Alternativa de Litígios

RALC Resolução Alternativa de Litígios de Consumo

RNAVT Registo Nacional das Agências de Viagens e Turismo

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169e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r a

O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE: CONTRIBUTO PARA A REFLEXÃO ACERCA DA DELIMITA-

ÇÃO DO TIPO À LUZ DO ELEMENTO RISCO E DA PRÁTICA DO QUESTIONÁRIO PELO CONFRONTO ENTRE OS MO-

DELOS DO QUESTIONÁRIO ABERTO E FECHADO

1Marisa Silva Monteiro*

I - INTRODUÇÃO

Sumário: I.1 O regime jurídico do contrato de seguro: Decreto-Lei n.º 72/2008, de

16 de Abril I.2 As inovações da LCS I.3 As alterações trazidas pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro

I.1 O regime jurídico do contrato de seguro: Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril

O Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril corresponde ao diplo-ma normativo de unificação e harmonização das disposições refe-rentes ao regime jurídico do contrato de seguro e representa o es-

* Doutora em Direito, Jurisconsulta e Advogada

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Marisa Silva Monteiro

forço de codificação do vasto e esparso conjunto de leis até então vigente no ordenamento jurídico português, em matéria de direito dos seguros1. Aplicável desde 1 de Janeiro de 20092, congrega o regime jurídico do contrato de seguro, em oposição à fragmenta-riedade pretérita3. O essencial do anterior regime tripartia-se pelas normas do Código Comercial (arts. 425.º a 462.º), pelo Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril e pelo Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho e caracterizava-se pela intervenção mínima do legislador a par da dispersão reguladora4.

1 Como se enuncia no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, referi-do em texto, com o novo regime jurídico do contrato de seguro “Procede-se (...) a uma consolidação do direito do contrato de seguro vigente, tornando mais acessível o conhe-cimento do respectivo regime jurídico, esclarecendo várias dúvidas existentes, regulando alguns casos omissos na actual legislação”, “Não perdendo de vista os objectivos de me-lhor regulamentação (better regulation), consolida-se num único diploma o regime geral do contrato de seguro, evitando a dispersão e fragmentação legislativa e facilitando o melhor conhecimento do regime jurídico por parte dos operadores.”.

2 A respeito do tempo que mediou entre a publicação da LCS (16 de Abril de 2008) e a sua entrada em vigor (1 de Janeiro de 2009), Pedro Romano Martinez na sua anotação ao artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 72/2008 explica como “Depois de uma «vacatio legis» lon-ga (oito meses), necessária para a adaptação dos contratos de seguro a um novo regime, determina-se que a lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009. Pretende-se que a nova lei passe a regular as situações jurídicas de seguro no início do novo ano civil (…). O início de vigência da lei nova dar-se-á, pois, às zero horas do primeiro dia do novo ano” – cfr. do autor (et alt.), Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2011, 2ª edição, p. 36.

3 No preâmbulo do Decreto-Lei citado, pode ler-se que “A reforma do regime do contrato de seguro assenta primordialmente numa adaptação das regras em vigor, pro-cedendo à actualização e concatenação de conceitos de diversos diplomas e preen-chendo certas lacunas”.

4 O legislador da reforma do contrato de seguro explica a necessidade da interven-ção legislativa, referindo preambularmente que “O seguro tem larga tradição na ordem jurídica portuguesa. No entanto, a legislação que estabelece o regime jurídico do contra-to de seguro encontra-se relativamente desactualizada e, mercê de diversas intervenções legislativas em diferentes momentos históricos, nem sempre há harmonia de soluções.”.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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Os decretos-leis citados (hoje parcialmente revogados5) re-gulavam o exercício da actividade seguradora e enunciavam as matérias sobre as quais impendia sobre o segurador o dever de prestar informação ao segurado. O Código Comercial, arauto do axioma liberal menos Estado, melhor Estado, abrigava o essencial das regras em matéria de contrato de seguro, contendo sobretudo normas supletivas, privilegiando a autonomia privada, por pressu-por a (não des)igualdade de posições negociais entre as partes6. O quadro normativo favorecia o pântano de fontes reguladoras. Havia regulamentos, apólices comuns, apólices uniformes (espécie de regulamento), leis parcelares (para determinados seguros em especial), leis de práticas profissionais e leis gerais referentes a prin-cípios gerais nem sempre específicos dos contratos de seguro.

Em resultado da convivência do Código Comercial com a le-gislação avulsa sobreposta, do peso hierárquico distinto das várias fontes e da dispersão e desarmonia entre elas, recaía demasiada-mente sobre os tribunais o papel de fixar orientações interpretativas e aplicadoras das diversas normas reguladoras, assistindo-se a um crescente índice de litigiosidade e pendências judiciais.

Donde, da aglomeração num só instrumento legislativo resulta-ram de per si dois aspectos francamente positivos: maior facilidade

5 O artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 72/2008 revoga os artigos 132.º a 142.º e 176.º a 193.º do Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril e os artigos 1.º a 5.º e 8.º a 25.º do Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho.

6 No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 72/2008, sublinha-se assim o novo modelo: “Su-perando o regime do Código Comercial, mas sem pôr em causa o princípio da liberdade contratual e o carácter supletivo das regras do regime jurídico do contrato de seguro, prescreve-se a designada imperatividade mínima com o sentido de que a solução legal só pode ser alterada em sentido mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário”.

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Marisa Silva Monteiro

de acesso à informação e acréscimo de segurança e certeza jurídi-cas na interpretação e na aplicação da lei.

I.2 As inovações da LCS

Apontámos já como inovadora e positiva a aglutinação e con-solidação do actual regime jurídico do contrato de seguro (Lei do contrato de seguro - LCS) 7.

Assinalamos também o avanço, se bem que tímido8, da LCS portuguesa em direcção às melhores práticas legislativas europeias na tutela do tomador do seguro9. Ilustrativamente, o art. 22.º institui o dever especial de esclarecimento que impõe ao segurador a obrigação de explicar ao tomador do seguro “que modalidades de seguro (…) são convenientes para a concreta cobertura pre-tendida”, “na medida em que a complexidade da cobertura e o

7 As normas sem indicação expressa do diploma legal a que pertencem respei-tam ao Decreto-Lei n. º 72/2008, de 16 de Abril, também designado Lei do contrato de seguro (LCS).

8 Como adiante melhor se verá na análise do dever pré-contratual de informação.

9 Cfr. J. c. moitinHo de almeida, O Contrato de seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1971 e o estudo do mesmo autor «A pro-tecção do tomador do seguro e dos segurados no novo regime legal do contrato de seguro», p. 25, disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/moiti-nhoalmeida_proteccaotomadorseguro.pdf, em que nota o afastamento da legisla-ção europeia no que respeita à tutela do tomador do seguro, afirmando que “Vá-rias disposições do Decreto-Lei n.º 72/2008 transpõem directivas comunitárias que, frequentemente, são desrespeitadas sempre no interesse das seguradoras. Assim, no que respeita à informação do tomador do seguro bem como aos contratos celebra-dos à distância.”

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

173e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

montante do prémio a pagar ou do capital seguro o justifiquem (…)” e “antes da celebração do contrato”. Pese embora tratar-se de um dever que sempre decorreria do princípio geral da boa fé, é louvável a consagração expressa e coincide com a opção do legislador alemão10. Adoptou-se aqui uma visão da relação contra-tual de seguro como uma relação complexa. Mais, como uma re-lação com importantes similitudes com os laços negociais nascidos das relações contratuais de consumo, na perspectiva da tensão e desequilíbrio que lhe são característicos. Assumiu-se que o toma-dor do seguro é a parte mais frágil da relação contratual quer no acesso à informação, quer na percepção de que a informação por si prestada é um elemento conformador do contrato, quer na per-cepção dos direitos e (relevo decisivo) dos deveres decorrentes da obrigação de informação.

Em face do anterior regime, assinala-se uma evolução legis-lativa no sentido de maior tutela do tomador do seguro, e sem embargo da aplicabilidade da legislação de consumo11, embora ainda distante das opções legislativas dos modernos ordenamentos europeus12-13.

10 § 6 da Lei do contrato de seguro alemã, de 23 de Novembro de 2007 (VVG alemã - Versicherungsvertragsgesetz).

11 Como a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, alte-rada pela Rectificação n.º 16/96, de 13 de Novembro; pela Lei n.º 85/98, de 16 de Dezembro; pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril; pela Lei n.º 10/2013, de 28 de Janeiro; pela Lei n.º 47/2014, de 28 de Julho e pela Lei n.º 63/2019, de 16 de Agosto) e o Regime Jurídico dos Contratos Celebrados à Distância e Fora do Estabelecimento Comercial (Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, alterado pela Lei n.º 47/2014, de 28 de Julho e pelo Decreto-Lei n.º 78/2018, de 15 de Outubro).

12 A boa opção legislativa que se aponta neste domínio é a alemã, pela consa-gração em letra de lei dos princípios gerais enunciados nas directivas comunitárias, como o princípio emergente das normas comunitárias que exigem o fornecimento

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Marisa Silva Monteiro

I.3 As alterações trazidas pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro13

A Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro, diploma de transposição da Directiva 2009/138/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2009 (alterada pelas Directivas 2011/89/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Novembro de 2011; 2012/23/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Maio de 2013; 2013/58/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Dezembro de 2013 e 2014/51/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Abril de 2014) deu nova redacção a al-gumas normas do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (arts. 12.º; 15.º; 38.º; 158.º; 181.º; 185.º; 205.º e 208.º).

Sendo certo que as normas legais específicas do contrato de seguro de saúde não sofreram qualquer alteração, enunciaremos seguidamente as mudanças trazidas por esta Lei de 2015.

Assim, o art. 12.º da LCS reviu (alargando) o elenco de normas absolutamente imperativas, isto é, normas que não admitem con-venção em sentido diverso.

de determinadas informações ao tomador do seguro e que estabelecem que este sujeito só ficará vinculado depois de receber as informações em causa, ou seja, o tomador do seguro não fica vinculado enquanto o dever de informação do segu-rador não for cumprido - princípio expressamente consagrado no artigo 3.º, n.º 1 da Directiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro de 2002 (entretanto alterada pelas Directivas 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio de 2005; 2007/64/CE do Parlamento Europeu e do Con-selho, de 13 de Novembro de 2007 e pela Directiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2015) - e que o legislador alemão adoptou como explica Prölss, in Pröss/Martin, Versicherungsvertragsgesetz, Munique, 2004, p. 142, n.º 8.

13 Cfr. também sobre a lei dos seguros alemã, Peter Schimikowsi, in Versicherun-gsvertragsgesetz, Baden-Baden, 2009, pp. 141-147.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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A alteração ao art. 15.º do regime jurídico do contrato de se-guro foi introduzida no âmbito da proibição de práticas discrimi-natórias, com reforço dos deveres de informação do segurador, o qual passou a estar obrigado, em caso de recusa de celebração do contrato de seguro ou de agravamento do prémio em razão de deficiência ou de risco agravado de saúde, a informar o proponen-te do seguro da diferença entre os factores de risco próprios deste e os factores de risco de uma pessoa em situação equivalente à sua excluída do factor da deficiência ou risco agravado de saúde.

Por outro lado, o art. 38.º da LCS passa a integrar o elenco das normas absolutamente imperativas, nos preditos termos da revisão do (n.º 1) do art. 12.º, sendo que a nova redacção dada ao art. 38.º (n.º 1) veda a existência de apólices ao portador, restringin-do os tipos de apólice à tipologia à ordem ou nominativa, “sendo nominativa na falta de estipulação das partes quanto à respetiva modalidade”. Apenas no transporte de coisas, o novo texto do n.º 2 do art. 158.º admite a existência de apólice ao portador, ainda que excepcionalmente e “em derrogação do disposto no n.º 1 do art. 38.º”, como o próprio texto da norma indica.

Esta nova redacção do art. 181.º mantém a previsão segun-do a qual a realização das prestações de seguro não subroga o segurador nos direitos da pessoa segura ou do beneficiário contra um terceiro que dê causa ao sinistro, salvo se houver convenção expressa das partes nesse sentido e, nessa hipótese, fica limitada às prestações indemnizatórias pagas pelo segurador, considerando-se, em caso de dúvida, que uma prestação só é indemnizatória se tal estiver expressamente consignado no contrato de seguro.

A Lei n.º 147/2015 atribui nova redacção também ao art. 185.º, ampliando (no n.º 1) o âmbito das informações pré-contratuais a

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Marisa Silva Monteiro

prestar pelo segurador. Assim, no seguro de vida, o segurador é obri-gado a transmitir ao proponente, antes da celebração do contrato de seguro uma referência concreta ao relatório sobre a solvência e a situação financeira do segurador e informações específicas da modalidade do contrato de seguro necessárias a assegurar a com-preensão dos riscos subjacentes ao contrato de seguro assumidos pelo tomador.

Mais se determina na alteração ao teor do art. 185.º (n.º 5) que se o segurador, em relação a uma oferta ou no contexto da ce-lebração de um contrato de seguro de vida, facultar valores de reembolso potenciais superiores aos pagamentos acordados con-tratualmente, deve fornecer ao tomador do seguro um cálculo em que o potencial pagamento na data de vencimento seja definida através da aplicação das bases de cálculo dos prémios utilizando três taxas de juro diferentes.

E o n.º 6 do mesmo preceito, alterado outrossim em 2015, con-sagra o dever adicional de informação a observar pelo segurador, em cujos termos este deverá informar o tomador do seguro, de modo claro e compreensível, de que o cálculo apresentado cons-titui apenas um modelo de computação, não podendo “daí extra-polar quaisquer direitos contratuais”.

O art. 205.º - também relativo ao seguro de vida - sofre também alteração quanto ao âmbito dos deveres de informação do segu-rador, passando a determinar que se este facultar dados quantita-tivos sobre a eventual evolução futura da participação nos resul-tados, deve informar o tomador do seguro das diferenças entre a evolução real e os dados inicialmente comunicados.

Ainda em sede de seguro de vida e agora quanto às opera-ções de capitalização, a Lei n.º 147/2015 altera, por fim, a redac-

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

177e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

ção do art. 208.º, adaptando a formulação – quanto ao conteúdo obrigatório das condições gerais e especiais – à proibição legal dos títulos ao portador.

II - O CONTRATO DE SEGURO

Sumário II.1 Conceito II.2 Natureza jurídica II.3 Caracterização geral

II.1 Conceito

A LCS, sem definir contrato de seguro, elenca os seus efeitos; opção legislativa que se explica pela pretensão de abarcar, para além dos seguros típicos, outras relações jurídicas de seguro que se estenderam a áreas estranhas ao tradicional objecto do contrato de seguro, como instrumentos de aforro estruturado (art. 206.º) e operações de capitalização (arts. 207.º a 209.º)14-15.

14 O n.º V do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 72/2008 explica que “O novo regime agora estabelecido tem em vista a sua aplicação primordial ao típico contrato de seguro, evitando intencionalmente uma definição de contrato de seguro. Optou-se por identificar os deveres típicos do contrato de seguro, assumindo que os casos de qualificação duvidosa devem ser decididos pelos tribunais em vista da maior ou me-nor proximidade com esses deveres típicos e da adequação material das soluções legais ao tipo contratual adoptado pelas partes. Atendendo, sobretudo, à crescen-te natureza financeira de alguns subtipos de «seguros» consagrados pela prática seguradora, é esta a solução adequada.”

15 Cfr. Pedro romano martineZ [et alt.], Lei do Contrato…, op. cit., p. 39, em que o Autor, em anotação ao artigo 1.º da LCS refere que “Tendo-se optado por não dar uma definição de contrato de seguro, a regra não tem paralelo directo noutras disposições; porém, teve por base o § 1 (deveres típicos do contrato) do projecto alemão de nova lei do contrato de seguro (Referentenentwurf do Ministério da Justi-

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Marisa Silva Monteiro

O art. 1.º descreve o contrato de seguro como aquele por efeito do qual o segurador cobre um risco determinado (do tomador do seguro ou de outrem), obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório contratualmente previsto (sinistro), obrigando-se o tomador do seguro a pagar a correspondente retribuição (prémio)16.

Este é o ponto de partida para a aproximação que nos pro-pomos à realidade jurídico-normativa do seguro de saúde, na pers-pectiva dos seus elementos essenciais diferenciadores, não se pre-tendendo uma abordagem conceptual subsuntiva, mas antes uma visão sobre a unidade de sentido que o tipo contratual encerra, nun-ca perdendo de vista que omnis definitio in iure periculosa est17-18.

ça alemão, entretanto convertido em lei, 2007), com várias adaptações” e acrescenta que “Como decorre da epígrafe (Conteúdo Típico), não se define o contrato de seguro, indicando-se as obrigações principais e características que decorrem para as partes deste contrato. Apesar de não se apresentar (formalmente) uma noção do contrato de seguro, do elenco dos deveres típicos enunciados deduz-se a noção da figura”.

16 Diz o artigo 1.º da LCS que “Por efeito do contrato de seguro, o segurador co-bre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a reali-zar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.”.

17 Sobre as dificuldades de qualificação que poderia acarretar uma noção con-ceptual pura de contrato de seguro, vide Luís Poças, Estudos de Direito de Seguros, Porto, 2008, pp. 13 e ss.; margarida lima rego, Contrato de Seguro e Terceiros. Estudo de Direito Civil, Coimbra, 2010, pp. 31 e ss. e tirado suaréZ, «Reflexiones sobre la nueva regulación del contrato de seguro en Portugal desde el Derecho Español», RDES XLIX (2008), pp. 7 e ss..

18 Sendo certo que, em face da inexistência de uma definição legal de con-trato de seguro, a doutrina converge no entendimento segundo o qual o contrato de seguro corresponde ao contrato pelo qual o segurador, mediante retribuição, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se verificar certo evento futuro e incerto. Cfr. j. c. moitinHo de almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Editora, 1971, p. 23; josé vasQues, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 94 e almeida costa, RLJ, ano 129.º, p. 20.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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II.2 Natureza jurídica

Ao longo dos tempos, perfilaram-se várias teorias quanto à natureza jurídica do contrato de seguro. A inicial teoria indemni-zatória, destacada na doutrina italiana com LANTERNA, FRANCLIM ou BERREI19, recebeu sérias críticas por se mostrar redutora em rela-ção à noção de risco20. Em repúdio, parte da doutrina atribuiu ao seguro a função de cobertura de uma necessidade eventual, mas esta perspectiva não punha em relevo os elementos essenciais do seguro relativos à sua função sócio-económica, como a determi-nação do valor do risco seguro, a pré-determinação do custo do seguro ou a organização empresarial da actividade seguradora. E estas notas referentes ao interesse social subjacente ao contra-to de seguro conduziram a uma nova teoria indemnizatória – de DONATO e BUTANO –, exposta a críticas no caso dos seguros de vida de terceiros, pois o elemento indemnizatório não explicava a natureza do contrato21, fragilidade que conduziu ao apareci-mento da teoria dualista, dominante na Bélgica e em França após a entrada em vigor da Lei de 1930, apoiada na distinção cau-sal entre seguros de danos, como sendo aqueles que prosseguem uma função indemnizatória e seguros de pessoas que desempe-nhariam uma função de previdência, por fomento da poupança individual22. A teoria dualista, revelando-se válida para distinguir a

19 Apud Francisco guerra da mota, O Contrato de Seguro Terrestre, Primeiro Vo-lume, Ateia Editora, Porto, pp. 229 a 239.

20 Ainda hoje acolhida como alicerce da delimitação do risco relativamente ao evento aleatório, no sentido de que o risco segurável se reporta necessariamente a um evento aleatório que represente uma desvantagem patrimonial. Cfr. fernando sáncHeZ calero (coord.), Ley de Contrato de Seguro, Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 octubre, y a sus modificaciones, Editorial Aranzadi, Cizur Menor, 2005, pp. 36-38.

21 Vide penúltima nota.22 Idem.

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função económico-social dos seguros de danos e de pessoas, não fornece um critério apto a construir uma concepção unitária de contrato de seguro. Partindo da crítica que aponta à assunção do risco um problema de insuficiência para qualificar o contra-to de seguro, VIVANTE23 coloca a tónica central na exigência de empresarialidade do segurador, perspectivando-o como contrato de garantia de um estado de segurança e, sublinhando a opção legislativa dos ordenamentos que possuem leis reguladoras da administração de fundos de prémios que as seguradoras recebem dos segurados, defende que só as seguradoras que constituam fundos de gestão dos capitais seguros, através do mecanismo do dever de publicitação de resultados, podem salvaguardar o interesse dos segurados.

Entre nós, GUERRA DA MOTA24 sintetiza este iter reflexivo, regista que a doutrina moderna procura a natureza jurídica do seguro na integração do objecto contratual no objecto social da entidade que realiza a actividade seguradora, dando nota da hodierna centraliza-ção (novamente) da discussão sobre a natureza jurídica do contrato de seguro em torno do elemento empresa, sendo certo que esta ma-téria permanece envolta em muita controvérsia dogmática25.

II.3 Caracterização geral

Em jeito de visão sistematizada, e por referência às diversas classes classificatórias dos contratos, podemos caracterizar o con-

23 Cfr. cesare vivante, Trattato di Diritto Commerciale, vol. IV, Le Oblligazioni (Con-tratti e prescrizione), Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, Milano, 1929, pp. 404 e ss..

24 Cfr. ob. cit. Francisco guerra da mota.25 Sobre a natureza jurídica do contrato de seguro ver, i.a., carlos bettencourt de

faria, O conceito e a natureza jurídica do contrato de seguro, CJ, 1978, II, pp. 785-799.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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trato de seguro, desde logo, como um contrato nominado e típico, porque a lei reconhece a sua categoria jurídica e desenha o seu regime específico.

Trata-se ainda de um contrato bilateral sinalagmático, por efei-to do qual resultam obrigações para ambas as partes, encontran-do-se as obrigações assim nascidas por efeito do contrato ligadas entre si por laços de interdependência. As obrigações do segura-dor e do tomador do seguro constituem-se tendo cada uma delas a sua causa na obrigação da contraparte contratual (sinalagma genético), daí resultando que permaneçam ligadas durante a fase de execução do contrato, em exercício obrigacional paralelo, não podendo uma obrigação ser realizada se a outra o não for, em ter-mos tais que as vicissitudes referentes a cada obrigação se repercu-tem necessariamente na outra.

Por outro lado, contrato de seguro é um contrato oneroso, pois que nele existe uma contrapartida patrimonial para ambas as par-tes. E caracteriza-se ainda por ser aleatório, colocando-se na de-pendência da verificação de um evento futuro e incerto o valor da contrapartida patrimonial de uma ou de ambas as partes.

O contrato de seguro é um contrato consensual, não exigindo a lei a observância de forma especial, pois, apesar de o segurador ter de formalizar o contrato em instrumento escrito (apólice)26-27, tal não é condição de validade28-29.

26 Determina o n.º 2 do art. 32.º da LCT que “O segurador é obrigado a forma-lizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador do seguro”.

27 Cfr. margarida lima rego, «O contrato e a apólice de seguro», in Temas de Di-reito dos Seguros: a propósito da nova lei do contrato de seguro, Almedina, Coimbra, 2012, p. 25. Margarida Lima Rego explica que “distinguem-se as apólices que corres-pondem ao documento constitutivo de um contrato de seguro e aquelas que configu-ram um documento reprodutivo de um contrato de seguro previamente celebrado”.

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28-29Ao seguro atribui-se ainda e muito emblematicamente a classi-ficação de contrato de boa fé (ou de máxima boa fé, utmost good faith contract na expressão da doutrina inglesa), atendendo às particulares exigências de uberrima fides desde a fase pré-contra-tual30. Aos futuros segurador, tomador do seguro e segurado impõe-se que declarem de boa fé todas as circunstâncias que possam interferir na avaliação do risco, antes mesmo da celebração do contrato31. Correspondendo a um contrato cuja composição final

28 Nos termos do n.º 1 do art. 32.º da LCS, “A validade do contrato de seguro não depende da observância de forma especial”, pelo que a forma escrita não é requisito de validade do contrato de seguro.

29 A forma escrita representa, assim, uma formalidade ad probationem, ou seja, a forma escrita é necessária apenas para efeitos de prova da perfeição das decla-rações negociais de vontade de celebrar um contrato de seguro e da existência do contrato, nesse sentido.

30 Cfr. luís Poças, O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Se-guro, Almedina, 2013, pp. 149-183, em que o Autor sublinha que no contrato de seguro “à relação pré-contratual é inerente a necessária confiança entre as partes, geradora de expectativas fundadas quanto à correcção e honestidade da conduta da contraparte, e merecedora da tutela do Direito. Cada parte deve poder confiar que a contraparte não omite nem falseia informações relevantes para a formação da vontade negocial”, mais acrescentando que tal exigência surge “com particu-lar intensidade no contrato de seguro, atenta a respectiva natureza como negócio uberrima fides (ou de confiança)” - p. 183. Vide também joaQuín garrigues, Contrato de Seguro Terrestre, Madrid, 1983, p. 45, em que o Autor qualifica o contrato de se-guro como contrato de máxima boa fé, reputando este elemento justamente coma nota particular do contrato de seguro.

31 Valem aqui as palavras de antónio meneZes cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, I, Almedina, Coimbra, 1997, p. 585, segundo o qual as partes devem actuar recipro-camente por forma a que se alcance uma “conclusão honesta do negócio”. Cfr. ob. cit. na nota anterior de Luís Poças, p. 183, em que o Autor destaca como “o princípio da tutela da confiança assume (...) um papel fundamentador do dever de declaração do risco”, razão por que, explica mais adiante que “neste caso [da fase pré-contratual do contrato de seguro], dilui-se, portanto, o ónus de indagação do credor de informação – à mercê da prestação exacta desta, requerendo uma rigorosa tutela dessa expec-tativa – e dilata-se a intensidade do dever de informação a cargo da contraparte”.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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de contrapartidas patrimoniais depende da verificação de evento futuro e incerto, a boa fé representa a garantia do afastamento do fim especulativo.

Partindo da visão de unidade de sentido normativo que é o contrato de seguro e do seu horizonte classificatório, analisamos se-guidamente a modalidade que aqui nos ocupa: o seguro de saúde.

III – O SEGURO DE SAÚDE

Sumário III.1 Nótulas introdutórias III.2 Noção III.3 Delimitação do tipo III.3.1 A

importância do risco III.3.2 A declaração inicial do risco III.3.3 Questionário aberto e fechado

III.1 Nótulas introdutórias

O seguro de saúde é um contrato nominado e tipificado, pre-visto entre os arts. 213.º a 217.º da LCS e corresponde à convenção por efeito da qual o segurador cobre riscos relacionados com a prestação de cuidados de saúde ao tomador ou a outrem.

O segurador assume, sic, a obrigação de realizar a prestação convencionada se ocorrer o evento aleatório contratualmente pre-visto (sinistro) e o tomador do seguro obriga-se a pagar a retribui-ção correspondente (prémio). O seguro de saúde constitui uma das modalidades típicas do contrato de seguro, integrando, hic sensu,

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o quadro normativo daquele tipo contratual32-33. Com efeito, a LCS contém normas gerais aplicáveis a todas as relações jurídicas de se-guro, normas específicas das modalidades legais típicas e soluções próprias de determinados sub-tipos contratuais em que se inclui o seguro de saúde (arts. 213.º a 217.º)34.

A inserção sequencial das disposições particulares do seguro de saúde impõe que estas sejam lidas em coerência com toda a LCS,

32 Vide maria inês de oliveira martins, O Seguro de Vida Enquanto Tipo Contra-tual Legal, Wolters Kluwer Portugal sob a marca Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 104-123, em que a Autora realiza uma análise rica sobre o seguro de vida, expondo que “não se pode considerar que exista um modelo paradigmático de contrato de seguro, mas apenas concretizações do contrato nas suas várias moda-lidades. Como tal, o seguro de vida consubstanciará um verdadeiro tipo contratual (…) Procurando-se compreender o tipo contratual como um tipo em sentido pró-prio, aquela imagem global de sentido será extraída, antes de mais, da respectiva regulamentação, enquanto «conexão provida de sentido de uma regulamenta-ção», no «jogo concertado» dos seus elementos, surgindo o tipo como tipo jurídico-estrutural, tensão entre ser e dever-ser que reúne uma valência estatística e uma axiológica. Estes são, antes de mais, «tipos normativos», nascendo da realidade e com esta mantendo um laço, mas sendo simultaneamente portadores de um de-ver-ser. O legislador colhe normalmente os tipos jurídicos estruturais da realidade, onde estes se perfilam como tipos reais normativos e, mantendo-os na sua con-formação e abertura ou modificando as notas que os identificam ou tornando-os menos flexíveis, acolhe-os na lei”.

33 Vide Pedro Pais de vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 56 e seg. para quem o reconhecimento da existência de um tipo jurídico estrutu-ral não se basta com a atribuição de um nomen iuris (ainda que atribuído pela pró-pria lei) a determinada relação jurídica; antes exige que a lei forneça os elementos essenciais para a construção do sentido próprio tipológico.

34 Aqui vertemos a visão de José de Oliveira Ascensão, in A tipicidade dos direi-tos reais, s/ ed., Lisboa, 1968, p. 56 e seg. que refere que para que se esteja perante sub-tipos é “indispensável que a figura de que os pretensos sub-tipos derivam tam-bém possa ser por sua vez utilizada na criação de figuras jurídicas”.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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pressupondo todos os conceitos recortados na parte geral35-36. A es-truturação do regime jurídico do contrato de seguro encontra-se seg-mentada em três grandes áreas temáticas: o regime comum (título I), o seguro de danos (título II) e o seguro de pessoas (título III). O regime comum (arts. 1.º a 122.º) congrega as normas (em princípio) aplicáveis a todos os contratos de seguros. No título II (arts. 123.º a 174.º), baliza-se o objecto dos contratos de seguro de danos37 e apontam-se as suas regras próprias. O título III (arts. 175.º a 217.º) recorta o âmbito dos seguros de pessoas e estabelece as respectivas soluções nor-mativas. O seguro de pessoas abarca o seguro de vida (arts. 183.º a 209.º), o seguro de acidentes pessoais (arts. 210.º a 212.º) e o seguro de saúde (arts. 213.º a 217.º), contendo a LCS disposições comuns às três modalidades (arts. 175.º a 182.º) e normas privativas para cada uma.

A própria lei enuncia a pertença do seguro de saúde aos se-guros de pessoas no art. 175.º da LCS: “O contrato de seguro de pessoas compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa”.

35 Assim determinam as regras da metodologia da interpretação jurídica, in casu, o elemento sistemático da interpretação. Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Intro-dução ao estudo do Direito, vol. 1, 3ª tiragem, s/ ed., Lisboa, 1990, pp. 173-187, sobre-tudo uma passagem da página 177 sobre o elemento sistemático da interpretação das leis onde pode ler-se: “o elemento sistemático decorre da integração da lei interpretada num sistema de preceitos. Cada preceito não é uma ilha isolada, não vive por si, enquadra-se num conjunto com princípio, meio e fim. (…) A relacionação do preceito interpretando com o conjunto – a epígrafe que o precede; os textos que estão imediatamente antes e depois (contexto), aqueles que vêm mais longe (lugares paralelos) – tudo isso serve não raro para esclarecer a norma.”.

36 Para mais desenvolvimentos sobre interpretação da lei, vide a. castanHeira neves, Metodologia jurídica, Problemas fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 1993 e A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 4ª, Coimbra Editora, 2009.

37 Definindo o artigo 123º que os contratos de seguros de danos são os respei-tantes a “coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais”.

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E atenta a inserção sistemática do contrato de seguro de saú-de na LCS, ser-lhe-ão aplicáveis comandos dos três níveis normati-vos do diploma: as regras gerais do contrato de seguro, as dispo-sições comuns dos seguros de pessoas e as soluções próprias do seguro de saúde. Sem prejuízo, o quadro normativo aplicável ao seguro de saúde38 há-de conformar-se ainda com as regras gerais dos contratos do Código Civil, as restrições de ordem pública39, os ditames de diplomas avulsos40, os comandos legais do regime dos Contratos Celebrados à Distância e Fora do Estabelecimento Comercial41-42 e as soluções vertidas no Regime Jurídico das Cláu-sulas Contratuais Gerais43_44 e na Lei de Defesa do Consumidor45_46. Sob a epígrafe Remissão para diplomas de aplicação geral, o art. 3.º da LCS convoca expressamente os diplomas reguladores dos contratos de adesão, da contratação à distância e das relações de consumo e estabelece que o regime jurídico do contrato de

38 E bem assim ao contrato de seguro em geral (v. artigo 4º).39 Com particular destaque para as restrições do artigo 280.º do Código Civil

que dita a nulidade de um negócio jurídico “contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes” ou “cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”.

40 De que é exemplo a Lei n.º 46/2006, de 28 de Agosto que proíbe a discrimina-ção em razão da deficiência e da existência de risco agravado de saúde e natura-liter todos os comandos constitucionais.

41 Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2014, de 28 de Julho e pelo Decreto-Lei n.º 78/2018, de 15 de Outubro).

42 Consultar antónio Pinto monteiro, «O Novo Regime da Contratação à Distân-cia – Breve Apresentação» e Paulo mota Pinto, «O Novo Regime Jurídico dos Con-tratos à Distância e dos Contratos Celebrados Fora do Estabelecimento Comercial», ambos in Estudos de Direito do Consumidor, N.º 9, 2015, Edição Especial, pp. 11-18 e pp. 51-91 respectivamente e joão Pedro Pinto-ferreira e jorge morais carvalHo, Contratos Celebrados à Distância e Fora do Estabelecimento Comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, Almedina, Coimbra, 2014.

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seguro não prejudica a aplicação das regras sobre as matérias preditas47_48.43-44 45-46 47-48.

Afigura-se-nos particularmente relevante em matéria de segu-ro de saúde a imperatividade absoluta do dever de sigilo inscrito no art. 119.º, nos termos do qual, independentemente da concreta

43 Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (alterado pelo Decreto-Lei n.º 220/95, de 31 de Agosto; pela Rectificação n.º 114-B/95, de 31 de Agosto; pelo Decreto-Lei n.º 249/99, de 7 de Julho e pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro).

44 Consultar antónio Pinto monteiro, «O novo regime jurídico dos contratos de adesão/Cláusulas Contratuais Gerais», in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 62, n.º 1, Lisboa, 2002, pp. 111-141 e «Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais: Problemas e Soluções», in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogé-rio Soares, Coimbra, 2001, pp. 1103-1131; almeida costa/meneZes cordeiro, Cláusulas contratuais gerais. Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, Coimbra, 1986; inocêncio galvão telles, «Das condições gerais dos contratos e da Directiva europeia sobre as cláusulas abusivas», in «O Direito», Ano 127.º, 1995, pp. 297 e segs.; sousa ribeiro, Cláusulas contratuais gerais e o paradigma do contrato, Coimbra, 1990 e O problema do contrato. As cláusulas gerais e o princípio da liber-dade contratual, Coimbra, 1999, pp. 585 e segs..

45 Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (com as alterações introduzidas pela Rectifica-ção n.º 16/96, de 13 de Novembro; pela lei n.º 85/98, de 16 de Dezembro; pelo De-creto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril; pela Lei n.º 10/2013, de 28 de Janeiro e pela Lei n.º 47/2014, de 28 de Julho).

46 Por todos, sobre o direito do consumidor, ver antónio Pinto monteiro, «Sobre o Direito do Consumidor em Portugal», in Revista Sub Iudice, N.º 24 (Janeiro/Março 2003), pp. 7-13 e «Sobre o Direito do Consumidor em Portugal e o Anteprojecto do Código do Consumidor», in Estudos do Instituto do Direito de Consumo, Volume III (2006), pp. 37-55.

47 No texto do artigo 3.º da LCS lê-se que “O disposto no presente regime não prejudica a aplicação ao contrato de seguro do disposto na legislação sobre cláu-sulas contratuais gerais, sobre defesa do consumidor e sobre contratos celebrados à distância, nos termos do disposto nos referidos diplomas.”.

48 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-3-2001, CJ S, ano IX, tomo 1, p. 154 e Pedro romano martineZ, Direito dos Seguros, Principia, p. 78.

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celebração ou não do contrato, da invalidade deste ou mesmo após a sua cessação, o segurador tem a obrigação de guardar se-gredo sobre toda a informação a que tenha acedido no âmbito da celebração ou execução do contrato de seguro. Mais o dever de confidencialidade “impende também sobre os administradores, tra-balhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respectivas funções.” (n.º 2 da citada norma legal).

Por banda das normas relativamente imperativas, aplaude-se que um dos preceitos legais que poderá afastar-se apenas em termos mais vantajosos para o tomador do seguro é o que esta-belece a subsistência (limitada) da cobertura após a cessação do contrato. Determina o art. 217.º que “Em caso de não renovação do contrato ou da cobertura e não estando o risco coberto por um contrato posterior, o segurador não pode, nos dois anos subsequen-tes e até que se mostre esgotado o capital seguro no último perío-do de vigência do contrato, recusar as prestações resultantes de doença manifestada ou outro facto ocorrido na vigência do con-trato, desde que cobertos pelo seguro”. Para tanto, “o segurador deve ser informado da doença nos 30 dias imediatos ao termo do contrato, salvo justo impedimento”. É de assinalar, pois, a possibili-dade de convenção de um regime mais favorável para o tomador do seguro após a cessação do contrato e que esta hipótese não é derrogável por acordo.

O regime normativo do contrato de seguro de saúde recorta-se, sic, num exercício de convocação articulada dos campos de regulação acima apontados, obedecendo às regras de hierarquia e prevalência das leis, com especial atenção à máxima lex specia-lis derrogat lex generalis49-50.

49 Cfr. fernando andrade Pires de lima e João de matos antunes varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, s/ ed., pp. 71-87 e 105-110.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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III.2 Noção

50A epígrafe do art. 213.º anuncia uma definição de seguro de saúde que o texto da norma, afinal, não faz. Esta opção do legislador evidencia que o conceito de seguro de saúde traduz uma realidade jurídica material complexa e em rápida mutação que postula, por isso, uma construção doutrinária aberta. Rigorosa, mas não rígida.

A noção de seguro de saúde que encontramos na LCS é, pois, uma visão que se afasta da delimitação conceptual-subsuntiva pura. Vejamos como o referido preceito legal (art. 213.º da LCS) diz que “No seguro de saúde, o segurador cobre os riscos relacionados com a prestação de cuidados de saúde”. Id est, o legislador deixa um apon-tamento de luz sobre o tipo de cobertura aqui compreendida, por re-missão para o conteúdo contratual, por remissão para o que as partes, dentro deste âmbito, hão-de convencionar em cada caso. A norma concede, assim, assinalável amplitude à autonomia privada, remeten-do “no essencial, para o convencionado pelas partes no contrato”51.

A construção de um conceito de contrato de seguro de saúde pressupõe uma unidade de sentido jurídico-normativo precipitada dos elementos e por referência ao tipo contratual do seguro. Pré-or-denada, portanto, aprioristicamente a estoutro núcleo normativo, a partir do qual se alcançará uma compreensão do contrato de

50 E não perdendo de vista que a LCS contém um conjunto de normas privati-vas para o seguro de saúde a solicitar uma leitura cuidada, atendendo a que são normas especiais, “preceitos que, regulando um sector relativamente restrito de ca-sos, consagram uma disciplina nova, mas que não está em directa oposição com a disciplina geral”, como nos ensinam os Mestres Pires de lima e Antunes Varela, em Noções…, ob. cit., p. 79.

51 Nas palavras de josé alves de brito, in Pedro Romano Martinez [et alt.], Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2011, 2ª edição, p. 614.

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seguro de saúde por permeação à realidade fértil das relações ju-rídico-materiais e por aferição de pertença à fisionomia do tipo do contrato de seguro em geral52-53.

A montante da definição de seguro de saúde, importa respon-der à questão da qualificação de um contrato como contrato de seguro. Questão muito importante num tempo em que abundam os denominados planos de saúde e aos quais os tomadores ou be-neficiários se referem como seguros de saúde, sem que por vezes o sejam verdadeiramente.

Assim, à pergunta sobre se determinado plano de saúde é ou não um verdadeiro seguro de saúde, a resposta será afirmativa ou negati-va em função da conformidade ou desconformidade do conteúdo do contrato com os deveres típicos que integram o objecto imediato do contrato de seguro em geral, enunciados no art. 1.º da LCS54, sabendo

52 Assim também, mutatis mutandis, a respeito do seguro de vida, a reflexão de maria inês de oliveira martins, O seguro de vida…, op. cit., pp. 99-122, sobretudo a afirmação da Autora segundo a qual “não queremos implicar que baste a considera-ção do plano das normas legais: estas terão que ser projectadas no todo do sistema jurídico, não só para discernir a função prático-jurídica que, no seu conjunto, visam implementar, como para alcançar os princípios que as informam. Relevam aqui não só os princípios fundamentais, como a jurisprudência e a dogmática que esclarecem o sentido do tipo; por último, releva provindo do estrato da realidade jurídica, o tipo social correspondente ao tipo legal – desde logo, porque é normalmente por referên-cia a este que as partes contratam. E não só; questão a não perder de vista no recorte do tipo contratual é a sua contraposição com os tipos, tanto legais como sociais, que, sendo adjacentes, logram que lhes seja reconhecido um sentido autónomo.”.

