estetica_dufrenne

Upload: luis-bernardo

Post on 04-Jun-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    1/36

    ESTUDOS

    A ESTTICA DE DUFRENNE OU A PROCURA DA ORIGEM

    EUNICE PINHO

    Obra de ar te e objecto e s t t i c o : fenomenologia e percepo esttica

    A reflexo em torno da experincia e s t t i c a empreendida po r Mikel Dufrennena s ua obra Phnomnologie de l 'exprience esthtique (1953) desenha-se emt r s momentos ou n v e i s diferenciados, cuja articulao permite uma compreen-s o do fenmeno e s t t i c o .

    O percurso, q ue tambm um programa , apresentado na int roduo da r e f e -r i d a obra 1 compreende uma etapa de descrio a q ue s e segue a anlise t r a n s -cendental e a dilucidao do significado metafsico. Ao proceder previamente aum trabalho de descrio, Dufrenne pretende t r a a r a especificidade da experin-c i a e s t t i c a face a outros modos de relao do homem ao mundo. Relativamenteaos dois ltimos momentos , q ue designa po r c r t i c a da experincia e s t t i c a , todaa s ua obra posterior no deixar de a e l e s v o l t a r e de o s enriquecer com novoscontedos 2 . Dir-se-ia q ue o remarcar daquilo q ue c o n s t i t u i a singularidade daexperincia e s t t i c a indissocivel da procura de um fundo ltimo onde e s t aradica e q ue c o n s t i t u i a possibilidade, mas tambm o l i m i t e , para a pensar.

    A f i l o s o f i a de Dufrenne e , mais particularmente, a sua e s t t i c a i n s e r e - s e numalinha de pensamen to q ue encontra a s ua r a i z na fenomenologia de inspiraohusserliana, mas j modificada pela tradio f r a n c e s a : No no s limitaremos aseguir a l e t r a de Husserl. Entendemos fenomenologia no sentido em q ue S a r t r ee Merleau-Ponty ac l imata ram e s t e t e rmo em Frana: descrio q ue visa uma

    1 C f . M. DUFRENNE, Phnomnologie de l e x p r i e n c e e s t h t i q u e , vo l . 1 . P a r i s , P. U . F . ,1 9 5 3 , 1 .

    2 Veja-se por exemplo:M. DUFRENNE, La n o t i o n d' A P r i o r i . P a r i s , P. U . F. , 1 9 5 9 .M. DUFRENNE, Le P o t i q u e .P a r i s P. U . F. , 1 9 6 3 .M. DUFRENNE, L i n v e n t a i r ed e s A P r i o r i , Recherche d e C o r i g i n a i r e .P a r i s , C h r i s t i a n Bourgois

    E d i t e u r , 1 9 8 1 .

    R e v i s t a F i l o s f i c a d e Coimbra n . 6 ( 1 9 9 4 ) pp . 361-396

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    2/36

    36 2 E u n i c eP i n h o

    essncia e s t a mesma definida como significao imanente ao fenmeno e dadacom e l e 3 .

    Todo o i n t e n t o de Dufrenne s e r pois o de apreender a essncia da experin-c i a e s t t i c a e neste s e n t i d o , a s ua e s t t i c a ergue - s e sobre a bas e de uma e i d t i c a .

    H q ue p a r t i r da realidade emprica da s obras de a r t e , mais precisamente, h q uep a r t i r do modo como e s t a s s e do percepo fenmeno ois e s t e olugar mesmo onde o sentido advm, e Dufrenne aqui f i e l a o apelo de H us s er lde i d a s coisas m e s m a s ) e apreender a especificidade da experincia e s t t i c a ,para a l m da diversidade de q ue a s diferentes a r t e s s e revestem 4 .

    A experincia em torno da qual Dufrenne s e prope r e f l e c t i r , no ser a doa r t i s t a no momento da criao em Phnomnologie de l' expr ience es tht iqueno s e t r a t a de proceder a um e x a m e do f a z e r a r t s t i c o 5 ma s a do espectador: Pois s e verdade q ue a a r t e supe a i n i c i a t i v a do a r t i s t a , tambm verdade

    q ue espera a consagrao de um pblico 6 . com o espectador q ue a obra de a r t e acede ao seu verdadeiro s e r ( s e r e s t -

    t i c o ) , i s t o , pelo espectador q ue a obra de a r t e deixa de s e r coisa entre coisasdo mundo para s e metamor fosea r em objecto e s t t i c o , sendo e s t e o correlato dapercepo e s t t i c a . Neste sentido, Dufrenne d i r mesmo q ue s a percepoe s t t i c a ( excluso da percepo mundana , sobre a qual s e operou a reduofenomeno lg ica ) poder fazer j u s t i a obra de a r t e .

    A opo pelo estudo da experincia e s t t i c a do espectador encer ra em s i nouma reivindicao de exclusividade mas parece, em c e r t a medida, c o n s t i t u i r um

    gesto de demarcao face ameaa do psicologismo . que, no obstante cons-t i t u i r uma das v i a s de acesso e s t t i ca a reflexo sobre a criao a r t s t i c a correo r i s c o de s e ver assimilada a uma psicologia da criao: O estudo do fazer[ a r t s t i c o ] constitui uma boa introduo e s t t i c a : fa z plenamente justia realidade da obra e coloca de imedia t o os problemas importantes r e l a t i v o s srelaes da tcnica e da a r t e . Contudo , no e s t i s e n t a de perigo: po r um l a d o ,com e f e i t o , no oferece uma garantia a b s olu ta c ont r a a cilada do psicologismo;pode perder-se na evocao da conjuntura h i s t r i c a ou da s circunstncias psicol-gicas da c r i a o . Por outro l a d o , atribuindo a experincia e s t t i c a ao a r t i s t a , tende

    a denunciar c e r t o s t r a o s desta experincia e , po r exemplo, a e x a l t a r uma espciede vo nt a de de poder em detrimento do recolhimento que, pelo contrrio sugerea contemplao e s t t i c a 7 .

    S e r i a contudo simplismo a c r e d i t a rq ue a r a s u r a do tema d a c r i a oe v i t a r i ap o r s i s a e d i f i c a od e uma e s t t i c a s u b j e c t i v i s t a a m b muma a n l i s e dae x p e r i n c i ado e s p e c t a d o rp o d e r i ac o n d u z i ra v e r n a o b r a de a r t e uma mera p r o -j e c oou e x t e r i o r i z a od a s v i v n c i a ss u b j e c t i v a sd a q u e l e .E s t a r a m o sassim f a c ea uma p s i c o l o g i a da r e c e p o .

