estória de joão joana - carlos drummond de andrade

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Estória de João Joana Carlos Drummond de Andrade Meu leitor, o sucedido em Lajes do Caldeirão é caso de muito ensino, merecedor de atenção. Por isso é que me apresento fazendo esta relação. Vivia em dito arraial do país das Alagoas um rapaz chamado João cuja força era das boas pra sujigar burro bravo, tigres, onças e leoas. João, lhe deram este nome não foi de letra em cartório pois sua mãe e seu pai viviam de peditório. Gente assim do miserê nunca soube o que é casório. Ficou sendo João, pois esse é nome de qualquer um. Não carece excogitar, pedir a doutor nenhum, que a sentença vem do Céu, não de lá do Barzabum. De pequeno ficou órfão, criado por seus dois manos. Foi logo para o trabalho com muitos outros fulanos e seu muque, sem mentira, era o de três otomanos. Na enxada, quem que vencia aquele tico de gente. No boteco, se ele entrava pra bochechar aguardente, o saudavam com respeito Deus lhe salve, meu parente. João moço não enjeitava parada com sertanejo. Podiam brincar com ele sem carregar no gracejo. Dizia que homem covarde não é cabra, é percevejo. Um dia de calor desses que tacam fogo no agreste, João suava que suava sem despir a sua veste. Companheiro, essa camisa não é coisa que moleste? lhe perguntou um amigo que estava de peito nu. E João se calado estava nem deu pio de nambu. Ninguém nunca viu seu pêlo, nem por trás do murundu.

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Conto de Carlo Drummond de Andrade com atividades para fazer em sala de aula

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Page 1: Estória de joão Joana - Carlos Drummond de Andrade

Estória de João – Joana

Carlos Drummond de Andrade

Meu leitor, o sucedido em Lajes do Caldeirão é caso de muito ensino, merecedor de atenção. Por isso é que me apresento fazendo esta relação. Vivia em dito arraial do país das Alagoas um rapaz chamado João cuja força era das boas pra sujigar burro bravo, tigres, onças e leoas. João, lhe deram este nome não foi de letra em cartório pois sua mãe e seu pai viviam de peditório. Gente assim do miserê nunca soube o que é casório.

Ficou sendo João, pois esse é nome de qualquer um. Não carece excogitar, pedir a doutor nenhum, que a sentença vem do Céu, não de lá do Barzabum. De pequeno ficou órfão, criado por seus dois manos. Foi logo para o trabalho com muitos outros fulanos e seu muque, sem mentira, era o de três otomanos. Na enxada, quem que vencia aquele tico de gente. No boteco, se ele entrava pra bochechar aguardente, o saudavam com respeito Deus lhe salve, meu parente. João moço não enjeitava parada com sertanejo. Podiam brincar com ele sem carregar no gracejo. Dizia que homem covarde não é cabra, é percevejo. Um dia de calor desses que tacam fogo no agreste, João suava que suava sem despir a sua veste. Companheiro, essa camisa não é coisa que moleste? lhe perguntou um amigo que estava de peito nu. E João se calado estava nem deu pio de nambu. Ninguém nunca viu seu pêlo, nem por trás do murundu.

Page 2: Estória de joão Joana - Carlos Drummond de Andrade

João era muito avexado na hora de tomar banho. Punha tranca no barraco fugindo a qualquer estranho. Em Lajes nenhum varão tinha recato tamanho. João nas últimas semanas entrou a sofrer de inchaço. Mesmo assim arranca toco sem se carpir de cansaço. Um dia, não güenta mais, exclama: O que é que eu faço? Os manos vendo naquilo coisa mei' desimportante, logo receitam de araque meizinha sem variante para qualquer macacoa: Carece tomar purgante. João entrou no purgativo louco de dor e de medo se entorcendo e contorcendo na solidão do arvoredo pois ele em sua aflição lá se escondera bem cedo. O gemido que exalava do peito de João sozinho alertou os seus dois manos que foram ver de mansinho como é que aquele bravo se tornara tão fraquinho. No chão de terra, essa terra que a todos nós vai comer, chorava uma criancinha acabada de nascer, E João, de peito desnudo, acarinhava este ser.

Aquela cena imprevista causou a maior surpresa. O que tanto se ocultara se mostrava sem defesa. João deixara de ser João por força da natureza. A mulher surgia nele ao mesmo tempo que o filho, tal qual se brotassem junto a espiga com o pé de milho, ou como bala que estoura sem se puxar o gatilho. Se os manos levaram susto, até eu, que apenas conto. E o povo todo, assuntando a estória ponto por ponto, ficou em breve inteirado do que aí vai sem desconto. Nem menino nem menina era João quando nasceu. A mãe, sem saber ao certo, o nome de João lhe deu, dizendo: Vai vestir calça e não saia que nem eu. À proporção que crescia feito animal na campina, em João foi-se acentuando a condição feminina, mas ele jamais quis ser tratado feito menina. Pois nesse triste povoado e cem léguas ao redor, ser homem não é vantagem mas ser mulher é pior. Quem vê claro já conclui: de dois males o menor.

Page 3: Estória de joão Joana - Carlos Drummond de Andrade

Homem é grão de poeira na estrada sem horizonte; mulher nem chega a ser isso e tem de baixar a fronte ante as ruindades da vida, de altura maior que um monte. A sorte, se presenteia a todos doença e fome, para as mulheres capricha num privilégio sem nome. Colhe miséria maior e diz à coitada: Tome. É forma de escravidão a infinita pobreza, mas duas vezes escrava é a mulher com certeza, pois escrava de um escravo pode haver maior dureza? Por isso aquela mocinha fez tudo para iludir aos outros e ao seu destino. Mas rola não é tapir e chega lá um momento da natureza explodir. João vira Joana: acontecem dessas coisas sem preceito. No seu colo está Joãozinho mamando leite de peito. Pelo menos esse aqui de ser homem tem direito. De ser homem: de escolher o seu próprio sofrimento e de escrever com peixeira a lei do seu mandamento quando à falta de outra lei ou eu fujo ou arrebento.

Joana desiste de tudo que ganhara por mentira. Sabe que agora lhe resta apenas do saco a embira. E nem mesmo lhe aproveita esta minha pobre lira. Saibam quantos deste caso houverem ciência, que a vida não anda, em favor e graça, igualmente repartida, e que dor ensombra a falta de amor, de paz e comida. Meu leitor (não eleitor, que eu nada te peço a ti senão me ler com paciência de Minas ao Piauí): tendo contado meu conto, adeus, me despeço aqui.

F I M

Page 4: Estória de joão Joana - Carlos Drummond de Andrade

ATIVIDADES de fichamento

1. Qual o foco narrativo? Narrador 1ª ou 3ª pessoa?

2. Justifique com um trecho do conto

3. Quem são as personagens? Dê as características físicas e psicológicas de cada uma.

4. Espaço: Onde ocorre a trama?

5. É possível saber o tempo que aconteceu a

trama?

6. Faça o ENREDO da narrativa ( Usando suas palavras)

7. O que aprendeu com esta leitura?

Atividades por Prof. Jerônimo

Agosto 2014