53 Sobre a questão da construção de uma identidade tipológica, vide também Maria Helena Brito, O contrato de concessão comercial, Almedina, Coimbra, 1990, pp. 166-170 e Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 63 e seg..

54 Em idêntico sentido, cfr. Francisco Luís Alves, «O regime do contrato de seguro de saúde no direito português», in Forum, Revista Semestral do Instituto de Seguros de Portugal, Ano XIII, n.º 27, Julho 2009, pp. 7-31, disponível em https://www.asf.com.pt/NR/rdonlyres/13F9A0DA-E4A7-488A-9F98-5F62FD8FBD09/0/forum27_web.pdf.

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que do lado do segurador, existe o dever de cobrir “um risco determina-do”, “obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato” e que o tomador do seguro se obriga “a pagar o prémio correspondente”.

A proposital opção legislativa em não apresentar um conceito geral abstracto55 de seguro de saúde56 concede aos contraentes ampla margem de conformação do regime do contrato com a sua vontade, em homenagem ao princípio da liberdade contratual57-58.

55 Por oposição a conceito concreto e a conceito funcional. Cfr. orlando de carvalHo, Critério e estrutura do estabelecimento comercial, I, O problema da em-presa como objecto de negócios, s/ed., Coimbra, 1967, pp. 873-878, Pedro Pais de vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 27-57 e Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2005, pp. 506 e ss..

56 Em coerência, aliás, com a não definição outrossim de contrato de seguro, como vimos supra.

57 Sublinhamos as palavras de carlos alberto da mota Pinto que ensina que “Um outro princípio fundamental do direito civil português é o princípio da liberdade con-tratual (art. 405º). O seu fundamento constitucional mais explícito encontra-se no ar-tigo 61º da Constituição (…) A produção de efeitos jurídicos (constituição, modifica-ção e extinção de relações jurídicas) resulta principalmente, no tocante à actuação humana juridicamente relevante, de actos de vontade – maxime declarações de vontade – dirigidos precisamente à produção dos referidos efeitos. Os actos jurídicos cujos efeitos são produzidos por força da manifestação de uma intenção e em coin-cidência com o teor declarado dessa intenção, designam-se por negócios jurídicos. O negócio jurídico é uma manifestação do princípio da autonomia da vontade ou princípio da autonomia privada, subjacente a todo o direito privado. A autonomia da vontade ou autonomia privada consiste no poder reconhecido aos particulares de auto-regulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua esfera jurídica. Significa tal princípio que os particulares podem, no domínio da sua convivência com os outros sujeitos jurídico-privados, estabelecer a ordenação das respectivas relações jurídicas. Esta ordenação das suas relações jurídicas, este autogoverno da sua esfera jurídica, manifesta-se, desde logo, na realização de negócios jurídicos, de actos pelos quais os particulares ditam a regulamentação das suas relações, consti-tuindo-as, modificando-as, extinguindo-as e determinando o seu conteúdo.” (in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra Editora, 1996, pp. 88-90).

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que encontra no contrato de seguro um campo de aplicação privilegiado.58

Uma convenção cujos efeitos jurídicos que tende a produzir correspondam ao conteúdo típico do contrato de seguro e que in-cidam sobre riscos relativos à prestação de cuidados de saúde con-figurará, em princípio, um autêntico contrato de seguro de saúde.

Não perdendo de vista que o tipo não se confunde com o caso concreto, outra questão a que é necessário responder para enquadrar ou não determinada relação jurídico-contratual no tipo

58 Destacamos outrossim os ensinamentos de mário júlio de almeida costa a res-peito do princípio da liberdade contratual, referindo que “Uma das características que assinalámos ao direito das obrigações foi a da autonomia da vontade ou liber-dade negocial, que traduz a amplitude deixada aos particulares para disciplinarem os seus interesses. Esta faculdade de auto-regulamentação exprime-se, aqui, no prin-cípio da liberdade contratual ou da liberdade de contratar. O Cód. Civ. Afirma-o com toda a nitidez no pórtico das normas que dedica aos contratos: «Dentro dos li-mites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver» (art. 405º, n.º 1). A regra consiste, pois, em os particulares, na área dos contratos, poderem agir por sua própria e autónoma vontade. Os limites que a lei imponha constituem excepção. Do referido princípio derivam várias consequên-cias: os contraentes são inteiramente livres, tanto para contratar ou não contratar, como na fixação do conteúdo das relações contratuais que estabeleçam, desde que não haja lei imperativa, ditame de ordem pública ou bons costumes que se oponham (art. 405º) (…) Acrescente-se que o princípio da autonomia da vontade assume particular importância quanto à interpretação e integração dos contratos (art. 236º a 239º) (…) A proposição legislativa essencial é, sem dúvida, no art. 405º, n.º 1, a que assinala às partes «a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contra-tos» (…) [e] convirá explicitar o pensamento legislativo que, no seu máximo âmbito, comporta analiticamente três aspectos. Assim: a liberdade de celebração – quer dizer, é à iniciativa privada que pertence a decisão de realizar ou não o contrato; a liberdade de selecção do tipo contratual – no sentido de que cabe à vontade dos particulares a escolha do contrato a celebrar, tipificado na lei ou qualquer outro; e a liberdade de estipulação – que se reconduz à faculdade de os contraentes mode-larem, de acordo com os seus interesses, o conteúdo concreto da espécie negocial eleita.” (in Direito das Obrigações, 9ª edição revista e aumentada, Almedina, Coim-bra, 2003, pp. 206-207).

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contratual do seguro e do seguro de saúde refere-se ao risco, como elemento essencial na identificação tipológica do contrato con-creto e, em particular, na correspondência tipológica com a cate-goria do contrato de seguro.

III.3 Delimitação do tipo

III.3.1 A importância do risco

Sabemos já que o recorte da figura do contrato de seguro é alvo de acesa controvérsia doutrinária seja pela referência histori-camente volúvel à sua função económico-social59 seja pela hetero-geneidade na metodologia de abordagem. A doutrina maioritária recorta este tipo contratual por identificação dos seus elementos essenciais e existe um certo consenso dogmático e jurisprudencial em relação a três notas caracterizadoras principais: o risco, a em-presa e o prémio60. O risco (a sua transferência para o segurador) é, nesta sede, concebido enquanto possibilidade de um evento futuro e incerto susceptível de determinar a atribuição patrimonial do se-gurador. A empresa é entendida no sentido de entidade organiza-cional que desenvolve profissionalmente a actividade seguradora. O prémio corresponde à retribuição paga pelo tomador do seguro.

59 Cfr. carlos ferreira de almeida, «A função económico-social na estrutura do contrato», in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007.

60 Ilustrativamente, vide j. c. moitinHo de almeida, O Contrato de seguro no Di-reito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1971, pp. 19 e ss. e cesare vivante, Trattoto di Diritto Commerciale, vol. IV, Le Obbligazioni (Contratti e prescri-zione), Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, Milão, 1929, pp. 424 e ss.. A nossa jurisprudência segue abundantemente o pensamento de Moitinho de Almeida.

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Nestes termos, o contrato de seguro representa uma convenção pela qual o segurador, mediante retribuição paga pelo tomador do seguro, cobre (assume) um risco determinado, obrigando-se a satis-fazer uma indemnização do dano ou um valor convencionalmente estipulado, se o evento a que o risco se reporta se verificar (sinistro).

Portanto, o ponto de partida situa-se nesta interpelação tipoló-gica que leva o intérprete e aplicador da lei a percorrer todo o iter legis para compreender o substrato de construção do conceito. E a compreensão do sentido normativo do seguro de saúde, enquanto modalidade legal do tipo geral do contrato de seguro, impõe que se defina uma moldura conceptual como prius metodológico para adequada regulamentação das múltiplas gradações que a reali-dade há-de trazer até à prática jurídica.

O contrato de seguro de saúde corresponde a um sub-tipo que a própria lei categoriza e regula (arts. 213.º a 217.º da LCS), porém, desacompanhada de uma descrição legal completa do tipo con-tratual do contrato de seguro. Rectior, desacompanhada de um conceito classificatório61.

Na verdade, o art. 1.º da LCS desenha o tipo contratual do se-guro, não ao jeito de uma definição conceptual-subsuntiva, de so-matório de elementos teóricos necessários para o enquadramento normativo, mas sim em jeito de descrição62. Veja-se que o texto da norma dispõe que “Por efeito do contrato de seguro, o segurador

61 Por contraposição a conceito ordenatório. Cfr. Pedro Pais de vasconcelos, Contratos…, op. cit., p. 27 e nota 45.

62 Como nos diz miguel teixeira de sousa, “o tipo ordena uma certa realidade de acordo com certos arquétipos, modelos ou paradigmas (…) o tipo apela necessaria-mente a uma valoração, já que ele é sempre um ponto de partida para uma ava-liação ou comparação” (cfr. Linguagem e Direito, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 287-288).

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cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente” e é esta descrição, por reporte aos efeitos contratuais do tipo, que sufraga uma compreensão tipológica elástica, indicando apenas o núcleo comum (de sentido) a todos os contratos de seguro.

A adição de características próprias do seguro de saúde per-mite a construção de um totus de sentido normativo, postulando um diálogo permanente com a realidade63. Com efeito, a riqueza de sentido que o contrato de seguro comporta solicita uma leitura tipológica mais flexível com vista à resposta que surge no momento da decisão de aplicação ou não do regime do contrato de seguro às convenções de direitos e obrigações que os sujeitos firmam64. Donde, a compreensão da unidade de sentido do regime do se-guro de saúde far-se-á, em primeiro lugar, por enquadramento na unidade do regime previsto para o tipo geral65.

A indicação da essencialidade de sentido especificamente di-ferenciadora do que é um verdadeiro seguro de saúde tem como pano de fundo o amplo espectro de elementos caracterizadores

63 maria inês de oliveira martins sustenta que os tipos jurídicos estruturais “são, antes de mais, «tipos normativos», nascendo da realidade e com esta mantendo um laço, mas sendo simultaneamente portadores de um dever-ser. O legislador colhe normalmente os tipos jurídicos estruturais da realidade, onde estes se perfilam como tipos reais normativos e, mantendo-os na sua conformação e abertura ou modifican-do as notas que os identificam ou tornando-os menos flexíveis, acolhe-os na lei” (in O Seguro de Vida…, cit., p. 105).

64 Seguimos de perto o pensamento de José de Oliveira Ascensão, A tipicida-de…, cit., pp. 34-36, que sustenta que, apesar de o tipo não se confundir com cada realidade jurídica-material concreta, o tipo situa-se numa “posição intermédia, entre o conceito de referência e o caso individual”.

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que65podem conformar esta figura contratual66, pelo que importa a presença apenas dos essentialia do contrato de seguro de saú-de, por uma questão de síntese e sistematização da sua análise e identificação.

Neste sentido, e partindo do texto da lei, o art. 213.º dispõe que “No seguro de saúde, o segurador cobre riscos relacionados com a prestação de cuidados de saúde”, ou seja, a nota específica do seguro de saúde é a delimitação do objecto do risco à “prestação de cuidados de saúde”, sobrelevando de interesse o elemento ris-co, o qual transita da descrição do tipo (contrato de seguro) para a descrição do sub-tipo (seguro de saúde)67.

Ora, sendo o contrato de seguro um campo de aplicação pri-vilegiado do princípio da autonomia privada, como vimos já, com-preende-se a opção legislativa de abertura do sub-tipo ao sentido jurídico que encerra cada caso/contrato concreto. Na verdade,

65 No mesmo sentido, cfr. isabel ribeiro Parreira, «Algumas reflexões sobre o tipo, a propósito dos tipos legais contratuais», in Homenagem ao Prof. Doutor André Gon-çalves Pereira, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2006, p. 984 na sua afirmação de que o “tipo vive na dialéctica entre as globais previsão e esta-tuição da norma” e Maria Inês de Oliveira Martins, O Seguro de Vida, cit., p. 106, que refere que “a abordagem tipológica impõe que se colha o tipo «no todo» da regu-lação respectiva, que solidariza hipóteses e estatuições respectivas e as projecta no todo do sistema jurídico”.

66 Aqui acolhemos o pensamento de maria inês de oliveira martins, a respeito do seguro de vida, em que a autora sustenta que “Se o tipo não abstrai analiticamente, mas enquadra sincreticamente, o seu reconhecimento postula uma aproximação sucessiva da sua «imagem global de sentido» à «imagem global de sentido» do caso concreto” – cfr. ob. cit. O Seguro de Vida…, cit., p. 107.

67 Assim, como afirma Pedro Pais de vasconcelos, Contratos…, cit., p. 48-49 “Quanto mais significativa uma característica for, mais imprescindível ela será e, por-tanto, mais próxima de um processo conceptual será a sua utilização”.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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a noção de contrato de seguro de saúde recebida pelo art. 213.º da LCS, de conteúdo tão amplo, remete necessariamente para o exacto conteúdo que as partes convencionem dentro do objecto «cuidados de saúde».

Esta visão comporta as duas modalidades de seguro de saú-de que a doutrina tradicionalmente assinala: seguro de doença e seguro de despesas médicas. O seguro de doença é o mais clássico modelo de seguro de saúde, em que o segurador cobre os riscos de-correntes da modificação do estado de saúde involuntária do tomador do seguro. Como realidade mais recente, em crescente expansão e elasticidade quanto ao conteúdo, encontramos o seguro de despesas médicas, o qual tem por objecto os custos associados a tratamentos de saúde e outros relacionados com a prestação de cuidados de saúde lato sensu68-69-70.

Então, dentro dos limites legais71, a vontade das partes é sobe-rana na conformação do conteúdo do seguro de saúde. É este o

68 Verbi gratia, parto, ortodontia, cirurgia estética e reconstrutiva, etc.69 Actualmente o interesse da distinção entre contrato de seguro de doença e

contrato de seguro de despesas médicas é meramente doutrinal. Contudo, no an-terior regime legal do contrato de seguro, a delimitação entre seguro de doença e seguro de despesas médicas tinha, na óptica de autores de referência, implicações ao nível do regime legal aplicável. Moitinho de Almeida, por exemplo, defendia que o seguro de doença qualificar-se-ia como seguro de pessoas em determinadas situações e como seguro contra danos quando relativo ao pagamento de despesas médicas (cfr. J. C. Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro…, op. cit., p. 402).

70 Em Espanha, por exemplo, a lei do contrato de seguro (Lei n.º 50/1980, de 8 de Outubro) distingue, no artigo 105º, entre seguro de doença e seguro de depen-dência (autonomamente regulado na Lei n.º 39/2006, de 14 de Dezembro).

71 Dentro dos limites da lei, como o artigo 405º do Código Civil genericamente enuncia. Quanto ao contrato de seguro, salientamos o limite previsto no artigo 43.º da LCS de “interesse digno de protecção legal”, sob pena de nulidade do contrato

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sentido da noção de seguro de saúde do art. 213.º, em linha com o largo âmbito objectivo traçado pelo art. 175.º para os seguros de pessoas, com o princípio geral da supletividade das regras da LCS enunciado no art. 11.º e com a delimitação do conceito de contrato de seguro do art. 1.º.

Mas apesar da ampla liberdade das partes na conformação do conteúdo do seguro de saúde, o certo é que nem todos os con-tratos referentes a serviços e/ou despesas de saúde configuram ver-dadeiros seguros de saúde.

Num contexto actual de elevada contratação em massa, con-tratação à distância e através de cláusulas contratuais gerais, o particular muitas vezes julga celebrar um contrato de seguro, sim-plesmente porque o contrato celebrado tem por objecto a com-participação de despesas de saúde.

A doutrina e a jurisprudência europeias previnem contra o peri-go de se fazer crer junto dos consumidores (tomadores de seguros) que é possível comprar um seguro72, neles inculcando a ideia que celebrar um contrato de seguro de saúde equivale a comprar a comparticipação financeira de cuidados de saúde.

– preceito legal em grande medida tributário da sanção de nulidade prevista no art. 280.º do Código Civil para os negócios jurídicos com objecto contrário à lei, à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes.

72 Vide por todos ernst steindorff, La déclaration des circonstances ayant une influence sur l’appréciation et l’acceptation du risque dans la proposition de directi-ve de la commission sur le droit du contrat d’assurance, L’Harmonisation du droit du contrat d’assurance dans la CEE, Colloque organizé par la Licence en Droit et Eco-nomie des Assurances sous les áuspices de la CEE, Université Catholique de Louvain, 27-28 novembre 1980, Bruylant, Bruxelles, 1981, sobretudo p. 267.

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Urge traçar claramente a fronteira entre o que é um seguro de saúde verdadeiro e seguros de saúde aparentes, com as con-sequências daí advenientes que se prendem, no que interessa à presente reflexão, com a protecção que a lei concede ao tomador do seguro e ao segurado, no âmbito de aplicação da LCS73.

A abertura da lei à realidade prática, decorrente da descrição tipológica por precipitação dos elementos essenciais, depõe a favor de uma construção de um tipo jurídico do contrato de seguro para que se possa, a partir daí, delimitar o conceito de seguro de saúde também enquanto unidade de sentido normativo74. Mais se apela a um caminho discursivo permeável aos cambiantes dos ca-sos concretos, mas sem perda de segurança jurídica, por via do rigor de um juízo de tipicidade75. A flexibilidade própria da abor-dagem tipológica avalia a pertença ao tipo contratual, não tanto pela busca rígida de identidade entre o caso e o tipo, mas antes pela indagação do sentido jurídico que a realidade encerra76.

A riqueza das relações jurídico-materiais sublinha a especifi-cidade das soluções da LCS, sendo certo que não correspondem

73 Sem prejuízo da protecção da legislação de consumo, desde logo do regime das cláusulas contratuais gerais, da contratação à distância e da própria lei de de-fesa do consumidor.

74 Como salienta Maria Inês de Oliveira Martins, “Os elementos essenciais do contrato perfilam-se, então, como condição necessária e suficiente da aplicação do regime jurídico correspondente ao tipo contratual em causa, em termos de ter-tium non datur” (in O Seguro de Vida…, op. cit., p. 100).

75 Acerca da mobilização do tipo legal e do tipo social correspondente, vide antónio Pinto monteiro e carolina cunHa, “Sobre o contrato de cessão financeira ou de «factoring»”, in Volume Comemorativo do 75º tomo do BFDUC, 2003, pp. 521-523, em que os autores defendem uma convocação dialógica dos tipos legal e social, no sentido de o tipo social corresponder ao modelo de regulação que se manifesta na realidade da prática jurídica de um modo consistente e reiterado.

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àquelas alcançadas pela76aplicação das normas da lei de defe-sa do consumidor ou dos contratos de adesão, justamente pelo sentido intencional normativo próprio do âmbito dos contratos de seguro. Exemplo de regra privativa da LCS é o art. 27.º que esta-belece o valor declarativo do silêncio do segurador como declara-ção de aceitação do contrato ou o n.º 2 do art. 16.º que consagra um regime de nulidade atípica, tutelando a posição do tomador de boa-fé que contrate um pretenso seguro com um segurador não legalmente autorizado a exercer a actividade seguradora77: um tal contrato é nulo, mas a lei determina que se lhe apliquem os efeitos do contrato de seguro no que respeita aos direitos que para o tomador resultariam se se tratasse de um negócio válido. A protecção do tomador do seguro ou do segurado paralisa unila-teralmente os efeitos retroactivos e restitutivos típicos da nulidade, os quais só operam em relação ao tomador, porque o segurador permanece vinculado às obrigações que para ele resultariam do contrato e da LCS. Por banda do regime particular do seguro de saúde, destacam-se o art. 214.º a impor a obrigatoriedade de menções especiais na apólice do seguro de saúde (respeitantes às condições de cobertura em cada ano de vigência do contrato e às condições de indemnização em caso de não renovação); o art.

76 Na esteira da filosofia de Hegel - segundo o qual o conceito puro representa “uma mera adição de notas pensadas isoladamente“ -, a doutrina alemã trouxe para o Direito a visão das figuras contratuais como verdadeiros tipos, em ruptura com a concepção daquelas como simples conceitos. E este pensamento fez cami-nho na doutrina dos vários ordenamentos jurídicos europeus. Cfr. giorgio de nova, Il tipo contrattuale, CEDAM, Pádua, 1974, pp. 122 e seg., Karl Larenz, Metodologia…, op. cit., pp. 652-656 e José de Oliveira Ascensão, A tipicidade…, cit., pp. 22 e seg.

77 O Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Atividade Seguradora e Res-seguradora é a Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro, alterada pelo Decreto-Lei n.º 127/2017, de 9 de Outubro e pela Lei n.º 7/2019, de 16 de Janeiro.

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215º que exclui expressamente do âmbito do seguro de saúde a obrigação de o tomador ou o segurado comunicar o agravamento do risco “relativamente a alterações do estado de saúde” e o art. 217.º que estabelece a regra da subsistência da cobertura nos dois anos seguintes à cessação do contrato.

Não perdemos de vista o elenco completo das notas carac-terizadoras do contrato de seguro por convocação do texto do art. 1.º da LCS, mas circunscrevemos a delimitação do âmbito do contrato de seguro de saúde por referência apenas aos elementos autónomos do tipo geral com destacada importância para o enquadramento no seguro de saúde.

Como dissemos já, a doutrina coincide na identificação de três notas essenciais recondutoras ao tipo contratual de seguro: a em-presa, o prémio e o risco78. O requisito de empresa foi sofrendo visões diversas trazidas da complexificação da actividade seguradora. Na verdade, esta nota é hoje reputada essencial à qualificação das relações jurídicas de seguro determinada pelo escopo de protec-ção do tomador do seguro. Nestes termos, ao segurador a lei exige hoje que seja legalmente autorizado a exercer a actividade segu-radora. É no índice de qualidade de uma actividade seguradora realizada de modo sistemático, organizado e de acordo com as leis das técnicas de seguros que se cifra este elemento do contrato de seguro que a LCS acolhe no n.º 1 do art. 16º. O prémio constitui a

78 Na doutrina estrangeira, vide maurice Picard e André besson, Les assurances terrestres en droit français, Librairie Générale du Droit et de Jurisprudence, Paris, 1950, pp. 34 e ss.; cesare vivante, Trattato…, cit., pp. 424 e ss. e Hernst Bruck e Hans Möller, Kommentar zum Versicherungsvertragsgesetz und zu den Algemeinen Versicherungs-bedingungen unter Einschluss des Versicherungsvermittlerrechtes, Erster Band, Walter de Guyter & Co., Berlim, 1961, p. 96. Na doutrina portuguesa, cfr. por todos Moitinho de Almeida, O contrato de seguro…, cit., pp. 19 e ss.

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contrapartida devida pelo tomador do seguro, correspondendo a uma obrigação pecuniária e que se encontra em relação de de-pendência genética e funcional com a obrigação do segurador.

Claro está que o risco é o elemento com destacada autonomia e relevo para a ordenação de sentido de qualquer relação jurídica material ao tipo contratual do seguro. O risco identifica-se com a denominada matéria do contrato e não, em termos absolutos, com o objecto do contrato79. Em sentido técnico-jurídico, na noção de objecto do negócio jurídico co-existem os efeitos a que o negócio tende (objecto imediato ou conteúdo) e o quid sobre o qual incidem aqueles efeitos jurídicos (objecto mediato ou objecto stricto sensu)80.

Na verdade, o risco, nos termos em que a lei se exprime, quer na delimitação do contrato de seguro quer na descrição do contrato de seguro de saúde, não se reconduz aos efeitos a que o contrato de se-guro tende (objecto imediato) nem ao quid sobre o qual os efeitos in-cidem (objecto mediato). Quanto ao objecto mediato, o contrato de seguro não se dirige a produzir efeitos jurídicos que incidam sobre o ris-co, porque o risco (que o segurador cobre) existe independentemente do contrato de seguro. O segurador não assume o risco de outrem, não é essa a obrigação que para si resulta do contrato. O segurador obriga-se, sim, a realizar a prestação resultante de um sinistro relacionado com o risco (do tomador do seguro ou do segurado) e esta é a sua obriga-

79 A doutrina defende que a percepção do risco como objecto do contrato de seguro faz sentido do ponto de vista económico, já em sentido jurídico, vale como metáfora. Cfr. gianguido scalfi, «Alea», in Digesto delle Discipline Privatistiche, Sezio-ne Civile, I, UTET, Turim, 2004, pp. 254-255 e enrico gabrielli, «Alea», in Enciclopedia Giuridica, Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, Roma, 2007, p. 4.

80 Cfr. carlos alberto da mota Pinto, Teoria Geral…, cit., pp. 547-553 e manuel a. domingues de andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 327 e ss.

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ção contratual típica, razão por que na identificação dos deveres típi-cos, a lei pretere a ideia material de risco, o que vale por dizer que no âmbito do contrato de seguro releva o risco em sentido formal.

O que fica dito apenas clarifica o alcance da referência do contrato de seguro ao risco, ficando a cobertura deste risco depen-dente da “ocorrência do evento aleatório previsto no contrato”, confirmando outrossim o carácter aleatório do seguro.

Dito isto, sublinhamos que o papel do risco é absolutamente de-cisivo na configuração de um contrato como contrato de seguro, situando-se, reiteramos, entre as notas essenciais do seguro como tipo contratual. Assume-se como elemento precipitado na estrutura das prestações obrigacionais das partes e é relevantíssimo, portanto, como elemento que influi directamente na modelação do objecto do contrato de seguro. A centralidade que o risco assume nos con-tratos de seguro faz dele denominador comum no recorte dogmáti-co do tipo e ponto axial entre o contrato e o evento aleatório81.

As normas da LCS apontam o risco como condição de vali-dade do contrato (art. 44.º, n.º 1) e, quando o seguro se reporta a riscos futuros, como condição de eficácia (art. 44.º, n.º 3). O risco corresponde à materialização do evento aleatório que o contrato prevê, servindo-lhe de referência, sendo, contudo, independente da sua verificação82-83.

A nossa lei configura o risco como hipótese de lesão de um interesse digno de tutela do Direito, na interpenetração que esta-

81 Vide giovanni maresca, Alea contrattuale e contrato di assicurazione, Gianni-ni Editore, Nápoles, 1979, pp. 32-33.

82 A doutrina converge nesta visão e, em reforço deste entendimento, autores há que apontam a possibilidade de celebração de diversos contratos de seguro relativamente ao mesmo evento aleatório como significativa da independência dos conceitos de risco e sinistro. Cfr, v.g., véroniQue nicolas, Essai d’une nouvelle analyse

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belece entre83risco e interesse84 - “interesse digno de protecção le-gal relativamente ao risco coberto”, como diz o n.º 1 do art. 43.º. Em termos objectivos, o evento futuro e incerto há-de ser apto a produzir um dano, ou seja, uma desvantagem na esfera do titular do interesse seguro, sendo que apenas as consequências negativas se têm por contratualmente relevantes85.

Esta precisão prende-se com a possibilidade que a doutrina aponta de o risco poder referir-se a eventos que, numa perspectiva subjectiva, possam representar efeitos positivos. No seguro automó-vel, pense-se num acidente de viação que resulte na destruição objectiva do veículo, mas que subjectivamente seja positiva para o segurado-proprietário, por exemplo, porque não tinha apreço pelo objecto. Mais impressivamente, no seguro de saúde, admite-se que o risco coberto inclua intervenções cirúrgicas estéticas, as quais re-presentam objectivamente uma lesão na esfera jurídica do titular do interesse seguro, mas com todos os efeitos positivos subjectivos que tal evento representará para o segurado.

du contrat d’assurance, Librairie générale du droit et de jurisprudence, E.J.A. et Vé-ronique Nicolas, Paris, 1996, pp. 55-60.

83 O risco é configurado como sujeição à hipótese de ocorrência do evento. Nas palavras de Calvão da Silva, a “possibilidade de verificação do sinistro (…) cons-titui o risco regulável” e o risco apresenta-se verdadeiramente como “pressuposto necessário de um seguro” - cfr. João calvão da silva, «Seguro de crédito», in Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina, Coimbra, 1999., p. 108.

84 Vide moitinHo de almeida, O contrato de seguro…, op. cit., pp. 18 e ss., na esteira da doutrina alemã (v. Hans möller, Moderne Theorien zum Begriff der Versi-cherung und des Versicherungsvertrages, in Atti del Primo Congresso Internazionale di Diritto delle Assicurazioni, Tomo Primo, Dott. Antonio Giuffrè Editore, Milano, 1963, p. 257).

85 Os defensores da teoria indemnizatória (da natureza jurídica do contrato de seguro) também acolhem esta ideia de impossibilidade de referência do risco a um evento aleatório neutro. Cfr. fernando sáncHeZ calero (coord.), Ley de Contrato de Seguro, Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 octubre, y a sus modificaciones, Editorial Aranzadi, Cizur Menor, 2005, pp. 36-38.

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Cristalizando, diremos que o risco é o sentido em que se pro-jecta a álea ínsita ao contrato de seguro e que o evento aleatório contratualmente possível e relevante tem de representar uma des-vantagem patrimonial para o segurado. Num verdadeiro contrato de seguro de saúde, o risco densifica-se como previsão contratual da possibilidade de o evento futuro e incerto relativo à necessida-de da prestação de cuidados de saúde acarretar consequências negativas para a esfera do titular do interesse seguro, ao que acres-cerá a concretização do risco em termos quantitativos (com critério de determinação ou de determinabilidade)86.

Cimentada a afirmação da essencialidade do risco no contra-to de seguro, importa caracterizar o risco (juridicamente) segurável, apontando-se-lhe tradicionalmente como notas cumulativas distin-tivas: (i) a previsão legal, (ii) a aleatoriedade, (iii) a licitude, (iv) a possibilidade, (v) a quantificabilidade, (vi) a previsibilidade e (vii) a acidentalidade.

Percorrendo cada uma das notas, temos que o risco, para ser juridicamente segurável, tem de corresponder a um dos ramos e modalidades de seguros legalmente previstos87 e ser objectivamen-te possível88. Exige-se outrossim que seja compatível com a ordem

86 Neste sentido, a respeito dos seguros de vida, Maria Inês de Oliveira Martins: “Em face dos seguros de vida, concretiza-se a categoria do risco como a possibili-dade de um evento futuro e incerto atinente à duração da vida humana trazer con-sequências desfavoráveis para a esfera do titular do interesse seguro. Num ulterior passo no sentido da sua concretização, resta-nos referir a sua vertente quantitativa. Esta interessa, sobretudo, ao segurador, que assume a face financeira das conse-quências associadas à verificação desse evento” – cfr. ob. cit da Autora O Seguro de Vida…, p. 273).

87 Cfr. josé vasQues, Contrato de seguro…, cit., p. 129.88 Cfr. abílio neto, Código Comercial, Código das Sociedades, Legislação Com-

plementar, Anotados, Lisboa, Ediforum, 2002, p. 284.

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pública89, por considerações de desvalor ético-jurídico que se es-tendem desde os requisitos legais relativos ao objecto negocial (art. 280.º do Código Civil) até às proibições expressas de modalidades e práticas de seguros da LCS (arts. 14.º e 15.º). Já a nota da quan-tificabilidade90, prende-se com dados económicos, sendo aponta-da pela doutrina como um elemento de facto relevante de direito, em decorrência do disposto n.º 3 do art. 15.º que manda aferir a licitude da recusa de um determinado seguro pelo segurador pelas “práticas e técnicas de avaliação, selecção e aceitação de riscos próprias do segurador que sejam objectivamente fundamentadas, tendo por base dados estatísticos e actuariais rigorosos considera-dos relevantes nos termos dos princípios da técnica seguradora”. Um risco previsível será um risco projectável por estipulação con-vencional, isto é, determinado ou determinável ex contratu91. O elemento porventura mais significativo do risco juridicamente re-gulável num contrato de seguro é o seu carácter aleatório, e de que a acidentalidade é reflexo e complemento92. A lei sanciona os sinistros causados dolosamente pelo titular do interesse seguro com a perda do direito à prestação a que o segurador contratualmente se obrigou (art. 46.º, n.º 2). Escapam a esta previsão legal os sinistros

89 Cfr. Hubert groutel, fabrice leduc e PHiliPPe Pierre, Traité du contrat d’assurance terrestre, LexisNexis, Paris, 2008, p. 86.

90 Cfr. Hubert groutel, fabrice leduc e PHiliPPe Pierre, Traité du contrat…, cit., p. 88.91 Nota em tudo semelhante à exigência de determinabilidade do objecto ne-

gocial do art. 280.º do Código Civil.92 No requisito de risco acidental, a doutrina sublinha a não cobertura de sinis-

tros intencionais. Sobre a aleatoriedade do risco, v. Pedro Pais de vasconcelos, D&O Insurance: O Seguro de Responsabilidade Civil dos Administradores e outros Dirigen-tes da Sociedade Anónima, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 40 e ss e J. C. moitinHo de almeida, O contrato de seguro…, cit., pp. 101 e ss.

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(meramente) voluntários por se entender que, pelo menos tenden-cialmente, a verificação do evento não é motivada apenas pela prévia celebração do contrato de seguro. No seguro de saúde esta precisão é significativa, porque torna possível que o contrato preve-ja a cobertura de riscos relativos a eventos voluntários como parto, (internamento para) realização de exames médicos, cirurgias esté-ticas e todos os actos relacionados com a prestação de cuidados de saúde desencadeados por vontade e por acção do titular do interesse seguro.

O carácter aleatório do risco é uma precipitação do conceito de álea em sentido técnico-jurídico que configura o risco como ele-mento que confere ao negócio o seu sentido jurídico.

Posicionado no eixo central do contrato de seguro, o risco deve referir-se a um evento (futuro e) incerto, mostrando-se a doutrina favo-rável à admissibilidade do mero risco putativo, isto é, o risco relacionado com um evento cuja ocorrência subjectivamente as partes desconhe-cem, embora possa já ter objectivamente acontecido93. A LCS também consagrou a cobertura de riscos putativos (n.º 3 do art. 44.º), preterindo a hipótese de desídia ou má-fé do titular do interesse seguro em favor dos argumentos relativos à função económico-social do contrato de seguro e das razões ético-jurídicas de premiação da boa-fé94.

Embora os consumidores em geral revelem uma percepção consistente dos elementos essenciais à qualificação de um contra-

93 Cfr. josé vasQues, Contrato de seguro…, cit., p. 130.94 Em homenagem à boa-fé como elemento distintivo do contrato de seguro,

uma parte da doutrina admite o risco putativo como risco segurável. Neste sentido, encontramos Hubert groutel, fabrice leduc e PHiliPPe Pierre, Traité du contrat d’assu-rance…, cit., p. 63-64. Em sentido mais restritivo, admitindo o risco putativo apenas para as situações em que as partes tivessem celebrado o contrato de seguro com

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to como contrato de seguro, a massificação destes contratos recla-ma uma atenção particular ao recorte do elemento risco, pelo que se impõe uma reflexão autónoma e mais profunda do mesmo.

E, na verdade, a doutrina sublinha incessantemente a impor-tância do risco, no sentido da sua essencialidade para a validade do próprio contrato de seguro enquanto tal. Calvão da Silva refere-se ao risco como “pressuposto necessário de um seguro”95 e Guerra da Mota afirma que “a existência do risco, isto é, da possibilidade futura e incerta do sinistro, é essencial à validade substancial do contrato de seguro: não há seguro sem risco”96.

A essencialidade do risco - e dos termos em que este deve verter-se no contrato - para o enquadramento das relações con-tratuais como seguros de saúde conduz-nos à reflexão sobre a im-portância da declaração inicial do risco que constitui um dever pré-contratual do tomador do seguro, sendo que a aceitação e

boa-fé, situa-se robert-josePH PotHier, «Traité du contrat d’assurance», in Oeuvres de R.-J. Pothier, contenant Les Traités du Droit français, Tome troisième, J. P. Jonker, Ode et Wondon, H. Tarlier, Bruxelas, 1830.

95 Cfr. João calvão da silva, Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedi-na, Coimbra, 1999, p. 108, em que o autor defende que “Por natureza e função, o seguro visa proporcionar ao segurado uma adequada tutela contra a ocorrência de determinados eventos futuros e incertos. E esta possibilidade de verificação do sinis-tro, evento futuro e incerto, é que constitui o risco segurável, pressuposto necessário de um seguro. Compreende-se assim que a exacta determinação do risco constitua ponto cardeal da disciplina dos seguros”.

96 Cfr. francisco guerra da mota, O contrato…, op. cit., vol. I, p. 528, em que o autor constrói a afirmação transcrita em texto, defendendo que “A validade de qualquer contrato de seguro está dependente da existência de risco no momento da conclusão. Com isto quer-se significar que neste momento (existe) a possibilida-de de verificação do evento considerado, ou seja, que o risco deve consistir num evento que ainda não se verificou (futuro com respeito à conclusão do contrato) e, todavia, nem impossível, nem necessário (incerto no «an»)”.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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termos do contrato de seguro dependem da correcta aferição e avaliação do risco, como veremos seguidamente.

III.3.2 A declaração inicial do risco

Nascida no âmbito das leis dos seguros marítimos97-98-99, a obri-gação de declaração inicial do risco que impende sobre o toma-dor do seguro ou segurado constitui um dos mais importantes temas em sede de direito dos seguros.

As normas da LCS relativas ao dever de informação que im-pende sobre a contraparte do segurador beberam a sua essência no pretérito regime100-[101]. Verteu-se nos n.º 1 e 2 do art. 24.º da LCS

97 Em matéria de contrato de seguro, quase todas as construções legais provêm do seguro marítimo. Cfr. antonio la torre, L’assicurazione nella Storia delle Idee: la Risposta Giuridica al Bisogno di Sicurezza Económica, Ieri e Oggi, Giuffrè Editore, Mi-lano, 2.ª ed., 2000.

98 Para uma visão histórica do contrato de seguro, vide eric sebastian barg, Die vorvertragliche Anzeigepflicht des Versicherungsnehmers im VVG 2008, Logos Verlag, Berlin, 2008.

99 Historicamente, as primeiras alusões ao dever de informação pré-contratual remontam ao século XV e respeitam ao âmbito das leis de seguro marítimo de Bar-celona de 1435, sendo que existem preceitos similares nas leis de seguro marítimo florentinas de 1526, sevilhanas de 1556 e de Bilbau de 1560, existindo notícia de te-rem sido adoptadas de modo sistemático na Inglaterra muito próspera no comércio marítimo do século XVIII. Cfr. eric sebastian barg, Die vorvertragliche Anzeigepflicht…, op. cit., p. 6 e Malcolm Clarke, Policies and Perspectives of Insurance Law in the Twenty-First Century, Oxford University Press, 2.ª ed., 2007, p. 114.

100 Já na vigência do anterior regime jurídico do contrato de seguro, a doutrina sublinhava a importância da informação transmitida pelo segurado ao segurador para a adequada aferição do risco. Cfr. João Calvão da Silva, ob cit., p. 108, em que o autor expõe as razões da essencialidade do risco num contrato de seguro nos

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o primado do dever de informar (a que está adstrito o tomador do seguro ou101o segurado) sobre o ónus de questionar (que cumpre ao segurador).102_103

seguintes termos: “por um lado, em relação a ele [risco] se estabelece o montante do prémio e assegura a sinalagmaticidade da relação contratual; por outro, uma inexacta valoração do risco por parte do segurador repercute-se, dado o aumento da probabilidade de verificação do sinistro, na gestão da empresa. Precisamente porque, para decidir da celebração ou não do contrato, o segurador precisa de conhecer uma série de factores e circunstâncias, impende sobre o futuro segurado o dever de máxima boa fé (uberrimae fidei) nas informações e comunicações da-queles elementos”.

101 A doutrina assinala que, representando embora uma evolução em face do anterior regime, os termos em que a LCS consagrou o dever de declaração inicial do risco (que cumpre ao tomador ou segurado) não foi a mais feliz, muito menos tutela a posição contratual débil do tomador. Neste sentido, vide Moitinho de Almei-da, quando critica a LCS, dizendo que “o novo regime legal do contrato de seguro afasta-se da generalidade das legislações europeias no que respeita à protecção do tomador de seguro e dos segurados. Em aspectos fundamentais adoptaram-se soluções que ignoram os interesses legítimos de uns e de outros, em geral consumi-dores. E mesmo quando o não sejam, a complexidade do contrato de seguro exige (…) uma especial tutela.” (in estudo sobre «A protecção do tomador do seguro e dos segurados no novo regime legal do contrato de seguro», p. 1 em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/moitinhoalmeida_proteccaotomadorseguro.pdf e cfr. também Júlio Vieira Gomes que inicia a sua análise do dever de informação à luz da LCS, afirmando que “O dever de informação do (candidato a) tomador do seguro na fase pré-contratual sofreu no novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro (…) uma evolução sensível, a qual se, por um lado representa (…) algum progresso face ao regime anterior – o que, diga-se em abono da verdade, não é grande elogio quando se considera que o regime anteriormente vigente era mais que centenário –, não deixou, por outro lado, de desembocar em um tratamento legal muito complexo, mas, e sobretudo, marcadamente diferente de algumas das legislações mais modernas e em alguns aspectos, quanto a nós, demasiado favorá-vel ao segurador.” [in «O dever de informação do (candidato a) tomador do seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 387].

