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Estudos da Linguagem em foco: linguagem e discurso em múltiplas abordagens Grenissa Bonvino Stafuzza Márcia Pereira dos Santos Selma Martines Peres (orgs.)

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Estudos daLinguagem

em foco:linguagem e discurso em

múltiplas abordagens

Grenissa Bonvino StafuzzaMárcia Pereira dos Santos

Selma Martines Peres(orgs.)

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Estudos daLinguagem

em foco:linguagem e discurso em

múltiplas abordagens

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Rio de Janeiro, 2020

Estudos daLinguagem

em foco:linguagem e discurso em

múltiplas abordagens

Grenissa Bonvino StafuzzaMárcia Pereira dos Santos

Selma Martines Peres(orgs.)

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EDITORA BONECKER

Editora Bonecker Ltda

Rio de Janeiro

1ª Edição

Dezembro de 2019

ISBN: 978-85-7077-125-4

Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais

sem prévia autorização do autor e da Editora Bonecker.

Projeto Gráfico e Capa: Filipe Chagas

Revisão: O autor é responsável pela revisão deste livro.

E82 Estudos da linguagem em foco: linguagem e discurso em múltiplas abordagens / Organi-zadoras Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos, Selma Martines Peres. – Rio de Janeiro (RJ): Bonecker, 2019.157 p. : 16 x 23 cm

Inclui bibliografiaISBN 978-85-7077-125-4

1. Linguagem. 2. Discurso. 3. Literatura. 4. Memória. 5. Cultura. I. Título.

CDD 468

Conselho Editorial

Ana Cristina Teixeira BoneckerUFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro

Assed Naked HaddadUFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro

Betina Ribeiro Rodrigues da CunhaUFU - Univ. Federal de Uberlândia

Carlos Alberto LopesISPA - Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Portugal)

Claudia Costa BoneckerUEM - Univ. Estadual de Maringá

Ilana Zalcberg RenaultINCA - Instituto Nacional de Câncer

Isabel AndradeENSP/UNL - Escola Nacional de Saúde

Pública da Univ. Nova de Lisboa (Portugal)

Karl Schurster Veríssimo de Sousa Leão UPE - Univ. de Pernambuco

Magali Christe CammarotaUFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro

Manuel José Brandão SáP.PORTO - Politécnico do Porto (Portugal)

Maria Madalena G. Rosário CarvalhoUaB - Univer. Aberta de Lisboa (Portugal)

Nuno HenriquesUCP - Univer. Católica do Porto (Portugal)

Sérgio Luiz Costa BoneckerUFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro

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Agradecemos à agência de fomento FAPEG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás), que através de apoio financeiro via chamada de

financiamento CHAMADA PÚBLICA N° 02/2018 – SELEÇÃO PÚBLICA DE PROPOSTAS PARA APOIO À REALIZAÇÃO DE EVENTOS CIENTÍFICOS,

TECNOLÓGICOS E DE INOVAÇÃO DE ABRANGÊNCIA NACIONAL OU INTERNACIONAL, NO ESTADO DE GOIÁS, processo/FAPEG –

2018102670010-78, permitiram a elaboração deste livro.

As ideias expressas nos capítulos aqui publicados são de inteira responsabilidade dos autores e autoras, assim como o uso padrão da Língua

Portuguesa e cumprimento das normas técnicas - ABNT.

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SUMÁRIO

11 ApresentaçãoGrenissa Bonvino StafuzzaMárcia Pereira dos SantosSelma Martines Peres

15 Entre lembrança e esquecimento, os lampejos memoriais de um menino judeu do Bom RetiroLucas Silvério Martins Silvana Augusta Barbosa Carrijo

23 Ideologia e efeitos de sentido no livro “A invasão dos erros de português”Raquel Costa Guimarães Nascimento Erislane Rodrigues Ribeiro

31 A construção do sujeito protagonista em Chamada de João Anzanello CarrascozaBruno Oliveira Grenissa Bonvino Stafuzza

39 Traçandooscontornoscientíficosdaconstituiçãodosujeitodialógico-ideológiconatrilogiaDivergenteCairo Joseph dos Santos Ferreira Grenissa Bonvino Stafuzza

49 Eraumavez-Duasoutrês:ConstruindoheróisevilõespormeioderelaçõesdialógicasnasérieOnce upon a TimeThainá Pereira Gonçalves

63 DiálogosemmonólogosnaenunciaçãoverbovocovisualdeTaxi Driver (1976), de Martin ScorsesLizandra Belarmino de Moura

73 ReflexõessobreaverbovocovisualidadedeReposter Skol (2017)Gabriella Cristina Vaz Camargo

83 Notas sobre a vairação lexical em Goiás: Uma análise a partir de gêneros e tipos textuaisRayne Mesquita de RezendeJozimar Luciovanio Bernardo

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95 Desenvolvendo a literatura e inclusão social no mundo dos surdos: Trabalhando o Youtube como plataforma de ensinoSuelen Aparecida de Oliveira Lucas Eduardo Marques Santos Anair Valênia

107 DesafiosenfrentadospeloprofessorqueatuaministrandoumadisciplinaquenãoédasuaformaçãoIngride Chagas Gomes Fabiola Aparecida Sartin Dutra Parreira Almeida

119 Comooléxicodamodasereniva?UmestudosobreosneologismosporempréstimosdarevistaGlamourPauler Castorino Oliveira BarbosaVanessa Regina Duarte Xavier

129 Osistemadeavaliatividade:Escolhasléxico-gramaticaisquedelineiamaescrita de Cora CoralinaPabrícia Abadia Pereira FélixFabíola Aparecida Sartin Dutra Parreira Almeida

137 OmodusvivendiemCatalão-GOde1953:Análisedojornal“OCatalão”Nayara Capingote Serafim da Silva ArrudaMaria Helena de Paula

149 Variaçõesmorfofonológicasemumcódiceeclesiásticocatalanooitocentista(1839-1842)Maiune de Oliveira Silva Maria Gabriela Gomes PiresMayara Aparecida Ribeiro de AlmeidaMaria Helena de Paula

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Estudos da linguagem em foco

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ApresentaçãoGrenissa Bonvino StafuzzaMárcia Pereira dos Santos

Selma Martines Peres

A coletânea que ora se apresenta, Estudos da Linguagem em foco: linguagem e discurso em múltiplas abordagens, trata-se de uma compilação de trabalhos apresen-tados no VI Seminário de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação, evento realizado no período de 12 a 14 de setembro de 2018, organizado pela Coordenação de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (CPPGI-Gestão 2018-2021), da Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão. Os catorze trabalhos que compõem a presente obra são estu-dos e resultados de pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado de alunos e pesquisadores de diversas áreas do amplo campo dos estudos da linguagem como linguística, literatura, análise do discurso, filosofia da linguagem, entre outras, que se interessam, sobretudo, pela linguagem e pelo discurso. Os trabalhos aqui publicados possuem diversos focos e abordagens teórico-metodológicos, além de ter como objetos de análise, múltiplos corpora e materialidades – literário, cinematográfico, pedagógico, histórico, midiático etc., que contribuem para o conhecimento sobre o funcionamento da linguagem e dos discursos que circulam socialmente.

O artigo que inaugura o presente e-book, “Entre lembrança e esquecimento, os lampejos memoriais de um menino judeu do Bom Retiro”, de autoria de Lucas Silvério Martins e Silvana Augusta Barbosa Carrijo, apresenta uma análise do livro Memórias de um menino judeu do Bom Retiro (2014), de Victor Nussenzweig, que parte da inves-tigação de diversos recursos literários utilizados pelo autor para a criação da obra, de modo que sejam evidenciadas a memória, história, cultura e identidade judaicas. Os re-sultados do estudo apontam que o autor aborda temas relacionados à distintos recursos literários “a favor da criação de uma obra que fomenta a fruição estético-literária, não só pelo código verbal bem como pelo imagético”.

Em “Ideologia e efeitos de sentido no livro ‘A invasão dos erros de português’”, as autoras Raquel Costa Guimarães Nascimento e Erislane Rodrigues Ribeiro analisam, sob a perspectiva da análise do discurso de vertente pecheutiana, os efeitos de sentido dos discursos sobre a língua no livro infantil “A invasão dos erros de português”, de William Tucci, considerando o conceito de ideologia. As autoras constatam por meio da análise que os discursos sobre a língua que constituem a narrativa da obra em estudo produzem efeitos de sentido preconceituosos sobre falantes de variedades populares da língua portuguesa.

Bruno Oliveira e Grenissa Bonvino Stafuzza, no terceiro artigo desta compila-ção intitulado “A construção do sujeito protagonista em ‘Chamada’ de João Anzanello Carrascoza, analisam o modo como o sujeito protagonista do conto “Chamada” publi-cado na obra Volume do Silêncio, de João Anzanello Carrascoza, é constituído em suas relações com seus outros, a partir da perspectiva bakhtiniana de estudos discursivos.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

Os autores relacionam o conceito de sujeito com as noções de exotopia, palavra, ética e estética na literatura carrascoziana para compreender o funcionamento do sujeito em uma relação de alteridade na construção de si através do(s) outro(s).

O quarto artigo intitulado “Traçando os contornos científicos da constituição identitária do sujeito dialógico-ideológico na trilogia Divergente”, de Cairo Joseph dos Santos Ferreira e Grenissa Bonvino Stafuzza, apresenta uma análise sob a perspectiva teórica do Círculo de Bakhtin sobre o sujeito divergente. Os autores compreendem que o sujeito é construído socialmente na e pela interação discursiva com o outro, por meio dos diálogos, dos conflitos e das ideologias que formam o todo arquitetônico da enun-ciação literária.

Thainá Pereira Gonçalves em “Era uma vez – duas ou três: construindo heróis e vilões por meio de relações dialógicas na série Once Upon a Time”, apresenta uma análise da enunciação verbovocovisual seriada de Once Upon a Time, considerando a perspectiva dialética da perspectiva teórico-metodológica do Círculo de Bakhtin sobre o sujeito. A autora aponta a edificação e o vivenciamento dos sujeitos personagens Ra-inha Má e Rumplestiltskin para desestabilizar o sentido posto de vilão e herói.

No sexto artigo desta coletânea, intitulado “Diálogos em monólogos na enuncia-ção verbovocovisual de Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese”, a autora Lizandra Be-larmino de Moura apresenta uma análise de enunciados verbovocovisuais do discurso cinematográfico de Taxi Driver sob a perspectiva de análise do discurso bakhtiniana. Os resultados da pesquisa apontam que o monólogo constitui o diálogo, ao constatar que o diálogo se apresenta de modo inerente a comunicação humana e, assim sendo, encontra-se de modo a constituir também as estruturas do monólogo, seja na vida cul-tural, seja na arte cinematográfica.

Gabriella Cristina Vaz Camargo, em seu artigo “Reflexões sobre a verbovocovisua-lidade de Reposter Skol (2017)”, apresenta uma análise de enunciados verbovocovisuais da campanha Reposter Skol, de 2017, considerando a temática da mulher no universo midiático da indústria de cerveja. Sob a perspectiva teórico-metodológica do Círculo de Bakhtin para estudos de discursos, a autora apresenta os resultados de sua pesquisa reali-zada no curso de Mestrado em Estudos da Linguagem (PPGEL-UFG-RC), sendo que seu trabalho evidencia o funcionamento dialógico da linguagem midiática que faz com que determinados discursos (machista e feminista) e sentidos circulem socialmente.

O oitavo texto publicado nesta obra, intitulado “Notas sobre a variação lexical em Goiás: uma análise a partir de gêneros e tipos textuais”, de autoria de Rayne Mesquita de Rezende e Jozimar Luciovanio Bernardo, apresenta um estudo sobre algumas ocorrên-cias de variação linguística em nível lexical no estado de Goiás. Sob as perspectivas teó-ricas da Lexicologia, da Metalexicografia, da Sociolinguística e da Linguística Textual, os autores abordam o texto literário como corpus de análise, a saber, o gênero textual poema, tal seja, “Minha Infância”, de Cora Coralina (2001), e o gênero textual conto, tais sejam, “A mulher que comeu o amante”, de Bernardo Élis (2005) e “À beira do pouso”, de Hugo de C. Ramos (1959), para o estudo de peculiaridades lexicais de Goiás.

Em “Desenvolvendo a literatura e inclusão social no mundo dos surdos: traba-lhando o Youtube como plataforma de ensino”, Suelen Aparecida de Oliveira, Lucas

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Estudos da linguagem em foco

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Eduardo Marques Santos e Anair Valênia trabalham com o uso de novas tecnologias de comunicação e de informações na educação de Surdos, especialmente, com a rede de compartilhamento de vídeos Youtube. No artigo em destaque, o Youtube é considerado um recurso de ensino multissemiótico e multimodal, de modo a desenvolver um am-biente literário para que os alunos Surdos “possam explorar suas competências e capa-cidades tanto em produções linguísticas, quanto cognitivas de forma simples, prática e eficiente, a fim de expandir suas habilidades comunicativas e sociais”.

Ingride Chagas Gomes e Fabíola Aparecida Sartin Dutra Parreira Almeida no texto “Desafios enfrentados pelo professor que atua ministrando uma disciplina que não é da sua formação”, analisam discursos de professores que atuam na educação mi-nistrando disciplinas que não possuem formação específica. Sob a perspectiva da Lin-guística Sistêmico-Funcional, especificamente do Sistema de Avaliatividade, as autoras embasam a análise do tema em estudo.

No artigo intitulado “Como o léxico da moda se renova? Um estudo sobre os neologismos por empréstimos na revista Glamour”, Pauler Castorino Oliveira Barbosa e Vanessa Regina Duarte Xavier, investigam sob a perspectiva teórica da Lexicologia o tipo de neologismo por empréstimo (estrangeirismo ou empréstimo) mais frequente em uma tiragem da revista Glamour. Os autores objetivam compreender de que modo o léxico da moda se renova, considerando a hipótese de que o léxico da moda sofre grande influência de outros idiomas, especialmente, da língua inglesa.

Pabrícia Abadia Pereira Félix e Fabíola Aparecida Sartin Dutra Parreira Almei-da, no texto “O sistema de avaliatividade: escolhas léxico-gramaticais que delineiam a escrita de Cora Coralina”, investigam os recursos léxico-gramaticais do subsistema de Atitude, realizados nos textos de Cora Coralina para referir-se à mulher. Sob a pers-pectiva teórica da Linguística Sistêmico-Funcional, o corpus encontra-se composto por dois poemas da poetisa e contista goiana, tais sejam, “Mulher da vida” e “A lavadeira”. Os resultados do estudo apontam que as avaliações feitas pela escritora permitem observar que as escolhas léxico-gramaticais realizadas por Cora Coralina evidenciam diversos preconceitos sobre as mulheres em seu tempo.

No artigo “O modus vivendi em Catalão-GO de 1953: análise do jornal ‘O Catalão’”, Nayara Capingote Serafim da Silva Arruda e Maria Helena de Paula abordam o léxico em sua inter-relação com a identidade e a memória, a partir do estudo de seis edições do jornal “O Catalão”, do ano de 1953. Os resultados da pesquisa apontam que o léxico apresenta marcas das relações sociais, da identidade, do cenário político-econômico e do modus vivendi do povo de Catalão na época de publicação das edições do jornal.

O trabalho que encerra a compilação, “Variações morfofonológicas em um códi-ce eclesiástico catalano oitocentista (1839-1842)”, de autoria de Maiune de Oliveira Sil-va, Maria Gabriela Gomes Pires, Mayara Aparecida Ribeiro de Almeida e Maria Helena de Paula, traz um estudo sobre os processos morfofonológicos encontrados no Livro de Batismo da Paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842), da cidade de Catalão-GO. As autoras desenvolvem um importante processo de pesquisa e análise sobre escri-ta da época, a partir do códice eclesiástico, uma vez que esse trabalho permite conhecer um cenário da ortografia oitocentista.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

A presente coletânea aposta na produtividade e amplitude de abordagens e pers-pectivas teóricas possíveis na pesquisa do campo dos estudos da linguagem. Desejamos aos leitores uma excelente leitura e que os estudos e resultados de pesquisas aqui publi-cados possam ser interlocutores em potencial para a ampliação do conhecimento sobre linguagem e sobre discursos.

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Estudos da linguagem em foco

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Entre lembrança e esquecimento, os lampejos memoriais de um menino judeu do Bom Retiro

Lucas Silvério Martins1

Silvana Augusta Barbosa Carrijo 2

IntroduçãoPor que estudar a literatura infantil? Tal pergunta tem resposta incisiva e con-

vincente quando se recupera o que diz Peter Hunt (2010, p.43): “porque é importante e divertido. Os livros para crianças têm, e tiveram, grande influência social e educacional; são importantes tanto em termos políticos como comerciais”. Partindo dessa influência social e educacional asseverada por Hunt (2010), percebe-se na literatura infantil e ju-venil, celeiro de grandes e importantes discussões, proporcionando a crianças e jovens o contato com questões que influenciarão sua construção como cidadãos pensantes e críticos, sendo algumas dessas questões, ainda consideradas, por muitos, como polêmi-cas e de difícil discussão.

Ricardo Azevedo (2004) elucida sobre a capacidade da literatura em contemplar temas caros à condição humana e que, portanto, são de interesse praticamente univer-sal, tais como questões sobre a subjetividade do homem, suas dores, seus medos, suas angústias. Quando estes assuntos complexos são encontrados na literatura potencial-mente direcionada a crianças e adolescentes, é preciso ir contra aos que insistem em afirmar que tais o pequeno e jovem leitor não sentem ou não percebem estes sentimen-tos complexos, visto que não só são sentimentos conhecidos como também sentidos pelas crianças e adolescentes, o que faz deles seres humanos tal como qualquer adulto, em um mesmo universo. Azevedo (2004) afirma que:

Crianças, na vida concreta, inconscientemente ou não, buscam seu autoconhe-cimento e sua identidade; têm sentimentos e razão; sonham e se apaixonam; têm dúvidas, medos e prazeres; ficam perplexas diante da existência de múl-tiplos pontos de vista; têm dificuldades em separar realidade e fantasia; são sexuadas e mortais. Em suma, são essencialmente seres humanos (AZEVEDO, 2004, p.42).

1 Universidade Federal de Goiás / Regional Catalão - UFG-RC / UAELL / CNPq. Contato: [email protected] Universidade Federal de Goiás / Regional Catalão - UFG-RC / UAELL / CNPq. Contato: [email protected].

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

Ao percebermos obras literárias direcionadas ao público infantil e juvenil cujos temas são, dentre outros, a memória, a identidade e a cultura judaicas e temas relativos à história dos judeus, principalmente aquela acontecida no período da Segunda Guerra Mundial e os desdobramentos de seu final, indagamos sobre como esses temas têm chegado à mão destes leitores: recebem, estas obras, um tratamento estético-literário ou são obras estruturadas por uma dicção didático-moralizante, carregadas de discurso utilitário? Qual o leque de estratégias literárias dos quais o autor lança mão para criar tais obras? São encontradas, nestas narrativas, elementos verossímeis quanto à memó-ria judaica e a perpetuada memória universal da Shoah? Os escritos deturpam os fatos historicamente registrados, representando um verdadeiro desserviço à reverberação de testemunhos que consolidam o memorial do povo judeu?

Com base nas questões acima elencadas, analisamos a obra Memórias de um me-nino judeu do Bom Retiro (2014), de Victor Nussenzweig. Para tanto, usamos de aportes teóricos concebidos por autores que discutem os temas judaicos, tais como Hannah Arendt (1989), Michael Brenner (2013) e Primo Levi (2016). Além disso, acionamos bibliografia teórica relacionada a literatura infantil e juvenil, tais como as contribuições de Ricardo Azevedo (2004) e Peter Hunt (2010).

1. Primeiras palavrasA análise que será apresentada a seguir configura-se como um recorte de um

percurso de investigação científica intitulado Ora, direis, (não) ouvir judeus? memória e identidade judaicas em páginas da literatura infantil e juvenil, desenvolvida no Progra-ma Institucional de Iniciação Científica da Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão, com fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-lógico (CNPq).

Passados setenta e dois anos desde o fim oficial da Segunda Guerra Mundial, a luta dos judeus continua. A batalha se reconfigurou em outros meios, seja em olhares tortos, ou em guerras que não são declaradas, mas persiste, evidenciada pelas ondas neonazistas: os judeus são e sempre foram alvo de perseguição. Arendt (1989) argu-menta que os judeus sempre foram vistos com olhos desconfiados, indesejados e eram, no máximo, tolerados. Brenner (2013) elucida que em todos os territórios onde estive-ram, os judeus foram recebidos com desconfiança, sentindo a insegurança e efetivando movimentos diaspóricos que atravessam os séculos, causados pelo ódio e perseguição. A importância de se falar de assuntos como o nazismo, a Segunda Guerra Mundial, a Shoah (termo que se dá à matança ocorrida com os judeus) e a diáspora está na respon-sabilidade das gerações contemporâneas: nunca mais há de se permitir que tal terror seja visto na humanidade, como os fatos ocorridos entre 1933 e 1945, no qual mais de 5 milhões de judeus foram mortos.

1.1.MemóriasdeummeninojudeudoBomRetiro

Concebida por Victor Nussenzweig (médico e autor brasileiro, de origem judai-ca), Memórias de um menino judeu do Bom Retiro (2014) conta a história de Victor

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Estudos da linguagem em foco

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(inspirado na vida do autor) e suas aventuras até se tornar adulto. Filho de judeus imi-grantes poloneses, o personagem narra sua infância, adolescência e início da vida adulta numa perspectiva de relato. Chama atenção na obra a extensão de fatos narrados: vão desde a infância, onde o personagem conta, por exemplo, que mamou até os dois anos de idade e, nas páginas finais, percebe-se a entrada de Victor na vida adulta.

O primeiro fato para análise na narrativa de Nussenzweig (2014) está em seu título, que também é o que nomeia o segundo capítulo da obra, sendo este o bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Local onde o personagem passa sua infância e adolescência, o bairro do Bom Retiro não é escolhido ocasionalmente para ambientação da trama. Se-gundo Abrahão de Oliveira (2016), é um bairro que recebeu, entre 1930 e 1947, mais de 30 mil judeus. É uma das principais regiões de concentração de imigrantes judaicos na cidade de São Paulo. É tradicionalmente conhecido como um bairro de forte concentra-ção judaica, informação que aparece, inclusive, no corpo narrativo da obra: “a rua não era pavimentada, e um bocado afastada do Bom Retiro, onde moravam a maioria dos imigrantes judeus” (NUSSENZWEIG, 2014, p. 12). Abriga, ainda, outros imigrantes, sendo um dos principais centros imigrantes do país. Para Victor, o bairro é um mundo a ser explorado.

Os limites físicos do bairro são também os limites psicológicos do personagem. Quebrar tais limites representa, antes de tudo, uma afronta a sua mãe (conservadora e que deseja manter as tradições judaicas acima de qualquer coisa), porém, mais que isso, o bairro é o muro que o separa de uma nova vida. Não apenas um cenário, não tão somente um bairro, o Bom Retiro é de fato o retiro de segurança do personagem que, a partir do momento que quebra seus limites e se projeta ao incerto, cria uma nova realidade e vê o mundo por novos horizontes. É, de fato, um local de transformação, que abriga um personagem esférico, ou seja, um personagem que sofrerá mudanças no decorrer da narrativa. A saída do Bom Retiro delimita quando estas mudanças devem começar a ser mais acentuadas.

Na narrativa de Nussenzweig (2014), é possível perceber a forte presença de pala-vras de origem judaica, tais como ‘kasher’, ‘ídiche’ e ‘sheitl’. Ao partirmos da ideia de que língua é cultura, um dos elementos culturais mais encontrados na obra é, então, a língua judaica. Este elemento, ou seja, a língua, é tão presente na história que a obra apresenta em suas páginas finais um glossário de palavras da tradição judaica com vinte e uma entradas e significados de palavras pertencentes ao universo dos judeus.

A partir das entradas percebidas neste glossário e seus significados é possível co-nhecer um pouco mais sobre o universo judaico, sua tradição e sua cultura. E mais fácil ainda é perceber o choque cultural que estas ocasionam. A palavra shochet, por exemplo, é atribuída para nomear o “profissional responsável por abater as galinhas de acordo com a lei religiosa judaica” (NUSSENZWEIG, 2014, p.88). Causa estranheza, primeiro, a existência de uma palavra destinada ao profissional responsável por abater as galinhas que se tornarão alimento, uma vez que não há um correspondente da pala-vra na língua portuguesa. Mais extraordinário ainda pode parecer a existência de uma lei religiosa para o abate de aves, já que não existe equivalente na tradição brasileira. A análise destes fatos demonstra o choque cultural entre judeus e brasileiros que pode ter

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

resultado em grandes divergências, uma vez que se trata de elementos culturais e reli-giosos de grande valor e apreço aos judeus.

Além disso, a inserção de personagens com carga cultural e linguística tão dís-pares daquela encontrada no Brasil são, também, destaques da obra de Nussenzweig. Ao trazer os assuntos a lume, o autor fomenta a reflexão sobre aquilo que teóricos co-mo Moacyr Scliar e Márcio Sousa (2003) e Brenner (2013) também discutem em suas obras. Brenner (2013) explica, ao falar do processo de emigração judaica, que existia a barreira econômica, mas, também, “barreiras culturais e linguísticas a serem enfrenta-das em um país estrangeiro” (BRENNER, 2013, p.301). É possível perceber na leitura da obra de Nussenzweig estas tais barreiras culturais e linguísticas, uma vez que o choque cultural era intenso e perceptível, tanto quanto as barreiras linguísticas. A recorrência do uso de palavras judaicas é prova disto.

Atentando para o fato de que a barreira linguística retratada pela obra (uma em várias que existem sobre os judeus) foi tão grande a ponto de ser necessária a criação de um glossário, é então possível conjecturar sobre quão intensos foram os dilemas enfren-tados a nível de movimento diaspórico como foi o dos judeus no qual, para a formação de um único bairro, mais de 30 mil judeus se mudaram para São Paulo em pouco mais de uma década. Certamente (e aqui leva-se em consideração os ditos teóricos), houve grandes conflitos entre culturas, crenças e língua.

Outro fato relativo à cultura judaica está no “conhecimento do mundo”. Os co-nhecimentos do dito “mundo novo”, ou seja, o Brasil, iam de encontro à manutenção da cultura judaica. Na narrativa, Victor afirma que deseja conhecer este novo mundo, e, aqui, além do elemento cultural, ficamos diante de uma outra problemática levantada pelo autor: a relação entre mãe e filho. Sempre apresentada como conturbada, mãe e fi-lho travavam brigas constantes. Uma delas, por conta de notas na escola, chama atenção:

A nota baixíssima apareceu no boletim que meus pais receberam. Foi então que minha mãe disse que eu era “a ovelha negra da família” e que meu destino era ser lixeiro. Ainda hoje lembro minha humilhação e a insegurança que me causou. Disse à minha mãe que eu preferia uma surra a um espancamento mental… (NUSSENZWEIG, 2014, p.62).

Percebemos, através da citação, o quanto as brigas entre Victor e sua mãe deixa-vam o personagem sentido, magoado, com sentimentos confusos. Mais que isso, eram motivo de vergonha por parte do personagem e ele, mesmo narrando a obra já em sua velhice, ainda ruminava tais momentos. Ainda que no decorrer da obra o personagem entenda que o jeito frio de sua mãe fora causado pelo sofrimento vivenciado na Europa, Victor não consegue esquecer tamanhas dores. Chama atenção o fato de que a dimen-são do trauma sofrido pela mãe é suficiente para que ela não consiga retornar a uma vida dita ‘normal’. A personagem se revolta por ter que sair de seu país, por abandonar sua história e sua cultura. Estes elementos, dispostos em uma narrativa potencialmente direcionada a adolescentes são pertinentes, uma vez que ilustram o processo de huma-nização elucidado por Antonio Candido (1995). O ser humano, seja jovem, seja adulto, seja idoso, tem em seu íntimo sentimentos puros, mas difíceis de serem compreendidos. A dor, raiva e o ressentimento são bons exemplos destes.

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Chama atenção, ainda, a construção narrativa da obra. Nussenzweig utiliza-se de uma linguagem simples, por vezes aproximando-se da linguagem oral. Sendo o perso-nagem Victor também o narrador, o leitor tem acesso àquilo que Victor fala e pensa. Nestes pensamentos são disponibilizados os mais diferentes pontos de percepção de um jovem. Seja de um menino que acreditava que flatulências contidas pudessem matar seu pai ou ainda a visão da primeira relação sexual do personagem, o autor brinca com a imaginação, criando a cena num tom de relato, característico de narrativas que contem-plam a memória, tal como pode ser observado no excerto a seguir:

Da menina, só lembro do vestidinho curto de fazenda sedosa. Fiquei surpreso quando a abracei e ela não repeliu, mas ao mesmo tempo apavorado ao perce-ber o inevitável, uma saliência bem visível na parte da frente de minhas calças [...]. A menina, que certamente havia percebido a razão do meu embaraço, em vez de se afastar, se aconchegou ao motivo de minha vergonha. Daí em diante tudo sucedeu muito rapidamente, e aconteceu aquilo que eu tanto almejava (NUSSENZWEIG, 2014, p.85).

Toda a narrativa é contada ao leitor por meio da visão do personagem e sem entrada de parágrafo para suas falas. Quando necessárias, são apresentadas entre as-pas, mas, em sua grande maioria, configuram-se por meio do uso de paráfrase. Chama atenção o tom não raramente irônico e sarcástico do autor, tal como quando conta sobre suas aventuras ao desenhar para uma revista em quadrinhos e revelar que ela faliu me-ses depois de sua entrada. Este recurso estilístico, seja a ironia ou o sarcasmo, atestam novamente a característica literária da obra, – diferenciando-a de um simples manual, ou uma biografia, por exemplo.

Dividida em vinte curtos capítulos, pode ser percebida como uma conversa entre autor e leitor. Os parágrafos, todos com uma instigante nomeação, tal como “Recorda-ções sem roteiro”, “Bom Retiro” ou “Recordações de escola”, abrem oportunidade para que o leitor indague sobre aquilo que será apresentado, sendo que não são apresentados em ordem cronológica. No primeiro capítulo, intitulado “Recordações sem roteiro”, o autor explica que “[escreveu] sem um roteiro, recordações de um parágrafo levaram ao seguinte” (NUSSENZWEIG, 2014, p.10). A evolução narrativa fica por conta da finali-zação de cada capítulo que encerra algum conflito, ou problemática, ou lembrança da vida de Victor, mas que, lendo o título do próximo, desperta a curiosidade sobre o que mais este simples menino judeu irá contar.

Nos elementos finais da obra, descobrimos que Victor se forma médico e ajuda a salvar vidas, em um posfácio que conta, inclusive, com um desenho de Victor e seus irmãos, feito por Moyses Nussenzweig, o que permite um discurso ainda mais auto-biográfico ao texto. A metáfora fica clara: um personagem que tão de perto viu a morte ajuda a manter a vida. Tal como cirurgião de histórias, Victor (aqui confunde-se o per-sonagem e o autor) usa sua habilidade para manter viva a esperança de dias melhores, suturando feridas e as tratando por meio de um testemunho materializado em suas pa-lavras. Ainda que deixando cicatrizes, as feridas não estão mais abertas. Doem quando tocadas, mas, ao menos, sabe-se que não são uma exposição do íntimo do ser humano. São feridas na alma. O autor é, portanto, um cirurgião que usa as palavras como seu

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bisturi. Percebe-se, logo, que palavras aqui excedem seu significante. Não são meros ajuntados de letras. São, portanto, faíscas de esperança e doses de cura.

1.2.Asilustrações

A obra é ilustrada por Paloma Franca Amorim que, além de ilustra-dora, também é cronista (segundo informações encontradas no posfácio da obra). São ilustrações curiosas que configuram certa confusão tempo-rária, mas que, de acordo com o tempo que o leitor as observa, juntamente com a leitura do código verbal, passam a fazer sentido. Dispostas no fim

de alguns capítulos, são sempre apresentadas com traços característi-cos de desenho a mão, em preto e branco e, por vezes, abstratas, co-

mo se desenhadas a partir de uma névoa cinza, uma fumaça que surge e ganha formas.

Em uma das ilustrações (Imagem 1), no capítulo “Pane-las de barro, circo e álbuns de figurinhas” percebemos

melhor a descrição anterior. A ilustração apresen-ta um circo com um elefante e um elefante acima da lona e um menino. Porém, o modo como a autora utiliza sua técnica confere uma necessi-dade de olhar para a ilustração e percebe-la de-vagar, para só assim ser possível contemplar sua

Imagem 1 – Imagem com circo, o elefante e o menino. (NUSSENZWEIG, 2014, p. 27)

Imagem 2 – Estação da luz (NUSSENZWEIG, 2014, p. 33).

totalidade. O efeito esfumaçado faz com que os desenhos pare-çam um sonho, um momento que não é real.

Entendemos que as ilustrações nessa obra, não raras ve-zes, retratam um além-texto. Quando um capítulo descreve a Estação da Luz (Imagem 2) (uma das mais importantes esta-ções ferroviárias de São Paulo), por exemplo, o desenho visto reproduz, ao fundo, a estação tal qual é, mas com no-vos elementos. Apresenta, por exemplo, o grande relógio característico da estação e que não é men-cionado no texto. Representa, ainda, comercian-tes na frente da estação: no primeiro plano um vende pipoca (mencionado na narrativa) mas, em segundo plano, percebem- se mais vendedores de produtos que não podem ser reconhecidos. As-sim, a ilustração transcende o código verbal e fala com ele e além dele.

Outra ilustração que chama atenção é vis-ta no capítulo intitulado “Punido por uma vírgu- l a”

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(NUSSENZWEIG, 2014, p.62) (Imagem 3). Nela, Victor está deitado em sua cama, len-do um livro. Por todo o chão existem outros livros (que fazem referência ao perfil de lei-tor voraz do personagem, que inclusive ama contos de fadas) mas tal imagem representa algo que não aparece em momento algum no código textual: acima da cabeceira da cama, possivelmente pregado numa parede, está a Estrela de Davi, conhecido símbolo judaico.

Ao trazer este elemento para a nar-rativa, a ilustradora, em comunhão com o autor, demonstra uma preocupação com os possíveis códigos de leitura, seja o verbal ou o imagético. Percebe-se, então, uma relação de equilíbrio entre estes códigos: um não se sobrepõe o outro, no que se refere à sua im-portância na obra. São, então, equilibrados e se completam. As ilustrações conseguem estender o texto a contento, isto é, conseguem somar à história, contando por si nuances que o código verbal não realiza.

Por fim percebemos que as ilustrações também carregam marcas da memória universal da Shoah, expresso em elementos da cultura judaica e que são capazes de invocar as lembranças do povo judeu. O fato de o ilustrador decidir por adicionar sím-bolos e até mesmo a forma como é marcada a expressão facial das obras, tudo contribui para uma extrapolação do texto que torna o profissional da ilustração tão autor da his-tória quanto aquele que a escreve verbalmente.

ConclusãoA partir da análise apresentada da obra Memórias de um menino judeu do Bom

Retiro (2014) de Victor Nussenzweig, conclui-se que a narrativa apresenta um conteúdo que prima pela fruição estético-literária. Afirma-se isto com base nas múltiplas ferra-mentas literárias das quais o autor lançou mão para arquitetar sua obra (ironia, sarcas-mo, metáforas), bem como o uso de uma linguagem intercódigos, criando a sua narra-tiva não só através do plano verbal bem como pelo imagético, a partir das ilustrações de Paloma Franco Amorim.

As ilustrações entram em consonância com o texto, mas não o reproduzem e sim o transcendem. Ao contrário de obras em que a linguagem imagética é uma mera representação do que é expresso pela carga verbal da obra, temos uma narrativa na qual imagem e texto caminham juntos para criarem um efeito estético no leitor. Ainda que em menor quantidade de apresentação, isto é, ocupando menos páginas que o código verbal, as imagens configuram-se importantíssimas uma vez que apresentam fatos no-vos e que podem ser alvo das mais diferentes formas de leitura.

Imagem 3 – Victor deitado com a estrela de Davi ao fundo. (NUSSENZWEIG, 2014, p. 68)

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A memória universal da Shoah, bem como os assuntos relacionados ao povo ju-deu, são apresentados com verossimilhança. Ainda que a literatura tenha a possibilida-de de modificar fatos históricos, visto que não configura nela uma obrigação em retratar em ipsis litteris aquilo que está no mundo real, percebe-se na supracitada obra que estas modificações foram mínimas, com o único intuito de firmar o pacto literário entre lei-tor e obra. Atestamos tal conclusão com base na comparação daquilo que é apresentado na narrativa com os pontos defendidos entre os mais diversos teóricos e historiadores sobre o universo judaico oportunamente acionados.

Destaca-se, por fim, a importância da obra. Sua leitura não se traduz tão somente em um ganho literário, mas sim humano e, principalmente, um serviço para a prote-ção e manutenção da memória universal da Shoah. A obra é, antes de tudo, um grito de testemunho para que sejam sempre lembrados e recontados os fatos dos quais os judeus padeceram. Sendo assim, o trabalho de analisar a obra apresenta-se não apenas como processo de relevância científica, mas, também, de importância humana e social, uma vez que permite a reflexão acerca daquilo que está sendo vendido e lido por e para crianças e jovens.

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Tradução de: Roberto Raposo.

AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a literatura. In: Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004. p. 37-49.

BRENNER, Michael. Breve história dos judeus. São Paulo: Editora Wmf Martins Fontes, 2013. Tradução de: Marcelo Brandão Cipolla.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Tradução de Cid Knipel.

LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. 3. ed. São Paulo/rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

NUSSENZWEIG, Victor. Memórias de um menino judeu do Bom Retiro. São Paulo: Hedra, 2014.

OLIVEIRA, Abrahão de. O bairro multicultural de São Paulo: A História Do Bom Retiro Bom Retiro. 2016. Disponível em: <http://www.saopauloinfoco.com.br/o-bom-retiro/>. Acesso em: 16 jun. 2018.

SCLIAR, Moacyr; SOUSA, Márcio. Entre Moisés e Macunaíma: os judeus que descobriram o Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

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Ideologia e efeitos de sentido no livro “A invasão dos erros de português”

Raquel Costa Guimarães Nascimento 3

Erislane Rodrigues Ribeiro4

ApresentaçãoNo ano de 2017 iniciamos, dentro do projeto “Da margem ao centro, discursos

sobre as minorias nas mídias sociais”, uma pesquisa intitulada “Existe preconceito lin-guístico nas redes sociais? Uma análise de discursos sobre a língua em comentários de leitores”, com o objetivo de investigar discursos produzidos sobre a língua em postagens feitas na internet e identificar as concepções de língua presentes nos mesmos. Durante as pesquisas, o grupo de estudos GPEL entrou em contato com o livro A invasão dos erros de Português (TUCCI, 2005). A obra, ainda que não tratasse de conteúdo provindo de mídias sociais, destacou-se por vir ao encontro de parte da temática abordada, ou seja, as concepções de língua e sua influência na produção de discursos, tornou-se, portanto, objeto de nossas investigações. Desse modo, as observações quanto a esse corpus, não foram incorporadas ao projeto de iniciação científica, mas foram feitas paralelamente ao seu desenvolvimento; ora tomando como princípios teóricos os textos selecionados para a pesquisa inicial, ora buscando textos outros, a fim de complementar a análise.

A invasão dos erros de português é um livro infantil escrito por William Tucci, autor também de outras obras, como: A rebelião das palavras (2002), A rebelião da pon-tuação (2003) e A rebelião dos antônimos e sinônimos (2004). As questões levantadas em relação à obra são as seguintes: qual o impacto da concepção de língua na maneira como o português é retratado em um livro infantil? É possível que uma história para crianças, ao descrever um vilão, apresente discurso preconceituoso, refletindo assim, uma ideologia que associa erros de português a algum tipo de crime ou vilania?

O livro trata da história de uma escola que foi invadida por um grupo de mal-feitores, que pretendem “desensinar a gramática para as crianças”. O vilão e seus com-parsas sequestram o diretor e os professores e hipnotizam as crianças para começar seu plano de destruir o português. A escola é salva pelo herói Edi Cionário, que, com a ajuda de seu exército de cadernos, lápis e borrachas, vence os bandidos.

3 UFG-RC – Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão. UAELL – Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguís-tica. GPEL - Grupo de Pesquisa em Escrita e Leitura. Aluna de Graduação. [email protected] UFG-RC – Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão. UAELL – Unidade Acadêmica Especial deLetras e Linguística. GPEL - Grupo de Pesquisa em Escrita e Leitura. [email protected]

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

A história não termina simplesmente com a expulsão dos malfeitores. Após tudo estar tranquilo, o narrador da trama levanta suspeitas sobre um pipoqueiro que começa a atender as crianças na saída da escola. Ele possui um estranho hábito de “falar errado”, e esse hábito é associado ao vilão “José Pobrema”, que havia prometido regressar. Ao fim do livro, a pergunta que os leitores são levados a fazer é se o pipoqueiro é o inimigo disfarçado. O livro descreve ainda muitas palavras e expressões usadas fora da gramá-tica normativa, todas estas expressões serão corrigidas pelo herói ou até mesmo pelas crianças, que se recusarão a falar “errado”.

O objetivo dessa pesquisa é observar quais concepções de língua estão presentes na obra. De modo mais específico, pretendemos refletir sobre a ideologia que atravessa esses discursos e quais possibilidades de efeitos de sentido podem ser elencadas. O fo-co principal de estudos está na relação do vilão “José Pobrema” e o pipoqueiro. Desse modo não atentaremos a explicações das questões relacionadas à variação linguística. A pesquisa possui caráter analítico e reflexivo. Partimos dos textos de Análise do Discurso para compreender a relação entre língua e discurso, e como essa construção se manifes-ta no texto. A hipótese inicial, confirmada após as análises, era que a associação entre o vilão e o pipoqueiro se constituía sim em um discurso preconceituoso.

O artigo está estruturado da seguinte forma: em um primeiro momento trata-remos das concepções de língua, erro e gramática. Para isso, recorreremos aos autores Possenti (1996), Faraco (2002), Geraldi (2003), Brito (2004), Bagno (2015) e Trava-glia (2009). Em seguida, tomando como base os estudos de Cavalcanti (2007), faremos uma reflexão sobre o livro infantil e o caráter doutrinador que este assumiu no início do século no Brasil. Posteriormente, apresentaremos conceitos da Análise do Discurso pertinentes à discussão, como discurso, língua, sujeito, ideologia, interdiscurso e efeito de sentido. Destacaremos trechos do livro a fim de realizar as formulações necessárias. Após isso externaremos as conclusões finais às quais o estudo nos possibilitou chegar.

1. DesenvolvimentoMuitos estudiosos brasileiros tratam das questões relativas à visão que a socieda-

de brasileira adquiriu sobre a língua. Nesta seção traremos as principais argumentações de alguns desses autores. Abordaremos, no primeiro momento, as concepções de lin-guagem apresentados por Geraldi (2003) e Possenti (1996), a seguir, acompanhando as observações de Faraco (2002), faremos uma reflexão sobre a recorrência de discursos que questionam o uso da língua no Brasil, e finalmente, com Brito (2004), faremos uma análise das questões ideológicas relacionadas ao uso ou não das normas do português padrão pelos falantes brasileiros. Após isso, traremos uma breve reflexão feita por Ca-valcanti (2007) sobre ideologias presentes nos livros infantis, e finalmente elencaremos os conceitos da AD que ampararão as discussões.

1.1.Concepçõesdelínguae“erro”

Os estudiosos estabelecem três principais concepções de língua. A primeira des-sas maneiras de enxergar a língua é vê-la como expressão de pensamento. Olhando por esse viés, toda profundidade e complexidade do pensamento humano se refletiria

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na linguagem. Desse modo, um linguajar coeso, claro e, principalmente, adequado às normas seria um reflexo de um pensamento nos mesmos moldes. Por outro lado, uma linguagem não ajustada à norma padrão, ou seja, com “erros”, revelaria um pensamento falho, desconexo. De acordo com Geraldi (2003, p. 41), sob essa ótica, “pessoas que não conseguem se expressar, não pensam”. Outra concepção de linguagem é que ela é um instrumento de comunicação. De acordo com esse ponto de vista, o falante precisa ad-quirir a capacitação necessária para usar essa ferramenta – a língua – adequadamente. Novamente, é possível notar que, caso haja qualquer dificuldade ou discrepância na comunicação, a culpa provavelmente irá recair sobre o sujeito falante. Lê-se nas entre-linhas dessa perspectiva o seguinte discurso: “se o sujeito não fala de modo a ser com-preendido, a falha é dele, por não dominar o uso do objeto/instrumento língua”.

O terceiro modo de conceber a linguagem é como forma de interação. De manei-ra que, vista assim, ela ultrapassa a mera transmissão de informações codificadas em canal entre interlocutores, mas é vista como “um lugar de interação humana. Por meio dela, o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não preexistiam à fala” (GERALDI, 2003, p. 41).

Sírio Possenti (1996) tratou da ideia de erro, e de como ela está entrelaçada à ideia de língua. Para ele, essa relação passa, inicialmente, pela concepção (ou concepções) de gramática. Ele indica, de modo geral, as gramáticas normativas, descritivas e interna-lizadas. Sob cada uma dessas perspectivas pode-se salientar noções de língua, regras e erros distintos uns dos outros. “A noção mais corrente de erro é a que decorre da gra-mática normativa: é erro tudo aquilo que foge à variedade que foi eleita como exemplo de boa linguagem.” (POSSENTI, 1996, p. 78).

A gramática descritiva, partindo do entendimento de que existem variações den-tro da língua, apenas considera como erro algo inexistente nas diversas possibilidades de sua manifestação, assim,

A adoção de um ponto de vista descritivo permite-nos traçar uma diferen-ça que nos parece fundamental: a distinção entre diferença linguística e erro linguístico. Diferenças linguísticas não são erros, são apenas construções ou formas que divergem de um certo padrão. (POSSENTI, 1996, p. 80)

Caso passemos a propor um estudo em gramática internalizada, segundo o autor, o único falante capaz de cometer um erro seria o não nativo, já que o nativo, salvo al-guma condição especial, possui todas as ferramentas para se comunicar em sua própria língua. Para Travaglia (2009, p. 29), dentro desta concepção, a única possibilidade é que o falante use a língua de forma inadequada, por exemplo, ao não atender as suas normas sociais de uso, o que ainda não configuraria um erro.

Bagno (2015, p. 176) argumenta que o erro de português simplesmente não exis-te. O que existe são modalidades diferentes, adequadas a diferentes ocasiões, e que “to-do falante de uma língua é um falante plenamente competente”, e concorda com Pos-senti ao afirmar que apenas um estrangeiro poderia “errar no português”. O autor ainda esclarece que impera em muitos grupos uma ideia (por se tratar de um trabalho na AD, usaremos a terminação ideologia) de que a língua portuguesa é algo puro e que deve

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ser protegida. Ora, no livro A invasão dos erros de português, uma tropa reuniu-se a fim de proteger essa língua dos vilões que pretendiam destruí-la. Certamente que as con-cepções de pureza e língua ideal estão presentes na obra, como constataremos a seguir.