    3 I b i d. , 4 - 5 , n o t a 1 .4 C f . I b i d . 1 4 .S C f . Ib id . , 1 .6 I b i d . 2 .1 I b i d . 2 sublinhado n o s s o .

    p p . 36 1 - 3 9 6 Revista Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    3/36

    A E s t t i c a de Dufrenne ou a Procura da Origem 3 6 3

    Por o u t r o l a d o , Dufrenne no c o l o c a t o t a l m e n t ed e l a d o uma r e f l e x o s o b r eo g e s t o c r i a d o r , a n t e s reconhece a n e c e s s i d a d ed e que um e s t u d o e x a u s t i v odae x p e r i n c i ae s t t i c a i n t e g r e a s d u a s a b o r d a g e n s .Tanto mais q u e , sendo e x p e r i n -

    c i a s dis t in tas , no deixam d e t e r p o n t o s d ec o n t a c t oe n t r e s i . O a r t i s t a , f r e q u e n -t e m e n t e , o primeiro e s p e c t a d o rda s u a obra e o e s p e c t a d o r , p e l a percepoe s t t i c a , deve p a r t i c i p a r do g e s t o c r i a d o r do a r t i s t a ,t o r n a r - s e como que umc o c r i a d o rda o b r a s t o , d e v e r c o n s e n t i rn a s u am a n i f e s t a o . O e s p e c t a d o rno somente a testemunha que consagra a o b r a , a s e u modo, o e x e c u t a n t eque a r e a l i z a ; p a r a a p a r e c e r ,o o b j e c t oe s t t i c o tem n e c e s s i d a d ed e l e 8 .

    Em obras p o s t e r i o r e s , como po r exemplo em Le potique (1963) dedicara lgumas pginas ao problema da criao a r t s t i c a , centrando-se na t em tic a dainspirao. Tambm a Dufrenne continuar f i e l ao s eu i n t e n t o de dessubjectivar

    a experincia e s t t i c a , sublinhando q ue a vocao do poeta a de c o -r es p ond era um apelo q ue l h e vem do e x t e r i o r . A inspirao t o m a ass im o carcter de umdom e s imultaneamente apelo da prpria obra q ue h q ue fazer-se 9 .

    O p r i v i l g i o outorgado experincia e s t t i c a do espectador enraza numa da steses mais originais da e s t t i c a dufrenniana: a distino e n t r e obra de arte eobjecto e s t t i c o , constituindo e s t a o verdadeiro po nt o de ancoragem q ue orientatoda a s ua r e f l e x o .

    Esta distino conduz-nos de imedia t o a o problema da s relaes s u j e i t o -

    -objecto q ue preside e marca o prprio e s t i l o da e s t t i c a dufrenniana. Teremosa s s i m q ue perguntar pelas c ons e q u nc ia s de uma e s t t i c a q ue permanece pensadaa p a r t i r de uma concepo de experincia ainda gizada po r um e s q u e m a d u a l i s t a .Mas ver emos q ue o prprio Dufrenne procurar exceder esse modo de pensar.A e s t e t ema vol taremos mais t a r d e .

    A experincia e s t t i c a encont ra o s eu correlato no na obra de a r t e , por-quan to esta identificada como produto da actividade do a r t i s t a , mas noobjecto e s t t i c o e s t e c o n s t i t u i de f a c t o o polo de reciprocidade da experin-c i a e s t t i c a : Ser preciso d e f i n i r o objecto e s t t i c o pela experincia e s t t i c a e

    a experincia e s t t i c a pelo o bj ec to esttico 1 0 . H a s s im uma estrutura dereenvio a l i g a r ambos o u , melhor dizendo, h uma solidariedade entre s u j e i t oe objecto, q ue ser explicitada pela noo de intencionalidade. Este conceito,r e t o m a d o da fenomenologia husserliana, e corrigido da s ua interpretao decariz mais i d e a l i s t a , permitir pensar q ue s u j e i t o e objecto s o simultanea-mente i r r e d u t v e i s e correlativos.Dufrenne f a l a r mesmo de afinidade e de pac tointencional: a relao entre s u j e i t o e objecto q ue denota e s t a noo pressupeno somen te q ue o s u j e i t o s e abre ao objecto ou s e t r a ns c ende pa r a e s t e , masainda q ue qua lquer coisa do objecto e s t e j a presente no s u j e i t o , antes de toda a

    experincia, e que, em contrapartida, qualquer coisa do s u j e i t o pertena

    R M. DUFRENNE, I n t e n t i o n n a l i t e t e s t h t i q u e i n E s t h l i q u ee t P h i l o s o p h i e ,v o l . 1 . P a r i s ,E d i t i o n s K l i n c k s i e c k ,1 9 7 6 , 5 6 .

    C f . M. DUFRENNE, Le P o t i q u e . P a r i s , P. U . F. , 1 9 7 3 , 1 6 7 - 1 6 9 .1 0 M. DUFRENNE, P. E . E . , 4 .

    Revista Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994) p p . 3 6 1 - 3 9 6

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    4/36

    3 6 4 Eunice Pinho

    estrutura do objecto anteriormente a todo o projecto do sujeito 1 1 . A s s i m , aexperincia e s t t i c a e i a - s e a experincia e s t t i c a do espectador ferecer-- se- como o lugar privilegiado para repensar o sentido da intencionalidade.Dirse - i a q ue o pacto entre o homem e o mundo s e pronuncia a de um modoinequvoco 1 2 .

    Ma s atentemos n a d i s t i n o , j a t r s r e f e r i d a que Dufrenne opera e n t r e o b r ade a r t e e o b j e c t oe s t t i c o .

    Se o c o r r e l a t o d a e x p e r i n c i ae s t t i c a o o b j e c t o e s t t i c o e s t e c o n t u d o ,s s e d e f i n e a p a r t i r d a o b r a d e a r t e . A o b r a de a r t e ,embora mantendo-se numa e x t e r i o r i d a d e r e l a t i v a m e n t e e x p e r i n c i ae s t t i c a t e r a funo / f o r a de as o l i c i t a r o mo a e s t t u a escondida de A . G i a c o m e t t i : Dei c om a mais b e l ae s t t u a d e G i a c o m e t t i t r s a n o s ob a mesa ao abaixar-me p a r a apanharuma b e a t a . Cheia d e p , e s c o n d i d a ,o p d e algum p o d e r i at - l a quebrado i n a d -v e r t i d a m e n t e . . .

    ( . . . ) e e l a t i v e r f o r a , acaba r po r mostrar-se, mesmo q ue a esconda 1 3 .S o e s senc ia lment e duas a s razes q ue Dufrenne aponta para i n t e r d i t a r a

    identificao da obra de a r t e com o objecto e s t t i c o : Primeiramente, po r umarazo de f a c t o : a obra de a r t e no pr e enc he t o do o campo dos objectos e s t t i c o s ;apenas define um sector privilegiado mas r e s t r i t o . Mas tambm por uma razode d i r e i t o : o objecto e s t t i c o no pode d e f i n i r - s e seno em r e f e r n c i a , pelo menosi m p l c i t a , experincia e s t t i c a , enquanto a obra de a r t e define-se fora destaexperincia como o q ue a provoca 1 4 .