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102-103A concepção dominante sobre a natureza jurídica do dever pré-contratual de informação do tomador ou segurado é a de que não corresponde a um verdadeiro dever jurídico104, mas sim a um ónus105, concorrendo para tal entendimento o facto de à inobser-

102 Cfr. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que explica a op-ção enunciada em corpo de texto: “Mantendo-se a regra que dá preponderância ao dever de declaração do tomador do seguro sobre o ónus de questionação do segurador”.

103 A doutrina internacional também converge nesta visão de essencialidade da declaração inicial do risco no contrato de seguro e de exigência de máxima boa fé nas informações que o tomador do seguro ou segurado há-de transmitir ao segurador até à conclusão do contrato. Vide, por todos, luca buttaro, Assicurazione (contrato di), in Enciclopedia del diritto, n.º 12, Dott. Antonio Giuffrè Editore, Milano, 1963.

104 Como elemento integrante da estrutura da relação jurídica, o dever jurídico é a tradução do lado passivo da relação jurídica, enquanto contraposição do direito subjectivo (poder jurídico de livremente exigir ou pretender de outrem um compor-tamento positivo ou negativo ou poder jurídico de por um acto livre de vontade, só de per si ou integrado por um acto de uma autoridade pública, produzir determina-dos efeitos jurídicos que inevitavelmente se impõem à contraparte). O dever jurídico constitui, então, a vinculação à realização do comportamento a que tem direito o titular activo da relação jurídica. Cfr. carlos alberto da mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3ª edição actualizada, 1996, pp. 168-177.

105 Cfr. júlio m. v. gomes, «O Dever de Informação…», cit., p. 402-403, em que o autor dialoga com o leitor sobre esta questão controversa, afirmando “Impôs-se, como entendimento dominante, que se trata aqui de um ónus, e não propriamente de um dever jurídico. Este entendimento assenta, sobretudo, na circunstância de que o incumprimento da obrigação de informação pelo tomador do seguro ou segurado não parece dar azo a responsabilidade civil, designadamente pré-contratual (…) O triunfo do entendimento de que se trata de um ónus parece ficar a dever-se, igual-mente, ao facto de que assim se compreende melhor que a obrigação de informa-ção seja imposta ao segurado, mesmo quando este não é o tomador do seguro e se apresenta como um terceiro relativamente ao contrato de seguro. Enquanto a impo-sição de um dever jurídico propriamente dito pareceria mais difícil de explicar, face aos princípios gerais – representando um verdadeiro contrato em desfavor de terceiro – a imposição de um mero ónus, de um comportamento que se tem que assumir com vista a obter uma vantagem para o próprio, parece bem mais tolerável.”.

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vância do dever de informação não corresponder propriamente uma sanção, o facto de a sanção legal prevista para o incumpri-mento não ser a responsabilidade civil e de não gerar uma obriga-ção de indemnização (arts. 25.º e 26.º)106. Assinalamos, de facto, aqui a presença de notas essenciais do ónus jurídico107: o acto a que o ónus se refere não é imposto como um dever e à sua ino-bservância não corresponde uma sanção legal proprio sensu. O ónus é um meio de se alcançar uma vantagem ou evitar uma des-vantagem. Incumprida a obrigação de informação, o tomador ou segurado não obterá a vantagem prevista para a hipótese de cumprimento, ou seja, (a consequência é apenas que) o segurador não fica obrigado a realizar a sua prestação em caso de sinistro. A necessidade de observância de certo comportamento visa a ob-tenção de uma vantagem para o próprio onerado. A conduta não visa satisfazer o interesse de outrem, mas sim o do próprio onerado. Nestes termos, melhor se explica também que a lei estenda ao se-gurado não tomador do seguro a obrigação de informação. Nos casos em que o segurado não é o tomador do seguro, o segurado

106 Os nossos doutrinadores acolhem a posição da doutrina italiana - que re-flecte abundantemente sobre esta questão -, propendendo para a qualificação do dever pré-contratual de informação que impende sobre o tomador do seguro ou segurado como ónus, apontando, contudo, que esta visão contém elementos que não quadram com o regime dos ónus, como a relevância da causa subjectiva da inobservância do ónus. Ex vi dos arts. 25.º e 26.º, as consequências jurídicas do incumprimento do dever de informação diferirão consoante o tomador do seguro ou segurado preste declarações omissas ou inexactas por mera negligência ou com dolo. Vide por todos nicola gasPeroni, «La rilevanza giuridica delle dichiarazioni ine-satte e delle reticenze del terzo non contraente», in Assicurazioni 1962, parte I, pp. 83-92. Cfr. também a nota anterior.

107 Vide por todos manuel HenriQue mesQuita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Alme-dina, Coimbra, 2003, pp. 397-471.

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é terceiro relativamente ao contrato, pelo que não se lhe poderia impor um verdadeiro dever jurídico nascido daquele negócio, à luz da regra geral da eficácia relativa dos contratos (art. 406.º, n.º 2 do Código Civil), segundo a qual res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest108.

O dever de informação encontra-se previsto no art. 24.º e diz respeito a todos os factos relevantes de que o tomador do seguro ou o segurado tenha conhecimento “antes da celebração do con-trato”. É, portanto, um dever pré-contratual e abrange todas as cir-cunstâncias com relevo para a avaliação do risco que aconteçam até à conclusão do contrato. O contrato de seguro tem-se por con-cluído, segundo as regras gerais (art. 224.º do CC), com a perfeição das declarações negociais, com a (recepção e) aceitação pelo segurador da proposta do tomador de forma expressa ou tácita. O art. 27.º atribui valor declarativo ao silêncio do segurador, volvidos catorze dias sobre a data da recepção da proposta do tomador do seguro.

Quanto ao dever de informação na fase pré-contratual, ve-jamos as diferenças entre modelos legais relativamente à tempo-ralidade das circunstâncias que o tomador ou o segurado está

108 Vide por todos mário júlio de almeida costa, Direito das Obrigações…, op. cit., pp. 280-281, ensinando que “quanto a terceiros, o contrato é em regra inoperante. Esta doutrina, consagrada pelo art. 406º, n.º 2, define o princípio da eficácia relativa dos contratos. Ele traduz, na verdade, a solução de que os efeitos contratuais não afectam terceiros, antes se restringem às partes, como tais se considerando os origi-nários contraentes (…) Ninguém se torna credor ou devedor contra vontade própria ou sem o concurso da mesma, na medida em que o nascimento dos créditos e das dívidas pertença ao âmbito da autonomia privada. Trata-se de doutrina igualmente contida nas fontes romanas, ao sentenciarem que «alteri stipulari nemo potest». Bem se compreende, de resto, que o contrato só produza efeitos, diante de terceiros, favo-recendo-os ou prejudicando-os, «nos casos e termos previstos na lei» (art. 406º, n.º 2)”.

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obrigado a comunicar ao segurador. Segundo o modelo legal do denominado «questionário fechado» (modelo legal alemão), o de-ver de informação abarca apenas os factos ocorridos e conhecidos pelo tomador ou segurado até à conclusão da resposta ao ques-tionário apresentado pelo segurador. Diversamente, em sistemas como o nosso, de «questionário aberto», o tomador ou o segurado está obrigado a transmitir ao segurador todos os factos conhecidos ocorridos até à conclusão do contrato. O que significa que, entre nós, o dever de informação engloba (ainda) os factos ocorridos ou conhecidos supervenientemente ao preenchimento do questioná-rio e até à conclusão do contrato.

Após a aceitação da proposta pelo segurador, valem as regras da comunicação do agravamento risco durante a execução do contrato. Este dever de informação contratual, previsto na norma imperativa relativa do art. 93.º, obriga o tomador ou o segurado a transmitir ao segurador as circunstâncias que “caso fossem conhe-cidas pelo segurador aquando da celebração do contrato, tives-sem podido influir na decisão de contratar ou nas condições do contrato”, “no prazo de 14 dias a contar do conhecimento”.

Sobre o âmbito objectivo do dever pré-contratual de informa-ção, a nossa lei desenha um conceito demasiado amplo e indeter-minado109. Enuncia-se no n.º 1 do art. 24.º que “O tomador do segu-ro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato,

109 Segundo explica júlio m. vieira gomes: “A construção do dever de informa-ção do tomador do seguro nasceu (…) em um contexto histórico em que a nego-ciação do contrato era individualizada e em que tomador e segurador se encon-travam, por assim dizer, face a face, e é largamente tributária dessa visão quase atomística do contrato de seguro. Mas a realidade é modernamente, em grande medida, pelo menos, a dos contratos estandardizados e de adesão” (in «O Dever de Informação…», cit., p. 394).

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a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador” e acrescenta no n.º 2 que “O disposto no nú-mero anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito”. Sublinhamos o sentido, segundo cremos, unívoco com que o legislador se exprimiu: ao dizer “todas as cir-cunstâncias que conheça” pretende significar que o tomador ou segurado só tem obrigação de comunicar as circunstâncias que, de facto, conhece e não já as cognoscíveis.

Sem prejuízo de a lei exigir, como vimos, a comunicação das circunstâncias que o tomador ou o segurado razoavelmente deva ter por significativa para a apreciação do risco pelo segurador, o certo é que este juízo é devido apenas quanto às circunstâncias que conheça, na medida em que é dentro destas que a lei deman-da uma apreciação de razoabilidade quanto ao seu significado para ponderação do risco por parte do segurador.

Entendemos que a lei reconhece ao tomador ou segurado um direito de desconhecer sem obrigação de conhecer110-111, mas en-

110 Acompanhamos aqui a posição de júlio vieira gomes, no sentido de que as circunstâncias que o tomador ou segurado está obrigado a comunicar ao segurador são apenas aquelas de que tenha conhecimento e não as cognoscíveis. Para uma visão mais completa desta linha de pensamento, v. do autor, «O Dever de Informa-ção…op. cit, p. 405.

111 Posição também largamente apoiada na doutrina estrangeira. Cfr. ulricH knaPPmann, «Anotação ao § 14 VVG», in Versicherungsrechtshanbuch, Verlag C. H. Beck, München, 2009, pp. 726-727; eric sebastian barg, Die vorvertragliche…, cit., p. 66; giovanni e. longo, «La dichiarazione del rischio all’origine ed in corso di contratto: conseguenze e sanzioni», Assicurazioni 1978, parte I, pp. 26-31; eliseo sierra noguero, «La prueba del dolo o culpa grave del tomador en la declaración del riesgo. Co-mentário a la STS 1098/2008 de 4 de Diciembre de 2008», RES (Revista Española de

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contramos na doutrina posição distinta. Francisco Luís Alves112, por exemplo, exprime-se em sentido que aponta para que a declara-ção inicial de risco abarque outrossim as circunstâncias significati-vas que o tomador ou segurado não podia desconhecer, porven-tura em visão decorrente do critério para a aferição do que seja a «razoabilidade». Nesta linha de pensamento, à questão de saber se o conceito indeterminado “circunstâncias significativas” deve ser preenchido de acordo com o critério do homem médio ou segun-do o critério subjectivo, a resposta é de preterição da concepção objectiva em favor de um juízo de prognose na óptica daquele se-gurador em concreto.

Até à conclusão do contrato, o tomador ou o segurado está obrigado a informar o segurador de todas as circunstâncias que conheça e que razoavelmente deva ter por significativas para a avaliação do risco. Todas as circunstâncias conhecidas são todas as circunstâncias conhecidas (que sejam) significativas. Aqui, sim, aprecia-se em termos subjectivos quais as circunstâncias que o to-mador ou o segurado deve razoavelmente considerar decisivas para o segurador determinar as condições do contrato e a própria decisão de contratar (ou não). Aqui, sim, ajuíza-se em função de cada segurado (e em cada situação) em concreto.

No n.º 4 do apontado art. 24.º, vislumbramos um elemento mitigador deste regime, colocando na esfera do segurador um dever ex ante: o dever de alertar o futuro tomador ou segurado

Seguros), 2009, n.º 137, p. 141-143; kate lewins, «Reforming Non-Disclosure in Insurance Law: The Australian Experience», Journal of Business Law 2008, n.º 2, pp. 158-163 e malcolm clarke, Policies and Perceptions of Insurance Law in the Twenty-First Centu-ry, Oxford University Press, 2.ª ed., 2007, p. 105.

112 Cfr. francisco luís alves, op. cit., p. 15.

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para o facto de a lei o obrigar a comunicar-lhe todas as informa-ções relevantes, nos termos preditos e para as consequências do inadimplemento (constantes dos arts. 25.º e 26.º). A final, a norma sanciona com os efeitos gerais da responsabilidade civil o segura-dor que incumpra este dever. Apesar da adstrição do segurador ao dever de esclarecimento (quer o dever enunciado no n.º 4 do art. 24.º quer aqueloutro dever especial de esclarecimento que o art. 22.º estabelece quanto à obrigação pré-contratual de expli-cação dos exactos termos e condições do contrato de seguro ao futuro tomador), o princípio de declaração espontânea que enfor-ma o nosso regime da declaração inicial de risco do art. 24.º, n.º 2 afigura-se-nos demasiadamente oneroso, pois cumpre ao tomador ou segurado declarar junto do segurador todas as circunstâncias que conheça e que deva razoavelmente reputar importantes para a aferição do seu risco (na leitura conjugada dos n.ºs 1 e 2 do art. 24.º), independentemente do teor do questionário eventualmente apresentado pelo segurador, o que deixa o tomador do seguro o segurado em posição de exigência excessiva, cremos, ao não po-der confiar no questionário do segurador, na medida em que tem de ter presente todos os factos relevantes para o segurador que não sejam perguntados no questionário.

Ora, numa relação tão desigual, desde logo em acesso a in-formação e demais meios de tratamento de dados, como a que se estabelece entre um particular e uma entidade seguradora, enten-demos que é desequilibrado o questionário não vincular o segura-dor quanto à recolha de informação relevante para a aferição do risco da proposta de seguro.

Aqui propugnamos que o dever que a lei impõe ao segurador de esclarecer o tomador do seguro ou segurado sobre o âmbito e

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consequências do incumprimento da completude da declaração inicial de risco (art. 24.º, n.º 4 da LCS) carece de densificação, num duplo sentido: enunciação expressa do princípio geral de que a extensão e profundidade da informação a prestar pelo segurador devem ser tanto maior quanto menor o grau de conhecimento e experiência do tomador ou segurado113 e ressalvar expressamente que o dever de esclarecimento não dispensa o segurador de reco-lher, junto do tomador do seguro ou segurado, informação que lhe permita aferir da adequação da proposta de seguro à(s) cobertu-ra(s) pretendida(s).

Acresce que o juízo de razoabilidade que a lei pede ao to-mador ou segurado para formular, representa até, em nosso en-tendimento, uma certa desprotecção da posição do tomador do seguro ou segurado, porque lhe cabe valorar devidamente os fac-tos a transmitir ao segurador. Pesada herança que o legislador da LCS trouxe do anterior regime, dir-se-á114. Mas o certo é que abre a porta a um grau de incerteza jurídica inaceitável em ramo de actividade em que a desproporção de meios é manifesta. Senão vejamos: se um tomador do seguro ou segurado não transmitir de-terminado facto da sua vida ao segurador antes da celebração de um contrato de seguro de saúde, por entender não ser relevante para a aferição do seu risco, se vir recusada a realização da pres-

113 Como existe no Código de Valores Mobiliários para os intermediários financei-ros (art. 312.º, n.º 2).

114 No anterior regime, interpretando e aplicando o artigo 429.º do Código Co-mercial, a jurisprudência da Relação do Porto sustentava que “Constituem motivo de anulabilidade do contrato de seguro as omissões e declarações inexactas que, objectivamente analisadas por um declaratário normal colocado na posição da se-guradora (o declaratário real), sejam essenciais para a apreciação do risco por parte desta, sendo susceptíveis de determinar uma diferente visão por parte da seguradora relativamente à proposta que lhe foi apresentada”. Cfr. Acórdão do Tribunal da Rela-ção do Porto, de 6-11-2007, Relator Guerra Banha, Proc. 0724884, in www.dgsi.pt.

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tação contratual de seguradora com base em tal omissão, terá de recorrer à via judicial para dirimir a questão da razoabilidade do juízo que formulou. E os encargos e a delonga associados ao recur-so à via judicial representam, por si só, um desequilíbrio de meios inaceitável, desde logo, porque o tomador do seguro ou o segura-do, até obter decisão judicial favorável115, terá de realizar o esforço financeiro que esperava (legitimamente116) que fosse da responsa-bilidade do segurador.

III.3.3 Questionário aberto e fechado

O legislador português acolheu o modelo de questionário aberto de declaração do risco, preceituando no n.º 2 do art. 24.º da LCS que o dever de informação que impende sobre o tomador ou segurado engloba factos não mencionados no questionário (fa-cultativo) do segurador.

Opção diversa encontramos nas leis dos seguros espanhola117, francesa118, suíça119, luxemburguesa120, belga121 e alemã122. Nestes ordenamentos jurídicos, foi adoptado o moderno modelo de ques-

115 Ao que acresce a incerteza do sentido da decisão judicial e tempo do trânsi-to em julgado.

116 A hipótese não versa as situações de dolo, naturalmente.117 Art. 10.º, n.º 1 da Lei 50/1980, de 8 de Outubro (lei espanhola dos seguros).118 O diploma francês regulador dos seguros é o Code des Assurances e a norma

em questão é o art. L.112-3.119 Na Suíça, vigora a lei federal suíça sobre o contrato de seguro de 23 de Abril

de 1908 e a norma aludida em texto é o art. 4.º.120 A lei luxemburguesa sobre o contrato de seguro é a Lei do Grão Ducado do

Luxemburgo de 27 de Julho de 1997 (e a norma a que se alude em texto é o art. 11.º).

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tionário fechado e, nos seus respectivos termos, o dever de informa-ção que impende sobre o tomador ou segurado abrange apenas as circunstâncias inquiridas no questionário (obrigatório) apresenta-do pelo segurador, sem prejuízo da obrigação de comunicar ao se-gurador121circunstâncias122ocorridas ou conhecidas posteriormente ao envio da proposta contratual (questionário)123.

Defendemos que o modelo de questionário fechado é supe-riormente defensor dos interesses do tomador do seguro ou segu-rado e da sua posição débil no contrato de seguro. Referimo-nos de modo particular às situações em que o tomador ou segurado é consumidor e aos contratos em que as cláusulas contratuais são pré-ordenadas pelo segurador, as quais representam a esmagado-ra maioria dos contratos de seguro celebrados, como verdadeiros contratos de adesão124.

Nas reflexões mais impressivas dos nossos doutrinadores, en-contramos (e subscrevemos) o lamento de Júlio Vieira Gomes pelo

121 A lei alemã dos seguros é a Versicherungsvertragsgesetz de 23 de Novembro de 2007 (VVG alemã) e a norma em causa é o §19.

122 Art. 5.º da Lei de 25 de Junho de 1992 (lei belga dos contratos de seguros terrestres).

123 Ouçamos Júlio Vieira Gomes, que na página 404 do seu «O dever de informação…, op. cit., afirma impressivamente que “diferentemente do direito ale-mão (em que vale o princípio do questionário fechado), se mesmo depois do mo-mento da resposta ao questionário e do envio da proposta contratual, mas antes da conclusão do contrato, o tomador do seguro (ou, sendo caso disso, também o se-gurado) tomar conhecimento de uma circunstância de facto que desconhecia até então ou de uma circunstância superveniente (posterior ao momento da proposta) terá igualmente que declará-la.”.

124 Neste sentido, vide a afirmação de Júlio m. vieira gomes de que “a realidade é modernamente, em grande medida, pelo menos, a dos contratos estandardizados e de adesão” (in «O Dever de Informação…», cit., p. 394).

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facto de o legislador português não ter optado pelo sistema de questionário fechado “ao menos quando o tomador do contrato é um consumidor”125 e o aplauso de Moitinho de Almeida dirigido aos ordenamentos jurídicos (europeus) com regime de questionário fechado, “uma vez que o tomador desconhece a técnica dos se-guros e ignora que outras circunstâncias possam interessar às segu-radoras”126 para além das sindicadas em questionário127.

Na verdade, contratos de seguro celebrados no âmbito de re-lações jurídicas de consumo e segundo o modelo de contratos de

125 Cfr. Júlio m. vieira gomes, no seu estudo sobre «O dever de informação…, op. cit., pp. 400 e 401.

126 Cfr. moitinHo de almeida, estudo sobre «A protecção do tomador do seguro e dos segurados no novo regime legal do contrato de seguro», p. 4 em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/moitinhoalmeida_proteccaotomadorseguro.pdf.

127 Sobretudo porque a questão da exactidão e completude das circunstâncias que o tomador do seguro ou segurado transmite ao segurador é da máxima importância no quadro da configuração dos factores relevantes para a avaliação do risco.

Cfr. a este propósito, a exposição de margarida lima rego, in Contrato de Segu-ro e Terceiros, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 136-139: “A probabilidade será normalmente a extrapolação de um juízo de frequência relativa, que pode ser me-ramente lógico-matemático (probabilidade a priori) ou resultar da análise estatística de uma pluralidade de casos análogos e independentes observados (probabilidade a posteriori). No mundo dos seguros, tal como no dia-a-dia, a grande maioria das vezes estaremos a lidar com esta última modalidade de juízos de probabilidade. Ora, numa como na outra, a análise do risco funciona com base na chamada lei dos grandes números – princípio geral de matemática, e mais especificamente da probabilidade e da estatística, segundo o qual a frequência de determinados re-sultados tende a estabilizar com o aumento do número de casos observados, apro-ximando-se cada vez mais dos valores previstos. Dada a lei dos grandes números, a exposição do segurador ao risco – o grau de indeterminabilidade do resultado agregado do risco individual de todos os indivíduos por este segurados – é inferior à soma das exposições ao risco de todos eles – o grau de indeterminabilidade de cada um dos resultados individuais. (…) O prémio a pagar em cada caso concreto será calculado, ou deverá sê-lo, tanto quanto possível, em função da probabilidade

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adesão representarão seguramente a maioria dos casos práticos. E apesar de a LCS ressalvar expressamente que as suas disposições não prejudicam a aplicação da lei de defesa do consumidor e o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, o certo é que tais diplomas não possuem regras específicas a respeito do contrato de seguro.

O modelo do questionário fechado tem em linha de conside-ração que o tomador ou segurado não domina as técnicas dos se-guros128, mas não dispõe de ferramentas para saber quais os factos que o segurador terá interesse em conhecer, para lá daqueles que constam no questionário. Nesta medida, Moitinho de Almeida, por exemplo, sustenta que o requisito da negligência da LCS conduz a resultados práticos idênticos ao regime do questionário fechado, na medida em que, ex vi do art. 24.º, n.º 1, o dever de informação incide apenas sobre as circunstâncias que o tomador deva razoa-velmente considerar significativas. Porém, o mesmo autor não deixa de alertar que o nosso sistema de questionário aberto “gerará nutri-dos contenciosos”129 e que o legislador português optou “por uma

de ocorrência do sinistro e do grau de intensidade das suas possíveis consequências negativas – ou seja, em função do risco individual ou elementar medido na perspec-tiva neutra do segurador. (…) Poderá dizer-se que as seguradoras procuram recor-rer, sucessivamente, a duas práticas diversas, na avaliação do risco: (i) a definição rigorosa dos grupos de risco em que se baseiam; (ii) o ajustamento do coeficiente aplicado dentro de cada grupo de acordo com as circunstâncias particulares de cada caso”.

Compreende-se, sic, o carácter absolutamente decisivo, na lógica de formação do contrato de seguro, que reveste a informação prestada pelo tomador do seguro ou segurado ao segurador.

128 A denominada lei dos grandes números e demais regras e métodos quantita-tivos de cálculo estatístico, actuarial e probabilístico.

129 Como defendemos também supra em texto.

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solução que desnecessariamente onerará a actividade judicial”130, apesar de pretender abrigar os interesses do tomador ou segurado com a solução de irrelevância das omissões ou inexactidões decla-rativas não dolosas e não negligentes (arts. 25.º e 26.º, a contrario sensu) e com a consagração expressa do dever (ex ante) de o se-gurador esclarecer o tomador do seguro sobre o sentido e alcance do dever de informação que sobre este impende (art. 24.º, n.º 4).

Julgamos que o dever de informação do tomador ou segurado na fase pré-contratual, talqualmente recortado na LCS, é demasia-do intenso em relação ao ónus de questionação do segurador. E o princípio de declaração espontânea (art. 24º, n.º 2) não parece tu-telar suficientemente a posição do tomador-segurado-consumidor.

Com efeito, os contratos de seguro são celebrados em larga maioria no seio de relações de consumo, onde é gritante o desnível no acesso e detenção de informação em desfavor do tomador ou segurado, sem que a lei reequilibre as posições jurídico-contratuais entre tomador e segurador.

A técnica dos seguros é densa e complexa para não profis-sionais e não se diga que é mitigada pela natureza fiduciária do contrato, no sentido em que o segurador há-de confiar nas decla-rações do tomador ou segurado e este nas orientações daquele.

Nos sistemas de questionário aberto pode existir também uma tentativa de resguardo do segurador contra a eventual má-fé de-clarativa da contraparte, mas a doutrina avisa para o perigo in-verso de o segurador se poder escudar no dever de informar para além do questionário e, assim, esvaziar de sentido o seu ónus de

130 Cfr. moitinHo de almeida, Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, Coim-bra, 1999, p. 7.

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questionação, remetendo-se a um predador silêncio. Donde o pa-pel decisivo do questionário na conformação do risco, embora mui-to volúvel consoante o ângulo de visão.

A doutrina inglesa, por exemplo, questiona o sentido actual do contrato de seguro como contrato de máxima boa-fé, pelo receio de utilização do questionário com uma função contrária a este princípio131. É certo que o carácter facultativo do questionário dos sistemas de questionário aberto (como o nosso, o italiano ou o in-glês), na óptica do segurado, possa configurar uma protecção da sua liberdade enquanto detentor do interesse a segurar e da res-pectiva informação. É certo outrossim que na fase pré-contratual, quem possui os elementos para a avaliação do risco de cobertura de sinistros relativos a um interesse do tomador do seguro ou segu-rado é ele próprio, pelo que parece equilibrado que se lhe atribua o dever de transmitir ao segurador a informação decisiva para a aferição do risco132. O interesse do tomador ou segurado de boa-fé em que nenhum sinistro envolva o bem a segurar é, em princípio, francamente superior ao do segurador. Mais se dirá que em seguros referentes a áreas da vida privada como, por exemplo, o seguro de saúde, a indagação do segurador esbarraria em dados confiden-ciais, protegidos pelo sigilo dos profissionais de saúde e pelas regras restritivas de acesso a dados pessoais.

131 V. b. soyer, «Reforming the Assured’s Pre-contractual Duty of Utmost Good Faith in Insurance Contracts for Consumers: Are the Law Commissions on the Right Track?», in Journal of Business Law 2008, pp. 385 e ss. e Christopher Butcher Q. C., «Good Faith in Insurance Law; A Redundant Concept?», in Journal of Business Law 2008, pp. 375 e ss..

132 Como salienta júlio vieira gomes (in «O dever de informação…, op. cit., p. 389): “a solução oposta forçaria o segurador frequenbhtemente a investigações lon-gas, complexas (até por poderem incidir sobre factos passados) e onerosas, reper-cutindo-se negativamente nos prémios”.

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Todavia, a radicação do dever de informação do tomador ou segurado no facto de ele conhecer (como ninguém) as circuns-tâncias conformadoras do risco é uma ideia perigosa por poder representar uma “meia verdade”, como alerta Júlio Vieira Gomes133, apontando para o problema que se coloca quando o tomador ou segurado não dispõe de conhecimento específico para valorar os dados materiais sobre os quais incide o seu dever de informar o se-gurador, problema que surge nos tipos de seguro em que o dever de informação incide sobre elementos muito técnicos. Daí a possível incapacidade do segurado para triar a informação importante para o segurador. O mesmo autor concretiza ainda e evidencia que as declarações do segurado são absolutamente decisivas nos seguros de pessoas e quase despiciendas em seguros como o seguro de ba-gagens. É que o tomador ou segurado será, por exemplo, totalmente capaz de elencar os condutores habituais do automóvel a segurar ou as intervenções cirúrgicas que realizou, mas dificilmente saberá indicar se existe e qual o risco de poluição que a sua actividade industrial representa ou se a sua casa é de construção anti-sísmica.

Divisamos uma separação conceptual entre circunstâncias factuais e circunstâncias factuais valoradas, cabendo naquelas apenas os elementos informativos materiais dados pela experiên-cia comum e nestas as circunstâncias factuais vistas sob um prisma técnico. O que vale por dizer que as circunstâncias factuais corres-pondem aos dados reais que são do conhecimento de qualquer to-mador ou segurado (leigo) e que as circunstâncias factuais valora-das compreendem os dados reais acrescidos de uma apreciação técnica (valoração).

133 Cfr. Do autor, op. cit., p. 394.

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Situamos neste ponto o potencial desequilíbrio do dever de in-formação, porque nos casos em que a triagem dos dados a transmi-tir ao segurador exija um prévio juízo valorativo técnico, o tomador do seguro fica numa posição excessivamente onerosa. O segurador é um profissional dos contratos de seguro e a contraparte é um não-especialista, na maior parte das situações um mero consumi-dor do produto/serviço que é o seguro. Nestes casos, a lei reporia o equilíbrio das posições contratuais sujeitando o segurador ao ónus de composição de um questionário que desse pleno conhecimento ao tomador ou segurado das circunstâncias determinantes para a decisão de celebrar ou não o contrato (e se sim em que termos e condições)134-135.

Em contraposição ao (nosso) sistema de questionário aberto, também designado de base-resposta, base-tomador, existe o mo-delo de questionário fechado (também designado por sistema de base-pergunta, base-segurador), em que a lei faz impender sobre o segurador um ónus de averiguação das circunstâncias relevantes para a avaliação do risco do bem a segurar e cumulativamente cir-cunscreve o âmbito do dever de informar do tomador ou segurado às circunstâncias inquiridas pelo segurador.

134 Neste sentido, júlio vieira gomes (in «O Dever de Informação…, cit., p. 401): “Na verdade, sendo o segurador um profissional, poderia e deveria esperar-se que (sobretudo quando o tomador do seguro seja um consumidor que não beneficia de um especialista genuinamente independente como um corretor) sobre ele recaísse o ónus de elaborar um questionário que permitisse ao potencial tomador do seguro ter um conhecimento pleno das circunstâncias que para aquele segurador são per-tinentes quando decide se contrata, ou não e em que condições.”.

135 Em idêntico sentido, cfr., v. g., sergio sotgia, «Considerazioni sul “descrizione del rischio” nel contrato di assicurazione», Assicurazioni, Rivista di Diritto, Economia e Finanza delle Assicurazioni Private, ano XXXVI, parte I, pp. 92-114 e roberto weigmann, «L’importanza del questionário per valutare le reticenze dell’assicurato», Giurispru-denza Italiana 1991, parte I, sez. I, col. 1029-1033.

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Na verdade, a delimitação do dever de informação do segu-rado às respostas em função das perguntas formuladas em questio-nário pelo segurador é apontada como o mais importante e positi-vo elemento do sistema do questionário fechado.

As fragilidades de um regime de assentamento do dever de informação no princípio de declaração espontânea (como o nos-so) evidenciam-se no quadro hodierno de voragem comercial, celebração de contratos à distância e contratação em regime de cláusulas contratuais gerais. Embora não haja regimes legais imaculados136.

Aponta-se ao modelo de questionário fechado a desresponsa-bilização do tomador do seguro que ele potencia, se bem que tam-bém pode ser espartilhante para o tomador ou segurado mais não poder, na fase pré-contratual, do que responder com completude, verdade e exactidão ao questionário do segurador. E as debilidades acentuam-se com o desalinhamento dos conceitos técnicos jurídicos da prática dos seguros em relação às acepções do senso comum.

Aliás, identificamos fraquezas comuns a ambos os sistemas.

O questionário apresentado pelo segurador ao futuro toma-dor é de natureza facultativa no nosso sistema e obrigatória nos regimes de questionário fechado. Assim, em ordenamentos com sistemas de questionário aberto (Portugal, Itália, Inglaterra, etc), assume particular importância a (cons)ciência por parte do toma-

136 Veja-se por exemplo que moitinHo de almeida, não obstante o seu pensamen-to crítico a respeito do nosso modelo de sistema de questionário aberto, alerta, por outro lado, que “o questionário traduz-se numa facilitação concedida pelo segura-dor ao segurado e não parece justo, assim, que possa redundar em prejuízo daque-le” (in Contrato de Seguro…, cit., p. 73).

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dor do seguro do seu dever de informar o segurador para lá do que for perguntado por este137.

Em decorrência, e no que respeita à LCS, é especialmente importante o dever de esclarecimento que o n.º 4 do art. 24.º faz impender sobre o segurador, obrigando-o a elucidar o declarante sobre o dever de informação, até porque a opção do segurador em apresentar um questionário pode facilmente inculcar no espíri-to da contraparte que o seu dever de informação se esgota com respostas verdadeiras e completas à sindicância.

Indo mais longe, a doutrina inglesa138 e alguns autores italia-nos139 levantam mesmo a hipótese de os questionários poderem desviar a atenção do declarante do essencial, potenciando resul-tados contrários à boa-fé. E os tribunais, mesmo em presença de sis-

137 Como explica júlio vieira gomes (in «O Dever de Informação…, cit., pp. 408-409): “A nossa LCS optou (…) pelo sistema do questionário aberto. Contudo, a pró-pria redacção do questionário pode ser um factor decisivo na convicção do toma-dor do seguro de que não é necessário declarar um certo facto. Num caso ocorrido em Inglaterra – país em que a lei consagra o sistema do questionário aberto, embora a questão se coloque em termos distintos em matéria de soft law e de prática das principais seguradoras – perguntava-se no questionário se tinha ocorrido algum in-cêndio no prédio que iria ser objecto da cobertura nos últimos cinco anos. O toma-dor do seguro respondeu negativamente (o que aliás era exacto), mas omitiu que tinha ocorrido um incêndio há oito anos. Mais tarde, em Tribunal, invocou que da própria redacção da pergunta, tal como ela era colocada no questionário, tinha inferido que a seguradora não atribuía relevância a incêndios ocorridos há mais de cinco anos (e daí o limite temporal da questão). O Tribunal aceitou esta argumenta-ção, que também a nós nos parece convincente.”.

138 Vide b. soyer, ob. cit, pp. 387 e ss..139 Cfr. giovanni e. longo, «La dichiarazioni del rischio…», cit., pp. 26 e ss. e Illa

Sabbatelli, «Informazioni e rischio assicurato», La Nuova Giurisprudenza Civile Com-mentata 2004, parte I, pp. 404 e ss..

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temas de questionário facultativo, têm vincado e exigido boa-fé ao segurador na composição do questionário, devendo este funcionar como guia para o declarante percepcionar o que possa ser impor-tante comunicar ao segurador para lá dos pontos expressamente inquiridos no questionário. Quer quanto ao horizonte de referência introduzido nas perguntas, quer quanto ao detalhe relativo apenas a certos dados, quer quanto aos demais indicadores de relevo in-duzidos pelo questionário, o segurador deverá actuar sempre em colaboração com o futuro tomador do seguro140-141.

Convoca-se para esta reflexão o princípio geral da boa-fé, ci-mento agregador da teia de deveres a que as partes estão adstritas desde a fase pré-contratual. Situam-se neste complexo obrigacio-nal os deveres laterais de conduta que, por banda do segurador, o constrangem a uma conduta de colaboração, de cooperação com o tomador. Esta é uma exigência especialmente relevante em sistemas como o nosso de base-resposta, base-tomador. Daí a preo-cupação da LCS em atribuir ao segurador uma série de deveres de cuidado que deverá observar na fase pré-contratual, sob pena de não poder invocar, ao longo da execução do contrato, o incumpri-mento do dever de informação do tomador ou segurado. É o que

140 Os tribunais ingleses têm reconhecido que o limite temporal das perguntas dos questionários inculca no declaratário a ideia de irrelevância das circunstâncias ocorridas fora daquele intervalo de tempo, pelo que não têm considerado que o tomador do seguro incumpre o dever de informação por não declarar factos acon-tecidos para além do horizonte temporal inquirido pelo segurador. Cfr. giovanni e. longo, «La dichiarazione del rischio…», cit., pp. 26-40.

141 Em Itália, a jurisprudência entende que o segurador, como técnico, deve au-xiliar o segurado no cumprimento do dever de informação, porque ele é o principal interessado no conhecimento do risco real do tomador do seguro. Cfr. Illa sabbatelli, «Informazioni…», cit., pp. 404 e ss..

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resulta dos n.ºs 3 e 4 do art. 24.º, em cujos termos a lei impõe ao segurador deveres específicos de conduta e veda-lhe o exercício de determinadas posições jurídicas, estabelecendo expressamente comandos normativos sintetizados a partir dos princípios gerais dos contratos. Com esta opção legislativa de consagração expressa de hipóteses tributárias dos princípios gerais, a LCS visa prevenir litígios judiciais desnecessários. Com a previsão do n.º 3 do art. 24.º, da dimensão obstativa do princípio da boa-fé ao venire contra factum proprium, verte-se em letra de lei o sentido do discurso jurispruden-cial interpretativo do Código Comercial. Esta solução aproxima-se das exigências de boa-fé do segurador dos modelos de base-per-gunta, base-segurador. Mas não percamos de vista que o nosso sistema radica no princípio de declaração espontânea que sujei-ta o tomador ou segurado à obrigação de declarar para além do questionário142. Daí que seja de louvar a solução legal de sancio-nar a omissão do ónus de indagação do segurador. Dir-se-á que, de qualquer modo, a má-fé do segurador seria um obstáculo para ele actuar em abuso do direito e que os tribunais não hesitariam em decidir nesse sentido. E assim foi no regime anterior143. Donde o

142 Como sublinha Moitinho de Almeida, independentemente de, na prática, poder ser o segurador a preencher o questionário, é sobre o tomador ou segurado que impende o dever de informação, pelo que, nas palavras do autor, é a este que cumpre “o dever de declaração do risco, pois, se não completar a declaração realizada por quem fez o seguro, tendo conhecimento de factos ou circunstâncias que teriam podido influir sobre a existência e condições do contrato, perde o direito à prestação do segurador. Deve porém entender-se que este dever só recai sobre o segurado se este tiver conhecimento do seguro e da omissão ou inexactidão da declaração de risco do tomador, pois de outro modo é impossível o cumprimento” (in O Contrato de Seguro…, cit, p. 65).

143 Na verdade, o já citado Acórdão da Relação do Porto, de 9-12-2008 (proces-so 0856436, disponível em www.dgsi.pt) decidiu que “não pode o tomador do seguro ser responsabilizado por uma omissão de informar, porquanto a seguradora, pelo questionário que elaborou, abdicou de obter essa informação”.

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aplauso, precisamente, a que a LCS tenha reduzido o espaço para contendas judiciais.

Em regimes de questionário facultativo, a exigência de boa-fé ao segurador tem de ser sobrelevada e, nesse sentido, o nos-so legislador, no n.º 3 do art. 24.º, teve o cuidado de descrever comportamentos do segurador que reputa de má-fé. A nossa lei não quis que o segurador pudesse prevalecer-se do dever (do tomador ou segurado) de informação para além do questionário, omitindo as suas obrigações de indagar e de esclarecer a contraparte. Diz o citado n.º 3 que optando por apresentar um questionário ao tomador, o segurador deve clarificar as respostas omissas, imprecisas, incoerentes e contraditórias entre si, sob pena de não poder invocar as omissões ou inexactidões do declarante durante a execução do contrato. Na verdade, depois de atribuir natureza facultativa ao questionário (n.º 2 do mesmo art. 24.º), a lei avisa o segurador que optando por apresentar um questionário ao tomador, não deverá aceitar respostas imprecisas ou inexactas (n.º 3). Mas nada diz quanto ao valor do questionário144.

O certo é que o nosso regime concede liberdade total ao se-gurador na decisão de apresentar ou não um questionário ao futuro tomador do seguro e, mesmo na hipótese de o segurador optar por apresentar um questionário à contraparte, a lei não lhe impõe qual-quer ónus de esclarecer o declarante sobre quais serão as circuns-tâncias que ele deve considerar significativas, mas apenas sobre o

144 Em anotação ao art. 24.º da LCS, arnaldo costa oliveira entende tratar-se de uma “presunção de essencialidade de facto cuja declaração é pedida em questio-nário”, acrescentando que a ideia se afigura “incontornável”, classificando-a como “presunção indirecta” e tantum iuris. Cfr. Arnaldo Costa Oliveira, in Pedro Romano Martinez (et. alt.), Lei do Contrato…, op. cit, pp. 140-142.