1.2. Língua discurso e ideologia

Faraco (2004, p. 38) admite que os grupos sociais adquirem, como um dos fatores de distinção, o uso comum de determinadas formas linguísticas. Assim, cada comuni-dade pode se distinguir por condições sociais, étnicas, geográficas, por diferenças de idade ou sexo, e essas diferenças se refletirão nos modos de se comunicar, isso inclui es-crita e fala. Então, em um território amplo como é o brasileiro, diversos grupos, cada um com suas normas linguísticas, irão coexistir. Ao utilizar as formas linguísticas do grupo, o sujeito adquire e realça o efeito de pertencimento e adequação a uma comunidade.

“Nesse sentido, a norma, qualquer que seja, não pode ser compreendida apenas como um conjunto de formas linguísticas; ela é também (e principalmente) um agrega-do de valores socioculturais articulados com aquelas formas” (FARACO, 2004 p. 39). O mesmo conjunto de atitudes e valores que atua a fim de reforçar o sentido de pertenci-mento e inclusão pode operar também como fator de distinção entre um grupo e outro, levando a situações de exclusão e preconceito. Existe, segundo o autor, um grupo que lida mais de perto com a cultura escrita e usa uma norma que eles mesmos nomearam de norma culta.

Seu posicionamento privilegiado na estrutura econômica e social os leva a se re-presentar como “mais cultos” (talvez porque, historicamente tenham se apropriado da cultura escrita como bem exclusivo, transformando-a em efetivo instrumento de poder) e, por consequência a considerar a sua norma linguística [...] como a melhor em confronto com as muitas outras normas do espaço social. Isso, como sabemos, é fonte de vários pré-juízos e preconceitos linguísticos que afetam o conjunto da sociedade, mas em especial, os falantes de normas que são particularmente estigmatizados pelos falantes da norma culta (FARACO, 2004, p. 40).

Pode-se observar, através dessa exposição, os caminhos ideológicos traçados pe-los discursos que revelam preconceito linguístico, já que, de acordo com o autor, o fato de utilizarem determinado padrão linguístico faz com que seus falantes se percebam como superiores aos falantes de padrões diferentes. Essa ideia faz emergir, como abor-dado a seguir, discursos discriminatórios, os quais tomarão com desprezo sujeito que não fazem uso da norma “culta” da língua.

Brito (2004, p. 136) discute como a língua pode ser campo de preconceitos. Ele argumenta que as palavras não são neutras, tampouco podem ser tomadas como pro-priedade individual, mas são históricas e preexistem ao sujeito. Quanto à ideologia, ele a toma como modo subjetivo de representar a realidade, algo que acontece de modo qua-se imperceptível, motivada por interesses, que podem ser políticos, históricos, sociais, de classe. Conforme Brito (2004, p. 137), “a língua é um dos lugares em que a ideologia é mascarada, é despercebida, e, portanto, é violenta”. Segundo essa ideologia, a “pessoa culta (expressão de classe social) é transformada em modelo de moral e de respeitabili-dade: ela é a autoridade de onde emana a verdade” (BRITO, 2004, p. 147). Assim como

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uma pessoa pode sofrer com efeitos discriminatórios por ser diferente quanto ao credo, orientação sexual ou qualquer outra particularidade, a linguagem pode também ser o alvo do tratamento vexatório. Isso é reforçado muitas vezes com piadas e brincadeiras que não são menos prejudiciais do que humilhações públicas, já que causam o mesmo efeito censor e criam nos sujeitos o efeito de sentido de que o “culto” é correto e o colo-quial é inferior e risível.

A AD percebe a língua não como um instrumento para uso nos momentos de troca de informação, do mesmo modo não a compreende como algo exterior ao sujeito ou transparente. O sujeito, tão pouco, é anterior à linguagem, mas nasce nela, nela é constituído, nela se revela. O Discurso é “palavra em movimento, prática da linguagem” (Orlandi, 2015, p. 13), desse modo não é estanque. Para a autora, ao analisar o discurso, analisamos mais que o texto em suas proposições gramaticais, mas todas as construções históricas e de memória. Cada discurso trará imbuído em si todos os outros discursos enunciados antes dele, trarão também todos os sentidos produzidos, mesmo que estes sentidos tenham sido esquecidos e substituídos.

Conforme as formações discursivas em o que o sujeito se insere, conforme as memórias acionadas por esses discursos, os efeitos de sentido se constroem. Os senti-dos também não são dados, previsíveis ou óbvios, mas, conforme Orlandi (2015, p. 42), serão móveis e dependentes das relações de metáfora.

“A AD rompe com a ideia de língua pura” (POSSENTI 2004), para observá-la em sua dinâmica de uso, e, assim, de evolução, transformação e adaptação. Pêcheux (2011), ao tratar das formações ideológicas - “conjunto complexo que comporta atitudes e re-presentações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas que se referem mais ou menos diretamente a “posições de classe” em conflito” (PÊCHEUX, 2011, p. 73); argumenta que o fato de existirem diversas formações ideológicas acarretam o surgi-mento do fenômeno exteriorizado por ele na expressão “uma só língua, várias culturas” (PÊCHEUX, 2011, p. 74). Isso contribui para a compreensão de vários posicionamentos diferentes a respeito da língua.

1.3. O livro infantil e a ideologia

Cavalcanti (2007, p. 84) diz que a criança, por vezes, é vista como alguém a ser adestrada, Ensinada. Citando Dell Priore, a autora informa que de acordo com essa ideologia, elas são interpretadas como seres em formação, e para que esse processo seja efetivo, deve aprender a ser saudável, obediente, sem vícios e cheia de virtude. Confor-me autora, os primeiros escritos para as crianças, produzidos conforme tais preceitos, datados da década de 20 e 30 carregavam um forte caráter educativo e doutrinador. Esse foi o primeiro momento da literatura infantil no Brasil. A autora questiona ainda, se tais produções literárias atendiam os interesses da criança ou do mundo adulto. Lobato, segundo ela, rompeu com esse tom pedagógico da literatura infantil, mas nas décadas seguintes houve outro retrocesso, em especial na década de 70, que foi um marco na produção de livros infantis, dos quais as escolas são os principais compradores.

A autora afirma que em muitos livros a inteligência dos infantes é desrespeitada, pois a tomam pela mão a tentar lhe ensinar coisas óbvias ou dissuadi-las. Cabe aqui

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

questionar se o livro estudado nesta pesquisa se insere nesse mote de literatura dou-trinadora, e caso sim, se isso se constitui algo benéfico ou maléfico na construção da criança como sujeito.

2. DiscussãoTomemos, inicialmente, alguns trechos da obra A invasão dos erros de português.

A fim de explicitar a diferença entre as palavras “erradas” faladas por José Pobrema e as formas “corretas” de se expressar, o livro traz termos como “biljetivo” (p.14), “palhau-çada” (p.15), “caichorrinho” e “praçeiro” (p.17), para contrapor aos termos: objetivo, palhaçada, cachorrinho e parceiro.

Outro fator interessante a ser considerado, como citado anteriormente, é a grande preocupação, explicitada no discurso do livro, de proteger a língua portuguesa. O herói salvador, não é o falante da língua, mas abriga-se nos recônditos das bibliotecas, e é o único capaz de salvar essa frágil “pureza” da língua. Na batalha em defesa da linguagem virtuosa, os falantes tomaram assento nas arquibancadas da quadra escolar e a guerra foi travada entre o “Capitão José Pobrema” acompanhado de sua “gangue de palavras erradas” e o herói Edy Dicionário ajudado por livros da língua portuguesa.

Os falantes são, por esta perspectiva, completamente passivos no tocante à sua própria língua. Por outro lado, os alunos precisaram ser hipnotizados a fim de serem “desensinados”; o que demonstra que eles possuem sim capacidade de discernimento sobre aquilo que é adequado ou não nas situações comunicativas. Aqueles que não so-freram a hipnose compreenderam o “ataque” que a escola sofria.

Por fim, destaquemos outros trechos:

— (José Pobrema) A gente perdemos essa luta, mas a gente não perdemos as bai-talha. Nós vai voltar! Nós vai voltar! Há, há, há.... – e sumiu deixando seu riso sinistro no ar. (...)

— Todo mundo sabe: falar errado é uma coisa muito feia – observou Lucas.

(...)

Nesse momento, todos se uniram, crianças, professores e livros, cientes da ameaça que José Pobrema e sua gangue representam. Eles estão sempre rondando, pron-tos para fazer a gente cair no erro e dizer um monte de palavras erradas. A luta deve continuar sempre e a gente tem que se prevenir.

(...) Após alguns dias, porém, aconteceu uma coisa que não parecia tão normal assim. Na porta da escola, surgiu um pipoqueiro que era muito, mas muito es-quisito, apesar disso, ninguém ligou para ele. Mas era só prestar um pouco mais de atenção para perceber que havia algo errado. A cada saquinho de pipoca que vendia aquele sujeito dizia coisas absurdas:

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— Vocês quer a pipoca menas salgada?não tem pobrema, é só pedir que eu faze-rei as vontade de vocês...ha...ha...ha...

Para discutir tais discursos, além dos argumentos já mencionados, tomemos o que disse Fiorin a respeito da linguagem e sua condição de difundir valores:

A linguagem tem influência também sobre os comportamentos, do homem. O discurso transmitido contém em si, como parte da visão do mundo que veicula, um sistema de valores, isto é, estereótipos dos comportamentos hu-manos que são valorizados positiva ou negativamente. Ela veicula os tabus comportamentais. A sociedade transmite aos indivíduos – com a linguagem e graças a ela – certos estereótipos que determinam comportamentos. (FIORIN, 1993, p.95)

O trecho final de um livro, as palavras finais de um vilão geralmente marcam os leitores. Não é incomum também, histórias em que o vilão parece reaparecer no final da trama a fim de causar suspense nos leitores e uma sensação de continuidade ou perigo. No caso da obra analisada, o malfeitor é associado a um trabalhador, um pipoqueiro a quem “ninguém dá muita atenção”. Em geral os sujeitos que assumem tal ofício são oriundos de classes com menor poder aquisitivo, com menos tempo de escolaridade. O efeito de sentido produzido nesse discurso vincula os trabalhadores a criminosos da língua, vilões, malfeitores e gangues, levantado contra eles desconfianças e argumentos risíveis, já que o antagonista da história também desempenha um papel de paspalhão, perdedor e ignorante, demonstrado diversas vezes no texto em que ele próprio e seus ajudantes são nomeados de “indiotas”.

ConsideraçõesfinaisComo visto, a língua carrega efeitos de sentido produzidos pela ideologia. A liga-

ção feita entre o malfeitor e o pipoqueiro revelam discurso de intolerância e preconceito contra aqueles sujeitos que falam as variedades desprestigiadas do português brasileiro, levantando ainda suspeitas quanto ao seu caráter, unicamente pelo não uso da fala apre-sentada no livro como bonita e correta.

O livro ainda tem caráter doutrinador, estimulando o aluno a se perceber como pas-sivo no que diz respeito à língua que fala, esta, deve ser mantida pura, sem modificações e variações, efeitos que são percebidos como nocivos e perigosos além de excessos com relação a noção de erro. O livro reforça o preconceito linguístico, e, mais que isso, o pre-conceito social, direcionado a falantes provindos de posições sociais desfavorecidas, além de não contribuir para a emancipação e empoderamento linguístico nem desses falantes e nem das crianças alvo do produto literário, pois emite um discurso de constante vigilância sobre a fala dos mesmos, sob pena de serem confundidos com vilões e criminosos.

Certamente que essa análise não encerra as possibilidades de discussão desse cor-pus. Outros pesquisadores, com outras concepções teóricas podem atingir nuances dife-rentes de leitura. A reflexão, desse modo, não se encerra e pode ser retomada futuramente.

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FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. Editora Ática. São Paulo. 1993.

GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de português. In: (Org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997. p. 39-46.

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______ . Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2015.

PÊCHEUX, Michel. Língua, linguagens, discurso. In: PIOVEZANI, Carlos; SARGENTINI, Vanice (Orgs.). Legados de Michel Pêcheux: inéditos em análise do discurso. São Paulo:

POSSENTI, Sírio. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 353-392.

______. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1996.

TUCCI, Willian. MORICONI, Renato (ilustrador). A invasão dos erros de português. São Paulo: Scipione. 2005.

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A construção do sujeito protagonista em Chamada de João Anzanello Carrascoza

Bruno Oliveira5

Grenissa Bonvino Stafuzza6

IntroduçãoEste artigo procura investigar o modo como o sujeito protagonista do conto de

Carrascoza é construído. O conto faz parte do livro O volume do silêncio (2017), de Carrascoza. A obra é composta por diversos contos do autor lançados em outros livros e organizados nessa coletânea. O conto em estudo foi primeiramente publicado no livro Dias raros, publicado pela editora Planeta em 2004.

O artigo baseia-se nos escritos teóricos do Círculo de Bakhtin para fundamenta-ção da análise. Procuramos, por meio de leituras, resumos e resenhas aspectos nas obras do Círculo que podem dar base para as análises. Relacionamos o corpus com os seguin-tes conceitos desenvolvidos pelos teóricos russos: sujeito, extopia, palavra, ética e esté-tica (VOLÓCHINOV, 2017; BAKHTIN, 2011; BAKHTIN, 2012). Assim, de antemão, o sujeito protagonista é fixado em seu existir-evento e possui um dever singular enquanto sujeito, que apenas ele pode realizar e esse dever atua diretamente em sua constituição de sujeito. O modo como o autor dispõe as personagens se dá pelo excedente de visão estética que o narrador possui sobre as personagens e sobre o excedente que as persona-gens possuem uns em relação aos outros.

Esta investigação faz parte de uma investigação mais ampla, a saber, uma pes-quisa de mestrado que está em andamento intitulada, O volume da ausência: sujeito, diálogo e morte em João Anzanello Carrascoza. A proposta do trabalho em andamento é a análise da construção dos sujeitos em suas relações com a morte em duas obras de Carrascoza: Caderno de um ausente e Menina escrevendo com o pai presente em Trilogia do Adeus (2017). Baseado nessa investigação mais ampla, a hipótese da pesquisa pau-ta-se na afirmação de que o sujeito protagonista do conto em estudo é construído em suas relações de interação, pelo excedente de visão estética em relação ao narrador e às demais personagens e por suas relações éticas findadas no exterior. Dessa forma, procu-ra-se responder como essa construção se dá.

O desenvolvimento desse trabalho pode auxiliar na produção da dissertação de mestrado visto a semelhança do tema proposto. Diante disso, a pesquisa justifica-se

5 Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão – UFG-RC. Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem – PP-GEL. Grupo de Estudos Discursivos – GEDIS. E-mail: [email protected] Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão – UFG-RC. Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem – PP-GEL. Grupo de Estudos Discursivos – GEDIS. E-mail: [email protected].

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pela contribuição no desenvolvimento de aspectos teóricos e analíticos que poderão ser usados na dissertação. Além disso, esse artigo é pré-requisito para aprovação da matéria Análise de discurso ministrada pelo Profº Drº Guilherme Figueira Borges, assim, outra justificativa é a aprovação na disciplina para o andamento da pesquisa de mestrado.

O trabalho possui como metodologia a revisão bibliográfica nos escritos do Cír-culo de Bakhtin de modo a estabelecer possíveis relações com os conceitos elaborados (citados acima) pelos estudiosos e o corpus em estudo. Além disso, a pesquisa é de na-tureza analítica, descritiva e interpretativa. É descritiva, pois precisamos da descrição do corpus para traçar links com os conceitos teóricos. É analítica, pois trata-se de uma análise da construção do sujeito na obra em estudo de modo a revelar como essa cons-trução é feita. E é interpretativa, posto que a conclusão e construção do todo arquitetô-nico da análise se dá a partir do olhar do pesquisador.

1. Desenvolvimento

1.1.SujeitoemBakhtin:lançandoumolharteórico

A concepção de sujeito para o Círculo está intimamente ligada com a forma como eles desenvolvem a concepção de linguagem. Volóchinov (2017) faz críticas a duas ten-dências que conceituaram a linguagem que estava em vigor até meados do século XX. São elas: Subjetivismo idealista e Objetivismo abstrato.

Em suma, a primeira tendência defende a língua como fruto de atividade indivi-dual, homogênea, isto quer dizer que as leis da criação linguística são leis individuais e psicológicas. Para a segunda, a língua é um sistema estável de formas, sem alterações. Assim, os atos individuais de fala são apenas variações ocasionais dentro do sistema.

Diante dessa exposição, o que é proposto por Volóchinov é a interação discursiva. Ou seja, a realidade da linguagem não é um sistema fechado e homogêneo de formas linguísticas ou um ato psicofisiológico, é um acontecimento social dentro da interação discursiva que se dá através de vários enunciados (VOLÓCHINOV, 2017, p. 218).

Importa a nós essa explicação porque o sujeito é formado pela interação discursi-va e pela interação por meio da linguagem dentro de um espaço e tempo determinados. Ao explicar sobre a natureza do signo, Volóchinov (2017) mostra como o signo adquire significado (leia-se ideologia) somente através da interação entre sujeitos7 socialmente organizados. Segundo o autor, o desenvolvimento desses sujeitos só se tornou possível por conta da palavra, da linguagem. Isto acontece por uma característica que é ineren-te a palavra a sua onipresença social, a palavra participa literalmente de todo tipo de interação entre sujeitos. A palavra é caracterizada, então, por ser capaz “de fixar todas as fases transitórias das mudanças sociais, por mais delicadas e passageiras que sejam.” (VOLOCHINOV, 2017, p. 106). Em relação à obra literária em estudo, isto quer dizer que a construção ou as possíveis mudanças na personagem protagonista revelam-se por meio da palavra.

7 Volóchinov (2017) apresenta o termo consciência individual na obra citada. Entendemos consciência individual e sujeito como sinônimos. Assim a troca de um termo por outro se dá apenas para facilitar a assimilação e leitura por parte do leitor.

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No processo de interação que faz surgir tanto signos quanto constituir outros sujeitos, os sujeitos sofrem ainda mais influência em sua constituição a partir dos tons volitivos-emotivos que o eu estabelece com o outro. O eu cria um peso-acontecimento particular em sua vida relacionado ao outro. Assim, a influência do outro sobre eu em sua constituição é maior conforme o tom volitivo-emotivo do outro for mais amplo para o eu. Para exemplificar, na obra em estudo a personagem protagonista, Renata, relacio-na-se com sua mãe doente, com os pais e com os colegas de escola. Todos esses atuam na constituição dela enquanto sujeito, pois estão socialmente organizados e em situação de interação. Contudo, observamos que o tom volitivo- emotivo da menina em relação aos seus pais é maior, dessa maneira, a sua constituição enquanto sujeito acontece de modo mais acentuado na sua interação familiar. Para complementar, vejamos o que afirma Bakhtin (2012, p. 86),

[...] Se eu penso num objeto, estabeleço com ele uma relação que tem o caráter de um evento em processo. Na sua correlação comigo o objeto é inseparável da sua função no evento. Mas esta função do objeto na unidade do evento real que nos abarca é o seu valor real, afirmado, o seu tom emotivo‐volitivo.

Esse tom volitivo-emotivo exposto pelo Círculo evidencia o caráter singular de cada sujeito. As relações de interação entre os sujeitos são distintas em razão dos valores que cada outro possui sobre o eu. Cada sujeito é participante no existir. Ele ocupa um lugar no existir único, irrepetível, insubstituível e impenetrável da parte de um outro. Por isso,

A singularidade do existir presente é irrevogavelmente obrigatória [...] Este fato do meu não‐álibi no existir [moë ne‐alibi v bytii], que está na base do dever concreto e singular do ato, não é algo que eu aprendo e do qual tenho conhecimento, mas algo que eu reconheço e afirmo de um modo singular e úni-co. [...] cada pessoa ocupa um lugar singular e irrepetível, cada existir é único. (BAKHTIN, 2012, p. 96-97, grifos do autor).

O existir da personagem protagonista no conto em estudo é único e singular por se tratar de relações entre familiares. O conto traz parte da relação familiar entre mãe, pai e filha (além da relação da personagem com os colegas e professor na escola) e essas relações são singulares em razão dos valores emotivos-volitivos dados por cada eu aos outros. A singularidade da personagem também é demonstrada na sua relação interior. Preliminarmente, a forma como a narrativa constrói a protagonista se dá no modo co-mo ela se relaciona com suas angústias.

1.2. A construção do sujeito protagonista em Chamada de Carrascoza

A narrativa começa com as afirmações de que a mãe de Renata, a protagonista, não está bem, enfatizando o “De novo”, isso dá a impressão de que era algo comum para a família. Quando essa situação acontecia, Renata devia faltar a escola e cuidar da mãe. Mas naquele dia o pai dela mandou-a para escola. Um trecho diz “Engoliu o café da manhã sozinha à mesa, pensando nas emoções que em breve viveria.” (CARRASCOZA, 2017, p.143). Algo que esse trecho revela e que fica evidente no restante da narrativa é o

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tom de premunição que tanto a filha quanto o pai sentiam em relação à mãe. Essa parte específica aponta, possivelmente, para as emoções que ela viveria na escola, todavia, isso não queria dizer que essas emoções fossem felizes. Poderia estar prevendo os sentimen-tos que teria sobre sua mãe e o estar ali na escola.

A construção de Renata no conto é manifesta em suas relações. Como pontua Volóchinov (2017), os sujeitos são constituídos em processo de interação. A relação da personagem com sua mãe (e com outros) mostra como a filha vai sendo construída na narrativa.

E, mesmo sendo filha e conhecendo-a bem, Renata não a achou nem mais nem menos abatida, pareceu-lhe até que gozava de boa saúde e nunca sofrera do mal que a consumia. [...] por trás das quais havia o desejo visceral de que o dia lhes premiasse com outras levezas – a maior já era terem despertado para um novo dia, ainda que para a mulher, às vezes, fosse insuportável abrir os olhos e dar com o sol a arranhar as paredes. (CARRASCOZA, 2017, p.144, grifos do autor).

A imagem que Renata teve de sua mãe nessa manhã anterior a sua aula, mostra-nos o caráter contraditório de sua visão em relação a condição da mulher. Para a me-nina, a mãe “gozava de boa saúde e nunca sofrera do mal que a consumia”, entretanto para a mulher, por vezes, era “insuportável abrir os olhos e dar com o sol a arranhar as paredes”. Essa imagem que a filha possui da mãe expressa o desejo da filha de ver sua mãe bem. Diante disso, o outro que se constitui para Renata, de modo a atuar com maior eficácia em sua construção, não é em si, o outro imediato como a mãe, o pai e os colegas de classe, mas aqueles aspectos que são vivenciados de modo interno, a partir da pressuposição da imagem que os outros têm sobre o eu. Esses aspectos são evidentes, tanto na imagem estética construída pelo autor sobre a personagem, revelado na narra-ção, quanto pela imagem estética que o pai e os colegas possuem sobre a protagonista.

O pai a esperava na sala, vestido como se para um compromisso especial e, ao ver a menina colocar a mochila às costas, entregou-lhe a lancheira, dizendo, fiz sanduíche de queijo e suco de laranja. Mas Renata demorou para pegá-la, espiando pela fresta da porta a mãe que, repentinamente, empalidecera, como se aguardasse apenas ficar a sós para desabar, e então ele emendou, Não é o que você mais gosta?, o que a filha respondeu apenas, É. (CARRASCOZA, 2017, p.145, grifos nossos)

O primeiro grifo salienta o caráter de premonição do conto. O compromisso es-pecial do pai, provavelmente, era a morte da esposa que aconteceria poucas horas de-pois. Essa imagem do pai é exposta pelo narrador e não dá, diretamente, a percepção dessas roupas para a filha, contudo, podemos estabelecer essa leitura. No segundo grifo que fizemos, a menina percebe a real condição de sua mãe, ela ficou pálida e desabou. Essa foi a última imagem que a menina teve da mãe. Essas percepções (a roupa do pai e o desabar da mãe) servem, dentro da construção da narrativa, para construir a angústia e os aspectos que são (ou serão) vivenciados por Renata no decorrer do conto.

Na escola, Renata possui a imagem da “aluna que cuja a mãe vivia de cama”. Sem-pre que chegava na escola

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Alguém sempre queria saber como andava sua mãe, e ela se aborrecia da curiosidade alheia. Às vezes inventava que faltara à escola, por outros motivos [...] exercitando o talento para dissimular [...] enquanto na memória pendia a ordem estranha do pai, o dinheiro que ele lhe dera, o sorriso da mãe, Vai, filha, vai. E, repentinamente, sentiu remorso por estar ali, tão feliz. (CARRASCO-ZA, 2017, p.146, grifos nossos).

O discurso interno de Renata sobre a condição de sua mãe e a sua situação de felicidade por estar na escola sinaliza o conflito que ela vive e que a constitui. A lingua-gem usada para construir a narrativa vai demonstrando o embate entre a felicidade por estar ali e o remorso por estar longe da mãe enquanto ela está doente. Em sua memória, há aspectos que foram vivenciados externamente (“a ordem estranha do pai, o dinheiro que ele lhe dera, o sorriso da mãe”) e que agora, atuam internamente. Os momentos vividos por ela, agora a fazem refletir sobre a condição da mãe e o pedido do pai de ir para escola. Assim,

Esse ou aquele vivenciamento interior e o todo da vida interior podem ser experimentados concretamente – percebidos internamente – seja na categoria do eu-para-mim, seja na categoria do outro-para-mim, isto é, como meu viven-ciamento ou como vivenciamento desse outro indivíduo único e determinado. (BAKTHIN, 2011, p. 22, grifos do autor).

Diante disso, o vivenciamento externo age como um outro-para-mim para o eu do sujeito protagonista do conto em estudo. O vivenciamento no existir nas situações de interação de Renata e os sujeitos que a cerca confluem na constituição desse discur-so interior que reflete em seus discursos e ações exteriormente, logo, atuando em sua construção enquanto sujeito.

Essa realidade de conflito interior fica evidente também quando ao início da aula o seu foco se distancia dali e ela “era incapaz de lidar com as dúvidas e questionamentos que fervilhavam a mente.”; e depois de sua amiga chamar a atenção para que ela fizesse as tarefas passadas pela professora é dito “Mas ela não se animou, manteve-se inerte, agindo contra a sua felicidade, por que se aquela era a sua realidade momentânea, ou ao mesmos a que desejava, algo a impedia de usufruir de sua plenitude.” (CARRASCOZA, 2017, p. 146-147).

No intervalo da aula, Renata vivenciava o momento de forma mecânica como se não estivesse ali, respondendo de modo automático às perguntas feitas sobre a situação da mãe. Em certo momento, ela anseia por estar sozinha e corre “ao banheiro para se livrar de novas perguntas, trancou-se e sentou-se no vaso, a perguntar-se, confusa, Que será que eu tenho?” (CARRASCOZA, 2017, p. 147-148). Esses trechos da narrativa vão dando corpo à questão do discurso interior que é construído por meio do conflito entre o eu da personagem e a angústia que se faz como o seu outro, angústia essa causada por uma sensação de que há algo de ruim acontecendo e que ela não sabe de onde vem. Segundo Bakhtin (2011, p. 13), para conseguir vivenciar a vida de fora, devemos nos colocar à margem de nós mesmos e

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Só sob essa condição ele pode completar a sim mesmo, até atingir o todo, com valores que a partir da própria vida são transgredientes a ela e lhe dão acaba-mento; ele deve tornar-se outro em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro; é verdade que até na vida procedemos assim a torto e a direito, avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência.

Os três verbos que antecedem a pergunta que Renata faz a si mesmo ressalta o deslocamento que ela faz de si para uma imagem transgrediente a si mesma (“trancou-se e sentou-se no vaso, a perguntar-se, confusa, Que será que eu tenho?”). Apesar de que essa ação foi feita por ela, o “perguntar-se” instaura um novo outro que questiona a si mesmo, estabelecendo uma relação de outro-para-mim com a imagem estética criada por ela para se indagar. A pergunta feita traz consigo toda a situação enunciativa que vinha sendo construído até aquele instante. Tanto a última visão que teve da mãe, o contato com o pai antes da aula e seu relacionamento com a aula e com os colegas de-sempenham um papel até a chegada dessa indagação (“Que será que eu tenho?”).

O trecho seguinte faz a narrativa caminhar para o fim.

De volta à aula, entregou-se com desvelo às tarefas, tentando afastar-se de sim mesma, receosa de compreender o que verdadeiramente se passava consigo, de descobrir outro significado para as surpresas daquele dia. Esforçou-se, mas sentia-se avoada, pensando a todo instante na mãe, como pensava na escola, quando ficava em casa cuidado dela. (CARRASCOZA, 2017, p. 148).

Então, uma das funcionárias da escola foi a sala e falou algumas palavras a profes-sora. Esta chamou a Renata dizendo para levar suas coisas. A professora deu um abraço forte na menina que a assustou. Enquanto ia a diretoria, a funcionária da escola colocou o braço sobre os ombros de Renata, como uma forma de consolo. A menina “grudou-se ao silêncio com todas as suas forças, embora lhe queimasse nos lábios uma pergun-ta que se negava a fazer.” (CARRASCOZA, 2017, p. 149). Encontrou o pai com olhos úmidos sendo consolado pelo diretor que a olhou com ternura. Esse chamamento feito da diretoria-funcionária-professora para que Renata se dirigisse a diretoria pode ser o ponto que dá origem ao título - Chamada. Entretanto, há outra interpretação possível. Dentro desse conflito interno que estamos estudando por meio da narrativa, carregado pelo tom de premonição, observamos algo como que um chamado, como se Renata de algum modo soubesse o que viria a acontecer. Quando ela enuncia para si “Que será que eu tenho?”, e quando queima em seus lábios “uma pergunta que se negava a fazer”. Esses pontos salientam um chamado de um eu interior para a realidade que vivenciaria por parte de sua mãe, ou seja, o luto.

Em seguida, temos o trecho que finaliza o conto.

O pai agradeceu ao diretor a gentileza, ergueu a cabeça, despediu-se. Na cal-çada, pegou subitamente a mão de Renata. Há tempos ela não andava daquele jeito com ele, e deixou-se levar, obediente, como a criança que já não era. Atra-vessaram a rua ensolarada e seguiram pela avenida principal, silenciosos, à

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sombra das grandes árvores. E, antes que o pai lhe dissesse o que tinha a dizer, ela compreendeu tudo (CARRASCOZA, 2017, p. 149).

Até esse momento, mesmo que deduzido por Renata, a notícia da morte da mãe não é dita explicitamente. Isso é algo que é inferido pelo leitor. Diante disso, conforme Bakhtin (2011, p.96),

O conjunto da minha vida não tem significação no contexto axiológico de minha vida. Os acontecimentos do meu nascimento, da minha permanência axiológica no mundo e, por último, de minha morte não se realizam em mim nem para mim. O peso emocional de minha vida em seu conjunto não existe para mim mesmo.

A minha vida-morte só pode ser vivenciada pelo outro. O outro que se faz em Renata é sua mãe e o peso-acontecimento da morte atua diretamente em sua constitui-ção. A premonição voltada para a morte da mãe, que é explicitada no conto, opera no surgimento do embate em estar em um lugar que gostava, a escola, e saber da condição da mãe diante da última visão que teve dela, pálida e desabada.

A morte da mãe coloca um fim para a própria mãe, mas não um fim para a filha. Segundo Bakhtin (2011), enquanto vivo pessoas com tons volitivos-emotivos para mim nascem, passam e morrem e o acontecimento da vida e morte delas pode se tornar o episódio mais importante de minha vida, que lhe determina a existência. Logo, o viven-ciamento da vida-morte do outro é feito pelo eu através da imagem estética que possuí-mos desse outro. Esse outro não possui essa imagem. Por esta razão, a sua vida-morte é singular ao eu. Renata vivencia a vida-morte de sua mãe e a interação com a vida e morte dela opera diretamente em sua construção de sujeito.

ConsideraçõesfinaisChamada é um conto de autoria de João Anzanello Carrascoza presente em O

volume do silêncio (2017) que tematiza a relação de Renata com seus conflitos internos pela condição da mãe. Intentamos investigar a construção do sujeito protagonista den-tro do todo arquitetônico do conto em estudo. Percebemos que essa construção se dá através dos discursos internos da personagem que agem em forma de conflitos, ora evi-denciando a felicidade por estar na escola, ora angustiada, posto que a última imagem que teve da mãe foi pálida e desabada.

As relações de interação exteriores no corpus de análise, sobretudo a relação com os colegas e com o pai, não atuam de modo direto na constituição da personagem pro-tagonista. Essas interações atuam de forma indireta para a construção do seu discurso interno que evidencia os conflitos. Já o vivenciamento interativo com a mãe age dire-tamente em sua constituição, pois o surgimento dos conflitos internos é salientado em função da condição de sua mãe.

O excedente de visão estética que os colegas de escola possuem de Renata (“a alu-na que cuja a mãe vivia de cama”) a constrói enquanto sujeito no conto. Contudo, essa é a imagem que ela pressupõe que os colegas têm dela, apesar de ser dito pela voz do nar-

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rador. Não obstante ser essa sua realidade, ela procura afastar a curiosidade alheia (“ela se aborrecia com a curiosidade alheia”). Dessa maneira, o excedente de visão estética que o narrador faz-nos conhecer de que Renata pressupõem de seus colegas, represen-tam parte da constituição da personagem protagonista do conto.

Portanto, a construção da personagem protagonista em Chamada de Carrascoza se dá por meio dos discursos interiores permeados pelos conflitos da personagem. A relação com a mãe e a possibilidade de sua morte agem diretamente nessa construção.

Referências

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Para uma filosofia do ato responsável. 2ª ed., São Carlos: Pedro e João Editores, 2012.

______. (1979). Estética da criação verbal. 6.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

CARRASCOZA, João Anzanello. Trilogia do Adeus. São Paulo: Alfaguara, 2017.

VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: editora 34, 2017.

Referência do corpus

CARRASCOZA, João Anzanello. Chamada. In: ______. O volume do silêncio. São Paulo: SESI-SP, 2017, p. 143-149.

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Traçandooscontornoscientíficosda constituição identitária do sujeitodialógico-ideológiconatrilogia Divergente

Cairo Joseph dos Santos Ferreira 8

Grenissa Bonvino Stafuzza9

IntroduçãoO presente artigo objetiva explanar sobre o percurso teórico-metodológico do

Projeto de Pesquisa denominado A constituição identitária do sujeito dialógico-ideoló-gico na trilogia Divergente de Veronica Roth, da Linha de Pesquisa 1: Discurso, Sujeito e Sociedade, apresentado no primeiro semestre de 2018 ao Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Estudos da Linguagem, da Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística, da Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão.

A pesquisa faz parte de um projeto mais amplo, coordenado pela Profa. Dra. Grenissa Bonvino Stafuzza no Grupo de Estudos Discursivos – GEDIS, que estuda as potencialidades teóricas do Círculo de Bakhtin para análise de discursos verbovocovi-suais, sendo o trabalho direcionado para a noção de enunciado. A temática abordada enfatiza a constituição identitária do sujeito Beatrice Prior (autodenominada Tris), per-sonagem protagonista da série Divergente, de Veronica Roth, com base na concepção dialógica da filosofia da linguagem do Círculo.

Assim, o corpus a ser descrito, analisado e interpretado, refere-se aos livros da tri-logia Divergente, conhecidos nacionalmente como: Divergente – uma escolha pode te transformar (2012), doravante denominado Divergente; Insurgente – uma escolha pode te destruir (2013), doravante designado Insurgente; e, Convergente – uma escolha vai te definir (2014), doravante intitulado Convergente, sendo seu recorte os enunciados que corroborarão com a temática do estudo.

A descrição, análise e interpretação do referido corpus parte da seguinte proble-matização: como se dá a constituição identitária do sujeito dialógico Beatrice/Tris na sociedade da futurista cidade de Chicago?

O que se hipotetiza na pesquisa é que a identidade do sujeito Beatrice/Tris é cons-tituída socialmente, diante da interação discursiva na relação com o outro, portanto,

8 Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão – UFG/RC, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística, Pro-grama de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos da Linguagem, Grupo de Estudos Discursivos (GEDIS). Contato: [email protected] Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão – UFG/RC, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos da Linguagem, Grupo de Estudos Discursivos (GEDIS). Contato: [email protected].

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trata- se de um sujeito dialógico construído na e pela linguagem dos romances. Ressal-tando que o sujeito é formado de fora para dentro, e não permanece o mesmo porque a sociedade na qual ele está inserido o transforma.

A discussão do tema proposto fundamenta-se nos pressupostos teóricos do Cír-culo russo, particularmente, nas obras Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (2017), de Valentin Voló-chinov, Estética da criação verbal (2011), de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin e Estrutura do enunciado (s/a), de V. N. Voloshinov, entre outras.

O trabalho tem por finalidade refletir sobre a constituição identitária do sujeito dialógico Beatrice/Tris em Divergente. Além de descrever como se dá esta constituição pelos enunciados recortados que compõem o corpus, analisar a formação do sujeito a partir da relação discursiva com outros personagens e interpretar os enunciados consi-derando a identidade do sujeito na trilogia Divergente, bem como a produção de sen-tidos. Assim, para alcançar os objetivos acima expostos, esta pesquisa apresenta-se no e pelo tripé metodológico da descrição-análise-interpretação de enunciados que cons-tituem o corpus.

Este artigo está estruturado em três seções. A primeira seção denominada de De-senvolvimento, sendo que esta se subdivide em duas seções, a saber: Justificativa da pes-quisa; e, Aporte teórico. A segunda seção intitulada de Metodologia. E, a última seção designada de Discussão e resultados.

1. DesenvolvimentoNesta seção será apresentada a justificativa do estudo em três âmbitos, a saber:

acadêmico, filosófico e social. E, posteriormente, será exposto o aporte teórico.

1.1.Justificativadapesquisa

Pelo viés acadêmico a pesquisa se efetiva na medida em que propõe a estudar a constituição identitária do sujeito Beatrice/Tris em Divergente, tendo em vista que os estudos de discursos de vertente bakhtiniana pensam o enunciado e sua constituição dialógica no funcionamento da linguagem a partir do gênero discursivo, aqui, o ro-mance. Assim, entende- se que o sujeito é construído socialmente na interação com os outros personagens da trama.

Na perspectiva filosófica, particularmente, por trabalhar com a filosofia da lin-guagem, a justificativa se evidencia pelo fato de que esta área de investigação não se restringe, apenas e tão somente, a análise da inter-relação entre o pensamento e a lin-guagem, porém, preocupa- se com “o papel constitutivo da linguagem, da palavra e da fala às diferentes formas de discurso, à cognição e às estruturas da consciência e do conhecimento” (STIÉPIN E SEMÍGUIN, 2010, p. 238, tradução e grifos de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova, apud GRILLO, 2017, p. 12). Assim, percebe-se que o campo de pesquisa da filosofia da linguagem é de suma importância para e no estudo, pois, as discussões filosóficas garantem um entendimento mais amplo e consistente dos funda-mentos da natureza e das finalidades de análise da linguagem.

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E, atentando-se para a Educação Básica, o estudo justifica-se socialmente por contribuir na inserção de crianças e jovens no mundo da leitura de obras literárias não canonizadas, bem como na formação de leitores autônomos e críticos quanto aos as-suntos identitários, sociais, ideológicos, éticos, políticos, econômicos, culturais, dentre outros. Além disso, mostrar para eles outras óticas de leituras de obras literárias, como: a construção do sujeito se dá na e pela linguagem, ainda que ficcional, em uma dada situação de interação discursiva.

1.2.Aporteteórico

Para situar o tema desta pesquisa nos estudos de linguagem e de discursos, faz-se necessário tratar acerca da prosa romanesca e do enunciado.

A prosa romanesca tem um grande percurso histórico desde a oralidade até a atualidade. Sendo que até o século XX não há inscrições de uma estilística própria que favorecia o gênero, pois, conforme Bakhtin (2010, p. 72), “[...] O discurso da prosa lite-rária era entendido como um discurso poético no sentido estrito e a ele eram aplicadas indiscriminadamente as categorias da estilística tradicional [...]”.

Assim, todo e qualquer discurso considerado literário era sinônimo de poético. E, se basear num discurso poético não representa equívocos, ao contrário, é um tipo de es-tilística relevante, que trabalha com questões gerais e universais. Entretanto, considerar um tipo romanesco só pelo viés poético é descaracterizá-lo com as suas especificações.

Vale ressaltar que o romance faz uso de um expediente muito pertinente para o discurso, a saber, a linguagem e as palavras, sempre orientadas na literatura pela estéti-ca. Logo, ao escrever sobre algum tema específico no romance, o autor fatalmente está arrastando o discurso de outros para o interior do texto, uma vez que a linguagem não é só o ato de se comunicar, mas, vai além disso, serve para estabelecer relações com as pessoas no meio social, e isso não passa despercebido na prosa romanesca (BAKHTIN, 2010, p. 86).

Na trilogia Divergente de Veronica Roth, observa-se claramente a relação intrín-seca e dinâmica da linguagem com o meio social, no qual a personagem protagonista, Beatrice/Tris, está inserida. Nesse sentido, concorda-se quando Voloshinov (s/a) expli-ca que:

[...] a linguagem não é alguma coisa de imóvel, fornecida de uma vez por to-das, e rigorosamente determinada em suas “regras” e em suas “exceções” gra-maticais. Ela é um produto da vida social, a qual não é fixa e nem petrificada: a linguagem encontra-se em um perpétuo devir e seu desenvolvimento segue a evolução da vida social. A progressão da linguagem se concretiza na relação social de comunicação que cada homem mantém com seus semelhantes – re-lação que não existe apenas no nível de produção, mas também no nível do discurso. É na comunicação verbal, como um dos elementos do vasto conjunto formado pelas relações de comunicação social, que se elaboram os diferentes tipos de enunciados, correspondendo, cada um deles, a um diferente tipo de comunicação social (VOLOSHINOV, s/a, p. 1).

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Nota-se que toda comunicação, estabelecida nas relações sociais, produz um tipo de enunciado. Como pontua Voloshinov (s/a, p. 3), o enunciado “[...] considerado como unidade de comunicação e totalidade semântica, se constitui e se completa exatamente numa interação verbal determinada e engendrada por uma certa relação de comuni-cação social”. E, ele acrescenta que: “[...] cada um dos tipos de comunicação social [...] organiza, constrói e completa, de modo específico, a forma gramatical e estilística do enunciado, assim como a estrutura de onde ela se destaca. Nós daremos o nome de gênero a esta estrutura” (VOLOSHINOV, s/a, p. 3). No caso da pesquisa, os enunciados recortados para formar o corpus de análise estão estruturados no gênero discursivo romance.

2. MetodologiaPara a realização do estudo faz-se inicialmente a leitura dos romances supracita-

dos, bem como o levantamento bibliográfico na área de conhecimento do tema acima mencionado. Posteriormente, seleciona-se os enunciados do corpus da pesquisa, que serão descritos, analisados e interpretados sob a ótica teórica do Círculo russo, logo, sob a perspectiva do cotejamento de enunciados.

A metodologia de trabalho utilizada é descritivo-analítica de caráter interpreta-tivo da constituição identitária do sujeito dialógico Beatrice/Tris na série Divergente. Portanto, é descritiva, uma vez que descreve como ocorre a constituição identitária do sujeito a partir dos enunciados recortados para formar o corpus. É analítica, tendo em vista que relaciona as bases teóricas do Círculo que refletem sobre o sujeito. E, ainda, é interpretativa, porque situa o olhar de pesquisador no corpus, considerando a constitui-ção identitária do sujeito na trilogia.

3.DiscussõeseresultadosA seguir, parte-se para a descrição, a análise e a interpretação de dois enunciados

selecionados e recortados de Divergente – uma escolha pode te transformar (2012), a fim de compreender como acontece a construção identitária do sujeito dialógico Beatrice.

Assim, o primeiro enunciado a ser analisado, constante no Capítulo Três do livro, corresponde ao diálogo entre Tori, aplicadora do teste de aptidão, e Beatrice, acerca do resultado inconclusivo do referido teste.

— Por um lado, você se atirou sobre o cachorro e não permitiu que ele atacas-se a menininha, o que caracteriza-se como reação da Abnegação... mas, por outro, quando o homem lhe falou que a verdade o salvaria, você continuou recusando-se a revelá-la. – Ela suspira. – Não fugir do cachorro sugere a Au-dácia, mas pegar a faca também, e não foi isso que você fez.

Ela limpa a garganta e continua:

— Sua resposta inteligente ao cachorro sugere um forte alinhamento com a Erudição. Eu não tenho a menor ideia de como interpretar a sua indecisão no primeiro estágio, mas...

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— Espere – interrompo-a. – Então você não tem nenhuma ideia de qual é a minha aptidão?

— Sim e não. Minha conclusão explica ela – é que você apresenta aptidão para a Abnegação, a Audácia e a Erudição. Pessoas que apresentam resultados assim são... – Ela olha para trás, como se esperasse ser surpreendida por alguém. – ...são chamadas de... Divergentes. [...]

— Beatrice – diz ela –, você não pode compartilhar essa informação com nin-guém, sob quaisquer circunstâncias. Isso é muito importante.

[...] A Divergência é algo extremamente perigoso. Você entendeu bem? [...]

Agora a escolha é minha, independente do resultado do teste. Abnegação. Au-dácia. Erudição.

Divergente (ROTH, 2012, p. 27-29).

Aos dezesseis anos, Beatrice e os demais jovens são submetidos ao teste de apti-dão que lhe informará qual das cinco facções (Erudição, Franqueza, Audácia, Amizade e Abnegação) é a mais propicia para a sua natureza humana. O teste é realizado com o uso do soro de simulação e dos maquinários capazes de entrar na mente da pessoa e observar as escolhas que ela fará em situações hipotéticas. Conforme as atitudes pra-ticadas, lhe é designada a qual facção o indivíduo realmente pertence, pois, espera-se que ele tenha tão somente um dos cinco atributos dominantes naquela sociedade, caso contrário, ele representará um perigo.

Pelo primeiro enunciado, percebe-se que não será fácil para Beatrice encontrar o grupo a que pertence, pois, ela possui aptidões de três facções – Abnegação, Audácia e Erudição – e que, particularmente, não cabe em nenhuma delas, sendo denominada por Tori, de forma bem cuidadosa e velada, como Divergente. A explicação de Tori quanto ao resultado inconclusivo do teste e a advertência de “[...] não compartilhar essa informação com ninguém, sob quaisquer circunstâncias [...]” (ROTH, 2012, p. 28), pelo fato de que “[...] A divergência é algo extremamente perigoso [...]” (ROTH, 2012, p. 28), deixou Beatrice ainda mais confusa e com muitos questionamentos a respeito da escolha que deverá fazer na Cerimônia de Escolha. Contudo, independentemente do resultado do teste, e ainda, não entendendo o real significado da palavra divergente pronunciada por Tori, a escolha que Beatrice fará conhecida na Cerimônia de Escolha, caberá exclusivamente a ela.