    Importa sublinhar q ue a diferena entre obra de a r t e e objecto e s t t i c o nopode s e r pensada/solucionada a p a r t i r de uma oposio do t i p o r e a l / i de a l oumesmo realidade/aparncia. Dir-se-ia q ue s e t r a t a de uma exigncia da prpriaideia de intencionalidade, q ue s e define como sendo o trao constitutivo daconscincia.

    A c o n s c i n c i ano nem uma i nt e r io r id ad e , maneira de um r e s e r v a t r i o ,nem uma s u p e r f c i e p o l i d a ou um e s p e l h o . Por c o n s e g u i n t e ,o o b j e c t o e s t t i c ono pode s e r entendido como um mero contedo, nem como um r e f l e x o ouimagem na c o n s c i n c i ada o b r a d e a r t e . Os d oi s [ ob j e c t oe s t t i c o e o b r a de a r t e ]s o i d n t i c o s n a medida em q ue a e x p e r i n c i ae s t t i c a v i s a e a t i n g e precisamenteo o b j e c t oq ue a p r o v o c a ;e em nenhum c a s o s e deve c o l o c a re n t r e e l e s a d i f e r e n ad e uma c o i s a i d e a l a u ma c o i s a r e a l , sob pena de r e g r e s s a r ao psicologismorecusado p e l a t e o r i a da i n t e n c i o n a l i d a d e :o o b j e c t o e s t t ic o e s t n a c o n s c i n c i acomo no e s t a n d oa , e , i n v e r s a m e n t e ,a o b r ade a r t e no e s t f o r a da c o n s c i n c i a ,c o i s a e n t r e c o i s a s , seno como r e f e r i d a a i n d a a uma c o n s c i n c i a 1 5 .Ambos s oa p r e e n d i d o sp e l a c on sc i n ci a , a m a t r i a i n t e n c i o n a l a mesma H contudouma nuance q ue o s s e p a r a ( . . . ) : s o noemas que tm o mesmo c o n t e d o ,ma s

    1 1 M. DUFRENNE, l n t e n t i o n n a l i t e t e s t h t i q u e2 i n E s t h t i q u ee t Philosophie v o l t . P a r i s ,d i t i o n s K l i n c k s i e c k ,1 9 7 6 , 6 0 .

    1 1C f . I b i d . , 5 3 .1 1 1 . GENET. O e s t d i o de Alber to Giacomet t i L i s b o a , A s s r i o e Alvim, 1 9 8 8 . 4 2 .1 4 M. DUFRENNE, P. E . E . , 9 .1 5 I b i d , 9 .

    p p . 361 -396 Revista Filosfica de C o i m b r a n 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    5/36

    A E s t t i c a de Dufrenne ou a Procura da Origem 3 6 5

    q ue diferem pelo f a c t o da noes e s e r d i f e r e n te : a obra de a r t e , enquanto e s t a no mundo pode s e r apreendida numa percepo q ue negligencia a s ua q u a l i -dade e s t t i c a ( . . . ) O objecto e s t t i c o pelo c o n t r r i o , o objecto esteticamentepercebido, quer d i z e r , percebido enquanto e s t t i c o . E i s t o mede a diferena: oobjecto e s t t i c o a obra de a r t e percebida enquanto obra de a r t e , a obra de a r t eq ue o b t m a percepo q ue s o l i c i t a e q ue merece, e q ue s e r e a l i z a na conscinciadcil do espectador, numa palavra, a obra de a r t e enquanto percebida 1 6 .Dir-- s e - i a q ue a obra de a r t e ao fazer emergir a percepo e s t t i c a , q ue Dufrennedefinir noutro lugar como a percepo rgia ou percepo po r e x ce l nc ia 1 7 ,pa lco de uma verdadeira converso: a obra de a r t e atinge ass im a s ua g l r i a ou,segundo a s palavras do a u t o r , r e a l i z a a s ua verdadeira vocao a de s et ra ns cender pa ra o objecto e s t t i c o 1 8 .

    A diferena entre obra de a r t e e objecto e s t t i c o enc ont ra o s eu correlato nadistncia q ue separa a percepo vulgar da percepo e s t t i c a . Na primeira huma rasura ou desateno qualidade e s t t i c a do o b j e c t o , como s e um especta-do r e s t i v e s s e apenas supostamente a a s s i s t i r a um es pect culo, o s eu olhar vogariapelas coisas em r e d o r , distante ou indiferente aos movimentos da cena. S asegunda saber s e r sensvel ou fazer j u s t i a a essa qualidade, cumprindo ass ima p r o m e s s a i n s c r i t a em toda a obra de a r t e A diferena e n t r e obra de a r t e eobjecto e s t t i c o r e s i d e no f a c t o de a obra de a r t e poder s e r considerada comouma coisa v u l g a r , quer d i z e r , o objecto de uma percepo e de uma reflexo q uea distingue da s outras c o i s a s , s em l h e s a t r i b u i r um t ratamento e s p e c i a l , mas , aomesmo tempo, pode s e r objecto de uma percepo e s t t i c a , a nica q ue l h e fazjustia l y .

    Veremos ass im q ue para s e r e a l i z a r a t ransmutao da obra de a r t e em objec-t o e s t t i c o necessrio q ue s e opere uma modificao ao n v e l da percepo e s t a j no a percepo vulgar ou mundana , q ue s e ergue s o br e a base de umaa t i t u d e posicional e movida po r cons ide raes u t i l i t r i a s . Este t ema ser caro aHusser l que, em /deen 1 , a p a r t i r do exemplo da gravura de Drer O Cavaleiro,a M o r t e e o Dia bo , mo st ra ra q ue a a t i t u d e puramente e s t t i c a implica sempre

    umaneutra l izao

    dondice

    deexistncia, quer, primeiramente, da gravura

    enquanto apreendida como um objecto entre o u t r o s , quer, em segundo l u g a r ,daquilo q ue e s t a poderia r e p r e s e n t a r ,no sentido de s e estabelecer uma correspon-dncia com a realidade 2 0 . P o routras palavras, a experincia e s t t i c a pressupetambm em Dufrenne uma reduo fenomenolgica, s e s t a garante a emergnciado objecto e s t t i c o , q ue aqui identificado com o fenmeno. E tambm s obe s t e mesmo clima da reduo, i s t o , pressupondo-a, q ue s e poder compreendera t e s e de Dufrenne de q ue o sentido imanente a o s e n s v e l e ainda q ue a percep-

    1 6 I b i d . , 9 .n C f . M. DUFRENNE, I n t e n t i o n n a l i t e t e s t h t i q u e i n E s t h t i q u ee t p h i l oso p h i e , v o l I . P a r i s ,

    E d i t i o n s Klincksieck 1 9 7 6 , 5 4 .1 8 C f . M DUFRENNE P. E . E . , 3 3 .1 M. DUFRENNE P. E . E . , 2 6 .2 0 C f . E . HUSSERL I d e s d i r e c t r i c e s pour une phnomnologie e t une p h i l os ophie

    phnomnologique pures P a r i s , Gallimard 1 9 8 5 , 373-374.