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sentido e alcance do dever de declaração inicial do risco. O ques-tionário como presunção de relevância, como argumenta certa doutrina, no sentido de opção legislativa de “protecção equilibra-damente dada ao tomador do seguro e ao segurado”145 afigura-se-nos difícil de compreender. Ao contrário, temos por largamente vantajosa para o segurador a prática do questionário que se presu-misse relevante quanto ao conteúdo inquirido num sistema assente no princípio da declaração espontânea. Para o tomador do seguro seria dificílimo provar que desconhecia a relevância de factos in-quiridos no questionário146. Mais oneroso ainda para o declarante, pois como a lei não impõe qualquer ónus de elaboração de um questionário completo, o segurador pode apresentar um questio-

145 Vide nota anterior.146 Acompanhamos aqui a visão de Júlio vieira gomes («O dever de informa-

ção…, op. cit., pp. 413-414) que perante a posição de Arnaldo Costa Oliveira de a presunção de relevância do questionário ser “incontornável” refere que “Quanto a nós, longe de ser incontornável, a referida presunção não resulta, de modo algum, do n.º 3 do artigo 24º. Com efeito, o que este preceito estabelece é que, designada-mente, certas questões constantes do questionário (e a resposta ou falta de resposta às mesmas) não são relevantes e a seguradora não pode, em regra, fazer prova da sua relevância: porque já sabia a verdade («circunstâncias conhecidas do segura-dor»), porque a questão foi «formulada em termos demasiado genéricos» (o que nos parece ser um eufemismo para ambígua) e a resposta imprecisa, de questões a que o tomador do seguro não respondeu, mas mesmo assim e apesar da resposta «em branco» o segurador optou por celebrar o contrato, ou de respostas patentemente contraditórias entre si («contradição evidente nas respostas ao questionário») ou in-coerentes, em que um segurador de boa fé deveria pedir esclarecimentos, em vez de se precipitar na celebração do contrato. O que o n.º 3 do artigo 24º estabelece (…) é a irrelevância destas questões e respectivas respostas (ou falta delas, quando a questão é deixada em branco) e não uma presunção de relevância das questões contidas no questionário. o que se passa é coisa bem distinta: é que relativamente a estas questões referidas no n.º 3 do artigo 24º um segurador que se comporte de boa fé não pode demonstrar a sua relevância. Perguntou o que já sabia (…) ou comportou-se como se a pergunta (e a respectiva resposta) não fosse relevante e não pode, sob pena de grave contradição, prevalecer-se dela”.

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nário incompleto, sem qualquer sanção ou desvantagem para si; até porque ao tomador não escusa a invocação de ter respondi-do com completude, verdade e exactidão ao questionário. Mesmo nos sistemas de base-pergunta, base-segurador a jurisprudência e a doutrina são muito cautelosas no reconhecimento da presunção de essencialidade do questionário. Os ordenamentos que consa-gram expressamente esta presunção (como o suíço) delimitam-na (também expressamente) apenas às questões que sejam formula-das de modo directo e inequívoco.

A doutrina dominante sufraga a ideia à luz da qual, inexistindo norma expressa nesse sentido, não deve reconhecer-se a presunção de essencialidade da informação sindicada em questionário147. Em presença da nossa lei, Júlio Vieira Gomes entende não poder extrair-se uma tal presunção de essencialidade das circunstâncias versadas no questionário. E nota o facto de as previsões normativas do n.º 3 do art. 24.º da LCS não descreverem apenas hipóteses verificáveis em contexto de prática de questionário148. Na verdade, o preceito prevê comummente para as cinco previsões normativas a consequência jurídica de proibição de venire contra factum proprium para o se-

147 Vide angela solimando, «Disciplina delle dichiarazioni precontrattuali nel con-trato di assicurazione. Evoluzione della giurisprudenza», Assicurazioni 2001, ano LXVIII, n.ºs 1 e 2, pp. 46-50; vittorio salandra, «Le dichiarazioni dell’assicurato secondo il nuovo codice»; Assicurazioni 1942, parte I, pp. 1-12 e mario martano e Paolo mariotti «Quando il rischio reale non corresponde al rischio assicurato», Responsabilità Civile e Previdenza 1990, vol. LV, pp. 944 e ss...

148 Cfr. Júlio m. vieira gomes, op. cit., pp. 413-414, em que o autor peremptoria-mente afirma “Quanto a nós, longe de ser «incontornável» [em alusão à posição de Arnaldo Costa Oliveira que reconhece existir uma presunção de relevância do ques-tionário, qualificando-a como «incontornável»], a referida presunção não resulta, de modo algum, do n.º 3 do artigo 24º. (…) Aliás, se a presunção de relevância das ques-tões incluídas no questionário existisse e fosse o preço a pagar pelo n.º 3 do artigo 24º sempre se poderia dizer, na nossa opinião, que um tal preço seria um tanto excessivo”.

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gurador. Nas hipóteses descritas na norma, o legislador densifica o conceito de má-fé pré-contratual do segurador. E as hipóteses le-gais subsumíveis àquele conceito dizem respeito ao ónus de indaga-ção do segurador, não se restringindo ao questionário (facultativo e quando utilizado não necessariamente completo ou sequer rele-vante). A alínea e), por exemplo, não deixa margem para dúvidas quando refere “circunstâncias conhecidas do segurador, em espe-cial quando são públicas e notórias”. As alíneas d) e e) vedam ao segurador a faculdade de invocação do incumprimento do dever de informação do tomador do seguro ou segurado relativamente a circunstâncias conhecidas do próprio segurador que o tomador do seguro ou segurado (não dolosamente) omita ou declare com ine-xactidão. Vale isto por dizer que, nas duas últimas alíneas, a norma descreve situações estranhas à prática do questionário e, nas três primeiras, estão hipóteses em contexto de questionário.

Do que vem dito, resulta que a lei não distingue entre aspectos que o segurador conhece dentro ou fora da prática de questioná-rio. E onde a lei não distingue, não deve distinguir o intérprete. Em face de uma solução legal que estabelece que o segurador de boa-fé não pode demonstrar a essencialidade de circunstâncias relativamente às quais permitiu que fosse incumprido (sem dolo) o dever de informação pelo tomador do seguro ou segurado, não se reconhece a existência de uma presunção de essencialidade do conteúdo do questionário. O n.º 3 do art. 24.º da LCS, como o vê Júlio Vieira Gomes, é a afirmação das soluções a que “a juris-prudência poderia chegar (…) sem dificuldade” por aplicação do princípio da boa-fé e do instituto do abuso do direito “embora seja meritório que a lei as consagre”149.

149 Já quanto à excepção do dolo do tomador ou segurado, o autor é muito crítico, manifestando estranheza e incompreensão ante a ressalva da norma que permite ao segurador invocar o inadimplemento doloso do dever de informação por

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A jurisprudência inglesa também presta homenagem às exigên-cias da boa-fé e ao contrato de seguro como utmost good faith contract, recuperando o elemento caracterizador pelo qual a doutrina classicamente se lhe referia. Na verdade, o sentido das decisões dos tribunais britânicos pondera o impacto do concreto questionário no espírito do tomador quanto ao relevo de certas cir-cunstâncias150. Ponderação adequada e pertinente que os nossos juízes vertem outrossim nas suas decisões, perscrutando, num juízo de prognose póstuma, se o questionário do caso sub iudice gerou uma convicção errónea no espírito do tomador do seguro151.

Nos sistemas de questionário fechado, também existem preo-cupações derivativas da amplitude do dever de informação a que está sujeito o tomador do seguro. A doutrina alerta para o perigo de as grandes empresas seguradoras veicularem junto dos consumido-res a ideia que a celebração de um contrato de seguro, do lado do tomador, se resume ao pagamento do prémio. E os tribunais alemães mostram-se atentos aos casos em que o segurador invoca o incumprimento do dever de informação por parte do tomador, depois de lhe ter sugerido a irrelevância das circunstâncias decla-radas, julgando improcedente por inoponível uma defesa alegada em tais termos.

parte do tomador, ainda que o segurador tenha actuado de má-fé. Cfr. júlio m. v. gomes, op. cit., p. 414, com um sublinhado particular para o comentário expressivo da nota de rodapé (54) em que, criticando a ressalva do dolo do declarante do n.º 3 do art. 23.º, exclama: “Na nossa infância costumávamos ouvir o ditado «ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão», mas nunca pensámos que se tratasse de um princípio jurídico!”.

150 Vide nota 140.151 Cfr. a título ilustrativo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9-12-2008, Proc.

0856436 (Anabela Luna de Carvalho), disponível em www.dgsi.pt e nota 143.

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Sublinhamos o que começámos por afirmar: nem o regime de questionário aberto nem o sistema de base-pergunta, base-segu-rador são isentos de mácula. Todavia, numa visão comparativa, ressaltam as notas de bondade da solução legal do questionário fechado. Os aspectos positivos prendem-se com o exercício de reequilíbrio que o legislador faz das posições desniveladas do se-gurador e do tomador. O primeiro claramente favorecido por ser um profissional a actuar num universo de conceitos jurídicos densos com perfeito domínio das complexas técnicas dos seguros de pon-deração e cálculo de risco152. No pólo oposto, o tomador do seguro provido apenas dos conhecimentos e percepções da experiência comum e da sua própria circunstância153. Numa tentativa de repor o equilíbrio entre os contraentes, o sistema de base-pergunta, base-segurador delimita o âmbito objectivo do ónus de informação do tomador do seguro às circunstâncias perguntadas no questionário e contrapõe-lhe ainda o ónus do segurador de elaboração de um questionário completo. Delimitação que o nosso legislador não rea-liza e que corresponde à grande desvantagem do regime de ques-tionário aberto, na óptica do tomador ou segurado, a parte mais débil do contrato de seguro e que a lei podia e devia tutelar154. A

152 Vide nota precedente e nota 143.153 No que é dito em texto, tomámos a liberdade de uma adaptação livre de um

ensinamento tão simples quanto profundo e verdadeiro de José Ortega Y Gasset “eu sou eu e as minhas circunstâncias”.

154 Cfr. os termos do balanço analítico de j. c. moitinHo de almeida a respeito da LCS: “Se olharmos para as modernas leis europeias o que as distingue umas das outras é, por um lado, a qualidade da técnica jurídica adoptada e, por outro, as so-luções encontradas para assegurar o equilíbrio entre os interesses dos tomadores de seguros, segurados e beneficiários e as exigências de uma boa técnica seguradora. Nesta perspectiva a lei agora vigente em Portugal muito deixa a desejar.” (estudo sobre «A protecção do tomador do seguro…», cit., p. 29).

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LCS onera, assim, excessivamente a posição contratual do tomador do seguro ou segurado, por radicação do seu dever pré-contratual de informação no princípio da declaração espontânea que amplia perigosamente o âmbito objectivo daquela obrigação155.

Diversamente, quanto às consequências jurídicas do incum-primento do dever de informação do tomador do seguro ou segu-rado, aplaude-se a solução da nossa lei que acolhe uma valora-ção gradativa em função da culpa. No plano dos ordenamentos jurídicos inspiradores da LCS, e mesmo em relação aos modelos de que o nosso legislador se afasta, não existe um regime idênti-co ao nosso, de distinção entre declarações omissas ou inexactas dolosas (artigo 25º) e negligentes (artigo 26º). É positiva a consa-gração de um regime de omissões e inexactidões diferenciado em função do grau de culpa do declarante. No regime das omissões e inexactidões declarativas, em sede de cumprimento do dever pré-contratual de informação que impende sobre o tomador do seguro ou segurado, encontramos uma manifestação do instituto do erro vício de vontade, do erro que atinge os motivos determi-nantes da vontade. Ora, tratando-se de vícios na formação do

155 Cfr. júlio vieira gomes, in «O dever de informação…», cit., pp. 444-445, em que o autor conclui que o modelo do questionário aberto configura um “sistema, le-gado de uma época em que o segurador era, verdadeiramente a parte mais fraca e tinha que confiar quase cegamente nas declarações do tomador do seguro ou segurado, não foi verdadeiramente revisto, como se impunha. Com efeito, não ape-nas é crescentemente criticado em termos de eficiência, como é causa de grande litigiosidade e é materialmente injusto, sobretudo quando o tomador do seguro é um consumidor. (…) se os tomadores do seguro contratam para se precaverem ou protegerem, em alguma medida, de riscos, nem sempre têm na devida conta o risco que pode estar ínsito na própria celebração de um contrato de seguro. E neste aspecto a tutela que a lei lhes concede é bem mais deficiente que a tutela que lhes é concedida, por exemplo, pelas legislações alemã ou espanhola”.

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contrato, compreende-se que as omissões e inexactidões do to-mador ou segurado firam o contrato de seguro de anulabilidade, desde que o segurador demonstre que o declarante conhecia a essencialidade do erro na decisão de (este último) contratar156. Por esta via, e embora com traços menos incisivos do que aqueles que apontamos no modelo de questionário fechado, a LCS tenta miti-gar as desvantagens do sistema base-resposta, base-tomador, de-limitando o âmbito do princípio da declaração espontânea (dever pé-contratual de informação do tomador do seguro ou segurado) às declarações culposas. Mais se sublinha que a nossa lei aponta no sentido da irrelevância das declarações omissas ou inexactas sem culpa, sendo certo que a bondade da opção legislativa se encontra cerceada pela complexidade157-158.

156 Já assim considerava a doutrina na vigência do artigo 429.º do Código Comercial, sustentando que a sanção de nulidade que o preceito estabelecia deveria interpretar-se no sentido de nulidade relativa, id est, de anulabilidade exac-tamente pelo afloramento do regime geral do erro-vício. Cfr., v. g., José Vasques, in Contrato de Seguro, Notas para uma teoria geral, Coimbra Editora, Coimbra, 1999 que refere que “o artigo 429º do C.Com. constitui um afloramento do erro vício de vontade: o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável…desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o decla-rante, do elemento sobre que incidiu o erro (artigos 251º e 247º do C.C.), trata-se, assim, de situação em que a seguradora se decide a perseguir a função económi-ca-social do negócio partindo de um conhecimento erróneo ou de uma previsão enganosa. Efectivamente, quando o segurador aceitar contratar nos termos ine-xactos ou reticentes declarados pelo proponente, a sua declaração negocial está viciada por um erro, nos termos gerais, essa declaração torna o negócio anulável ”.

157 O regime das omissões e inexactidões da LCS (arts. 25.º e 26.º) representa uma evolução na continuidade relativamente ao regime anterior. Com efeito, dis-punha o artigo 429.º do Código Comercial que “Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”. A LCS prevê como sanção máxima para as de-clarações omissas ou inexactas a anulabilidade, tal como o preceito transcrito, por-

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158.

que, pese embora a cominação de nulidade, o entendimento doutrinário e jurispru-dencial convergente defendia tratar-se ali de uma previsão de anulabilidade, id est, de nulidade relativa, fundamentalmente pela tutela que a norma faz de interesses privados e não de normas de natureza pública. O fundamento da possibilidade de anulação do contrato de seguro situa-se na importância da correcta determinação do risco na conformação do contrato, sancionando-se as declarações inexactas ou reticentes relativas a factos conhecidos do tomador do seguro ou segurado na medida em que pudessem ter influído na celebração e/ou condições do contrato, admitindo-se que o segurador não teria concluído o contrato (erro essencial) ou tê-lo-ia celebrado com condições mais onerosas para o tomador (erro incidental). No sentido da anulabilidade prescrita pelo revogado artigo 429.º do Código Comercial, na perspectiva da jurisprudência, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1993, in CJ, ano I, tomo III, p. 74; de 3-3-1998, in CJ, ano VI, tomo I, p. 103 e de 15-6-1999, in BMJ 488, p. 381 e, por banda da doutrina, vide Calvão da Silva, RLJ, ano 133, p. 221 e moitinHo de almeida, O contrato de Seguro, p. 61.

158 O regime das omissões e inexactidões da LCS (arts. 25.º e 26.º) é tributário do ónus de questionação do segurador, inscrito no art. 24.º, n.º 3, que estabelece que o segurador, depois de aceitar (celebrar) o contrato (aceitação da proposta/questionário do tomador ou segurado), só perante actuação dolosa do declarante, poderá anulá-lo. Na verdade, as declarações omissas ou inexactas implicam um desvalor variável em função do grau de culpa do declarante. Incumprido o dever de informação, o contrato será anulável ou meramente denunciável, consoante o tomador do seguro ou segurado tenha actuado dolosamente (art. 25.º) ou com mera culpa (art. 26.º). Também esta solução bipartida tem inspiração na leitura que a jurisprudência vinha fazendo do revogado artigo 429.º do Código Comercial, alinhada outrossim com o direito comparado próximo. A pedra de toque é, então, saber se as circunstâncias omitidas ou inexactamente declaradas eram ou não co-nhecidas pelo declarante.

Descrevendo as consequências das declarações dolosamente omissas ou inexac-tas, temos que a anulação do contrato opera através de declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro. Inexistindo sinistro, a declaração deve ser expe-dida até 3 meses após a data em que o declaratário tomou conhecimento do in-cumprimento do dever de informação por parte do tomador ou segurado (art. 25.º, n.º 2). O n.º 3 do art. 25º exonera o segurador da responsabilidade de cobrir sinistro que ocorra antes de tomar conhecimento do dolo na actuação do declaratário ou dentro do prazo legal dos 3 meses para o envio da comunicação de anulação do contrato, “seguindo-se o regime geral da anulabilidade”. Quando as declarações sejam omissas ou inexactas por negligência, importa distinguir se ocorreu ou não sinistro (art. 26.º, n.ºs 1 e 4). Não havendo sinistro (n.º 1), o segurador, dentro do prazo de 3 meses a contar do conhecimento da negligência do declarante no teor das declarações, pode propor uma alteração do contrato ao tomador do seguro [al. a)]

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Cotejadas forças e fraquezas dos modelos de questionário, te-mos que o sistema de questionário aberto é mais exigente e oneroso para o tomador do seguro ou segurado, não ponderando devida-mente a debilidade da posição negocial do tomador/segurado em relação ao segurador. O legislador podia e devia ter considerado esta condição de parte mais frágil da relação jurídica na reparti-ção de ónus e obrigações pré-contratuais. A realidade jurídico-ma-terial mostra a predominância da celebração de contratos de se-guro através do modelo de contrato de adesão, através, portanto, de cláusulas contratuais gerais e no âmbito de relações jurídicas de consumo, pelo que as soluções da LCS deveriam espelhar as exigências particulares que estas realidades postulam.

ou comunicar-lhe a cessação do contrato [al. b)]. Apresentando uma proposta de alteração das condições contratuais, o segurador concede ao tomador do seguro para aceitação ou contraproposta (se a admitir) um prazo nunca inferior a 14 dias. Já para fazer cessar unilateralmente o contrato, o segurador tem de comprovar a essencialidade do erro sobre os motivos (omissões ou inexactidões) na decisão de contratar, evidenciando que “em caso algum celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente” - art. 26.º, n.º 1, al. b). Se ocorrer um sinistro influenciado (na ocorrência ou consequências) por circunstância omitida ou declarada sem exactidão antes da alteração ou cessação do contrato, o n.º 4 do art. 26.º prevê tanto a possibilidade de cobertura como a de não cobertura pelo segurador. Na segunda hipótese, o segurador apenas devolve o prémio pago e não cobre o sinistro, desde que demonstre a essencialidade das omissões ou inexactidões na decisão de contratar, “demonstrando que, em caso al-gum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente” - art. 26.º, n.º 4, al. b). Não havendo essencialidade do erro sobre os motivos, manda a lei que o sinistro seja coberto em termos proporcionais, ponderan-do a diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido se o segurador co-nhecesse ab initio as omissões ou inexactidões - art. 26.º, n.º 4, al. a). Assim, existindo sinistro, é determinante a existência de causalidade entre o facto omitido e o evento ocorrido (entre nós, sobre o nexo de causalidade, vide francisco Pereira coelHo, O problema da causa virtual na responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 2008).

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

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O (nosso) modelo de questionário aberto abre caminho à liti-gância judicial excessiva e relega desnecessariamente para a juris-prudência e para a doutrina o reequilíbrio das posições contratuais. E não se diga que os deveres de esclarecimento do segurador com-pensam a inferioridade da posição jurídico-contratual do tomador ou segurado, pois prevalece a imersão do dever de informação do tomador do seguro no princípio de declaração espontânea até à conclusão do contrato.

IV – CONCLUSÕES FINAIS

Sumário

IV.1 Conclusões finais

IV. 1 Conclusões finais

O Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, designado por Lei do Contrato de Seguro, como diploma unitário do regime jurídico do contrato de seguro, representa o processo de codificação do con-junto esparso de diplomas legais até então existente.

Da aglomeração num só instrumento legislativo resultam maior facilidade de acesso à informação e reforço de segurança e certe-za jurídicas na interpretação e aplicação da lei.

Em face do anterior regime, existe alguma evolução legislati-va no sentido de maior tutela do tomador do seguro ou segurado,

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Marisa Silva Monteiro

embora ainda distante das opções legislativas dos modernos orde-namentos europeus, sendo certo que a LCS adopta uma visão da relação contratual de seguro como uma relação complexa com importantes similitudes com os laços negociais nascidos das rela-ções contratuais de consumo, na perspectiva da tensão e dese-quilíbrio que lhe são característicos, e que acaba por se reflectir na tutela da posição do tomador ou segurado.

O legislador assume que o tomador do seguro ou segurado é a parte mais frágil da relação contratual e, embora tenha ficado aquém do nível de tutela da legislação de consumo, aplaude-se a tentativa de reequilíbrio de direitos e deveres das partes com a consagração expressa dos deveres de esclarecimento do segura-dor (arts. 22.º e 24.º, n.º 4), em linha com a opção legislativa alemã.

O art. 1.º da LCS apresenta uma noção de contrato de seguro por referência ao conteúdo típico. Temos por adequada tal metodologia, também adoptada pelo legislador alemão, de posicionamento do tipo como ponto de partida para a avaliação ou comparação normativa, ocupando uma posição intermédia entre o concreto e o conceito.

Quanto ao contrato de seguro de saúde, o art. 213.º da LCS descreve-o por densificação do quid de incidência do risco a que (necessariamente) as partes se referem no contrato. O legislador exige, e bem, identidade de fisionomia do seguro de saúde com o tipo contratual geral (contrato de seguro) por referência ao risco.

Em decorrência, a nossa compreensão do contrato de segu-ro de saúde resulta da observação iterativa das relações jurídicas materiais, de procura nelas de um concretum unitário sentido nor-mativo e não meramente de um somatório de características gerais passíveis de recondução ao tipo de contrato em causa.

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A projecção do elemento caracterizador risco a partir da nor-ma que descreve o tipo contratual geral (contrato de seguro) para o preceito que especifica os contornos do contrato de seguro de saú-de evidencia a sua essencialidade em ambas as construções nor-mativas, sendo que a abordagem tipológica aconselha a transluci-dez da construção conceptual à luz da realidade jurídico-material.

A reiteração que a lei encerra no texto das respectivas normas, quanto ao elemento risco, tanto na delimitação do contrato de seguro como na descrição do seguro de saúde, denota a sua indis-pensabilidade no processo de afirmação de identidade de sentido entre a prática e o(s) tipo(s).

Com a enunciação da característica mais significativa do contrato de seguro de saúde (o risco) pretendemos vincar a essencialidade da sua consagração contratual como eixo das relações jurídicas de seguro.

Cremos ser necessário impregnar o tipo social do seguro de saúde com a nota de imprescindibilidade do elemento contratual risco, sabendo que habitualmente as partes contratam por referên-cia ao tipo social.

A declaração inicial do risco (art. 24.º da LCS) corresponde ao dever pré-contratual de informação do tomador do seguro ou se-gurado que a nossa lei desenha com um âmbito (objectivo) amplo e de complexa determinação.

Ex vi lege, o tomador ou segurado está obrigado a informar o segurador de todas as circunstâncias por si conhecidas até à con-clusão do contrato (e) que razoavelmente entenda serem signifi-cativas para a avaliação do risco pelo segurador, apreciando-se em termos subjectivos o conceito indeterminado de circunstâncias significativas.

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Marisa Silva Monteiro

Afigura-se-nos mitigador da posição excessivamente onerosa em que a lei coloca o tomador do seguro a circunstância de o n.º 4 do art. 24.º sujeitar o segurador ao dever ex ante de alertar o futuro tomador do seguro ou segurado para o dever de declaração inicial do risco que sobre ele impende, sob a cominação de responsabili-dade civil do segurador.

Sem prejuízo, cremos que o princípio de declaração espontânea que enforma o nosso regime de declaração inicial de risco (art. 24.º, n.º 2) é demasiadamente oneroso, na medida em que faz impender sobre o tomador ou segurado o dever de declarar junto do segu-rador todas as preditas circunstâncias significativas, independente-mente do questionário eventualmente apresentado pelo segurador.

O legislador português acolheu o modelo de questionário aber-to de declaração inicial do risco, nos termos do qual o dever pré-contratual de informação a que fica adstrito o tomador ou segura-do engloba factos não mencionados no questionário (facultativo) do segurador (art. 24.º, n.º 2).

Diversamente, no sistema de questionário fechado, o dever de informação circunscreve-se às matérias abordadas em prática de questionário (obrigatório) do segurador.

Numa tentativa de repor o equilíbrio entre os contraentes, o sis-tema de base-pergunta, base-segurador delimita o âmbito objec-tivo do ónus de informação do tomador do seguro ou segurado às circunstâncias perguntadas no questionário e contrapõe-lhe ainda o ónus do segurador de elaboração de um questionário completo.

Pergunta-se da existência de uma presunção de essencialida-de de facto cuja declaração é pedida em questionário, respon-dendo-se negativamente num sistema como o nosso de base-res-posta, base-tomador.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

245e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

Com efeito, o nosso regime concede liberdade total ao segu-rador na decisão de apresentar ou não um questionário, e mesmo em contexto de questionário, a lei não lhe impõe qualquer ónus de esclarecer o declarante sobre quais as circunstâncias que ele deve considerar significativas.

Mas há quem entenda até que uma tal presunção poderia ser largamente vantajosa para o segurador, porque seria dificílimo o tomador do seguro ou segurado provar que desconhecia a rele-vância dos factos inquiridos no questionário.

Por outro lado, como a lei não impõe qualquer ónus de elaboração de um questionário completo, o segurador pode apresentar um questio-nário incompleto, sem qualquer sanção ou desvantagem para si.

Mesmo nos sistemas de questionário fechado, a jurisprudência e a doutrina são muito cautelosas no reconhecimento da presun-ção de essencialidade do questionário.

Nos sistemas de questionário fechado em que a lei prevê ex-pressamente a presunção, esta circunscreve-se às perguntas cla-ras, directas e inequívocas do questionário.

Por tudo isto, permanece matéria discutida na doutrina sa-ber se existe um verdadeiro ónus do segurador de confirmação da bondade e completude da informação declarada pelo tomador do seguro ou segurado na fase pré-contratual.

Da nossa parte, deixámos exposto o nosso entendimento se-gundo o qual a posição do tomador ou segurado não se encontra devidamente protegida. O legislador podia e devia tê-lo guarneci-do ponderando a enormíssima desproporção de meios que existe entre tomador/segurado e segurador.

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Marisa Silva Monteiro

Defendemos também que o dever de esclarecimento do segu-rador carece de densificação, desde logo em matéria probatória do seu cumprimento.

Reconhecemos que as especificidades do seguro de saúde tornam difícil a ponderação que a lei tem de fazer relativamente aos interesses em confronto. Socialmente, também sabemos que está de certa forma instalada a ideia que um seguro de saúde é um plano de comparticipação de despesas de saúde, cabendo ao legislador um certo papel disciplinador de cultura jurídica, in casu para prevenir situações de declarações omissas ou inexactas.

No seguro de vida, temos um exemplo de um contrato de se-guro em que inexiste o elemento da incerteza da verificação do evento aleatório cujo risco de ocorrência se pretende cobrir atra-vés da celebração do contrato: é o que a doutrina designa certus an incertus quando, porque a perda da vida é certa, só não se sabe é quando...

Ora, em relação à saúde, não se colocando a questão qua tale como em relação à vida, o certo é que entre o tipo social e o tipo legal vai uma distância que deve preencher-se também com o didactismo que cumpre ao legislador imprimir na letra da lei e aos técnicos dos seguros na prática da realidade material-jurídica.

Ainda que o tomador do seguro ou segurado saiba que irá ne-cessitar da cobertura de riscos relacionados com a prestação de cuidados de saúde pode celebrar um contrato de seguro de saú-de, devendo, contudo, na sua declaração inicial de risco informar o segurador sobre as circunstâncias que poderão influir nos termos e condições do contrato.

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O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE

247e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

O aprofundamento da técnica dos seguros foi socialmente muito importante no desenvolvimento das sociedades modernas de evolução cientifica, técnica e tecnológica.

O desafio hodierno é de construção de regimes legais de mo-dalidades de seguro equilibrados que cumpram um papel duplo: protecção da mais frágil da relação negocial (inequivocamente o tomador do seguro/segurado) e de combate à ideia segundo a qual o segurador tenta quase sempre eximir-se de responsabilidade se ocorre o evento aleatório previsto no contrato.

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Marisa Silva Monteiro

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Carlos Ferreira de, «A função económico-social na estrutura do contra-

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

The role of vulnerability in Portuguese Consumer Law

Sandra Passinhas1

Resumo O objecto do presente texto é averiguar qual o lugar que ocu-

pa a vulnerabilidade enquanto fundamento axiológico do Direito do Consumidor, bem como os meios de tutela dos consumidores colocados numa situação de vulnerabilidade agravada. Propug-naremos que o Direito do Consumidor, enquanto direito de merca-do, é especialmente apto para a reposição da equidade na expe-riência de consumo, mas não pode, todavia, prescindir de outros complexos normativos para a adequada tutela de situações de vulnerabilidade agravada.

Palavras-ChaveDireito do consumidor, vulnerabilidade, consumidor médio

Abstract The aim of this article is to analyse the role of vulnerability as foun-

dation of Consumer Law, as well as the tools available to protect espe-

1 Professora auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra ([email protected]).

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r256

Sandra Passinhas

cially vulnerable consumers. I will argue that Consumer Law, as a market law, is suitable for restore fairness in consumers’ experience. However, other legal institutes (v.g. antidiscrimination law, commer-cial law) are necessary for a full and adequate protection of parti-cularly vulnerable consumers.

Keywords Consumer Law, vulnerability, average consumer

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

257e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

1. Introdução

O Direito do Consumidor português recebe, da sua matriz euro-peia, a natureza de um direito de mercado2, que, não renegando uma ideia de vulnerabilidade, não consegue, todavia, responder às diversas matizes com que esta se apresenta. A adoção do pa-drão metrológico do consumidor médio ensombra a multidimen-sionalidade do fenómeno da vulnerabilidade e deixará, eventual-mente, desprotegidos consumidores colocados numa situação de vulnerabilidade agravada.

O objeto do presente texto é averiguar, no atual quadro de repartição de competências estabelecido pelos Tratados, qual o lugar que ocupa a vulnerabilidade enquanto fundamento axio-lógico do Direito do Consumidor. Começaremos por uma breve descrição do que entendemos por vulnerabilidade na relação de consumo e seguiremos pela análise da proteção do consumidor funcionalizada à realização do mercado interno (na jurisprudência do TJUE, na legislação e na ação política da União Europeia). Por último, descreveremos os principais meios predispostos para a tute-la dos consumidores e concluiremos que aqueles colocados numa situação de vulnerabilidade agravada não podem prescindir da tutela que lhes é conferida noutras sedes, nomeadamente da le-gislação antidiscriminação, da proteção dos incapazes, do regime da falta de vontade ou da usura, ou ainda da tutela da aparência conferida pelo Direito Comercial.

2 Sobre o conceito, vide jules stuyck, “European Consumer Policy After the Trea-ty of Amsterdam: Consumer Policy In or Beyond the Internal Market”, CMLRev, 2017, n.º 37, pp. 367 e ss., e Hans-w. micklitZ, “An Expanded and Systematized Community Consumer Law as Alternative or Complement”, EBLR, 2002, pp. 588 e ss.

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r258

Sandra Passinhas

2. A questão da vulnerabilidade

A vulnerabilidade do consumidor é um estado de fraqueza ou fragilidade (powerlessness), que resulta de um desequilíbrio que lhe é desfavorável, seja na exposição a mensagens e a práticas comerciais, seja nas mais ou menos intensas interações de merca-do. Todos os consumidores são potencialmente vulneráveis, nesse sentido: quer porque estão expostos a mensagens de promoção, publicidade e de marketing que são enganadoras ou pelo menos induzem em erro, quer porque estão sujeitos a práticas comerciais que colocam em risco a sua saúde ou pelo menos não a acaute-lam devidamente, quer porque celebram contratos que lhes são predispostos e que não podem negociar na fase pré-contratual, ou, podendo, não têm efetivo poder de negociação das concretas cláusulas contratuais ou consciência dos termos da vinculatividade dos mesmos3. Podemos dizer que esta é uma vulnerabilidade posi-cional, resultante da mera posição no mercado, ao encontro de profissionais, em geral qualificados e poderosos, e que se pode ve-rificar quer no momento da promoção dos bens ou serviços, da ne-gociação e da celebração do contrato, quer na sua (in)execução, quer em caso de surgimento de litígio. Neste sentido, a vulnerabili-dade do consumidor resulta de condições exógenas ao indivíduo4.

Se é assim, em geral, com todos os consumidores, alguns deles apresentam características específicas que os colocam numa situa-

3 Vide, a este propósito, aurelia colombo ciaccHi, “Freedom of contract as freedom from unconscionable contracts”, in mel kenny, james devenney e lorna fox o’maHony, Unconscionability in European Private Financial Transactions, cuP, 2010, pp. 7 e ss.

4 Sobre a questão da vulnerabilidade nas relações internacionais, colocadas

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

259e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

ção agravada de vulnerabilidade quando na situação de mercado. Referimo-nos à vulnerabilidade resultante de características indivi-duais, sejam características biofísicas, como a idade, o género, a saúde, a raça e etnia, a orientação sexual, adições e habilidade funcional, ou características psicossociais, como a capacidade e desenvolvimento cognitivos, a literacia e a condição socioeconómi-ca5. Qualquer destes fatores carece, todavia, de uma concretização hermenêutica que os considere em toda a sua densidade informa-tiva. Pense-se, a título de exemplo, no fator idade, e como deve ser considerado no tempo atual. Aumentou a percentagem da popu-lação idosa, com reconhecidas dificuldades na adaptação a mer-cados complexos e em mudança, ao desenvolvimento tecnológico e ao ambiente digital. Por outro lado, diminuíram os consumidores mais novos (adolescentes), mas esta faixa etária tem-se tornado mais ativa no mercado, em resultado da afluência característica dos paí-ses industriais. Pode, todavia, faltar-lhes conhecimento suficiente e experiência para a tomada racional de decisões. No que diz respei-to à condição socioeconómica, tendências de curto prazo ditadas pela conjuntura económica influenciam certamente as expectativas

pelos desafios contemporâneos, vide dan wei, “Consumer Protection in the Global Context: The Present Status and Some New Trends”, e cláudia lima marQues, “Rela-tions Between International Law and Consumer Law in the Globalized World: Challen-ges and Prospects”, in cláudia lima marQues e dan wei, Consumer Law and Socioeco-nomic Development, Springer, 2017, pp. 5 e ss e 223 e ss, respectivamente.

5 aniceto masferrer e emilio garcía-sancHeZ, “Vulnerability and Human Dignity in the Age of Rights”, in aniceto masferrer e Emilio garcía-sancHeZ (eds), Human Dignity of the Vulnerable in the Age of Rights, Springer, 2016, p. 5, sublinhando que todos os indivíduos são vulneráveis, mas uns são mais do que outros. Sobre uma ética da vul-nerabilidade, vide adela cortina e Jesús conill, “Ethics of Vulnerability”, em aniceto masferrer e Emilio garcía-sancHeZ (eds), Human Dignity of the Vulnerable in the Age of Rights, cit., pp. 45 e ss, e de como os a vulnerabilidade dos indivíduos foi posterga-da por conceitos como autossuficiência, autonomia, poder da vontade ou agência.

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Sandra Passinhas

e o comportamento dos consumidores. Por exemplo, a crise finan-ceira de 2008 diminuiu a confiança dos consumidores e o poder de compra de parte da população, enfraquecendo a sua posição e colocando alguns em risco de exclusão social. Mas esta é uma ten-dência cíclica: a vulnerabilidade é multidimensional, depende do contexto e, sobretudo, não tem de ser persistente6.

A questão da vulnerabilidade agravada resultante de carac-terísticas específicas suscita necessariamente uma outra questão: a da vulnerabilidade dos grupos e dos meios de resposta a essa vul-nerabilidade7. Entendemos, todavia, que a vulnerabilidade de gru-pos como resposta tem muitas limitações. Em muitos casos, espe-cialmente quando devida a fatores sociais, culturais e linguísticos, os consumidores vulneráveis não são especificamente identificáveis e não podem ser facilmente agrupados. Mesmo quando o sejam, persistem as dificuldades. Pensemos, por exemplo, na vulnerabilida-de dos idosos: a diversidade das condições socioeconómicas (em especial, rendimento disponível e classe social), da literacia e até da própria idade (66 anos ou 96 anos) são senho das dificuldades que acabámos de apontar. O mesmo vale para a enfermidade fí-sica ou mental: consumidores com deficiência podem sentir dificul-dades distintas no acesso à informação ou em encontrar bens ou serviços adequados às suas necessidades. A vulnerabilidade agra-vada é especialmente contextualizada, depende muito do concre-to consumidor individual e da sua situação específica8.

6 Vide s. m. baker, james w. gentry e t. l. rittenbourg “Building Understanding of the Domain of Consumer Vulnerability”, Journal of Macromarketing, 2005, n.º 25, pp. 128 e ss.

7 O desenvolvimento de grupos distintos, com diferentes capacidades e co-nhecimento, vai obrigar a respostas políticas orientadas especificamente para a proteção e a inclusão dos grupos vulneráveis.

8 bram b. duivenvoorde, The Consumer Benchmarks in The Unfair Commercial Practices Directive, Springer, 2015, p. 191.

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

261e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

A experiência de consumo, onde, em geral, qualquer pessoa é potencialmente vulnerável, requer que, em concreto, fatores ex-ternos reponham a equidade (fairness) no mercado. Dito de ou-tro modo, a experiência de consumo implicando uma situação de vulnerabilidade, despoletará, para além da resposta individual ou até do próprio mercado9 (por exemplo, dos concorrentes), uma res-posta político-legislativa e regulatória, visando repor o equilíbrio ou aumentar o controlo em encontros futuros, isto é, potenciar a agên-cia do consumidor, ou facilitar a resolução de um litígio já instalado.

Em síntese, podemos, pois, assertar que o conceito de consu-midor médio não exclui a consideração da vulnerabilidade, por-quanto à condição de agente no mercado é inerente a potencial sujeição a um desequilíbrio desvantajoso10. A vulnerabilidade assim

9 As respostas individuais mostram que os consumidores não são meros sujeitos passivos no mercado ou do que o mercado tem para lhes oferecer. Pelo contrário, os consumidores podem contribuir ativamente para alterar o ambiente que os ro-deia. Vide o nosso Dimensions of Property Under European Law, Fundamental Rights, Consumer Protection and Intellectual Property: Bridging Concepts?, Florença, 2010, disponível em http://cadmus.eui.eu/handle/1814/13759, pp. 104 e ss.

10 Por exemplo, no acórdão do Tribunal de Justiça de 27 de junho de 2000, nos processos Océano Grupo Editorial SA contra Roció Murciano Quintero (C-240/98) e Salvat Editores SA contra José M. Sánchez Alcón Prades (C-241/98), José Luis Copano Badillo (C-242/98), Mohammed Berroane (C-243/98) e Emilio Viñas Feliú (C-244/98), estava em causa a compra a prestações, para fins pessoais, de enciclopédias, en-tre 4 de maio de 1995 e 16 de outubro de 1996, pelos demandados no processo principal, todos domiciliados em Espanha, foi perguntado ao TJUE se o âmbito da protecção do consumidor nos termos da Directiva 93/13/CEE do Conselho, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, permite ao juiz nacional apreciar oficiosamente o carácter abusivo duma cláusula ao apreciar a questão prévia da admissibilidade duma acção proposta nos tribunais comuns. Foi, precisamente, ao versar sobre a possibilidade de conhecimento oficioso pelo juiz da cláusula abusiva do contrato que o Tribunal considerou: “deve recordar-se que o sistema de protecção implementado pela directiva repousa na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade relativamente ao profis-sional no que respeita quer ao poder de negociação quer ao nível de informação,

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r262

Sandra Passinhas

entendida constitui sempre um conceito normativo e necessaria-mente abstrato, que nos remete para o dever ser11, para um ade-quado padrão de comportamento.