Para o Círculo russo, a forma mais natural da linguagem é o diálogo. Por ele ocor-re a troca de palavras entre o eu e os outros, vice-versa. Sendo que,

[...] a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte. Toda pala-vra serve de expressão ao “um” em relação ao “outro”. Na palavra, eu dou forma

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a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da minha coletividade. A palavra é uma ponte que liga o eu ao outro. Ela apoia uma das extremidades em mim e a outra no interlocutor. A palavra é o território co-mum entre o falante e o interlocutor (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205).

Dessa maneira, vê-se que a interação discursiva é uma realidade primordial da língua. Ressaltando que a interação não se reduz tão somente ao diálogo (face a face), mas engloba toda espécie de comunicação. Nesse sentido, entende-se que Beatrice se constrói como sujeito dialógico a partir da relação social que estabelece com os outros personagens do romance. No caso do enunciado em análise, é a partir da interação com Tori, que Beatrice é informada de que não possui apenas uma aptidão dominante, para inserir-se a uma determinada facção, mas três. Sendo que, dentro de uma situação hi-potética, ela pode utilizá-las simultaneamente. Além disso, é advertida que esta façanha, conhecida como divergência, não é comum na sociedade na qual ela está inserida, pois, representa uma ameaça. E, é aconselhada a esconder o seu diferencial e a tentar adaptar-se a uma das facções.

Vale frisar que, para Bakhtin (apud YAGUELLO, 2014, p. 14-17) a palavra é ideo-lógica por natureza, aceita juízos de valor e corresponde a uma luta de classes, ou seja, é uma arena onde se enfrentam os valores sociais contraditórios. E, o referido autor (BAKHTIN, 2000, p. 293) complementa que a palavra só adquire sentidos quando está inserida numa situação social, que se concretiza com os usos da língua por meio dos enunciados, escritos ou orais. O que faz da interação um evento dinâmico, no qual as posições axiológicas disputam entre si. Assim, a interação corresponde ao diálogo inin-terrupto que resulta desse confronto e que constitui a natureza da linguagem. Isso fica evidente, a partir do momento em que a personagem Beatrice, toma ciência de que é uma divergente, pois, dali para frente, no desenrolar da trama, para ela, viver é decidir e transformar-se constantemente, é lutar para se encaixar em um dos sistemas de valores impostos pela futurista sociedade de Chicago.

Agora, atentando-se para a palavra divergente que compõe o enunciado, e, de que forma tal palavra, interfere crucialmente na construção da personagem Beatrice como sujeito dialógico, corrobora-se com o entendimento de Volóchinov (2017), quando ele afirma que:

[...] a palavra participa literalmente de toda interação e de todo contato entre as pessoas: da colaboração no trabalho, da comunicação ideológica, dos con-tatos eventuais cotidianos, das relações políticas etc. Na palavra se realizam os inúmeros fios ideológicos que penetram todas as áreas de comunicação social. É bastante óbvio que a palavra será o indicador mais sensível das mudanças so-ciais, sendo que isso ocorre lá onde essas mudanças ainda estão se formando, onde elas ainda não se constituíram em sistemas ideológicos organizados. A palavra é o meio em que ocorrem as lentas acumulações quantitativas daquelas mudanças que ainda não tiveram tempo de alcançar uma nova qualidade ide-ológica nem de gerar uma nova forma ideológica acabada. A palavra é capaz de fixar todas as fases transitórias das mudanças sociais, por mais delicadas e passageiras que elas sejam. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 106).

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Daí fica clara a capacidade que a palavra divergente possui para retratar as mu-danças mais profundas, sensíveis e personalíssimas em um indivíduo, no caso Beatrice, bem como o perigo que tais transformações representam para ela e para aqueles que a rodeiam. E, como uma simples palavra, formada por incontáveis fios ideológicos, atinge indiscriminadamente todas as relações sociais.

O segundo enunciado a ser analisado, constante no Capítulo Treze do romance, refere- se à seguinte afirmação de Tris:

Sinto um formigamento de medo dentro de mim, no meu peito, na minha cabeça e nas minhas mãos. Sinto como se a palavra DIVERGENTE estivesse tatuada na minha testa, e que, se ele olhasse para mim por tempo o bastante, pudesse vê-la. Mas ele apenas tira a mão do meu ombro e continua andando (ROTH, 2012, p. 177).

Para treinar a mira, Eric explica que cada iniciando deverá lançar três facas no alvo, conforme a técnica correta demonstrada por Quatro. Entretanto, Al, um dos ini-ciandos, não consegue praticar o exercício com êxito. Então, numa atitude cruel, Eric manda-o buscar as facas que estão caídas no chão enquanto os outros iniciandos conti-nuam lançando-as no alvo. Porém, Al desobedece ao comando com medo de ser atingi-do. Daí, como punição, Eric irado, ordena-o para frente do alvo e determina que Quatro atire as facas no rapaz. Nesse momento, numa atitude desafiadora, inteligente (Eru-dição), altruísta (Abnegação) e corajosa (Audácia), que caracteriza a divergência, Tris argumenta com Eric que “a intimidação é um sinal de covardia” (ROTH, 2012, p. 174), assume o lugar de Al em frente o alvo e recebe a punição com o risco de ser atingida por uma das facas.

O segundo enunciado, narrado em primeira pessoa por Tris, como um desabafo mental, mostra a atitude impetuosa dela perante aquela situação, chama a atenção de Eric, que se aproxima, segura-a pelo ombro e olha-a como se estivesse tomando posse do que ela fez, lendo o escrito “DIVERGENTE” tatuado na testa dela e reconhecendo-a co-mo tal. Entretanto, para alívio dela, Eric não conseguiu enxergá-la como uma divergente.

Para Bakhtin (2011, p. 272), “[...] Cada enunciado é um elo na corrente comple-xamente organizada de outros enunciados”. E, ele ainda ensina que,

[...] Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; de-pois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa compreensão). [...] (BAKHTIN, 2011, p. 275).

Nesse sentido, os enunciados trabalham como unidades pertencentes à comu-nicação de forma contextualizada, tendo em vista que a língua possui caráter tanto social e responsivo como também dialógico. Assim, eles existem em resposta a outros, se formam a partir de outros, além de dialogarem entre si, possibilitando o real funcio-namento da linguagem.

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Isso é evidente na relação dialógica estabelecida entre o primeiro enunciado, que retrata Beatrice tomando ciência de que é uma divergente devido ao resultado incon-cluso do teste de aptidão, dentro de uma situação hipotética, e o segundo enunciado, que mostra Tris agindo como uma divergente, dentro de uma situação real no estágio de combate na Audácia, favorecendo a compreensão da constituição da personagem Beatrice/Tris enquanto sujeito dialógico.

Portanto, observa-se que o segundo enunciado existe e se constitui em resposta aos enunciados que o precederam, neste caso, especificamente, o primeiro enunciado, bem como dialoga com este e dialogará com aqueles que ainda serão analisados.

Como já foi dito anteriormente, a palavra divergente interfere incisivamente na construção da personagem Beatrice como sujeito dialógico. O teórico Ponzio (2012, p. 120) esclarece que: “Verbalmente o ‘signo’ é uma enunciação completa, não isolada do contexto social e nem do terreno ideológico ao qual pertence desde o princípio; é uma enunciação que responde a um diálogo, parte constitutiva de uma relação de interação social, é texto vivo [...]”.

Assim, no segundo enunciado, a palavra divergente, que o compõe, pode ser con-siderada como um signo verbal com enunciação completa, pois, é parte constitutiva da relação de interação social do sujeito Tris com os demais personagens do romance. Além disso, Bakhtin (2014, p. 36) entende que o signo verbal é um signo ideológico por excelência. E, como signo “reflete e refrata a realidade em transformação” (BAKHTIN, 2014, p. 42). Sendo que, “O ser refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas tam-bém se refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O con-fronto de interesses sociais nos limites de um só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes” (BAKHTIN, 2014, p. 47).

Dessa forma, após praticar a atitude desafiadora, inteligente (Erudição), altruísta (Abnegação) e corajosa (Audácia), que caracteriza a divergência, a própria Tris se vê re-fletida e refratada, como se a palavra “DIVERGENTE” estivesse tatuada na testa, sendo que a transformação dela como sujeito dialógico estivesse evidente aos olhos de todos, independentemente de se tratar de uma situação hipotética ou real.

Vale destacar que, para Volóchinov (2017, p. 216, grifo do autor) “O centro or-ganizador de qualquer enunciado, de qualquer expressão, não está no interior, mas no exterior: no meio social que circunda o indivíduo [...]”. E, ainda, evidencia que:

[...] a personalidade falante, tomada por assim dizer de dentro, é inteiramente um produto das inter-relações sociais. Seu território social não é apenas a ex-pressão exterior, mas também a vivência interior. Consequentemente, todo o caminho entre a vivência interior (aquilo que é “expresso”) e a sua objetivação exterior (o “enunciado”) percorre o território social. Já quando a vivência é atualizada em um enunciado finalizado, a sua orientação social adquire uma direção para a situação social mais próxima da fala e, acima de tudo, aos inter-locutores concretos (VOLÓCHINOV, 2017, p. 211).

Nesse sentido, compreende-se que o centro organizador do segundo enunciado, pode ser visualizado tanto pela expressão exterior, atitude praticada por Tris no exercí-cio do estágio de combate na Audácia, quanto pela expressão interior (atividade men-

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tal), quando ela expressa por meio de pensamentos o sentimento intrínseco de medo (“sinto um formigamento de medo dentro de mim, no meu peito, na minha cabeça e nas minhas mãos”), pelo fato de ser descoberta por Eric como uma divergente.

ConsideraçõesfinaisEm suma, conforme se vê da descrição, análise e interpretação dos dois enuncia-

dos selecionados e recortados de Divergente – uma escolha pode te transformar (2012), é por meio do diálogo com os demais personagens que Beatrice/Tris se constitui como sujeito dialógico e marca a assinatura dela na existência daquele contexto social fic-cional. E, é na palavra divergente como signo verbal e ideológico por excelência, que o confronto de valores ocorre e se evidencia na transformação, transmutação e trans-grediência de Beatrice/Tris como sujeito dialógico. Ressaltando que o sujeito não pode ser apagado dentro da coletividade na qual está inserido, uma vez que, antes da coleti-vidade, há o agir singular de cada um. E, da mesma forma, o sujeito também não pode apagar o agir coletivo, pois, é na relação com o outro que ele é constituído e constitui.

Referências

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_______. A estilística contemporânea e o romance. In: _______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução do russo por Aurora Fornoni Bernardini et al. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 72-84.

_______. O discurso na poesia e o discurso no romance. In: _______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução do russo por Aurora Fornoni Bernardini et al. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 85-106.

GRILLO, Sheila. Marxismo e filosofia da linguagem: uma resposta à ciência da linguagem do século XIX e início do XX. In: VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 1.ed. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-79.

PONZIO, Augusto. Signo e ideologia. In: _______. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coordenação de tradução de Valdemir Miotello. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2012, p. 109-159.

VOLÓCHINOV, Valentin. O problema da relação entre a base e a superestrutura. In: _______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 1.ed. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 103-114.

_______. A interação discursiva. In: _______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 1.ed. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 201-226.

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VOLOSHINOV, N. V. Estrutura do Enunciado. Tradução de Ana Vaz, para fins didáticos. p. 1-20. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/ 0B44frNraxYWkeXF5UWR1ZTZqRVk/view?pref=2&pli=1>. Acesso em: 2 jul. 2018.

YAGUELLO, Marina. Introdução. In: BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch (V. N. VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 16.ed. São Paulo: Hucitec, 2014, p. 11-19.

Referências do corpus

ROTH, Veronica. Divergente – uma escolha pode te transformar. Tradução de Lucas Peterson. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2012. 502 p.

_______. Insurgente – uma escolha pode te destruir. Tradução de Lucas Peterson. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2013. 511 p.

_______. Convergente – uma escolha vai te definir. Tradução de Lucas Peterson. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2014. 526 p.

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Eraumavez-duasoutrês:ConstruindoheróisevilõespormeioderelaçõesdialógicasnasérieOnce upon a time

Thainá Pereira Gonçalves10

IntroduçãoTrata-se de uma pesquisa descritiva, interpretativa e analítica das relações dialó-

gicas que se instauram por meio da interação entre os sujeitos personagens na enun-ciação Once Upon a Time (2011). Ao fundamentar o presente estudo na perspectiva dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin, investigaremos de que modo as relações dialógicas são construídas na série em foco e como refletem e refratam a construção do sujeito personagem na enunciação11. Analisaremos as interações entre as personagens Regina Mills (Rainha Má) e Mr. Gold (Rumplestilskin12), observando o modo como acontece, por exemplo, a relação bem e mal, uma vez que, na enunciação em estudo não basta analisar os sujeitos com base nos estereótipos dos contos de fada aos quais a série possui referência (mocinhos, princesas, heróis, vilões).

Isso significa dizer que, aqui, vida e arte entram em cena juntamente com o su-jeito dialógico-ideológico que transforma os outros sujeitos personagens e por eles é transformado na interação do grande diálogo que constitui Once Upon a Time. Deste modo, objetivamos, neste trabalho, investigar a forma como as relações dialógicas das personagens em análise, contribuem para a construção do seu eu, como também, atra-vés do outro, dos signos ideológicos da sociedade em que vivem. Ao entendermos que um outro discurso é produzido a partir da referencialidade das fábulas e dos contos maravilhosos na série em estudo, pontuamos a demanda da contemporaneidade nos atentando sobre a complexidade das personagens.

Portanto, a presente pesquisa se justifica pela: i) questão da emergência em es-tudar as potencialidades teóricas da vertente bakhtiniana para os estudos de discursos

10 Graduanda em Letras - Português pela Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão. Membro do GEDIS (UFG-CNPq)-Grupo de Estudos Discursivos, bolsista CNPQ, e-mail: [email protected]. O presente artigo trata-se de resultado de pesquisa de iniciação científica orientada pela Profa. Dra. Gre-nissa Bonvino Stafuzza.11 No presente estudo utilizamos os conceitos de enunciado e de enunciação. Enunciado diz respeito a um evento irrepetí-vel, fixado na realidade concreta do existir-evento e, por isso, dizemos que é singular. A enunciação configura um evento que possui a possibilidade de repetir-se.12 Há uma variação na grafia da personagem devido às múltiplas traduções em várias línguas: Rumpelstichen, Rumpels-tilzchen, Rumpelstiltskin, Rumple ou Rumplestilskin. A personagem é o antagonista de um conto de fadas de origem alemã, tendo seu título traduzido na língua portuguesa como O Anão Saltador.

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verbovocovisuais contemporâneos e, ii) pela produtividade de análise verbovocovisual do corpus ecoar no fundamento teórico das relações dialógicas pensada a partir de um gênero de discurso ainda em exploração nos estudos discursivos: o gênero série. Para o estudo das relações dialógicas na enunciação Once Upon a Time consideraremos as dife-rentes faces dos sujeitos, seus posicionamentos dialógicos nos acontecimentos da série, bem como suas alterações no decorrer da narrativa, uma vez que “é possível dar uma análise concreta detalhada de qualquer enunciação, entendendo-a como unidade con-traditória e tensa de duas tendências opostas da vida verbal” (BAKHTIN, 2010, p. 82).

Sob essa perspectiva, examinamos três instâncias de diálogo: i) o herói/vilão que dialoga com seu outro vilão/herói, em uma relação dialógica do eu-para-mim; ii) o herói/vilão que dialoga com outros sujeitos heróis/vilões, em uma relação dialógi-ca do eu-para-o-outro; iii) o herói/vilão que dialoga com outros sujeitos heróis/vilões, em uma relação dialógica do outro-para-mim. Utilizamos o cotejamento de enunciados (microcorpus) a partir de cenas das seis temporadas da série em estudo, devidamente transcritas, para investigar a produção dialógica na enunciação considerando a relação de diálogo entre os sujeitos em estudo para o estudo dos elementos que constituem a enunciação da série em foco, no viés da necessidade contemporânea das duas versões de toda a história e a consequente alteração no gênero e discurso dos contos de fadas.

A partir da seleção e coleta de enunciados verbovocovisuais optamos pela análise das cenas 0min0s–00min06s e 02min20s–3min50s do episódio 1: Piloto; 09min50s–13min10s do episódio 8: Almas desesperadas; 02min20s–3min50s e 36min20s-36min46s do episódio 18: O homem do estábulo; pertencentes a primeira temporada. Cena 25min00s-27min46s episódio 14: Manhattan, relativo à segunda temporada. Por fim, as cenas 0min30s-2min45s e 6min58s- 8min16s dos episódios 8 “Pense em coisas bonitas” e 14 “A torre”, respectivamente, ambos compõem terceira temporada. Sob essa perspectiva, ao elegermos os enunciados que compõem a enunciação verbovocovisual de Once Upon a Time, traçamos possíveis relações por meio de conceitos elaborados pelo Círculo de Bakhtin como diálogo, enunciado, enunciação, cronotopo, entonação, vida e arte (BAKHTIN, 1987; BAKHTIN, 1997; BAKHTIN, 2010; MEDVIÉDEV, 2012; VOLÓCHINOV, 2017; VOLOCHÍNOV, 2013), com vistas à análise do corpus. Portan-to, descrevemos, interpretamos e analisamos os enunciados que operam na contradição das personagens analisadas que se remodelam durante a narrativa seriada possibilita trazer à tona as vozes e os diálogos que compõe a referencialidade da série com os clás-sicos contos de fadas para investigar a construção dos sujeitos personagens.

O recorte das cenas para análise pode contribuir para visualizar essa transfor-mação dos sujeitos analisados para a construção da enunciação de Once Upon a Time: as cenas em que são revividas de forma lúcida pelos personagens, a história em que se explica o espaço-tempo de cada personagem, a lembrança de cada momento em que o “mocinho” agiu como “vilão” (conscientemente ou não), e de quando um personagem comum (as vezes até um herói) deixa de ser esse sujeito despretensioso para assumir a máscara do temível vilão.

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1. Desenvolvimento

1.1. Once Upon a Time... Diálogo com os contos de fadas

Visto que a série em estudo faz referência a antigos contos de fadas e fábulas, para melhor contextualização do estudo é pertinente mostrar as principais alterações dos contos utilizados como referência para a série, e também trazer à tona o modo como as releituras de contos de fadas se estabelecem como um novo gênero, trazendo consi-go outros valores embutidos nas clássicas personagens dos contos maravilhosos que se deslocam na enunciação verbovocovisual.

Dentro do núcleo midiático televiso seriado, Once Upon a Time se instaura como uma releitura dos contos de fadas, trazendo consigo ressignificações das personagens para a contemporaneidade ao construí-los através de relações dialógicas: quando a es-tória é (re)contada através de lembranças das personagens em paralelo ao espaço-tem-po atual desestabiliza-se a inocência irrefutável de mocinhos, princesas e heróis, como também a maldade natural e irreversível de bruxas e vilões que se colocam em diálogo nas instâncias do eu-para-mim, do eu-para-o-outro e do outro-para-mim para e na cons-trução da enunciação seriada. Propomo-nos aqui a refletir “a consideração necessária do sentido na enunciação e desta na produção daquele, bem como da influência do contexto social e histórico em que se produz/realiza a ação verbal.” (SOBRAL; GIACO-MELLI, 2017, p.220).

No conto Branca de Neve, na primeira versão conhecida da estória, antes de ser transcrita pelos irmãos Grimm, aborda-se temas como incesto, traição, vingança e fi-naliza com um “banho de sangue”. Já na versão reescrita pelos irmãos Grimm, embora ainda contenha cenas de violência, a narrativa caracteriza-se por ser romantizada. No entanto, ambas mantêm um ponto em comum: a submissão e vulnerabilidade feminina da princesa.

As personagens de contos de fadas em suas versões infantis existem apenas para contemplar a vida da personagem principal, seus atos são isolados e direcionados so-mente a mover e mudar a vida da protagonista. Conforme Bettelheim (2012, p.51) é possível perceber que “Nas estórias de contos de fadas mais ninguém tem nome; os pais das figuras principais permanecem anônimos. São referidos como “pai”, “mãe”, “ma-drasta”, embora possam ser descritos como “um pobre pescador”, ou “um pobre lenha-dor”. Se não “um rei” e “uma rainha” [...]”. Esse apagamento de identidades acaba por direcionar a atenção para uma única personagem, de modo que todos os atos em torno da princesa/mocinha, príncipe/herói, parecem apenas reforçar a existência e caráter da protagonista, colocando seu inimigo, automaticamente como seu oposto, logo se a prin-cesa é boa, a rainha, que a odeia, é má.

Na série temos uma ressignificação da estória a partir do ponto em que as per-sonagens secundários (pai, mãe, madrasta etc.) se tornam relevantes: no momento em que são nomeados ganham outro status na construção da estória, como sujeitos de sua própria vida, pois deixam de ser referidos apenas como interligados ao protagonista, deixando-os no mesmo nível de importância dos demais sujeitos personagens, desper-tando a atenção do público para a versão da história pela ótica dessas personagens e as colocando em papel de protagonismo igualmente aos supostos mocinhos. Além disso,

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na estória original o ódio da Rainha Má é despertado tão somente por inveja à beleza de Branca de Neve, fazendo-a desejar a morte da garota, ou seja, o motivo fútil coloca em destaque a “maldade inata” da Rainha. Em todas as versões mais conhecidas da es-tória, a rainha má acaba em desgraça: na versão original e na versão de Jacob e Wilhelm Grimm, ela dança com sapatos de ferro quentes até cair morta; na versão da Disney os anões matam a rainha, porém, não de maneira tão explícita ou sangrenta como em outras variantes da estória.

A estória original de Rumplestiltskin, fala de um homenzinho que faz favores em troca de coisas que lhe interessam. Há diversas versões e variações do conto, contudo, a mais conhecida é a que um homem pobre que queria impressionar o rei, diz a ele que sua filha sabia fiar palha em ouro, o rei a prende em um aposento cheio de palha, e lhe ameaça a vida caso ela não fie toda a palha em ouro. Contudo, a garota não tinha a míni-ma ideia de como fazê-lo, Rumplestiltskin lhe oferece fiar toda a palha para ela em troca de seu primeiro filho. Ela se casa com o rei, e anos após dá a luz a um menino. Quando Rumplestiltskin vai buscar a criança, a rainha não permite que ele a leve, mesmo após ter salvo sua vida, ele fica como vilão tendo um final trágico e incerto.

A série traz essas estórias de forma inovadora e interligadas se atentando a fide-lidade aos contos originais e ao mesmo tempo redesenhando-os aos moldes contem-porâneos. Personagens secundários criam vida e importância, reescrevendo a história através das relações sociais entre os sujeitos-personagens. O ambiente em que vivem, sua classe social e as pessoas que os circundam movem a narrativa e delineiam o caráter e identidade uns dos outros. De acordo com Volóchinov (2017, p. 211),

(...) a personalidade falante, tomada assim por dizer de dentro, é inteiramente um produto das inter-relações sociais. Seu território social não é apenas a ex-pressão exterior, mas também a vivência interior. Consequentemente, todo o caminho entre a vivência interior (aquilo que é “expresso”) e a sua objetificação exterior (o “enunciado”) percorre o território social.

Na série em estudo, podemos observar a relevância das relações sociais para a constituição do sujeito, mesmo nas camadas mais desfavorecidas da sociedade - os ple-beus pobres. De maneira que o sujeito personagem Rumplestiltskin, apesar de ser po-bre, não apenas é moldado pelo discurso do outro, como também, ao adquirir poder social, passa a constituir os outros sujeitos através do discurso e mover a realidade a sua volta. Esse poder da palavra na vida do outro acontece porque o sujeito falante não pode estar à parte da sociedade em que vive, ou seja, como um ser, essencialmente, social, o que parte do outro, outro-para-mim13, se torna um material para a constituição e visão do eu, passando a status de eu-para-mim.

Once Upon a Time ou em uma tradução literal “Era uma vez” tem como enredo uma releitura dos contos de fadas, em que personagens clássicos dos contos de fadas vivem em uma cidade chamada Storybrook no estado do Maine, nos EUA.

13 O estudo baseia-se no conceito de relações eu-outro desenvolvido por Bakhtin no Capítulo II de Estética da criação verbal (2011, p. 22), ponto nodal do diálogo e da interação entre sujeitos, pois, através do excedente de visão, há um conjunto de re-lações internas e externas que só são passíveis de serem concluídas em relação ao outro, logo, diminuem os valores individuais em prol da coletividade.

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1.2. Ooutro-para-mim como ferramenta da construção identitária do sujeito personagem Rumplestiltskin

Conforme Bakhtin (2011, p. 49) “O enunciado como tal é em sua completude um produto da interação social. [...]”, ou seja, ele parte da interiorização do que é expresso pelo meio social em que o indivíduo habita. O discurso pode funcionar como ferra-menta de construção da personalidade e caráter do indivíduo, seja positivamente ou negativamente. Na série em estudo, o discurso alheio age como ferramenta de transfor-mação do indivíduo, através de relações dialógicas-ideológicas e, a partir destas surgem as relações volitivo-emocionais, que movem a vida dos sujeitos personagens e definem sua imagem diante do outro, e que ao mesmo tempo é construída pelo outro.

Inicialmente, Rumplestiltskin teve sua personalidade formada pelo discurso das pessoas de sua aldeia, dada a instância do outro-para-mim: a fama de covarde do seu pai o perseguia desde criança, o que fez com que ele criasse, em si, a certeza de ser um covarde durante muito tempo e, por essa razão, a necessidade de se provar a qualquer preço o inverso do que diziam, ou seja, um homem corajoso. O discurso disseminado pelos seus vizinhos, o fato de considerarem Rumplestiltskin um covarde por fugir da guerra, mesmo que para salvar seu filho, denuncia as ideologias e a origem social-his-tórica, destas nos contos de fadas, dado que, havia um contexto monárquico que incen-tivava a coragem e lealdade à coroa. Logo, nesse sentido, em um universo de contos de fadas, uma personagem covarde sente o peso ideológico de não se encaixar aos padrões da coletividade.

A construção identitária de Rumplestiltskin parte do outro-para-mim e em se-guida torna-se eu-para-mim, visto que, sua nova identidade é construída a partir do vivenciamento interno de Rumple, que parte da premissa de provar ser melhor do que o que pensam sobre ele, essa ação da personagem torna a narrativa seriada complexa e traz sentidos outros para a enunciação verbovocovisual: apesar do acabamento já ter sido dado pelo conto de fadas, dele ser visto como um covarde, ele luta na série para desestabilizar esse acabamento de tom volitivo-emocional covarde para que o outro o enxergue de outro modo. “Sendo as determinações sociais constitutivas dos discursos e, em consequência, dos sentidos neles produzidos, o discurso caracteriza-se como um processo social e histórico de instauração e inscrição de eventos significativos, revelan-do o processo de constituição do sujeito na interação linguística.” (SOBRAL, GIACO-MELLI, 2017, p.222). Assim, entra em ativo o eu-para-mim, quando ele decide lutar em uma guerra perigosa, para provar o que ele sentia ser: um homem comum, destemido, que apenas é atazanado por uma fama que não é sua.14

Nesse trecho, Rumplestiltskin chega a casa após o incidente no campo de batalha, sua mulher está com um bebê no colo, o que indica ter passado certo tempo desde a sua partida até sua volta, além disso, Rumplestiltskin chega mancando, com uma perna envolta em tecido grosso e apoiado sobre um pedaço de madeira, o olhar de Milah para ele é um misto de horror e vergonha.

14 Devido aos flashbacks serem em episódios e temporadas aleatórios, não colocaremos referência de episódio no decorrer da narrativa sobre os acontecimentos da vida dos sujeitos personagens.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

Temporada 2 – episódio 14 - 25min0s a 27min46s

[Rumplestiltskin]: — Como ele se chama?

[Milah]: — Baelfire.

[Rumplestiltskin]: — Um nome forte! – Rumplestiltskin cai pela dor na perna.

[Milah]: — Ele vai precisar. Vai carregar a vergonha de ser seu filho.

[Rumplestiltskin]: – Como assim?

[Milah]: — Rumple, é verdade? Que você feriu a si mesmo só para não ter que lutar? Só para ser mandado para casa?

[Rumplestiltskin]: — Quem te disse isso?

[Milah]: — Todo mundo. Os boatos da frente da batalha voam. Rumple, você feriu a si mesmo?

[Rumplestiltskin]: — Sim! Uma vidente disse que eu iria morrer em batalha.

[Milah]: — Você largou porque sentiu medo. Você virou o que todos pensa-vam... Um covarde. Igualzinho ao pai!

[Rumplestiltskin]: — Eu não sou nada parecido com o meu pai. Ele tentou me abandonar. Eu nunca, jamais farei isso com meu filho. Foi por isso que fiz aquilo. Por ele. Para poupá-lo do meu destino, de crescer sem pai.

[Milah]: — Você o condenou a um destino bem pior. De crescer como seu filho.

[Rumplestiltskin]: — Quê? Que mais eu podia fazer?

[Milah]: — Você poderia ter lutado, Rumple. Você podia ter morrido. – Milah entrega o bebê a Rumple e sai.

[Rumplestiltskin] — Está tudo bem, Bae. O papai está aqui. E eu prometo que nunca, jamais vou te deixar.

Nessa cena é evidente o quão a nova “fama” afetará a vida de Rumplestiltskin, ele já não terá mais o apoio de Milah, como tinha antes, além do mais, o seu ato afetará seu filho assim como os atos de seu pai o afetaram. Entretanto, é possível perceber que o abandono de seu pai o afetou mais do que a fama de “filho do covarde”, isso é eviden-

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ciado quando ele prefere ‘vestir’ a reputação de covarde a deixar que seu filho crescesse sem pai, ou seja, a ausência de seu pai o afetou mais do que o rumor disseminado pelas pessoas ao seu redor. Portanto, há uma certa dose de coragem no ato de fazer algo que reforçaria algo que o atormentou durante toda sua vida, para garantir que uma pessoa que ele se preocupa não passasse pelo que ao ver dele foi o pior que aconteceu consigo.

A enunciação da covardia e a repulsa contra ela é uma crítica à construção ideoló-gica de “coragem” nos contos de fadas, e nos lança as indagações: i) o que é ter coragem?; ii) coragem sobre a perspectiva de quem?; iii) a que aspirações sociais a coragem atende?

Rumplestiltskin, visto como covarde, teve coragem o suficiente para assumir um ato que, além de ter sequelas físicas permanentes, seria sua “morte social”, apenas para garantir estar perto de seu filho. O que evidencia que a coragem cobrada pela sociedade em que ele vive, não é um ato qualquer de coragem, é a do padrão dos contos maravi-lhosos, contudo, a coragem pregada pelos contos de fadas, era popularizada pela mo-narquia, a fim de mobilizar o máximo de cidadãos a lutar em guerras de forma volun-tária, fazendo indivíduos de diferentes classes acreditarem que os embates do rei, eram seus por obrigação e dádiva. Por essa razão é tão evidente a coragem em tantos contos clássicos, e como ela é vista como sinônimo de nobreza. Como apontado por Stafuzza (2017, p. 17) “a comunicação verbal (que não se separa das outras formas de comunica-ção) provoca conflitos e embates ideológicos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia social etc.”, sendo assim, Rumple é transgressor da sua realidade ao se legitimar covarde, colocando em controversa a noção clássica de coragem nos contos de fadas.

A mesma guerra que fez com que o pai de Rumple fosse considerado um covarde, depois fez com que o próprio Rumplestiltskin fosse declarado um covarde, muda sua posição na sociedade. Quando seu filho, Bae, agora com 13 anos, é requisitado para a guerra, Rumplestiltskin decide que irá impedir a qualquer custo. Através de uma adaga mágica, ele consegue poderes que o ajudam não somente a impedir que Bae fosse à guerra, mas também a acabar com a guerra, que já perdurava por anos. Temos a pri-meira mudança significativa de Rumplestiltskin, de covarde a herói – visto que ele salva Bae e várias outras crianças que morreriam na guerra – contudo, essa mudança não perdura, pois, o excesso de poder e a magia negra corrompem seu coração, logo, ele começa a matar por motivos fúteis, sem demonstrar menor piedade. Desta feita, mu-dando, novamente, de herói a vilão.

Devido a sua nova personalidade e caráter, Rumplestiltskin acaba por perder seu filho, que é sugado por um vórtice para outro mundo. Ao procurar saídas na magia para tentar recuperar Bae, o Senhor das trevas descobre que não dependeria dele a magia que o levaria até onde o garoto estava, assim, decide acompanhar de perto a vida dos envol-vidos, até manipular e distorcer sua realidade para alcançar seu objetivo. Começando por Cora, mãe de Regina, a iniciando na magia, para garantir que sua filha tivesse “ma-gia de berço” e contato com a magia desde a infância, ele está sempre um passo à frente sobre a vida do outro. Desse modo, Rumplestiltskin “não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhe-cem, como enxerga e conhece mais que elas” (BAKHTIN, 2011, p.11). Nesse sentido,

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[...] a diretriz votivo-emocional de cada participante é profundamente indi-vidual e há luta entre eles: estou diante de um acontecimento único porém complexo, em que cada participante ocupa sua posição única na totalidade do acontecimento, e essa totalidade não pode ser compreendida mediante o vivenciamento empático com os participantes mas pressupõe um ponto de distância em relação a cada um e a todos juntos. (BAKHTIN, p. 60)

As relações volitivo-emocionais entre autor e personagem operam na questão de o livre arbítrio da personagem esbarrar com a autonomia do autor: a personagem é livre dentro de sua realidade, mas é pré-determinada a viver uma vida proposta pelo outro (autor). Em Once Upon a Time temos uma personagem autor que indiretamente define a vida dos outros sujeitos personagens, moldando-lhes de acordo com seus inte-resses. Rumplestiltskin, de forma sutil e quase imperceptível, define a vida dos sujeitos personagens da série. O seu vivenciamento interno passa a ser um construtor ativo da história a partir da relação eu-para-o-outro, de modo que personagens secundários são afetados pelo contato com os sujeitos estruturados por ele, nessa posição autoral. A par-tir desse ponto há um eco do discurso alheio que parte do que é disseminado por Rum-plestiltskin nas bases mais influentes do reino15 como, por exemplo, Branca de Neve.

1.3.AtransformaçãodeReginaeaconstruçãodosignoideológico Rainha Má

O diálogo é a principal fonte das construções sociais dialógicas-ideológicas, é res-ponsável pela imagem que o sujeito passa para a sociedade que o cerca, e também pelo seu discurso, como vimos anteriormente através de Rumplestiltskin. A relação do eu-para-mim e do outro-para-mim constrói a vivência interior (personalidade, caráter, dis-curso e modo de agir) de Regina Mills e, consequentemente unido ao enunciado como um todo, o signo ideológico “Rainha Má”. Tchougounnikov (2008, p. 1) explica o signo ideológico como “uma unidade constitutiva da consciência humana: com efeito, esta última é constituída por valores sociais, ideológicos ou coletivos. Ele corresponde a um veículo ou a uma percepção social, partilhada ou coletiva”. Regina nos mostra desde a primeira temporada o poder da enunciação verbal alheia para a construção da imagem social de um sujeito, uma vez que, o discurso popularizado por seguidores de Branca de Neve, Regina sai da sua posição de sujeito para uma figura ideológica, ela não tem afeição, emoção ou empatia por nada nem ninguém, como se fosse um ser semi-incons-ciente que é capaz tão somente de odiar, destruir e assolar, seu nome é apagado, nin-guém se refere à ela como Regina, apenas como Rainha Má, e esta por outro lado, causa reações a simples menção de seu “nome”. A visão que os súditos do reino têm de Regina são construídas através de relações discursivas, visto que a maioria sequer a conhece.

Desde a primeira cena em que aparece, Regina surge como Rainha Má, caracte-rizada fisicamente – quando em posição sígnico-ideológica, ela sempre aparece com vestidos em tons escuros, preferencialmente pretos, acessórios exagerados, coroa preta,

15 A estória se passa em dois espaços-tempos diferentes: reinos dos contos de fadas que existem em uma realidade paralela; Storybrook, cidade ficcional que foi criada no Maine (EUA) a partir de uma maldição da Rainha Má. A série em tempo atual se passa em Storybrook, mas também por meio de lembranças das personagens permeadas por lapsos da estória antes da maldição.

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maquilagem escura, com exceção da boca, cujo batom é sempre “vermelho-maçã” – seu discurso de ódio contra a princesa, aparece descontextualizado, reafirmando a imagem da personagem dos contos maravilhosos. Logo, torna-se imprescindível considerar os contextos extraverbais do enunciado, pois o “(...) contexto extraverbal do enunciado compreende três fatores: i) o horizonte espacial comum dos interlocutores [...] ii) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores, e iii) sua avaliação comum dessa situação” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, [1976] s/d, p. 6), ou seja, investigamos, aqui, a conjuntura que sustenta discurso de ódio da Rainha Má.

Na cena transcrita abaixo, Regina invade o casamento de Branca de Neve e Prín-cipe encantado, seu olhar é de ódio e desdém, seu tom de voz é carregado de rancor e poder, todos os convidados se encolhem perante sua presença.

Temporada 1 – episódio1 - 2min20s a 3min50s

[Rainha Má]: – Desculpem o atraso

[Anão Soneca]: — É a rainha, corram! – Diz um anão apavorado.

[Branca de Neve]: — Ela não é mais a Rainha. Ela não passa de uma bruxa malvada.

[Príncipe encantado]: — Não, não desça ao nível dela. Não é preciso. Está per-dendo tempo, você já perdeu. Não deixarei que estrague o casamento.

[Rainha Má]: — Não vim estragar nada. Pelo contrário, querido, vim lhes dar um presente. – Regina diz em tom irônico

[Branca de Neve]: — Não queremos nada de você.

[Rainha Má]: — Mas irão ganhar. Meu presente a vocês é este dia feliz. Pois minha verdadeira obra começa amanhã. Vocês já fizeram seus votos, agora eu farei o meu. Em breve, tudo que amam, tudo que vocês todos amam, será tirado de vocês para sempre. E do seu sofrimento, surgirá minha vitória. Eu destruirei sua felicidade nem que seja a última coisa que eu faça.

Nesse primeiro momento temos a visão da clássica Rainha Má dos contos de fadas, cruel, vingativa, óbvia e inatingível. Por outro lado, sua rival Branca de Neve está em posição de inocente, frágil e inofensiva. Esse curto diálogo apresenta a Rainha Má como vilã desprezível, cujas explicações ou justificativas para ser má e odiar são inexis-tentes. Mesmo em Storybrook16, como prefeita, ela continua a aparentar ser tão maquia-vélica e imbatível quanto no conto maravilhoso, sendo que os primeiros flashbacks da

16 Em Storybrook todas as personagens ganham uma nova identidade e não têm lembranças de sua identidade nos contos de fadas, contudo, sua personalidade se mantém o mais próximo possível de sua personagem referente ao conto de fadas.

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estória antes de Storybrook, também mostram uma rainha fria, insensível e desumana que a todo momento tenta atingir Branca de Neve.

No decorrer dos episódios, o signo ideológico Rainha má, continua a ser refor-çado até o episódio 18, em que vemos uma Regina completamente diferente da rainha/prefeita má a qual se apresenta em todos os episódios. Ela aparece em seu primeiro flashback de antes de se tornar rainha, não usa maquiagem pesada, suas roupas são claras, comuns, seu tom de voz é calmo e doce e, pela primeira vez, temos um discurso proferido por Regina que não se trata de poder ou vingança, pelo contrário, mostra-nos uma garota ingênua e inócua que reluta contra as ambições da mãe.

A Rainha má na primeira cena em que aparece é poderosa, soberana e temida, sua voz denota frieza, sarcasmo e segurança. Como dito anteriormente, o enunciado é constituído pela vivência interior que é formada estruturada pelo meio social que envolve o indivíduo, sobretudo as ideologias desse grupo social. Nesse sentido, Regina reforça de todas as formas possíveis, partindo de sua aparência (roupas e maquilagem) até sua voz, a figuração Rainha má. Assim, entendemos que

A entoação sempre está na fronteira do verbal com o não-verbal, do dito com o não- dito. Na entoação, o discurso entra diretamente em contato com a vida. E é na entoação sobretudo que o falante entra em contato com o interlocu-tor ou interlocutores – a entoação é social por excelência.” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, [1976] s/d, p. 7).

Já como sujeito - mulher - comum, Regina é “normal”, e sua personalidade se equipara a de Branca de Neve, seu tom de voz demonstra inocência, insegurança, medo e submissão. Contrapondo Regina plebeia versus rainha, é possível perceber que todas as características da Rainha são artificiais: são planejadas para enunciar de modo extra-verbal, ela é compelida a se portar de uma maneira específica para ser temida. Mas afi-nal, o que levou Regina a tornar-se Rainha Má? Como dito por Volóchinov (2017, p. 98) “a existência de um signo ideológico não é nada mais que a materialização da comunica-ção social”, com base nisso, investigamos as relações dialógicas que modificam o sujeito.

Em uma de suas buscas por Branca de Neve, Regina, por influência de Rumples-tiltskin, decide utilizar um feitiço de disfarce para procurá-la no intuito de não ser reco-nhecida e conseguir se aproximar. Mas sob esse feitiço Regina acaba por ouvir discursos que intensificam seu vivenciamento interno e a Rainha Má como figura ideológica, re-fletindo diretamente em seu vivenciamento exterior. Ela fica furiosa com a postura dos camponeses que faziam um jogo intitulado “acerte o coração da rainha”, e ordena que eles sejam mortos. Agora que seus atos tornaram irreversível desconstruir a máscara de rainha má, ela decide tornar-se definitivamente: [Regina] A Rainha está morta. Vida longa à Rainha Má (Temporada 2 – Episódio 20 – 43min29s). É possível observar que, “O sujeito discursivo aparece aqui com um estatuto de agente mediador de um processo que, enquanto lhe define a identidade em meio à sua interação com outros atores, dele retira bases para sua própria constituição; quer dizer, sujeito e discurso pressupõem-se mutuamente.” (SOBRAL: GIACOMELLI, 2017, p.223), isto é, a relação emotivo-volitiva de Regina com os camponeses acaba por estruturar seu vivenciamento interno, definin-do diretamente sua identidade.

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Assumida, definitivamente, a identidade Rainha Má, Regina decide atingir a to-dos que lhe causaram algum mal (ou não) pela Maldição Negra17, que irá mandar a to-dos para um “reino sem magia”, onde ela será a única que se lembrará de seus passados e verdadeiras identidades, logo não terão uns aos outros, serão infelizes e vazios, tornan-do-se vitoriosa e supostamente feliz. Novamente, mesmo que sem perceber, a rainha atende aos desejos secretos do Senhor das trevas, uma vez que, a maldição os levaria para o mundo em que Bae caiu. A maldição os transporta para uma cidade chamada Storybrook criada pela maldição no estado do Maine nos Estados Unidos. Contudo, diferente do que Regina imaginava, ela se tornou tão infeliz e vazia quanto os outros que tinham a ilusão de um passado que nunca existiu.

Por fim, Regina decide adotar uma criança para quebrar a monotonia de sua vida, mas a criança acaba levando a salvadora18 até a cidade. Após a maldição ser quebrada, Regina novamente despe-se da posição de Rainha Má, ao tentar ser uma pessoa me-lhor para seu filho Henry. Então, para de usar magia e desiste definitivamente de tentar atacar Mary Margaret, no entanto, todos estão sempre desconfiados em relação a ela: sempre que acontece algo ruim, ligam a ligam diretamente ao acontecimento. Ou se-ja, embora suas palavras e últimas atitudes provem que Regina mudou, aos olhos dos outros continua sendo A Rainha Má, conforme a mesma expressa em: “Já parou para pensar que talvez eu seja boa? Eu sempre fui A Rainha, foi você quem acrescentou o má” (Temporada 2 – Episódio 15 - 12min23s a 14min30s).

O signo ideológico é social por excelência, uma vez instaurado, ele somente pode ser desconstruído socialmente, logo, as atitudes isoladas de Regina, não tem nenhum valor social devido à falta de apoio coletivo; para que passe a ser acreditada, ela precisa que no mínimo um grupo de pessoas acreditem no que diz, tal como na sua postura, e disseminem suas ideias. O que passa a ser uma luta constante de Regina em Storybrook.

ConsideraçõesFinaisAs personagens clássicas dos contos de fadas antes de suas releituras (literárias,

fílmicas e seriadas) possuem a problemática da imutabilidade e, também, da “razão ab-soluta”, isto é, vilões e mocinhos nascem, crescem e morrem com o mesmo pensamento, caráter, ideologia. Once Upon a Time, embora com picos paródicos altamente humorís-ticos e irônicos, tanto com as estórias, quanto com nossa realidade, apresenta uma nova perspectiva a partir das relações dialógico-ideológicas entre as personagens, mantendo parte da magia tradicional das narrativas fantásticas ao mesmo tempo em que se adequa as expectativas da contemporaneidade.

Por fim, nesta pesquisa, mostramos parte da importância das relações dialógicas (e, portanto, sociais) para a enunciação e construção da identidade do sujeito. Ao estu-dar as relações dialógicas que constroem a enunciação verbovocovisual seriada em On-ce Upon a Time, as personagens identificamos o discurso alheio como produtor de sen-

17 Maldição que Rumplestiltskin esperava/induziu Regina a lançar para encontrar seu filho.18 A filha de Branca de Neve, Emma Swan, quebraria parte da maldição assim que pisasse na cidade, e a quebraria por completo quando passasse a acreditar em magia.

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tidos sobre a vida do outro sempre em interação na construção do todo arquitetônico que significa: a palavra do outro, a voz do outro de estruturar ou de arruinar um sujeito através da edificação de seu vivenciamento interno. De qualquer forma, os discursos se completam e correlacionam, de modo que a inexistência de um impossibilitaria a exis-tência do outro. Assim sendo,

Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mes-mos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. [...] É impossível alguém definir sua posição sem correcioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enun-ciados de dada esfera da comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2011, p. 297)

Em Once Upon a Time os enunciados se criam, se cruzam, se modificam e se completam por meio das relações dialógicas entre os sujeitos personagens, criando uma nova enunciação e significação no âmbito da vida das sujeitos personagens, na série e no gênero das releituras dos contos de fadas. Esses enunciados trazem consigo uma res-significação de signos ideológicos que foram utilizados para influenciar diversas gera-ções por décadas através dos contos de fadas, especialmente, a ideia de que o mal nunca vence, como se alguém fosse completamente bom ou completamente mau. Eis que aqui vemos o discurso da arte cruzando e influenciado o discurso da vida, a arte como trans-missora e/ou transgressora de ideologias.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

_______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução Arlene Caetano. 18 ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2004.

MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Américo e Sheila Camargo Grillo, São Paulo: Contexto, 2012.

SOBRAL, Adail; GIACOMELLI, Karina. Linguagem e ação: A contribuição bakhtiniana em diálogo. IN: FERNANDES, Antônio Júnior; STAFUZZA, Grenissa Bonvino (Orgs.). Discursividades contemporâneas: Política, corpo, diálogo. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2017.