    Revista Filosfica de C o i m b r a n 6 ( 1 9 9 4 ) p p . 3 6 1 - 3 9 6

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    6/36

    36 6 E u n i c eP i n h o

    o e s t t i c a a prpria e x a l t a oe consagrao do s e n s v e l : o que r e a l , oque me prende j u s t a m e n t eo fenmeno , que a reduo fenomenolgicap r e t e n d ea t i n g i r : o o b j e c t oe s t t i c o dado n a p r e s e n ae r e d u z i d oao s e n s v e l , a q u ia sonoridade do verbo combinada c o m o s g e s t o s dos a c t o r e s e o encanto dod c o r , a que a a t e n os e e n t r e g a t o t a l m e n t ep a r a p r e s e r va ra pureza e a i n t e g r i -d a d e , s em jamais evocar a d u a l i d a d edo p e r c e b i d oe do r e a l ; o o b j e c t o e s t t i c o apreendido como r e a l s em r e e n v i a r a o r e a l q u e r d i z e r a uma causa do s e ua p a r e c e r a o quadro como t e l a , msica como b a r u l h od e i n s t r u m e n t o s ,ao corpodo b a i l a r i n o como organismo : no o u t r a c o i s aseno o s e n s v e l n a s u ag l r i a ,c u j a forma que o c o n s t i t u i m a n i f e s t aa p l e n i t u d ee a n e c e s s i d a d e que t r a z ems i e d de i m e d i a t oo s e n t i d o q ue o anima .

    I n s i s t i n d o de novo n o p a p e l do e s p e c t a d o rveremos que e s t e se d e f i n e j u s -tamente como a q u e l eq u e , em f a c e da o b r ade a r t e ,r e a l i z a um a c t o de e s t e t i z a o ,o u , s e quisermos a d o p t auma a t i t u d e e s t t i c a Dufrenne p r e c i s a r o s e n t i d o d e s t etermo d i s t i n g u i n d o-o quer do e s t e t i s m o , quer da s u a a s s i m i l a oa um g e s t osoberano e a r b i t r r i o .

    A e s t e t i z a ono nem o p r i v i l g i o d e uma e l i t e de p r e t e n s o sp o s s u i d o r e sde um g o s t o r e f i n a d o nem t o pouco s e t r a t a a q u i de um s u j e i t o que s e a s s u m i r i acomo c o n s t i t u i n t edo o b j e c t o numa a t i t u d e de i d e a l i s m oe x a c e r b a d o : a p e r c e p - o , e s t t i c a ou n o , no c r i a um o b j e c t on o v o 2 2 2 2 .O s u j e i t o e s t e t i z a n t e , a n t e sde m a i s , a q u e l e mesmo q ue s e mostra d i s p o n v e lp a r a s e d e i x a r s o l i c i t a r p e l oe s t e t i z v e l A e s t e t i z a ono o p r i v i l g i od e c o n h e c e do r e s , o a c t o de umapercepo que s e a l i a ao a p a r e c e rdo o b j e c t oe o a p r e c i a como s e n s v e l 2 3

    Em vez do c l s s i c o movimento de fuga ao s e n s v e l , como condio oug a r a n t e da i n t e l i g i b i l i d a d e d a s c o i s a s , encontramos a q u i a afirmao de q ue os e n s v e l o l u g a r mesmo onde j o s e n t i d o c i n t i l a e s e e s t r e i t a a s o l i d a r i e d a d ecom a percepo q ue o a c o l h e e de que a e x p e r i n c i ae s t t i c a testemunhap r i v i l e g i a da : Ta n g v e l ,a u d v e l , v i s ve l , sempre s o b a s e s p c i e sdo s e n s v e l queo mundo me p r e s e n t e . Jamais co mo um em - s i i n t o c v e l jamais a i n d a comoa q u i l o a que o s a b e r o r e d u z i r : a s q u a l i d a d e sp r i m e i r a sno s e do seno a t r a v sd a s q u a l i d a d e ss e g u n d a s .Tudo comea c o m o s e n s v e l . Tanto p i o r p a r a umac e r t a f i l o s o f i a q ue se i n t e r d i t a d e f a l a r do comeo 2 4 .Por i s so , a r e v a l o r i z a odo s e n s v e l s o l i d r i a de um r e t o r n o percepo, sendo e s t a e n t e n d i d a , maneira de Merleau - Ponty como a p r p r i ancora do conhecimento A p e r -cepo no uma c i n c i a do mundo no um a c t o , u ma tomada de posiod e l i b e r a d a ,e l a o fundo s o b r eo q u a l t o d o s o s a c t o s s e destacam e p r e s s u p o s t apor e l e s 2 5 .

    O o b j e c t oe s t t i c o t e m , em D u f r e n n e ,uma e s s n c i ap e r c e p c i o n v e l : o o b j e c -t o e s t t i c o e s s e n c i a l m e n t ep e r c e b i d o :p a r a a s u a e p i f a n i a , a execuo p o r v e z e s ,

    2 1 i b i d . 5 5 .2 2 M. DUFRENNE, P.E.E. 6 .2 3 M. DUFRENNE, Le champ de l e s t h t i s a b l e i n E s t h t i q u ee t philosophie v o l . I I I . P a r i s

    E d i t i o n s Klincksieck 1 9 8 1 , 8 6 .2 1 M. DUFRENNE, L t x i l e t l o r e i l l e P a r i s , E d i t i o n s Jean - Michel P l a c e 1 9 9 1 , 7 0 .2 5 M. MERLEAU-PONTY, Phnomnologie de I a perception P a r i s , Gallimard 1 9 8 7 , V .

    p p . 361-396 R e v i s t a F i l o s f i c ad e Coimbra n 6 ( 1 9 9 4 )

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    7/36

    A E s t t i c a d e Dufrenne ou a Procura da Origem 3 6 7

    a testemunha ou o p b l i c o s e m p r e ,s o n e c e s s r i o s ;e l e m a n i f e s t ao s e n s v e l n as u a g l r i a 2 6 .