A adequada resposta político-legislativa será aquela que con-seguir repor, pelo menos parcialmente, o equilíbrio que permita acei-tar o encontro de consumo como equitativo. Mais do que atender ao desequilíbrio das concretas relações contratuais, resultante das características específicas geradoras de uma vulnerabilidade agra-vada, que eventualmente carecem de um controlo substantivo-ma-terial, a resposta dada pelo Direito do Consumidor basta-se, as mais das vezes, com exigências procedimentais (pense-se, por exemplo, nos deveres de informação, de comunicação ou de assistência).

situação esta que o leva a aderir às condições redigidas previamente pelo profissio-nal, sem poder influenciar o conteúdo destas”. O artigo 6.º da Directiva 1993/13/CE, que obriga os Estados-Membros a preverem que as cláusulas abusivas não vinculam os consumidores, não estaria cumprido se os consumidores se vissem na obrigação de suscitar eles mesmos a questão do carácter abusivo dessas cláusulas. Continua o Tribunal: “Em litígios de valor frequentemente reduzido, os honorários do advogado podem ser superiores ao interesse em jogo, o que é susceptível de dissuadir o con-sumidor de defender-se contra a aplicação de uma cláusula abusiva. Se é verdade que, em numerosos Estados-Membros, as regras de processo permitem, nesses litígios, aos particulares exercer a sua própria defesa, existe um risco não negligenciável de que, nomeadamente por ignorância, o consumidor não invoque o carácter abusivo da cláusula que lhe é oposta”. Subscrevendo o Advogado-Geral A. Saggio, no n.º 24 das suas Conclusões, “o sistema de protecção estabelecido pela directiva assenta na ideia de que a situação de desequilíbrio entre o consumidor e o profissional só pode ser compensada por uma intervenção positiva, exterior às partes do contrato. É a razão pela qual o artigo 7.º da directiva, que, no seu n.º 1, exige aos Estados-Mem-bros que providenciem meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas, precisa, no seu n.º 2, que esses meios incluem a faculdade de as associações de consumidores reconhecidas recorrerem aos tribunais a fim de que estes determinem se certas cláusulas contratuais, redigidas com vista a uma utilização generalizada, têm ou não um carácter abusivo e de obterem, sendo caso disso, a sua proibição, mesmo que não tenham sido inseridas num contrato determinado”.

11 bram b. duivenvoorde, ob. cit., p. 64.

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

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O Direito do Consumidor português recebe, da sua matriz eu-ropeia, a natureza de um direito de mercado. Resultando o seu nú-cleo normativo da transposição de Diretivas Europeias, que assumi-ram no dealbar do século XXI a veste da harmonização total12, a conformação axiológico-pragmática da proteção conferida pelo nosso ordenamento legal aos consumidores encontra-se vincula-da pelas assunções político-normativas tomadas naquela sede, nomeadamente pela funcionalização do proteção da defesa do consumidor ao funcionamento do mercado comum e à necessá-rio coordenação da política do consumidor com outras políticas de proteção de (outros) agentes de mercado, v.g. as pequenas e médias empresas. Vejamos, pois, como as instâncias europeias concretizaram o conceito de consumidor vulnerável e como foi tu-telada essa vulnerabilidade.

3. A proteção do consumidor funcionalizada ao mercado interno: a consideração do consumidor médio

O Direito Europeu do Consumidor, que enforma grande parte do Direito Português, surge configurado como um direito de mer-cado, isto é, funcionalizado à construção do mercado interno. O artigo 4.º do TFUE, n.º 2, determina que a União dispõe de competên-cia partilhada com os Estados-Membros nos domínios do mercado

12 Por todos, vide geraint Howells, “The Rise of European Consumer Law – Whi-ther National Consumer Law?”, Sydney L. Rev., 2006, 28, pp. 63 e ss. Para uma análise económica da harmonização, vide fernando gomeZ e juan jose ganuZa, “An Econo-mic Analysis of Harmonization Regimes: Full Harmonization, Minimum Harmonization or Optional Instrument”, ERCL, 2011, pp. 275 e ss.

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interno (alínea a)) e da defesa dos consumidores (alínea f)). O artigo 169.º estabelece, no seu n.º 1, que a fim de promover os interesses dos consumidores e assegurar um elevado nível de defesa destes, a União contribuirá para a proteção da saúde, da segurança e dos interesses económicos dos consumidores, bem como para a promo-ção do seu direito à informação, à educação e à organização para a defesa dos seus interesses. A União Europeia contribuirá para a rea-lização daqueles objetivos através de medidas adotadas em aplica-ção do artigo 114.º no âmbito da realização do mercado interno (o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, e após consulta do Comité Económico e Social, adotam as medidas relativas à aproximação das disposi-ções legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Mem-bros, que tenham por objeto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno13) e através de medidas de apoio, complemen-to e acompanhamento da política seguida pelos Estados-Membros.

Da configuração do direito do consumidor como um direito de mercado resulta, desde logo, a natureza relacional do conceito de consumidor. Desarreigada da eticidade da cidadania, a qualidade de consumidor, aferida em cada concreta transação comercial, depende simultaneamente de a aquisição de bens serviços ou direitos ser feita a um profissional, aquele que exerce uma atividade económica que vise

13 O artigo 114.º, n.º 3, impõe que a Comissão, nas suas propostas em matéria de defesa dos consumidores, se baseie num nível de proteção elevado, tendo no-meadamente em conta qualquer nova evolução baseada em dados científicos. No âmbito das respetivas competências, o Parlamento Europeu e o Conselho pro-curarão igualmente alcançar esse objetivo, de acordo, aliás, com o artigo 38.º da CDFUE, onde se determina que as políticas da União devem assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores. Note-se, ainda, que de acordo com o artigo 12.º, do TFUE, as exigências em matéria de defesa dos consumidores serão tomadas em conta na definição e execução das demais políticas e ações da União.

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

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a obtenção de benefícios, e de essa aquisição se destinar a uso não profissional14. Neste sentido, o conceito de consumidor não se confunde com o conceito geral de comprador ou adquirente de serviços, nem com outros conceitos normalmente associados ao Direito do Consumi-dor, como o de utente15, os de assinante ou utilizador16, ou, mais recen-temente, o de passageiro17 e de viajante18.

Existindo abertura do conceito consagrado na Lei da Defesa do Consumidor – definido no artigo 2.º, n.º 1, como “todo aquele a

14 Muito recentemente, o texto de jorge morais carvalHo, “O conceito de con-sumidor no Direito Português”, EDC, 2018, n.º 14, pp. 185 e ss. Considerando que existe uma tendência para a regulação de contratos assimétricos em vez de con-tratos de consumo, vide VincenZo roPPo, “From Consumer Contracts to Asymmetric Contracts: A Trend in European Contract Law”, ECRL, 2009, pp. 304 e ss.

15 A Lei n.º 23/96, de 26 de julho, que regula os serviços públicos essenciais (ser-viço de fornecimento de água; serviço de fornecimento de energia elétrica; serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; serviço de comunicações eletrónicas; serviços postais; serviço de recolha e tratamento de águas residuais; serviços de gestão de resíduos sólidos urbano e serviço de trans-porte de passageiros) define o seu objeto de proteção, o utente, como “a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo”. Por força do Decreto-Lei n.º 5/2018, de 2 de fevereiro, o regime da Lei n.º 23/96, é aplicável à comercialização de GPL engarrafado.

16 A Lei das Comunicações Eletrónicas, Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, no seu artigo 3.º, alínea e), define o assinante como: “a pessoa singular ou coletiva que é parte num contrato com um prestador de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público para o fornecimento desses serviços”, e na alínea nn), define utilizador como “a pessoa singular ou colectiva que utiliza ou solicita um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público”.

17 Adotados nos seguintes Regulamentos: Regulamento (CE) 261/2004 do Parla-mento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos; Regulamento (CE) n.º 1107/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2006, relativo aos direitos das pessoas com deficiência e das pessoas com mobilidade reduzida no transporte aéreo; Regulamento (CE) n.° 1371/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, relativo aos direitos e

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quem18sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quais-quer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obten-ção de benefícios”19 – para a inclusão das pessoas coletivas no âmbito de proteção do conceito20, diplomas nucleares do Direito do Consumi-dor que transpõem a noção consagrada nas Diretivas europeias limi-tam o conceito de consumidor a qualquer pessoa singular21 que, nas transações abrangidas pelo diploma em causa, aja com fins que po-dem ser considerados como alheios à sua atividade profissional. É, pois, a este conjunto, assim restringido, de agentes de mercado, que se diri-ge, no seu essencial, a proteção do Direito do Consumidor português.

obrigações dos passageiros dos serviços ferroviários; Regulamento (UE) n.° 1177/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, relativo aos direitos dos passageiros do transporte marítimo e por vias navegáveis interiores e que altera o Regulamento (CE) n.° 2006/2004; e o Regulamento (UE) n.° 181/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, respeitante aos direitos dos passageiros no transporte de autocarro e que altera o Regulamento (CE) n.° 2006/2004.

18 Veja-se o Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, que estabelece o regime de acesso e de exercício da atividade de agência de viagens e turismo, e que transpõe a Diretiva 2015/2302/UE, que no seu artigo 2.º, n.º 1, alínea q), define o viajante como “qual-quer pessoa que procure celebrar um contrato ou esteja habilitada a viajar com base num contrato de viagem, nomeadamente os consumidores, as pessoas singulares que viajem em negócios, bem como os profissionais liberais, os trabalhadores independentes ou outras pessoas singulares, desde que não estejam abrangidos por um acordo geral para a organização de viagens de negócios”.

19 O n.º 2 do preceito considera incluídos os bens, serviços e direitos fornecidos, prestados e transmitidos pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas regiões autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos.

20 carlos ferreira de almeida, Direito do Consumo, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 44 e ss.

21 Sublinhado nosso.

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

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O fundamento da proteção conformada num modelo de mer-cado cinge-se, pois, na situação de desvantagem posicional em que, no mercado, se considera encontrar o consumidor face ao profissional: o desequilíbrio quanto à informação, ao poder nego-cial, à segurança, ao acesso à justiça e à representação22. Mas, uma eficiente política de proteção do consumidor – que se apre-senta em grande medida, como um instrumento de correção de desequilíbrios, potencial (visa colocar o consumidor em posição de evitar ou corrigir o desequilíbrio) ou efetivo (visa impedir ou dire-tamente corrigir o desequilíbrio) – pressupõe que se delimite com precisão o sujeito objeto dessa proteção, de modo a aferir exata-mente o alcance das suas medidas e a sua eficácia. Esta tarefa coube, em primeira mão, ao TJUE, que, na interpretação do direito europeu, paulatinamente, concretizou o consumidor europeu con-formando-o como “o consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e advertido”23.

A mediania é, pois, o padrão metrológico dos outros qualificati-vos discriminativos do consumidor: ele determina o nível de exigência de informação, de atenção e de prudência (advertência, circuns-peção, racionalidade) que se se pode/deve exigir ao consumidor. A característica da informação, de ser informado, prende-se com o nível de conhecimento (atual ou esperado) do consumidor, conhe-cimento esse que se pode razoavelmente esperar que o consumidor tivesse ou que lhe fosse dispensado pelo profissional24, sobre o pro-

22 Assim, ferreira de almeida, ob. cit., p. 38.23 Sobre o consumidor europeu moldado também como agente confiante, vide

o nosso Dimensions of Property under European Law, cit., pp. 202 e ss.24 Em sentido contrário, bram b. duivenvoorde, ob. cit., p. 67.

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duto ou serviço, condições e locais de venda25. Ser razoavelmente atento refere-se à intensidade da observação/atenção do consumi-dor à informação que lhe é prestada, bem como da absorção dessa informação. Já o ser circunspecto prende-se com a análise e atitude crítica resultante do processamento da informação (que pode, in-clusive, implicar a procura de mais informação)26.

A aplicação prática do padrão do “homem médio” – aque-la que abstrai quer de uma concretização individualizadora do sujeito agente de mercado, que adquire bens ou serviços para

25 Como no Processo C-362/88, GB-INNO-BM, de 7 de março de 1990. Estava em causa, recorde-se, a proibição pelo direito luxemburguês de indicar o período de du-ração de uma oferta especial e a de publicitar o antigo preço. O Tribunal chamou à colação as orientações gerais do segundo Programa da CEE para uma política de proteção e de informação dos consumidores (Resolução do Conselho de 19 de maio de 1981, JO C 133, p. 1), que sublinhavam que as medidas tomadas ou em vias de elaboração, em aplicação do programa preliminar, contribuíam para melhorar a situação do consumidor protegendo a sua saúde, a sua segurança e os seus inte-resses económicos, fornecendo-lhes uma informação e uma educação adequadas e permitindo-lhe manifestar-se quanto às decisões que lhe dizem respeito. Antes, no Processo 94/82, De Kikvorsch Groothandel-Import-Export BV, de 17 de março de 1983, podia ler-se que: “a tutela dos consumidores pode implicar a proibição de fornecer in-formações sobre determinando produto, sobretudo se essas informações forem susce-tíveis de serem confundidas pelo consumidor com outras informações prescritas pelas normas nacionais. No entanto, esta proibição se aplicada aos produtos provenientes de outro Estado-Membro, para ser de modo a impor a modificação das etiquetas originárias dos produtos, é necessário que estas etiquetas sejam de molde a criar efe-tivamente a confusão que as normas nacionais visam excluir. A avaliação dos factos para determinar se existe ou não este risco de confusão respeita ao juiz nacional”.

26 A política do União Europeia ancorada num modelo restritivo de Direito do Con-sumidor “médio, razoavelmente advertido e informado” para além de ser alvo de criti-ca por parte da doutrina, que considera que o modelo deveria ser baseado na justiça ou noutros valores, foi posto severamente em causa pelas teorias comportamentalistas (demonstrando que os consumidores têm muita dificuldade em tomar decisões racio-nais e que são facilmente manipulados por estratégias de mercado. O consumidor mé-dio é desafiado pelo consumidor irracional e iletrado, que, como tal, é um consumidor vulnerável. Vide o nosso Dimensions of Property under European Law, cit., pp. 239 e ss.

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

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uso privado, quer da vulnerabilidade agravada enquanto funda-mento axiológico da tutela – foi tratada na jurisprudência do Tri-bunal de Justiça especialmente27 em duas áreas distintas, maxi-me, na determinação do carácter legítimo e/ou proporcional de uma restrição à liberdade de circulação e na determinação da natureza enganosa de uma denominação, marca ou indicação publicitária suscetíveis de induzir o comprador em erro. O Tribu-nal utilizou, contudo, critérios e parâmetros distintos em cada uma delas. Nesta segunda área de intervenção, não abdicando do padrão do consumidor médio, o Tribunal aceitou, contudo, den-sidades maiores ou menores de atenção e literacia dos consumi-dores, com a correspondente flexibilidade decisório-judicativa que daí resulta28. A nossa análise seguirá agora o percurso dos arestos mais significativos.28

27 Mas não exclusivamente. Por exemplo no Acórdão proferido no Processo 91/87, Gutshof-Ei, em 5 de maio de 1988, estava em causa a interpretação do Re-gulamento 2772/75, de 29 de outubro de 1975, relativo a certas normas de comer-cialização aplicáveis aos ovos, nomeadamente saber se era possível a utilização cumulativa das menções “categoria A” e “ovos frescos”. O Tribunal considerou que o legislador entendera necessária uma distinção fácil entre ovos próprios e impró-prios para o consumo humano bem como a possibilidade para o consumidor de distinguir ovos de diferentes categorias de qualidades, que não impedia a utilização cumulativa daquelas menções.

28 Em particular, quanto à possibilidade de utilização de provas empíricas, vide o Acórdão proferido no Processo C-373/90, X, a 16 de janeiro de 1992, onde o Tribu-nal de Justiça decidiu designadamente, a propósito da Diretiva 84/450, que compe-tia ao órgão jurisdicional nacional verificar, face às circunstâncias do caso concreto e atendendo aos consumidores a que se dirigia, se tal publicidade, que apresentava os veículos como sendo novos apesar de os mesmos já terem sido matriculados an-tes da importação, embora não tivessem circulado na estrada, podia assumir uma natureza enganosa na medida em que, por um lado, tinha tido por objeto esconder o facto de tais veículos anunciados como novos terem sido matriculados antes da importação e em que, por outro, tal facto teria sido suscetível de levar um núme-ro significativo de consumidores a renunciar à sua decisão de compra. O Tribunal

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a) A consideração do consumidor médio na jurisprudência

A definição do consumidor, como referimos, como homem mé-dio foi utilizada na jurisprudência do Tribunal de Justiça para aferir da conformidade ao Direito Europeu de determinadas restrições à liberdade de circulação impostas pelos Estados-Membros, alega-damente com vista à protecção dos direitos dos consumidores. O Tribunal apreciava da necessidade da medida e da sua propor-cionalidade em sentido estrito utilizando o critério do consumidor médio. A título meramente exemplificativo, podemos relembrar al-guns dos acórdãos proferidos. No Processo Pall29, o Tribunal viria a

acrescentou que a publicidade relativa ao preço menos elevado dos veículos ape-nas podia qualificar-se de enganosa no caso de se provar que a decisão de com-pra de um número significativo de consumidores a que a publicidade em causa se dirigia fora tomada na ignorância de que o preço reduzido desses veículos era acompanhado de menor número de acessórios que equipam os veículos vendidos pelo importador paralelo. Assim, o Tribunal de Justiça não excluiu que, em certas circunstâncias particulares pelo menos, um órgão jurisdicional nacional possa de-cidir, em conformidade com o seu direito nacional, ordenar um exame pericial ou encomendar uma sondagem de opinião destinada a esclarecê-lo quanto ao carác-ter eventualmente enganoso duma indicação publicitária. E não existindo qualquer disposição comunitária na matéria, competiria ao órgão jurisdicional nacional que considerasse indispensável encomendar uma sondagem dessa natureza determinar, em conformidade com o seu direito nacional, a percentagem de consumidores en-ganados por uma indicação publicitária que lhe parecesse suficientemente signifi-cativa para justificar, se necessário, a respetiva proibição.

29 Processo C-238/89, Pall Corp. contra P. J. Dahlhausen & Co, no Acórdão do Tribunal de 13 de dezembro de 1990, foram tratadas questões que haviam sido sus-citadas no âmbito de um litígio que opunha a sociedade Pall Corp. (Pall), deman-dante no processo principal, à sociedade P. J. Dahlhausen & Co. (Dahlhausen). Esta comercializava na República Federal da Alemanha filtros para sangue que importa-va da Itália. O fabricante italiano apunha sobre os próprios filtros e nas embalagens a marca “Miropore”, seguida da letra (R) rodeada de um círculo. A Pall moveu um processo à Dahlhausen com o objetivo, entre outros, de a mesma cessar o uso na

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

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decidir que, mesmo supondo que os consumidores ou uma parte deles pudessem ser induzidos em erro devido à utilização do símbo-lo ®, por no caso concreto não corresponder a uma marca efec-tivamente registada, esse risco não podia justificar um entrave tão grave à livre circulação de mercadorias, “porque os consumidores estão mais interessados nas qualidades do produto do que no lo-cal de registo da marca.” No Acórdão Clinique30, onde estava em causa a proibição, na RFA31, de os produtos cosméticos utilizarem a denominação “Clinique”, o Tribunal considerou que32 estes produ-

República Federal da Alemanha da letra (R) a seguir à marca “Miropore” para os filtros de sangue, em virtude de essa marca não estar registada na Alemanha. Na opinião da Pall, a utilização da letra (R) nessas condições constituía publicidade en-ganosa proibida nos termos do artigo 3.º da UWG (lei alemã relativa à concorrência desleal). Essa disposição previa uma proibição das “indicações enganosas quanto... à origem... das mercadorias (oferecidas)... ou à sua proveniência...”.

30 Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção), no Processo C-315/92, Ver-band Sozialer Wettbewerb eV contra Clinique Laboratoires SNC e Estée Lauder Cos-metics GmbH, de 2 de fevereiro de 1994.

31 O Direito alemão vigente na altura (correspondente à transposição de dis-posições das directivas comunitárias relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros em matéria de publicidade enganosa e em matéria de produtos cosméticos) proibia a comercialização de produtos cosméticos sob denominações ou apresentações enganosas e, nomeadamente, a atribuição a esses efeitos de produtos que os mesmos não possuíam. O Tribunal começou por considerar que a proibição de lançar em circulação na RFA produtos cosméticos sob a mesma de-nominação com que são comercializados noutros Estados-Membros constitui, em princípio, um entrave ao comércio intracomunitário. O facto de, em virtude desta proibição, a empresa em questão ser obrigada a prosseguir num único Estado-Mem-bro a comercialização dos seus produtos sob uma outra denominação e de suportar os encargos suplementares de acondicionamento e de publicidade demonstra que esta medida é lesiva da liberdade das trocas.

32 Para determinar se, para evitar que sejam atribuídas ao produto características que este não possui, a proibição de utilizar na RFA a denominação “Clinique” para a comercialização de produtos cosméticos pode ser justificada pelo objetivo de prote-

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tos eram comercializados nos outros Estados-Membros, aparente-mente sem induzirem em erro os consumidores, e que a conotação hospitalar ou médica do termo “Clinique” não bastava para dar a esta denominação um efeito enganador suscetível de justificar a sua proibição relativamente a produtos comercializados. Do mes-mo modo, no Processo Mars33, que surgiu no âmbito de uma cam-panha publicitária de curta duração que abrangeu toda a Europa e no âmbito da qual a quantidade dos gelados comercializados foi aumentada em 10%34. Tendo sido invocado que um número não negligenciável de consumidores seria levado a crer que o aumento era mais importante do que aquele que se pretendia representar (devido ao facto de a área onde consta a menção “+10%” ocupar na embalagem uma superfície superior a 10% da superfície total, e tendo como assente que a menção “+10%” era, em si mesma, exa-

ção dos consumidores ou da saúde das pessoas, o TJUE considerou que: “21 Resulta nomeadamente destas indicações que a gama dos produtos cosméticos da empresa Estée Lauder só é comercializada na República Federal da Alemanha em perfumarias ou nas secções de produtos cosméticos das grandes superfícies comerciais, isto é, que nenhum destes produtos está à disposição nas farmácias. Não é contestado que es-tes produtos são apresentados como produtos cosméticos e não como medicamen-tos. Não foi alegado que independentemente da denominação dos produtos esta apresentação não respeite as regras aplicáveis na matéria aos produtos cosméticos. Finalmente, segundo os próprios termos da questão colocada, estes produtos são re-gularmente comercializados nos outros países sob a denominação ‘Clinique’ sem que a utilização de tal denominação aparentemente induza em erro os consumidores”.

33 Processo C-470/93, Verein gegen Unwesen in Handel und Gewerbe Köln e.V. contra Mars GmbH, de 6 de julho de 1995.

34 Os gelados eram apresentados numa embalagem que tinha a menção “+10%” e era a cessação da utilização dessa menção que estava em causa, inter alia, porque a integração da indicação “+10%” na apresentação do produto havia sido feita de modo a dar ao consumidor a impressão de que este fora aumentado de uma quantidade correspondente à parte colorida da nova embalagem. Como esta última ocupava uma superfície sensivelmente superior a 10% da superfície total da embalagem, verificar-se-ia uma manobra enganosa dos consumidores.

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O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

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ta), o Tribunal considerou que: “presume-se que os consumidores normalmente informados sabem que não existe necessariamente uma relação entre a dimensão das menções publicitárias relativas ao aumento da quantidade do produto e a importância desse au-mento”35. No Processo Yves Rocher36, em que estava em causa a distribuição pela Yves Rocher de um prospeto de venda com o títu-lo “poupe até 50% e mais em 99 dos seus produtos preferidos Yves Rocher”, que indicava, ao lado do anterior preço riscado, o novo preço destes produtos, inferior ao antigo, em grandes caracteres a vermelho37, o Tribunal considerou que uma análise comparativa das

35 Para. 24. Depois de considerar que uma proibição de colocação em circulação num Estado-Membro de produtos que contenham as mesmas menções publicitárias que as legalmente utilizadas noutros Estados-Membros é de natureza a entravar o co-mércio intracomunitário, porque obriga o importador a proceder a uma apresentação diferente dos seus produtos em função do local de comercialização e, por conseguin-te, a suportar as despesas suplementares de acondicionamento e publicidade, coube apreciar das justificações invocadas, o TJUE respondeu à questão prejudicial no sentido de que “o artigo 30. do Tratado deve ser interpretado no sentido de que este se opõe a que uma medida nacional proíba a importação e a comercialização de um produto legalmente comercializado num outro Estado-Membro, cuja quantidade foi aumenta-da por ocasião de uma campanha publicitária de curta duração e cuja embalagem contém a menção ‘+ 10%’, a) com o fundamento de que essa apresentação será sus-ceptível de levar o consumidor a supor que o preço a que a mercadoria é oferecida é o mesmo a que ela era até então vendida na sua anterior apresentação, b) com o fundamento de que a nova apresentação dará ao consumidor a impressão de que o volume ou o peso do produto foram aumentados de forma considerável.”

36 Processo C-126/91, Schutzverband gegen Unwesen in der Wirtschaft e.V. con-tra Yves Rocher GmbH, de 18 de maio de 1993.

37 Depois de considerar que uma proibição como a que estava em causa no processo principal era suscetível de restringir as importações de produtos de um Es-tado-Membro para outro, constituindo uma medida de efeito equivalente, o Tribunal apreciou a sua justificação, concluindo que “a proibição em causa vai para além das exigências impostas pelo objectivo prosseguido, na medida em que afecta qualquer publicidade desprovida de qualquer carácter enganador, que contenha comparações de preços realmente praticados, e que podem ser muito úteis para permitir ao consumidor fazer as suas escolhas com pleno conhecimento de causa”.

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legislações dos Estados-Membros havia mostrado que a informação e a proteção do consumidor podem ser asseguradas por medidas que tenham efeitos menos restritivos, nas trocas intracomunitárias, do que as referidas no processo principal38.

No sentido de atender à vulnerabilidade especial de deter-minados consumidores, cabe realçar o acórdão proferido no Pro-cesso Buet e outros/Ministério Público39, onde estava em causa a proibição pelo legislador francês da promoção de vendas porta a porta de material pedagógico, justificada pelo objetivo de prote-ger os consumidores contra o risco de compras irrefletidas. O TJUE relembrou que, em geral, a promoção de vendas ao domicílio ex-põe o potencial comprador ao risco de proceder a uma compra irrefletida e que, para evitar tal risco, basta, normalmente, garan-tir aos compradores o direito de rescindir o contrato celebrado no domicílio. O Tribunal considerou, contudo, que “o risco de compra irreflectida é particularmente pronunciado quando a promoção de vendas tem como finalidade a subscrição de um contrato de en-sino ou a venda de material pedagógico. Com efeito, o potencial utilizador pertence, muitas vezes, a uma categoria de pessoas que, por qualquer razão, têm atrasos na sua formação que pretendem

Pelos fundamentos expostos, o TJUE, pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Bundesgerichtshof, por acórdão de 11 de abril de 1991, declarou que: “O artigo 30. do Tratado CEE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de uma disposição legislativa de um Estado-membro que proíbe uma empresa com sede neste Estado e que se dedica à venda por correspondência, através de ca-tálogos ou de prospectos, de mercadorias importadas de um Estado-membro B, de fazer publicidade com indicação de preços e na qual se destaca um novo preço, de forma a atrair a atenção, ao mesmo tempo que faz referência a um preço mais elevado constante de um catálogo ou prospecto anterior”.

38 Para. 18.39 Processo 382/87, Buet v. Ministère Public, de 16 de maio de 1989.

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colmatar. Isso torna-os especialmente vulneráveis perante vende-dores de material pedagógico que tentam persuadi-los de que a sua utilização lhes garantirá um futuro profissional”40. Por outro lado, como resultava dos autos, fora na sequência de numerosas quei-xas suscitadas por abusos, como a venda de cursos desatualizados, que o legislador francês estabelecera a proibição de promoção de vendas porta a porta em causa. O Tribunal sublinhou ainda que “dado o ensino não ser um produto de consumo corrente, a compra irreflectida pode provocar no adquirente efeitos prejudiciais dife-rentes e mais duráveis do que um simples prejuízo financeiro. Assim, independentemente de qualquer apreciação quanto à qualidade do material em causa em cada caso concreto, há que reconhecer que a aquisição de um material inadaptado ou de má qualidade pode comprometer a possibilidade de o consumidor adquirir uma nova formação e de, por conseguinte, reforçar a sua posição no mercado de trabalho”41.

Apesar desta decisão, o Tribunal, contudo, nunca formu-lou, nesta área, uma exceção geral ao conceito de consumidor médio42. Como referimos, todavia, no que respeita à jurisprudên-cia proferida no âmbito das marcas, isto é, do carácter eventual-mente enganoso da marca, cujo objeto de proteção é proteger o consumidor, permitindo-lhe distinguir bens e serviços, e proteger as empresas dos concorrentes que infrinjam as regras, o Tribunal teve, contudo, uma abordagem menos linear.

40 Cfr. para 13.41 Para. 14. Consequentemente, considerou o Tribunal ser lícito ao legislador na-

cional de um Estado-Membro considerar que a concessão aos consumidores de um direito de rescisão não basta para os proteger e que é necessário proibir a promo-ção de vendas porta a porta.

42 Vide, bram b. duivenvoorde, ob. cit., p. 19, nota 40.

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No Processo Gut Springenheide43, o julgador deu indicações consistentes sobre o modo de aferir o consumidor médio. Estava em causa a prática da Gut Springenheide de comercializar ovos emba-lados sob a designação “6-Korn-10 frische Eier” [10 ovos frescos — 6 cereais], pois, segundo a sociedade, as seis espécies de cereais em questão entravam na composição da alimentação das galinhas na percentagem de 60%. Além disso, uma nota informativa, incluída em cada caixa de ovos, exaltava as qualidades dos ovos produzi-dos com essa alimentação. O artigo 10.° do Regulamento (CEE) n.° 1907/90 do Conselho de 26 de Junho de 1990 relativo a certas nor-mas de comercialização aplicáveis aos ovos, no seu n.° 2, alínea e), autorizava que nas embalagens constassem indicações destinadas a promover as vendas, desde que não fossem suscetíveis de induzir o comprador em erro. O Bundesverwaltungsgericht, tendo dúvidas quanto à interpretação do preceito, submeteu ao Tribunal de Justi-ça várias questões prejudiciais44, que levaram o Tribunal - reconhe-cendo que aquilo que o órgão jurisdicional de reenvio perguntava essencialmente era qual o consumidor de referência para determi-

43 Processo C-210/96, Gut Springenheide GmbH e Rudolf Tusky contra Oberkreisdirek-tor des Kreises Steinfurt - Amt für Lebensmittelüberwachung, de 16 de julho de 1998.

44 Nomeadamente: “1) Para apreciar, nos termos do n.º 2, alínea e), do artigo 10.° do Regulamento (CEE) n.º 1907/90, se as indicações destinadas à promoção das vendas são de molde a induzir o comprador em erro, devem ser averiguadas as expectativas reais dos consumidores em causa, ou basear-se-á a norma indicada num conceito normativo de comprador, a interpretar em termos exclusivamente ju-rídicos? 2) Caso se opte pelas expectativas reais dos consumidores, colocam-se as seguintes questões: a)É determinante o entendimento do consumidor médio esclare-cido, ou o do consumidor casual? b) É possível determinar percentualmente a quota de consumidores necessária para considerar existente uma expectativa por parte destes? 3 )Caso se opte por um conceito normativo de comprador, a interpretar em termos exclusivamente jurídicos, coloca-se a questão da forma de determinação deste conceito”.

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nar se uma indicação destinada a promover as vendas de ovos se-ria suscetível de induzir o comprador em erro, violando o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do Regulamento n.º 1907/90 – a responder conjun-tamente às três questões. Recordando que interrogado quanto ao carácter eventualmente enganoso de uma denominação, de uma marca, ou de uma indicação publicitária à luz das disposições do Tratado e do direito derivado, sempre que os elementos dos autos à sua disposição lhe pareceram suficientes e a solução se impunha, o próprio Tribunal “tomou em consideração a presumível expectativa dum consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e advertido” e sem ter ordenado qualquer exame pericial ou encomendado uma sondagem de opinião, não reenviando a sua apreciação final ao órgão jurisdicional nacional, havia sempre decidido a questão. Consequentemente, assertou que “os órgãos jurisdicionais nacionais devem geralmente estar em condições de apreciar, nas mesmas condições, o efeito eventualmente engano-so duma indicação publicitária”.

Observou ainda o Tribunal que, noutros processos em que não dispunha de informações necessárias ou em que a solução não parecia impor-se no estado em que se encontravam os autos de que dispunha, havia remetido para o órgão jurisdicional nacional a pronúncia quanto ao carácter eventualmente enganoso da de-nominação, da marca ou da indicação publicitária controvertidas.

Em síntese, respondeu o Tribunal que “para determinar se uma indicação destinada a promover as vendas de ovos pode induzir o consumidor em erro, violando o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do Regulamento n.º 1907/90, o órgão jurisdicional nacional deve ter como referência a presumível expectativa dum consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e advertido, re-

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lativamente a esta indicação. Todavia, o direito comunitário não obsta a que, se tiver especiais dificuldades para avaliar o carácter enganoso da indicação em questão, o referido órgão jurisdicional possa recorrer, nas condições previstas pelo direito nacional, a uma sondagem de opinião ou a um exame pericial destinados a escla-recer a sua apreciação”.

Já no Acórdão Loyd Schuhfabrik Meyer45, o Tribunal decidiu que a propósito da apreciação global do risco de confusão das marcas deve o julgador, no que respeita à semelhança visual, foné-tica ou conceptual das marcas em causa, basear-se na impressão de conjunto produzida por estas, atendendo, em especial, aos seus elementos distintivos e dominantes. A perceção das marcas que tem o consumidor médio da categoria de produtos ou serviços em causa desempenha papel determinante na apreciação global do risco de confusão. Ora, o consumidor médio, entende o Tribunal, apreende normalmente uma marca como um todo e não proce-de a uma análise das suas diferentes particularidades. Para efei-tos desta apreciação global, considerou o Tribunal, “é suposto que o consumidor médio da categoria de produtos em causa esteja normalmente informado e razoavelmente atento e advertido”46, atendendo-se, todavia, à circunstância de que o consumidor mé-dio raramente tem a possibilidade de proceder a uma compara-ção direta entre as diferentes marcas, devendo confiar na imagem não perfeita que conservou na memória e, por outro lado, que “o nível de atenção do consumidor médio é susceptível de variar em função da categoria de produtos ou serviços em causa”.

45 Processo C-342/97, Loyd Schuhfabrik Meyer & Co. GmbH e Klijsen Handel BV., de 22 de junho de 1999.

46 Cfr. para. 26. Vide, posteriormente, o Acórdão C-291/00, LTJ Diffusion SA con-tra Sadas Vertbaudet SA., de 20 de março de 2003, para. 52.

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Em Darbo47, o Tribunal de Justiça considerou que os consumi-dores, cuja decisão de comprar é determinada pela composição dos produtos que têm a intenção de adquirir, leem em primeiro lu-gar a lista dos ingredientes cuja menção é obrigatória por força do artigo 6.º da Diretiva (na altura, a Diretiva 79/112/CEE). Assim, “um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e advertido, não pode ser induzido em erro pela menção ‘puramente natural’ inscrita no rótulo, pelo simples facto de o gé-nero alimentício conter gelificante pectina, cuja presença é corre-tamente mencionada na lista de ingredientes que o compõem”48. Num Acórdão temporalmente muito próximo, no Processo Gott-

47 Processo C-465/98, Verein gegen Unwesen in Handel und Gewerbe Köln eV e Adolf Darbo AG, de 4 de abril de 2000.

48 Cfr. ainda o Acórdão de 26 de outubro de 1995, Comissão Alemanha, C-51/94, para 34, onde o Tribunal considerou que: “Mesmo que, em certos casos, os consumidores possam ser induzidos em erro, esse risco continua mínimo e não pode, por conseguinte, justificar o entrave à livre circulação de mercadorias ge-rado pelas exigências em litígio”, e o Acórdão de 9 de fevereiro de 1999, Van der Laan, C-383/97, para. 43. No Processo C-239/02, Douwe Egberts NV contra Westrom Pharma NV e Christophe Souranis, agindo sob o nome comercial de “Établissements FICS” e Douwe Egberts NV contra FICS-World BVB, pode ler-se nas Conclusões do AG, apresentadas em 11 de dezembro de 2003: “54. A este propósito, há que recordar que, na avaliação da natureza eventualmente enganosa das informações relativas ao produto, o Tribunal de Justiça escolhe como critério de referência a presumí-vel expectativa dum consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e advertido. Este critério pressupõe que, antes de adquirir (pela primeira vez) determinado produto, o consumidor tome conhecimento da informação constante do rótulo e que, além disso, consiga valorizar essa informação. Na minha opinião, o consumidor é suficientemente protegido se não tiver de lidar com indicações relati-vas aos produtos que sejam enganosas, não precisa de ser poupado a informação cuja utilidade para efeitos da aquisição e utilização do produto ele próprio pode avaliar. 55.Por conseguinte, uma proibição absoluta das referidas indicações falha claramente o alvo, já que também atinge as indicações que se sabe não serem en-ganosas. Semelhante medida não é, pois, necessária para alcançar o objectivo da prevenção dos riscos para a saúde pública”.

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fried Linhart e Hans Biffl49, o que estava em causa era o facto de a Colgate Palmolive GmbH ter colocado no mercado o produto cos-mético Palmolive flüssige Seife Prima Antibakteriell com a indicação “dermatologicamente testado” aposta na embalagem. Aplicando o critério da “presumível expectativa de um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e advertido”, o Tribunal considerou que a menção “dermatologicamente testado” na embalagem de certos produtos cosméticos, nomeadamente, sabões e produtos capilares, “só pode sugerir a um consumidor mé-dio, normalmente informado e razoavelmente atento e advertido, a ideia de que esse produto foi submetido a um teste para avaliar os seus efeitos sobre a pele e que, consequentemente, a sua colo-cação no mercado significa que os resultados do teste foram po-sitivos e que foi verificada a sua boa tolerância pela epiderme ou, pelo menos, o seu carácter inofensivo para a pele”.

Esta jurisprudência assim desenhada de consideração do con-sumidor médio foi depois seguida no Tribunal de Primeira Instância. Em vários processos, todavia, o Tribunal considerou que o consumi-dor médio não está especialmente atento. Nos Processos Procter & Gamble v. IHMI50, estando em causa o registo de uma marca tridi-mensional sob a forma de pastilha retangular com incrustação, o Tribunal declarou que: “tratando-se de produtos de consumo quo-tidiano, o nível de atenção do consumidor médio em relação à forma e ao desenho das pastilhas para máquinas de lavar roupa

49 Acórdão do Tribunal de Justiça, Processo C-99/01, Gottfried Linhart e Hans Biffl, de 24 de outubro de 2002.

50 Processos T-128/00 e T-129/00, Procter & Gamble v. IHMI (pastilha quadrada com incrustação), de 19 de setembro de 2001.

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e loiça não é elevado” 51. Em New Look/IHMI52, estava em causa a atenção do consumidor médio no sector do vestuário. 52O Tribunal verificou que este inclui produtos de qualidade e de preços bas-tante diferentes e que “embora seja possível que o consumidor es-teja mais atento à escolha de uma marca quando compra uma peça de vestuário particularmente dispendiosa, não se pode pres-supor essa atitude do consumidor em relação a todos os produtos do sector em causa, sem apresentar elementos de prova”53. Já em Miles Handelsgesellschaft International mbH v. IHMI (BIKER MILES)54, o Tribunal decidiu que tendo em conta que os sinais em conflito, que partilhavam o elemento dominante, eram relativos a produtos

51 No Processo C-218/01, Henkel, de 12 de fevereiro de 2004, estava em causa o registo de uma marca tridimensional a cores respeitante a detergente líquido para lãs (uma garrafa alongada, que diminuía na parte superior, com pega integrada, um orifício relativamente pequeno e tampa de dois níveis, que servia igualmente de doseador). O Tribunal considerou que a autoridade competente deveria proce-der a uma apreciação concreta do caráter distintivo da marca em questão, tendo como referência a perceção do consumidor médio, a fim de verificar que a mesma cumpria a sua função essencial, garantir a origem do produto. Disse o TJUE que: “a percepção do consumidor médio não é necessariamente a mesma no caso de uma marca tridimensional, constituída pela embalagem do produto (…). Com efei-to, os consumidores médios não têm por hábito presumir a origem dos produtos com base na sua embalagem, na ausência de todo e qualquer elemento gráfico ou textual, e, por isso, pode tornar-se mais difícil provar o carácter distintivo quando se trata de uma marca tridimensional”. Concluiu o Tribunal que “uma marca desse tipo deve permitir a este último, sem proceder a uma análise ou a uma comparação e sem demonstrar particular atenção, distinguir o produto em questão dos de outras empresas”.

52 Acórdão de 6 de outubro de 2004, no Processo T-117/03 a T-119/03 e T-171/03, New Look v. IHMI Naulover (NLSPORT.NLACTIVE e NLCollections).

53 Para. 43.54 Processo T-385/03, Miles Handelsgesellschaft International mbH v. IHMI (BIKER

MILES), no Acórdão de 7 de julho de 2005.