STAFUZZA, Grenissa Bonvino. Relatório Final de Atividades Acadêmicas de Estágio Pós- Doutoral. Pós-Graduação em Estudos Linguísticos. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2017. Mimeo.

TCHOUGOUNNIKOV, Serguei. O círculo de Bakhtin e o marxismo soviético: uma “aliança ambivalente”. V 3. Tradução de Ana Zandwais. Porto Alegre: Conexão Letras, 2008.

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e a filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

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VOLOSHINOV, V. N.; BAKHTIN, M. M. Discurso na vida e discurso na arte (sobre a poética sociológica). Texto originalmente publicado em russo em 1926 “Slovo v zhizni i slovo v poesie”, na revista Zvezda nº 6. Tradução para o português de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático (s/a), a partir da tradução inglesa de I. R. Titunik (“Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics”), publicada em V. N. Voloshinov, Freudism, New York. Academic Press, 1976.

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Diálogosemmonólogosnaenunciação verbovocovisual de Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese

Lizandra Belarmino de Moura 19

Introdução“You talkin’ to me?”20. Esse enunciado de Travis Bickle (Robert De Niro), em uma

das cenas mais icônicas de Taxi Driver (1976), de direção de Martin Scorsese e roteiro de Paul Schrader, apresenta um sujeito alterado e fixado na ideia de agir pelas próprias mãos. A cena, que fora improvisada pelo autor, sugere embaraço e afronta, posto que ele tenta começar uma briga, ou preparar-se para uma. Travis está de frente para o espelho, o qual está preso à parede de seu quarto, e ensaia um embate entre seu suposto opo-nente com uma arma. Quem seria o interlocutor oponente de Travis nesse e em outros momentos em que não há um interlocutor direto? Sabe-se que o sujeito protagonista nutre aversão por diversos grupos sociais de Nova Iorque na década de 1970 (5min54s-6min47s), porém, consideramos um auditório mais amplo quanto ao diálogo que se relaciona à produção dos enunciados.

Foram eleitas algumas cenas em que se pode reconhecer alguns discursos nos enunciados produzidos por Travis: “O relato noturno de Nova Iorque e a profecia” (5min54s-6min47s); e “A angústia de Travis” (53min16s-53min55s). Para tanto, a teoria do Círculo Bakhtiniano, além de servir como fundamentação teórica, também funcio-na como metodologia. Sendo assim, em se tratando de uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo, interpretativo e analítico, dos enunciados verbovocovisuais das cenas eleitas a partir da enunciação fílmica Taxi Driver (macro corpus da pesquisa). Sendo assim, os enunciados (micro corpus) serão cotejados traçando possíveis relações, com os conceitos elaborados pelos pensadores do Círculo de Bakhtin como diálogo, enunciado, sujeito personagem, entonação, enunciação, vida e arte, entre outros (VOLOCHÍNOV, 2017; BAKHTIN, 2015; BAKHTIN, 2011).

Logo, o objetivo geral desta pesquisa é estudar a enunciação fílmica de Taxi Dri-ver (1976), de Martin Scorsese, a partir dos diálogos produzidos pelo sujeito protago-nista Travis Bickle em seus monólogos (escritas no diário, pensamentos, momentos em

19 Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão – UFG/RC, Unidade Acadêmica Especial de Letras Linguística, Grupo de Estudos Discursivos. Contato: [email protected]. O presente artigo trata-se de resultado de pesquisa de iniciação científica orientada pela Profa. Dra. Grenissa Bonvino Stafuzza.20 “Tá falando comigo?” (tradução nossa).

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que ele “fala para o espelho”), considerando seu movimento na construção da enun-ciação verbovocovisual do filme em estudo. Por sua vez, os objetivos específicos são : i) investigar os elementos que constituem a produção de diálogos na enunciação verbovo-covisual fílmica de Taxi Driver; ii) analisar enunciados verbovocovisuais recortados das cenas de Taxi Driver, com vistas a descrever e a interpretar a construção da enunciação fílmica e sua produção de sentidos; iii) discorrer acerca da natureza dos monólogos em Taxi Driver de forma a identificar os discursos que constituem o sujeito protagonista no desenvolvimento da narrativa fílmica nas cenas em que Travis produz seus monólogos (ou leituras de páginas de seu diário) e, iv) e refletir acerca desses discursos conflitantes, tanto em relação com o sujeito, especificamente, como também com o que dialogam com seu período de produção da obra.

A presente pesquisa é de natureza qualitativa com caráter descritivo, interpreta-tivo e analítico dos enunciados verbovocovisuais eleitos a partir da enunciação fílmica de Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese (macro corpus de pesquisa). Utilizaremos o cotejamento de enunciados (micro corpus) a partir de cenas do filme em estudo para investigar a produção dialógica na enunciação considerando a relação de diálogo que o sujeito protagonista Travis Bickle trava com os “outros”, mesmo aqueles que estão conti-dos em momentos de monólogo. Isso significa dizer que, cotejamos conceitos presentes em obras do Círculo de Bakhtin (2011, 2015) e Volóshinov (2017) com as cenas recor-tadas, que são: “O relato noturno de Nova Iorque e a profecia” (5min54s-6min47s) e “A angústia de Travis” (53min16s-53min55s), de forma a analisar como esses monólogos também configuram em relações dialógicas de Travis com seu “outro”, com seu meio e tempo, já que ao enunciar, o sujeito se denuncia, portanto, tudo o que é enunciado pos-sui um lugar de dizer que dá acabamento à enunciação.

O recorte de cenas para análise contribui para visualizar essa transformação do sujeito Travis para a construção da enunciação de Taxi Driver: as cenas em que Travis escreve em seu diário para ora descrever a Nova Iorque à noite, ora para desabafar suas angústias. Logo após a seleção, as falas foram transcritas. Feito isto, descreveu-se, inter-pretou-se e, posteriormente, analisou-se tais enunciados eleitos.

Assim, por meio do aprofundamento teórico e do estudo do corpus, é possível considerar que os monólogos constituem-se, também, por via das relações dialógicas, uma vez que para Volóshinov (2017) qualquer tipo de enunciado se dá sobre a forma de diálogo, mesmo que não haja a presença direta de um interlocutor. Por isso, é im-portante constatar e refletir acerca dessa questão, especialmente em um corpus em que os monólogos dialógicos são fundamentais na composição do todo arquitetônico da enunciação verbovocovisual.

1.OsmonólogosdeTravisBickleeodiálogobakhtinianoemTaxi Driver (1976)

No âmbito do nosso trabalho, o diálogo corresponde a como o sujeito, a todo mo-mento, responde ao seu meio e aos “outros” e de como é possível ouvir a voz do outro nos enunciados de Travis. Especialmente, segundo a perspectiva deste estudo, vemos,

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no discurso interior de Travis, enunciados que expõem em potencial o desenvolvimen-to da “autoconsciência” (BAKHTIN, 2015) do sujeito personagem.

Essa autoconsciência do sujeito, quando concretizada por meio do material síg-nico e dos contextos que permeiam tal produção, começa a ser desenhada e colorida, ou seja, ele é revelado para nós ao mesmo tempo que é revelado a si mesmo. Cabe, por-tanto, reforçar a ideia de que não apenas as singularidades do sujeito estão em questão, como também o que há de coletivo nele, sua história, seu grupo social, seu local; a co-letividade que se difunde e preenche a singularidade, e que esta, por sua vez, contribui com a rotatividade de discursos para a sociedade.

Consideramos as obras do Círculo Bakhtiniano, nas análises feitas aqui, mesmo que, ao serem concebidas, se direcionaram diretamente à literatura, já que a arte cine-matográfica e a arte literária compartilham de algumas semelhanças e proximidades. No entanto, não só por isso, dado que, mediante a pesquisas em voga na produção científica brasileira, consideram-se as contribuições dos autores russos para análises de enunciados verbo-visuais e verbovocovisuais (GRILLO, 2012; STAFUZZA, 2017), ou seja, enunciados que possuam em sua constituição o material vocálico, musical, visual, como também a palavra, dentre outros. Portanto, o que os autores expressam nesse trecho servem como metodologia e como aporte teórico às nossas hipóteses acerca dos enunciados de Travis.

Partindo, especificamente, para os enunciados verbovocovisuais, ou enunciados que contém o som, a imagem e as falas (material verbal pautado nas palavras), o Círculo também contribui, mesmo que indiretamente, por não usar a nomenclatura “verbo-vocovisual”, mas, por levar em consideração aspectos como entonação, gesticulação, expressão facial, etc. como elementos relevantes na e para a constituição da significação dos enunciados.

Assim, de acordo com Stafuzza (2017, p. 2):

Nos estudos de análise de discursos de corrente bakhtiniana, que nos interessa aqui, apesar de Bakhtin e seu círculo não tratarem de ‘verbovocovisualidade’, nem de ‘discursos verbovocovisuais’ em termos, seus escritos trazem impor-tantes contribuições para entendermos o ‘verbovocovisual’ como um procedi-mento de análise discursiva, uma vez que o discurso tomado como objeto de análise se constitui e se realiza por elementos verbais, vocais e visuais, sendo a obra do Círculo suporte para análises.

Considera-se então falar sobre verbovocovisualidades na obra do Círculo como contendo “pistas” sobre como analisar enunciados de tal natureza.

Sendo assim, em seguida, seguem as análises de duas cenas da narrativa fílmica. São elas: “O relato noturno de Nova Iorque e a profecia” (5min54s-6min47s); e “A an-gústia de Travis” (53min16s-53min55s).

1.1.Osignificadoextraverbaldasmetáforasesuasmarcasideológicas

O todo arquitetônico em Taxi Driver explora temáticas do chamado “submundo”, aquele lugar que abriga grupos e situações marginalizadas. E é pelas janelas e retrovisor do taxi, como também, pelos olhos do motorista, que o telespectador adentra pelos

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bairros de Nova Iorque. Esta primeira cena a ser analisada acontece logo após Travis ser empregado para trabalhar como taxista.

Depois de tentar diversas maneiras de resolver seus problemas de insônia co-mo andar de ônibus, metrô e das idas aos cinemas pornô da cidade, Travis decide ser taxista, já que seu problema como o sono não fora resolvido. Na cena da entrevista (2min30s-4min14s), temos uma breve apresentação de que é o personagem: “26 anos”, “pouca escolaridade”, “serviu à Marinha com dispensa honrosa em maio de 1973”.

A partir de tais informações sobre o sujeito personagem Travis Bickle, podemos tecer interpretações e análises, com a finalidade de mapear e identificar o lugar do qual ele enuncia, quando o sujeito profere o enunciado o qual analisaremos.

Durante alguns minutos, enquanto acompanhamos “de dentro” do táxi em movi-mento (Travis já está empregado), a câmera focaliza o lado de fora, vemos, portanto, os cinemas, os bares, as casas noturnas, pontos de prostituição, crianças nas ruas de bairros de Nova Iorque durante a noite. É este o cenário em que Travis descreve estes “animais que saem da toca à noite”.

É interessante notarmos como a referenciação é feita neste enunciado; por via da catáfora Travis introduz e em seguida desenvolve seu raciocínio. “Animais” é o termo que é retomado em “prostitutas fedorentas, sodomitas, drag queens, bichas, maconhei-ros, viciados, insanos, corruptos.” e, ainda, acrescenta em seguida que, além de “ani-mais”, são também “escória que deve ser limpa das ruas”. Esse recurso coesivo foi usado por Travis como recurso estilístico em seu discurso interno.

O discurso interno se caracteriza pelos enunciados que não foram concretizados em um diálogo direto com interlocutor físico, real, ou seja, são enunciados que confi-guram os pensamentos, as conversas consigo mesmo, os monólogos. O auditório, neste caso, é preenchido portanto, por um representante médio do grupo o qual faz parte e se posiciona o enunciador.

Enunciados com essas características são interessantes, pois configuram a voz que quer ser ouvida e respondida. Assim, quando Travis descreve o que ele presencia todas as noites com suas entonações em um tom blasé e desprezível, é para um repre-sentante de seu grupo social. No entanto, às vezes esse auditório oscila, dependendo do enunciado. Logo veremos um exemplo desse tipo de situação.

No enunciado a ser analisado a seguir, Travis, enquanto faz uma leitura de uma página de seu diário em uma cena a ser sobreposta por outra; uma em que ele está di-rigindo seu táxi pelas ruas de Nova Iorque, relata o que, em sua interpretação, acontece à noite pela cidade.

Percebe-se que ele possui uma visão pejorativa dos acontecimentos e, ao mesmo tempo, demonstra alguma indiferença. Vejamos a seguir:

53min16s-53min55s: [Travis narrando passagens do seu diário] — Todos os animais saem da toca à noite. Prostitutas fedorentas, sodomitas, drag queens, bichas, maconheiros, viciados, insanos, corruptos. Um dia, uma chuva de ver-dade limpará toda essa escória das ruas. Ando por toda a parte. Levo gente para o Bronx, Brooklyn. Levo para o Harlem. Eu não me importo, não faz

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diferença pra mim. Mas faz diferença para alguns. Uns nem levam passageiros negros. Não faz diferença para mim.

A questão da palavra como signo ideológico é tratada por Volóchinov em Marxis-mo e Filosofia da Linguagem (2017). Segundo o autor “A palavra é o fenômeno ideológico par excellence.” (p. 98; grifos do autor). Isso quer dizer que, para ele, a palavra, sendo an-tes um fenômeno neutro, ao entrar em contato com algum processo de interação verbal, se tornará um signo, carregado de juízos de valor, de ideologias, ou seja, de marcas dos grupos sociais que o concebeu segundo determinada configuração.

Vemos o fenômeno do signo ideológico acontecer neste enunciado de Travis quando, ao referir-se ao que se pode identificar como sendo as minorias: “prostitutas fedorentas, sodomitas, drag queens, bichas, maconheiros, viciados, insanos, corruptos”, ele usa uma metáfora, “lixo”, “escória” das calçadas, que um dia serão limpas por “uma chuva de verdade”. Em tom semelhante ao de uma prece e, ao mesmo tempo, de profe-cia, ele almeja por uma “limpeza” do que considera como sendo um mal.

Vê-se aí que Travis deposita uma interpretação sobre indivíduos os quais ele ob-serva pela sua cabine de táxi. No entanto, pondera-se que esta interpretação não é da autoria de Travis Bickle, mas sim, do grupo no qual ele se insere na narrativa fílmica, ou seja, de onde ele vem, de onde fala e para quem fala. Ele é um sujeito que, como indica-do nos primeiros minutos de filme (2min30s-4min14s), um estadunidense médio, ex-fuzileiro naval, com pouca escolaridade, e ideias conservadoras acerca de sua realidade. Tudo isso, ou seja, as marcas da constituição de Travis como um sujeito, estão presentes e são expressas nos enunciados por ele produzidos. Chamar essas minorias de “escória” e de “lixo”, significa para nós, analistas do discurso, que, existe um grupo que interpreta esses grupos marginalizados dessa forma.

Quando Volóchinov (2017, p.93) afirma que “onde há signo há também ideolo-gia” ele explicita o fato de que a ideologia é intrínseca ao enunciado, porque é social. Portanto, nesse enunciado de Travis, tanto ele, como seu ou seus grupos nos são revela-dos. Essas palavras usadas para se referirem aos grupos marginalizados foram concebi-das pela interação verbal entre indivíduos que compactuam dessa opinião.

Ainda assim, é interesse destacar que, ao final do enunciado, Travis acentua uma espécie de indiferença pela “escória” por ele já especificada antes, no entanto, com um adicional; neste momento, Travis inclui mais um grupo à sua lista: os negros. Para ele “tanto faz”, ele apenas cumpre o seu trabalho. Talvez essa indiferença seja pelo fato que Travis menospreze a tal ponto de simplesmente não dar uma demasiada importância a ponto de interferir em seu trabalho.

Quando Travis, primeiramente, ao escrever essas confissões em um diário, só pode-se concluir que, a consciência que se manifesta é puramente social e ideológica (VOLÓCHINOV, 2017), posto que é desse material de que a consciência é formada. Este momento em que o sujeito protagonista enuncia tal enunciado, considerando a estrutura a qual lhe é concebida, não pode ser tida como aleatória por não possuir um interlocutor direto, ou seja, mesmo com a falta em potencial de um ouvinte, esse enun-ciado produzido possui direcionamentos a um determinado auditório; se não fosse as-

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

sim, o enunciado não poderia ser concretizado. Afirma-se, então que, é todo o contexto circundante do falante que determina essa fala de Travis, uma vez que é

A situação e o auditório forçam o discurso interior a atualizar-se em expressão exterior determinada e diretamente inserida no contexto cotidiano não enun-ciado, que é completado pela ação, ato ou resposta verbal dos outros partici-pantes do enunciado. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 221)

Ou seja, ao falar desse discurso interior, o autor considera essa esfera da cons-ciência quanto à produção de enunciados. Pontua, além disso, a expectativa do “con-texto cotidiano” e também dos posteriores acontecimentos atrelados a concretização da enunciação, como a resposta do falante, seja por resposta ou por alguma outra ação de natureza distinta.

Portanto, quando Travis expressa sua “desaprovação” com o que presencia pelas noites de verão em Nova Iorque ao desejar uma “chuva que há de limpar todo o lixo das calçadas”, sua prece se dirige a uma espécie de entidade, ou até mesmo a quem se afeiçoe a tais ideias. Esse é seu auditório. O discurso conservador é revelado neste enunciado, pelo teor do conteúdo e a quem este conteúdo é direcionado. As “escórias” são a imo-ralidade e o que atrapalha a ordem e um projeto de sonho americano que exclui alguns grupos sociais.

1.2.TravisBickleeaparticularidadedoenunciado-ato-confessional

O estilo dos enunciados proferidos por Travis que aqui são analisados são de or-dem confessional. A falta da um interlocutor direto permite que o sujeito personagem enuncie sem tantas preocupações e que se exponha bastante. Analisando mais profun-damente esta questão, podemos entender que é justamente nesses momentos que sua autoconsciência é gerada. Não nos propomos a limitar o sujeito em si, uma vez que a última palavra sobre si mesmo, segundo Bakhtin (2015, p. 63), que só pode ser de au-toria dele mesmo, logo, procuramos, discorrer sobre como os enunciados mais íntimos de Travis expressam o caminho até florescer da sua autoconsciência.

Nesse movimento, a exterioridade não se isenta. No início da narrativa fílmica, Travis estava como observador ainda, em contraste com as cenas analisadas a seguir em que, já chegando ao meio do enredo, as complicações se tornam mais acentuadas.

Porém, antes desses momentos de confronto, é necessária uma preparação, ou uma situação que leve ao confronto. Para Bakhtin, tal preparação é a “[...] criação de um clima artístico que permita à sua palavra revelar-se e auto elucidar-se.” (2015, p. 72-73; grifos do autor). Portanto, retomando alguns fatos anteriores à essa preparação, temos as desilusões as quais Travis passaram com Betsy (33min10s-36min53s) e sua tentativa em procurar conselhos de um colega de trabalho (46min45s-49min43s) que acabaram por deixar em si um sentimento de solidão e de distanciamento com todos ao seu redor, o personagem protagonista cai em um limbo de angústia e apatia em relação à sua vida e sobre como ele percebe os acontecimentos à sua volta. Aqui, ele conclui sobre sua con-dição em sua relação com a solidão que ele experimenta; temos, portanto, o enunciado que expressa o momento de preparação:

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53min16s-53min55s: [Travis narrando passagens de seu diário] — A solidão sempre esteve ao meu lado a vida toda, em todo lugar. Nos bares, nos carros, nas calçadas, nas lojas, em todo lugar. Não há saída. Sou um homem sozinho de Deus.

Oito de junho. Minha vida mudou de rumo outra vez. Os dias passam, todos iguais… um dia igual ao outro… como uma cadeia longa e contínua. E, de repente… uma mudança.

Nesta cena, mais uma vez, enquanto Travis dirige o seu táxi, “ouvimos” o que ele escreve no diário. Podemos supor que durante as viagens que faz esses pensamentos são induzidos pelas imagens, pelas vozes que lhe atravessam. Assim, quando chegam ao diá-rio, tais pensamentos estão sólidos e lapidados. Esta é, certamente, apenas uma hipótese.

Esse enunciado, por sua vez, nos interessa para pensar em como esse momento antecede e prepara o sujeito para a sua tomada de consciência. Aqui, Travis confessa que, mesmo tentando interagir, fugir da sua insônia, ou seja, mesmo que tenha tentado encarar seus problemas, a solidão sempre esteve não somente ao seu lado, como é sua parte integrante. A partir daí Travis encara sua condição e as ações seguintes vão con-dizer com alguma coerência, gerada por essa aceitação, na tentativa de expurgar-se de uma vez para aquilo o qual Travis está à procura.

Ainda perante esse enunciado há um ponto a ser discutido: quem seria o “outro” desse enunciado, ou seja, quem seria o interlocutor de Travis? Aparentemente, ele não existe, no entanto, ele está aí. Esse momento confessional de Travis e de aceitação frente aquilo o que ele estava negando, é um enunciado que se dirige a uma entidade abstrata: uma “humanidade histórica” (BAKHTIN, 2010, p. 105). O fato é que Travis se redime frente a ele mesmo e ao seu lugar no mundo. Esse enunciado vai ao encontro a todo aqueles contribuíram, pelo contato, pelos discursos, pelas relações, íntimas ou não, as-sim como seu tempo, sua história, seus espaços.

Logo, tanto pela singularidade do auditório para o qual Travis se dirige e pelo contexto de produção desse enunciado que incita a revelação de sua autoconsciência, consideramos como um ponto chave para discutir sobre a falta direta do interlocutor.

Adicionamos à nossa discussão o fato de que o outro para o qual nos dirigimos não é só somente a uma pessoa; respondemos à vida como nossos atos, ao todo da exis-tência (BAKHTIN, 2010). A atitude de Travis configura por si só em ato responsável, uma vez que só agimos com o todo o qual nos corresponde, ou seja, respondemos ao mundo com tudo aquilo que somos/estamos. No entanto, no momento em o sujeito personagem confessa sua condição de isolamento como sendo sua essência, ele respon-de para o todo da existência, dele e a que a rodeia.

ConsideraçõesfinaisBuscou-se nesta pesquisa, portanto, compreender e identificar, mesmo que nos

monólogos (geralmente compreendidos como altamente subjetivos, íntimos, pessoais etc.) sobre o caráter também dialógico desses enunciados.

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Os monólogos na narrativa fílmica de Taxi Driver possuem grande relevância por aparecerem com frequência durante o desenvolvimento do enredo. Um dos motivos, relacionado à personalidade de Travis, é o fato de que ele não possui muitos amigos, alguns colegas, sim, mas não há alguém com quem Travis desabafe intimamente as suas angústias. Saindo do campo afetivo, podemos considerar o taxista nova iorquino com suas hostilidades e a sensação de inconformidade com a sociedade que ele presencia; Travis tem uma mensagem para estas pessoas.

Considera-se, portanto, que até mesmo monólogos possuem interlocutores. Du-rante a produção desses enunciados, o sujeito tem em si projetada a imagem de um de-terminado auditório, composto de determinado grupo social, de determinado contexto, de um auditório tão extenso que extrapola certos limites de caráter práticos e direitos. Portanto, é correto afirmar que “A estrutura do enunciado é uma estrutura puramente social.” (VOLÓCHINOV, p. 225; grifos do autor), ou seja, a natureza do enunciado é sempre social, independentemente da forma pela qual ele se concretiza, seja em um diálogo face a face com o interlocutor, seja por outra forma qualquer, a exemplo do monólogo, quando não temos um interlocutor direto.

Primeiramente, na cena “O relato noturno de Nova Iorque e a profecia”, discorre-mos sobre o auditório como sendo representante médio do grupo social ao qual Travis pertence. Já na cena denominada de “A angústia de Travis”, podemos vislumbrar o cará-ter confessional frente ao todo da existência. Esse ato de Travis é a representação desses dois discursos aqui, reconhecidos; sendo o sujeito constituído e transformado por meio deles, revelando a si próprio e a seus grupos de origem.

Destaca-se que, para Gomes (2008), a personagem que se encontra no meio ur-bano possui ainda mais intensificada a convergência de discursos diversificados que a afetam21: “A imagem do sujeito será construída de maneira lacunar, fragmentada e con-traditória pelos vários discursos que tecem a narrativa.” (p. 156). Portanto, considera-se que a hipótese defendida sobre os monólogos de Travis serem de suma importância para a compreensão, por meio da identificação dos discursos e diálogos, do processo de construção do sujeito e da enunciação fílmica.

Quando Volochínov, em A construção da enunciação (2013), afirma o diálogo (ou “intercâmbio de enunciações”) como sendo a forma pela qual a comunicação verbal acontece, reitera-se que aí esteja incluído o monólogo, uma vez que em outros momen-tos de sua obra, como em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2017), o autor faz essa consideração: “[...] o diálogo pode ser compreendido de modo mais amplo não apenas como a comunicação direta em voz alta entre pessoas face a face, mas como qualquer comunicação discursiva, independentemente do tipo.” (p. 219). Portanto, o monólogo como sendo também diálogo é também uma fonte para análise de discursos e, em Taxi Driver, ponderou-se e trouxe em voga essa discussão com fins de dar atenção a esta for-ma de concretização de enunciados tão intrínseca do gênero humano e tão recorrente em obras de arte, significando sempre em demasia para a enunciação como um todo.

21 Para o Círculo de Bakhtin, por outro lado, essa é uma situação inerente ao gênero humano enquanto ser social.

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Referências

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

_______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.

GRILLO, Sheila. Fundamentos bakhtinianos para a análise de enunciados verbo-visuais. Filologia e Linguística Portuguesa. n. 14(2), 2012, p. 235-246.

GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana / Renato Cordeiro Gomes; prefácio de Eneida Maria de Souza. - Ed. ampl. - Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

LUBIN, Joshua Elliot. American Disillusionment and the search for self-fulfillment in the 1970’s: a cultural history of Taxi Driver, Annie Hall, and Saturday Night Fever. Louisiana: Louisiana State University and Agricultural and Mechanical College, 2005.

STAFUZZA, Grenissa Bonvino. Relatório Final de Atividades Acadêmicas de Estágio Pós-Doutoral. Pós-Graduação em Estudos Linguísticos. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2017. Mimeo.

TAXI Driver – Edição Definitiva Dupla. Direção de Martin Scorsese. Roteiro de Paul Schrader. Produção de Bill/Phillips. Columbia Pictures, 1976. DVD, (dois discos), 2007.

VOLOSHINOV, V. N.; BAKHTIN, M. M. (1926). Discurso na vida e discurso na arte (sobre a poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, 1976.

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem – Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

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Reflexõessovreaverbovocovisualidade de Reposter Skol (2017)22

Gabriella Cristina Vaz Camargo23

IntroduçãoAs contribuições teóricas do Círculo de Bakhtin nos permitem analisar discursos

contemporâneos e midiáticos. Por isso, tomamos como corpus deste trabalho o enun-ciado verbovocovisual Reposter Skol24, publicado na página no Facebook e no canal no Youtube da marca, no dia 8 de março de 2017, em homenagem às mulheres pelo Dia Internacional da Mulher.

A proposta do filme publicitário era repostar pôsteres de campanhas anteriores da marca, em que o corpo feminino era objetificado e as modelos que os protagoniza-vam eram brancas, loiras ou morenas, com corpos sarados e descobertos e, em alguns casos, com posições sensuais, o que apelava para a erotização dessas mulheres.

Para a elaboração de Reposter Skol foram convidadas oito artistas mulheres para refazerem três pôsteres que já haviam sido propagados alguns anos atrás. As artistas de-veriam elaborar novos pôsteres “sob um novo olhar”, o olhar delas. Desse modo, a partir das contribuições do Círculo para a Filosofia da Linguagem, nos propusemos, neste trabalho, refletir sobre a verbovocovisualidade de Reposter Skol, pensando seus extratos verbais (palavras), vocais (som/voz) e visuais (imagens) que constituem o todo arqui-tetônico do enunciado. Neste trabalho, procuramos desenvolver a noção de enunciado, bem como trazer para discussão algumas considerações do Círculo sobre entonação, gesto, imagem, e também a noção de diálogo.

Para o alcance do nosso objetivo que se tratava de analisar Reposter Skol enquanto um enunciado verbovocovisual, houve, primeiramente, revisão bibliográfica teórica, a partir de leituras, resenhas e fichamentos. Para desenvolvimento das noções propostas para estudo, diálogo e enunciado, nos fundamentamos nas contribuições do Círculo de Bakhtin como Volochínov (2013), Volóchinov (2017), Bakhtin (2011), (2015) e (2016).

22 O presente estudo é um recorte da dissertação de mestrado intitulada “Reposter Skol – redondo é sair do seu passado: o enunciado verbovocovisual na campanha publicitária da cerveja Skol” (2019), desenvolvida sob a orientação da Profa. Dra. Grenissa Bonvino Stafuzza, pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL), da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão.23 Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa – PPGLLP, da Universidade Esta-dual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara, bolsista CAPES, membro do GEDIS (UFG/RC) e SLOVO (UNESP/FCLAr). Contato: [email protected] O nosso objeto de pesquisa, Reposter Skol, é de livre acesso e está disponível na internet. Todas as imagens que compõem este artigo foram recortadas do vídeo original através da ferramenta Printscreen. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g_8fnMtbdso . Acesso em: 13 jul. 2019.

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O nosso método de pesquisa é o dialógico, proposto pelo Círculo, em que é possível descrever, interpretar e analisar o corpus. Desse modo, esperamos que por intermédio desse trabalho, seja possível discutir acerca dos sentidos produzidos em Reposter Skol, bem como evidenciar o funcionamento dialógico da linguagem.

1.AlgumascontribuiçõesdoCírculodeBakhtinparaoestudodeenunciados

A noção nodal do Círculo de Bakhtin parte da noção de diálogo, que não enten-demos como conversa ou discussão, mas sim como embate, enfrentamento, duelo entre enunciados ou também entre sujeitos e enunciados, que nos permite compreender a linguagem através de um viés social, cultural e histórico.

Diante disso, sabemos que os mais diversos tipos de enunciados que existem na materialidade – aqui consideramos não apenas os enunciados verbais, mas também os que se constituem sob diferentes formas: visuais, verbovisuais, verbovocovisuais, e ainda, o próprio silêncio quando pertencente a um contexto enunciativo – pertencem, cada um deles, a um tipo de comunicação social, que é possível através da comunicação verbal e por intermédio da interação discursiva.

Para que se estabeleça interação é preciso que os enunciados dialoguem entre si e também entre ideologias, discursos, signos ideológicos e, além disso, que operem na realidade concreta. Eles se constituem através da interação que existe entre os homens, ou seja, para que exista um enunciado é necessário que exista interação, que se tenha algum tipo de relação com esse outro, que chamaremos aqui de interlocutor – que tam-bém enuncia e participa de modo responsivo do imenso diálogo da comunicação.

Os interlocutores que dialogam dentro da dimensão discursiva se relacionam a algum (ou alguns) tipo(s) de esfera(s) de atividade humana, que podem ser diversas: acadêmica, religiosa, familiar, midiática etc. Desse modo, os enunciados nascem no meio social, através da interação discursiva, no interior dessas relações – estabelecidas através das esferas de atividade humana.

É por conta disso que Bakhtin (2016, p. 11) explica que “o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana”. Ao denominar o enunciado de único, Bakhtin (2016) se refere ao fato de que o enunciado não é repetível, ou seja, todos os enunciados proferidos já foram proferidos antes, em outros contextos, por outros falantes a outros interlocutores, mas no momento da enunciação ele se torna único, porque é dotado de sentido, de discursos, de ideologias que o torna único no existir-evento.

Alguns outros fatores contribuem para tornarem o enunciado único, como os as-pectos extraverbais – que não podem ser transmitidos por palavras – que participam da enunciação: a entonação, o gesto, o olhar, uma balançada de cabeça etc. O interlocutor pode até tentar reproduzir os mesmos aspectos extraverbais, porém não é possível emi-tir o mesmo enunciado. É por isso que Volochínov (2013, p. 171) afirma que o enunciado possui duas partes, a verbal e a não verbal. A primeira, constituída, normalmente, por palavras, e a segunda, de “respostas”, ou seja, de respostas presumidas/subentendidas.

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A compreensão que o ouvinte tem do enunciado, ou seja, a compreensão que irá desencadear uma futura resposta, não precisa ser concretizado em palavras, uma vez que, por hábito acabamos respondendo dialogicamente aos enunciados que a nós são direcionados, assim, como nos explica Volochínov (2013, p. 163):

Habitualmente respondemos a qualquer enunciação de nosso interlocutor, se não com palavras, pelo menos com um gesto: um movimento de cabeça, um sorriso, uma pequena sacudidela da cabeça, etc. Pode-se dizer que qualquer comunicação verbal, qualquer interação verbal, se desenvolve sob a forma de intercâmbio de enunciações, ou seja, sob a forma do diálogo.

Após essas breves considerações sobre a noção de enunciado a partir das refle-xões teóricas do Círculo de Bakhtin, podemos compreender que os diversos enunciados que existem não possuem somente uma forma, ou seja, não são apenas verbais. Diante da dimensão dialógica da linguagem e da complexidade da noção de enunciado que o Círculo nos apresenta, é necessário considerar as diversas formas que o enunciado pode ser concebido: verbal, vocal, visual, verbovisual e ainda verbovocovisual.

Acreditamos ser possível analisar diversos enunciados que se inscrevem em dife-rentes esferas de comunicação (publicitária, literária, política etc.), a partir das contri-buições do Círculo. Por isso, tomamos como corpus deste trabalho o enunciado verbo-vocovisual Reposter Skol, publicado pela Skol em sua página no Facebook e em seu canal no Youtube em março de 2017, em homenagem às mulheres pelo Dia Internacional da Mulher. Nosso objetivo é refletir sobre como se constitui a verbovocovisualidade deste enunciado, analisando seus extratos verbais, vocais e visuais. E, ainda mostrar como se estabelece a dimensão dialógica da linguagem.

2. Reposter Skol:reflexõessobreverbovocovisualidadeApesar de não terem se dedicado ao estudo de enunciados verbovocovisuais, es-

pecificamente, os escritos do Círculo deixam algumas pistas para pensarmos em enun-ciados não apenas verbais (verbo), mas que também são constituídos de outros tipos de materialidades, como sons (voco) e imagens (visual).

O termo verbovocovisual que, de acordo com os estudos de Stafuzza (2017), no original do Inglês é “verbivocovisual”, apareceu pela primeira vez em Finnegans Wake, de James Joyce e foi apropriado por Décio Pignatari e os irmãos Campos, nos anos 50, pela poesia concreta. Ainda segundo Stafuzza (2017, p. 15), “podemos pensar a verbovocovisualidade como abordagem de análise da poesia que surge a partir de um profícuo debate teórico e experimental entre poetas, músicos, artistas e estudiosos dos campos da música e da literatura”. Assim, entendemos que este termo diz respeito à maneira conjunta em que trabalham o som, o visual e também o sentido da palavra, compreendido como verbal.

Por isso, compreendemos que ao considerar a linguagem em seus diversos cam-pos, não apenas restringido ao verbal, o Círculo nos permite analisar enunciados em diferentes materialidades. Com isso, entendemos que além dos elementos linguísticos há outros elementos que devem ser considerados, assim, convém, para além de todos

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aspectos que tangem o enunciado, destacarmos a relação valorativa que o locutor esta-belece com o seu enunciado e, justamente, essa relação que irá determinar as escolhas lexicais, composicionais e gramaticais do enunciado. Volochínov (2013, p. 80, grifos do autor) nos explica que

As valorações subentendidas aparecem então não como emoções individuais, senão como atos socialmente necessários e consequentes. As emoções indivi-duais, por sua vez, somente podem acompanhar o tom principal da valoração social em sua qualidade de matiz: um “eu” somente pode realizar-se na palavra se se apoia nos “outros”.

Dessa forma, entendemos que até mesmo a valoração que atribuímos ao enun-ciado é constituída a partir da nossa relação com o outro. E, uma das principais relações valorativas que são expressas por intermédio do enunciado e que o Círculo, cuidado-samente, se dedicou a discutir é a entonação. Dessa maneira, podemos entender que o fato de o enunciado possuir relação valorativa significa que o seu valor ultrapassa a fronteira da língua, se instalando em sentimentos (positivos ou negativos: amor, cari-nho, admiração, raiva, ironia, hipocrisia etc.) que são expressados através dos elementos extraverbais, como por exemplo, a entonação. Dessa forma, uma oração – enquanto unidade da língua – só adquire aspecto valorativo quando se torna um enunciado. Se uma palavra for pronunciada com entonação, mesmo que se trate de uma palavra iso-lada, ela se torna um enunciado.

A entonação exerce papel importante no momento da compreensão, pois a partir dela, uma palavra pode ocasionar sentidos completamente diferentes. É por isso que, Volochínov (2013) nos explica sobre a relação que a palavra tem com a vida, que ambas não podem ser separadas, porque a palavra perderia o seu sentido. É, justamente, por considerar a valoração da palavra e a relação que estabelece com a vida, que o Círculo nos permite analisar enunciados não apenas verbais.

Diante dessas considerações, é necessário que voltemos nosso olhar para o nosso corpus de estudo e analisemos a entonação/as entonações que permeiam o enunciado. Fizemos alguns recortes para melhor analisá-lo, os quais serão enumerados de 1 a 5. O primeiro que trazemos para análise inicia-se com a voz de um narrador masculino. E, é interessante lembrar que o vídeo da campanha Reposter Skol foi elaborado em home-nagem às mulheres pelo Dia Internacional da Mulher. Para homenageá-las, a empresa convidou artistas, todas mulheres, para refazerem pôsteres de campanhas anteriores da empresa. O enunciado verbal é:

Recorte 1: 0min01-0min10: [Narrador] Essas imagens fazem parte do nosso passado. O mundo evoluiu e a Skol também e isso não nos representa mais.

O fato da Skol ter optado por um narrador masculino para iniciar o vídeo de-nuncia alguns posicionamentos da empresa. Primeiro, é claramente demonstrado que o sujeito dialógico Skol se trata de um sujeito com características masculinas. Não apenas pelo fato da voz do narrador ser masculina mas, também pelo fato de que através das escolhas lexicais desse sujeito, quando utiliza as expressões “nosso passado” e “isso não nos representa mais”, demonstra que a voz associada ao emprego do pronome posses-

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sivo “nosso” indica que este passado também é pertencente ao narrador, ou seja, o nar-rador também está envolvido nessas ações passadas que a Skol quer, agora, repostar. E, quando utilizam o pronome “nos” para indicar que a prática de objetificação da mulher não mais representa os posicionamentos da marca, o narrador também se envolve na ação, revelando-nos um narrador masculino, por conta de sua voz e também porque reconhece que suas propagandas anteriores tinham como objetivo atender à um imagi-nário masculino, reforçando e reproduzindo discursos machistas.

A entonação do narrador, ao enunciar o trecho acima, é de autoridade, seriedade e também comprometimento de que haverá mudanças nas próximas publicidades da marca. A partir dessa entonação, observamos que existe um sentimento de “mea culpa” da Skol, em que traz à tona seus pôsteres anteriores para mostrar a seu público que não irá mais continuar a representar as mulheres sob o estereótipo de corpo perfeito.

Dessa forma, compreendemos que neste primeiro recorte, o todo enunciativo é completamente ideológico, pois nos revela um posicionamento que a empresa quer pas-sar aos seus clientes/consumidores/interlocutores: o de mea culpa, em que a Skol diz estar atualizada, que compreende ter errado no passado com a representação machista e objetificada do corpo feminino. E, o posicionamento que está velado neste enunciado: de que o sujeito dialógico Skol é um sujeito masculino, que quem fala e quem decidiu que era hora de haver mudanças nos discursos que a marca disseminava é um sujeito masculino, e que é este sujeito que irá dar voz às mulheres, que irá mostrar como a Skol irá valorizá-la e por reconhecer o potencial feminino, este sujeito (que representa a mar-ca, bem como suas ideologias) convidou artistas, notadamente mulheres, para repostar os pôsteres “do passado”.

É interessante destacar que as vozes das ilustradoras, bem como a imagem delas trabalhando, só aparecem na sequência fílmica do vídeo após a fala do narrador – que foi transcrita no trecho acima – e após a imagem em que alguns pôsteres de campanhas anteriores são rasgados. Por isso, tomamos como segundo fragmento de análise o mo-mento em que os pôsteres são rasgados. Este ato de rasgar os pôsteres é muito significa-tivo, pois simboliza a atitude da marca de rasgar todos os pôsteres anteriores a Reposter Skol e com isso também rasgar/apagar o seu passado.

Recorte 2: Imagem 1: Ato de rasgar os pôsteres. Fonte: Reposter Skol. (00:00:12).

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Nas partes que são rasgadas dos pôsteres aparecem algumas informações sobre o vídeo: a apresentação, com a logomarca da campanha, a quantidade de ilustradoras e o que elas irão fazer – recriar pôsteres de outras campanhas da Skol. Este segundo frag-mento não possui narrador, há uma música que é tocada ao fundo e a imagem é cons-truída a partir dos pôsteres sendo rasgados e os escritos para introduzir o momento em que as ilustradoras falam.

Quando o Círculo nos propõe a pensar que a linguagem não se resume apenas a enunciados verbais proferidos por determinados falantes e que, muitas vezes, são per-didos no processo de comunicação é, justamente, porque a linguagem não possui esses limites demarcados, ou seja, porque a linguagem consegue ser abrangente e aumentar as suas possibilidades, muito além do que exprimem as palavras. Dessa forma, uma ótima oportunidade para que possamos compreender a dimensão dialógica da linguagem é observarmos a construção deste segundo recorte do enunciado Reposter Skol. O ato de rasgar os pôsteres pode ser entendido a partir da discussão que Volochínov (2013) faz sobre o “gesto” porque, neste caso, este gesto é muito significativo ao ponto de potencia-lizar os sentidos do enunciado.

Se houvesse apenas o enunciado verbal ou apenas a música que é tocada ao fundo teríamos dois enunciados completamente diferentes. Porém, quando a Skol nos mostra mãos rasgando pôsteres de outras campanhas, torna-se outro enunciado com outros sentidos: o de que a marca irá rasgar, apagar, romper com o seu passado. E, quando acrescenta as informações que antecedem a fala das ilustradoras: “Skol apresenta: Re-poster. Seis ilustradoras recriando pôsteres antigos de Skol sob um novo olhar”, embaixo desses pôsteres que são rasgados, nos mostra que está rasgando algo para que surja algo novo, neste caso, os novos pôsteres.

O que também nos chama a atenção neste segundo recorte – além dos gestos de rasgar os pôsteres – sãos os escritos. Quando são denominados de “pôsteres antigos” os pôsteres que estão sendo rasgados, observamos a busca por um discurso sobre a moder-nização da marca. Ou seja, a Skol objetiva um projeto de dizer sobre ser moderna, porque estabelece e marca tempos: passado – porque não teremos mais esses pôsteres circulando na mídia da Skol; presente – porque as ilustradoras irão refazer os pôsteres e marcar o recomeço das campanhas publicitárias; e futuro – porque a partir deste momento, a Skol se compromete em mudar os seus discursos se pautando no respeito às mulheres.

Na sequência fílmica, aparecem as ilustradoras trabalhando em um estúdio, que percebemos ter sido montado para a filmagem, pois todas trabalham no mesmo lugar, mas com repartições em que cada uma ocupa um espaço diferente que é decorado com algumas de suas obras. O enunciado verbal do terceiro recorte são três falas diferentes de três das seis ilustradoras que aparecem no vídeo.

Recorte 3: 0min26-0min32: [Ilustradora 1] Eu aceitei esse convite, porque é importante desconstruir estereótipos, preconceitos.

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0min37-0min46: [Ilustradora 2] Uma coisa que eu tive muita vontade de fazer foi tirar a mulher de ser a pessoa que tá servindo a cerveja. Não! Ela tá toman-do a cerveja.

0min53-0min58: [Ilustradora 3] Que bom que a gente tá aqui pra dialogar sobre isso porque eu acho que o primeiro passo é o diálogo.

Como dito acima, as vozes das ilustradoras enunciam enquanto aparecem as ima-gens delas trabalhando em seus pôsteres com fundo musical que perpassa todo vídeo. A ilustradora 1 emprega entonação de reflexão, ou seja, ela reflete o motivo de ter aceito o convite. A ilustradora 2 deixa transparecer a sua indignação com o fato de que na maioria dos pôsteres a mulher está servindo a cerveja, por isso, ela diz com firmeza e manifesto: “Não! Ela tá tomando a cerveja”. A ilustradora 3 tem em sua entonação sen-timento de esperança, expectativa e crença em mudanças baseadas na conversa.

São, justamente, essas entonações que contornam o enunciado e ampliam as suas possibilidades de compreensão. Observamos que as ilustradoras respondem à proposta da Skol em refazer os pôsteres, quando percebemos os aspectos verbais: as palavras que enunciam; vocais: a partir das entonações que utilizam para enunciar; visuais: quando aparecem concentradas trabalhando. Podemos concluir, então, que é este todo enuncia-tivo, arquitetônico e estético que constitui o enunciado verbovocovisual.

Após a fala das ilustradoras, na sequência, elas aparecem em pé segurando os pôsteres que elaboraram. Não há falas e também não há narrador, apenas a música de fundo e as imagens. As ilustradoras apresentam sorrisos de confiança, no olhar serieda-de e demonstram sensação de dever cumprido. O quarto recorte, então, é o momento em que elas exibem seus trabalhos. A Skol optou por uma sequência fílmica em que as artistas não se movem – andam, fazem gestos etc. – mas, as cenas são recortadas em três momentos, criando assim, um efeito que sintoniza com a música de fundo, como mostramos abaixo com a sequência de apresentação do pôster da artista Eva Uviedo:

Imagem 2: Sequência de apresentação do pôster de Eva Uviedo. Fonte: Repos-ter Skol (00:01:05-00:01:06).

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Após todas as artistas apresentarem seus pôsteres, o quinto e último recorte é a finalização do vídeo, quando a ideia de rasgar os pôsteres volta à cena, porém o que é rasgado não se trata de pôsteres de outras campanhas publicitárias, mas sim de um fun-do preto, que ao ser rasgado mostra a logomarca e o slogan da campanha e, depois outro rasgo, também em um fundo preto, com o site e um aviso. Dessa forma, se constitui o quinto recorte, em que dividimos em alguns momentos a parte visual: o primeiro em que aparece um braço – por ser muito rápido, não é possível identificar se é de alguma das ilustradoras – depois, o momento em que está sendo rasgado e por fim, a mensagem final, que também surge a partir de um rasgo. No momento do primeiro rasgo, a voz do narrador masculino retorna para finalizar o vídeo e a sua fala são as mesmas palavras que aparecerem após ao fundo do papel preto que foi rasgado:

Recorte 5: 1min11-1min14: [Narrador] Skol: redondo é sair do seu passado.