    M a s d e f i n i r o o b j e c t oe s t t i c o p e l o s e uc a r c t e r p e r c e p c i o n v e ll e v a n t a - n o s

    um problema a c e r c a do s e u e s t a t u t o e , por um l a d o , temos a afirmao d eque o fenmeno ( a q u i o o b j e c t oe s t t i c o ) no comporta dimenses o b s c u r a sques e s u b t r a a m m o s t r a o ,a f i r m a r , p o r o u t r o l a d o , a s u a dependncia f a c e p e r -cepo no s e r r e s s u s c i t a r a v e l h afrmula b e r k e l e y a n ad e que e s s e e s t p e r c i p i ?No es ta remos de imediato a r e d u z i r o fenmeno a o se r s u b j e c t i v ode umar e p r e s e n t a o ?

    Dufrenne responde a e s t a q u e s t oafirmando uma d u a l i d a d ei n s c r i t a no p r -p r i o o b j e c t oe s t t i c o : e s t e simultaneamente um em s i e um para ns 2 7 .H noo b j e c t o e s t t i c o uma e s p c i e d e f o r a a n m i c a ,um querer s e r , como que uma

    e x i g n c i ad i r i g i d a a uma percepo e que co n st i t u i a prova mesma do s e u s e r ea s ua i r r e d u t i b i l i d a d e c o n s c i n c i aq ue o a p r e e n d e : O o b j e c t o e s t t i c o no e x t e r i o r ou t r a n s c e n d e n t e s s u a s a p a r i e s , p o i s no se r e a l i z a seno n e l a s ,d i f e r e n t e m e n t edo o b j e c t o v u l g a rp a r a o q u a l i n d i f e r e n t es e r b em ou ma l p e r -cebido ( . . . ) ; No se d e i x a r e d u z i r s s u a s a p a r n c ia s p o i s p o d e , p o r s i mesmo,d e n u n c i - l a s ,p o i s o p r p r i oquadro n o s a d v e r t e que a i l u m i n a o d e f i c i e n t eou a n o s s a percepo d e s f a v o r v e l ,a m s ic a q ue o movimento e s t ma l r e g u l a d oou que no es t a mo s em forma p a r a e s c u t a r e o p r p r i omonumento que o meioc i r c u n d a n t e ot r a i ou que o tempo manchou a p e d r a . . . ) .O o b j e c t oe s t t i c o no

    seno a p a r n c i a ,ma s n a a p a r n c i a mais do que a p a r n c i a :s e u s e r o d e a p a -r e c e r , ma s a l g o se r e v e l a n o a p a r e c e rque a verdade e q ue o b r i g ao e s p e c t a d o ra p r e s t a r - s e r e v e l a o 2 8 . E s t a verdade o mundo s i n g u l a r que o o b j e c t oe s t t i c o t r a z em s i e p a r a o q u a l n o s remete incansavelmente que s u g e r eap r p r i a i n f i n i t u d e do t r a b a l h o da p e r c e p o .

    O imprio da percepo

    E no plano da presena, enquanto primeiro momento da percepo q ue aexperincia e s t t i c a celebra a vivncia da plenitude do s e n s v e l , o m t u o envolvi-mento daq uele q ue sente e do sentido , num estado em q ue a conscincia fazcorpo com o mundo, em q ue s u j e i t o e objecto s e encontrem entrelaados semvislumbre de c i s o : nele [no s e n s v e l ] q ue s e f a z a prova da presena, masde uma presena ainda s em d i s t n c i a , onde o contacto impelido fuso ( . . . ) .Este imediato no supor ta nenhuma mediao, ou, s e s e p r e f e r i r , nenhumadiferena. Situao-limite, porque, de f a c t o , a separao do s u j e i t o e do objectoe s t j sempre i n i c i a d a . S a experincia e s t t i c a ( . . . ) no s pode aproximar dela

    e talvez despertar a nostalgia 2 9 .

    2 6 M. DUFRENNE, P. E . E . , 2 8 6 .2 7 C f . I b i d . , 287 e I n t e n t i o n n a l i t e t e s t h t i q u e i n E s t h t i q u ee i p h i l o s o p h i e ,v o l . 1 . P a r i s ,

    E d i t i o n s Klincksieck 1 9 7 6 , 5 6 .2 8 Ib id . , 288-289.2 9 M. DUFRENNE, L o e i l e t l o r e i l l e P a r i s , E d i t i o n s Jean-Michel P l a c e , 1 9 9 1 , 7 1 .

    Revista Filosfica de C o i m b r a nP 6 ( 1 9 9 4 ) p p . 3 6 1 - 3 9 6

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    8/36

    3 6 8 Eunice Pinho

    Dufrenne a p e l a a q u i p a r a uma zona o r i g i n r i a ( a n t e r i o r a o pensamentoo b j e c t i v a n t e ) , q u a l a e x p e r i n c i ae s t t i c a simultaneamente a b r e o a c e ss o , ma st a m b m s a p a r t i r d e l a pode s e r p e n s a d a .Por i s so e l a t e r sempre o c a r c t e rde um r e t o r n o ao o r i g i n r i o : E o que a e s t t i c a v a i m e d i t a r : considerandouma e x p e r i n c i ao r i g i n r i a , reconduz o pensamento e t a l v e z a c o n s c i n c i ao r i g e m .A r e s i d e o s e u p r i n c i p a l c o n t r i b u t o p a r a a f i l o s o f i a 3 0 .

    Fundada, e l a t a m b mf u n d a n t e ,reconduzindo a e s s e plano onde se jogaa r e l a o mais n t i m a , ma is pr ofunda do homem c o m o mundo, anuncia edenuncia t a m b m a q u i l o mesmo s o b r e o q u a l s e e r g u e , r a s u r a n d o - o ,o p r p r i opensamento c o n c e p t u a l mormente a c i n c i a .

    No s e t r a t a Dufrenne adverte-o e propr uni mergulho na n o i t edos t empos , de fazer a apologia do i r r a c i o n a l , antes da prpria possibilidade depensar a emergncia do s e n t i d o .

    Este s pareces e r

    pensvel na s ua radicalidadea p a r t i r daquela zona onde a razo no opera ainda soberanamente e q ue M er lea u--Ponty define pelo conceito de p r - r e f l e x i v o : na experincia da coisa q ue s efundar o i d e a l reflexivo do pensamen to t t i c o . A reflexo no apreende elamesma o s eu s ent ido pleno seno na condio de mencionar o fundo i r r e f l e c t i d oq ue pressupe, a p a r t i r do qual s e desenvolve e q ue c o n s t i t u i para e l a como q ueum pas sado o r i g i n a l , um pas sado q ue nunca f o i presente . Toda a questo sera de saber como t r a z e r presena esse pas sado jamais presente, uma vez q uea adeso primordial ao mundo e s t j sempre cindida Poderei eu a indaconceb-lo,

    pensar ums e n t i r

    q ue no s e j a pensamento de s e n t i r , pens a r a p e r -cepo como impercepo? 32

    A m a r c a do originrio f i c a r para sempre g r a v a d a quer no s u j e i t o , querno objecto e , nessa medida, a co-naturalidade no t e r sido nunca totalmentep e r d i d a . . . Certas experincias t r a zem consigo esse privilgio de manifestar ol a s t r o , q ue a s e d i f i c a .