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idênticos, a saber, peças de vestuário para veículos de duas rodas, o consumidor em causa poderia apreendê-los como pertencentes a duas gamas distintas de vestuário da mesma empresa, tendo a Câmara de Recurso decidido erradamente que o consumidor em causa usa de um grau de atenção elevado, dando especial impor-tância à funcionalidade dessas peças de vestuário especiais. Em Citycorp/IHMI55 , o Tribunal considerou que o público pertinente en-tenderia efetivamente aquele sinal, o sinal LIVE RICHLY, no âmbito dos serviços financeiros e monetários, como uma fórmula promocio-nal e não como uma indicação da origem comercial dos serviços em questão. Aquele sinal não continha elementos que pudessem, para além do seu significado promocional evidente, permitir ao pú-blico em causa memorizar fácil e imediatamente o sinal enquanto marca distintiva para os serviços designados. Mesmo que o sinal fosse utilizado sozinho, desacompanhado de qualquer outro sinal ou marca, o público em causa, se não tivesse sido previamente avisado, só o poderia entender na sua aceção promocional. No Processo Zipcar56, o Tribunal considerou que não havia razão para considerar que o grau de atenção do público fosse particularmen-te alto quando escolhe uma empresa de rent a car. Nenhum fator, como um preço alto, ou a natureza tecnológica do serviço, requer um elevado nível de atenção57.

55 Processo T-320/03, Citycorp/IHMI (LIVE RICHLY), de 15 de setembro de 2005.56 Processo T-36/07, Zipcar, de 25 de junho de 2008.57 No Processo C-498/07, Aceites del Sur-Coosur/Koipe, de 3 de setembro de

2009, considerou o Tribunal de Justiça “que o azeite é um produto de consumo muito corrente em Espanha, que se compra, a maior parte das vezes, em grandes super-fícies ou em estabelecimentos nos quais os produtos estão alinhados em prateleiras e que o consumidor se guia mais pelo impacto visual da marca que procura”, e aceitou que nessas circunstâncias, o elemento figurativo das marcas em conflito

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Em Bang & Olufsen58, respeitante a um pedido de registo de um sinal tridimensional constituído pela forma de um altifalante como marca comunitária, considerou o Tribunal que aquele apresentava características suficientemente específicas e artificiais susceptíveis de reter a atenção do consumidor médio e de lhe permitir ser sen-sível à forma dos produtos da recorrente. Assim, afirmou que se tra-tava de uma das formas vulgares dos produtos do sector em causa ou mesmo de uma simples variante delas, “mas de uma forma com um aspecto exterior particular que, tendo em conta igualmente o resultado estético de conjunto, pode reter a atenção do público interessado e permitir-lhe distinguir os produtos visados pelo pedido de registo dos que têm outra origem comercial”59.

adquire maior importância, o que aumenta o risco de confusão entre estas, e que os sinais que as designam são mais difíceis de distinguir, dado que o consumidor médio apreende normalmente uma marca como um todo e não procede a um exame das suas diferentes particularidades (vide para 76). Pelo contrário, no Processo C-361/04, Claude Ruiz-Picasso v. IHMI, de 12 de janeiro de 2006, declarou o Tribunal de Justiça que: “quando se comprove factualmente que as características objectivas de um determinado produto implicam que o consumidor médio só o adquira no termo de um exame particularmente atento, há que considerar, do ponto de vista jurídico, que essa circunstância pode ser susceptível de reduzir o risco de confusão entre as marcas relativas a esses produtos no momento crucial em que se opera a escolha entre esses produtos e essas marcas”. O Tribunal aceitou que o público pertinente também pode apreender esses produtos e as marcas correspondentes em circuns-tâncias alheias a qualquer ato de compra e de, nessas ocasiões, demonstrar, even-tualmente, um menor grau de atenção, mas reiterou a declaração do Tribunal de Primeira Instância de que a existência dessa possibilidade não se opõe à tomada em consideração do nível particularmente elevado de atenção do consumidor médio quando prepara e faz a sua escolha entre diferentes produtos da categoria em cau-sa (vide paras. 40 e 41).

58 T-460/05, Bang & Olufsen v. IHMI, de 10 de outubro de 2007.59 Para. 42.

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No Processo IVG Immobilien AG60, a recorrente era uma empre-sa especializada na construção, administração e gestão de bens imóveis e que prestava serviços a utilizadores profissionais ou priva-dos. Considerou o Tribunal que tendo em conta “a especificidade e o preço elevado das transacções que geralmente implicam, es-tes serviços destinamse em qualquer caso a um público informado, cujo grau de atenção é superior ao que caracteriza o consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, nos actos de aquisição de bens e de serviços de consumo corren-te”61. Censurando a Câmara de Recurso por ter considerado errada-mente como público pertinente o consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, sem ter em conta que o nível de atenção do consumidor, incluindo o consumidor mé-dio, é suscetível de variar em função da categoria de produtos ou de serviços em causa, o Tribunal assumiu que: “o nível de atenção do público pertinente é susceptível de variar em função da cate-goria de produtos ou serviços propostos, e os consumidores podem constituir um público muito atento, na medida em que, como no caso em apreço, os seus compromissos possam ser relativamente importantes e os serviços prestados relativamente técnicos”62.

A apreensão do consumidor médio não é feita só em função do bem ou serviço adquirido, mas também em função da locali-zação geográfica do litígio. Por exemplo, no Acórdão Graffione63, o Tribunal admitiu que a proibição de comercialização com base

60 T-441/05, IVG Immobilien AG, de 13 de junho de 2007.61 Para 62.62 Para. 63.63 Processo C-313/94, F.lli Graffione SNC contra Ditta Fransa, de 26 de novembro

de 1996.

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na natureza enganadora de uma marca não está, em princípio, excluída pela circunstância de, noutros Estados-Membros, a mes-ma marca não ser assim considerada, pois, como havia assinalado o Advogado-Geral, no ponto 10 das suas conclusões, “é possível que, devido a diferenças linguísticas, culturais e sociais entre os Es-tados-Membros, uma marca que não seja susceptível de induzir o consumidor em erro num Estado-Membro o seja noutro”. Dado que os elementos constantes dos autos não permitiam ao Tribunal apre-ciar se existia um risco de erro dos consumidores (no caso, quan-to à existência efetiva de algodão nos produtos em causa, papel higiénico e lenços de papel), entendeu-se que esta apreciação incumbiria ao juiz nacional, que deveria ter em conta: “todos os elementos pertinentes, incluindo as circunstâncias em que os pro-dutos são vendidos, as informações contidas na sua embalagem e a clareza com que estão indicadas, a apresentação e o conteúdo da publicidade bem como o risco de erro em função do grupo de consumidores em questão”.

Nos Processos T-178/03 e T-179/03, CeWe Color AG & Co. OHG v. IHMI, o Acórdão de 8 de setembro de 2005, decidiu que “os sinais DigiFilm e DigiFilmMaker resultam, como salientou a Câmara de Re-curso, de justaposições totalmente desprovidas de originalidade de termos descritivos, justaposições que o consumidor médio anglófo-no compreende como a designação dos produtos e serviços con-trovertidos ou das suas características essenciais, e não como uma indicação da origem comercial. O facto de as marcas pedidas não serem mencionadas enquanto tais nos dicionários não altera de forma alguma esta apreciação.” De igual modo, no Processo T-147/03, Devinlec v. IHMI, de 12 de janeiro de 2006, considerou-se que “a interveniente não tem em conta o facto de o público rele-

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vante ser composto por consumidores médios franceses, dos quais não se pode pressupor que tenham conhecimentos de latim e da pronúncia, de resto não uniforme, dos termos latinos”. Já no Pro-cesso Adam Opel64, o Tribunal considerou a informação do órgão jurisdicional de reenvio que explicou que, na Alemanha, o consu-midor médio dos produtos da indústria do brinquedo, normalmen-te informado e razoavelmente atento e avisado, está habituado a que as miniaturas se baseiem nos modelos reais e atribui mesmo muita importância à fidelidade absoluta ao original, de modo que o referido consumidor compreenderia o logótipo Opel, que figurava nos produtos da Autec, como uma indicação de que se trata da reprodução em miniatura de um veículo da marca Opel.

No Acórdão Castellani65, o Tribunal considerou que “o âmbito de uma apreciação global das marcas em causa e contrariamente ao que foi considerado na decisão recorrida, as diferenças visual, foné-tica e conceptual dos sinais em conflito são suficientes para impedir, não obstante a identidade dos produtos em causa, que as semelhan-ças entre os sinais em conflito gerem um risco de confusão no espírito do consumidor médio alemão”, ao passo que no Processo T-36/07, o Tribunal considerou que o público relevante para avaliar do risco de confusão entre Zipcar e Cicar era o consumidor médio espanhol.

Em alguns casos, o Tribunal acumulou a consideração do co-nhecimento especializado com a localização geográfico. No Pro-cesso Chum66, o Tribunal considerou que “o público-alvo em rela-ção ao qual se deve proceder à análise do risco de confusão é

64 Processo C-48/05, Adam Opel, de 25 de janeiro de 2007.65 T-149/06, Castellani/IHMI- Markant Handels und Service (CASTELLANI), de 20

de novembro de 2007.66 T-359/02, Chum Ltd v. IHMI, de 4 de maio de 2005.

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composto, para todos os serviços em causa com excepção da dis-tribuição de programas de televisão a que se refere o pedido de marca, pelos consumidores médios dos Estados-Membros onde a marca internacional da opositora está protegida, ou seja, a Alema-nha, a Áustria, os países do Benelux, a França e a Itália”67-68.

A análise percursora da jurisprudência que efetuámos permite-nos voltar a sublinhar que a configuração do consumidor médio,

67 Para. 27. Entendeu o Tribunal que “embora seja certo que determinados ser-viços oferecidos pela recorrente, incluídos tanto na classe 38 como na classe 41, se dirigem a um público que tem noções de informática e está familiarizado com a utilização de material eletrónico, não é menos verdade que, hoje em dia, a oferta e o consumo de produtos e de serviços audiovisuais e a sua difusão junto do público em geral, composto essencialmente por jovens, são tais que estes produtos e servi-ços não podem ser considerados reservados a um círculo restrito e especializado de consumidores. Por outro lado, ao contrário do que sustenta a recorrente, os serviços incluídos nas classes 38 e 41 protegidos pela marca anterior, ainda que relacionados com o domínio específico da cinematografia, não podem ser considerados como visando um público diferente do grande público, interessado de forma geral no di-vertimento televisivo”.

68 Em contrapartida, considerou o Tribunal que: “os serviços conexos com a ac-tividade de distribuição de programas televisivos, aos quais se refere o pedido de marca e que estão incluídos na classe 41, não se dirigem ao consumidor médio, mas a um público composto por profissionais que operam nos sectores audiovisual e de difusão de programas de televisão, susceptível de estar particularmente interessa-do e atento no momento da escolha do fornecedor”. No Processo T-311/02, Vitaly Lissotschenko e Joachim Hentze contra IHMI (LIMO), no Acórdão do Tribunal Geral (Primeira Secção), de 20 de julho de 2004, o Tribunal reconheceu, tal como havia sido verificado pela Câmara de Recurso que o público relevante era constituído por consumidores especializados, dado que os produtos em causa são destinados a profissionais e não a consumidores médios. Assumiu, portanto, o Tribunal que o públi-co relevante é um público especializado, bem informado, atento e avisado. Nesse sentido decidiu o Tribunal: “foi com razão que a Câmara de Recurso considerou que o consumidor especializado estará em condições de estabelecer uma ligação suficientemente directa e concreta entre os produtos das classes 9 e 10 objecto do pedido de marca comunitária e o sinal LIMO, e que apreenderá esse sinal como a

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mesmo com as tonalidades diversas que lhe são conferidas na ju-risprudência sobre marcas, surge sempre como um parâmetro ge-neralizador e uniformizador: o nível de atenção dado a um certo

abreviatura de ‘Laser Intensity Modulation’ e como designando, pelo menos, um dos destinos possíveis dos referidos produtos, ou seja, a sua integração num sistema de modulação da intensidade do laser”. No Processo T-183/03, Applied Molecular Evolution v. IHMI, de 14 de setembro de 2004, a Câmara de Recurso havia considera-do, implicitamente, no que se refere ao público pertinente, que este era composto por especialistas no domínio da engenharia das proteínas (“the relevant specialist consumer in the field of protein engineering”; n.° 13 da decisão impugnada). A re-corrente alegava que o público pertinente deveria ser mais amplamente definido, englobando também, numa pequena parte, pessoas menos especializadas do que as consideradas pela Câmara de Recurso, nomeadamente outros operadores eco-nómicos. O Tribunal considerou que o público pertinente foi corretamente definido na decisão impugnada. De qualquer modo, a tomada em consideração de um público menos especializado do que o considerado na decisão impugnada não alteraria as consequências relacionadas com a definição de público pertinente no caso vertente, que se traduz em este ser composto por consumidores avisados, par-ticularmente informados e atentos. Com efeito, o destino dos serviços em causa im-plica, pelo menos, que esse público menos especializado tenha um conhecimento das possibilidades de alteração molecular e das suas vantagens, incluindo as indus-triais. Não poderia, portanto, ser considerado um consumidor médio. E no Processo T-211/03, Faber Chimica Srl/IHMI (Faber), de 20 de abril de 2005, pode ler-se: “Tendo em conta o facto de que o público pertinente é um público especializado, dotado de uma atenção superior à do consumidor médio, essa diferença fonética dos dois sinais em conflito e, sobretudo, a diferenciação visual acentuada que resulta do im-portante aspecto figurativo próprio de um deles são suficientes para se concluir, no termo de uma apreciação global, que os sinais que constituem as marcas em causa, consideradas cada uma na sua globalidade e tendo em conta, nomeadamente, os seus elementos distintivos e dominantes, não são semelhantes [produtos químicos destinados à indústria]”. No Processo T-288/03, TeleTech Holdings Inc, v. IHMI, de 25 de maio de 2005, o Tribunal considerou que: “78 As partes estão de acordo quanto ao facto de que os consumidores dos serviços designados pelas marcas em causa são dirigentes ou quadros de pequenas ou grandes empresas em França. 79 O Tribu-nal considera, à semelhança do IHMI, que os consumidores visados têm um conhe-cimento do inglês superior à média, tendo em conta o facto de esta língua ser hoje largamente utilizada nos meios de negócio ou ter um nível maior de atenção”.

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produto, o modo como se lida com um determinado tipo de infor-mação, etc. Mesmo quando o Tribunal de Justiça remete para a aferição em concreto do consumidor médio, id est, da sua concre-tização pelo Tribunal nacional, as provas empíricas destinam-se à investigação daquele padrão69.

Saliente-se, contudo, que o consumidor, a parte contratual mais fraca, surge como um consumidor capaz de cuidar dos seus interes-ses70: lê as etiquetas antes de comprar os sues produtos (Cassis de Dijon, Garbo), não se deixa enganar por nomes sugestivos (Clinique, Graffione) ou pela embalagem dos produtos (Mars) e toma atenção ao assumir compromissos financeiros de monta (IVG Immobilien).

Vinculados pela interpretação conferida pelo Tribunal de Justi-ça, os tribunais portugueses não desenvolveram uma noção autó-noma de consumidor médio ou de consumidor vulnerável71.

b) A consideração do consumidor médio na legislação

Presença assídua no Tribunal de Justiça, como vimos, foi a Di-retiva 2005/29/CE o primeiro diploma legislativo a consagrar dire-tamente o conceito de consumidor médio. O artigo 5.º, n.º 2, da

69 A Resolução do Parlamento Europeu, de 22 de maio de 2012, sobre uma es-tratégia de reforço dos direitos dos consumidores vulneráveis, sublinhará o sector especialmente problemático dos mercados financeiros, as crianças e os jovens, os viajantes e os consumidores que não podem aceder ou usar a internet.

70 bram b. duivenvoorde, ob. cit., p. 52 e autores aí citados. 71 Nesse sentido, já maría antonieta gálveZ krüger, “O consumidor de referência

para avaliar a deslealdade da publicidade e de outras práticas comerciais”, josé le-bre de freitas et al (org.), Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida I, Almedina, pp. 521 e ss.

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Directiva define como práticas comerciais desleais aquelas contrá-rias à diligência profissional e que distorçam ou sejam susceptíveis de distorcer de maneira substancial o comportamento económico, em relação a um produto, do consumidor médio a que se destina ou que afecta, ou do membro médio de um grupo quando a prática comercial for destinada a um determinado grupo de consumidores72. Este artigo inclui assim uma noção de “consumidor médio” que re-mete para um consumidor normalmente informado e razoavelmente atento e advertido estabelecida como referência pelo Tribunal de Justiça. A figura do consumidor médio vem aqui utilizada para ga-rantir que no momento da avaliação do impacto de uma prática comercial que se destine a um determinado grupo de consumidores, as características da pessoa média73 deste grupo sejam tomadas em consideração na avaliação do impacto da prática em questão.

O n.º 3 esclarece que as práticas comerciais que são suscetíveis de distorcer substancialmente o comportamento económico de um único grupo, claramente identificável, de consumidores particu-larmente vulneráveis à prática ou ao produto subjacente, em razão da sua doença mental ou física, idade74 ou credulidade, de uma

72 Vide a análise que fizemos em sandra PassinHas, “A propósito das práticas comerciais desleais: contributo para uma tutela positiva do consumidor”, Estudos de Direito do Consumidor 13 (2017), pp. 107 e ss.

73 Sobre a falta de fundamentação prática e lógica, vide, por todos, rossella incardona e cristina Pancibò, “The Average Consumer, The Unfair Commercial Prac-tices Directive, and the Cognitive Revolution”, J. Consum. Policy, 2007, p. 29 e ss, considerando que o conceito de consumidor médio parte de realidades imprevisí-veis do comportamento humano individual e não é apropriado como standard para sanções legislativas ou judiciais.

74 Vide os artigos 14.º, 20.º e 21.º do Código da Publicidade, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de outubro, bem como a Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido.

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forma que se considere que o profissional poderia razoavelmente ter previsto, devem ser avaliadas do ponto de vista do membro mé-dio desse grupo75. O padrão do consumidor vulnerável exige quer que o grupo seja perfeitamente identificável76, quer que o profissio-nal o pudesse razoavelmente ter previsto77.

A Comissão entendeu ser necessário adotar o padrão do con-sumidor médio na Diretiva, sublinhando que o teste do consumidor médio se baseia num consumidor razoavelmente capaz de prote-ger os seus próprios interesses, não num consumidor particularmen-te vulnerável ou crédulo78. Na Proposta de Diretiva apresentada em 2003 pela Comissão surgia uma noção de consumidor médio no ar-tigo 2.º b), modelada na definição do Gut Springenheide): “o con-sumidor normalmente informado e razoavelmente atento e adver-tido”. A codificação proposta do padrão do consumidor médio79

75 Sobre a difusão da noção de consumidor vulnerável após a adopção da Di-rectiva, vide marine friant-Perrot, “The Vulnerable Consumer in the UCPD and Other Provisions of EU Law”, in willem H. van boom, amandine garde e orkun akseli (eds.), “The European Unfair Commercial Practices Directive – Impact, Enforcement Strategies and National Legal Systems, Ashgate, 2014, pp. 93 e ss.

76 Considerando que esta pode ser uma barreira importante na aplicação do padrão, vide bram b. duivenvoorde, ob. cit., p. 25.

77 O conceito de consumidor vulnerável não é uma salvaguarda dispensável, politicamente orientada, na medida em que a deslealdade da prática comercial depende da possibilidade de o profissional prever essas características. Chama a atenção para este ponto, cHristian Handig, “The Unfair Commercial Practices Direc-tive – A Milestone in the European Unfair Competition Law?”, EBLR, 2005, p. 1123.

78 SEC (2003) 724, p. 8, bem como o preâmbulo da proposta da diretiva COM (2003) 356 final, Considerando 21.

79 Assim: “Estabelece como consumidor de referência o consumidor ‘médio’ na acepção do TJCE, e não o consumidor vulnerável ou atípico. Este critério, que reflec-te o princípio de proporcionalidade, é aplicável sempre que uma prática comercial se destine ou afecte a maioria dos consumidores, devendo ser adaptado sempre

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encontrou forte resistência no processo legislativo consequente, quer na Opinião do Conselho Económico e Social Europeu80, quer por parte do Parlamento Europeu81, no seu Relatório de 18 de mar-ço de 200482, que manifestou a sua preocupação com uma insufi-ciente proteção dos consumidores vulneráveis, justificada porque “é necessário ter em conta as circunstâncias em que certos con-sumidores podem ter um grau de vulnerabilidade não abrangido

que a prática comercial se destine de maneira especial a um determinado grupo (por exemplo, as crianças), devendo neste caso, a pessoa média deste grupo passar a ser o ponto de referência. Esta noção permitirá clarificar a aplicação da regra pe-los tribunais nacionais, reduzindo de modo significativo a possibilidade de decisões divergentes relativamente a práticas semelhantes na UE e constituindo simultanea-mente um instrumento que tem em consideração as características sociais, culturais ou linguísticas relevantes dos grupos visados, tal como é previsto pelo Tribunal”. O Processo 2003/0134/COD está disponível em: https://eur-lex.europa.eu/procedure/EN/2003_134

80 (CESE) OJ C 108/81, para. 3.6.: “3.6.2.: O CESE receia que o recurso a essa interpretação implique que a política de defesa do consumidor perca a sua natu-reza protectora e que, sem prejuízo para a atenção especial que a proposta dedi-ca aos ´grupos mais vulneráveis’, os consumidores menos informados ou os que te-nham um nível de ensino mais baixo fiquem desprotegidos. Cabe também recordar a situação de desigualdade material das partes, nas relações entre consumidores e profissionais. 3.6.3. Tal como definido na proposta de directiva, o perfil de requi-sitos do consumidor médio subentende um comportamento decisório ‘informado’. Ora, segundo a jurisdição dominante nos diferentes Estados-Membros, a publicida-de não veicula mensagens negativas ou depreciativas acerca de nenhum produto ou serviço. Só no conhecimento disto é que poderá haver decisões de consumi-dores informados. O Comité considera importante encontrar uma solução clara e viável para o efeito”.

81 A5-0188/2004.82 Relatório sobre a proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conse-

lho relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno (Directiva relativa às práticas comerciais desleais), COM(2003)356 – C50288/2003 – 2003/0134(COD).

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no critério baseado nos acórdãos do Tribunal de Justiça”83, e com a necessidade de maior proteção dos menores e dos idosos84. Em resposta, o Conselho propôs a remoção da noção de consumidor vulnerável das definições e a sua passagem para o Preâmbulo e também que se prestasse mais atenção aos consumidores vul-neráveis, quer no Preâmbulo, quer na Diretiva, na forma de um padrão alternativo que visasse especificamente a proteção de grupos vulneráveis.

A Comissão viria, em consequência, a justificar a remoção da definição de consumidor vulnerável com a preocupação de que a inserção desta definição na Diretiva impediria o conceito de evoluir com a jurisprudência do TJUE85, e no Considerando 18 pode ler-se que: “De acordo com o princípio da proporcionalidade, e a fim de possibilitar a aplicação efectiva das protecções previstas na mes-ma, a presente directiva utiliza como marco de referência o crité-rio do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmen-te atento e advertido, tendo em conta factores de ordem social, cultural e linguística, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça, mas prevê também disposições que têm por fim evitar a exploração de consumidores que pelas suas características são particularmen-te vulneráveis a práticas comerciais desleais”. Os fatores de ordem

83 Alteração 8.84 Alteração 31.85 Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu em conformidade com o

segundo parágrafo do n.º 2 do artigo 251.º do Tratado CE relativa à posição comum do Conselho sobre a adopção de uma Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho re-lativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno, que altera as Directivas 84/450/CEE, 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regula-mento [cooperação em matéria de aplicação] (Directiva relativa às práticas comerciais desleais) - COM (2004) 753 final, p. 3.

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social, cultural e linguística86 são uma referência clara ao Acórdão Estée Lauder 87, respeitante a um litígio entre a Estée Lauder Cosme-tics GmbH & Co. OHG e a Lancaster Group GmbH, a propósito da comercialização do produto cosmético Monteil Firming Action Lifting Extreme Creme, em cuja denominação figurava o termo “lifting”88.

A consideração do consumidor médio pela Diretiva, todavia, arrostou a crítica na doutrina, especialmente na remissão para os tri-

86 No Conselho, discutiu-se se a definição deveria levar implícita a considera-ção dos diferentes fatores “sociais, culturais e linguísticos” dos Estados-Membros que o Tribunal de Justiça havia mencionado no caso Estée Lauder. Esta extensão permi-tiria aos tribunais nacionais e às autoridades administrativas distinguir vários tipos de consumidor médio e, talvez por isso, o Tribunal de Justiça também não tenha referido essa parte da fundamentação nas decisões seguintes. Os fatores sociais culturais e linguísticos não faziam parte da noção de consumidor médio apresentada na Pro-posta de 2003, mas ficaram no Considerando 18.

87 Acórdão do Tribunal (Quinta Secção) de 13 de janeiro de 2000, proferido no Processo C-220/98, Estée Lauder Cosmetics GmbH & Co. OHG contra Lancaster Group GmbH.

88 No processo principal, a Estée Lauder argumentava que o termo “lifting” era enganoso, uma vez que dava a impressão ao comprador de que o produto tinha efeitos idênticos ou comparáveis, sobretudo quanto à duração, a uma operação cirúrgica de lifting da pele, quando não é esse o caso do referido creme. A Estée Lauder pedia que fossem proibidas a colocação no mercado para fins comerciais, a distribuição e a promoção dos produtos cosméticos cuja denominação englobasse o termo “lifting” em especial o referido creme. A Lancaster admitia que o creme em causa no processo principal não tinha a mesma acção a longo prazo que uma operação de lifting, mas indicava que tinha uma acção restauradora significativa. Considerava, ainda, que as expectativas do público relativamente ao referido pro-duto não correspondem ao alegado pela Estée Lauder. A Lancaster indicou, ainda, que nada justificaria as despesas a que deveria fazer face para denominar diferen-temente o produto se tivesse de proceder à modificação da embalagem apenas para o distribuir na Alemanha, uma vez que a utilização dessa denominação não era contestada nos outros Estados-Membros. A proibição solicitada constituiria um entrave desproporcionado, tendo em conta a reduzida importância do interesse geral a proteger, que era o de evitar um erro dos consumidores unicamente sobre

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a duração dos efeitos do produto em causa. O Landgericht Köln considerou que a utilização da palavra “lifting” na denominação do produto cosmético em causa no processo principal era contrária ao artigo 27.º, n.º 1, da LMBG, que proibia a comer-cialização de produtos cosméticos sob denominações enganosas e, em especial, a atribuição a esses produtos de efeitos que eles não possuem, desde que, de acordo com a jurisprudência, uma parte não negligenciável dos consumidores, isto é, cerca de 10% a 15%, fosse induzida em erro.

Assim, o Landgericht Köln decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial: “Devem interpretar-se os artigos 30.º e 36.º do Tratado CE e/ou o n.º 3 do artigo 6.º da Directiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de Julho de 1976, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos produtos cosméticos, no sentido de que se opõem à aplicação de disposições nacionais em matéria de protecção da concorrência desleal que permi-tem proibir a importação e comercialização de um produto cosmético legalmente produzido ou legalmente comercializado num Estado-Membro da União Europeia, baseando-se a referida proibição no facto de a designação `lifting’, entendida como indicação dos efeitos do produto, induzir os consumidores no erro de enten-derem que produz um efeito permanente, sendo que o referido produto se distribui legalmente e sem suscitar censura noutros países da União Europeia, ostentando na embalagem a mencionada indicação dos seus efeitos?”

O Tribunal começou por sublinhar que resultava do processo principal que o en-gano de que os consumidores podiam eventualmente ser vítimas no caso concreto não consistia na sua convicção de que o produto tinha efeitos idênticos ou com-paráveis aos de uma operação cirúrgica, antes se limitando à convicção de que o produto tinha efeitos de uma certa duração. Recordou ainda que: “no quadro da interpretação da Directiva 84/450, aquando da avaliação, por um lado, do risco de engano dos consumidores e, por outro, das exigências da livre circulação das mercadorias, o Tribunal de Justiça declarou que, para determinar se uma denomi-nação, marca ou indicação publicitária é ou não enganosa, se deve ter em conta a presumível expectativa dum consumidor médio, normalmente informado e razoa-velmente atento e advertido”. O Tribunal considerou depois que: “29 Com vista à aplicação desse critério ao caso vertente, devem ser tidos em consideração vários elementos. Há nomeadamente que verificar se factores sociais, culturais ou linguís-ticos podem justificar que o termo “lifting” empregado a propósito de um creme restaurador seja entendido pelos consumidores alemães de modo diferente do que é entendido pelos consumidores de outros Estados-Membros ou se as condições de utilização do produto são só por si suficientes para sublinhar a natureza transitória

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bunais e autoridades nacionais da determinação da reação típica do consumidor a uma determinada prática comercial. É um truísmo que se reproduzem agora as dificuldades na determinação de um grupo de consumidores, a que acrescem aquelas na determinação do público-alvo de uma determinada prática (os telespectadores, os leitores de uma determinada revista, os visitantes de um site, toda a potencial clientela?).

Muito recentemente, a Proposta de Diretiva do Parlamento Eu-ropeu e do Conselho, que que altera a Diretiva 93/13/CEE do Con-selho, de 5 de abril de 1993, a Diretiva 98/6/CE do Parlamento Euro-peu e do Conselho, a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, a fim de assegurar uma melhor aplicação e a moderniza-ção das normas da UE em matéria de defesa do consumidor89, de 11 de abril de 2018, no seu artigo 1.º, propôs uma alteração à Dire-tiva 2005/29/CE, cujo artigo 3.º, n.º 5, que passaria a ter a seguinte redação: “A presente diretiva não impede os Estados-Membros de adotarem disposições para proteger os legítimos interesses dos con-

dos seus efeitos, neutralizando qualquer conclusão contrária que possa ser tirada do termo “lifting”. 30 Embora, à primeira vista, o consumidor médio, normalmente infor-mado e razoavelmente atento e advertido, não deva esperar que um creme cuja denominação comporta o termo «lifting» produza efeitos duráveis, compete no en-tanto ao órgão jurisdicional nacional verificar, tendo em conta todos os elementos pertinentes, se esse caso aqui se verifica. 31 A esse respeito, não existindo qualquer disposição comunitária na matéria, compete ao órgão jurisdicional nacional, que considere indispensável ordenar um exame pericial ou encomendar uma sondagem de opinião destinada a esclarecê-lo quanto ao carácter eventualmente enganoso duma indicação publicitária, determinar, em conformidade com o seu direito nacio-nal, a percentagem de consumidores enganados por essa indicação que lhe pare-ça suficientemente significativa para justificar, se necessário, a respectiva proibição (v. acórdão Gut Springenheide e Tusky, já referido, n.os 35 e 36)”.

89 COM (2018) 185 final.

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sumidores quanto a práticas comerciais ou de marketing agressivas ou enganosas, levadas a cabo no quadro de visitas não solicita-das de um profissional a casa de um consumidor ou de excursões comerciais organizadas por um profissional tendo por objetivo ou efeito promover ou vender produtos aos consumidores, desde que essas disposições sejam justificadas por motivos de ordem pública ou de proteção da vida privada”. Esta proposta foi consagrada no art. 3.º, n.º 2, da Diretiva 2019/2161 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de novembro de 2019. Este retrocesso, pontual e específico, na política da harmonização total90, firmemente segui-da pelas instâncias europeias no século XXI, deve-se, sobretudo, à necessidade de proteção da privacidade individual de cada um – que, em nosso entender, cabe no âmbito da vulnerabilidade geral dos consumidores enquanto sujeitos no mercado.

c) A consideração do consumidor médio como estratégia política

O Parlamento Europeu emitiu, de 22 de maio de 2012, uma Reso-lução sobre uma estratégia de reforço dos direitos dos consumidores vulneráveis, onde apelou à Comissão Europeia e aos Estados-Mem-bros para que colaborassem na adoção de uma estratégia política e legislativa ampla e coerente contra a vulnerabilidade, tendo em con-ta a diversidade e a complexidade de todas as situações envolvidas91.

90 Vide iris benöHr, EU Consumer Law and Fundamental Rights, ouP, 2013, p. 37, sobre o impacto das diretivas de harmonização total nos modelos nacionais com as suas especificidades, criados para proteger consumidores vulneráveis.

91 Vide francesca iPPolito e sara iglesias sáncHeZ (eds.), Protecting Vulnerable Groups, The European Human Rights Network, Hart Publishing, 2015, pp. 2 e ss, para uma lista dos instrumentos que estruturam a cooperação europeia em matéria de proteção de consumidores vulneráveis.

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Considerou o Parlamente, inter alia, que o conceito ampla-mente usado de consumidores vulneráveis visa um grupo heterogé-neo composto por pessoas consideradas permanentemente como tal devido à sua deficiência mental, física ou psicológica, pela sua idade, credulidade ou género; que o conceito de consumidor vul-nerável deve também incluir consumidores numa situação de vul-nerabilidade, ou seja, consumidores que estejam numa situação de impotência temporária resultante de um fosso entre os seus estados e características individuais, por um lado, e o seu ambiente externo, por outro, tendo em consideração critérios como educação, situa-ção social e financeira, acesso à Internet, etc., que todos os consu-midores, em alguma fase da sua vida, se podem tornar vulneráveis devido a fatores externos e interações com o mercado ou devido às dificuldades que sentem em aceder e entender informações relevantes e que, por conseguinte, requerem proteção especial. Sa-lientou ainda o Parlamento que a diversidade das situações de vul-nerabilidade, tanto quando o consumidor é colocado sob um regi-me de proteção jurídica como quando se encontra numa situação de vulnerabilidade sectorial ou temporária específica, torna difícil o tratamento uniforme desta questão e a adoção de um instrumento legislativo abrangente, o que leva a que tanto a legislação como as políticas praticadas até então abordassem o problema da vulnerabi-lidade numa perspetiva casuística: sublinhou, por conseguinte, que a legislação europeia deve abordar o problema da vulnerabilidade do consumidor partindo de uma formulação horizontal e tendo em con-ta as suas diferentes necessidades, capacidades e circunstâncias.

Relembrando que a União Europeia deve incidir numa proteção eficaz dos direitos de todos os consumidores, o Parlamento conside-rou que a noção de “consumidor médio” carece da flexibilidade

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necessária para se adaptar a casos específicos e, por vezes, não corresponde a situações da vida real, arvorando a necessidade de uma estratégia para abordar a vulnerabilidade do consumidor (pro-porcionada a fim de não restringir as liberdades individuais e a esco-lha do consumidor). O Parlamento exortou a Comissão e incentivou os Estados- Membros a analisarem atentamente e em permanência os comportamentos e as circunstâncias sociais e de consumo sus-cetíveis de conduzirem certos grupos ou indivíduos a situações de vulnerabilidade, avaliando, por exemplo, as reclamações dos con-sumidores, no sentido de combaterem as situações de vulnerabilida-de através de medidas específicas, sempre que estas ocorram, e de oferecer proteção a todos os consumidores, independentemente da capacidade e fase da vida. A consideração da fraqueza do consu-midor é, pois, feita em consideração de caraterísticas generalizantes e a resposta político-regulatória utilizará instrumentos horizontais.

O paradigma do consumidor médio, diz-se, posterga a consi-deração da vulnerabilidade do consumidor, na sua concreta con-tingência jurídico-negocial e também pessoal. A vulnerabilidade, multidimensional, carece, pois, de uma intervenção que não pres-cinde da intervenção de outros ramos do direito para além do Di-reito do Consumidor: se este é particularmente vocacionado para responder à vulnerabilidade posicional do consumidor, enquanto agente do mercado, a (outra) legislação (de âmbito europeu ou dos Estados-Membros) não pode deixar de ser convocada para o auxílio das particulares situações de vulnerabilidade. Vejamos.

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4. Meios de proteção do consumidor: os remédios do Direito do Consumidor e os outros

Os institutos de reação típicos do Direito do Consumidor são, entendemos, vocacionados para a correção e reposição do desequilíbrio situacional que caracteriza a relação de consumo e que, em concreto, pode resultar numa situação de vulnerabilidade para o consumidor92.

Pense-se, por exemplo, nos direitos de arrependimento ou di-reito de livre rescisão ou de resolução do contrato (cooling off pe-riods). Apesar de o nosso legislador não ter adotado uma terminolo-gia única, estamos perante uma revogação unilateral e imotivada que o consumidor pode exercer num certo período após a celebra-ção do contrato. Entende-se que a negociação e/ou a celebração do contrato não terá resultado de uma decisão informada e racio-nal do consumidor, pelo que se lhe concede um certo período para refletir ou até mesmo, em alguns casos, tomar consciência da deci-

92 A resposta heterógena pode, todavia, vir de outras entidades que não a le-gislativa. Refira-se, entre outros, o papel determinante dos tribunais (a famosa Sen-tença de Portalegre, disponível em http://www.inverbis.pt/2012/tribunais/tribunal-portalegre-entrega-casa-banco) ou das entidades reguladoras (a título meramente exemplificativo, relembremos que a ANACOM, por decisões adotadas a 13 de julho de 2017, ordenou à MEO, NOS, NOWO e Vodafone, após audiência prévia dos inte-ressados, a adoção de medidas corretivas que implicavam o envio de comunica-ções escritas aos assinantes afetados por alterações contratuais da iniciativa dos referidos operadores, nas situações em que estes não lhes houvessem sido comuni-cado, por escrito, e de forma simultânea, as alterações das condições contratuais [efetuadas após a entrada em vigor da Lei n.º 15/2016, de 17 de junho] e o direito de rescindir os contratos sem qualquer encargo (ainda que os assinantes estives-sem sujeitos a períodos de fidelização ou a outros compromissos de permanência), caso não aceitassem as citadas alterações contratuais). Vide mais informações em https://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=1414742

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são negocial que tomou, do seu alcance e dos seus efeitos. Noutras situações, o iter negocial não permite ao consumidor conhecer, apreciar ou inspecionar o produto ou serviço que vai adquirir, pelo que lhe é conferido o direito de revogar unilateralmente o contrato se, após esse conhecimento, análise ou inspeção, o produto não lhe agradar. Note-se que esta é uma faculdade a contento, isto é, o seu exercício basta-se com o facto de a coisa não agradar ao consumidor, não se exigindo qualquer justificação objetiva, atinen-te à formação da vontade das partes, ao objeto do negócio ou ao cumprimento do contrato (para os quais existem meios específicos de reação93). Encontramo-los, no nosso direito, no artigo 10.º do De-creto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro, quanto aos contratos ce-lebrados à distância ou celebrados fora do estabelecimento94 e no

93 Por exemplo, o regime dos vícios ou falta de vontade, da compra e venda de coisas defeituosas, entre outros.

94 Determina este preceito que o consumidor tem o direito de resolver o contra-to sem incorrer em quaisquer custos, para além dos estabelecidos no n.º 3 do artigo 12.º e no artigo 13.º quando for caso disso, e sem necessidade de indicar o motivo, no prazo de 14 dias a contar: a) Do dia da celebração do contrato, no caso dos contratos de prestação de serviços; b) Do dia em que o consumidor ou um terceiro, com exceção do transportador, indicado pelo consumidor adquira a posse física dos bens, no caso dos contratos de compra e venda, ou: i) Do dia em que o con-sumidor ou um terceiro, com exceção do transportador, indicado pelo consumidor adquira a posse física do último bem, no caso de vários bens encomendados pelo consumidor numa única encomenda e entregues separadamente, ii) Do dia em que o consumidor ou um terceiro, com exceção do transportador, indicado pelo consu-midor adquira a posse física do último lote ou elemento, no caso da entrega de um bem que consista em diversos lotes ou elementos, iii) Do dia em que o consumidor ou um terceiro por ele indicado, que não seja o transportador, adquira a posse física do primeiro bem, no caso dos contratos de entrega periódica de bens durante um determinado período; c) Do dia da celebração do contrato, no caso dos contratos de fornecimento de água, gás ou eletricidade, que não estejam à venda em volume ou quantidade limitados, de aquecimento urbano ou de conteúdos digitais que não sejam fornecidos num suporte material. 2 - Se o fornecedor de bens ou prestador de

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artigo 17.º Decreto Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, sobre crédito ao consumo95. Sublinhe-se que, fora dos casos expressamente pre-vistos na lei, vale o princípio geral pacta sunt servanda, consagrado no artigo 406.º do nosso Código Civil96.

serviços não cumprir o dever de informação pré-contratual determinado na alínea j) do n.º 1 do artigo 4.º, o prazo para o exercício do direito de livre resolução é de 12 meses a contar da data do termo do prazo inicial a que se refere o número ante-rior. 3 - Se, no decurso do prazo previsto no número anterior, o fornecedor de bens ou prestador de serviços cumprir o dever de informação pré-contratual a que se refere a alínea j) do n.º 1 do artigo 4.º, o consumidor dispõe de 14 dias para resolver o contrato a partir da data de receção dessa informação. 4 - O disposto no n.º 1 não impede a fixação, entre as partes, de prazo mais alargado para o exercício do direito de livre resolução. (…) Note-se, contudo, que apesar de a inspeção da coisa que ultrapasse os limites não impede o exercício do direito de livre revogação, mas apenas constitui o consumidor na obrigação de indemnizar o profissional. Esta norma está, todavia, em discussão no New Deal.