Recorte 5 [verbal]: Se você encontrar um pôster antigo de Skol, avise a gente Skol.com.br/reposter

Quando pensamos que a Skol muda o seu posicionamento e diz que “redondo é sair do seu passado”, a palavra “passado” é carregada de subentendidos. Volochínov (2013, p. 80) nos explica que a parte subentendida do enunciado não se trata de algo a nível psíquico, ou seja, a nível de sentimento, pensamento, mas sim a nível socialmente objetivo. Por isso, afirma que:

O que eu sei, vejo, quero e amo, não pode ser um subentendido. Somente aqui-lo que nós, os falantes, sabemos, vemos, amamos e reconhecemos, no que esta-mos ligados, pode chegar a ser a parte subentendida de uma enunciação. Logo, o social em sua base é plenamente objetivo: trata-se antes de tudo uma unidade material do mundo, que forma parte do horizonte dos falantes [...], e da uni-dade das condições reais da vida, que geram a comunidade das valorações: o pertencimento dos falantes a uma mesma família, profissão, ou classe social, a algum grupo social e, finalmente, a uma mesma época, posto que todos os falantes são contemporâneos. (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 80).

Dessa forma, o subentendido da palavra “passado” nos transporta para todas as outras propagandas que antecederam Reposter Skol, como a Campanha “Dona Carmi-nha”, de 2001; a Campanha “Invenções”, de 2006, bem como diversas outras em que a Skol colocou o corpo feminino como um objeto que promoveria a venda de seu produto e a mulher em situações de deboche e machismo como o vídeo da propaganda “Aliança”, de 2003.

Além disso, a palavra “passado” também está relacionada a todos os movimentos, que surgiram na rede, ridicularizando os posicionamentos machistas da Skol, como a caso do outdoor com a frase “esqueci o não em casa” que foi respondido por duas ami-gas, que escreveram com fita isolante, de modo a responder a frase, “e trouxe o nunca”, em 2015, durante a campanha de carnaval da Skol “Viva Redondo”.

Com isso, entendemos que o presumido do enunciado é constituído de saberes e conhecimentos que pertencem aqueles que participam do momento em que o enuncia-

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do é proferido: falante e ouvinte/locutor e interlocutor, porque não se pode ter algo pre-sumido, se apenas um dos que interagem têm conhecimento de algo. Percebemos, desse modo, os recortes em análise, enquanto enunciados verbais, vocais e visuais, pois não é possível compreendê-los e veicular os seus sentidos de modo fragmentado, ou seja, se se-pararmos estes extratos e considerarmos apenas uma ou outra parte do enunciado. É por isso que o Círculo propõe a compreensão da linguagem em sua abordagem ampla, em sua dimensão dialógica, em que são travados entre esses extratos uma relação de embate.

Desta feita, consideramos Reposter Skol enquanto um enunciado verbovocovisual por trazer em sua composição elementos verbais, vocais e visuais que constituem o todo arquitetônico do enunciado, capaz de veicular sentidos respondendo significativamente a outros enunciados anteriores – os pôsteres de outras campanhas, as manifestações nas redes sociais etc. A partir do momento que compreendemos a linguagem enquanto dia-lógica, esses outros elementos – voz, imagem, gestos etc. – que constituem o enunciado precisam, também, serem considerados enquanto linguagem.

ConsideraçõesFinaisEsperamos que através deste breve estudo, tenha sido possível discutir sobre a

compreensão dialógica da linguagem, enquanto responsiva e social. E ainda, aprofundar o estudo sobre a noção de enunciado pensando suas dimensões verbais, vocais e visuais. Apesar dos estudos do Círculo de Bakhtin não terem se direcionado ao estudo de enun-ciados verbovocovisuais e ainda discursos midiáticos, encontramos fundamento teórico para trazemos à tona as considerações sobre entonação, imagem, voz, palavra etc.

Por conta disso, pensamos em analisar o enunciado contemporâneo e midiático Reposter Skol, que foi publicado em março de 2017 em homenagem às mulheres pelo Dia Internacional da Mulher. Para a análise do enunciado foi preciso recortá-lo, a fim de que pudéssemos realizar de modo minucioso a análise desses recortes. Observamos que os enunciados verbais também denunciam posicionamentos, como a palavra “passado”, que aparece no primeiro recorte e mostra que Reposter Skol existe para apagar algo que está marcado no passado de Skol, ou seja, o discurso machista. Além disso, também identificamos a voz masculina do narrador, enaltecendo assim, o lugar daquele que fala, neste caso, o homem que fala às mulheres.

No segundo recorte, o gesto de rasgar os pôsteres é bastante expressivo, porque significa o apagamento dos pôsteres anteriores e demonstra assim, um novo rumo para a publicidade da marca. O enunciado verbal que aparece logo após se rasgar os pôsteres é: “Skol apresenta: Reposter. Seis ilustradoras recriando pôsteres antigos de Skol sob um novo olhar”. É interessante pensar que este “novo olhar” em que foram pensados esses pôsteres se trata do olhar das ilustradoras, o olhar que elas têm a partir dos pôsteres anteriores e olhar que elas têm do corpo feminino retratado.

No terceiro recorte, aparece a voz das ilustradoras, em que três das seis artistas que aparecem no vídeo dão pequenos e breves depoimentos sobre o trabalho realizado por elas e o quarto recorte é o momento em que elas apresentam seus novos pôsteres. O último recorte se trata do slogan da campanha “Skol: redondo é sair do seu passado”. A palavra “redondo” é bastante utilizada pela marca, desde suas primeiras publicidades,

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o que permitiu ao produto ser conhecido pelo slogan “a cerveja que desce redondo”. O signo “redondo” traz ao consumidor a ideia de harmonia e equilíbrio, como se os com-ponentes da fórmula da cerveja se misturassem de forma simétrica e em concordância.

Diante disso, percebemos também que o enunciado em análise estabelece rela-ções dialógicas com outros enunciados que foram produzidos em outros momentos. Alguns desses enunciados-respostas que surgiram durante campanhas publicitárias da Skol se posicionaram contrários aos discursos machistas que eram disseminados atra-vés de pôsteres e vídeos que eram televisionados e divulgados na internet, em que o corpo feminino era objetificado. Esses posicionamentos contrários contribuíam para uma impressão negativa da marca, logo, uma propaganda negativa. Desse modo, iden-tificamos o discurso capitalista que age de maneira velada e cria a necessidade de se repensar os discursos e a forma de se fazer publicidade.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

_______. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016.

_______. Problemas da Poética de Dostoievski. 5. ed. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.

STAFUZZA, Grenissa Bonvino. Relatório Final de Atividades Desenvolvidas em Estágio Pós-Doutoral. Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizontoe, 2017. 53p. Mimeo.

VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. (1925-1930). A construção da enunciação e outros ensaios. Tradução de João Wanderley Geraldi. São Carlos: Pedro & João, 2013.

_______. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Referência do corpus:

Reposter Skol. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=g_8fnMtbdso> Acesso em: 26 jul. 2018.

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Notas sobre a variação lexical em Goiás: Uma análise a partir de gêneros e tipos textuais

Rayne Mesquita de Rezende25

Jozimar Luciovanio Bernardo26

ApresentaçãoTratar da variação, em qualquer nível linguístico, resulta em uma tarefa complexa,

pois são tênues as fronteiras que determinam e estabelecem o fenômeno da variação lin-guística. A própria delimitação dos conceitos de variação, variável e variante foi alvo de diferentes posicionamentos teóricos dentro do macrocampo da Sociolinguística. Esta dificuldade se estende a Ciências cujo foco é a heterogeneidade da língua, como a Diale-tologia, ou a outras que perpassam por este fenômeno, conquanto não seja seu principal objeto de estudo, como a Fonética, a Fonologia, a Morfologia, a Sintaxe. Por lidarem com a estrutura da língua e suas formas de uso, inevitavelmente, esbarram na variação.

Como explicar? Como descrever? Qual corrente teórica da Sociolinguística será a mais adequada? Embora façamos uma breve reflexão, visto que ao longo deste artigo nos defrontaremos com estes questionamentos, responder a tais indagações ou fazer uma revisão teórica sobre o desenvolvimento da Sociolinguística e suas vertentes não integram o escopo do presente trabalho. A proposta em tela atém-se a fazer uma análise do léxico em Goiás – uma das variantes diatópicas do português brasileiro (PB) – e ob-jetiva verificar se houve variação linguística nos textos goianos selecionados.

Entendemos as ocorrências lexicais e semânticas como parte do léxico neste lu-gar, mas que podem não ser exclusivas dele. Determinar um fato linguístico como ex-clusivamente regional, por vezes, é uma tarefa quimérica, uma vez que a língua, em quaisquer dos seus níveis (lexical, semântico, morfológico, fonético ou sintático), não possui uma fronteira geográfica que delimite com exatidão os usos de uma comunidade em uma dada região. As suas diversas possiblidades de execução são aceitas socialmen-te, em maior ou menor grau, desde que não firam a gramática da língua – aqui com-preendida em sentido lato – internalizada e memorizada pelos falantes.

Os falares regionais apresentam entre si coincidências fundamentais, tornando-se uma das normas de realização da língua, dotada de particularidades, que denotam o léxico da região. Portanto, nos moldes da Sociolinguística para a composição de uma

25 Universidade Estadual Paulista - UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa. Contato: [email protected] Universidade Estadual Paulista - UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa. Contato: [email protected].

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amostra, a amplitude que é fazer uma análise do léxico goiano exige como direciona-mento a delimitação dos aspectos linguísticos a serem observados, tais como o recorte temporal e a modalidade da linguagem verbal. Respeitante ao espaço, este já fora eleito. Desta feita, a faixa temporal selecionada abrange o século XX, sobretudo as suas dé-cadas iniciais. Quanto à forma de linguagem, restringimo-nos à escrita, visto que não temos acesso a registros da língua falada deste período.

Ademais, dado o dever de explorarmos a perspectiva dos gêneros e tipos tex-tuais somada ao estudo do léxico regional, temos como objetivo secundário articulá-los ao estudo da variação linguística em Goiás. Para tanto, seletamos textos dos domínios discursivos ficcional e instrucional (MARCUSCHI, 2015). No domínio discursivo fic-cional, grosso modo, situam-se gêneros textuais elaborados a partir de elementos ima-ginários baseados no “mundo real”, ou seja, não fazem referência objetiva à realidade, caracterizando um trabalho criativo e artístico, como contos, poemas, lendas, crônicas, fábulas, peças de teatro, romances etc. O domínio discursivo instrucional, como o nome evidencia, abrange gêneros textuais cujo propósito do discurso é instruir, dar orienta-ções sobre algo, por exemplo, artigos científicos, teses, dissertações, resenhas, dicioná-rios, enciclopédias, conferências, seminários, colóquios etc.

Algumas das reflexões aqui apresentadas advêm dos resultados da pesquisa de mestrado “Configurações da linguagem em Goiás: um estudo dos regionalismos lexicais sob o viés metalexicográfico” (REZENDE, 2016), em que foram verificadas as formas de registro e a marcação de uso nos dicionários gerais de língua portuguesa para as lexias que compõem o Glosário27 Regional, um dos capítulos do livro “Estudos de Dialetologia Portuguesa – a linguagem de Goiás” (TEIXEIRA, 1944). Por ser o primeiro acervo lexi-cográfico que intentou registrar o léxico em Goiás, tomamos como ponto de partida as unidades lexicais atestadas nesta obra, como parte do léxico vernacular na região.

Na sequência, traçamos um breve percurso histórico do estado de Goiás, o que indubitavelmente influenciou na constituição cultural e lexical dos falantes desta região. Em seguida, passamos para a exposição do aporte teórico e das análises de algumas das unidades lexicais que fizeram/fazem parte do uso lexical em Goiás.

1.Constituiçãosócio-históricaedemográficadeGoiásVersar sobre a manutenção, a modificação ou a variação dos signos linguísticos e

dos significados que lhes são atribuídos em determinada região implica, em primeira or-dem, a observação dos fatos históricos. Estes são preservados e manifestos na memória de uma sociedade por meio da língua, visto que o processo de associação entre os signi-ficados e os sentidos relaciona-se, em certa medida, ao que é corrente no contexto social.

Pontuaremos, de forma sintética, em uma espécie de linha do tempo, a cronologia dos principais acontecimentos que delinearam a estrutura social e histórica de Goiás, em termos de formação territorial, povoamento e surgimento das cidades goianas. Go-mes e Teixeira Neto (1993, p. 61) destacam seis eventos como cruciais:

27 Grafia original, conforme consta na obra “Estudos de Dialetologia Portuguesa – Linguagem de Goiás”. Todos os excertos retirados foram transcritos exatamente como o grafado pelo autor em 1944, sem adequação para a norma ortográfica atual.

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I. A corrida do ouro (século XVIII): marco inicial da então Capitania de Goi-ás como parte do Brasil, com a adentrada e permanência da expedição bandei-rante de Bartolomeu Bueno da Silva em 1722, que se estabeleceu às margens do Rio Vermelho e iniciou o garimpo do ouro de aluvião, dando origem aos arrais e povoados que, mais tarde, transformaram-se nos municípios goianos atuais. Os elementos étnicos que compuseram a população goiana foram basi-camente o europeu/branco (de origem, principalmente, portuguesa e os des-cendentes nascidos no Brasil), o ameríndio (nativo do ambiente) e o africano/negro trazido para o trabalho escravo.

II. Agropecuária tradicional (séculos XIX e XX): com a escassez do ouro, a mineração deixa de ser a principal atividade econômica. Assim, a agricultura e a pecuária tornam-se as atividades de subsistência da população (PALACÍN; MORAES, 2008). A criação de gado/ pecuária passou a ser a principal ativida-de econômica do estado.

III. Mudança da capital do estado (século XX, década de 30): a construção de Goiânia e a transferência do poder estadual da antiga capital (Cidade de Goiás) para a nova cidade proveram razoavelmente aos cidadãos de serviços basilares, como educação, saúde, estruturação do setor terciário etc.

IV. Colonização espontânea e oficial das zonas pioneiras do estado (século XX, entre 1940 e 1950): a Marcha para o Oeste – projeto federal de interioriza-ção, iniciado no governo de Getúlio Vargas seguindo até o governo de Juscelino Kubitscheck – trouxe para Goiás uma leva de trabalhadores mineiros, nordes-tinos, nortistas e, em menor proporção, goianos procedentes de outras regiões.

V. Construção de ferrovias e rodovias de integração nacional (século XX, de 1956 a 1961): um segundo momento que impulsionou o fluxo migratório em direção a Goiás foi a construção de Brasília (1956-1961). Ademais, a im-plantação de uma infraestrutura que suprisse a nova sede do governo federal, como a construção de estradas (Belém- Brasília, BR-050, BR-354, BR-452 etc.), e de hidroelétricas beneficiou a população com a chegada de energia elétrica;

VI. Expansão recente baseada nas culturas de soja e cana-de-açúcar e na pecuária melhorada (século XX, a partir da década de 70): a implantação da agroindústria trouxe para a economia de Goiás fortalecimento e maior au-tossuficiência. No entanto, as consequências da nova dinâmica de produção agrícola em larga escala e a substituição do trabalho humano pelo das má-quinas agrícolas foram umas das principais causas para o êxodo rural e, por conseguinte, para o crescimento desordenado dos grandes centros urbanos (Goiânia e Brasília).

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

Após está incursão sobre a constituição territorial e demográfica de Goiás, pas-samos, no próximo tópico, para a discussão acerca do léxico e da variação linguística diatópica, que possibilitou identificarmos na linguagem os traços resultantes dos fatos históricos supracitados.

2.Léxicoevariação:nastramasdacomunicaçãoQuando pensamos no que é a língua e qual é a sua função, de imediato, nos vem

a resposta: a língua é um diassistema de possibilidades combinatórias, executadas por meio da linguagem verbal – instrumento de interação social – para cumprir a sua fun-ção, que é a de comunicar, tornar comum, compartilhar, transmitir uma informação me-diante a construção de mensagens retiradas de um sistema ou código (BORBA, 2008).

Todavia, para que isso aconteça, uma infinidade de aspectos linguísticos e ex-tralinguísticos precisam ser acionados de forma ordenada, de modo que se chegue do sistema abstrato (língua) à realização de sua função (comunicação). É no rol das formas adotadas para a execução da função que temos os gêneros textuais como possibilidades de realizações linguísticas, conforme nossos objetivos e a situação em questão. Marcus-chi (2015, p. 154, grifo do autor) assevera que:

[...] é impossível não se comunicar verbalmente por algum gênero, assim como é impossível não se comunicar verbalmente por algum texto. Isso porque toda a manifestação verbal se dá sempre por meio de textos realizados em algum gênero. Em outros termos, a comunicação verbal só é possível por algum gê-nero textual. Daí a centralidade da noção de gênero textual no trato socioin-terativo da produção linguística.

Desse modo, observamos que o processo da comunicação verbal se assenta so-bre três pilares: o domínio discursivo – esfera da vida social ou institucional, na qual se dão as práticas que organizam as formas de comunicação, produzindo modelos de ação comunicativa, com propósitos e efeitos definidos; o gênero textual – textos mate-rializados em situações comunicativas recorrentes em nosso cotidiano e que possuem padrões sociocomunicativos definidos de acordo com sua função, objetivo e estilo; e o tipo textual – sequência textual definida pela natureza linguística de sua composição (MARCUSCHI, 2015).

Com base no princípio de que sempre nos comunicamos (nas modalidades oral e escrita) por meio de gêneros e tipos textuais e que estes se constituem social e histo-ricamente, no âmbito da linguagem verbal utilizaremos os textos apresentados e classi-ficados abaixo como corpus para a investigação acerca da variação lexical diatópica em Goiás, conforme explanamos no início deste trabalho.

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Quadro 1 - Aspectos das obras literárias que compõem o corpus.

Título SínteseDomínio

discursivoGênero textual

Tipo textual

Minha Infância (CORALINA, 2001)

Como uma espécie de memorial, o poema relata as desventuras da infância da autora na velha Cidade de Goiás.

Ficcional Poema Narrativo

A mulher que comeu o amante (ÉLIS, 2005)

Triângulo amoroso às margens do rio Santa Teresa, nos ermos sertões goianos entre o velho Januário, a jovem Camélia e Izé, seu ex--namorado. Os dois se unem, matam o velho e jogam seu corpo para as piranhas do rio.

Ficcional Conto Narrativo

À beira do pouso (RAMOS,1959)

Estória de assombração contada pelo vaquei-ro Aleixo aos amigos tropeiros ao redor da fogueira, acampados no meio da mata.

Ficcional Conto Narrativo

Org.: os autores.

Os três textos literários pertencentes ao domínio discursivo da ficção foram escolhidos por serem parte de obras de cunho regionalista que expressam o contexto sócio- histórico de Goiás, do período escolhido para análise. Sustentamos nossa afir-mação com base em uma investigação prévia sobre quais os tipos de gêneros e textos poderiam ser aqui utilizados para a nossa proposição.

Os autores Hugo de C. Ramos (1895-1921) e Bernardo Élis (1915-1997) se torna-ram nacionalmente conhecidos justamente por serem integrantes do movimento literá-rio regionalista, que alcançou significativa projeção durante a fase pós-moderna da Li-teratura brasileira. Cora Coralina (1889-1985), embora não tenha se filiado a nenhuma corrente literária, sempre teve como temática central em suas obras a vida e o cotidiano de sua terra natal, a Cidade de Goiás.

Retomamos a fala de Marcuschi (2015) para, a partir dos gêneros e tipos textuais, adentrarmos efetivamente no nosso objetivo: dissertar sobre a variação lexical. O autor afirma que é “impossível” não nos comunicarmos com a linguagem verbal sem fazer-mos uso dos gêneros e tipos textuais. De fato, isto é tão inerente ao ato comunicativo que o fazemos sem nos darmos conta.

No entanto, para que os gêneros e tipos textuais possam ser determinados, orga-nizados e servirem de instrumento de comunicação, precisam de uma espécie de fonte de energia ou combustível que possibilite sua atuação. A língua funciona como esse conjunto de fontes, uma vez que da articulação dos seus subsistemas (léxico e gramáti-ca) surge a linguagem. Entre essas fontes de energia, restringimo-nos a abordar, dora-vante, o léxico.

Destarte, é no processo de nomeação da realidade – o primeiro sinal de reconhe-cimento e de identificação dos objetos, das entidades e dos elementos abstratos – que se inicia a interação social via linguagem verbal, posto que: “[...] ao nomear, o indivíduo se apropria do real, como simbolicamente sugere o relato da criação do mundo na Bíblia,

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

em que Deus incumbiu ao primeiro homem dar nome à toda criação e dominá-la.” (BIDERMAN, 1987, p. 81).

Seguindo essa linha de raciocínio, o léxico, conjunto das unidades lexicais28, re-presenta simbólica e linguisticamente, por meio do nome (signo linguístico, o conceito e o referente), o universo que nos rodeia. Tudo o que nos cerca tem impreterivelmente um nome. Em se tratando de uma descoberta científica, por exemplo, o primeiro passo, depois da criação/surgimento do objeto e de sua função, será a atribuição de um nome. Até mesmo nós, quando nascemos, só existimos legalmente depois do registro civil, que nos identifica como parte de uma nação quando recebemos um nome e, pelo nome da família de nossos genitores, a que clã pertencemos.

O embasamento nessa concepção de léxico transparece o seu caráter de acervo cultural, em que os membros de uma sociedade são responsáveis por sua elaboração e manutenção. Sobre essa correlação abstrata e funcional entre léxico e cultura, Biderman (2001) destaca que as mudanças sociais e culturais implicam também em alterações no léxico. A autora afirma que os falantes geram a semântica da língua “[...] ao atribuírem conotações particulares aos lexemas, nos usos do discurso, os indivíduos podem agir sobre o Léxico, alterando as áreas de significação das palavras.” (BIDERMAN, 2001, p. 179). É justamente esse caráter dinâmico que faz do léxico o mais aberto dos subsiste-mas da língua, bem como o nível linguístico em que os reflexos das mudanças sociocul-turais são mais percebidos.

Sendo assim, sistematizar e organizar todo esse imenso contingente de signos, significados e sentidos é uma empreitada árdua, laboriosa, que fica a encargo dos di-cionários, instrumentos responsáveis pela tentativa de registro e legitimação dos usos lexicais de uma comunidade linguística. Logo, o dicionário geral29 assume o papel de código normativo e instrumento imprescindível na fixação de uma língua escrita (BI-DERMAN, 2003), o que justifica ser considerado aqui como parâmetro para a classifi-cação das unidades lexicais concorde à sua ocorrência.

Tamanha é a importância do dicionário como detentor da norma lexical de um idioma, que, no âmbito dos domínios discursivos, ele é considerado como de ordem instrucional, categoria que, por sua vez, abrange as instâncias científica, acadêmica e educacional (MARCUSCHI, 2015). A partir desta perspectiva, aliada à pesquisa30 rea-lizada anteriormente, identificamos, no poema e nos contos literários escolhidos, uni-dades lexicais que depreendemos como peculiares ao linguajar goiano de meados do século XX. Estas unidades tiveram seus usos apontados como recorrentes em Goiás por

28 Na terminologia científica da Lexicologia, a unidade lexical corresponde à palavra na linguagem comum. Destacamos que o termo unidade lexical foi adotado por ser mais abrangente e permitir a alusão tanto ao lexema, unidade abstrata que compõe o sistema lexical, como a lexia, que consiste na manifestação discursiva do lexema (BIDERMAN, 1999).29 As nomenclaturas geral e parcial para a classificação tipológica dos dicionários utilizados partem do que é postulado por Haensch (1982), nome de referência na esfera dos estudos metalexicográficos. O termo geral alude aos dicionários que têm como proposta lexicográfica o registro de uma porcentagem elevada e representativa do vocabulário mais usual de uma língua, ainda que não sejam integrais, o que seria impossível devido ao caráter dinâmico e expansivo do léxico. O termo par-cial, por sua vez, denomina os dicionários que têm como proposta registrar um subconjunto de unidades léxicas da língua, tendo como referência a língua geral como diassistema, sustentando-se, para tal classificação, em critérios variados (temporal, espacial, social, técnico-científico etc.) (HAENSCH, 1982).30 Pesquisa de mestrado, “Configurações da linguagem em Goiás: um estudo dos regionalismos lexicais sob o viés metale-xicográfico” (REZENDE, 2016), explanada nas considerações iniciais deste trabalho.

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dois acervos lexicográficos do tipo parcial/regional. O primeiro é o Glosário Regional, um dos capítulos da obra “Estudos de Dialetologia Portuguesa – linguagem de Goiás”, escrita na década de 1940, por J. A. Teixeira (1944). Com orientação semasiológica, contempla 252 unidades lexicais frequentes no repertório léxico em Goiás em meados de 1940 e é estruturado em forma de tabela.

O segundo acervo é o “Dicionário do Brasil Central” de W. B. Ortêncio (2009), segunda edição, lançado pelo Instituto Centro Brasileiro de Cultura (ICBC). A obra contempla nove mil verbetes e aproximadamente vinte mil definições. Em sua introdu-ção, o editor afirma que o objetivo do dicionário é registrar o léxico do Brasil Central, “[...] ampla região cultural que abrange o Triângulo Mineiro, o Oeste Baiano, o Mato Grosso, o Distrito federal, o Tocantins e Goiás [...]” (UNES, 2009, p. 6).

No Quadro 2, elencamos as unidades identificadas nos contos literários, no poe-ma e nos dicionários parciais, seguidas dos trechos dos respectivos textos em que apa-recem e das definições contidas nos acervos lexicográficos.

Quadro 2 – Unidades lexicais selecionadas para análise.

Unidade lexical Excerto da obra literária Glosário Regional Dicionário do Brasil Central(a) Caseira “O extraviado chamava-se

José. Izé da Catirina (Cati-rina era a mãe dele). Tinha parentesco com Camélia, a caseira de Januário” (ÉLIS, 2005, p.111).

Brasileir. – sf. Amasia, concubina. Já reg. em C. Fiº. Local: Itaberaí

1 Mulher responsável pelo serviço doméstico; [...]. 2 Amasiada:

(b) Cuca “Adivinham, se podem, o que vi então, todo apaler-mado, assombrado mesmo. – O “cuca”! – aventurou tímido, um.” (RAMOS, 1959, p. 38)

Brasileir. – sm. Temor in-fundado. Cfer: Enfiar cucas na cabeça de alguém = por medo. Corr. de coca = pa-pão. Em castelhano coca é uma máscara que se destina a fazer medo às crianças. Etmol. do ambundo kuku? Local: Jaraguá

1 Cabeça. 2 Assomo; suspei-ta; dúvida • fundir a cuca; Encabular-se; ficar muito preocupado: [...].

(c) Empalamado “Eu era triste, nervosa e feia. Amarela de rosto empalamado. De pernas moles caindo à toa.” (CO-RALINA, 2001, p. 168)

(Empalemado) Etm. pop. – adj. Anêmico, pálido. Corr. de empalamado, ter-mo popular, der. de emplas-mado. Local: Nordeste

Opilado; com amarelão:

(d) Inzoneira E a casa alheada, sem pres-sentir a gestação acrimo-niosa repisava:— “Menina inzoneira!” (CORALINA, 2001, p.171)

(Inzoneiro) Etm. pop. – adj. Embusteiro. Corr. de onzeneiro. Local: S. Luzia (Santa Luzia)

(Inzoneiro)1.Mentiroso. 2. Embusteiro; intrigante. 3. Lerdo: [...].

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Diante das reflexões desenvolvidas até o momento, consideramos a estreita cone-xão entre léxico, cultura e sociedade como um fator determinante para a configuração da variação linguística no nível lexical. Logo, se são os falantes os responsáveis por criar, recriar e conservar os significados e sentidos vigentes no léxico de uma língua e se estes, em razão dos fatores sócio-históricos a que estão submetidos, comportam-se linguisti-camente de modo heterogêneo, surge o fenômeno da variação.

Seguindo a linha da Sociolinguística variacionista/quantitativa, tomamos de em-préstimo a definição de Tarallo (2007, p. 8, grifos do autor) para os termos variação, variante e variável:

Em toda comunidade de fala são frequentes as formas linguísticas em varia-ção. [...] a essas formas em variação dá-se o nome de “variantes”. “Variantes linguísticas” são, portanto, diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade. A um conjunto de varian-tes dá-se o nome de “variável linguística”.

Aplicar, no nível lexical, a definição de variação linguística supramencionada sig-nifica dizer que, nesta esfera, a variação realiza-se mediante a existência de duas ou mais unidades lexicais que denominam a mesma coisa/conceito. A análise das unidades léxi-cas do quadro 2 ilustra esta afirmação. Para tanto, elaboramos o diagrama que contém os significados atestados em dois dicionários gerais contemporâneos às publicações dos dicionários parciais/regionais: o “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa” (LIMA; BARROSO, 1943) e o “Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa” (HOUAISS; VILLAR, 2009).

Embora uma faixa temporal de mais de cinquenta anos separe as obras (dos tipos gerais e parciais) atuais das antigas, o significado se manteve igual. Em alguns casos, as pequenas alterações não modificaram a matriz semântica do significado de nenhuma das unidades lexicais, conforme vemos no esquema abaixo:

Esquema 1 – Os conceitos e suas variantes.

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Na coluna 1, temos a síntese resultante da consulta das unidades léxicas nos qua-tro acervos lexicográficos, contextualizadas conforme os sentidos adquiridos em sua realização nos textos literários. Na coluna 2, subdividimos e organizamos as variáveis em dois quadros. No primeiro quadro desta coluna, temos as variantes que tomamos como padrão, de acordo com a consulta aos dicionários gerais, visto que são unidades lexicais do léxico geral do português brasileiro. O segundo quadro traz as variantes identificadas nos textos literários regionalistas e nos dicionários parciais/regionais, co-mo lexias recorrentes no estado de Goiás, na fração de tempo analisada.

Contudo, não podemos deixar de trazer à lume uma intrincada questão com que sempre nos deparamos quando o assunto é a variação linguística lexical regional e o modo como esta é classificada nos dicionários gerais a partir das marcas de uso, “[...] procedimento classificatório por meio do qual se torna possível perceber a variação linguística que se processa no eixo horizontal (regionalismos) e no vertical (registros sociolinguísticos)” (OLIVEIRA, 1999, p. 83). As quatro unidades lexicais que constata-mos como características da linguagem em Goiás figuram nos dicionários com a marca de uso “brasileirismo”:

Quadro 3 – Definições das unidades lexicais e marcações de uso nos dicioná-rios gerais.

Unidade lexicalPequeno Dicionário Brasileiro da Língua

Portuguesa (1943)Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua

Portuguesa (2009)Caseira s.f. (Bras., Norte) Mulher encarregada

do serviço doméstico; (V. Concubina); prisão de ventre; hemorróidas; (V. Diar-réia). (p. 256).

s.f. (sXV) 1 B N. mulher que faz o serviço doméstico 2 B N. concubina, amásia 3 B N. m.q. CONSTIPAÇÃO 4 B N. m.q. DIAR-REIA 5 CE infrm. m.q. HEMORROIDA • ETIM fem. substv. de caseiro [...].

Cuca s.f. (Bras.) Expressão com que se faz me-do às crianças; (V. Papão). (p. 354)

s.f. (1899) 1 entidade fantástica com que se mete medo às crianças; papão 2 B infrm. cabeça, crânio, coco 3 B infrm. equilíbrio emocional; mente, psiquismo [...] 4 B in-frm. inteligência, intelecto [...] • ETIM ver em 1coco \ô\ [...].

Empalamado adj. Coberto de emplastros; doente; mazelado; (Bras.) pálido como são as pessoas opiladas, hidrópicas ou de uma gordura frouxa e descorada; (Sul) doen-te, acanhado, O mesmo que empalema-do. (p.448).

adj. (1648) B m.q. EMPALAMADO • SIN/VAR ver sinonímia de pálido. Remissiva: empalamado adj. (1881) 1 coberto de ede-mas; coberto de emplastros 2 p.ext. atacado por doença; enfermo, achacadiço 3 B pá-lido como os hidrópicos; que tem gordura flácida • ETIM part. de empalamar-se [...].

Inzoneira (inzoneiro), adj. (Bras.) (pop.) Mexe-riqueiro, intrigante; sonso; mentiroso. Alteração de onzoneiro. A.I./S.

(inzoneiro) adj.s.m. (1899) B infrm. 1 m.q. ENZONEIRO 2 que ou quem é sonso, manhoso; enredador • ETIM var.gráf. de enzoneiro [...].

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A unidade lexical caseira, além de rotulada como brasileirismo, recebe a indi-cação de recorrência na região Norte do Brasil, em ambos os dicionários gerais. Logo, nestes acervos lexicográficos, vemo-nos defronte a um impasse: como considerar os lexemas que recebem essa dupla marca de especificidade de uso? O primeiro passo é entender o que é um brasileirismo. Tomando como referência a classificação feita por Oliveira (1999), em sua pesquisa sobre os brasileirismos no Dicionário Aurélio (edição de 1994), entendemos como brasileirismos gerais os grupos das unidades assinaladas como de uso em todo o Brasil.

Consoante Isquerdo (2007, p. 200, grifos nossos), em termos de variação linguís-tica no Brasil, devem ser considerados dois níveis de regionalismos:

[...] os gerais, entendidos como aqueles fatos linguísticos no nível lexical, atu-alizados em todo território nacional que se opõem à variante européia do por-tuguês, e os específicos, ou seja, aqueles que são peculiares de cada estado/região do Brasil. No primeiro caso, o ponto de referência é a norma européia e, no segundo, a variante brasileira tomada como padrão. Neste caso, classifi-cam-se os regionalismos com difusão em um ou mais estados da Federação (regionalismos do Paraná, do Amazonas, da Bahia, de Goiás...) ou nas dife-rentes regiões brasileiras (regionalismos do Norte, do Sul, do Centro-Oeste, do Sudeste ou do Nordeste). Esse tem sido o critério adotado pelos maiores dicionários gerais da variante brasileira da língua portuguesa: Dicionário Au-rélio e Dicionário Houaiss.

Então, os brasileirismos que classificamos como gerais, de acordo com os di-cionários, permanecem em todo Brasil, sendo variáveis apenas quando colocados em oposição ao léxico do português lusitano.

Dessa forma, retomamos a reflexão inicial deste texto: a dificuldade de classifi-cação das unidades lexicais como de uso exclusivamente regional. Entendemos que a solução mais adequada será não fazer uma classificação estanque, isto é, afirmar cate-goricamente que uma variante é realizada exclusivamente em um lugar, mas sim dizer que existe uma ocorrência de tal variante em maior proporção no locus investigado. Concluímos, por conseguinte, que as variantes lexicais caseira, cuca, empalamado e inzoneira apresentam/apresentaram uma frequência de uso em Goiás, porém não são utilizadas exclusivamente neste estado.

Feitos os apontamentos que julgamos imprescindíveis à discussão acerca da va-riação lexical diatópica, finalizamos este artigo sob a conclusão de que a tentativa de delimitação dos usos léxicos regionais/parciais caracteriza-se como um labor de alto grau de complexidade, haja vista o dinamismo e a rapidez com que o léxico se expande de um tempo e, sobretudo, de um lugar para outro, levando na memória de cada falante as representações e sentidos de seu espaço nativo, acrescentando novas realidades e significados ou ressemantizando os já conhecidos.

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ConsideraçõesfinaisMediante a exposição do arcabouço teórico, articulado ao corpus e à sua descri-

ção analítica, inferimos ter alcançado nossos objetivos primário e secundário: apre-sentar alguns casos de variação lexical recorrentes em Goiás, tendo como suporte os domínios discursivos ficcional e instrucional. Enquanto partícipes no meio pesquisado, reconhecemos em cada texto aspectos peculiares ao linguajar goiano, aqui demonstra-do sob a ótica da teoria variacionista. Desta feita, a compreensão de fatos linguísticos, ou, no conjunto do presente estudo, do sistema lexical, demanda uma perspectivação mútua entre língua e cultura, porquanto as unidades lexicais, cujos significados são compartilhados entre membros de uma sociedade, exprimem vários aspectos desta e expressam seu contexto sócio-histórico.

Convém ressaltar que, para levar este estudo a cabo, servimo-nos de conceitos da Sociolinguística e da Linguística Textual adaptados à execução de uma análise lexical. Em suma, o referencial teórico de diferentes sub-ramos da Linguística, além da Lexico-logia e da Metalexicografia – nossas áreas de pesquisa desde a graduação – possibilita-ram a ampliação de novos conhecimentos teóricos, bem como o entendimento de que a heterogeneidade da língua pode ser estudada sob uma perspectiva interdisciplinar por meio da articulação de conceitos das diversas áreas da Linguística, visto que a língua com suas multifaces assim o permite fazer.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

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Desenvolvendo a literatura e inclusão social no mundo dos surdos: Trabalhando o Youtube como plataforma de ensino

Suelen Aparecida de Oliveira31

Lucas Eduardo Marques Santos32

Anair Valênia33

IntroduçãoAo assistirmos vários vídeos na plataforma Youtube, nos deparamos com algumas

obras literárias que utilizam a Língua Brasileira de Sinais - Libras. Então, sob um olhar mais cuidadoso, observamos que muitas dessas produções são indicadas nos comen-tários (pelos internautas) para o desenvolvimento de estratégias de ensino de língua e literatura para alunos Surdos. Atualmente, alguns sites comercializam materiais desti-nados à área de educação especial. Neles nota-se um crescente trabalho de adaptação imagética de livros literários de cunho infanto-juvenil, com ilustrações que exploram didaticamente a capacidade visual do leitor.

A nossa intenção é desenvolver a literatura na rede pública de ensino do muni-cípio de Catalão, situada no estado de Goiás, aperfeiçoando e enriquecendo a expe-riência de leitura para educandos Surdos através do processo interativo entre alunos e educadores. Além disso, estimular o desenvolvimento cognitivo, subjetivo, linguístico e social dos alunos com surdez que são encontrados na rede de ensino dessa cidade. É de fundamental importância que as aulas sejam pensadas e elaboradas a partir de uma sequência didático-metodológica coerente e apresentem imagens nítidas em Libras de forma clara e objetiva.

Abordaremos aspectos que envolvem a temática do uso de multiletramentos e as semioses nas escolas, usando a internet como forma de ensino digital, permitindo primeiramente aos Surdos despertarem mais interesse pela leitura apresentada na mo-dalidade visual, por meio de vídeos em Libras postados na plataforma Youtube, e em segundo plano expandir seu conhecimento de língua. Outro ponto seria despertar o interesse de alunos ouvintes para a importância e uso da Libras, porém, este assunto

31 Aluna regular da Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística – UAELL, da Universidade Federal de Goiás Re-gional Catalão – UFG/RC.32 Aluno regular do Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem – PPGEL, da Universidade Federal de Goiás Regio-nal Catalão- UFG/RC.33 Professora da Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística – UAELL, da Universidade Federal de Goiás Regional Catalão- UFG/RC.

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não será abordado neste trabalho, pois demandaria outras abordagens que se vinculam ao ensino de segunda língua.

Questionaremos aqui o conceito de que os Surdos, por terem deficiência, não te-riam a capacidade de desenvolver habilidades literárias. Faremos alguns levantamentos e estudos a fim de comprovar nossa pesquisa em que o foco se encontra na abordagem literária e o uso de língua de sinais – LS.

O que importa neste estudo é abordar ocorrências transformativas que permeiam a literatura, quando esta assume uma forma digital. Torna-se, portanto, relevante saber seu conceito, como ela se desenvolve, suas possíveis mudanças, e até que ponto ela pode ser significativa na vida dos surdos.

1. Desenvolvimento

1.1. Signo Linguístico e a Libras

Segundo Saussure, a língua é basicamente o desenvolvimento do Sistema de Sig-nos que, pode ser de natureza verbal ou não verbal, pois para ele o signo linguístico é constituído por dois aspectos: o significante e o significado, como veremos a seguir.

O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a cha-má-la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato. O caráter psíquico de nossas imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria Lin-guagem. Saussure (CLG, 2006, p.80)

Para esse autor, a língua possui em seu cerne uma estrutura básica de formação das palavras. Nesse sentido, Saussure entende o significado como o conceito que se tem das coisas, do ambiente. Já o significante pressupõe o que denominou imagem acústica, o que seria visível, real e audível. Portanto, tem-se aí um ideário de que um sistema lin-guístico se constitui por uma produção de determinados signos linguísticos utilizados por um grupo de falantes. Sendo assim, a língua para Saussure tem sua elaboração a partir do uso sistemático desses signos.

Figura 01: Formação do signo linguístico Saussureano.

Fonte: BALLY, Charles; SECHEHAYE, Albert. (org.). Curso de Linguística Geral. SAUSSURE, Ferdinand de. Colaboração de Albert Riedlinger. Trad. de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 80.

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Rosenfeld (2011, p. 13) enfatiza que “a estrutura de um texto qualquer, ficcional ou não, de valor estético ou não, compõe-se de uma série de planos, dos quais o único real, sensivelmente dado, é o dos sinais tipográficos impressos no papel”. Essa afirmação nos leva a ponderar que há nos textos em Libras uma gama de elementos ‘planos’ que possibilitam linguisticamente os multiletramentos e que extrapolam o nível de simples texto, pois conforme Quadros (2004, p. 47-48) “as línguas de sinais são denominadas línguas de modalidade gestual-visual (ou espaço-visual), pois a informação linguística é recebida pelos olhos e produzida pelas mãos”.

Sob esse contexto, a plataforma Youtube permite ao contador explorar de forma gráfica e digital o uso de imagens nas edições dos contos de fadas, proporcionando ao Surdo um processo visual linguístico. O surdo, nesse contexto, entra em contato com todo o ambiente a que foi exposto, o que lhe permite, a partir de suas experiências, re-presentar as formas visuais utilizando princípios básicos que constituem os sinais.

Fonética e fonologicamente, Stokoe (1960), Battison (1974/1978) indicam prin-cípios constituintes dessas produções em LS observando a ASL (Língua de Sinais Ame-ricana). Por meio dessas pesquisas é que se observa a construção dos significantes em línguas viso-espaciais, sendo possível, por meio dos cinco parâmetros produzir ou re-presentar qualquer signo linguístico nessa modalidade de língua. São eles: a Configura-ção de Mão (CM) – forma que a mão possui na execução do sinal; Ponto de Articulação (PA) – local em que o sinal é realizado; Movimento (M) – os sinais possuem uma infi-nidade de movimentos, sejam circulares, helicoidais, retilíneos etc. Além disso, torna-se necessário evidenciar que há alguns sinais que não possuem movimento; Orientação da Palma (OP) – direção para onde a palma da mão estará virada na hora da produção desse sinal; Expressões Não-Manuais (ENM) que são elementos presentes nos sinais, porém, não possuem ligação com as mãos ou suas formas, este parâmetro, aparece nas expressões corporais e faciais, como se observa em Quadros e Karnopp (2004, p. 48-49)

Assim, deve-se começar a pensar as formas de organizar e abordar os gêneros digitais nas escolas, pensando nas multissemioses. Rojo (2009, p. 105–107), afirma que a multissemiose possibilita multimidiaticamente trazer a leitura digital, elevando seu ní-vel além do texto verbal escrito, associando sincronicamente os signos de outros gêneros como “imagem estática, imagem em movimento, música, fala” superando os meios digi-tais tomando conta também dos impressos que são os “jornais, revistas, livros didáticos.”

1.2.DesterritorializaçãoeReterritorialização:questõesculturais

Ao compreendermos cultura sob o viés binário de desterritorialização e reter-ritorialização, depreende-se uma relação dicotômica que se dá na projeção de uma cultura minoritária surda que se constrói em contrapartida a uma cultura majorita-riamente ouvintista34 que se forjou ao longo dos anos a partir das políticas sociais que apoiaram a normalização das pessoas com surdez sob a ótica clínica e prescritiva, neste sentido, vendo-os como incapazes e desabilitados, restringindo-os a sua deficiência e

34 Termo utilizado para designar a supremacia dos falantes de línguas orais-auditivas em relação à comunidade surda que se estabelece em uma comunicação viso-espacial, assim o uso desse termo sugere o menosprezo pela língua de sinais, pela cultura dos surdos e sua identidade.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

instaurando um regime do ‘Ser normal’ de acordo com uma sociedade majoritaria-mente composta por quem ouve, nota-se, portanto, o indicativo do uso de Tecnologias Assistivas – TAs, como aparelhos de surdez, implantes cocleares, inúmeras sessões com fonoaudiólogos a famosa ‘terapia da fala’ e uma metodologia oral de ensino que instiga o processo de leitura labial e produções sonoras por parte dos surdos . Desse ponto, nos alerta Perlin (2005, p. 74):

temos uma cultura hegemônica e, se essa cultura toma para si a tarefa de des-crever a outra cultura surda e dizer como a outra supostamente é, corre o risco de colocar a cultura surda sob posições próprias – por exemplo, o surdo não oraliza, não sabe escrever – ou mesmo incluir estereótipos, conceitos que en-capsulam aspectos culturais, ou ainda propor a presença de culturas híbridas.

Percebendo este sujeito (Surdo) como um ser que se desloca do ideal ouvinte ou universal e emerge em uma problemática de diferença específica da própria cultura, tornando-se, como a própria autora afirma, um ser autônomo que em algum momento filia-se a um determinado grupo social por questões de identidade como aponta Hall (1997), isso possibilita uma abertura de identificação natural ao processo sócio – histó-rico-cultural de que participam os Surdos35.

Esse deslocamento do Surdo em relação à cultura ouvinte pode ser visto como um ato de desterritorialização. Segundo a abordagem de Canclini (2011). As fronteiras culturais delimitam as noções de território e que para o autor não está necessariamente ligado às questões geográficas.

Pessoas surdas não trabalham em um mesmo local. Em alguns centros urba-nos, eles encontram seus pares surdos somente duas ou três vezes por semana e passam a maior parte de seu tempo em um mundo ouvinte. Esse fato produz um padrão de comunidade em que o tempo que os surdos permanecem juntos é fragmentado; por outro lado, são extremamente próximos uns dos outros. (KARNOPP, 2008, p. 3)

Neste sentido, os Surdos desterritorializam suas experiências culturais por meio de suas coleções ou descoleções36 em relação ao território ouvinte gerando assim como já mencionamos uma reterritorialização. Pois segundo Ramirez e Masutti (2009, p. 26), “para a construção de experiências visuais e ensino de línguas na atualidade, as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) têm-se revelado como um impor-tante campo a ser explorado”.

As TICs nos levam a pensar o quanto a tecnologia digital é importante no ensino, na comunicação e na alfabetização. A comunicação pode ser facilitada a longa distân-cia, podendo levar o letramento seja a onde for.

35 Neste trabalho nos referimos à identificação especificada pela autora Perlin (2005), porém quando Hall (1997) se propôs a pensar questões associadas à identidade, pensou de forma a abranger qualquer sujeito que participe de uma vida sóciocultural.36 Canclini (2011, p.302) indica que a cultura se formula a partir de um dispositivo de organização de bens simbólicos as coleções. Já as descoleções seriam uma decomposição que o indivíduo faz dessas formas rígidas que compõem as coleções, ou seja, é ao mesmo tempo uma transgressão ao que está posto socialmente.