    A e x p e r i n c i ap e r c e p t i v a( e estamos a i n d a no p l a n o da p r e s e n a ) ,a o p e r m i t i rq u e , d e i m e d i a t o ,um s e n t i d o p o s s a s e r c a p t a d o ,m a n i f e s t ae s s a mesmac o n i v n c i ado corpo e do mundo, que r e t i r a a opacidade d a s c o i s a s e a s d o t a d e t r a n s p a -r n c i a , p o i s e l a s

    s o d a mesma r a a que n s 3 3 . Dufrenne retoma a q u i umaexpresso c a r a a Merleau-Ponty: O meu corpo a t e x t u r a comum d e t o d o s o so b j e c t o s e , p e l o menos em r e l a o a o mundo p e r c e b i d o ,o i n s t r u m e n t og e r a lda minha compreenso 3 4 .O corpo assim o l u g a r d e c o g n o s c i b i l i d a d ed a sp r p r i a s c o i s a s , a e l e que t u d o s e mostra e s e o f e r e c e .

    T r a t a - s e , p o i s , a e s t e n v e l de uma i n t e l e c o , q ue ainda corporal, de umsentido q ue sobretudo v i v i d o , o u , s e quisermos, t r a t a - s e de sublinhar a r a i zcorprea do prprio s e n t i d o : O sentido no , primeiramente, qualquer coisaq ue penso com distanciamento, ma s algo q ue me concerne e determina, q ue ecoa

    3 0 M. DUFRENNE, L'apport d e I e s t h t i q u e I a p h i l o s o p h i e i n Esdttique e t p h i l o s o p h i e ,vo l . 1 . P a r i s , E d i t i o n s K l i n c k s i e c k ,1 9 7 6 , 9 .

    3 i M. MERLEAU-PONTY, Phnomnologie de I a p e r c e p t i o n .P a r i s , G a l l i m a r d ,1 9 8 7 , 279-280.3 z M. DUFRENNE, L o e i l e t l o r e i l l e . P a r i s , E d i t i o n s Jean-Michel P l a c e , 1 9 9 1 , 7 1 .3 3 C f . M. DUFRENNE, P. E . E . , 1 I , 4 2 3 .3 4 M. MERLEAU-PONTY, Phnomnologie de I a p e r c e p t i o n . P a r i s , Gallimard, 1 9 8 7 , 2 72 .

    p p . 3 6 1 - 3 9 6 Revista Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    9/36

    A E s t t i c a de Dufrenne ou a Procura da Origem 3 6 9

    em mim e me comove; a s i g n i f i c a oque contemplo s em a e l a a d e r i r s e r a n t e c i -pada s o b r e e s t a s i g n i f i c a o p r i m i t i v a , que me convence porque me e n v o l v e ,onde o s e n t i d o uma somatizao q u a l respondo com o meu corpo 3 5

    O t r n s i t o do v i v i d o , d a p r e s e n a ,p a r a um o u t r o p l a n o d e i n t e l i g i b i l i d a d e

    designadamente o d a representao s e r p o s s v e l devolvendo a o corpov i v e n c i a l ( n o o corpo que o b j e c t o do conhecimento c i e n t f i c o ) o c a r c t e rt r a n s c e n d e n t a l ,que o i n t e l e c t u a l i s m oa t r i b u i a o e s p r i t o 3 6

    A inteno de Dufrenne no a de s implesmente operar uma inverso nahierarquia c o r p o / e s p r i t o , r e a l / i r r e a l q ue atravessa todo o pensamento ocidental,t r a t a - s e s im de mos tr ar a no pertinncia deste pensamento de t i p o dualizante.A propsito da metfora obsidiante v is o da s i d e i a s ou ainda olhos do e s p -r i t o , q ue povoa o pr pr io dis c ur s o r a c i o n a l i s t a , sublinhar q ue os olhos do

    e s p r i t o s o os olhos de q ue o e s p r i t o t em necessidade para o s eu advento, osolhos do corpo. Se a metaforizao uma sublimao, no sentido em q ue aentende Adorno : uma subl imao q ue conserva o q ue e l a u l t r a p a s s a . Mas s e o solhos do e s p r i t o s o ainda os olhos do corpo, em c o n t r a p a r t i d a ,o s olhos do corpono s o simplesmente mquinas registadoras, o corpo no simplesmente umacoisa entre a s c o i s a s , e l e o rgo do pensamento. Dito de outro modo , q u a n d os e invoca o e s p r i t o e q u a n d o s e l h e a t r i b u i qua lquer oper ao, o corpo e s t sempre implicado. O q ue a f i l o s o f i a con tempornea diz naturalmente da lingua-gem, q ue o pensamento a habita e permanece n e l a , preciso d i z - l o , a p a r t i r de

    agora, do corpo, deste corpo q ue f a l a e q ue tambm um corpo q ue v e ( . . . ) ,um corpo q ue escuta 3 7 .A experincia e s t t i c a s e r o lugar de e l e i o , onde s e manifesta essa pro-

    ximidade/familiaridade do corpo com o objecto e s t t i c o : primeiramente aocorpo q ue o objecto e s t t i c o s e anuncia e oferece, exercendo sobre e l e como q ueum poder de seduo 3 8 . T al como j ao n v e l da prpria criao a r t s t i c a preciso q ue o corpo s e oferea obra de a r t e para q ue e s t a possa fazer a s uaapario: Com e f e i t o , no vemos como s e r i a possvel a um Esprito p i n t a r .E empres t ando o s eu corpo ao mundo q ue o pintor t ransforma o mundo em

    pintura3 9 .

    Por outro l a d o , s e r tambm pelo corpo q ue a unidade do objecto e s t t i c os e r e a l i z a , em v i r t u d e dessa operao concordante , desse entrelaamento na p e r -cepo, dos s e n t i d o s . Porque o corpo no um somatrio de rgos e de funesjustapostas, mas um sistema sinrgico em q ue os sentidos s e in tercomunicam,do mesmo modo q ue os dois olhos co labo ram na viso 4 0 -,, pelo corpo q ueh uma unidade do objecto e s t t i c o , e particularmente nas obr as compsi tas comoa pera ou o b a l l e t , q ue f a z e m apelo a diversos sentidos ao mesmo tempo.