95 Onde se lê: 1 - O consumidor dispõe de um prazo de 14 dias de calendário para exercer o direito de revogação do contrato de crédito, sem necessidade de indicar qualquer motivo. 2 - O prazo para o exercício do direito de revogação come-ça a correr: a) A partir da data da celebração do contrato de crédito; ou b) A partir da data de receção pelo consumidor do exemplar do contrato e das informações a que se refere o artigo 12.º, se essa data for posterior à referida na alínea anterior.

3 - Para que a revogação do contrato produza efeitos, o consumidor deve expedir a declaração no prazo referido no n.º 1, em papel ou noutro suporte duradouro à disposição do credor e ao qual este possa aceder, observando os requisitos a que se refere a alínea h) do n.º 3 do artigo 12.º. 4 - Exercido o direito de revogação, o consumidor deve pagar ao credor o capital e os juros vencidos a contar da data de utilização do crédito até à data de pagamento do capital, sem atrasos indevidos, em prazo não superior a 30 dias após a expedição da comunicação. 5 - Para os efeitos do número anterior, os juros são calculados com base na taxa nominal estipu-lada, nada mais sendo devido, com exceção da indemnização por eventuais des-pesas não reembolsáveis pagas pelo credor a qualquer entidade da Administração Pública. 6 - O exercício do direito de revogação a que se refere o presente artigo preclude o direito da mesma natureza previsto noutra legislação especial, designa-damente a referente à contratação à distância ou no domicílio.

96 Vide Horst eidenmüller, “Why Withdrawal Rights?”, ERCL, 2011, pp. 1 e ss.

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Numa proteção a montante da celebração do contrato, o legislador estabeleceu um período mínimo de reflexão obrigatória no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, que estabelece o regime do crédito hipotecário97. Estabelece o n.º 4 daquele preceito que o mutuante permanece vinculado à proposta contratual feita ao con-sumidor durante um prazo mínimo de 30 dias contados, para que o consumidor tenha tempo suficiente para comparar propostas, ava-liar as suas implicações e tomar uma decisão informada. O mutuan-te, nos termos do n.º 5, deve informar o consumidor de que este não pode aceitar a proposta contratual durante os primeiros sete dias contados daqueles 30 dias de forma a observar um período mínimo de reflexão, antes da celebração do contrato de crédito.

Outras soluções legislativas visam permitir a correção do dese-quilíbrio contratual, como, por exemplo, a cominação da nulidade como vício substancial das cláusulas contratuais gerais abusivas98. A opção do nosso legislador pelo regime da nulidade – quando a Dire-tiva 93/1993/CE lhe conferia liberdade para escolher o meio adequado

97 Os períodos de reflexão mínima obrigatória são um meio paternalista de tute-la dos consumidores. Como refere iris benöHr, EU Consumer Law and Fundamental Ri-ghts, OUP, 2013, p. 85, uma regulamentação paternalista é suscetível de ter impacto negativo no comportamento dos consumidores: pode permitir um comportamento menos diligente da parte deles e origina custos que lhes serão repercutidos. Sobre o paternalismo na tutela dos consumidores, vide o que escrevemos em Dimensions of Property under European Law, cit., pp. 275 e ss. Vide, ainda, iain ramsay, “Consumer Credit, Distributive Justice and the Welfare State”, in Oxford Journal of Legal Studies, 1995, n.º 15, pp. 177 e ss.

98 Ou em que se fixe uma taxa de juro para além dos limites permitidos por lei. Referimo-nos, em particular, ao artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, para o crédito ao consumo, e aos artigos 1146.º e 559.º-A do Código Civil, para os outros contratos de crédito. Para desenvolvimentos, vide miguel Pestana de vasconcelos, “Os limites máximos das taxas de juros das instituições de crédito e das sociedades financeiras”, Revista de Direito Comercial, 2018, pp. 629 e ss.

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- foi particularmente avisada, porquanto tem entendido o Tribunal de Justiça que um meio menos pesado vai de encontro às finalidades da Diretiva. A nulidade, de conhecimento oficioso, permite a interferência de uma terceira entidade, imparcial, que vai analisar materialmente o negócio celebrado, suprindo a falta de conhecimentos do consumidor ou a falta de meios económicos para se munir da adequada assistên-cia jurídica. O legislador português, contudo, manteve a flexibilidade necessária, para que a parte mais fraca do contrato não veja, em concreto, os seus interesses desconsiderados, quando o seu interesse seja na manutenção do contrato. Assim, o artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 446/85 determina que aderente que subscreva ou aceite cláusulas contratuais gerais pode optar pela manutenção dos contratos singu-lares quando algumas dessas cláusulas sejam nulas, implicando a ma-nutenção desses contratos, a vigência, na parte afetada, das normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integra-ção dos negócios jurídicos. Se, aquela faculdade não for exercida ou, sendo-o, conduzir a um desequilíbrio de prestações gravemente aten-tatório da boa fé, vigora o regime da redução dos negócios jurídicos99.

Outro aspeto a salientar prende-se com a injuntividade dos di-reitos do consumidor. O artigo 16.º da Lei de Defesa do Consumidor estabelece que, sem prejuízo do regime das cláusulas contratuais gerais, qualquer convenção ou disposição contratual que exclua ou restrinja os direitos atribuídos é nula, sendo que esta nulidade

99 Do mesmo modo, se a taxa de juros estipulada ou o montante da indemni-zação, no mútuo oneroso, excederem os limites legais, consideram-se reduzidos a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes. Sem prejuízo, todavia, da aplicabilidade dos artigos 282.º a 284.º, sobre a usura. Em lugar da anulação do negócio usurário, o lesado pode requerer a modificação do negócio segundo juízos de equidade. Requerida a anulação, a parte contrária tem a faculdade de opor-se ao pedido, declaran-do aceitar a modificação do negócio naqueles termos.

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apenas pode ser invocada pelo consumidor ou seus representan-tes. O consumidor, todavia, pode optar pela manutenção do con-trato quando algumas das suas cláusulas forem nulas nos mesmos termos estabelecidos pelo regime das cláusulas contratuais gerais. Encontramos preceitos semelhantes, a título meramente exemplifi-cativo, no artigo 13.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, relativamente a qualquer convenção ou disposição que exclua ou limite os direitos atribuídos aos utentes, ou no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, determinando a nulidade do acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos no diploma.

O legislador, atento à dificuldade acima apontada e que se prende com a incapacidade do consumidor de efetivação dos seus direitos100, em geral respeitantes a questões de pequeno mon-tante, e que não se compadecem com os custos do recurso a um advogado nem com as delongas de um processo judicial, estabe-leceu, no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho que: “1 - Os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expres-sa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados”. Estamos peran-te um caso de arbitragem obrigatória (não necessária, como o legislador erradamente a qualificou, pois o litígio não tem ne-cessariamente de ser dirimido em tribunais arbitrais do consumo, antes pode ser resolvido nos tribunais comuns): por escolha do utente individual, o litígio de consumo será resolvido no tribunal

100 Vide Iris benöHr, ob. cit., pp. 175 e ss, sobre direitos processuais e os direitos dos consumidores de acesso à justiça.

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arbitral e essa opção é obrigatória para o profissional101. A Lei n.º 63/2019, de 16 de Agosto, veio consagrar a arbitragem obriga-tória para os conflitos de consumo de reduzido valor económico (até 5.000,00 euros).

Os instrumentos descritos são meios de reação contra a vul-nerabilidade posicional, de mercado. Note-se, todavia, que estes meios não excluem a convocatória de outros instrumentos ade-quados à proteção da vulnerabilidade agravada de determinados consumidores. Pensemos, por exemplo, na legislação antidiscrimi-nação102. A proibição de discriminação na escolha da contraparte negocial está hoje consagrada na legislação portuguesa em vá-rios diplomas avulsos, nomeadamente, na Lei n.º 93/2017, de 28 de Agosto, que estabelece o regime jurídico da prevenção, da proibi-ção e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem103, na Lei n.º 14/2008, de 12 de Março, que proíbe e sanciona a discri-minação em função do sexo no acesso a bens e serviços e seu for-necimento, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º

101 Note-se, todavia, que nos termos do artigo 13.º, n.º 1, da Lei 144/2015, os acor-dos efetuados entre consumidores e fornecedores de bens ou prestadores de servi-ços no sentido de recorrer a uma entidade de RAL, celebrados antes da ocorrência de um litígio e através de forma escrita, não podem privar os consumidores do direito que lhes assiste de submeter o litígio à apreciação e decisão de um tribunal judicial.

102 Vide o nosso Propriedade e Personalidade no Direito Civil Português, Almedi-na, Coimbra, 2017, pp. 341 e ss.

103 Este diploma revogou a Lei n.º 18/2004, de 11 de maio, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2000/43/CE, do Conselho, de 29 de junho, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica, e tem por objetivo estabelecer um quadro jurídico para o combate à discriminação baseada em motivos de origem racial ou étnica.

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2004/113/CE, do Conselho, de 13 de Dezembro, e na Lei n.º 46/2006, de 26 de Agosto, que proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência e da existência de risco agravado de saúde104. A vulne-rabilidade agravada de um concreto consumidor é especialmen-te protegida ainda no Código Civil105, nas normas de protecção dos incapazes106, no regime da falta107 e dos vícios da vontade108 ou da usura109, ou também no Código Comercial, na tutela da aparência110.

104 Este diploma não resulta de uma transposição de Diretiva europeia. Todavia, Portugal assinou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ado-tada em Nova Iorque em 30 de março de 2007 (cfr. Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, D.R. n.º 146, Série I de 2009-07-30).

105 Sobre o alcance desta assunção, isto é, do recurso ao regime geral do Direito Civil, vide ewoud Hondius, “tHe notion of consumer: euroPean union versus member sta-tes”, SyDnEy L. REV., 2006, n.º 28, PP. 89e ss.

106 Pense-se a título de exemplo no artigo 125.º, sobre a anulabilidade dos atos dos menores.

107 Vide, por exemplo, a Decisão do CICAP, de 26 de Setembro de 206, no Processo 127/2016, disponível em http://www.cicap.pt/wp-content/upload-s/2017/03/26.9.2016-Telecomunica%C3%A7%C3%B5es-1.pdf

108 A propósito dos vícios da vontade, leia-se mafalda miranda barbosa, “O regime das práticas comerciais desleais (no contexto mais amplo do ordenamento jurídico): o diálogo com os regimes específicos de proteção do consumidor e com o regime dos vícios da vontade”, Estudos de Direito do Consumidor, 2017, n.º 13, pp. 67 e ss.

109 Vide o nosso “O problema das cláusulas contratuais gerais é o da usura em massa? Resposta a Pedro Pais de Vasconcelos”, Revista de Direito Comercial, 2018, pp. 161 e ss.

110 Vide o que escrevemos em “A propósito das práticas comerciais desleais: contributo para uma tutela positiva do consumidor”, cit., pp. 107 e ss., sobre a vincu-lação, perante o consumidor, do profissional pelos seus colaboradores e agentes.

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5. Conclusão

Concluímos, pois, que a vulnerabilidade do consumidor é um es-tado de fraqueza ou fragilidade resultante de um desequilíbrio que lhe é desfavorável, seja na exposição a mensagens e a práticas co-merciais, seja nas mais ou menos intensas interações de mercado. Todos os consumidores são potencialmente vulneráveis, em virtude da sua posição no mercado, ao encontro de profissionais, em ge-ral qualificados e poderosos. Alguns consumidores, todavia, apre-sentam características específicas que os colocam numa situação agravada de vulnerabilidade quando na situação de mercado. A atual configuração do Direito do Consumidor como direito de mer-cado, i.e., um instrumento de correção de desequilíbrios, potenciais ou efetivos, assumindo o paradigma do consumidor médio, poster-ga a consideração da concreta contingência jurídico-negocial e pessoal do consumidor. Enquanto essa configuração se mantiver, uma tutela eficaz do consumidor não pode prescindir de carrear outros instrumentos disponibilizados pela ordem jurídica portuguesa, nomeadamente, na legislação antidiscriminação, no Código Civil ou até no Código Comercial.

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OBSOLESCÊNCIA DA ORIGEM AO PROBLEMA SOCIAL E

SEUS REFLEXOS À SOCIEDADE

1William Cornetta*

Sumário INTRODUÇÃO; 1. DO NASCIMENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO AO

HIPERCONSUMO; 2. OBSOLESCÊNCIA; 2.1 CONCEITO DE OBSOLESCÊNCIA; 2.2 TIPOLOGIA DA OBSOLESCÊNCIA; 2.3 DA ORIGEM AO PROBLEMA SOCIAL; 2.3.1 Solução Macroeconômica; 2.3.2 Caractere do Capitalismo; 2.3.3 Plano de negócio; 2.3.4 Problema Social; 3. OBSOLESCÊNCIA NA SOCIE-DADE DE CONSUMO; CONCLUSÃO

Resumo O tema pano de fundo deste trabalho é a sociedade de consumo,

em especial a obsolescência como técnica aplicada aos produtos. Consi-derando o contexto de consumo descartável aceito e adotado pela so-ciedade atual, pretende-se demonstrar que a obsolescência é um artifício utilizado na produção para induzir ao consumo repetitivo e seus reflexos. Para tanto, será necessário conhecer conceito da obsolescência, sua história e tipologia. Como conclusão, pode-se dizer que a obsolescência

* Graduado em Direito pela PUCCAMP, MBA em Direito da Economia e da Em-presa pela FGV, especialista em Administração e Marketing pela ESPM, Mestre e Doutor em Direito pela PUCSP. Pós-Doutorado pela Faculdade de Direito da Univer-sidade de Coimbra - Centro de Direitos Humanos. Diretor Jurídico e de Compliance da Motorola Solutions.

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é o recurso ou estratégia utilizado por muitos fornecedores para induzir os consumidores a realizar compras repetitivas de produtos motivados por fa-tores psicológicos, tecnológicos, funcionais ou mercadológicos, e que seus reflexos não estão adstritos no mercado de consumo, mas se expandem para diferentes planos.

Abstract The background theme of this work is consumer society, especially ob-

solescence as a technique applied to products. Considering the context of disposable consumption accepted and adopted by the current society, it is intended to demonstrate that obsolescence is an artifice used by the sup-plier to promote repetitive consumption and its reflexes to the society. For this, it will be necessary to know the concept of obsolescence, its history and typology. As a conclusion, it can be said that obsolescence is the resource or strategy used by many suppliers to induce consumers to make repetitive purchases of products motivated by psychological, technological, functio-nal or market factors, and that their effects are not dependent on the mar-ket, but spread to different plans.

Palavras chavesDireito. Sociedade de Consumo. Direito do consumidor. Obsolescência.

KeywordsLaw. Consumer Society. Consumer law. Obsolescence.

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INTRODUÇÃO

O consumo tornou uma constante na vida das pessoas, elas praticam relações de consumo no seu cotidiano e diversas vezes ao longo do dia. O Consumo também tomou uma dimensão muito maior que apenas ser o provedor de produtos para os consumido-res. O consumo hoje assumiu um papel de resposta social aos direi-tos dos cidadãos e ao relacionar esta assertiva com a questão da obsolescência, a questão ganha maior impacto.

Contudo, o consumo não é algo dado na sociedade, ele nas-ceu ao longo da evolução histórica do ser humano e neste proces-so de evolução, sofreu uma significativa alteração, ou seja, antes se consumia pensando na família e nas suas gerações, mas atualmen-te o consumo passou a ser feito pelo indivíduo.

O consumo individual permitiu a consolidação da sociedade de consumo, e ainda a transformou em uma sociedade de hiper-consumo que aceita e enaltece o consumo descartável, ou seja, a adquirir produtos para, depois de uma única utilização, descartá-los.

Por um outro lado, a obsolescência também foi sendo desen-volvida no contexto histórico da sociedade. Ela nasce como uma solução macroeconômica, mas de solução tornou-se um problema social.

Nesta quadra histórica, a obsolescência é um artifício utilizado no mercado de consumo com o objetivo de gerar compras repe-titivas de produtos, contudo seus reflexos se estendem para outros planos, como o social, econômico, entre outros.

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1. DO NASCIMENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO AO HIPERCONSUMO

“Vivemos em uma época em que quase tudo pode ser com-prado e vendido”1, aponta Michael Sandel, e ainda complementa, “a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo” 2.

Não é possível entender a questão da obsolescência e como ela se consolida na sociedade sem entender a sociedade de con-sumo atual e como foi sua formação ao longo da história, conforme destacam Douglas e Isherwood, a base de qualquer estudo sobre consumo deve levar em consideração o modelo capitalista de pro-dução e a sociedade industrial3.

Ainda podemos observar que o consumo não é algo imposto ao consumidor, decorre de sua escolha livre, mesmo que seja “irra-cional, supersticioso, tradicionalista ou experimental” 4.

Nesta trilha, observa McCracken que “o consumo moderno é, acima de tudo, um artefato histórico. Suas características atuais são o resultado de vários séculos de profunda mudança social, econô-mica e cultural no Ocidente”5. O autor observa que o marco inicial

1 micHael j. sandel, O que o dinheiro não compra: os limites morais do merca-do. Tradução de Clóvis Marques. 1. ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016 [eBook – formato: epub), pos. 127 de 4902.

2 micHael j. sandel, ob. cit., pos. 141 de 4902.3 mary douglas; baron isHerwood, Mundo dos bens para uma antropologia do

consumo. Tradução Plínio Dentzien. 1. ed. 2 reimp. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2009. p. 101.

4 mary douglas; baron isHerwood, ob. cit., p. 101.5 grant mccracken, Cultura & Consumo – novas abordagens ao caráter sim-

bólico dos bens e das atividades de consumo. Tradução Fernanda Eugênio. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 21.

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da sociedade de consumo ocorreu no século XVI, época em que novos hábitos, bens e práticas de consumo começavam a surgir, principalmente em países como Inglaterra e França6.

McKendrick ainda observa que a revolução industrial ocasio-nou o que chama de revolução do consumidor, ou seja, para o autor a revolução industrial e o consumo são complementares7.

A revolução industrial trouxe grandes alterações para este ce-nário e como consequência mais notória, a Revolução Industrial ge-rou a massificação da produção (produção em série) aumentando enormemente a quantidade de produtos colocados em circulação e concebendo desta forma a “Sociedade de Consumo”.

McCracken8 observa que o consumo se enraizou na sociedade e passou a fazer parte indissociável da sociedade no século XIX, e atribui esta mudança social e dos hábitos de consumo pela criação das lojas de departamento, que fez com que as pessoas passassem a ficar mais próximas dos objetos de seus desejos como também o fenômeno do crédito ao consumidor9, ou seja, estes não mais precisavam ter mais o valor integral para realizar a aquisição do produto.

Bauman considera que ocorreu a transformação de uma “so-ciedade moderna de produtores” para uma “sociedade de consu-midores”. Analisa que a felicidade não é tão associada à satisfação de necessidades, mas à quantidade de desejos sempre crescentes, o

6 grant mccracken, ob. Cit., P. 21.

7 neil mckendrick, The consumer society. Bloomington: Indiana University Press, 1982, p. 9.

8 grant mccracken, ob. cit., p. 30.9 grant mccracken, ob. cit., p. 1.

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que significa uso imediato e rápida substituição dos objetos para aten-der a todas essas novas necessidades, impulsos, compulsões e vícios, assim como apresenta novos mecanismos de motivação, orientação e monitoramento da conduta humana. É deste autor a afirmação de que a economia consumista se baseia no excesso e no desperdício10.

Já a sociedade de hiperconsumo é um conceito criado por Gilles Lipovetsky11, para quem a sociedade atual é marcada pela perda de sentido das instituições morais, sociais e políticas. A cultu-ra, por sua vez, é marcada por relações de tolerância, hedonismo e consumo excessivo.

Segundo Gilles Lipovetsky12, a sociedade de hiperconsumo é considerada a civilização da felicidade paradoxal. O hiperconsu-midor não está apenas buscando a felicidade material; ele procura conforto psíquico, harmonia interior e desabrochamento subjetivo, fatos que podem ser comprovados pelo aparecimento de diversas técnicas que visam ao desenvolvimento humano, como sabedorias orientais, novas espiritualidades, guias da felicidade, etc. O mate-rialismo das primeiras sociedades de consumo foi substituído, como agora se pode observar, pelo crescimento do mercado da alma, do equilíbrio e da autoestima, com a criação das “farmácias da felicidade”: uma nova crença na qual o consumidor pode “com-prar a felicidade, a autoestima e o equilíbrio” como qualquer outro produto de prateleira, conforme denota Lipovetsky13.

Além disso, ainda segundo o mesmo autor, as pesquisas de opinião mostram que cada vez mais as pessoas se dizem “felizes”,

10 Zygmunt baumann, Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 53.11 gilles liPovetsky, A felicidade paradoxal: ensaios sobre a sociedade de hiper-

consumo, p. 76.12 gilles liPovetsky, ob. cit., p. 15.13 gilles liPovetsky, ob. cit., p. 15.

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contudo a tristeza, a depressão e a ansiedade crescem de maneira arrebatadora. A sociedade está cada vez mais rica, no entanto, um número crescente de pessoas vive na precariedade, próximo ou abaixo da linha da pobreza. Os seres humanos são cada vez mais bem cuidados, mas isto não impede que os indivíduos se tor-nem uma espécie de hipocondríacos crônicos14.

A diferença mais sensível que podemos destacar é a forma de consumo, que passou de um consumo pensado na família para um consumo imediatista, individual e hedonista.

Podemos destacar que até o século XVI, a unidade de consu-mo era a família e a decisão de consumo era a tradicional “pátina”, ou seja, a compra com o objetivo de o bem permanecer na família por diversas gerações. Os bens adquiridos se tornavam valiosos em razão de sua antiguidade e da história da família15.

Contudo, a partir da consolidação do consumo, a unidade do consumo passou da família para o âmbito do indivíduo, o que gerou uma grande mudança no processo de decisão de consu-mo. Neste novo cenário, a decisão de compra é impulsionada pela moda, pelo hedonismo individual e pela competição social16.

Se isto não bastasse, a nova sociedade começa a aceitar o conceito de produtos descartáveis, que pode ser comprovado com a publicação da revista americana Life17, em 1955, que publicou uma matéria denominada “Throwaway Living”, que destacava a

14 gilles liPovetsky, ob. cit., p. 16.15 grant mccracken, ob. cit., p. 1.16 grant mccracken, ob. cit., p. 1.17 O artigo pode ser visto em: GOOGLE. Livros. Disponível em: <https://books.

google.com.br/books?id=xlYEAAAAMBAJ&lpg=PP1&pg=PA43&redir_esc=y#v=one-page&q&f=true>. (11.12.2019).

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nova sociedade descartável. O artigo trazia uma foto com uma série de utensílios descartados e completava o chamado com a seguinte afirmação: “produtos descartáveis reduzem as tarefas domésticas”18.

A matéria destacava que não era mais necessário despender diversas horas realizando a tarefa de limpeza porque era possível adquirir produtos que depois de usados poderiam ser descartados e os exemplos apresentados eram guardanapos, fraldas, bacias de alimentação para animais, frigideiras e churrasqueiras descartáveis.

Packard ainda observa que nesta “throwaway society” até mesmos os jantares podem ser comprados congelados, colocados no forno para aquecer, servidos na própria embalagem e depois tudo pode ser jogado no lixo19.

Os produtos descartáveis eram, assim, uma solução fantástica para todos os problemas, ou seja, depois de usados uma vez eram jogados no lixo20.

Neste desenvolvimento histórico do consumo, podemos verifi-car que a sociedade passou a aceitar com naturalidade os produ-tos descartáveis, ou seja, aqueles produtos que são utilizados uma única (ou poucas vezes) e depois são descartados.

Na opinião de Slade, a “cultura do descartável permitiu a consolidação da estratégia usada pelos fabricantes para dar asas ao consumo repetitivo. A mencionada “cultura do descartá-vel” foi concebida como uma demanda infinita para a indústria21.

18 Tradução livre de “Disposable items cut down household chores”.19 vance Packard, The Waste Makers., p. 56.20 vance Packard, ob. cit., p. 56.21 giles slade, Made to break. Technology and obsolescence in America. First

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Ainda Slade ressalta que a cultura do descartável ganhou po-pularidade nos Estados Unidos porque os produtos descartáveis pessoais eram utilizados em nome da higiene e da saúde e o reflexo destes novos hábitos influenciou o aparecimento de outros produ-tos em outros segmentos do consumo22.

Neste contexto de aceitação cultural de produtos descartáveis, como também pelo fato de o consumo passar a ser cada vez mais individualista e imediato, a utilização da obsolescência no mercado de consumo como um artifício para gerar compras repetitivas en-controu um terreno fértil para seu desenvolvimento e consolidação.

2. OBSOLESCÊNCIA

2.1. Conceito de obsolescência

A grande questão que circunda a obsolescência é a ausência de um conceito comumente empregado para o tema.

Diversos autores, de diversas áreas, buscaram a consecução da definição ou delimitação do tema da obsolescência. Burns ob-serva que a origem do termo obsolescência vem da composição de duas palavras, o verbo soleo, significa “estar em uso”; a segundo “ob”, significa “até o fim”; contudo, o conceito atual da palavra tem sentido oposto23.

Harvard University Press paperback edition. Cambridge, USA: Harvard University Press, p. 24.

22 giles slade, ob. cit., p. 24.23 burns brian, Re-evaluating obsolescence and planning of it. In: COOPER, Tim

(Ed.). Longer lasting products – Alternatives to the throwaway, p. 40.

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Na interpretação de Cooper, a obsolescência ocorre quando os produtos estão fora de uso (out of use) ou desatualizados (out of date)24.

Apesar da grande divergência de conceito, pode-se conceituar obsolescência como25: (“i”) redução da vida útil do produto median-te o uso de artifícios ou uso de materiais de menor durabilidade; (“ii”) redução da vida útil do produto pela impossibilidade de realização de manutenção, seja pela ausência de peças para reposição ou assistência técnica seja pela incompatibilidade entre componentes antigos e novos, incluindo softwares e suas atualizações, ou pela au-sência de consumíveis, acessórios, produtos associados ou relaciona-dos com o produto principal; (“iii”) introdução de produtos ou outras condições no mercado, como fatores psicológicos, mercadológicos, tecnológicos, funcionais ou outra forma de persuasão, fazendo com que o produto funcional em posse do consumidor seja menos dese-jável, e (“iv”) redução do prazo de validade ou do número de vezes de uso do produto sem qualquer razão científica.

2.2. Tipologia da Obsolescência

Diversos autores ao longo da história da obsolescência foram responsáveis por realizar a sua tipologia, pelo que no presente es-tudo o objetivo não é fazer um inventário de todos os autores que realizam a classificação ou tipificação dos tipos da obsolescência26.

24 tim cooPer, Inadequate life? Evidence of consumer attitudes to product ob-solescence. Journal of consumer policy, p. 440.

25 william cornetta, A obsolescência como artifício usado pelo fornecedor para induzir o consumidor a realizar compras repetitivas de produtos e a fragilidade do CDC para combater esta prática. 2016. 186f. Tese (Doutorado em Direito)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP, 2016, p. 50-51.

26 Para uma tipificação completa: william cornetta. ob. cit., p. 51-59.

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O objetivo aqui é corrigir a questão terminológica e a falta de critério de utilização dos termos “obsolescência” e “obsolescência programada” ou “obsolescência planejada”.

Por esta razão, será centrado o estudo naqueles autores/estu-diosos que abordaram esta tipologia em suas teorias.

O primeiro estudioso a categorizar a obsolescência foi Packard que a classificou em: obsolescência de função (obsolescence of function), obsolescência de qualidade (obsolescence of quality) e obsolescência de desejo (obsolescence of desirability)27_28, contudo como se pode perceber ele não adotou em sua metodologia os termos obsolescência programada ou obsolescência planejada.

Já Slade é o primeiro autor a utilizar os termos e classifica a ob-solescência em: obsolescência técnica ou funcional, obsolescên-cia psicológica, perceptiva, progressiva ou dinâmica e obsolescên-cia planejada ou programada.

Para o autor, obsolescência técnica ou funcional ocorre quan-do o fornecedor introduz uma nova tecnologia ou funcionalidade no produto que faz com que o consumidor passe a desejá-lo por uma determinada característica que apresenta, em detrimento de outro.

27 Para o estudioso, a obsolescência de função (obsolescence of function) ocorre quando um produto se torna obsoleto em decorrência da introdução de um novo produto que realiza uma função melhor. Já a obsolescência de qualidade (obsolescence of quality) ocorre um planejamento, de modo que o produto que-bre ou se desgaste em momento não muito distante do início de seu uso. Por fim, a obsolescência de desejo (obsolescence of desirability), o produto que ainda opera normalmente em termos de qualidade e performance é considerado obsoleto em razão da mudança de estilo ou outra mudança de mercado, fazendo com que pa-reça menos desejável ao consumidor. vance Packard, ob cit, p. 65.

28 vance Packard, ob. cit., p. 65.

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A segunda forma de obsolescência é a chamada obsolescên-cia psicológica, perceptiva, progressiva ou dinâmica, quando o for-necedor modifica o design ou o estilo do produto para manipular a compra repetitiva pelo consumidor29.

A terceira forma de obsolescência é a obsolescência plane-jada ou programada. Neste tipo de obsolescência, o fornecedor deliberadamente manipula o produto para que venha a falhar após determinado período de tempo. A falha de produto de-corrente do uso, por motivo de desgaste, falha ou consumo do material, é considerada normal, uma vez que todos os produtos têm uma expectativa de vida útil. A obsolescência planejada ou programada ocorre quando o fornecedor passa a dispor de sua engenharia para adulterar a composição do produto, seja intro-duzindo materiais de menor durabilidade, seja fazendo com que tenha uma vida menor. Esse comportamento força o consumidor a adquirir um novo produto30.

O Centro Europeu de Consumo elaborou o estudo intitulado “L´obsolescence programmée ou Les Dérives de La Société de Con-sommation”31, que trata da obsolescência programada e identifica três tipos de obsolescência: obsolescência técnica ou tecnológica (L´obsolescence technique ou technologique), obsolescência pela expiração (L´obsolescence par péremption) e obsolescência esté-tica (L´obsolescence esthétique).

29 giles slade, ob. cit., p. 43.30 giles slade, ob. cit., p. 48.31 centre euroPéen de la consommation, L´obsolescence programmée ou les déri-

ves de la société de consommation Disponível em: <http://www.europe-consomma-teurs.eu/fileadmin/user_upload/eu-consommateurs/PDFs/publications/etudes_et_rapports/Etude-Obsolescence-Web.pdf>. (11.12.2019).

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Segundo o Centro Europeu de Consumo, a obsolescência técnica se divide em quatro espécies: obsolescência por vício fun-cional (’obsolescence par défaut fonctionnel), obsolescência por incompatibilidade (l’obsolescence par incompatibilité), obsoles-cência indireta (l’obsolescence indirecte) e obsolescência por noti-ficação (l’obsolescence par notification)32.

Obsolescência por vício funcional caracteriza bem a obsoles-cência programada, ou seja, trata-se de um recurso técnico exis-tente no produto cujo objetivo é promover/antecipar o fim de sua vida útil. Segundo o estudo citado, este tipo de obsolescência ocor-re em produtos elétricos ou eletrônicos. Já a obsolescência estética atua na esfera psicológica do consumidor fazendo com que este reconheça determinado produto como velho ou desatualizado e fique inclinado a adquirir um novo modelo do mesmo produto33.

Além das formas acima descritas, existem diversas outras classi-ficações ou tipologias da obsolescência.

Tim Cooper aponta a existência da obsolescência absoluta e da obsolescência relativa. Aquela representa falha total de um pro-duto, vindo a ocorrer quando o produto chega ao fim de sua vida técnica, ou seja, se esgotou a sua vida útil ou porque não pode mais suportar o desgaste do uso34.

A obsolescência relativa ocorre quando um produto ainda está em funcionamento, mas é descartado ou substituído de for-ma “discricionária”. Conforme observa Tim Cooper, existe uma

32 centre euroPéen de la consommation, ob. cit. p. 4.33 centre euroPéen de la consommation, ob. cit., p. 4.

34 tim cooPer, Longer lasting products – Alternatives to the throwaway society, p. 16.

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teoria de escolhas racionais que pode sugerir o momento em que os proprietários de produtos decidem avaliar a relação custo-be-nefício para a substituição de um produto funcional, contudo, na prática, outras influências podem servir de base para tal decisão35.

A obsolescência ainda pode ser classificada ainda em tecnoló-gica, psicológica e econômica, conforme explicita Cooper. A obso-lescência tecnológica ocorre quando as pessoas são atraídas para novas funções adicionadas ou alteradas como resultado dos avanços da tecnologia. Aqui, verifica-se a influência da tecnologia como fator de decisão de aquisição ou descarte de determinado produto36.

A obsolescência psicológica ocorre quando as pessoas não es-tão mais atraídas por um produto ou mesmo satisfeitas com ele. Este tipo de obsolescência ocorre, regra geral, em razão de pressões do grupo, moda ou marketing37.

A terceira forma, identificada como obsolescência econô-mica, ocorre quando os consumidores atribuem um pequeno ou não existente valor (econômico) a determinado produto e con-cluem que não vale a pena mantê-lo em uso. Os consumidores, neste caso, podem ser influenciados pelo custo da substituição do produto em relação a um novo modelo, que pode ter maior eficiência energética, ou desencorajar o reparo em razão do alto custo38.

35 tim cooPer,ob. cit., p. 16.36 tim cooPer, Inadequate life? Evidence of consumer attitudes to product ob-

solescence. Journal of Consumer Policy, Netherlands, Kluwer Academic Publishers, n. 24, p. 421-449, 2004. p. 421-449.

37 tim cooPer, Inadequate life? ob. cit., p. 421-449.38 tim cooPer, Inadequate life?, ob. cit. p. 421-449.

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A categorização da obsolescência em diversas tipologias se-gue diferentes raciocínios que podem auxiliar no entendimento do seu verdadeiro conceito e na identificação de eventuais reflexos para o consumidor.

2.3. Da Origem Ao Problema Social

Conforme será analisado a seguir, o desenvolvimento da ob-solescência e seu conceito tiveram um caminho tortuoso, contudo mesmo com um desenvolvimento não linear entendo ser possível denotar quatro marcos importantes na evolução do instituto.

Diferente de falar da origem histórica39 do instituto da obsoles-cência, a proposta aqui é explanar estes quatro marcos que são o nascimento da obsolescência como uma solução macroeconômi-ca, sua passagem como característica do capitalismo, seu ingresso nos planos de negócios das grandes corporações e então finalmen-te a obsolescência como problema social.

2.3.1. Solução Macroeconômica

Slade observa que a obsolescência é uma invenção norte-a-mericana40, e nesta trilha, o primeiro texto41 que abordou diretamen-

39 Para verificar a histórica da obsolescência completa: william cornetta, ob. cit., p. 35-45.

40 giles slade, ob. cit., p. 3, 4.41 Antes de Bernard London, existiram outros autores como Stuart Chase, Justus

Georges Frederick que abordaram temas da obsolescência, mas foi Bernard London que fez sua abordagem mais próxima de como o termo é utilizado hoje.

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te a questão da obsolescência foi “Ending the depression through planned obsolescence” de Bernard London em 193242.

London propôs uma solução macroeconômica para a crise de 1929 nos Estados Unidos. Para o autor, em momentos de crise, ameaça ou histeria, as pessoas em geral utilizam seus produtos por mais tempo se comparado com momentos de prosperidade43.

Para o mesmo autor, em momentos mais prósperos, as pessoas não esperam até o último momento para substituir seus produtos, a substituição ocorre por questão de moda ou de atualização44.

Nestes períodos de crise, ameaça ou histeria, as pessoas ten-dem a desobedecer o que chamou da “lei da obsolescência”, ou seja, utilizam os produtos por prazos dilatados, e quando isso ocorre, existe um significativo impacto econômico, pois os consumidores deixam de movimentar a economia com a compra dos novos pro-dutos, pois estes evitam consumir45.

Assim, segundo a teoria desenvolvida por London, o governo de-veria definir o prazo de vida útil dos produtos manufaturados quando desenvolvidos e postos à venda. Assim, transcorrido o prazo da vida útil, os produtos deveriam ser considerados “mortos” e devidamente destruídos por uma agência governamental, a ser definida.

Desta forma, novos produtos seriam vendidos em substituição àqueles descartados. Então este tipo de obsolescência planejada

42 giles slade, ob. cit., p. 50.43 bernard london, Ending the depression through planned obsolescence. New

York: Sef-published, 1932. p. 1.44 bernard london, ob. cit., p. 1-2.45 bernard london, ob. cit., p. 2.

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teria como função servir de reserva de receita para distintos atores econômicos, ou seja, o governo, por meio de impostos; os fabrican-tes, pela receita da venda de novos produtos; e as pessoas, com a garantia de salários.

A receita decorrente da venda de produtos e pagamento de impostos da venda destes produtos poderia ser planejada e contro-lada com base no prazo de vida útil definido. Segundo London, as pessoas deveriam devolver os produtos obsoletos para uma agên-cia governamental, que em troca, receberiam um valor pelo pro-duto devolvido, cujo recurso serviria para comprar um novo46.

Contudo, se a pessoa decidisse manter o produto após o prazo defi-nido pelo governo, deveria pagar uma taxa pelo uso do bem obsoleto47.

A teoria de London se pautava em uma “abundância” de re-cursos para manter o ciclo produtivo no mercado48 e assim seria mais econômico destruir produtos obsoletos do que assumir o risco de impactar aspectos mais importantes como a vida humana, a saúde e a confiança da população49.

2.3.2. Caractere do Capitalismo

Apesar do sistema capitalista já estar estabelecido por alguns séculos, o principal momento de antagonismo do capitalismo ocor-reu com a Revolução Russa. A partir dela, diversos autores passa-

46 bernard london, ob. cit., p. 2.47 bernard london, ob. cit., p. 2.48 bernard london, ob. cit., p. 3.49 bernard london, ob. cit., p. 6.

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ram a fazer a comparação ou mesmo aprofundar os estudos nos dois ou em um dos dois sistemas econômicos.

Schumpeter ao analisar o capitalismo confeccionou o termo “destruição criativa”. Para o mencionado autor a destruição criati-va é que o impulso fundamental do sistema capitalista tem origem em novos consumidores, novos métodos de produção ou transporte, novos mercados e novas formas de organização industrial que só o capitalismo pode criar50.

A história da evolução do aparato produtivo do capitalismo é um processo de revoluções, no qual o antigo é destruído e substi-tuído por algo novo constantemente, constituindo o processo de destruição criativa, ou seja, trata-se da necessidade do constante ciclo de venda de novos produtos para os consumidores no modelo capitalista.51

Mészáros observa a necessidade da existência de um balan-ço entre produção e consumo, para que sempre exista a contínua reprodução da venda, ou seja, para permitir que os bens duráveis sejam prematuramente descartados antes de se esgotar o prazo de sua vida útil permitindo que o modelo capitalista possa manter o ciclo operando52.

Paul. M Mazur, tratou a obsolescência como um “Deus”, pois para ele o consumo apenas movido pelo desgaste dos produtos era muito lento para a necessidade da economia/indústria americana.

50 josePH a. scHumPeter, CapitaLiSm, socialism and democracy. Fifth edition 1976. New York: Taylor & Francis e-Library, 2003. p. 82-83.

51 josePH a. scHumPeter, ob. cit. p. 82-83.52 istván mésZáros, Produção destrutiva e Estado capitalista. São Paulo: Ensaio,

1989. p. 16. (Cadernos Ensaio V – Série Pequeno Formato).

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A partir dessa ideia, os altos executivos nomearam um novo “Deus” capaz de movimentar a economia: o “Deus da obsolescência”53.

Com o conceito de obsolescência muito relacionado com o capitalismo, e a necessidade constante deste sistema de realizar venda para os consumidores, podemos afirmar que a necessida-de da redução da vida útil dos produtos para então a realização de novas vendas era primordial para que se mantivessem as ba-ses capitalistas.

2.3.3 Plano de negócio

A obsolescência apenas como caractere do capitalismo se mostrou não apenas a base do sistema, mas cada vez mais este ar-tifício migrou para os planos de negócios de diversas corporações.

Roy Sheldon e Egmont Arens publicaram um artigo na revista Consumer Engineer, no qual incentivavam os consumidores a substi-tuir os seus produtos, mencionando que o período de vida útil devia ser o mais curto possível54.

Já nos anos 1950, Brooks Steven, design industrial americano, le-vou o conceito da obsolescência a níveis maiores, para ele obsoles-cência programada é o desejo de ter alguma coisa mais nova, um pouco melhor, um pouco antes que o necessário [Tradução nossa]“55.

53 No original: “wear alone [...] (is) too slow for the needs of American Industry. And so, the high-priests of business elected a new God to take its place along with – or even before – the other household god. Obsolescence was made supreme”.