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Um aspecto importante que devemos destacar é a adaptação de histórias de con-tos de fadas infantis para histórias infantis de personagens com surdez. Trazendo o mesmo enredo, mas mostrando a superação dos personagens surdos evidenciando o contemporâneo.

É muito importante para o aluno surdo que o professor tenha conhecimento e faça uso da língua de sinais, saiba usar os recursos digitais, estejam bem preparados psicologicamente e didaticamente, para que se realize uma ótima interação entre alu-no-professor. Será uma experiência para ambas as partes, de forma que é através das interações dialógicas que se é construído o conceito de sujeito surdo e é desenvolvido os processos cognitivos.

1.3. Literatura e o surgimento de uma literatura Surda

Inicialmente, abordar-se-á o conceito de Literatura. Para Aristóteles a literatura é a “arte de imitação” que em Grego chama-se mímesis, ou seja, é a manifestação artística ou atuação de práticas humanizadas pela linguagem. A literatura é determinada por sua época e vive em constante transformação. Deste modo, Rosenfeld (2011, p. 11) explica que a “literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras – obras científicas, re-portagens, notícias, textos de propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha e etc.”.

A literatura é a arte que envolve a linguagem e a escrita. Sendo assim, para en-tendermos melhor a definição do fenômeno literário devemos compreender a inter-re-lação que se dá entre autor/texto/leitor, em que as palavras devem não apenas possuir exatidão, mas serem imbuídas de subjetividade, ter um sentido polissêmico e por fim serem constituídas por uma significação plurissêmica e multissignificativa. Em seguida veremos a transição da literatura para literatura infantil entre os séculos XIX e XXI. Na concepção de Compagnon (2010, p. 34):

Após o estreitamento que sofreu no século XIX, a literatura reconquistou desse modo, no século XX, uma parte dos territórios perdidos: ao lado do romance, do drama e da poesia lírica, o poema em prosa ganhou seu título de nobreza, a autobiografia e o relato de viagem foram reabilitados, e assim por diante. Sob a etiqueta de paraliteratura, os livros para crianças, o romance policial, a história em quadrinhos foram assimilados. Às vésperas do século XXI, a literatura é novamente quase tão liberal quanto as belas-letras antes da profissionalização da sociedade.

No site G1.com “de acordo com o Ministério da Educação (MEC), estudantes surdos matricula-dos em escolas públicas recebem materiais didáticos impressos em Língua Portuguesa acompanhados por um CD em Libras”. Veja o gráfico ao lado:

Figura 02: Índice de matrícula de alunos Sur-dos e com deficiência auditiva ano 2010.

Fonte: Gráfico organizado pelos autores a partir dos dados disponíveis em: http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2011/10/literatura-em-libras--estimula-inclusao-e-desenvolvimento-de-criancas-surdas.html.

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Pesquisas do MEC, no ano de 2010, apontam para a real necessidade de haver produção de materiais didáticos e dinâmicos que contemplem uma formação cultural, identitária e linguística, levando em consideração os índices dos alunos com surdez severa ou profunda, além de estudantes que possuem deficiência auditiva matriculados em escolas comuns com total de 70.823 (setenta mil oitocentos e vinte e três) na 1ª série e 52.500 (cinquenta e dois mil e quinhentos) na 2ª série.

Surgem, portanto, adaptações culturais e traduções de contos clássicos em Libras como “Cinderela surda”, “o Patinho Surdo”, “Casal Feliz” etc. Posto isso, comungamos com Karnopp (2008), quando afirma que as relações entre o processo histórico e a li-teratura Surda atuam concomitantemente promovendo laços culturais e associam-se a uma questão de identidade.

No entanto, acreditamos que entre os surdos circulavam histórias sinalizadas, piadas, poemas, histórias de vida, mas em espaços que ficavam longe do con-trole daqueles que desprestigiavam a língua de sinais. Especificamente no pa-norama brasileiro, é possível constatar ainda que para muitas pessoas torna-se irrelevante e, para outras, decisivamente incômoda, a referência a uma cultura surda. (KARNOPP, 2008, p. 3)

Seguindo esse conceito, nota-se na fala dos autores Karnopp, Hessel e Rosa (2007, p. 5) como essa elaboração literária pode conter exemplos desses traços culturais “Cin-derela é uma jovem surda, que convive com a madrasta e as irmãs que sabem pouco a língua de sinais”. O encontro com o príncipe é surpreendente, pois ele é surdo e comu-nica-se com a Cinderela em sinais. As histórias que permeiam as práticas comunicativas Surdas sugerem uma valorização do conceito “SER SURDO” que passa a ser representa-do com orgulho explorando, portanto, toda a capacidade linguística e multissemiótica, deixando para trás o sentido clínico e marginalizador da surdez. Comungamos com Karnopp (2008, p. 15) quando diz que:

as histórias são contadas e circulam na língua de sinais, que repassa, de uma geração para outra, os valores, o orgulho de ser surdo, os feitos dos líderes sur-dos, as histórias de vida e as dificuldades de participação em uma sociedade que os exclui pela diferença linguística e cultural que possuem.

Assim, a Figura ao lado indica de forma visual al-gumas dessas adaptações culturais, que projetam e pos-sibilitam tanto a visibilidade das comunidades Surdas brasileiras, quanto as desterritorializações e reterrito-rializações, como visto acima em Canclini (2015), ape-sar de ainda serem recursos escassos e pouco difundi-dos na sociedade ouvintista em que estamos inseridos.

Figura 03: Livros que contêm adaptações culturais Surdas.

Fonte: adaptado de: http://gabiriguer-peadimbe.blogspot.com/2016/07/literatura-surda.html, https://falandoaverdade.com/surdos-discutem-politicas--publicas-direitos-humanos-e-acessibilidade-linguistica-e-lancam-o-livro-cu-rupira-surdo/ e https://www.livrariacultura.com.br/p/livros/infantil/a-familia--sol-la-si-11019543.

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Podemos observar que a criança está apta a desenvolver qualquer tipo de trabalho a partir de auxílio e monitoramento de um adulto. Segundo Luria, Vigotskii37 e Leontiev (1988), baseado em seus estudos psicológicos e sociais, ao estimular o cérebro da crian-ça (mesmo que ela tenha problema auditivo), o estímulo visual e motor, poderão ajudar qualquer tipo de ser humano progredir ou até mesmo chegar a um resultado positivo.

Desde o nascimento, as crianças estão em constante interação com os adultos, que ativamente procuram incorporá-las à sua cultura e à reserva de significa-dos e de modos de fazer as coisas que se acumulam historicamente. No come-ço, as respostas que as crianças dão ao mundo são dominadas pelos processos naturais, [...] Mas através da constante mediação dos adultos, processos psico-lógicos instrumentais mais complexos começam a tomar forma. Inicialmente, esses processos só podem funcionar durante a interação das crianças com os adultos. (LURI; VIGOTSKII; LEONTIEV, 1988, p. 27).

Entendemos que o processo de interação que ocorre a partir de repetição de exer-cícios propostos pelos adultos para que a criança faça a imitação é o que faz com que ela compreenda a ação. Luria (1988, p. 112) afirma que “com o auxílio da imitação na atividade coletiva guiada pelos adultos, a criança pode fazer muito mais do que com a sua capacidade de compreensão de modo independente [...] chama-se zona de seu de-senvolvimento potencial”.

Assim, para elucidar a fala do autor, recorreremos a uma publicação encontra-da no portal G1 que traz uma reportagem do dia 12 de outubro de 2011, baseada nos estudos da professora e coordenadora do Núcleo de Libras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Elideia Bernadino, intitulada: Litera-tura em Libras estimula inclusão e desenvolvimento de crianças Surdas, que relata a experiência de uma criança Surda, mostrando a importância da participação da mãe e avó desenvolvendo o interesse pela literatura de modo que todos participam ao mesmo tempo do letramento semiótico digital. Nessa matéria, podemos ver que a criança que tem o apoio familiar no multiletramento e que é submetida à aprendizagem bilíngue português/libras, ou seja, duas línguas padrões, são mais felizes e se desenvolvem fa-cilmente as duas línguas, passam se interessar mais por leituras e objetos pedagógicos, vejamos a Figura ao lado:

Figura 04: Interação em Língua Brasileira de Sinais – Libras.

Fonte: http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2011/10/literatura-em-libras--estimula-inclusao-e-desenvolvimento-de--criancas-surdas.html

37 O nome Vigotskii foi mantido conforme aparece no exemplar do livro em que a citação foi retirada.

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2. MetodologiaEscolhemos um vídeo, na plataforma Youtube, no qual é apresentada de forma

teatral uma versão do conto de fadas infantil “Chapeuzinho Vermelho” em Libras e es-colhemos uma aluna Surda, que chamaremos Joana Laura38, aluna surda da graduação do Curso de Letras da Universidade Federal de Goiás-UFG/RC, para fazer nossa expe-riência de aula multimodal.

Nesse vídeo aparecem as seguintes multissemioses: imagens, texto em Libras e legenda, expostas simultaneamente. No vídeo, a Intérprete fantasia-se de Chapeuzinho, instigando o telespectador a explorar a imaginação e sua concentração. Foi passado esse vídeo para Joana Laura e observamos que ela ficou atenta a todas as semioses apresenta-das. Logo em seguida, foram exploradas as multissemioses uma a uma.

Ao explorarmos o vídeo, foi solicitado que ela fizesse uma interpretação do texto em Libras, estimulando-a expressar o que sentiu ao ver aquela história, falando qual era o tema, quem eram os personagens. Fizemos com que ela transcrevesse algumas pala-vras, que entendesse a importância da literatura e a interação entre surdos e ouvintes.

Essa ação de letramento foi realizada dentro do Campus da UFG, sob a orienta-ção de um docente Surdo, tínhamos um projeto de extensão de ensino de Português pa-ra Surdos. O resultado foi satisfatório. A aluna nos surpreendeu com letramento digital, assim ela ficou segura e confiante em sua produção linguística tanto em primeira língua (Libras), quanto em segunda língua (Português).

3. Discussão e ResultadosA seguir investigamos o conto de fadas “Chapeuzinho Vermelho” em uma versão

que contemple as seguintes modalidades e semioses: texto, vídeo, língua brasileira de si-nais - Libras e áudio em um formato multimidiático e bilíngue disponível na plataforma de vídeos Youtube, sob as perspectivas de Ramirez e Masutti (2009).

Como o foco está na aplicabilidade das funções semióticas que compõem o ma-terial, organizamos esta análise afim de contribuir para um melhor aproveitamento di-dático- pedagógico do vídeo a ser trabalhado. Além disso, faz-se necessário indicar que, como o foco está em desenvolver uma pesquisa voltada para a área que envolve a surdez, não é considerada a língua na forma oral, ou seja, a questão relacionada ao bilinguismo.

Vejamos quais componentes semióticos podem surgir em uma literatura Surda que contemple e explore a capacidade tanto cognitiva (processos de abstração) e que tangencie questões indetitárias-culturais, incluindo também as produções em primeira e segunda língua:

38 Nome fictício utilizado para preservar a identidade da aluna participante da pesquisa.

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Figura 05: Espaço semiótico para Língua Brasileira de Sinais-Libras.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=fcUBA0d5tG8 39

A imagem ao lado apre-senta o espaço direcionado à pri-meira língua das comunidades Surdas brasileiras prevista na lei 10.436/02. Nesse caso, a Libras surge como língua de instrução, trazida de forma dinâmica (mo-vimento), que só será possível em formato de vídeo. O uso lexical em Libras apresenta e representa elementos gramaticais específicos não apenas da lín-gua, outrora sim, marcada pelas construções visuais dos sinais. Isso implica que por meio da Libras os Surdos brasileiros, que se tornam interlocutores, podem constituir, elaborar e reelaborar elementos linguísticos, culturais e aspectos de sua identidade co-mo Surdos brasileiros.

Outro fator que apontamos se delineia nas funções que emergem tanto das rela-ções fonético-fonológicas quanto de atribuições morfológicas, sintáticas e semânticas. O que possibilita ao sujeito surdo explorar as significações de sua língua, além de pro-mover um aumento do conhecimento vocabular e de língua.

Atreladas às questões linguísticas podem ser associados elementos que cooperam para a formação de abstração, bem como organização do pensamento e que permite aos Surdos ampliar saberes artísticos por meio dos signos linguísticos viso-espaciais.

Assim, chegamos aos elementos que estão associados à percepção das figuras em que os Surdos constroem os significados por meio de representações da realidade orga-nizando-as em sequência de fatos imagéticos que comporão um contexto.

Como se pode perceber nas Figuras 6 e 7, a constituição semiótica da imagem ganha um espaço de igual valor (tamanho) ao lado da produção em Libras. Isso implica nas experiências visuais de que as pessoas partilham e que edificam suas relações com o meio que estão inseridos.

As imagens selecionadas, as relações e construções em uma língua de modalidade viso-espacial podem ser direcionadas, pois leva-se em consideração o caráter icônico das línguas de sinais, portanto desse vínculo que surgem os signos linguísticos como expõe Saussure. O fato que aparece implícito é uma certa relação de transparência como sugeriram Klima e Bellugi (1979) comungada também por Quadros (1997).

39 Todas as imagens selecionadas para análise foram recortadas a partir do vídeo disponível na plataforma Youtube e são de domínio público.

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É, portanto, a partir dessas semioses que os Surdos podem constituir relações semânticas, o que acaba por imprimir nas pro-duções linguísticas textuais em LS o sentido. Na figura abaixo é pos-sível notar a elaboração semân-tica contextual em consequência da relação de representação das imagens.

Figura 06: Espaço semiótico para ilustrações.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=fcUBA0d5tG8.

A próxima imagem, que compõe a Figura 07, caracteriza a formação que deveria ser bilíngue em relação às pessoas Surdas. Verifica-se que a Língua Portuguesa-LP apa-rece em um plano abaixo tanto da representação imagética, quanto do texto expresso em Libras, indicando o Status-quo bilíngue.

Em consonância com a Lei 10.436/02, Parágrafo Único, o uso da Libras não deve substituir a modalidade escrita da LP. Isso caracteriza uma situação dicotômica entre os falantes que têm a Língua de Sinais como primeira língua-L1 e que, por viverem em uma sociedade majoritariamente ouvintista, devem escrever em sua segunda língua-L2.

Portanto, no vídeo a LP deve aparecer de forma objetiva utilizando seus elementos gra-maticais e formas de estruturação linguística, afim de, estabelecer a partir da visualidade e leitura das duas línguas uma condição de bi-linguismo dos Surdos.

Figura 07: Espaço semiótico para Língua Portuguesa-LP.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=fcUBA0d5tG8.

De tal modo, observamos também que o plano de fundo possui uma forma fi-xa, ou seja, permanece inalterada durante todo o enredo. Assim, a projeção da floresta contextualiza o ambiente em que a história é narrada, possibilitando aos Surdos uma referência do lugar onde o conto ocorre.

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Figura 08: Espaço semiótico plano de fundo (composição do ambiente).

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=fcUBA0d5tG8.

A partir das apresentações multimodais, em nosso estudo de caso da aluna Joana Laura, foi possível usar a internet a nosso fa-vor, dando a possibilidade à aluna surda interagir com os ouvintes, aguçando seus sentidos, levando-a a explorar sua imaginação e o uso da linguagem. A partir das apresentações multimodais, a aluna interagiu com os ouvintes, aguçou seus sentidos, explorou sua imaginação e o uso da linguagem.

A reação de Joana Laura no momento em que iniciou o vídeo foi a de atenção nos primeiros minutos, logo em seguida, ela sorriu e começou a sinalizar quando ela iden-tificava alguns sinais, como: a roupa com capuz na cor vermelha, o lobo, o lugar cheio de árvores, assim por diante.

De início, ela achou interessante a vestimenta que a contadora usava, em seguida pedimos que ela nos falasse qual parte que ela mais gostou. Identificamos que a aluna compreendeu todo o contexto da obra literária, sendo que a imagem a ajudou a com-preender a história, pois a cada página apresentada ela pode identificar vários lugares em que ocorreu o enredo. Linguisticamente, foram exploradas as multissemioses como as imagens, as cores, os objetos, adjetivos dos personagens etc. Esses signos contribuí-ram para elaboração textual em segunda língua por parte da aluna.

ConsideraçõesFinaisDurante a realização do Trabalho de Campo, assumimos o desafio de buscar o

envolvimento de profissionais de Libras e alunos que se propuseram ao ensino da Lite-ratura surda.

O objetivo principal da investigação foi desenvolver aspectos que envolvem os multiletramentos de pessoas Surdas nas nossas Instituições de Ensino de Catalão. Con-sideramos que o grande “facilitador” durante todo o transcurso do trabalho foi a Meto-dologia do Ensino dos Multiletramentos e as Semioses digitais.

Quando articulamos a proposta de um projeto de literatura Surda, estamos falan-do de um planejamento realista, integral e potente, que seja capaz de facilitar a interação dos Surdos nas escolas com os educadores, usando recursos digitais, necessariamente a plataforma Youtube com critérios de eficiência e eficácia.

Portanto, para que possamos desenvolver o projeto em questão é preciso que o aluno surdo tenha alguns outros letramentos, no qual ele venha assimilar a leitura e transcrevê-la de forma precisa, absorvendo os dados das multissemioses, Rojo (2009, p.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

105-106) relata que além de traçar com significação e de forma fixa a escrita, não para em só redigir e agrupar, mas também é preciso normalizar, comunicar, textualizar e intertextualizar uma obra.

Por fim, devemos ressaltar que, só obtivemos resultado positivo, devido aos Mul-tiletramentos digitais semióticos. Devemos explorar melhor esse conceito nas Institui-ções de Ensino, para que nossos futuros alunos tenham o gosto pela leitura e a interpre-tação textual e que possam incluir-se socialmente de uma forma diferente e didática.

Referências

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GARCIA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 4. Ed. 5. Reimp. São Paulo: Edição da Universidade de São Paulo, 2011. (Ensaios Latino-americanos, 1).

HESSEL, Carolina. Cinderela surda. / Carolina Hessel, Fabiano Rosa e Lodenir Karnopp. – Canoas: Editora Ulbra, 2003. Disponível em: http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2011/10/literatura-em-libras-estimula-inclusao-e-desenvolvimento-de-criancas-surdas.html e http://www.surdosol.com.br/o-livro-cinderela-surda-e-o-primeiro-livro-de-literatura-infantil-do-brasil- escrito-em-lingua-de-sinais/. Acesso em: 17 jul 2019.

KLIMA, E. & BELLUGI, U. (1979) The signs of language. Cambridge: Harvard University Press. QUADROS, R. M de. Educação de Surdos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

RAMIREZ, Alejandro Rafael Garcia, MASUTTI, Mara Lúcia. A educação de surdos em uma perspectiva bilíngue. Florianópolis: Editora da UFSC, 2009.

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

_______. Multiletramentos na escola / Roxane Rojo, Eduardo Moura (orgs.). São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. Colaboração de Albert Riedlinger. Trad. de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006.

VIGOTSKII, Lev Semenovich., LURIA, Alexander Romanovich, LEONITIEV, Alex N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Tradução Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

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Desafiosenfrentadospeloprofessor que atua ministrando umadiscilplinaquenãoédasua formação

Ingride Chagas Gomes40

Fabiola Aparecida Sartin Dutra Parreira Almeida41

IntroduçãoO presente artigo apenas delineará o percurso a ser realizado no decorrer de uma

pesquisa de mestrado que está em andamento. Serão apresentados os objetivos, a me-todologia e o referencial teórico adotado, a pesquisa foi submetida ao comitê de ética e aprovada, as entrevistas já foram realizadas, porém os dados estão sendo transcritos e analisados, sendo assim não há resultados para apresentarmos no momento.

O trabalho aqui proposto tem como fundamentação teórica principal a Linguís-tica Sistêmico-Funcional proposta por Halliday (1994), mais especificamente, o Sistema de Avaliatividade difundido pelos pesquisadores Martin e White (2005), e contemplará também autores do campo da Linguística Aplicada, no que diz respeito as pesquisas referentes a formação de professor.

No âmbito da pesquisa, entrevistamos os professores, aqueles que movimentam a roda gigante chamada educação, a fim de identificar através de seus discursos os proble-mas encontrados por eles dentro e fora da sala de aula. Tendo como foco, os professores que possuam formação em uma disciplina, mas são contratados para ministrar discipli-nas que não são de sua formação.

Muitos professores são alocados para ministrarem disciplinas que não são da sua formação, a fim de complementação de carga horária ou até mesmo devido à falta de um profissional qualificado para ministração daquela disciplina específica. A fim de so-lucionar problemas decorrentes deste deslocamento, o Ministério da Educação (MEC) tem criado medidas para solucionar o problema, são programas para formação inicial e continuada de professores. São eles: Formação no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, ProInfantil, Proinfo Integrado, e-Proinfo, Pró-letramento, Gestar II, Rede Nacional de Formação Continuada de Professores e o Parfor (Plano Nacional de For-mação de Professores da Educação Básica), uma ação emergencial que visa estimular a

40 Mestranda na Universidade Federal de Goiás – RC, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística, Programa de pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Estudos da Linguagem. Contato: [email protected] Profª Drª na Universidade Federal de Goiás – RC, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística, Programa de pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Estudos da Linguagem. Contato: [email protected]

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

formação em nível superior de professores em exercício nas redes públicas de educação básica, proporcionando-lhes oportunidades de acesso à qualificação profissional exigi-da pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Apesar da existência destes programas, sabemos que o problema persiste. Nossa hipótese é que esse deslocamento do professor promove dificuldades no processo de ensino e aprendizagem, gerando assim uma educação não tão qualitativa, o que nos leva a questionar: Como têm sido a experiência destes professores no planejamento e ministração das aulas? Qual o reflexo que isso tem gerado na sua prática pedagógica e na oferta da educação como um todo?

O cenário é preocupante, evidentemente a falta de formação é um problema para o contexto educacional e tem um peso muito grande nas mãos do professor, já que é ele que planeja e desenvolve as suas aulas. De acordo com a Constituição Federal Bra-sileira de 1988 a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, ela é responsável pelo desenvolvimento do cidadão, pela sua qualificação, neste sentido, deve ser gerida por políticas educacionais estabelecidas pelo Ministro da Educação (MEC) e entidades competentes.

Nesse sentido, o maior objetivo no âmbito da pesquisa é contribuir para os es-tudos da linguagem e formação de professores com uma investigação do discurso de professores da educação básica de Catalão - GO que lecionam disciplinas que não são a de sua formação a partir do Sistema de Avaliatividade, investigando como o professor se vê dentro deste contexto social, identificando e analisando os elementos léxico-gramati-cais avaliativos utilizados pelos participantes ao avaliar sua prática docente.

Considerando a importância do profissional professor no âmbito educacional, acreditamos que observar como estes professores expressam suas avaliações referente a essa temática, sobre suas experiências em sala de aula enquanto ministra uma disciplina para a qual não possui formação especifica poderá promover uma reflexão a respeito da formação docente, além de fomentar pesquisas na área da Linguística Aplicada e da Linguística Sistêmico-Funcional.

1. Metodologia

1.1. Caracterização e localização da pesquisa

Esta pesquisa se desenvolve numa perspectiva qualitativa e quantitativa. Qualita-tiva pois propomos compreender este grupo social, os professores que estão fora de sua zona de conforto, ministrando uma disciplina para a qual não possuem uma formação específica, realizando uma análise do discurso de base Sistêmico-Funcional (HALLI-DAY, 1994), a partir do Sistema da Avaliatividade proposto por Martin e White (2005), de modo a identificar como os participantes realizam suas avaliações ao discursar sobre sua prática docente e essa situação de deslocamento. Quantitativa, pois nesse processo utilizaremos como suporte o programa computacional WordSmith tools, que auxiliará na contagem e categorização dos dados, verificando as regularidades com o qual deter-minado termo aparece no discurso.

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A base complementar teórica da pesquisa é composta por Almeida (2010), Bar-bara e Macêdo (2009), Celani (2000), Vian Jr (2010), entre outros, que têm realizados pesquisas importantes na área da Linguística Aplicada, Linguística Sistêmico-Funcional e sobre Sistema de Avaliatividade, discutindo as teorias que embasam esta pesquisa

1.2. Contexto e participantes

É uma pesquisa de campo exploratória, haja vista que realizamos entrevistas com participantes que tem experiências práticas com o problema pesquisado. Foi, portanto, necessário submeter o projeto a aprovação do comitê de ética, estabelecer um diálogo junto à Secretaria de Educação do Estado de Goiás e a Secretaria Municipal de Educação da cidade de Catalão - Goiás, local onde a pesquisa foi realizada a fim de identificar os participantes da pesquisa. Para nosso critério de seleção, estabelecemos um perfil dos entrevistados, os participantes são professores que possuem formação em Letras Portu-guês, Português e Inglês e que ministram outras disciplinas que não são de sua formação.

1.3. Corpus

O foco da pesquisa, é analisar o discurso de professores que ministram disciplinas para as quais não possuem formação e identificar como esses sujeitos se expressam so-bre as experiências vividas no contexto educacional. Assim, se torna possível investigar como o professor se vê dentro deste contexto social, identificar os problemas encontra-dos pelos participantes dentro e fora de sala de aula, no planejamento e ministração das aulas e analisar os elementos léxico-gramaticais avaliativos utilizados pelos participan-tes ao avaliar sua prática docente.

1.4. Procedimentos de Análise

Identificamos os participantes da pesquisa, 5 professoras formadas em Letras que ministram outras disciplinas, que por meio de entrevista semiestruturada expuseram as opiniões frente a essa situação de deslocamento.

Os dados foram coletados através das entrevistas, foram gravados através do apli-cativo Gravador de Voz do Celular Samsung J8 e transcritas posteriormente. A fer-ramenta computacional Wordsmith tools 4.0, versão gratuita, que está sendo utilizada para auxiliar na categorização dos dados a fim de identificar os elementos avaliativos do discurso do professor.

2.FundamentaçãoTeóricaA fundamentação teórica desta pesquisa será dividida em duas partes: a primeira

contemplará autores que tratam da Linguística Aplicada, especificamente no âmbito da formação de professores. Para a análise linguística dos dados será utilizada a Linguística Sistêmico Funcional.

2.1. Linguística Aplicada

A Linguística Aplicada surgiu durante o período da Segunda Guerra, era uma disciplina da Linguística Teórica, a princípio o foco da disciplina era o ensino e apren-dizagem de línguas estrangeiras. Um dos principais motivos para o surgimento da dis-

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ciplina, era para se estabelecer a comunicação entre falantes de diferentes línguas, os estudos nesta época estavam voltados para a estrutura da língua, para o ensino da gra-mática e para a realização de tradução.

O primeiro curso de LA foi ministrado em 1946 na universidade de Michigan por Charles Fries e Robert Lado. Em 1948, a universidade de Michigan lançou a revista Language learning: A jornal of applied linguistics, esta primeira revista que se referiu ao termo “linguística aplicada”. Em 1964 foi realizado o primeiro Congresso da Associação Internacional de Linguística Aplicada (AILA). No Brasil, a LA dá seus primeiros passos em 1970 com a criação do Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada do Ensino de Línguas da PUC-SP, tendo como precursora a pesquisadora Maria Antonieta Celani, na época os estudos da área ainda se concentravam no ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras. Desde então, vários programas de pós-graduação aderiram a disciplina em seu fluxo a de disciplinas, na graduação apenas depois dos anos 2000 é que as instituições, os programas de Letras sentiram a necessidade de contratar linguis-tas aplicados para compor o quadro de professores na graduação.

Um traço característico das pesquisas na área é o interesse por problemas de diferentes ordens: ensino de línguas, tradução, confecção de dicionários, sin-gularidades das relações de serviço (atendimento em guichê, relação entre profissionais e clientes), ações diversas de peritagem na empresa, na justiça, etc. Há de se reconhecer, a esse respeito, a existência de problemas sociais que requerem uma solução, e a hipótese que se faz é que a linguística aplicada tem sua parcela de contribuição a oferecer. (ROCHA; DAHER, s/d, p. 114)

A LA, nos dias atuais, é caracterizada não mais como uma disciplina mas como uma área de conhecimento desvinculada da linguística teórica e se configura como uma ciência de caráter inter/transdisciplinar que se preocupa em solucionar problemas que envolvem a linguagem, dialogando assim com outros campos do saber, desenvolvendo pesquisas referentes aos distúrbios da comunicação, a formação do professor, as práti-cas pedagógicas, interação em sala de aula, produção de programas e de materiais de ensino de língua materna e estrangeira, as novas tecnologias de informação e comuni-cação, comunicação nas profissões, discurso político, políticas educacionais, linguagem infantil, entre outras.

Esse campo de estudo vê a linguagem como prática social, como construto de uma comunidade falante, sujeitos sócio-histórico-ideológico e culturalmente construí-dos e busca apresentar soluções para tais problemas, beneficiando o sujeito bem como a sociedade.

Referente ao sujeito, (Lopes, 2013, p. 17) faz a seguinte consideração “A pesquisa na LA em seu desenvolvimento no Brasil o coloca como crucial em sua subjetividade ou intersubjetividade, tornando-o inseparável do conhecimento produzido sobre ele mesmo” (grifo meu). Desta forma, os problemas da linguagem são investigados levando em consideração o sujeito, sua inserção social, sua historicidade, havendo um diálogo entre linguagem, sujeito e contexto.

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A Linguística Aplicada permite ao analista explorar vários campos de conheci-mento a fim de encontrar teorias e métodos que o ajudem a solucionar os problemas encontrados com questões da linguagem em uso.

Em seu livro “Linguística? Que é isso?” (2013), Fiorin faz uma série de aponta-mentos acerca da linguagem, identificando-a como capacidade especifica do homem, inerente a ele, que deve ser aprendida, que surge da necessidade de comunicar-se e serve para realizar diversas funções, como informar, influenciar, exprimir sentimentos, criar vínculos sociais, entre outras.

Celani (2000, p. 20), uma das precursoras da Linguística Aplicada no Brasil res-salta a importância desta área para a promoção da solução de problemas educacionais

Tendo em vista que a linguagem permeia todos os setores de nossa vida social, política, educacional e econômica, uma vez que é construída pelo contexto social e desempenha papel instrumental na construção dos contextos sociais nos quais vivemos, está implícita a importância da LA no equacionamento de problemas de ordem educacional, social, política e até econômica. (CELANI, 2000, p. 20).

Conforme exposto por Celani (2000, p. 20), a Linguística Aplicada é uma ciência que se preocupa em solucionar os problemas que envolvem a linguagem e o seu uso em vários contextos, inclusive no contexto educacional. No texto “A relevância da Linguís-tica Aplicada na Formulação de uma Política Educacional Brasileira”, Celani diz ainda que a educação é um problema fundamental do Brasil e que a busca de soluções para esse problema é do âmbito da LA.

Uma educação pública de qualidade é direito de todo cidadão, e para que tal edu-cação seja fornecida é necessário a formulação de políticas públicas educacionais por parte do governo que garantam um ensino de qualidade, além disso, é necessário a mão de obra de professor qualificado, já que o professor é o mediador do ensino, responsá-vel pela transmissão do conhecimento e por promover o crescimento intelectual dos alunos. Considerando a importância deste profissional, sabe-se no entanto, que apesar dos programas fomentados pelo MEC para formação inicial e continuada do professor, muitos professores são alocados para ministrarem disciplinas que não são da sua for-mação, o que acreditamos ser um grande problema para a educação.

Nesse sentido, no âmbito desta pesquisa, pretendemos através das entrevistas realizadas com as professoras que possuem experiências práticas com o problema pes-quisa, identificar através de seus discursos os problemas encontrados por eles dentro e fora de sala de aula, acreditamos que a realização e a análise das entrevistas com estas professoras da rede pública de ensino de Catalão – GO, poderá promover uma reflexão sobre essa realidade.

2.2.LinguísticaSistêmico-Funcional

Para a análise linguística dos dados, obtidos por meio de entrevistas com profes-sores que se encontram deslocados, utilizamos como fundamentação teórica principal a Linguística Sistêmico-Funcional proposta por Halliday (1994) e o Sistema de Avalia-tividade difundido pelos pesquisadores Martin e White (2005).

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A Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), emergiu durante a década de 80 através dos estudos do linguista Michael Halliday, esse campo difere-se da linguística tradicional, pois, além da estrutura linguística preocupa-se com a linguagem em contexto, em uso.

Em “An Introduction To Funcional Grammar” Halliday (1994, p. 13) afirma que

[...] Todo texto - isto é, tudo que é dito ou escrito - se desdobra em alguns con-textos de uso; além disso, são os usos da linguagem que, ao longo de dezenas de milhares de gerações, moldaram o sistema. A linguagem evoluiu para satis-fazer as necessidades; e a maneira como é organizada é funcional em relação a essas necessidades – e não é arbitrária. Uma gramática funcional é essencial-mente uma gramática ‘natural’, no sentido que tudo nela pode ser explicado, em última análise, por referência a como a linguagem é usada.42

A Linguística Sistêmico-Funcional é uma teoria voltada para os estudos da língua vinculada a sua inserção social, ao contexto e tem como objetivo a análise de textos falados ou escritos, desta forma busca entender o funcionamento do texto em contexto.

De acordo com Barbara e Macêdo (2009, p. 16), A Linguística Sistêmico-Fun-cional é uma teoria que “tem como foco o homem, ancorado no espaço que ocupa na sociedade e em constante interação com outros homens, e mostra que as escolhas linguísticas feitas por ele estão estreitamente relacionadas com suas intenções comuni-cativas”, ou seja, a linguagem é o meio pelo qual o ser humano se expressa/fala/discursa, portanto, para entender a sociedade/homem, bem como os problemas existentes, faz-se necessário analisar os textos/discursos produzidos, neste caso, o discurso de professo-res, especificamente, aqueles que não possuem formação específica em algumas disci-plinas ministradas por eles.

Desta forma, com base na teoria da LSF, analisaremos o discurso dos professores observando não apenas a estrutura linguística utilizada em sua fala, mas também o con-texto de fala, o mundo social em que o sujeito está inserido, pois a concepção é de que a linguagem influencia e é influenciada pelo contexto.

De acordo com a Linguística Sistêmico-Funcional, o texto se desenvolve em dois contextos, o contexto de cultura chamado também de gênero e o contexto de situa-

ção chamado também de registro. O contexto de cultura, é um contexto macro, está relacionado a forma como

as diferentes culturas se utilizam do texto, e o contexto de situação, um contexto micro, está relacionado as variações particulares dentro de cada cultura.

Figura 1: Contexto de cultura e contexto de situação

42 [...] Every text — that is, everything that is said or written — unfolds in some context of use; furthermore, it is the uses of language that, over tens of thousands of generations, have shaped the system. Language has evolved to satisfy human needs; and the way it is organized is functional with respect to these needs — it is not arbitrary. A functional grammar is essentially a ‘natural’ grammar, in the sense that everything in it can be explained, ultimately, by reference to how language is used. (HALLIDAY, 1994, p. 13) (As traduções feitas neste trabalho pertencentes a obras escritas em língua inglesa e sem publicação no Brasil são de autoria própria).

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Dentro do contexto de situação há três elementos que determinam as escolhas linguísticas utilizadas pelos falantes/escritores, são eles: campo, relações e modo.

Contexto de situação Metafunções da linguagemCampo Ideacional

Relações InterpessoalModo Textual

Quadro 1: Relação do contexto de situação e as metafunções da linguagem

O campo se realiza por meio da metafunção ideacional, trata-se da expressão das ideias, da possibilidade de falar sobre o mundo, observa-se quem fala, com quem, onde, porquê e em que sentido. As relações se realiza por meio da metafunção interpessoal, trata da interação entre as pessoas, da troca de informações entre falante e ouvinte, escritor e leitor. E o modo seja ele escrito ou falado se realiza através da metafunção textual que organiza a estrutura do texto.

Almeida (2010, p. 25), salienta que

[...] o objetivo mais importante da comunicação é propiciar a interação entre as pessoas, estabelecendo e mantendo ligações sociais entre elas. Nós dizemos coisas para as pessoas com um determinado objetivo como, por exemplo, in-fluenciar suas atitudes e comportamentos, fornecer alguma informação que lhes é desconhecida, explicar as nossas atitudes e comportamentos, ou ainda, para pedir alguma informação (ALMEIDA, 2010, p. 25).

A comunicação faz parte da vida humana, é por meio dela que o sujeito se expres-sa, e quando o homem se expressa ele faz constantemente avaliações, referentes a vários tipos de coisas, pessoas e sentimentos.

2.2.1. Sistema de Avaliatividade

Os estudos referentes ao Sistema de Avaliatividade deram seus primeiros passos em 1989, com o foco na análise de avaliação no discurso. Os pesquisadores Martin e White (2005) são referência ao se tratar da área, a teoria que rompe o tradicional, es-trutural e se preocupa com a linguagem em contexto, principalmente com as avaliações realizadas pelos falantes.

A relação entre linguagem e contexto e as possibilidades de avaliações que podem ser feitas pelos usuários nos contextos em que interagem faz emergir o Sistema de Avaliatividade como um sistema de recursos interpessoais à dispo-sição do produtor de textos para que se posicione em relação ao que expressa. E aqui a palavra sistema é de suma importância, não se tratando de uma teoria, mas um conjunto, um sistema de opções em nível semântico discursivo à dis-posição dos usuários que, no nível léxico-gramatical, será instanciado em um texto pelos mecanismos linguísticos de avaliação dos quais a língua dispõe. Es-tamos falando, portanto, de atitudes, ou seja, a posição que assumimos perante

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algo ao avaliarmos o mundo que nos rodeia, mesmo que, em muitos casos, façamos avaliações em determinadas situações em que expressamos atitudes que possam parecer, a nós, como corriqueiras ou inofensivas, mas que podem magoar, ofender, ferir nosso interlocutor (VIAN JR, 2010, p. 28 e 29).

O Sistema de Avaliatividade é um sistema de recursos interpessoais à disposição do produtor de textos, é uma teoria que tem como principal objetivo identificar, anali-sar, descrever a avaliação presente na linguagem, ou seja, quais são os recursos avalia-tivos que o falante/escritor utiliza na formulação do seu texto. A questão central desta área é a avaliação, a posição que assumimos perante algo quando comunicamos.

Segundo Fiorin (2013, p. 19)

[...] comunicar não é um ato unilateral, mas é um jogo em que um parceiro da comunicação age sobre o outro. A comunicação é, antes de qualquer coisa, re-lacionamento, interação. Por isso, a linguagem é um meio de ação recíproca, é um meio de interagir com os outros, é um lugar de confrontações, de acordos, de negociações (FIORIN, 2013, p. 19).

Dentro deste jogo de comunicação, as avalições são realizadas pelo produtor de textos, sendo assim, dentro Sistema de Avaliatividade, focaremos no subsistema de ati-tude, que segundo Almeida (2010, p. 41) “é responsável pela expressão linguística das avaliações positivas e negativas [..]”, este subsistema, divide-se em três tipos: afeto, jul-gamento e apreciação.

O afeto está relacionado as emoções, aos sentimentos do sujeito discursivo, sejam eles positivos ou negativos, conforme aponta Martin e White (2005, p. 2)

Nós atendemos ao que tem sido tradicionalmente tratado sob o título de “afe-to” – o meio pelo qual escritores/falantes avaliam as entidades positiva ou ne-gativamente, os acontecimentos e os estados de coisas com os quais seus textos estão relacionados. Nossa abordagem nos leva além de muitos relatos tradicio-nais de “afeto”, pois aborda não apenas os meios pelos quais falantes/escritores codificam abertamente o que eles apresentam como suas próprias atitudes, mas também aqueles meios pelos quais eles ativam indiretamente posturas avaliati-vas e posicionam leitores/ouvintes para fornecer suas próprias avaliações.

O Julgamento está relacionado as avaliações do comportamento das pessoas, frente as regras morais, leis, normas ou a fuga delas e a apreciação está relacionada as avaliações sobre as coisas, os objetos, filmes, peças teatrais, podendo apresentar gostos e desgostos.

Ao analisarmos o discurso destes professores, levaremos em consideração todos estes aspectos do subsistema de atitude, já que o professor, durante a entrevista terá a liberdade de se expressar, de opinar, revelando assim seus sentimentos, suas avaliações frente a problemática da falta de formação.

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Sendo assim, investigar, analisar o discurso destes professores pelo viés da Lin-guística Sistêmico Funcional através do Sistema de Avaliatividade poderá contribuir de forma qualitativa para os estudos em Linguística Aplicada no que diz respeito a forma-ção do professor.

ConsideraçõesfinaisOs professores são mediadores do ensino, e são responsáveis por promover o

crescimento intelectual dos alunos. Essa responsabilidade está sobre os ombros do pro-fessor, que obviamente não deve agir sozinho, mas ser regido por parâmetros e políticas que assegurem uma educação de qualidade.

Sabe-se, no entanto, que muitos professores são alocados para ministrarem dis-ciplinas que não são da sua formação, a fim de complementação de carga horária ou até mesmo devido à falta de um profissional qualificado para ministração daquela dis-ciplina específica o que acreditamos ser um grande problema para a educação, por isso acreditamos ser importante investigar o discurso destas professoras.

Embora seja uma pesquisa com professores que atuam no município de Catalão - GO, trata-se de um estudo que almeja trazer contribuições para a educação básica no estado de Goiás, uma vez que existe um grande número de professores que atuam fora da sua área de formação. Espera-se com essa pesquisa fomentar políticas de formação de professores no estado de Goiás minimizando problemas educacionais vivenciados por professores nessa situação. Almeja-se também fomentar cursos de formação de professores no estado de Goiás, uma vez que ao analisar o discurso de professores que efetivamente vivenciam essa situação será possível compreender como esses profissio-nais se sentem e como lidam com sua situação, a realização e a análise das entrevistas com estes professores, poderá promover uma reflexão sobre esta realidade existente no contexto educacional.

Acreditamos que as análises dos discursos destes professores, bem como toda pesquisa contribuirão para futuras pesquisas desenvolvidas na área da Linguística Apli-cada, Linguística Sistêmico Funcional, às políticas educacionais, aos processos e pro-gramas de formação de professores. Assim poderemos cumprir com o Artigo 43, inciso VI da lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, o qual diz que a educação superior tem por finalidade “estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regio-nais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade”, justamente o que pretende-se fazer no âmbito desta pesquisa como pesquisadora, promover uma reflexão acerca deste problema, levando-se em conta os discursos da comunidade docente.

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Comooléxicodamodaserenova?Umestudosobreosneologismosporempréstimosna Revista Glamour

Pauler Castorino Oliveira Barbosa43

Vanessa Regina Duarte Xavier44

IntroduçãoO léxico, que consiste no rol de designações dos elementos socioculturais que

compõe uma língua, altera-se com relativa frequência. Essas “atualizações” acontecem conforme a sociedade se modifica, ou seja, o léxico sofre influências do ambiente socio-cultural em que é utilizado, sendo que os indivíduos denominam o mundo ao seu redor consoante as suas necessidades.

Assim, o presente estudo pretende investigar se há uma tendência de renovação do léxico da moda via estrangeirismos e se a sua consolidação como empréstimos tem ocorrido na mesma medida em uma edição da revista Glamour, a saber, a de número trinta e dois (32), lançada em novembro de 2014. Trata-se do recorte de uma pesquisa realizada pelo Programa Institucional de Voluntariado em Iniciação Cientifica – PI-VIC, intitulada Caminhos de renovação lexical: neologismos por empréstimos na re-vista Glamour, que previa o inventário de neologismos em três (3) edições da tiragem supracitada, sendo a presente edição selecionada para esse estudo por conter a maior quantidade de dados, com relação às demais edições analisadas. Tendo essa revista uma tiragem mensal, que traz entre os seus assuntos principais o mundo da moda, este cor-pus faz-se pertinente ao que se tenciona, no sentido de que o ambiente da moda vive em constante renovação, o que reflete-se, em parte, no acervo lexical.

Diante do exposto, esta investigação tem como objetivo analisar qual o processo da tipologia dos neologismos por empréstimos, que inclui empréstimos e estrangeiris-mos, se faz mais frequente no corpus em estudo. Esta análise quantitativa leva a outros questionamentos, como: a) qual a possível motivação da adoção de unidades lexicais estrangeiras ao nosso léxico? b) a utilização de vocábulos estrangeiros acarreta uma desvalorização da Língua Portuguesa (LP)?

43 Universidade Federal de Goiás – UFG/RC, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística. Contato: [email protected] Universidade Federal de Goiás – UFG/RC, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística, LALEFIL. Contato: [email protected].

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Como embasamento teórico, essa investigação se apoiará principalmente em: Vi-lela (1994), que fala sobre o enriquecimento do léxico da LP; Oliveira (2011), em sua abordagem sobre o uso de neologismos nas produções textuais; Faraco (2001), que pro-blematiza o preconceito que envolve a adoção de itens léxicos estrangeiros na LP; e no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, organizado por Borba (2004), para a classificação dos neologismos por empréstimo como estrangeirismos ou empréstimos. Além destes, serão utilizados artigos e manuais de morfologia, que versam sobre a te-mática em estudo. Assim, pretende contribuir com o estudo do léxico, principalmente dos neologismos por empréstimos.

1,Modaeléxico:inter-relaçõesdalínguaportuguesacomomundofashion

A moda, assim como o léxico, vive em constante modificação, pois, no mundo das passarelas, surgem inúmeras tendências sazonalmente; o mesmo ocorre na língua: os falantes criam e/ou adotam palavras estrangeiras para designar o novo e as difundem no seu cotidiano. Notamos que a moda e o léxico concernente a ela caminham juntos, uma vez que este consiste no conjunto de denominações da língua, ou seja, é nele que encontramos os “rótulos” pelos quais nos referimos às tendências do universo da moda. Como este reinventa-se com relativa frequência, isso se faz notar nos expedientes lexi-cais utilizados ao longo dos anos, como observa-se com a calça boca-de-sino e a calça flare que dispõem de expressivas similaridades semânticas, pelo que podemos consi-derá-las sinônimas. No entanto, a primeira unidade lexical teve largo uso nas décadas de sessenta (60) e setenta (70), enquanto nos dias atuais ela passou a ser referida pela segunda. Portanto, entendemos que a moda modifica-se com o passar dos anos ou res-significa tendências ulteriores, concedendo-lhes ares de novidade, o que se faz sentir no seu léxico. Assim, partilhamos da assertiva de que:

A moda é, então, reflexo da contínua mudança da época em que se insere e a roupa é usada como instrumento social para afirmar o status econômico e o pró-prio papel na sociedade. Por este motivo consideramos que a moda é uma forma de comunicação. Ademais, a isso se acrescenta também o exame de seu léxico, marcado por movimentos de expansão, atualização e modificação, com funda-mento nos processos disponibilizados na língua comum (ORSI, 2015, p. 2).