    3 5 M. DUFRENNE, P. E . E . , 4 2 2 .3 6 C f . I b i d . , 4 2 4 .3 7 M. DUFRENNE, L o e i l e t l o r e i l l e . P a r i s , E d i t i o n s Jean-Michel P l a c e , 1 9 9 1 , 4 5 - 4 6 .3 8 C f . M. DUFRENNE, P. E . E . , 4 2 6 .3 9 M. MERLEAU-PONTY, L o e i l e t l e sp ri t. P a r i s , G a l l i m a r d ,1 9 6 4 , 1 6 .40 C f . M. MERLEAU-PONTY, Phnomnologie d e I a p e r c e p t i o n .P a r i s , Gallimard, 1 9 8 7 , 27 0

    e Romero, Sergio Rabade, E x p e r i e n c i a ,cuerpo y conocimiento. Madrid, C . S . 1 . C . , 1 9 8 5 , 276-282.

    Revista Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994) p p . 3 6 1 - 3 9 6

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    10/36

    3 7 0 Eunice Pinho

    A unidade do objecto e s t t i c o e q ue ( . . . ) a u nida de da s ua expresso no po der s e r compreendida seno s ob a condio de q ue a diversidade do sensvel e s t e j aprimeiramente unida num sensor ium commune: o corpo q ue o s is t ema semprej fo rmado de equivalncias e transposies i n t e r s e n s o r i a i s po r e l e q ue h uma

    unidade antes da diversidade 4 1 .Merleau - Ponty s u b l i n h a r mesmo que n a percepo uma c o i s a nunca

    dada a um n i c o s e n t i d o um v e n t o v i o l e n t o t a m b m a q u e l eque se f a z v i s -v e l n a desordem d a paisagem Neste s e n t i d o C zanne d i z i a q ue um quadrocontm em s i mesmo a t o odor da p a i s a g e m .Queria d i z e r q ue o a r r a n j o d a c o rs o b r e a c o i s a ( . . . ) s i g n i f i c a p o r s i mesmo t o d a s a s r e s p o s t a s que e l a d a r i a i n t e r r o g a odos o u t r o s s e n t i d o s , que uma c o i s a no t e r i a e s t a c o r s e no t i v e s s et a m b m e s t a f o r m a ,e s t a s p r o p r i e d a d e st c t e i s , e s t a s o n o r i d a d e ,e s t e odor e quea c o i s a a p l e n i t u d ea b s o l u t a ,que a minha e x i s t n c i a i n d i v i s a p r o j e c t a f a c e a s imesma 4 2 .

    Contudo, s e j o sabemos o corpo que primeiramente a b r e o a c e s s o i n t i -midade do o b j e c t o e s t t i c o , o s e n t i d o captado permanece um s e n t i d o para oc o r p o . S em r e n u n c i a ra e s t e n v e l da p r e s e n a ,ma s pressupondo-o enquantof u n d a n t e s e r p r e c i s oc o n s i d e r a ro s o u t r o sp l a n o sd a percepo No podemosf a z e r permanecer t o d a a percepo s e n s v e l a o n v e l do p r - r e f l e x i v o E p r e c i s op a s s a r do v i v i d o a o p e n s a d o ,da p r e s e n a r e p r e s e n t a o -4 3 .

    Esta p a s s a g e m revestir no entanto e no ca so especial da ex per i nc iae s t t i c a ) o carcter de uma oscilao perptua, s em q ue s e d efe ct iv a ment eo t r n s i t o definitivo de um plano a outro, q ue a b r i r i a a s s i m o lugar a umai n s t a l a o .

    Situando-nos no p l a n o d ar e p r e s e n t a o ,j no t a n t o a o corpo (enquantopoder d e ser-com ) que compete o p a p e l d e t r a n s c e n d e n t a l ,ma s e s t e agoraoutorgado i m a g i n a o ,e n t e n d i d acomo poder de v e r. A imagem f i c a assims i t u a d a a meio termo e n t r e a p r e s e n ab r u t a em q ue o o b j e c t o experimentadoe o pensamento onde s e forma a i d e i a o b j e c t o e s t p r e s e n t eno j n a s u ac a r n a l i d a d e embora a e x p e r i n c i ad e s t a , l o n g e d e a a p a g a r s e j a a herana quee n t r e t e c e a r e p r e s e n t a o .

    Dufrenne ver na imaginao a prpria possibilidade de ligao e n t r e o corpoe o e s p r i t o 4 4 ,cabendo- l h e ass im o papel de intermedirio, que, de r e s t o , a t r a d i -o do pensamento ocidental maioritariamente l h e a t r i b u i u . Esta posio sercriticada po r E . Casey, q ue denuncia a ntima conexo entre o privilgio dapresena, i s t o a possibilidade do encontro/contacto directo e imediato dos u j e i t o com o objecto, e a t e n t a t i v a de camuflar a hierarquia das operaespsquicas , q ue procedem ou antecedem o momento do contacto: e s t a hierarquiaimpe-se s e f o r preciso i r da sensao ao entendimento e vice-versa, logo, deuma evidncia o u t r a : e s t e momento deve passar po r estados intermedirios.

    4 1 M. DUFRENNE P. E . E . , 4 2 6 .4 2 M. MERLEAU -PONTY, Phnomnologie de I a perception P a r i s , Gallimard 1 9 8 7 , 3 6 8 .4 1 M. DUFRENNE P. E . E . , 4 3 2 .4 4 C f . Ib id . , 4 3 2 .

    p p . 361 - 3 9 6 Revista Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    11/36

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    12/36

    3 7 2 Eunice Pinho

    l o a mesmo, sob o pano d e fundo que o mundo a p a r t i r do q u a l emerge eganha s e n t i d o . H como que uma i n d i g n c i an e s t e o b j e c t o v u l g a r , um r e e n v i a rd e c o i s a em c o i s a p a r a a s s i mpoder s i g n i f i c a r ou ganhar s e n t i d o uma p a l a v r a ,h n e l e a f a l t a congnita d e uma luminosidade i n t e r i o r de que s o o b j e c t oe s t t i c o s e r d e t e n t o r4 9 .A s u a opacidade d e c o i s a f r a c t u r a d ap o r uma l u z quej o r r a a p a r t i r d e s i o r i s s o Dufrenne d i r que o s e r do o b j e c t oe s t t i c o , porquee l e mesmo s e exprime um q u a s e - s u j e i t o 5 0 .