54 giles slade, ob. cit., p. 66-67.55 brooks steven, Planned obsolescence: the desire to own a little newer and

a little better, a little sooner than necessary. Disponível em: <http://www.brooksste-venshistory.com>. (09.03.2015).

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Ainda segundo Steven, o trabalho de um “designer é produzir produtos, vendê-los às pessoas e no próximo ano, deliberadamen-te, criar um conceito que torna o produto vendido fora de moda, desatualizado, obsoleto. Fazemos isso para “fazer” dinheiro para os nossos clientes [os fabricantes]. Uma boa razão [Tradução nossa]”56.

A fascinação dos executivos pela obsolescência planejada proporcionou um grande desenvolvimento no período do pós-guer-ra, sendo inclusive utilizada para influenciar a forma dos produtos e a atitude mental do consumidor, que seria o principal fundamento do espírito do descarte de produtos como modo de contribuir para um crescimento saudável da sociedade57.

É importante ainda destacar que a ideia é que um verdadeiro homem de negócios rejeita o conceito de saturação de mercado na medida em que sempre será capaz de identificar novas demandas para seus produtos. Se um fabricante percebe que muitas famílias já possuem o seu produto, só existem três formas de obter vendas adicionais, vender um novo produto semelhante para substituir o anterior, vender mais de um item para cada família ou então introduzir um novo produto ou um produto melhorado que vai encantar os consumidores a ponto de substituir o “velho” pelo novo58.

Neste contexto, é que a figura da obsolescência passa a ser de grande valia para as corporações uma vez que servem como um artifício para permitir a realização de novas vendas de produtos.

56 brooks steven,. ob cit., No original: “As designer we make goods, sell them to people, and the following year deliberately create a concept that will make the products old-fashioned, out of date, obsolete. This we do to make money for our cli-ents. A sound reasons”.

57 vance Packard, ob. cit., p. 65-66.58 vance Packard, ob. cit., p. 26.

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2.3.4 Problema Social

Kenneth Galbraith, em 1958, foi o primeiro a denunciar os fenô-menos da obsolescência planejada e as práticas industriais corres-pondentes em seu livro “The Affluent Society”.

Packard, que foi o primeiro estudioso a categorizar a obsoles-cência59, observou que obsolescência de qualidade e a obsoles-cência de desejo são as espécies mais controversas, porque de-notam uma estratégia planejada e desleal dos fabricantes para promover vendas repetitivas de seus produtos.

Se isto não bastasse, ele ainda observou que os fabricantes reduzem a qualidade de seus produtos e aumentam a sua comple-xidade tornando o reparo mais complicado, mais caro e, em casos extremos, impossível de ser realizado60.

Packard ainda ressalta que o fornecedor pode reduzir a vida útil do produto de diversas formas, além do emprego de material de baixa qualidade. A primeira forma é percebida quando o for-necedor apresenta um novo modelo de produto anualmente, es-timulando o consumidor a substituir o produto em sua posse. Outra forma que destaca é causar o desgaste prematuro de peças ou de partes do produto ao tempo que torna o reparo difícil, seja pela dificuldade de obter as peças sobressalentes seja pela dificuldade de efetivamente fazer o reparo no produto61.

59 vance Packard, ob. cit., p. 65.60 vance Packard, ob. cit., p. 65.61 vance Packard, ob. cit., p. 68.

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O documentário “Comprar, tirar, comprar” da RTVE, idealiza-do por Cosima Dannoritzer, explora a questão da obsolescência programada descrevendo algumas situações históricas em que ela ocorreu. Na primeira, é relatado o caso das lâmpadas incandes-centes, que no início do século passado tinham uma vida de mais de 2.500 horas de uso, mas devido à formação de um cartel entre os principais fabricantes da época, denominado Phoebus, decidiu-se reduzir a sua vida útil para 1.000, fazendo com que os consumidores tivessem que adquirir com maior frequência. Outro caso tratado no documentário é o exemplo das impressoras jatos de tintas, que pa-ram de funcionar quando o equipamento atinge um determinado número de impressões (páginas) contabilizadas por uma memória, forçando o consumidor a adquirir um novo produto62_63.

Latouche denota que a sociedade atual vive em um círculo “infernal” de acumulação ilimitada, condenada a busca do cres-cimento constante, vivendo em um planeta cujos recursos são limitados64.

Ainda segundo o autor, “a vida do trabalhador geralmente se reduz à vida de um biodigestor que metaboliza o salário com as mercadorias e as mercadorias com o salário, transitando da fábrica

62 ESPAÑA. RTVE - Radio y Televisión Española. “Comprar, Tirar, Comprar”. La historia secreta de la obsolescencia programada. Documentário 2010. 77 min. Dire-ção Cosima Dannoritzer e Steve Michelson. Roteiro: Coisam Dannoritzer. Fotografia Marc Martinez Sarrado. Música Composta por Marta Andrés, Joan Gil Bardagi. Dis-ponível em: <http://www.rtve.es/television/documentales/comprar-tirar-comprar/>. (11.12.2019).

63 O título do documentário em francês é “Prêt à Jeter” e em inglês é “Light Bulb Conspiracy”.

64 serge latoucHe, Pequeno tratado do decrescimento sereno. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 17.

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para o hipermercado e do hipermercado para a fábrica” 65. Para Latouche, três elementos fazem com que esta sociedade entre nes-te círculo infernal: “a publicidade, que cria o desejo de consumir; o crédito, que fornece os meios; e a obsolescência acelerada e programada dos produtos, que renova a necessidade deles” 66. A obsolescência programada, considera o autor, é a arma absoluta do consumismo.67 E acrescenta: “[...] a publicidade nos faz desejar o que não temos e desprezar aquilo de que já desfrutamos. Ela cria e recria a insatisfação e a tensão do desejo frustrado”68.

O dinheiro e o crédito são considerados os “grandes ditadores” do crescimento e são usados por empresários e consumidores para permitir o crescimento69.

Em prazos cada vez mais curtos, aparelhos e equipamentos en-tram em pane devido a falhas intencionais de uma parte ou peça e, ainda, é impossível encontrar uma peça de reposição ou alguém que conserte, alertando ainda que muitas vezes seria mais caro consertá-la do que comprar uma nova (sendo esta hoje fabricada a preço de banana pelo trabalho escravo do sudeste asiático)70.

Ainda tratando da questão da sustentabilidade, Annie Leonard observa que: “A mais importante dessas percepções é evidente: para que um sistema exista dentro de outro, deve respeitar os limites

65 serge latoucHe, ob. cit., p. 17.66 serge latoucHe, ob. cit., p. 17-18.67 serge latoucHe, ob. cit., p. 21.68 serge latoucHe, ob. cit., p. 18.69 serge latoucHe, ob. cit., p. 18-19.70 serge latoucHe, ob. Cit., P. 21.

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do primeiro. As dimensões e a capacidade da Terra não mudam71”.

E mais a frente conclui: “Portanto, há um limite para a quanti-dade de terra, água, ar, minerais e outros recursos fornecidos pelo planeta. Trata-se de um fato. Um fato que as pessoas parecem ig-norar, considerando a forma como em geral se vive nos Estados Unidos e em outras nações ricas72”.

Além dos aspectos relacionados com a extração de recursos, também deve ser considerado a produção de lixo pela utilização do fenômeno da obsolescência no mercado. Com a redução do prazo de vida útil dos produtos pela obsolescência, os consumido-res fazem cada vez mais a substituição dos produtos, aumentando a quantidade de produtos descartados.

Feitas estas primeiras digressões, vamos aprofundar o estudo da obsolescência na sociedade de consumo atual no presente trabalho.

3. OBSOLESCÊNCIA NA SOCIEDADE DE CONSUMO

Vimos anteriormente como foi a evolução história para a cons-tituição da sociedade de consumo e como ela se tornou um terre-no fértil para a obsolescência.

A obsolescência pode ocorrer de diversas formas, redução da vida útil, número de usos, prazo de validade, impossibilidade de

71 annie leonard, a hiStóRia DaS CoiSaS: Da natuREza ao Lixo, o quE aContECE Com tuDo quE ConSumimoS. annie leonard com ariane conrad; revisão técnica andré Piani besserman vianna; tradução Heloisa mourão – rio de janeiro; ZaHar, 2011, P. 11.

72 annie leonard, ob. Cit.,, P. 11.

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realizar reparos no produto como também pela introdução de no-vos produtos ou outras condições no mercado que torne o produto em posse do consumidor menos atrativo.

Tão importante quanto entender a obsolescência é entender que seus reflexos são muito mais amplos e atingem toda a sociedade.

Inicial e sumariamente, precisamos ter em mente que os pro-dutos nascem mediante a extração de recursos naturais do meio ambiente e estes são processados transformando-se componentes, peças ou partes que uma vez reunidos constituirão o produto a ser colocado no mercado de consumo.

Além dos produtos em si, devemos lembrar que estes muitas ve-zes possuem acessórios, que acompanham ou são vendidos sepa-radamente, manuais, embalagem do produto e embalagem para despacho, entre outros.

Ainda, devemos considerar que as partes que compõem o pro-duto e o produto em si são transportados, armazenados, distribuídos e colocados no mercado do consumo, seja diretamente como no caso da aquisição física ou via comércio eletrônico, isto é, existem uma série de ações que são necessárias para a consecução da operação de venda.

Uma vez em posse do consumidor, o produto passará a ser uti-lizado, situação esta que pode significar a necessidade de reali-zação de manutenção periódica ou preventiva (v.g., veículos au-tomotores), manutenção corretiva no caso de quebra do produto ou simplesmente ações do próprio consumidor para usá-lo correta-mente (limpeza, carga da bateria, aquisição de consumíveis, por ex., sabão para máquina de lavar roupa), entre outros.

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No final da vida útil, ou não, os produtos deixam de ser usados pelo consumidor e são descartados, preferencialmente de forma ambien-talmente adequada, mas nem sempre esta é a realidade encontrada.

Quando descartados de forma ambientalmente correta, estes produtos são encaminhados para recicladoras que farão a des-montagem, separação e segregação dos materiais que compõem o produto, então estes são enviados para empresas de processa-mento que transformarão os materiais segregados em novas maté-rias primas para novos produtos.

Quando descartados sem a preocupação ambiental, estes produtos são geralmente encaminhados para aterros, que tendem a ser bastante poluentes à região onde estão instalados.

Olhando a questão da obsolescência em uma perspectiva maior, podemos perceber que o impacto não ocorre somente no mercado de consumo, ou seja, não se trata apenas de um proble-ma, vício ou situação entre o fornecedor e o consumidor. Nesta nova perspectiva, é possível perceber que existem aspectos am-bientais, sociais, econômicos, entre outros, além daqueles existen-tes na relação de consumo.

Podemos chamar a trajetória dos produtos durante todas as suas fases, desde a produção até seu descarte de ciclo de vida. Ci-clo de vida, segundo a norma ISO 14040:2014, alude às “fases con-secutivas e interligadas do sistema de um produto, desde a aquisi-ção de matéria-prima ou geração a partir de recursos naturais até o descarte final”73.

73 international organiZation for standardiZation, iSo 14040:2006. Environmental management -- Life cycle assessment -- Principles and framework. Disponível em: <http://www.iso.org/iso/catalogue_detail?csnumber=37456>. (11.12.2019).

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Ainda, segundo a mesma norma, a análise do ciclo de vida (“ACV”) consiste na compilação e avaliação dos insumos (inputs), processos e produtos (outputs) e impactos ambientais potenciais do sistema de um produto ao longo do seu ciclo de vida74.

O vídeo intitulado “The Story of Stuff”75, que se transformou no livro “A história das coisas”76, traça o ciclo das manufaturas de pro-dutos, desde a etapa de extração, produção, distribuição, até o consumo e disposição.

Leonard, autora do projeto (vídeo e livro), afirma que apenas 1% dos produtos vendidos nos Estados Unidos da América permane-cem em uso pelos consumidores após seis meses contados da data da respectiva compra.

O ciclo de produção e venda dos produtos, nos EUA, é clara-mente percebido pelas duas atividades que mais tomam tempo dos americanos em seu tempo livre, que é ver TV e fazer compras. Os consumidores americanos estão presos em um ciclo no qual trabalham por longas horas e no tempo livre assistem à TV e são influenciados a fazer novas compras, estas realizadas na outra me-tade do tempo livre. Trata-se de um ciclo sem fim, pois a publicida-de e o marketing a cada momento trazem novos direcionamentos de consumo, fazendo com que os consumidores descartem seus produtos antigos e comprem novos77.

74 International Organization for Standardization. ISO 14040:2006. ob. cit.75 story of stuff Project, The story of stuff. 2015. disponível em: <http://storyofstu-

ff.org/>. (11.12.2019).76 annie leonard, ob. cit.77 annie leonard, ob. cit.. p. 17-18.

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Outro aspecto que precisamos verificar que a obsolescência pode ainda ser artifício interno ou externo da relação de consu-mo78. A obsolescência pode ser considerada como um artifício in-terno, quando o fornecedor, de alguma forma, faz com que tal arti-fício esteja presente no produto ou mesmo na relação de consumo (pós-contratual), por exemplo, deixa de disponibilizar consumíveis ou peças de reposição; já é considerado artifício externo, quando o fornecedor cria um ambiente ou condição de mercado fazendo com que o consumidor venha a substituir o seu produto, como é o caso da obsolescência psicológica79.

Com este aspecto em mente, podemos então aprofundar cada um dos aspectos acima descritos.

1.) Redução da vida útil do produto mediante o uso de artifí-cios ou uso de materiais de menor durabilidade.

Para entender o conceito de vida útil, vamos nos suportar de Tim Cooper que entende que a longevidade de um produto corres-ponde à sua vida útil e depende da natureza (tipo), da forma de uso, da duração, da frequência e intensidade, mas a medida mais comum é o número de anos80.

Tim Cooper ainda denota que a vida útil do produto depende dos materiais utilizados na sua confecção, da qualidade do design, da manufatura e montagem, da qualidade do projeto, da facilida-de de manutenção e reparabilidade e possivelmente, a atualiza-ção ou melhoria de seus componentes (upgrade).

78 william cornetta, ob. cit., p. 51.79 william cornetta, ob. cit., p. 50-51.80 tim cooPer, The significance of product longevity. In: _____ (Ed.). Longer lasting

pRoDuCtS – alternatives to tHe tHrowaway society, P. 8- 9.

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Assim podemos depreender que dependendo de como o pro-duto é projetado, construído, qualidade dos materiais utilizados, entre outros, pode-se esperar uma vida útil decorrente dele, isto é, o uso de um melhor projeto, melhores materiais e um processo de industrialização melhor, é esperado que o produto tenha uma vida útil mais longa.

Importante frisar que estes aspectos resultam das decisões dos fabricantes, que são influenciados pela estrutura do mercado e respectivas condições, incluindo as demandas dos consumidores, como observa Cooper81.

Além disto, existem diversas formas de realizar previsões da vida útil do produto colocado no mercado. Slade observa que as empresas não podem ser criticadas pelo fato de legitimamente calcularem a vida útil e a morte de seus produtos82, o que não pode ocorrer é deliberadamente fazerem alterações em seus produtos com o objetivo reduzir-lhes o prazo.

Segundo o autor, entender o prazo da vida útil do produto é conveniente em verificar quais serão as partes ou materiais que deteriorarão primeiro, utilizando da sua engenharia para tornar os produtos melhores ou antevendo a possibilidade de realização de manutenção ou ajustes para alongar a utilização do produto.

O problema ocorre quando os fabricantes deliberadamente decidem reduzir a vida útil de um produto, ou seja, o fornecedor é capaz de fabricar um produto com uma determinada vida útil, mas resolve reduzir a vida útil do produto pela utilização de materiais,

81 tim cooPer, Longer lasting products, ob. cit.. p. 16.82 vance Packard, ob. cit., p. 69.

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processo ou projeto de qualidade inferior com o único objetivo de induzir o consumidor a realizar compras repetitivas dos produtos.

Podemos também incluir neste aspecto a utilização de artifí-cios para redução do número de utilizações.

O documentário espanhol de 2010, denominado “Comprar, ti-rar, comprar”83 da RTVE, idealizado por Cosima Dannoritzer, explora a questão da obsolescência com alguns exemplos, um deles são as impressoras que deixam de funcionar após a impressão de um determinado número de páginas pela existência de um chip que detecta o número de páginas impressas e trava a impressora quan-do chega ao número pré-programado pelo fabricante.

2.) Redução da vida útil do produto pela impossibilidade de realização de manutenção, seja pela ausência de peças para re-posição ou assistência técnica, seja pela incompatibilidade entre componentes antigos e novos, incluindo softwares e suas atualiza-ções, ou pela ausência de consumíveis, acessórios, produtos asso-ciados ou relacionados com o produto principal.

Neste caso, temos alguns aspectos a serem analisados. O primei-ro diz respeito à capacidade de manutenção, juntamente com a exis-tência de peças de reposição e dos serviços de assistência técnica.

Não é esperado que nenhuma linha de produção venha pro-duzir diversos produtos sem que eventualmente uma ou outra uni-dade venha apresentar problema ou vício de utilização, seja o vício apresentado no primeiro uso ou após algum tempo.

Seja o vício apresentado no prazo de garantia ou mesmo após a expiração deste, é esperado pelo consumidor a possibilidade da

83 esPaña – rtve - radio y televisión esPañola, Comprar, Tirar, Comprar”. ob cit.

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reparação do produto ou a substituição da parte/peça viciada para então poder utilizar o mesmo. Para isto, faz-se necessário a possibilidade do reparo do produto, a existência de peças e de assistências técnicas aptas a realização do reparo. Trata-se de um trinômio necessário, sem qualquer um deles, torna-se impossível o reparo e a possibilidade de continuidade de uso do produto.

Importante salientar que com a miniaturização de muitos pro-dutos, alguns deles se tornaram impossíveis de serem reparados, si-tuação que implica o descarte do produto.

O segundo aspecto aqui descrito é a incompatibilidade do pro-duto com o padrão do mercado, incluindo a incompatibilidade de softwares. A obsolescência por incompatibilidade ocorre principal-mente na área de tecnologia da informação. A ideia é tornar um produto inútil por não ser compatível com versões futuras ou com as correntes tecnológicas disponíveis no mercado. É o que acontece, particularmente, com softwares/programas de computador84.

Ela também pode ocorrer em relação a outros aspectos, por exemplo, quando ocorreu a mudança do padrão dos conectores entre os Iphones da geração 4 e 4S para o Iphone 5 em diante, ou seja, a mudança do padrão dock 30 pinos para o Lightning 8 pinos, que tornou muitos cabos e acessórios inúteis para as novas gera-ções do Iphone.

Por fim, a questão dos consumíveis diz respeito a todos aqueles materiais necessários para o uso do produto, como as bobinas de papel térmico para os aparelhos de fac-símile, cartuchos de tinta para impressoras, entre outros.

84 centre euroPéen de la consommation, ob. cit. p. 4.

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Podemos incluir ainda produtos relacionados como os casos de tocadores de disco de vinil e os discos de vinil, aparelho de re-produção de DVD’s e os discos de DVD, entre outros.

3.) Introdução de produtos ou outras condições no mercado, como fatores psicológicos, mercadológicos, tecnológicos, funcio-nais ou outra forma de persuasão, fazendo com que o produto fun-cional em posse do consumidor seja menos desejável;

Nesta situação o produto em posse de consumidor não apre-senta nenhum vício e se encontra apto a atender aos fins que se destina, contudo pela inclusão de novos fatores no mercado, aquele produto em mão do consumidor se torna menos desejável. O caso mais clássico que podemos citar trata-se do mercado da moda, no qual de um ano para o outro os fabricantes mudam as cores e tipos de tecidos, sem nenhum benefício para o consumidor, apenas induzindo o consumidor a substituir suas peças de roupas antigas pelas novas que passam a ser consideradas “da moda”.

Na situação que estamos tratando é a que gera mais fácil a compra repetitiva por parte do consumidor, uma vez que o fornece-dor não precisa de grandes investimentos nem de longo prazo para desenvolver uma nova tecnologia ou funcionalidade do produto. Por exemplo, nos mercados da moda, do design, dos automóveis, entre outros, a diferença entre um modelo de roupa, uma estação ou ano do produto, no caso de veículos, pode ser simplesmente a cor ou um detalhe estético que não traz nenhuma vantagem para a operação ou o desempenho do produto.

Podemos destacar ainda que nesta situação, a atuação do fornecedor não é utilizada diretamente no produto, mas sim no am-biente ou no marketing que é feito em torno dele, isto é, diferente

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de outras forma de obsolescência, o fornecedor não manipula o produto para falhar antes do tempo nem trabalha para incluir uma nova função, mas sua atuação ocorre na introdução de fatores mercadológicos ou na psique do consumidor tornando o produto em posse do consumidor menos atrativo.

4.) Redução do prazo de validade ou do número de vezes de usos do produto sem qualquer razão científica.

Nesta situação o fornecedor reduz deliberadamente e sem nenhu-ma justificativa o número de usos ou o prazo de validade do produto.

Rizzatto Nunes entende que o prazo de validade dos produtos é garantia de dupla face: “a.) garante ao consumidor que o produ-to até a data marcada encontra-se em condições adequadas de consumo; b.) garante o fabricante, produtor, importador ou comer-ciante que, após a data marcada, o risco do consumo do produto é do consumidor” 85.

Existem ainda produtos cujo prazo de validade é indetermina-do, aqueles que não têm um prazo para ser consumidos, como é o caso de eletrodomésticos, automóveis, eletroeletrônicos, artigos de vestuário e de decoração. Alguns produtos de alimentação podem ser assim considerados, como vinhos e bebidas destiladas, cujo pra-zo de consumo pode prolongar-se por vários anos.

A legislação europeia, nos termos da Directiva 2000/13/CE, es-tabelece que os produtos alimentícios comercializados na União Europeia devem ser etiquetados conforme tal diretiva, além de in-formar: (i) data de consumo máximo, correspondente ao tempo

85 luiZ antônio riZZatto nunes, Comentários ao Código de Defesa do Consumi-dor, p. 245.

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William Cornetta

que razoavelmente se espera que o alimento mantenha a sua qua-lidade, ou (ii) data de validade, ou seja, período durante o qual se espera que o produto é seguro para o consumo desde que arma-zenado nas condições especificadas.

Podemos entender o prazo de validade como o lapso de tem-po durante o qual o produto pode ser armazenado e consumido sem perder as suas características e sem apresentar algum risco ao consumidor.

Existem técnicas e regulamentações que determinam a forma através da qual o prazo de validade é definido para a maior parte dos produtos, como os alimentícios, medicamentos, etc.

Quando o fornecedor decide sem uma razão científica reduzir o prazo ele pode causar uma situação de compra repetitiva sem a necessidade para o consumidor. Podemos citar como exemplo um determinado produto que poderia durar seis meses e por deci-são do fornecedor tem seu prazo reduzido para apenas três meses, neste caso um consumidor poderia ser induzido a descartar um pro-duto, ainda apto para o consumo, mas com a validade mascara-damente vencida para adquirir um novo produto.

O impacto no mercado de consumo é a compra repetitiva, mas os aspectos mencionados anteriormente também são aplicá-veis aqui, como por exemplo o endividamento das famílias pelas compras repetitivas.

Podemos então entender que a obsolescência no mercado de consumo tem por objetivo induzir o consumidor a realizar compra repetitiva de produtos, que é conseguida pela redução da vida útil, número de usos ou prazo de validade do produto. Também

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OBSOLESCÊNCIA

347e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

pode ser feita pela impossibilidade de realização de manutenção, incompatibilidade ou ausência de consumíveis, acessórios, produ-tos associados ou relacionados com o produto principal.

Estes dois aspectos são aspectos internos da relação de consu-mo, contudo existe também a obsolescência causada por aspecto externo à relação de consumo. Neste último caso, podemos apon-tar introdução de produtos ou outras condições no mercado, como fatores psicológicos, mercadológicos, tecnológicos, funcionais ou outra forma de persuasão, fazendo com que o produto funcional em posse do consumidor seja menos desejável.

No plano social, vislumbram-se três tipos de problemas causa-dos pela obsolescência. “Em primeiro lugar, numa altura de crise, os comportamentos provocados pela obsolescência programada dos bens de consumo contribuem para a dinâmica das compras a crédito e para taxas de endividamento nunca antes atingidas”86.

Como visto anteriormente, um dos caracteres principais da chamada sociedade de hiperconsumo é o crédito, ou seja, as pes-soas não mais necessitam dispor da quantia integral para a aquisi-ção do bem, elas podem fazer uso do crédito, que pode ser feito através do pagamento parcelado, financiamento e/ou posterga-ção do pagamento para concluir a compra.

Contudo, a maravilha do crédito não é gratuita, as taxas de ju-ros atribuídas a tais compras muitas vezes são exorbitantes, ou seja,

86 comité económico e social euroPeu. Parecer. “Por um consumo mais sustentá-vel: O ciclo de vida dos produtos industriais e informação do consumidor a bem de uma confiança restabelecida”. CMMI/112. Ciclo de vida dos produtos e informação ao consumidor. Relator Thierry Libaert e Correlator Jean Pierre Haber. Bruxelas, 17 de outubro de 2013, p. 6. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52013IE1904&from=ES. (11.12.2019).

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William Cornetta

o consumidor pode pagar pelo uso do crédito valores muito supe-riores do que o produto em si. Para ilustrar esta assertiva a Pesquisa do Banco Central do Brasil, Anefac e Proteste apresentam que a taxa de juros cobrada dos consumidores que não pagam o valor total é muito elevada na América Latina, conforme quadro abaixo:

Quadro 1 – Comparativo das taxas do rotativo do

Cartão de crédito na América Latina (em % a.a.)

País Percentual, em % ao ano

Brasil 436% (média)

Peru 43,7% (média)

Argentina 43,29% (máximo cobrado)

Colômbia 30,45% (média)

Venezuela 29% (máximo cobrado)

Chile 24,90% (média)

México1 23,0% (média)

Fonte: Pesquisa Banco Central, Anefac e Proteste87

Uma vez verificada a questão de crédito, podemos anotar um segundo aspecto. Usualmente, as pessoas mais afetadas pela obsolescência pertencem às camadas sociais mais desfavoreci-das, que não têm condições de arcar com preços mais elevados de produtos sustentáveis ou com maior prazo de vida útil e muitas vezes têm de se contentar com produtos mais frágeis e com vida útil menor88.

87 Portal brasil. Brasil é o campeão em juros do cartão de crédito, disponível em http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/12/brasil-e-campeao-em-juros-do-cartao-de-credito (30.12.2017).

88 comité económico e social euroPeu, ob. cit..

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OBSOLESCÊNCIA

349e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

A justificativa acima decorre da comparação de dois produtos, um deles com o valor superior mas com uma vida útil/número de utilização muito maior e um segundo produto com valor menor mas com uma vida útil/número de utilização muito inferior, assim quan-do diluído ao longo do tempo o valor do produto, o primeiro produ-to inicialmente mais caro pode ser mais benéfico ao consumidor.

Todo o consumidor que vem adquirir um produto durável, o faz com a promessa que este produto vai se prestar aos fins que se propõe por um prazo mínimo.

Relacionado a tal ponto, podemos ainda destacar o custo de manutenção ao longo da vida útil do produto, ou seja, é importan-te verificar a questão de outros custos associados com a manuten-ção do produto ao consumidor.

Como exemplo, podemos citar o caso de um consumidor ad-quire um veículo, mas ao longo da vida deste o custo de manu-tenção do mesmo é muito alto quando comparado com outros veículos.

Estes aspectos têm uma relação direta com a questão do atendimento das necessidades básicas decorrente do mínimo es-sencial conforme visto anteriormente. Quando uma pessoa ou uma família passa a despender cada vez mais para substituir produtos que tiveram sua vida útil reduzida em decorrência da obsolescên-cia, esta pessoa ou família é obrigada a despender recursos de seu orçamento para a compra repetitiva de produtos retirando recur-sos de outros aspectos do orçamento familiar.Outro problema que ainda podemos destacar é que toda a cadeia de empregos das empresas de reparação às vezes tem de arcar com as repercus-sões negativas da obsolescência programada, uma vez que mui-

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William Cornetta

tos produtos não podem ser reparados em decorrência de distintos fatores, como alto custo, dificuldade técnica, falta de peças de reposição e outros89.

Assim, no plano social e econômico da obsolescência, pode-mos identificar que ela, juntamente com o fenômeno do crédito causam um maior endividamento das famílias, atingindo principal-mente aquelas mais desfavorecidas, ou seja, aquelas que não têm condição de arcar com os custos de produtos com maior vida útil ou durabilidade.

Além disto, a compra repetitiva de produtos, decorrente da obsolescência, tem um impacto direto no orçamento familiar fa-zendo com que as famílias destinem recursos de áreas importantes, como a alimentação, para a reposição de produtos que deixaram de funcionar, por exemplo.

Por fim, o impacto para o mercado de assistência técnica é a redução deste mercado, podendo esta assertiva ser verificada pela pesquisa aqui colacionada que demonstra a tendência do consumidor a substituir o produto a realizar o reparo do mesmo.

89 comité económico e social euroPeu, ob. cit..

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OBSOLESCÊNCIA

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CONCLUSÃO

Uma vez realizado a presente pesquisa, podemos verificar que o consumo é fruto da criação humana que ocorreu ao longo dos últimos séculos e o consumo se consolidou em praticamente todos os países.

Nesta caminhada histórica do consumo, podemos apontar que a forma de consumo sofreu uma sensível alteração. Antes exis-tia um consumo centrado na família e atualmente, este consumo é feito de maneira individualista, imediatista e hedonista.

Este novo modelo de consumo permitiu a consolidação da chamada sociedade de hiperconsumo abrindo espaço para o chamado “Throwaway Living” ou “vida descartável”, comemoran-do, pode-se dizer, a “sociedade do descartável” pela possibilida-de de se adquirir produtos para, depois de uma única utilização, descartá-los.

Este contexto tornou o solo fértil para que os fabricantes utili-zassem do artifício da obsolescência no mercado de consumo com o objetivo de induzir o consumidor a realizar comprar repetitivas de produtos.

A história da obsolescência é recente e tem como marco de desenvolvimento o início do século passado, principalmente nos Es-tados Unidos da América. Podemos classifica-la em quatro momen-tos distintos onde o contexto da obsolescência foi alterado.

O primeiro é o surgimento da obsolescência com foco na ma-croeconomia como algo benéfico para a sociedade; uma solução que permitisse o crescimento econômico e evitasse crises como a

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William Cornetta

ocorrida em 1929, conhecida como “Grande Depressão”. No se-gundo momento, ela passou a ser vista como uma característica do capitalismo, uma forma de permitir a sustentabilidade do siste-ma. No terceiro momento, ela passa a fazer parte da estratégia de negócios de empresas e do mercado com o objetivo de aumentar suas vendas por meio do consumo repetitivo. Por fim, a obsolescên-cia, no quarto momento, torna-se um problema social que estende seus reflexos para diferentes planos como o social-econômico, e de consumo.

Importante salientar que não existe um conceito fechado de obsolescência sendo a sua conceituação utilizada da seguinte for-ma, para fins do presente estudo:

(“i”) redução da vida útil do produto mediante o uso de artifí-cios ou uso de materiais de menor durabilidade;

(“ii”) redução da vida útil do produto pela impossibilidade de realização de manutenção, seja pela ausência de peças para re-posição ou assistência técnica, seja pela incompatibilidade entre componentes antigos e novos, incluindo softwares ou suas atualiza-ções, ou pela ausência de consumíveis, acessórios, produtos asso-ciados ou relacionados com o produto principal;

(“iii”) introdução de produtos ou outras condições no merca-do, como fatores psicológicos, mercadológicos, tecnológicos, fun-cionais ou outra forma de persuasão, fazendo com que o produto funcional em posse do consumidor seja menos desejável;

(“iv”) redução do prazo de validade ou do número de uso do produto sem qualquer razão científica.

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OBSOLESCÊNCIA

353e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

A obsolescência é, desta forma, um artifício utilizado no merca-do de consumo e usado pelos fornecedores para induzir o consumi-dor a realizar compras repetitivas do produto, independente de o produto que já possui estar em pleno funcionamento ou não, que é o principal reflexo na relação de consumo.

Tratando do produto, é importante conhecer o ciclo de vida dos produtos que nascem mediante a extração de recursos natu-rais, então são processados transformando-se em matérias primas, componentes, peças ou partes que uma vez reunidos constituirão o produto a ser colocado no mercado de consumo. Depois de co-locados no mercado, estes são adquiridos, utilizados e depois des-cartados (processo que pode ser feito de maneira ambientalmente correta ou não).

Foi objetivo do presente trabalho aprofundar o estudo do impacto da obsolescência e por isto foram analisados a obsoles-cência no mercado de consumo, aspectos social-econômico da obsolescência.

Já pelo lado do plano de consumo, o principal impacto da obsolescência é a compra repetitiva, ou seja, a obsolescência no mercado de consumo tem por objetivo induzir o consumidor a reali-zar compra repetitiva de produtos, que é conseguida pela redução da vida útil, número de usos ou prazo de validade do produto. Tam-bém pode ser feita pela impossibilidade de realização de manuten-ção, incompatibilidade ou pela ausência de consumíveis, acessó-rios, produtos associados ou relacionados com o produto principal.

Estes dois aspectos são aspectos internos da relação de consu-mo, contudo existe também a obsolescência causada por aspecto externo à relação de consumo. Neste último caso, podemos apon-

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e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r354

William Cornetta

tar introdução de produtos ou outras condições no mercado, como fatores psicológicos, mercadológicos, tecnológicos, funcionais ou outra forma de persuasão, fazendo com que o produto funcional em posse do consumidor seja menos desejável.

No plano social e econômico da obsolescência, as obsoles-cências em adição ao fornecimento de crédito causam um maior endividamento das famílias, que tendem a ser mais severa com aquelas mais desfavorecidas.

Outro ponto é o impacto das compras repetitivas no orçamen-to familiar fazendo com que as famílias destinem recurso de áreas importantes, como a alimentação, para a reposição de produtos que deixam de funcionar, por exemplo.

O último aspecto neste plano decorre da redução do merca-do de assistência técnica que ocorre pela dificuldade do reparo ou pelo custo de realização do mesmo.

Desta forma, buscar uma nova forma de consumo que signifi-que um consumo mais sustentável e que preze por produtos com maior duração deve ser o norte para a modelagem da relação social de consumo.

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ÍNDICE GERAL

355e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

ÍNDICE GERAL

Apresentação ......................................................................................7

CONTRATOS DE FORNECIMENTO DE CONTEÚDOS E SERVIÇOS DIGITAIS

Alexandre L. Dias Pereira

Introdução .......................................................................................... 11

1. Não interferência com o direito civil clássico ............................ 13

2. Direitos do consumidor de conteúdos ou serviços digitais contratados à distância previstos no dl 24/2014 ....................... 15

3. Fornecimento de conteúdos ou serviços digitais ..................... 16

4. Onerosidade: os dados pessoais como possível moeda.......... 21

5. Princípio da pontualidade e princípio da conformidade com o contrato ............................................................................ 24

6. Direito às atualizações e direito à integração correta dos conteúdos e serviços digitais ...................................................... 25

7. “Remédios para a quebra do contrato” por não forneci-mento ou por falta de conformidade ........................................ 27

8. Exercício do direito de rescisão e seus efeitos .......................... 31

9. Direito de alteração dos conteúdos ou serviços digitais .......... 32

10. Responsabilidade objetiva do fornecedor de conteúdos e serviços digitais? ........................................................................... 33

11. Conclusão .................................................................................... 35

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PROTEÇÃO DE DADOS, CONSENTIMENTO E TUTELA DO CONSUMIDOR

Mafalda Miranda Barbosa

1. Introdução ..................................................................................... 37

2. O quadro legal em matéria de proteção de dados: breve referência .................................................................................... 40

2.1. A lei n.º67/98, de 26 de outubro e a proteção de dados ....... 40

2.2. O regulamento (ue) 2016/679 do parlamento e do conse-lho, de 27 de abril de 2016, e a lei n.º58/2019, de 8 de agosto ... 48

3. O consentimento .......................................................................... 55

3.1. O consentimento em geral ........................................................ 56

3.2. O consentimento ao nível da proteção de dados .................. 61

3.2.1. O papel do consentimento ..................................................... 61

3.2.2. O quando e o como do consentimento. O problema das modalidades e da forma do consentimento ..................... 65

3.2.3. O consentimento livre e esclarecido ..................................... 73

3,2,4, A especificidade do consentimento ..................................... 82

3.2.5. A revogabilidade do consentimento .................................... 83

3.2.6 A capacidade para consentir ................................................ 83

4. As novas regras europeias: o consumidor, a proteção de dados e os deveres de informação. ......................................... 85

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ÍNDICE GERAL

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O NOVO REGIME JURÍDICO DAS VIAGENS ORGANIZA-DAS E SERVIÇOS DE VIAGEM CONEXOS: SUJEITOS, OB-

JETO, GARANTIAS E RESOLUÇÃO DE LITÍGIOS

Maria Oliveira

1. Introdução .................................................................................... 92

2. Os sujeitos no contrato de viagem organizada e de servi-ços de viagem conexos na Diretiva e no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março ............................................................ 101

2.1. Os viajantes ............................................................................... 101

2.2. Os operadores, os organizadores e os retalhistas .................. 109

3. O objeto do contrato de viagem organizada e de servi-ços de viagem conexos na Diretiva e no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março ............................................................ 116

4. As garantias dos viajantes na diretiva e no decreto-lei n.º 18/2018, de 8 de março ............................................................ 128

4.1. Responsabilidade pela execução da viagem organizada .. 128

4.2. Proteção do viajante em caso de insolvência dos organi-zadores ....................................................................................... 131

4.3. Proteção do viajante em caso de insolvência aplicável aos serviços de viagem conexos .............................................. 143

5. Os meios de resolução alternativa de litígios emergentes de contratos de viagens organizadas e de serviços de via-gem conexos .............................................................................. 146

5.1. Provedor do cliente da associação portuguesa de agên-cias de viagens e turismo .......................................................... 149

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5.2. Comissão arbitral ...................................................................... 154

5.3. Arbitragem ................................................................................ 158

5.4. Comparação entre os meios de resolução de litígios ........... 161

6. Conclusões ................................................................................. 163

7. Abreviaturas .............................................................................. 166

O CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE: CONTRIBUTO PARA A REFLEXÃO ACERCA DA DELIMITAÇÃO DO TIPO À LUZ DO ELEMENTO RISCO E DA PRÁTICA DO QUESTIONÁRIO PELO

CONFRONTO ENTRE OS MODELOS DO QUESTIONÁRIO ABERTO E FECHADO

Marisa Silva Monteiro

I - Introdução ..................................................................................... 169

I.1 O regime jurídico do contrato de seguro: decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de abril ......................................................... 169

I.2 As inovações da lcs ................................................................... 172

I.3 As alterações trazidas pela lei n.º 147/2015, de 9 de setem-bro ............................................................................................... 174

II - O contrato de seguro ................................................................. 177

II.1 Conceito .................................................................................... 177

II.2 Natureza jurídica ........................................................................ 179

II.3 Caracterização geral ................................................................ 180

III – O seguro de saúde .................................................................... 183

III.1 Nótulas introdutórias .................................................................. 183

III.2 Noção ...................................................................................... 189

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ÍNDICE GERAL

359e s t u d o s d e d i r e i t o d o c o n s u m i d o r

III.3 Delimitação do tipo .................................................................. 193

III.3.1 A importância do risco ........................................................... 193

III.3.2 A declaração inicial do risco ................................................ 209

III.3.3 Questionário aberto e fechado ............................................ 219

IV – Conclusões finais ....................................................................... 241

Bibliografia ........................................................................................ 248

O LUGAR DA VULNERABILIDADE NO DIREITO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

Sandra Passinhas

1. Introdução ................................................................................. 257

2. A questão da vulnerabilidade .................................................. 258

3. A proteção do consumidor funcionalizada ao mercado interno: a consideração do consumidor médio ...................... 263

a) a consideração do consumidor médio na jurisprudência ....270

b) a consideração do consumidor médio na legislação ...........289

c) a consideração do consumidor médio como estratégia política ......................................................................................... 297

4. Meios de proteção do consumidor: os remédios do direito do consumidor e os outros ....................................................... 300

5. Conclusão................................................................................... 308

Referências ....................................................................................... 309

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OBSOLESCÊNCIA

DA ORIGEM AO PROBLEMA SOCIAL E SEUS REFLEXOS À SOCIEDADE

William Cornetta

Introdução ........................................................................................ 315

1. Do nascimento da sociedade de consumo ao hiper- consumo ..................................................................................... 316

2. Obsolescência .......................................................................... 321

2.1. Conceito de obsolescência .................................................... 321

2.2. Tipologia da obsolescência .................................................... 322

2.3. Da origem ao problema social ............................................... 327

2.3.1. Solução macroeconômica ................................................... 327

2.3.2. Caractere do capitalismo ..................................................... 329

2.3.3 Plano de negócio ................................................................... 331

2.3.4 Problema social ...................................................................... 333

3. Obsolescência na sociedade de consumo ........................... 336

Conclusão ........................................................................................ 351