Talvez o uso de neologismos por empréstimos esteja inter-relacionado a esse re-flexo da moda com a sociedade, visto que “o acesso a produções e formas de cultura ao nível transversal está normalmente relacionado com o uso de línguas estrangeiras” (CAPUCHO, 2016, p. 8). O que a autora chama de transversal muito se tem haver com o contato cultural e econômico que sofremos de outros países, no que influencia no léxico fazendo com que venhamos a adotar empréstimos e estrangeirismos a LP.

Entendemos, também, que a moda em sua essência se relaciona com as mais di-versas comunidades, o que acarreta as novidades estrangeiras tanto na área têxtil quan-to na língua (LIPOVETSKY, 2009). Nos dias atuais, sabemos que a moda sofre influên-cias norte- americanas e europeias, devido as grandes potencias econômicas estarem

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inseridas nesses continentes, isto, de certa maneira, poderia explicar a tendência do uso dos neologismos por empréstimos em nossa língua.

À vista disso, o presente trabalho tem como corpus a revista Glamour, que é uma tiragem dedicada, sobretudo ao público feminino, lançada em abril de 2012 no Brasil. É originária dos Estados Unidos e existe no mercado norte-americano desde 1939. Além disso, é publicada em outros países, como Reino Unido, França e Alemanha. Com edi-ção própria e periodicidade mensal no Brasil, a publicação traz em suas seções assuntos relacionados à moda, como desfiles e tendências, e ao mundo artístico de modo geral. Nesse sentido, um exemplar da revista servirá de corpus para esta investigação, devido à abundância de neologismos nele presentes.

2.Neologismosporempréstimos:distinguindoempréstimodeestrangeirismo

Empréstimo ou estrangeirismo? Esse foi um questionamento que permeou esta investigação e se fez presente neste tópico, tornando-se necessário definir esses pro-cessos. Outro questionamento destinou-se a esclarecer qual o processo de renovação lexical mais utilizado no corpus, o que pode apontar para uma tendência dos caminhos de renovação lexical na Língua Portuguesa.

Indagações à parte, primeiramente é necessário definir neologismo, para depois conceituar a tipologia a qual nos interessa. Nesse sentido, neologismo é “[...] o item lexical recém-criado [...]”, conforme afirma Oliveira (2011, p. 177), ou seja, consiste em criações lexicais da LP, podendo conter bases prontas de nosso léxico ou não – como bases inéditas ou provenientes de outras línguas. Autores como Alves (2007) classificam os neologismos em quatro (4) tipologias, sendo elas: formal (sintático), semântico, por empréstimo e fonológico.

Convém lembrar que, nesta investigação, interessa apenas a tipologia dos neolo-gismos por empréstimos, que abarca os empréstimos e estrangeirismos. Nesse sentido, este artigo definirá apenas essa tipologia – a neologia por empréstimo.

Como dito anteriormente, os neologismos por empréstimos são divididos em duas (2) categorias. A primeira diz respeito ao estrangeirismo, que é quando utiliza-se um item lexical proveniente de outra língua, mas sem que esse esteja dicionarizado, co-mo afirma Faraco (2001, p. 15): “Estrangeirismo é o emprego, na língua de uma comu-nidade, de elementos oriundos de outras línguas. No caso brasileiro, posto simplesmen-te, seria o uso de palavras e expressões estrangeiras no português”. Para exemplificar, trazemos a unidade lexical body, nome de uma vestimenta feminina muito utilizada nos dias atuais, além de aparecer frequentemente em desfiles e revistas de moda, o que nos levaria intuitivamente a considerá- la um empréstimo, mas que não aparece no dicionário organizado por Borba (2004), fazendo com que consideremos o item como um estrangeirismo.

Diferentemente do estrangeirismo, o empréstimo ocorre quando o item lexical estrangeiro é dicionarizado. Por esse motivo, muitos teóricos desconsideram este pro-cesso como um tipo de neologismo, pois eles acreditam que quando a unidade lexical é dicionarizada ela deixa de ser um neologismo, ou seja, não é mais uma criação lexical

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sentida como nova pelos falantes da língua importadora. No entanto, o empréstimo será incluído neste estudo, por acreditar que trata-se de uma unidade neológica em fase de consolidação do seu uso na língua portuguesa, guardando resquícios de seu status neológico. Assim, trazemos como exemplo o vocábulo pin-up, já definido pelo dicioná-rio organizado por Borba (2004, p. 1075), que define a unidade como: “corista; mulher representada em pose erótica em ilustrações”.

Dessa maneira, após as definições da neologia por empréstimo, daremos conti-nuidade às nossas discussões, sendo agora necessário a apresentação da metodologia utilizada para a coleta dos dados na revista.

3. MetodologiaA presente investigação teve como base quatro (4) etapas, as quais serão apresen-

tadas neste tópico. A primeira constituiu-se da leitura dos referenciais teóricos para que as discussões aqui expostas fossem embasadas em teorias consolidadas sobre o assunto. A segunda etapa consistiu na leitura da revista analisada para a coleta dos dados que ocorreu de forma manual, ou seja, sem a ajuda de programas de corpora. Ressalta-se também que a coleta envolveu os neologismos em geral, porém, para esta investigação interessa apenas a tipologia mais abundante no corpus em estudo, o neologismo por empréstimo. Nesse sentido, foi criada uma tabela com os itens lexicais retirados da pu-blicação da Glamour, contendo as seguintes colunas: lexema, frequência e abonação, como observa-se abaixo:

Quadro 1 – Coleta dos dados: exemplo da metodologia utilizada.

Lexema Frequência Abonação

Again 1“Pois é, logo mais é meu aniversário. Again!” (GLA-MOUR, 2014, p. 100, grifo nosso).

Animal print 2“Animal print: A estampa queridinha dos fashionistas [...]” (GLAMOUR, 2014, p. 141, grifo nosso).

Blush 3“Bronzer no lugar do blush” (GLAMOUR, 2014, p. 200, grifo nosso).

Boho 5“Aposte no boho chique de toda a coleção e saia con-quistando por aí!” (GLAMOUR, 2014, p. 143, grifo nosso).

Buzz 1“O buzz em torno da questão foi retomado com a cria-ção do termo dogging [...]” (GLAMOUR, 2014, p.110, grifo nosso).

Closet 11“Quem avisa amiga é: você precisa ter um look branco total no closet” (GLAMOUR, 2014, p. 134, grifo nosso).

Denim 8“Também sou fã de denim + denim e amo brincar com lavagens diferentes” (GLAMOUR, 2014, p. 154, grifo nosso).

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Espadrilles 1“As espadrilles complementam o atualíssimo jumpsuit para um casual passeio no findi” (GLAMOUR, 2014, p.137, grifo nosso).

Flats power 1“Complete com flats Power [...]” (GLAMOUR, 2014, p.162, grifo nosso).

Habitué 1“Habitué das nossas páginas [...]” (GLAMOUR, 2014, p. 32, grifo nosso).

Hi-tec 1 “hi-tec cool” (GLAMOUR, 2014, p. 141, grifo nosso).

Inspired 1“PRA FICAR “INSPIRED”.” (GLAMOUR, 2014, p. 96, grifo nosso).

Lifestyle 11“Hoje o nosso corpo é o reflexo de um lifestyle que a gente segue há anos” (GLAMOUR, 2014, p. 196, grifo nosso).

Jumpsuit 1“As espadrilles complementam o atualíssimo jumpsuit para um casual passeio no findi” (GLAMOUR, 2014, p.137, grifo nosso).

Meeting 1“[...] têm tradição e qualidade italiana e charme que qualquer mulher precisa pra exibir estilo em qualquer meeting por aí!” (GLAMOUR, 2014, p. 141, grifo nosso).

Patchwork 1“PATCHWORK: Jaqueta e calça com retalhos[...]” (GLAMOUR, 2014, p. 158, grifo nosso).

Fonte: Elaborada pelos autores.

Na terceira etapa, criou-se uma nova tabela, com a classificação dos neologismos em empréstimos ou estrangeirismos, levando em conta sua presença ou ausência no dicionário de Borba (2004), e as acepções obtidas nesta obra, no caso dos empréstimos, como nota-se abaixo:

Quadro 2 – Classificação dos dados como empréstimos ou estrangeirismos.

Lexema Acepção no dicionário ProcessoAgain Sem acepção EstrangeirismoAnimal print Sem acepção Estrangeirismo

Blush“Sm (Ing) cosmético em pó, de coloração aver-melhada, com que se colorem as maçãs do rosto” (BORBA, 2004, p. 187).

Empréstimo

Boho Sem acepção EstrangeirismoBuzz Sem acepção Estrangeirismo

Closet“(Ing) Sm. Compartimento em que se guardam roupas” (BORBA, 2004, p. 293).

Empréstimo

Denim Sem acepção EstrangeirismoEspadrilles Sem acepção Estrangeirismo

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Flats power Sem acepção Estrangeirismo

Habitué“(Fr) Sm 1 quem é freqüentador costumeiro” (BORBA, 2004, p. 700).

Empréstimo

Hi-tec Sem acepção EstrangeirismoInspired Sem acepção EstrangeirismoLifestyle Sem acepção EstrangeirismoJumpsuit Sem acepção Estrangeirismo

Meeting“(Ing) Sm 1 encontro ou reunião popular em que se discutem questões de interesse público” (BOR-BA, 2004, p. 902).

Empréstimo

Patchwork

“(Ing) Sm trabalho que consiste na costura de pe-daços de tecidos de várias cores, padrões e formas, formando desenhos geométricos” (BORBA, 2004, p. 1037).

Empréstimo

Fonte: Elaborada pelos autores.

Por fim, a última etapa constituiu-se da análise quantitativa e qualitativa dos da-dos coletados na investigação. Dessa maneira, adiante serão apresentadas algumas res-postas às questões apresentadas na introdução desse trabalho.

4. Discussão dos resultadosNeste momento, serão apresentados os resultados obtidos na análise quantitati-

va. Após essa apresentação, faremos uma discussão sobre os dados encontrados. Dessa maneira, para exemplificar os resultados encontrados no corpus em estudo, criamos o gráfico abaixo:

Gráfico 1 – Amostra dos resultados: empréstimo ou estrangeirismo, qual o processo mais frequente?

Fonte: Elaborada pelos autores.

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Com a apresentação do gráfico, fica explícita a resposta buscada nesta investiga-ção, no questionamento que dá título ao mesmo: os estrangeirismos foram mais utiliza-dos do que os empréstimos no corpus em estudo, sendo que um total de noventa e seis por cento (96%) dos itens lexicais inventariados, o equivalente a cento e noventa (190) casos, são estrangeirismos, enquanto quatro por cento (4%) refere-se a quarenta e três (43) casos de empréstimos. Dessa maneira, fica claro que trata-se de uma amostragem da quantidade de adoção lexical de itens estrangeiros que a nossa língua permite, poden-do admitir números maiores ou menores que os apresentados aqui em outros corpora.

Essas adoções estão relacionadas principalmente às inovações econômicas, so-ciais e culturais. Sendo assim, o léxico se adapta conforme o ambiente ao qual ele se integra, assim como a afirmação a seguir nos mostra: “A urgência em serem satisfeitas as necessidades de comunicação e expressão dos falantes, a exigência em configurar o que de novo surge na comunidade e a necessidade em manter a sistematicidade da língua, são as maiores forças que se manifestam no léxico” (VILELA, 1994, p. 14).

Isso mostra que o léxico se renova para satisfazer às necessidades sociais de no-mear o que há de novo ou o que quer configurar-se como novo, no caso da moda, a fim de apresentar uma tendência coerente aos novos tempos e obter uma boa avaliação por parte dos falantes. Tal fato coaduna-se com a quantidade expressiva de estrangeirismos encontrados, constituindo a grande maioria dos neologismos por empréstimo, em de-trimento dos empréstimos, podendo ser este um indício de que apenas uma pequena parcela de itens lexicais estrangeiros passa a integrar o acervo lexical da LP. Nota-se, pois, uma tendência ao uso transitório destes, que rapidamente precisam ser substi-tuídos por outros, mais condizentes com o cenário sociocultural que é sempre outro, todavia não inteiramente, o que se faz sentir na moda. Assim, há uma necessidade de discutir as possíveis motivações para que os falantes da LP utilizem itens provenientes de outros sistemas linguísticos.

Ressalta-se que alguns teóricos já discutiram as motivações das adoções de uni-dades lexicais provenientes de outras línguas, dentre as quais esta investigação destacará duas (2) citadas por Oliveira (2011), que são o fato de algumas serem consideradas necessárias e outras desnecessárias, em que o primeiro caso ocorre devido uma lacuna lexical da língua, diferentemente do segundo caso, que consiste na adoção de um item estrangeiro, cujo significado já é expresso por outro lexema existente na língua.

Oliveira (2011, p. 169) destaca que o necessário é quando importamos um item lexical de outra língua, pois não tem um lexema na LP que seja capaz de expressar o que se pretende. Para exemplificar, trazemos o lexema ankle boot, que refere-se a um calça-do feminino que vai até o tornozelo. A adoção desta unidade lexical ocorreu devido a uma necessidade, já que há uma lacuna em nosso léxico. Exemplifica o neologismo des-necessário a lexia street style, que em tradução livre significa “estilo de rua”. Nesse caso, nota-se que não existe uma lacuna lexical. Diante disso, ocorre outro questionamento: por que adotar uma unidade lexical de outro idioma quando já existe em nosso léxico um item lexical de mesmo valor semântico?

Este questionamento é respondido por Carvalho (2009), no que ela chama de “bus-ca por modernidade”, em que o item lexical é adotado – mesmo que exista um vocábulo

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com significado idêntico no léxico português – por razões estilísticas, ou seja, este re-curso é utilizado para deixar o texto mais “refinado”, como nota-se na afirmação abaixo:

A busca de modernidade é um mero método estilístico utilizado pelas pessoas que escrevem colunas, notícias entre outros gêneros textuais em revistas etc. No caso da revista Glamour, notam-se esses aspectos devido ao público-alvo ser de poder aquisitivo significativo. Mas esse aspecto se dá apenas por estilo, pois geralmente existe a presença do vocábulo traduzido em nosso léxico, por exemplo, stylist, representando estilista (BARBOSA; XAVIER, 2017, p. 866).

Desse modo, esclarecemos as motivações sobre as adoções de unidades lexicais de outros sistemas linguísticos, porém esta investigação ainda pretende buscar respos-tas no quesito da adoção de estrangeirismos. Assim, ao adquirirmos unidades léxicas provenientes de idiomas diferentes não desvalorizamos a LP?

Questionamentos como este são facilmente respondidos quando observamos o léxico português com mais atenção, pois itens como broche, proveniente do francês, líder do inglês, moleque do quimbundo, entre outras lexias utilizadas no cotidiano bra-sileiro, são usados frequentemente, e mesmo assim não houve uma desvalorização da LP45. Convém lembrar que as adoções de unidades estrangeiras não são recursos restri-tos ao século XXI, devido à informatização. O empréstimo linguístico ocorre há épocas imemoráveis, sendo que a única diferença é de qual língua importamos mais, consoante a afirmação a seguir: “Cada período histórico teve (e tem) sua língua franca, isto é, uma língua internacional que serviu (serve) como instrumento auxiliar de comunicação en-tre pessoas de lugares e culturas (e línguas diferentes)” (BAGNO, 2001, p. 79). Assim, atualmente, a língua que mais exporta itens lexicais para outras culturas é a língua in-glesa, devido à importância sociocultural e econômica que ela tem nos dias atuais, por isso, notamos inúmeras adoções linguísticas advindas desse idioma.

Por mais que não haja uma desvalorização ao léxico português quando adotamos itens de outros sistemas linguísticos, haveria alguma maneira de prevenir a utilização em excesso dos neologismos por empréstimo em nosso léxico? A resposta para esses questionamentos é simples: Não! Não há como limitar a interinfluência linguística. Essa é uma questão oportuna, principalmente quando notamos que o léxico vive em cons-tante renovação e que as sociedades estão em contato continuamente, o qual tem-se am-pliado pelas novas tecnologias. Dessa maneira, prevenir a adoção de itens estrangeiros significa haver policiamento linguístico. Portanto, fica a reflexão de Schimitt (2010, p. 9-10) de que: “A língua é resultado da interação das pessoas entre si na sociedade e entre sociedades de países diferentes. Seria possível, então, proibir tais interações?”

Em síntese, podemos utilizar as unidades léxicas que mais nos convenham, sendo elas da nossa própria língua ou não. Nesse sentido, os falantes têm liberdade para utili-zar estrangeirismos ou empréstimos linguísticos, mesmo que apenas por uma questão estilística ou de prestígio junto ao grupo em que o falante enuncia, selecionando o item

45 É necessário salientar que estes lexemas foram adaptados, ou melhor, dizendo “aportuguesados” para o português brasi-leiro, visto que nas unidades lexicais exemplificadas nem e fonética e nem a grafia originais se mantiveram. Cremos que o mes-mo pode ocorrer com os itens lexicais da moda, conforme os falantes da LP vejam necessidade de adota-los em seu cotidiano.

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léxico maquiagem ou make up, conforme julguem que terão maior eficácia em situa-ções de interação social.

ConsideraçõesFinaisEsta investigação apresentou uma discussão sobre como o léxico da moda se

renova, perscrutando qual era a formação neológica mais utilizada no corpus que se caracteriza pela abordagem de assuntos relacionados à moda, a qual modifica-se com relativa frequência. Dessa maneira, expôs-se como ocorreu a coleta dos dados até a apre-sentação dos resultados, que foram seguidos de discussões embasadas em teóricos e pes-quisadores da área. Assim, conclui-se que os estrangeirismos foram os processos mais utilizados dentre os neologismos por empréstimo, contabilizando cento e noventa (190) ocorrências, enquanto os empréstimos tiveram apenas quarenta e três (43) ocorrências.

Atribuímos tal fato à disposição da língua a satisfazer as necessidades sociais, sen-do sua principal função servir de instrumento para a interação social, conforme Vilela (1994) afirma, pois, foi observado, ao longo da investigação, que o frequente desejo por renovação da moda faz com que o léxico especificamente desta área viva em constante modificação, devido às tendências do mundo das passarelas.

Conforme observa-se nesta investigação, a língua vive em constante renovação. Assim, como afirma Biderman (2001), novos vocábulos servem para enriquecer o lé-xico. Deste modo, mesmo que a sociedade adote unidades lexicais de outros sistemas linguísticos, a língua portuguesa não cairá em desuso, já que desde a sua formação ocorrem essas importações linguísticas.

Portanto, o léxico renova-se igualmente a moda e, sendo suas tendências passa-geiras, os estrangeirismos da moda igualmente não se solidificam, em sua totalidade, na língua, mas rapidamente são substituídos por outros, como ocorre com os bens de con-sumo nas sociedades capitalistas. Enquanto no mundo fashion temos modelos desfilan-do nas passarelas com as mais diversas roupas, no ambiente social, temos a língua, que apresenta tendências linguísticas e glamourosas, para serem usadas por seus falantes.

Referências

ALVES, Ieda Maria. Neologismo: criação lexical. 3. ed. São Paulo: Ática, 2007. (Série Princípios)

_______. A integração dos neologismos por empréstimo ao léxico português. Alfa (São Paulo), v. 28, 1994, p. 119-126.

BAGNO, Marcos. Cassandra, Fênix e outros mitos – Cada época tem sua língua franca. In: FARACO, Carlos Alberto. (Org.) Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola Editorial, 2001. p. 49-83.

BARBOSA, Pauler Castorino Oliveira; XAVIER, Vanessa Regina Duarte. Neologismos por empréstimos: um estudo sobre as incorporações excessivas de estrangeirismos ao léxico português na revista Glamour. In: Congresso de Pesquisa, ensino, extensão e cultura, 3, 2017, Catalão. Anais, Catalão, 2017. p. 863-868.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Teoria linguística: (teoria lexical e computacional). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BORBA, Francisco da Silva. (Org.). Dicionário UNESP do português contemporâneo. São Paulo: UNESP, 2004.

CARVALHO, Nelly. Empréstimos linguísticos na língua portuguesa. São Paulo: Cortez, 2009.

CAPUCHO, Maria Filomena. Sobre línguas e culturas. Veredas, v. 10, n. 1-2, p. 1-12, 2016.

FARACO, Carlos Alberto. Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola Editorial, 2001.

GLAMOUR. São Paulo: Globo Condé Nast, n. 32, nov. 2014. Mensal.

LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. Neologismos, política da língua e produção de textos. In: VALENTE, André C.; PEREIRA, Maria Teresa G. (Org.). Língua Portuguesa: descrição e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p. 167-181.

ORSI, Vivian. A presença de empréstimos da língua inglesa na revista brasileira Glamour. In: Colóquio de Moda, 11, 8ª Edição Internacional, 2015, Curitiba. Anais. Curitiba, 2015. p. 1- 10.

SCHIMITT, Larissa Giordani. Anglicismos no português brasileiro: uma questão de preenchimento do léxico ou desvalorização da língua? In: Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, ensino e linguagem, 2, 2010, Cascavel. Anais, Cascavel, 2010. p. 1-12.

VILELA, Mário. Estudos de lexicologia do português. Coimbra: Almedina, 1994.

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O sistema de avaliatividade: Escolhasléxico-gramaticaisque delineia a escrita de Cora Coralina

Pabrícia Abadia Pereira Félix46

Fabíola Aparecida Sartin Dutra Parreira Almeida47

IntroduçãoO ponto de partida deste estudo considera a linguagem como modo de significar,

partimos dos conceitos estabelecidos por Halliday (1994) para compreender como se dão as trocas de significados semióticos, estabelecidos no momento da interação fa-lante/escritor. Este estudo tem como objeto de pesquisa dois poemas da escritora Cora Coralina, sendo eles: Mulher da vida e A lavadeira. É importante destacar que, esta pesquisa é parte da dissertação de mestrado intitulada: A mulher no discurso de Cora Coralina: uma análise do sistema de Avaliatividade.

A hipótese é que o subsistema de Atitude revele elementos léxico-gramaticais, que evidenciem o pertencimento da escritora com o contexto no qual as mulheres vi-venciaram no século passado. Acredita-se que aquele contexto demarcou grande parte da vida da poetisa, sobre tudo, como a escritora se referia a figura feminina em seus tex-tos. Este estudo é relevante para área da Linguística Sistêmico-Funcional, por conceber o texto enquanto recurso semântico utilizado para comunicar. Por isso, esta pesquisa se diferencia de tantas outras que existem sobre Cora Coralina.

O grupo de estudos que este trabalho está vinculado é o GEPLAEL, que abrange pesquisas na área da linguística aplicada e estudos linguísticos. No grupo, são discuti-dos pesquisas com ênfase na linguística sistêmico funcional e em áreas afins.

Os estudos desenvolvidos por Halliday (1994) demonstram que a língua é um recurso semântico multifacetado em possibilidades de escolhas linguísticas, que são intrinsecamente relacionadas ao contexto, e ocorrem ao mesmo tempo na linguagem. Portanto, o falante/ escritor possui possiblidades linguísticas de construir as intenciona-lidades necessárias, para atingir um determinado objetivo no discurso proferido.

Halliday (1994) esclarece que texto e discurso são intrínsecos, o funcionamento da linguagem para a LSF é gerada a partir das possibilidades de escolhas disponíveis

46 Universidade Federal de Goiás – UFG. Regional Catalão, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística. GEPLA-EL. Contato:[email protected]. Bolsista CAPES.47 Universidade Federal de Goiás – UFG. Regional Catalão, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística. Contato:[email protected]. Professora adjunta na UFG/ REC.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

no arcabouço linguístico, e fica a critério do falante/escritor selecionar aquelas que são mais adequadas para um determinado contexto. A gama de possibilidades de análise que a LSF possui, permite realizar pesquisas em variados textos escritos e falados.

Para este estudo, os textos que embasaram a pesquisa são de cunho literário. A justificativa deste trabalho é dar ênfase nas escolhas léxico-gramaticais que, a poetisa utiliza para falar sobre figura feminina em seus textos.

Ramón Pesquero (2003) elucida que Cora Coralina é o pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto, a escritora nasceu na cidade de Goiás e começou a escrever ain-da na adolescência, e ao longo do tempo foi adquirindo um grande repertório literário. Casou-se com um advogado Cantídio Tolentino e mudou-se São Paulo, após esse longo período se lembrava do interior goiano com carinho e admiração, sempre demarcando em seus textos a profunda relação que possuía com o contexto em que foi criada.

A escritora utiliza a escrita para evidenciar a figura da mulher, salienta aquelas que sofrem preconceitos e que estão de certa forma desprotegidas. O fato da poetisa lidar com um discurso que trata destas questões nos chamou a atenção, pois ao analisar as escolhas que a poetisa realiza para falar da mulher, expõe-se diversos apontamentos sobre a época que a escritora vivenciava.

Cora Coralina transparece em seus escritos a simplicidade, enaltece os detalhes mínimos do cotidiano e adentra na sensibilidade que o interior goiano preserva. A poe-tisa enfatiza as emoções de uma gente humilde e simples, mas que possui seus costumes e valores preservados na vivência cotidiana. O contexto regionalista transparece muitas das particularidades que são encontradas no interior, que preservam a cultura como as estórias, lendas e tradições que constituem o ambiente rural do estado de Goiás. Para adentrar nesse contexto a escritora dispõe nas entrelinhas a profundidade da sua exis-tência, se impõe como mulher, escritora, goiana.

Tendo em vista os dois poemas de Cora Coralina, realizamos as análises utilizan-do o subsistema de Atitude que está inserido no sistema de Avaliatividade, enfatizamos os três subtipos Afeto, Julgamento e Apreciação. A metodologia constou em realizar a leitura dos poemas que evidenciaram a figura feminina, em seguida os textos foram submetidos no programa computacional WordSmith tools. As avaliações sobre a mulher foram identificadas e, logo em seguida foram categorizadas conforme o subtipo (Afeto, Julgamento e Apreciação).

1.Desenvolvimento:ConceitosSistêmicos-funcionaisNesta seção são apresentados os conceitos sistêmicos funcionais que são funda-

mentais para estabelecer a base teórica deste estudo. São elucidados os princípios bási-cos da teoria e, logo em seguida focamos no sistema de Avaliatividade, que é o condutor de nossas análises.

A LSF emergiu-se nos no século passado, foi desenvolvida Halliday (1994), as pesquisas nesta área tem como propósito compreender os componentes funcionais que constituem o discurso de falantes/escritores, e a forma como se realizam considerando os fatores sociais e semióticos.

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Estudos da linguagem em foco

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De acordo com a teoria proposta Halliday (1994), a linguagem perpassa os limites da oracional e atinge o nível significativo. É possível afirmar que a linguagem para a LSF se configura como uma rede de possibilidades, na qual os usuários da linguagem utili-zam para construir significados, logo se caracteriza como uma ação social, pois envolve os contextos que estão inseridos.

Martin e White (2005) esclarecem que a língua para a LSF é considerada resulta-do das relações socioculturais, trata em compreender como a linguagem se configura em diferentes contextos. Pois é, por meio da comunicação, que o indivíduo expõe traços de seu meio cultural e as interações de comunicação que são produzidas na linguagem. Dessa forma, são estreitos os laços entre contexto e cultura.

Martin e White (2005) esclarecem também que, a língua tem o papel de promover as interações entres os indivíduos, as pessoas assumem diferentes papéis na fala de acor-do com o contexto social que estão inseridas, expondo opiniões, realizando avaliações.

Para Halliday (1994), a linguagem é resultante de determinadas escolhas que os escritores/ falantes realizam, diante das diversas possibilidades que o arcabouço lin-guístico oferece. Pelo viés da LSF, a linguagem desempenha a função de estabelecer a troca de significados, ressaltando dessa forma, as várias vertentes das experiências nas relações sociais que o indivíduo experencia.

Para Halliday (1994), a linguagem pode ser dividida em três metafunções, sendo elas: Ideacional, Interpessoal e Textual, que acontecem ao mesmo tempo na linguagem. As metafunções tem como propósito expor as experiências que falantes/escritores al-meja atingir de acordo com a mensagem que deseja-se transmitir.

Segundo Almeida (2010) ao referir-se à Halliday (1994) esclarece que existe três tipos de metafunções, sendo elas: A interpessoal, que diz respeito aos participantes e os posicionamentos; a ideacional está relacionada com ao conhecimento experiencial dos falantes e a textual que trata a concretização das duas demais que foram citadas.

De acordo com Eggins (1994), os significados que emanam da interação comuni-cativa entre os participantes podem ser compreendidas como meios de desempenhar as trocas de significados que emanam dentro de determinado discurso.

Para Halliday (1994) a metafunção Ideacional diz respeito a utilização represen-tativa da língua. Nesse caso, podemos destacar os sentidos que são atribuídos a respeito das manifestações das experiências e representações que ocorrem sobre nossa percep-ção sobre o mundo. Existem dois tipos de componentes, o experiencial que está relacio-nado com o conteúdo e o lógico que demonstra a relação entre as ideias.

De acordo com Almeida (2010, p. 28): “Dessa forma, o falante/escritor fala ou es-creve sobre fatos e organização do mundo exterior (acontecimentos, coisas, qualidades) e do eu mundo interior (pensamentos, crenças, sentimentos)”. Podemos dizer que o falante/ escritor ao fazer uso da língua para a comunicação está interagindo diretamente com a organização da visão experiencial do mundo exterior em que está inserido e ao organizar tais ideias está inserindo as suas percepções pessoais.

Para Halliday (1994) a metafunção Ideacional possui um sistema que é chamado de “transitividade”, nesse caso ele é responsável por estabelecer um processo que consiga explicar por meio da estrutura linguística as experiências que vivenciamos no mundo

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por meio dos processos. Thompson (1996), destaca que nessa metafunção da linguagem existe um interesse em relação ao conteúdo da mensagem que é transmitida mais até do que o propósito em si. É importante destacar que é praticamente inconcebível separar a relação de conteúdo e propósito, pois o falante/escritor ao realizar as escolhas linguísti-cas são em maioria dependentes do propósito que se deseja. A metafunção textual diz respeito a organização da mensagem que será transmitida, ou seja, reúne as demais.

O sistema de Avaliatividade é um recurso semântico investigativo elaborado por Martin e White (2005). O intuito deste mecanismo é compreender como os usuários da língua apresentam os seus posicionamentos ao se comunicarem. Sobre o início dos estudos sobre Avaliatividade Almeida (2010, p.36) esclarece que:

Os estudos iniciais sobre o sistema de avaliatividade foram marcados pela publicação da revista Text, em 1989, editada por Ochs (1989), cujo tema era “Potencial of language to express different emotions and degrees of emotional intesity” Nesse mesmo período, um grupo de sistemicistas em Sydney, liderado por Martin, começou a desenvolver uma estrutura que fosse capaz de analisar a avaliação no discurso (cf. MARTIN, 2003, p.171).

Ao decorrer do tempo houve um aprofundamento dos estudos desenvolvidos por este grupo de estudiosos, a área adquiriu uma amplitude maior e outras pesquisas foram se se desenvolvendo. O sistema de Avalitividade, elaborado por Martin e White (2005), é constituído por três subsistemas, sendo eles: Atitude, Engajamento e Gradação. Estes subsistemas visam demonstrar os significados que emanam através dos textos, apresen-tando, desse modo, a semântica discursiva existente nas entrelinhas. Enfatizamos que este estudo está pautado no subsistema de atitude.

A linguagem é utilizada, a todo tempo, para avaliar. Por meio dela, demonstra-se opiniões acerca do contexto que estamos inseridos. Por meio das escolhas léxico-grama-ticais, podemos compreender a motivação do porquê de determinadas escolhas ao invés de outras, dando maior ou menor ênfase no discurso escrito/falado (HALLIDAY, 1994).

Martin e White (2005) esclarecem que o subsistema de Atitude se caracteriza por ser responsável pelas avaliações que são ser feitas sobre pessoas e coisas. A linguagem caracteriza- se por ser um sistema de escolhas que permite explorar diversos aspectos vistos da perspectiva não aleatória, levando em conta que construímos o nosso discur-so de acordo com o que nos referenciamos, agregando valores significativos e sociais. A sua funcionalidade explica-se, por fazer uma seleção dentre as demais, ou seja, a estrutura é organizada de forma abrangente, dentro da diversidade das relações sociais presentes no contexto.

De acordo com Halliday (1994) cada elemento na linguagem explica-se por re-ferenciar totalmente num sistema linguístico. Sob este viés, a gramática funcional é aquela que interpreta todas as unidades de uma língua, suas cláusulas, frases e assim por diante como configurações orgânicas de funções. Em outras palavras, cada parte é interpretada como funcional, que se concretiza num conjunto todo.

Halliday (1994) afirma que os recursos ideacionais tratam da experiência de in-terpretar, ou seja, o que está acontecendo, incluindo quem está fazendo o quê a quem,

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onde, quando, por que e como e a relação lógica de um para outro. Os recursos in-terpessoais, interessam com a negociação de relações sociais: como as pessoas estão interagindo, incluindo os sentimentos que tentam compartilhar. E os recursos textuais estão preocupados com o fluxo de informações: as maneiras pelas quais significados ideacionais e interpessoais são distribuídos em ondas de semiose, incluindo as interco-nexões entre as ondas e entre linguagem e modalidades de atendimento (ação, imagem, música etc.).

Para Martin e White (2005) os subsistemas estão divididos em três domínios interacionais: atitude, que está relacionado aos sentimentos, e emoções, as formas de comportamento e as avaliações que realizamos sobre objetos e situações. O engajamen-to está relacionado com as vozes presentes no discurso e a Gradação está relacionada a intensidade de amplitude dos sentimentos. Destacamos que o nosso estudo focaliza no subsistema de atitude. Martin e White (2005) afirmam que a categoria Afeto é respon-sável por registrar sentimentos positivos e negativos, está diretamente ligado como as emoções, como felicidade, infelicidade, confiante ou ansioso, interessado ou entediado. O julgamento trata de atitudes em relação ao comportamento, que admiramos ou cri-ticamos, elogiamos ou condenamos. Já a Apreciação, envolve avaliações de fenômenos semióticos e naturais, de acordo com as maneiras pelas quais eles são valorizados ou não em um determinado campo.

2. Metodologia / procedimentos utilizadosEsta pesquisa está inserida na análise do discurso, com ênfase no âmbito da Lin-

guística Sistêmico-Funcional. Ressalta-se que, a metodologia empregada nesta área fundamenta-se em um caráter exploratório, investigando os significados que emanam do discurso, procurando esclarecer para qual funcionalidade o texto foi produzido e como o contexto influencia semanticamente na produção final dos poemas.

Almeida (2010) retoma Vian Jr. e Ikeda (2006), para ressaltar as possibilidades metodológicas que uma pesquisa pode ser associada. Destaca-se que este estudo enqua-drasse na análise léxico-gramatical, levando em conta as escolhas linguísticas que são realizadas pela escritora Cora Coralina para realizar a Atitude.

2.1. O Corpus

Os dados que compõem este estudo, foram coletados de dois poemas de Cora Coralina: “Mulher da vida” e “A lavadeira”. Estes dois textos transparecem o pensar so-bre o contexto goiano moldurando a perspicácia da vivência de estórias e de causos, em minuciosos detalhes da escrita de uma sábia escritora que nas palavras sua experiência sobre o que adquiriu ao longo de sua existência.

Considerando estes dois poemas, é possível realizar uma reflexões sobre os valo-res cultuados no século passado, resguardando traços dos costumes, importância dos costumes tradicionais principalmente sobre a figura da mulher. Nota-se os minuciosos detalhes da escrita de uma mulher sábia e que reflete nas palavras sua impressão do contexto que a cerca.

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2.2. Procedimentos de análise

O procedimento analítico dessa pesquisa, baseou-se na leitura do corpus de pes-quisa, em seguida foi realizada a coleta dos dados, que foram submetidos no programa computacional WordSmith tools. Logo em seguida, foram selecionadas as avaliações que faziam referência a figura feminina e as categorizamos dentro do subsistema de Atitude. A principal intenção é descobrir os elementos léxicos que expressam alguma forma de avaliação, levando em conta os aspectos atitudinais de Afeto, Julgamento e Apreciação.

Após esse processo de listagem dos dados, foram analisados e organizados con-forme a sua recorrência, levando em conta os três tipos atitudinais em questão. Na pri-meira etapa das análises, foi realizada uma leitura de ambos poemas, afim de identificar os elementos léxico-gramaticais que apresentavam algum tipo de atitude (afeto, julga-mento e apreciação).

3. Discussão e ResultadosO estudo realizado permitiu adentrar no discurso de Cora Coralina, propiciando

o levantamento de evidências sobre o contexto através das seleções léxico-gramaticais foram realizadas. Destaca-se que se inicia as análises com o poema Mulher da vida, foram separadas duas avaliações de cada poema. A seguir observa-se como foram rea-lizadas as análises:

Excerto 1: “Mulher da vida, minha irmã. De todos os tempos”

Excerto (2): “Vive dentro de mim a mulher da vida. Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada...”

Nos excertos acima, a poetisa refere-se às prostitutas, e utiliza o termo mulher da vida. Por meio das escolhas léxico-gramaticais, Cora Coralina questiona e a abre opor-tunidades de voz aquelas que são descriminadas pela sociedade, as mulheres que geral-mente são esquecidas e discriminadas. Estas mulheres são o alvo da escrita da poetisa, são a inspiração para os seus poemas

Para demonstrar a condição de igualdade refere-se à estas mulheres como “ir-mãs”. Portanto, é utilizado uma avaliação de julgamento positivo de estima social de normalidade que está realizado pela nominalização ‘irmã’ ressaltando a importância com o termo ‘de todos os tempos’.

Quando a escritora realiza a avaliação “De todos os tempos”, é possível observar a enfatização dos preconceitos que a sociedade preserva desde muito tempo e, que infeliz-mente se mantem até nos dias atuais. Dentre as escolhas léxico-gramaticais que a poeti-sa realizou, o intensificador “tão”, intensifica a seleção as seleções que foram realizadas.

Nesta próxima etapa são destacadas as avaliações presentes no poema A lavadeira.

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Excerto 1: “Essa Mulher...Tosca. Sentada. Alheada... Braços cansados descansando nos joelhos... olhar parado, vago, perdida no seu mundo de trouxas e espuma de sabão - é a lavadeira. [...]”.

No trecho acima para referir-se à mulher a escritora realiza seguintes escolhas léxico- gramaticais, que se caracterizam por serem avaliações de julgamento negativo, pois tem-se a ideia de infelicidade por conta da exaustiva rotina da lavadeira. A avalia-ção é de sanção social de veracidade, representa a autenticidade da personagem.

Excerto 2: “Essa mulher tem quarenta anos de lavadeira. Doze filhos crescidos e cres-cendo. Viúva, naturalmente. Tranqüila, exata, corajosa. Temente dos casti-gos do céu. Enrodilhada no seu mundo pobre. Madrugadeira [...]”

No trecho acima verifica-se que a escritora realiza uma avaliação de julgamento positivo, pois para traçar o perfil da lavadeira, a escritora utiliza os epítetos “tranquila, exata, corajosa, madrugadeira” para demarcar a personalidade da mulher que ela deseja construir em seu texto.

ConsideraçõesfinaisOs resultados evidenciam que Cora Coralina avalia os preconceitos que a socie-

dade possui em relação à figura mulher. É percebido que existe uma ênfase da poetisa em salientar este aspecto como modo de chamar atenção do leitor para questões que fazem parte da sociedade.

O sistema de Avaliatividade foi fundamental para estabelecer esta perspectiva mais aguçada para as entrelinhas dos textos de Cora Coralina, adentrando em aspectos aos quais não ficariam esclarecidos somente com uma leitura básica, mas com a realiza-ção da investigação léxico-gramatical.

Notamos que muitos trechos, que foram identificados nos textos, evidenciam a cultura da época, demonstram os princípios morais característicos de uma sociedade tradicional. No tocante a figura feminina, observamos que a escritora se preocupa em desmitificar os preconceitos que são impostos as mulheres.

A poetisa demonstra uma afinidade com as mulheres que estão à margem da sociedade e que são discriminadas por não estarem enquadradas dentro de um deter-minado padrão. Observamos que nos poemas de Cora Coralina, a figura feminina é evidenciada na força que a mulher possui em manter-se ativa.

Salientamos que estudos com base sistêmico-funcional em textos literários evi-dencia outras perspectivas que o texto é capaz de produzir. Em especial ao utilizar o sistema de Avaliatividade para compreender as entrelinhas do discurso.

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Referências

ALMEIDA, Fabíola Aparecida Sartin Dutra Parreira. A avaliação na linguagem: os elementos de atitude no discurso do professor – um exercício de análise do discurso Sistêmico-Funcional. São Carlos: Pedro & João editores, 2010.

CORALINA, Cora, 1889. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais/ Cora Coralina. 23 ed. São Paulo: Global, 2006.

FUZER, Cristiane; CABRAL, Sara Regina Scotta. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2014.

HALLIDAY, Michael Alexander Kirkwood. An introduction to Functional Grammar. 2nd Edition, London: Arnold, 1994.

HALLIDAY, Michael Alexander Kirkwood; MATTHIESSEN, Christian. An Introduction to Functional Grammar. 3rd. edition. Revised by Christian M. I. M. Matthiessen. London: Arnold, 2004.

MARTIN, James Robert & WHITE, Peter. The Language of Evaluation: Appraisal in English. New York: Palgrave Macmillan, 2005.

RAMÓN, Saturnino Pesquero. Cora Coralina: o mito de Aninha. Ramón. Goiânia: ed. da UFG; ed. da UCG, 2003.

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O modus vivendi em Catalão-GOde1953: Análise do jornal “O Catalão”

Nayara Capingote Serafim da Silva Arruda48

Maria Helena de Paula49

IntroduçãoEste artigo, com suas discussões e resultados apresentados no decorrer das pá-

ginas, constitui-se parte da pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal de Goiás- Regional Catalão, cujo pro-duto final corresponde à dissertação intitulada “Memórias sobre o ideário comunista em Catalão/GO no jornal ‘O Catalão’ (1953)” (ARRUDA, 2018).

A pesquisa de que deriva o artigo em questão foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e foi aprovada em 19 de julho de 2016, sob parecer de número 1.641.277.

A princípio, “Memórias sobre o ideário comunista em Catalão-GO na década de 1950: estudo do jornal O Catalão e de narrativas orais” era o título da pesquisa, uma vez que esboçamos ter como corpus narrativas orais e escritas sobre os anos iniciais da década de (19)50 em Catalão, retratadas nas páginas dos jornais e nas memórias daqueles que dele participaram ou de seus descendentes. As primeiras, as orais, seriam constituídas de entrevistas com no máximo dez pessoas que viveram na época de pro-dução do jornal “O Catalão” ou os descendentes destes que teriam convivido com as memórias sobre os acontecimentos da década de 1950 na região de Catalão-GO. As escritas corresponderiam às seis edições do jornal “O Catalão”, datado do ano de 1953: as publicações de n. 03 (de 17 de maio de 1953), n. 05 (de 14 de junho de 1953), n. 06 (de 02 de julho de 1953), n. 08 (de 26 de julho de 1953), n. 13 (de 25 de setembro de 1953) e n. 14 (de 06 de dezembro de 1953). Cabe esclarecer que o jornal “O Catalão” foi um periódico produzido no interior do Estado de Goiás, na cidade de Catalão, durante um período incerto, que assentava temas relacionados às denúncias contra a má-qualidade de vida dos trabalhadores e as relações de trabalho (meiagem, diaristas etc.), a defesa da reforma agrária, a cobrança de impostos indevidos, a escassez de gêneros alimentícios, a crítica à gestão elitista de prefeituras da região e a carestia da vida. Ademais, o impresso popular, através de seus textos, se autodeclarou como filiado à imprensa comunista e

48 Universidade Federal de Goiás – UFG – Regional Catalão, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística, Douto-rado em Estudos da Linguagem. Contato: [email protected] Universidade Federal de Goiás – UFG – Regional Catalão, Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística, Progra-ma de Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Contato: [email protected]

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

inclusive publicou excertos do Manifesto de Agosto, de Luiz Carlos Prestes, da Carta aberta do Partido Comunista do Brasil, divulgou campanhas como a de homenagem a Stálin, que correspondeu à coleta de firmas e outras.

À medida do desenvolvimento do trabalho e diante das dificuldades de registro das vozes, que receavam narrar e permitir-nos registrar os acontecimentos, talvez pelo fa-to do sofrimento vivido e que os fez optar por não recorrer à memória essas lembranças, redefinimos nosso estudo apenas às narrativas escritas nas páginas das seis edições do jornal, restringindo-nos ao ano de 1953 apenas e não mais sobre toda a década de (19)50.

Com essas alterações supracitadas, a pesquisa foi desenvolvida tendo o léxico co-mo alicerce, mas observando sua inter-relação com a identidade e a memória. Partimos da premissa de que o léxico nos permite conhecer a história e a vida (ou parte dela) de uma comunidade linguística, já que a língua é um instrumento de comunicação e socia-lização entre os indivíduos. Assim, “O léxico da língua é que mais nitidamente reflete o ambiente físico e social dos falantes” (SAPIR, 1969, p. 45).

Nossa hipótese é de que através das escolhas lexicais apresentadas no material de pesquisa seja possível conhecer o indivíduo, sua cultura, sua história e, enfim, sua identidade. No uso léxico nos textos do jornal hão de estar evidenciadas filiações ideo-lógicas, datos históricos e práticas comuns da comunidade em epígrafe.

A revisão bibliográfica de autores que discorrem acerca do léxico, da identidade e da memória e, ainda, o inventário lexical, a frequência de ocorrência das lexias e a veri-ficação das construções linguísticas em que se encontram, feitos a partir dos impressos populares transcritos para o estudo, corroboraram-nos a propriedade da língua de re-fletir a história, os anseios e a vida social de seus falantes.

1.Brevesconsideraçõessobreaconexãodamemória,léxicoeidentidade

A memória caracteriza-se como uma faculdade humana encarregada por reter conhecimentos, de acordo com Zilberman (2006). Apesar de remeter à individualidade, a memória também é constituída coletivamente, no meio social. Ou seja, está relaciona-da tanto ao indivíduo quanto ao grupo social em que este está inserido.

Sobre esse aspecto, Viana (2006, p. 9) enfatiza que memória social está relaciona-da tanto à memória de todos os membros de uma determinada comunidade, quanto à memória de grupos sociais que vivem em uma coletividade. Observamos que a memó-ria social abarca a totalidade (toda a memória recolhida da comunidade linguística) e a particularidade (toda a memória de um determinado grupo inserido em um contexto linguístico e social).

O caráter social da memória deixa entrever que a memória é coletiva. No en-tanto, a memória individual é uma manifestação singular do coletivo. É preci-so perceber a singularidade da memória individual, mesmo que sua constru-ção tenha origem social. A memória coletiva pode se referir tanto à memória de todos os membros de uma determinada sociedade quanto a grupos sociais no seu interior (VIANA, 2006, p. 9).

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Entrevemos, assim, a existência de uma estreita relação mantida entre a memória e a sociedade, uma vez que os meios de evocar a lembrança são de origem social, em razão de o indivíduo estar inserido em um ambiente. Suas “recordações” estarão em-bebecidas pelas relações sociais mantidas e pela posição social que ocupa. Consequen-temente, convém assinalar que porque existem diversos grupos sociais, haverá uma multiplicidade de memórias e cada grupo poderá manifestar lembranças distintas. Para Viana (2006, p. 10, com destaques do autor):

A memória individual é uma memória constituída socialmente e a memória social é a manifestação coletiva da memória de uma sociedade ou um grupo. Mas isto não deve nos fazer perder de vista que existe uma multiplicidade de memórias, e não apenas uma “memória oficial” e uma “memória comunitária”, pois existem mais grupos sociais e um mesmo grupo social pode manifestar lembranças diferenciadas.

O registro e armazenamento da memória, seja individual ou coletiva, ocorre atra-vés da escrita, notadamente por intermédio das escolhas léxicas. Nas palavras de Gon-dar (2008, p. 2), a escrita serve de esteio para a memória.

A escrita permite que a pedra e o mármore dos templos, das tumbas e dos monumentos comemorativos funcionem como suporte de inscrições epigrá-ficas, produzindo-se desse modo uma sobrecarga da memória. A ostentação dos monumentos soma-se à publicidade das inscrições, apostando-se num poder maior de perpetuação da lembrança. Por outro lado, surgem também os documentos, escritos num suporte especialmente destinado a este fim (de iní-cio osso, pele, folhas de palmeira e, finalmente, papiro, pergaminho e papel). Fornecendo aos homens um processo de marcação, memorização e registro e, por outro lado, assegurando a passagem da esfera auditiva à esfera visual, esses documentos escritos conferem um suporte material à memória, ampliando-a, transformando-a, e estabelecendo a fronteira onde, segundo Le Goff, a memó-ria coletiva torna-se memória social.

Isto posto, constatamos que não somente através do contato com a realidade sen-sorial é possível conhecer sobre determinada comunidade, mas o contato linguístico também o permite. Ximenes (s/d, p. 10) ratifica esta afirmação ao tratar a língua como “[...] um instrumento de manifestação cultural que representa as vivências dos seus falantes e do meio social não importa o tempo histórico”. Sapir (1969, p. 45) apresenta contribuições ao destacar que “O léxico da língua é o que mais nitidamente reflete o ambiente físico e social dos falantes” e, além disso, pode ser “[...] considerado como o complexo inventário de todas as idéias, interesses e ocupações que açambarcam a aten-ção da comunidade”.

A língua refrata a realidade do indivíduo que a utiliza, ou seja, por meio dela é possível que cada sujeito expresse sua cultura, identidade, a posição política, dentre ou-tros, revelando- nos, portanto, as múltiplas pertenças e identidades. Paula (2007, p. 90) reforça que a língua, “O sistema de signos, patrimônio da coletividade, é construído ao

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longo da convivência dos falantes com suas regras, o que implica dizer que se submete aos interesses e planos de vida do homem na coletividade”.

Se o léxico (palavras, expressões, fraseologias) traz todo o conhecimento que a língua conseguiu registrar, pode-se afirmar, sem dúvidas, que acessando e conhecendo o acervo lexical o saber que o povo acumulou (velhos, novos e reformulados saberes) será assim conhecido. Então, estudar e conhecer esse “patrimônio” a partir do léxico é, em certa medida, conhecer a história e a cultura que a língua registra.

Petter (2002, p. 14) assevera que a língua é uma parte social da linguagem que “não pode ser modificada pelo falante e obedece às leis do contrato social estabelecidas pelos membros da comunidade”. Dada sua importância para a vida em sociedade, a lín-gua convive, é constituída e se constitui em contextos culturais, identitários e históricos. E é por isto que através do léxico se pode compreender os hábitos culturais, a vida em sociedade, as características dos sujeitos, assim como conhecer o período histórico em que estes estão inseridos. E isto fica evidente através da assertiva de Antunes (2012, p. 46, destaque da autora): “[...] o repertório lexical que manejamos, as escolhas lexicais que fazem nossas preferências constituem ‘pistas’ claras de nosso pertencimento aos grupos onde tecemos nossa identidade”. A língua, portanto, está a serviço dos indiví-duos e de suas manifestações em sociedade, conforme evidencia Bally (1977, p. 19): “El lenguaje está simplemente al servicio de la vida, y no de la vida de unos pocos, sino de la de todos y en todas sus manifestaciones: su función es biológica y social”. A língua está à disposição de seus falantes e tem regras de uso socialmente acordadas, o que a torna produto social, por isso é possível que reconheçamos na fala de seus usuários certas expressões e posicionamentos que, agregados a outras particularidades, nos propicia-rão conhecer acerca da identidade do indivíduo e seu engajamento no meio social. Não se deve ignorar, todavia, que esta relação é de constitutividade, é recíproca: a pertença linguística também se faz nesta relação.

Por conseguinte, recorremos a Antunes (2009) que pronuncia sobre a proximidade da língua com a identidade: “[...] a língua que falamos deixa ver de onde somos. De certa forma, ela nos apresenta aos outros. Mostra a que grupos pertencemos. É uma espécie de atestado de nossas identidades” (ANTUNES, 2009, p. 23). Nessa mesma perspectiva, Woodward (2014) afirma que a identidade do indivíduo só adquire sentido por meio da linguagem e, também, através dos sistemas simbólicos pelos quais são representadas.

2. Sobre os caminhos percorridos pela pesquisaPrimeiramente, para embasamento teórico de nossa pesquisa recorremos a auto-

res que estudam acerca da memória, léxico e identidade, tais como: Zilberman (2006), Viana (2006), Gondar (2008), Ximenes (s/d), Sapir (1969), Paula (2007), Petter (2002), Antunes (2012), Bally (1977), Antunes (2009) e Woordward (2014). Esses autores fo-ram referenciados no tópico anterior e de maneira suscinta tecemos breves comentários acerca de seus estudos. Porém, é importante destacar que a pesquisa contou com a teo-ria também de outros estudiosos, mas que não foram aqui citados tendo em vista que este artigo trata-se de um pequeno fragmento das discussões e análises apresentadas

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na dissertação e também porque objetivamos neste trabalho discorrer acerca do modus vivendi do povo catalano na época do jornal “O Catalão”.

Em segundo momento, após as trascrições do corpus da pesquisa, e tendo em vista o objetivo proposto, na tentativa de comprovar que o léxico carrega suas marcas e permite-nos conhecer a história, os anseios e a vida social de seus falantes, identifica-mos as principais lexias relacionadas à população, às condições de vida social e econô-mica e, especialmente, ao ideário comunista. As microestruturas inventariadas, ou seja, as lexias, foram agrupadas em três principais assuntos: “Relações de Trabalho”, “Polí-ticas Internacionais e Nacionais” e “Desenvolvimento e Situação Político-econômica”.

Além disso, por acreditarmos que as lexias carregam consigo algumas impressões, é nas construções linguísticas que confirmaremos com maior evidência e tangibilidade o ideário que conjecturamos comportar. Por isso, também recorremos ao corpus a fim de verificar as construções linguísticas em que as lexias inventariadas estão inseridas.

Com o inventário lexical feito, retringimos nosso estudo às cinquentas lexias mais recorrentes e consequentemente à verificação das construções linguísticas em que estão inseridas no corpus. De posse das lexias e de suas frequências, elaboramos a Figura 1 e a Tabela 1. A primeira, a figura, é intitulada “nuvem de palavras” e apresenta, de maneira ilustrativa, as cinquenta palavras mais recorrentes em nosso material de estudo. É im-portante notar que o tamanho das letras da palavra se acentua ou diminui à medida da frequência de recorrência. Já a tabela apresenta os mesmos dados, porém com maior vi-gor em detalhes, uma vez que são contabilizadas as ocorrências, em ordem decrescente, isto é, dos mais recorrentes aos menos recorrentes no conjunto dos dados.

Figura 1 - Nuvem de palavras - cinquenta lexias mais recorrentes em edições do jornal “O Catalão” (1953)

Fonte: elaboração própria com o auxílio da ferramenta Wordle

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O que se pode visualizar na nuvem é que povo, governo e jornalistas assumem o topo das ocorrências, não sem razão. A bem da verdade, estas três lexias situam “O Ca-talão” como um produto de jornalistas, nas lutas travadas pelo povo ante as políticas do governo que, no entender daquele, ignorava as necessidades da população. A frequência pode ser mais notada na tabela seguinte, de nossa autoria.

Tabela 1 - Cinquenta lexias mais recorrentes em edições do jornal “O Catalão” (1953)

Ordem Lexia Frequência1 Povo 1432 governo / governo 493 jornalista/ jornalistas 354 crime/ crimes 305 operarios/ operários 286 paz/ pacífica 287 Trabalhadores 288 lutar/ lutará/ lutarão/ lutaremos/ lutem/lutam/lutai 279 Carestia 24

10 direitos/ direito 2411 Estados Unidos 2412 americanos / norte-americanos 2313 Arroz 2314 guerra/ guerras 2315 liberdade/ liberdades/ libertação/ libertar/ libertaremos 22

16defender/ defende/ defendendo/ defenderá/ defenderemos/ defesa

21

17 união/ unido/ unidos/ unir 2118 Stalin 1919 morre/ morrer/ morreram/ morrerá/ morreu/matou 1920 terra / terras 16

21ameaça/ameaças/ ameaçarem/ameaçado/ameaçou/ ameaça-doramente

14

22 exploração/exploradores/ explorador/explorado 1323 miseria/ miséria 1324 capado/ capados 1225 Fome 1226 assassinos/ assassino/ assassinou/assassínio 1227 organização/ organizado/ organizai-vos/ organizar 1128 Partido Comunista do Brasil/ Partido Comunista 1129 pátria/ pátrias/ patriotas 1130 roubando/ roubo/ roubou/ roubar/ roubara 1131 arrendos/arrendo 1032 chefe/ chefes/ chefete/ chefetes 1033 Classe 10

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34 Feijão 1035 Gerente 1036 Tubarões 1037 vitima/ vitimas/ vítimas/ vítima 1038 ianque/ ianques 939 lei/ leis 940 Proibição 941 Sangue 942 Camponeses 843 Carne 844 dono/ donos 845 Protestos 846 Salários 847 terror/ terrorismo/ terrorista 848 União Soviética/ URSS 849 imprensa popular 750 Mulheres 7

Fonte: elaboração própria

3. “Já perdemos o gosto da carne”: a carestia que atinge o povo catalano em 1953

Considerando o inventário lexical feito para o estudo e que foi apresentado no tópico anterior, nessa seção discorremos e analisamos acerca de algumas lexias e cons-truções linguísticas que contribuem na comprovação de que é possível acessar rastros da história e da vida de um povo na língua por ele usada.

Na reconstrução do cenário da cidade de Catalão, no ano de 1953, e no intuito de apreender o modus vivendi do seu povo nesta época, vamos recorrer a princípio às lexias “carestia”; “miseria/miséria”; “fome”; “exploração/exploradores/explorador/explorado”; “salários”. Dentre elas, a mais frequente é a lexia “carestia”, retomada vinte e quatro vezes nos textos. Em segundo lugar, temos as lexias “exploração/exploradores/explorador/ex-plorado”, seguidas das lexias “miseria/miséria”, com recorrência de treze vezes, da lexia “fome”, com doze ocorrências, e da lexia “salários”, com oito incidências.

Analisando essas lexias a partir do contexto das construções linguísticas que es-tão inseridas, tomemos, a fim de exemplificação, os trechos a seguir: “O povo de Catalão atravessa atualmente uma situação de carestia de vida nunca vista. Os preços dos artigos de primeira necessidade sobem diariamente apesar de ja serem muito altos” (Edição n. 14, de 06 de dezembro de 1953, grifos nossos); “O povo catalano vê com simpatia e dará seu apoio entusiasta a este magno conclave, pois está tambem profundamente in-teressado na modificação desta situação calamitosa em que nos encontramos, situação de carestia, miseria e dificuldade para a maioria da população” (Edição n. 14, de 06 de dezembro de 1953, grifos nossos); “[...] livrarão todo o povo de mais essa exploração que encarece mais o custo de vida.” (Edição n. 5, de 14 de junho de 1953, nossos grifos);

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“Com essa falta de trabalho, com êsses salários de miséria, já existem muitas famílias passando fome.” (Edição n. 6, de 02 de julho de 1953, nossos grifos); “[...]com tudo caro como está, como é que se pode comer sem passar fome? E isto sem falar nos remédios, nos tecidos, nos calçados!” (Edição n. 6, de 02 de julho de 1953, grifos nossos).

As lexias e construções linguísticas acima apresentadas revelam-nos as dificulda-des da população, ou para melhor expressão, do “povo50”, que ansiava por uma digna vida. Assistimos a um “povo” que passa fome e dificuldades, que vive na miséria e na carestia. A carestia, conforme Freire (1954), refere-se à “Carência, escassez, falta”. Isto porque os salários do povo não lhe permitiam comprar os produtos de primeira neces-sidade. Em suma, é um “povo” que é explorado pelo patrão, pelos donos dos meios de produção, porque não remunera seus trabalhadores de forma justa.

Observamos a descrição da fala do Sr. Benedito Rosa que corrobora essa afirma-ção: “– Eu comprei um quilo de arroz e um de toucinho por 30 cruzeiros. Só ai foi o or-denado de um dia de serviço. O ordenado do operário, por causa dessa carestia, não dá prá nada” (Edição n. 6, de 02 de julho de 1953). Além dos “salários minguados”, como assim é intitulado na edição de número 3, temos a escassez dos gêneros alimentícios co-mo um grande responsável pelo aumento da miséria e da fome da população, ocasiona-da pela exportação, principalmente do capado e do arroz, conforme declara o Sr. Mário Netto Carneiro ao responder uma enquete do jornal “O Catalão”, sobre a necessidade de proibir a saída do arroz e do feijão: “– O arroz da safra de 53, não sendo exportado, poderá manter o município por 8 meses no màximo. Estou sempre em contato com a lavoura e posso afirmar que hà feijão em abundância. Mas, se continua a exportação, haverá terrível alta no preço dêsse produto” (Edição n. 6, de 02 de julho de 1953). A este depoimento, infelizmente, não conseguimos acrescentar mais fatos históricos pela escassez de outras fontes da vida cotidiana em Catalão na época em tela.

Referente aos gêneros alimentícios, encontramos, dentre as cinquenta lexias elen-cadas para o estudo, as seguintes: “arroz”, referenciada vinte e três vezes; “capado/capa-dos”, com ocorrência de doze vezes; “feijão”, dez vezes; e “carne”, oito vezes. Por “capado” entendemos, a partir da definição de Fernandes (1960), como “porco castrado que foi posto a cevar”. Além destes itens, temos ainda a lexia “banha”, com recorrência de cinco vezes; “comida”, duas vezes; e “café”, citado apenas uma vez ao longo de todos os textos. Essas lexias estão associadas no jornal às notícias referentes à carestia de vida e às difi-culdades financeiras do trabalhador, conforme trechos acima apresentados.

Além dos salários baixos, revelam-nos as lexias que a “carestia” de vida existe em virtude da má distribuição das terras, que estavam em posse dos latifundiários, em razão dos valores altos de arrendo do arroz e do milho e em decorrência da cobrança ilegal do arrendo do feijão pelos donos das terras. As lexias “terra/terras”, “arrendos/ar-rendo”, “dono/donos” também estão entre as cinquenta mais frequentes. A primeira se repete dezesseis vezes, a segunda dez vezes e a terceira oito vezes. Por “arrendo”, a partir da concepção de Fernandes (1960), que faz uma remissiva ao verbete “arrendamento”, entendemos como “contrato de cedência, durante certo prazo e mediante determinado

50 Povo é a lexia mais recorrente, o que é pertinente, tendo em vista a bandeira comunista do jornal.

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preço, da fruição de um prédio ou propriedade”. No caso dos trabalhadores, refere-se ao arrendo da produção do milho àquele que não tinha terras e plantava em terras alheias. O que reclamam os trabalhadores é a cobrança do arrendo do feijão, uma vez que este era plantado junto ao milho, não demandando outro espaço nem outro tempo de plan-tio e colheita e que, por isso, os donos da terra não poderiam cobrar o arrendo do feijão, mas apenas o do milho.

Comprovamos essa situação de “carestia”, também, a partir dos trechos: “Os tatui-ras já cobram o arrendo do arroz e do milho e não é justo cobrar também do feijão” (Edi-ção n. 8, de 26 de julho de 1953, grifos nossos); “A carestia existe principalmente porque as terras estão nas mãos dos latifundiários que nada produzem e também os arrendos absurdos desanimam os lavradores que não querem trabalhar para tratar de 2 famílias”. (Edição n. 8, de 26 de julho de 1953, grifos nossos); “Já perdemos o gosto da carne” (Edi-ção n. 14, de 06 de dezembro de 1953). Neste último excerto, observamos, novamente, refletidas as dificuldades financeiras por que passa o “povo” de Catalão, decorrentes dos salários insuficientes, dos produtos de primeira necessidade com preços altos, da explo-ração da mão de obra pelo detentor dos meios de produção, dentre outros.

– As coisas estão sem geito. Tudo caro e serviço muito pouco. Quando a gente arranja um serviço os donos so’ pagam o que bem querem e não o que o ser-viço merece. Eu acho que do geito que esta’ a gente tem que ganhar o dobro. Para isto no’s operarios temos que nos unir e lutar por aumento de salarios. Se os donos dos produtos, os donos do arroz, do feijão, da carne, podem aumen-tar os preços diariamente porque no’s não podemos valorizar nosso trabalho? (Edição n. 14, de 06 de dezembro de 1953).

Essa questão da posse de terra pelo latifundiário e da exploração do trabalhador pelo dono dos meios de produção é tão marcada no texto que à classe dominante é atri-buída a lexia “tubarões”. Entendemos que o uso desta lexia foi uma alusão à questão de ganância, sobre o explorar o povo para aumentar suas riquezas. Esta concepção se rati-fica ao consultarmos as definições do verbete “tubarão” em Fernandes (1960), em que encontramos “comerciante ou industrial ganancioso, que procura por todos os meios au-ferir enormes lucros em suas transações, concorrendo assim para elevar o custo de vida”.

Descortinam a nossos olhos uma sociedade dividida: de um lado, temos o povo detentor da força de trabalho; e, de outro lado, o governo, a classe que dispõe do poder e dos meios de produção, conforme lexias encontradas ao longo das edições do jornal. À lexia “povo” podemos considerar a referência de toda a população, como um grupo maior de pessoas, em que estão contidos como participantes da vida social e econômica, o “operário/operários”, os “trabalhadores”, “as massas trabalhadoras”, os “camponeses”, o “cidadão”, os “arrendatários”, os “assalariados”, os “lavouristas”, os “lavradores”, a “la-vadeira”, o “pedreiro”, o “jornalista/jornalistas”, o “gráfico”. Como se vê, todo este povo detém apenas a força de seu corpo para garantir-lhe a sobrevivência, ficando à mercê das regras daqueles que o dominam.

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ConsideraçõesfinaisNosso estudo contribuiu para, por meio das revisões bibliográficas feitas dos au-

tores utilizados na discussão dos dados, nos certificarmos de que há uma estreita rela-ção entre a identidade, memória e léxico. Ou seja, é possível conhecer identidades de grupos sociais, locais e períodos históricos, tendo como suporte a memória, no caso do nosso estudo, por intermédio da memória escrita. A partir dos escritos deixados nas seis edições do jornal “O Catalão”, especificadamente do léxico utilizado nestas produções, ficou comprovado este papel da escrita na construção (e reconstrução) da memória e de intermediar/permitir reconstruir cenários, histórias, identidades; o conhecimento acerca de nossos antepassados e suas vivências foi o que este estudo quis trazer para o presente, também por meio da escrita.

Salientamos que esse trabalho se alicerçou na perspectiva da inter-relação língua, identidade e memória, de que comprovamos que o contato linguístico permite-nos, de-veras, conhecer acerca de determinada comunidade, seus anseios, suas filiações políticas, dentre outras características identitárias. Confirmamos que o repertório lexical que ma-nejamos conferem “pistas claras” sobre o grupo a que pertencemos e “onde tecemos nos-sa identidade”, conforme proposição de Antunes (2012), Ximenes (s/d) e Sapir (1969).

A carestia, de acordo com as construções linguísticas em que encontramos men-cionada, a nosso ver, engloba uma situação maior e mais grave. Um total “desamparo” dos trabalhadores pelas autoridades municipais, estaduais e federais. Isto observamos, pois, além da fome, há denúncias contra patrões, como pode-se notar através do trecho a seguir: “...os trabalhadores ainda são vitimas da brutalidade do gerente, um tal de Odilon que por qualquer coisa xinga e desrespeita empregados” (Edição n. 14, de 06 de dezembro de 1953), sobre a falta de hospitais, ao noticiar na edição n. 3 sobre o nasci-mento de uma criança tendo a copa rala de uma mangueira como teto e contrapartida questiona os investimentos que são demandados na compra de equipamentos bélicos, como observa-se: “...o govêrno compra canhões, metralhadoras e munições para nos jo-gar numa guerra, em lugar de construir maternidades e hospitais para o povo.” (Edição n. 3, de 17 de maio de 1953); sobre a ausência de bibliotecas e livrarias, a se confirmar pelo excerto a seguir: “É de pasmar, uma cidade como Catalão não contar ainda com uma biblioteca pública municipal, quando cidades menores, como Goiandira, possuem as suas, e bem organizadas.” (Edição n. 3, de 17 de maio de 1953), dentre outras, ou seja, um verdadeiro “abandono” da sociedade.

Para além dos julgamentos a que nossas considerações finais possam remeter, é preciso reconhecer que se pode reconstruir o modus vivendi do povo catalano na época do jornal, quando, por exemplo, nas seções menos formuladas, apresentam-se lexias, como “arroz”, “capado/carne”, “banha” e “feijão” na lista dos bens produzidos pelo traba-lhador e de mais difícil aquisição no cenário de exploração capitalista. Itens de primeira necessidade da sobrevivência alimentar do povo, produzidos por ele, mas que lhe falta-vam, em uma época em que estadunidenses e soviéticos viviam uma disputa ideológica de dimensões globais bem denotam a que propósitos serviam “O Catalão”, nos idos de 1953, em Catalão-GO.

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PAULA, Maria Helena de. Rastros de velhos falares: léxico e cultura no vernáculo catalano. 2007. 521 f. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista.

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ZILBERMAN, Regina. Memória entre oralidade e escrita. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 41, n. 3, p. 117-132, set. 2006.

As edições do jornal usadas na pesquisa constam em nossa dissertação, já referenciada.

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Variaçõesmorfofonológicasemumcódiceeclesiásticocatalanooitocentista(1839-1842)

Maiune de Oliveira Silva51

Maria Gabriela Gomes Pires52

Mayara Aparecida Ribeiro de Almeida53

Maria Helena de Paula54

Primeiras palavrasApresentamos a descrição e análise de processos morfofonológicos encontrados

em atas batismais do Livro de Registros da Paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus, as quais foram exaradas entre dezembro de 1839 e março de 1842. Especificamos que o material de nosso estudo são assentos55 de batizados que integram um códex unicus composto por 90 fólios redigidos em recto e verso, que relatam batistérios de pessoas escravas e de seus descendentes, bem como de pessoas que não estavam subjugadas ao sistema da escravidão na primeira metade dos idos oitocentistas.

Nesta época, o pároco responsável pelos batizados era o Vigário Manoel Came-lo Pinto. Contudo, acreditamos que esse pároco não era o escrivão da paróquia, uma vez que se sabe ser esse ofício designado, geralmente, aos sacerdotes recém-chegados na sede. Hipotetizamos ser o vigário, que cede seu nome para que os assentos fossem assinados, o seu autor ideológico, isto é, o autor das ideias que ali foram transcritas, di-ferentemente do autor material, ou seja, aquele que transcreve os assentos e assina, por convenção, o nome do autor ideológico; as hipóteses encontram eco nas variações no traçado da escrita dentro do códice. Inicialmente, acreditávamos que o principal moti-vo que o induziu às realizações dessas variações era o fato de ele ter que redigir vários assentos por dia, contudo, outras hipóteses foram incorporadas ao longo deste estudo, conforme discutiremos mais adiante.

A importância deste estudo reside no fato de ele nos colocar em contato com documentos manuscritos que muito nos dizem sobre a história da cidade, revelando as-

51 Instituto Tecnológico de Goiás – Aguinaldo Campos Netto/ ITEGOACN. Grupo de Estudos e Pesquisas em História do Português (GEPHPOR). Contato: [email protected] Universidade de São Paulo – USP. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Grupo de Estudos e Pesquisas em História do Português (GEPHPOR). Bolsista Capes. Contato: [email protected] Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”/Câmpus Araraquara – UNESP/Ar. Faculdade de Ciências e Letras. Grupo de Estudos e Pesquisas em História do Português (GEPHPOR). Bolsista do CNPq. Contato: [email protected] Universidade Federal de Goiás/ Regional Catalão – UFG/RC. Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística. Pro-grama de Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Grupo de Estudos e Pesquisas em História do Português (GEPHPOR). Contato: [email protected] Sinônimo de registro de batismo.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

pectos linguísticos e culturais conservados pela igreja e outras instituições responsáveis pela salvaguarda destes códices, bem como pelo fato de esses documentos anulam a hi-pótese de que aqui não houve tal prática escravocrata, haja vista que o livro manuscrito, por suas particularidades, evidencia e fortalece essa hipótese.

Da perspectiva temática do estudo proposto, é notável uma enorme quantidade de processos morfofonológicos realizados pelo pároco no corpus em análise, isto é, uma mesma unidade léxica é escrita com grafemas diferentes em um mesmo fólio. Isso se torna mais evidente pelo fato de os assentos de registros de batizados serem formulai-cos, isto é, por seguirem o mesmo padrão de escrita, ainda que possa ter havido mais de um autor material. O que modifica, pois, são as informações referentes ao batizando, que são mais detalhadas quando a pessoa batizada é um escravo. Isto posto, buscamos entender o que motivou os escribas a realizarem tais processos, além de obtermos coe-ficientes que traduzem a quantidade de vezes que esses processos foram reproduzidos.

Por fim, ressaltamos que o presente estudo vincula-se ao Grupo de Estudos e Pesquisas em História do Português (GEPHPOR) e, também, ao projeto “Em busca da Memória Perdida: estudos sobre a escravidão em Goiás”, ambos coordenados pela pro-fessora Doutora Maria Helena de Paula, da UFG/Regional Catalão.

1.Dosprocedimentosteóricos-metodológicosMetodologicamente, a primeira fase da nossa pesquisa consistiu na leitura e edição

semidiplomática, em disposição justalinear do Livro de Registro de batizados da Paró-quia Nossa Senhora Mãe de Deus, consoante os ensinamentos de Megale e Toledo Neto (2005). A leitura do códice possibilitou que conhecêssemos melhor o material de estudo.

Para dar cabo da descrição e análise dos processos morfofonológicos, recorremos a autores consagrados no campo da morfologia e da fonologia, a saber: Williams (1973), Camara Junior (1976), Cristófaro Silva (2011), Coelho (2008) entre outros, que nos deram o respaldo necessário para compor o painel dos processos localizados nos fólios paroquiais em tela. Ler autores que versam sobre Fonologia e Morfologia foi necessário para entendermos o objeto de estudo de cada ciência, bem como a influência que uma disciplina exerce sobre a outra.

Inserimos as unidades lexicais que apresentaram processos morfofonológicos em tabelas que permitiram uma melhor visualização dos processos configurados que, em seguida, foram cotejadas com obras de cunho lexicográfico, a saber: Morais-Silva (1789) e Silva-Pinto (1832), publicações de datas próximas à do documento, no propó-sito de verificar se os sentidos das lexias dentro do contexto documental permaneceram inalterados, condição para considerá-las as mesmas unidades lexicais.

Desta feita, realizamos o levantamento dos processos morfofonológicos sem o uso de softwares específicos, porque não encontramos programas, na Linguística Com-putacional ou na Filologia, que contemplassem a leitura e a contabilização dos dados sem descaracterizar o corpus. A edição modernizada (MEGALE; TOLEDO NETO, 2005), nesse caso, não seria pertinente, uma vez que ela comprometeria o estado de língua dos dados em análise.

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2.InterfaceFonologiaeMorfologia:reflexõesteóricasDe maneira sucinta, Cristófaro Silva (2011, p. 110) esclarece que a Fonologia é

a “disciplina da linguística que investiga o componente sonoro das línguas naturais do ponto de vista organizacional. Determina a distribuição dos sons e o contraste entre eles, com ênfase na organização dos sistemas sonoros”.

Coelho (2008), por seu turno, faz um breve histórico dessa disciplina, diferen-ciando-a da Fonética, embora elas aparentemente tenham o mesmo objeto de estudo. Para esse autor, “a fonética preocupa-se com a produção e a percepção dos sons vocáli-cos do ponto de vista articulatório e do ponto de vista acústico”, enquanto a Fonologia, ciência mais recente, “estuda o som vocal considerando a sua função distintiva dentro da organização de uma língua” (COELHO, 2008, p. 17). Compreende-se, então, que o fonema na Fonologia tem a função de distinguir os signos através da técnica de comu-tação, e na Fonética o objeto é a unidade destituída de valor distintivo (fone) e a ciência tem como propósito produzir métodos para descrever e classificar os sons da fala con-templando a perspectiva do enunciatário e do ouvinte.

De igual maneira, faz-se mister elucidar o objeto de estudo da Morfologia. Esta disciplina tem como unidade elementar o morfema, entendido como a unidade míni-ma significativa; em outras palavras, determinados segmentos só serão considerados morfemas se estes forem responsáveis por uma parcela significativa do vocábulo, por exemplo, o radical que compõe uma lexia (ZANOTTO, 1986).

Isto compreendido, passamos a autores que abordam o conjunto desses proces-sos, os quais chamamos de processos morfofonológicos. As primeiras leituras realizadas foram as dos livros Estrutura da língua portuguesa, de Camara Júnior (1976) e Gramáti-ca Histórica, de Coutinho (1970), que nos permitiram ter um panorama geral dos pro-cessos passíveis de serem identificados no códice. Em seguida, recorremos a Williams (1973) para apreendermos sobre as transformações as quais perpassaram a língua latina até o português. Demos maior atenção para o latim vulgar, uma vez que as línguas neo-latinas foram provenientes dele. Este autor esclareceu sobre o motivo pelo qual alguns processos latinos permaneceram na língua portuguesa e que nós, falantes nativos, utili-zamos cotidianamente sem nos apercebermos desse movimento do idioma.

Vale dizer que não estudamos os processos morfofonológicos sob a perspectiva da fonética, uma vez que o livro manuscrito não é dotado de recursos sonoros e mes-mo reconhecendo ser possível, pela escrita, reconstituir comportamentos da fala, não é esse o escopo do nosso estudo. Consideramos as alterações lexicais devido à natureza do corpus que não permite afirmar que as discrepâncias ortográficas produzidas pelo escrevente decorrem de realizações da oralidade, embora essa conjectura seja um forte indício para essas variações.

3.Processosmorfofonológicos:achegasparaumadiscussãoClassificamos os 12 (doze) processos morfofonológicos de acordo com os postu-

lados de Coutinho (1970). Para uma melhor visualização dos dados, dividimos e classi-ficamo-los em 4 grupos, conforme o ensinamento de Coutinho (1970), a saber: proces-

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so morfofonológico por permuta (grupo 1); processo morfofonológico por subtração (grupo 2); processo morfofonológico por aumento (grupo 3) e processo morfofonoló-gico por transposição (grupo 4). Passemos, pois, à tipologia de cada grupo.

3.1.Processosmorfofonológicosporpermutaocorremquandoumfonemaétrocadoousubstituídoporoutro.

3.1.1. alçamento de vogais: consiste na elevação das vogais médias altas para vogais altas. Assim, para Camara Júnior (1976), em alguns contextos ocorrerá o ocultamento das vogais médias baixas em detrimento das médias altas, no entanto, essa permuta não compromete a articulação e o entendimento dos enunciados. Esse processo morfofonológico manifestou-se em 55 (cinquenta e cinco) lexias, que se repetiram 678 (seiscentos e setenta e oito) vezes.

Quadro 1 - Alçamento de vogais no Livro de Registro de Batizados da Paró-quia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Olios Ligitimo Mai

Fonte: as autoras (2016)

3.1.2. Abaixamento de vogais: Segundo Camara Júnior (1976), esse processo ocorre quando as vogais altas passam a compor o painel das médias altas. Nes-se processo, 69 (sessenta e nove) unidades lexicais se repetiram 993 (novecen-tas e noventa e três) vezes.

Quadro 2 - Abaixamento de vogais no Livro de Registro de Batizados da Pa-róquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Nasseo Deos

Fonte: as autoras (2016)

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Estudos da linguagem em foco

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3.1.3. Nasalização progressiva: Cristófaro Silva (2011, p. 157) adverte que a na-salidade “é um fenômeno em que uma vogal nasal tem a propriedade obrigató-ria de ressonância na cavidade nasal.” Nesse sentido, a nasalização progressiva em nosso corpus caracterizou-se por haver o deslocamento do sinal diacrítico (~) para o grafema subsequente. No códice estudado, 34 (trinta e quatro) uni-dades léxicas reprisaram 1.403 (mil quatrocentos e três) vezes, ocupando o segundo lugar no ranqueamento desses processos.

Quadro 3 - Nasalização progressiva no Livro de Registro de Batizados da Pa-róquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Comceicaõ Saõ

Fonte: as autoras (2016)

3.1.4. Nasalização regressiva: Ocorre quando o fonema nasal (/m/ ou /n/) es-praia a nasalidade para os grafemas precedentes cuja formação original era aberta e oral, isto é, o grafema oral em contato com outro nasal, adquire seu traço de nasalidade, transformando-se em fechado (COUTINHO, 1970). Ob-tivemos 39 (trinta e nove) unidades lexicais que se repetiram 1.507 (mil qui-nhentos e sete) vezes.

Quadro 4 – Nasalização regressiva no Livro de Registro de Batizados da Pa-róquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Anos Solemnemente

Fonte: as autoras (2016).

3.2.Processosmorfofonológicosporsubtraçãoocorremempalavrasdasquais se retiram alguns fonemas ou morfemas.

3.2.1. Contração ou síncope: Esse processo ocorre quando há o ocultamento de alguns caracteres no interior do vocábulo. Foram identificadas 266 (duzentos e sessenta e seis) recorrências em um total de 54 (cinquenta e quatro) lexias.

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

Quadro 5 - Contração ou síncope no Livro de Registro de Batizados da Paró-quia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Escravo Dezembro Oliveira

Fonte: as autoras (2016).

3.2.2. Suspensão ou apócope: Flexor (1991) assevera que nessa tipologia há a supressão dos grafemas finais de um vocábulo, afigurando o desaparecimento parcial da palavra. Esse sistema abreviativo é uma ramificação das abreviaturas por sigla e, portanto, não possui terminação. Encontramos nas noventa folhas que compuseram o códice, apenas 03 (três) recorrências de 3 (três) unidades léxicas distintas. Consideramos as abreviaturas como processo porque os ca-racteres omissos em uma lexia abreviada podem ser recuperados dentro do contexto, embora saibamos que as abreviaturas não podem ser reproduzidas na fala.

Quadro 6 - Suspensão ou apócope no Livro de Registro de Batizados da Pa-róquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Artigo Número 12 que

Fonte: as autoras (2016).

3.2.3. Monotongação: Segundo Cristófaro Silva (2011, p. 153), é um “fenôme-no fonológico em que um ditongo passa a ser reproduzido como uma única vogal.” E a isso acrescenta que esse processo pode ocorrer, em português, com ditongos crescentes e decrescentes. Identificamos um total de 32 (trinta e duas) repetições que reportaram a 09 (nove) lexias.

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Quadro 7- Monotongação no Livro de Registro de Batizados da Paróquia Nos-sa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Sertidam Paixam Nassam

Fonte: as autoras (2016).

3.2.4. Sinalefa ou elisão: Esse processo equivale ao desaparecimento da vogal final de uma palavra, quando a subsequente a esta se inicia também por vogal. A queda da vogal final de uma das partes pode provocar o acoplamento de ambas, transformando-as em uma (COUTINHO, 1970). Geralmente, é oca-sionada pela união de uma preposição com outra classe gramatical do portu-guês brasileiro. Identificamos apenas 1 (um) caso que se repetiu 2 (duas) vezes.

Quadro 8 - Sinalefa ou elisão no Livro de Registro de Batizados da Paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Donde

Fonte: as autoras (2016).

3.2.5. Abreviatura simples: Essa abreviatura é caracterizada pela letra inicial do vocábulo seguida por ponto. Embora não seja nosso foco discutir sobre as abreviaturas, merece menção que essa tipologia é uma ramificação da abrevia-tura por sigla, conforme aponta Spina (1977). Constatamos no livro manuscri-to em estudo 53 (cinquenta e três) repetições de 08 (oito) lexias que reiterada-mente compuseram os assentos.

Quadro 9 - Abreviatura simples no Livro de Registro de Batizados da Paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Dona Nossa Senhora São Domingos

Fonte: as autoras (2016).

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

3.3.Oprocessomorfofonológicoporaumentoocorrequandoalgunsfonemassãoacrescentadosemumaunidadeléxica.

3.3.1. Paragoge ou epítese: Esse processo morfofonológico ocorre quando há o acréscimo de grafemas no final do vocábulo (COUTINHO, 1970). Este meta-plasmo foi o menos recorrente, constando apenas 1 (uma) vez em todo o livro manuscrito.

Quadro 10 - Paragoge ou epítese no Livro de Registro de Batizados da Paró-quia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Meze

Fonte: as autoras (2016).

3.3.2. Epêntese: É a inserção de uma vogal no interior do vocábulo (COUTI-NHO, 1970). Tivemos, neste tipo, uma ocorrência de suarabácti, que é uma síncope especial que desfaz os encontros consonantais de uma mesma sílaba por intermédio de uma vogal. Contabilizamos 3 (três) lexias que foram recor-rentes na mesma quantidade.

Quadro 11 - Epêntese no Livro de Registro de Batizados da Paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Adevogar Augostinho Roixa

Fonte: as autoras (2016).

3.4.Processomorfofonológicoportransposiçãoacontecequandoháa transferência de um acento tônico ou de um fonema para a sílaba anterior ou posterior dentro de um mesmo vocábulo.

3.4.1 Metátese: Fenômeno pelo qual alguns processos modificam a posição dentro da cadeia da fala; noutras palavras, o processo se caracteriza quando ocorre a permutação de fonemas dentro de um morfema. Deparamo-nos com 05 (cinco) lexias que se repetiram 12 (doze) vezes.

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Quadro 12 - Metátese no Livro de Registro de Batizados da Paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

iotubro (oitubro) ioto (oito) Profiria (Porfiria)

Fonte: as autoras (2016).

Vale dizer que identificamos um total 295 (duzentos e noventa e cinco) lexias que se repetiram 5.001 (cinco mil e uma) vezes, abrangendo os níveis morfofonológico e le-xical, sendo classificadas e exemplificadas conforme os tópicos anteriores que trataram dos cinco tipos de processos. Para uma melhor visualização dos dados, demonstrare-mos, através do gráfico 1, o agrupamento desses processos.

Gráfico1- Porcentagens dos processos morfofonológicos no Livro de Registro de Batizados da Paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). Acervo digital do LALEFIL.

Fonte: as autoras (2016).

Nunes (1951), autor da obra Compêndio de Gramática histórica, relata que as

modificações pelas quais perpassam a língua podem ocorrer nos níveis fisiológico e psi-cológico. O primeiro compreende as modificações ocorridas nos sons da fala, em que os órgãos vocálicos imprimem aos fonemas alterações que apenas são possíveis devido à natureza e à sensibilidade do aparelho fonador. O segundo caso opera com o conceito

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Grenissa Bonvino Stafuzza, Márcia Pereira dos Santos e Selma Martines Peres (orgs.)

da arbitrariedade, uma vez que o ser humano confere analogia aos signos divergentes por julgá-los semelhantes a outros vocábulos, alterando e modificando seu sentido pri-mitivo (NUNES, 1951) e, certamente, imitando-lhes a forma de registro escrito.

Daí, poderíamos hipotetizar o motivo pelo qual o escriba realizou essas trans-gressões ortográficas, as quais denominamos de processos morfofonológicos, uma vez que apesar de a fala e a escrita possuírem normas distintas, o primeiro acordo ortográfi-co só foi homologado em 1911, conforme assevera Williams (1973). Ante a inexistência de um acordo que estabelecesse normas para grafar, os escribas instauraram um acordo tácito para que a escrita não se tornasse caótica (FACHIN, 2011).

Em nosso corpus há a variação grafemática de algumas lexias, a saber: huma/uma, cinco/senco, des/dez, nasceo/nasseo, contudo esses processos não são meras va-riações gráficas, haja vista que em lexias como mil~mel houve alteração no sentido. Acreditamos que, embora o período fonético tenha sido encerrado no século XVII, alguns traços de conservação desse período ainda vigoravam entre os escribas no século XIX, conforme nos mostram as lexias supracitadas. Conjecturamos, ainda, que essa ten-dência à variação se deve à influência da oralidade, uma vez que a representação gráfica assemelhava-se muito com a fala (WILLIAMS, 1973).

Vale mencionar que todas as palavras que compuseram os processos inventaria-dos foram cotejadas com dicionários de publicação próxima à data do documento, a saber: o dicionário de Antonio Morais e Silva (2ª edição, 1813) e o dicionário de Luiz Maria da Silva Pinto (1832), ambos em edição fac-símiles e em versão eletrônica, dispo-níveis on-line no sítio da Biblioteca Brasiliana da Universidade de São Paulo.

Como era de se esperar, algumas entradas possuíram sentidos divergentes dos encontrados no manuscrito. Citemos, por exemplo, a lexia mel. No códice esse item lexical configurou-se primeiramente como um processo morfofonológico denominado abaixamento de vogal. O seu sentido, de acordo com o contexto, faz menção ao ano de mil oitocentos e trinta e nove, daí o emprego do mel referindo-se a mil. No entanto, segundo os dicionários consultados, mel é o “suco doce que as abelhas recolhem das flores em seus favos [...]” (MORAIS E SILVA, 1813, p. 284, vol. II) ou “O suco doce das flores fabricado pelas abelhas nos favos. No Brasil he a calda do açucar, que se filtra nas fôrmas” (SILVA-PINTO, 1832).

Conjecturamos que mais de um escriba compôs o códice em análise, uma vez que o traçado da letra (o punho), a depender do carregamento da tinta no pincel, nos dão essas diretrizes. Por fim, vale ressaltar que esse estudo foi extremamente relevante por permitir-nos conhecer um pouco mais da escrita de outrora, bem como para a com-preensão da conjuntura social de Catalão nos idos oitocentistas.

PalavrasfinaisÀ guisa de conclusão e reconhecendo a importância deste estudo para a área de

Letras e afins, ressaltamos que essa pesquisa foi importante por nos colocar em contato com registros de batismos que revelam demasiadamente sobre a escrita no período im-perial, uma vez que foram escritos por escrivães que certamente tinham um alto grau de instrução sobre a língua latina e o português, especialmente na esfera eclesiástica.

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No entanto, não podemos olvidar que algumas características desse período, mesmo com o acordo ortográfico estabelecido e em vigor, ainda persistem. Marcas de oralidade em conjunto com outras séries de variações gráficas ainda são presentes em diversos meios de comunicação, desde os informais até os que exigem um maior grau de formalidade.

Diante do exposto, concluímos que os processos morfofonológicos encontrados foram relevantes no que tange à história da língua, haja vista que datam uma época re-mota. Nesse sentido, outros estudos serão desenvolvidos para contribuir com a forma-ção de um banco de dados para os estudos de pesquisadores que ensejam estudar outros aspectos da linguística histórica do Português Brasileiro.

Referências

CAMARA JUNIOR, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1976.

COELHO, Braz José. Unidades Fonológicas do Português. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2008.

COUTINHO, Ismael de Lima. 1970. Pontos de gramática histórica. 6. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970.

CRISTÓFARO SILVA, Thaïs. Dicionário de Fonética e Fonologia. São Paulo: Contexto, 2011.

FACHIN, Phablo Roberto Marchis. Práticas de escrita setecentista em manuscritos da administração colonial em circulação pública no Brasil. 2011. 430 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-01112011-131748. Acesso em: 10 nov. 2016.

FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos do século XVI e XIX. 2. ed. aum. São Paulo: EDUNESP/ Arquivo do Estado, 1991.

MEGALE, Heitor; TOLEDO NETO, Silvio de Almeida. Por minha letra e sinal: documentos do ouro do século XVII. Cotia- SP: Ateliê Editorial, 2005.

MORAES-SILVA, Antonio de. Dicionário da Língua Portugueza. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1813.

NUNES, José Joaquim. Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa (Fonética e Morfologia). 4. ed. Lisboa: Livraria Clássica e editora, 1951.

PARÓQUIA NOSSA SENHORA MÃE DE DEUS, com rubrica do Presidente da Câmara Paroquial Mariano José Pereira. Livro de Assentos de Registros de Baptizados da Paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus (1839-1842). 90 fólios, Villa do Catalão, 26 de Dezembro de 1839 (Visto em Visita Pastoral de 17 de novembro de 1862).

SILVA-PINTO, Luiz Maria da. Diccionario da língua Brasileira. Ouro Preto, Typographia de Silva, 1832. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/3. Acesso em: 20 mar. 2014.

WILLIAMS, Edwin B. Do latim ao português. Tradução de Antônio Houaiss. 2. ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.

ZANNOTTO, Normélio. Estrutura mórfica da língua portuguesa. Caxias do Sul: EDUCS, 1986.

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duação e Inovação, evento realizado no período de 12 a 14 de setembro

de2018,organizadopelaCoordenaçãodePesquisa,Pós-Graduaçãoe

Inovação(CPPGI-Gestão2018-2021),daUniversidadeFederaldeGoiás,

RegionalCatalão.Oscatorzetrabalhosquecompõemapresenteobra

sãoestudoseresultadosdepesquisasdeiniciaçãocientífica,mestradoe

doutorado de alunos e pesquisadores de diversas áreas do amplo cam-

po dos estudos da linguagem como linguística, literatura, análise do dis-

curso,filosofiadalinguagem,entreoutras,queseinteressam,sobretudo,

pela linguagem e pelo discurso. Os trabalhos aqui publicados possuem

diversos focoseabordagens teórico-metodológicos,alémde ter como

objetos de análise, múltiplos corpora e materialidades – literário, cine-

matográfico,pedagógico,histórico,midiáticoetc.–quecontribuempa-

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que circulam socialmente. A presente coletânea aposta na produtivi-

dadeeamplitudedeabordagenseperspectivas teóricaspossíveisna

pesquisa do campo dos estudos da linguagem. Desejamos aos leitores

uma excelente leitura e que os estudos e resultados de pesquisas aqui

publicados possam ser interlocutores em potencial para a ampliação do

conhecimento sobre linguagem e sobre discursos.