    Por outro l a d o , mesmo na impossibilidade de u n i olhar a ba rca dor da t o t a l i -dade do objecto, mesmo pressupondo o carcter de novidade, sempre transbor-dante, ocenico, do objecto e s t t i c o , no h qua isquer dimenses na sombra ,escondidas, l a t e r a i s a q ue caberia imaginao s u p r i r . Mesmo na p a r t e , o q ues e d sempre o todo monumento apreendido como imediata e totalmentedado em cada percepo 5 1 .E , nesse s e n t i d o , no h q ue i n t e r p r e ta r a saparncias,

    q ue no s s o oferecidas, buscando um suposto objecto r e a l , q ue e s t a r i a po r detrsd e l a s . Se C z a n n e coloca a garrafa obliquamente, no t emos de a e n d i r e i t a r , s eRenoir f a z desaparecer os cabelos de uma mulher no fundo do quadro, a pontode a s f r o n t e i r a s s e to rnarem indiscernveis, no t emos de a s t r a a r , como s et ivssemos de p i n t a r o r e t r a t o . ( . . . ) Toda a t a r e f a da imaginao ento de apre-ender e s t e objecto na aparncia, mas sem l h e s u b s t i t u i r um objecto imaginriomais verdadeiro, de q ue s e r i a o ana logon 5 2 .

    Nesta recusa de uma participao mais efectiva da imaginao na per cep-o e s t t i c a e s t imbricada a c r t i c a a uma concepo de a r t e como representao

    ou mimt ica da r e a l i d a d e .Em o b r a s p o s t e r i o r e s , designadamente em L angua ge a nd philosophy e em

    Le Potique vemos o tema da imaginao r e s s u r g i r . M a s t r a t a - s e a de umao u t r a concepo de i m a g i n a o ,p o i s e s t a j no uma f a c u l d a d e do e s p r i t ohumano. S u b t r a d oo s e u c a r c t e r s u b j e c t i v o , a imaginao t o r n a - s e p e r t e n ad e uma n a t u r e z apensada em termos m e t a f s i c o sd e Natureza n a t u r a n t eque s er e v e l a a o p o e taa t r a v s d a s g r a n d e simagens . A e s t e a s s u n t o voltaremos mais f r en t e .

    Em Phnomno log ie de I 'exprience esthtique, de q ue t emo s procuradoseguir o traado, a imaginao conserva o lugar de intermedirio na topologiado e s p r i t o humano. Tra t ada deste modo , a imaginao carece de um estatutoindependente e de um papel relevante na ex per i nc ia e s t t i c a .

    Vejamos a g o r acomo s e o p e r aa passagem do p l a n o da r e p r e s e n t a op a r a ar e f l e x o .

    O entendimento, ao d i s c i p l i n a r a imaginao e ao g a r a n t i r o r i g o r e o b j e c t iv i -dade do dado, p o s s i b i l i t a a s s i m o avanar do conhecimento ou da percepo,permanecendo e s t e m a r c a d o po r uma f i n i t u d e inexorvel, q ue a necessidadede mergulhar sempre na e x per i nc ia da presena 5 3

    4 9 C f . I b i d 1 , 1 9 5 - 1 9 6 .C f . I b i d 1 , 1 9 7 .C f . I b i d . , 4 5 4 .

    s z I b i d . , 4 5 8 .5 3 C f . I b i d . , 4 6 4 .

    p p . 3 6 1 - 3 9 6 Revis ta Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    13/36

    A E s t t i c a de Dufrenne o u a Procura da Origem 3 7 3

    Dufrenne re toma aqui a l e t r a de Kant , mais especificamente o momentoem q ue e s t e , na C r t i c a da Faculdade do Juzo pe em cena os juzos r e f l e x i v o s .Dir-se-ia q ue a s ua considerao abre uma v i a para pensar a experincia e s t t i c a :

    Segundo o ju zo r e f l e x i v o , estabeleo com o objecto uma relao mais ntimado q ue no juzo determinante: no me contento em ordenar a s aparncias ou emr e g i s t a r a s significaes q ue me s o pr opo st as pela imaginao, v e r i f i c o e s t eacordo da natureza com a no ss a fa culda de de conhecer, q ue K a nt ex pr ime peloprincpio da f i n a l i d a d e . Esta afinidade, q ue s e manifesta e n t r e a natureza e o e u ,no s o m en t e c o mp r ee nd id a po r r e f l e x o , experienciada, particularmente naexperincia e s t t i c a , numa espcie de comunho entre o objecto e eu 5 4 .

    Esta relao profunda, e s t a consubstancialidade e n t r e s u j e i t o e objecto, deq ue o encontro com a obra de a r t e (objecto e s t t i c o ) s e r a tes temunha p r i v i l e -

    giada, conduz-nos directamente ao t ema do sentimento, q ue cons iderado oponto de culminncia da experincia e s t t i c a .A importncia outorgada po r Dufrenne ao sentimento no pode s e r v i s t a

    como uma cednci a uma e s t t i c a s u b j e c t i v i s t a . Este no s e define po r um es tado de a lma ou um modo de s e r do s u j e i t o , q ue determinaria uma a t i t u d ede e n s i m e s m a m e n t o ou a clausura do s u j e i t o na s ua prpria i n t e r i o r i da de ; t opo uc o po de s e r assimilado a uma mera reaco epidrmica. O sentimento ummodo de s e r do s u j e i t o , q ue responde a um modo de s e r do objecto, em mimo correlato de uma c e r t a qualidade do objecto, pelo qual o objecto manifesta a

    s ua intimidade 5 S .E no deixa de s e r s i g n i f i c a t i v o q ue Dufrenne mostre, aindaq ue o fa a ent r e p a r n t e s i s , uma c e r t a desconfiana face ao termo correlatopela s ua c o no t a o i de a li s t a - e o pr et enda s u b s t i t u i r po r r es s o n nc ia . q ue arelao q ue s e estabelece entre s u j e i t o e objecto algo diverso de uma relaode domnio do primeiro relativamente ao segundo; o s u j e i t o da experincia e s t -t i c a no o s u j e i t o c o n s t i t u i n t e da fenomenologia na s ua vertente i d e a l i s t a

    A l inguagem da intencionalidade aplicada ao sent imento enf raquece talvez oq ue precisamente h nele de sofrido 56

    Ora, colocada nestes termos, encontrando a s ua realizao no sentimento, a

    experincia e s t t i c a parece t e r algo em comum com o modo como Heidegger eGadamer concebem a experincia em g e r a l . Dir-se-ia e x i s t i r nela um pathosc o n s t i t u t i v o , ou s e j a , o es t igma da prpria f i n i t u d e do conhecer. Repare-se q ueDufrenne f a l a na existncia de algo de s o f r i d o , como q ue de um submeter- se aonvel do sentimento; es ta remos aqui em face da frmula, de Esquilo, de q ueaprender sofrer?

    j clebre o pas s o da primeira da s t r s conferncias, i n t i t u l a d a s Le dploie-ment de l a parole, em q ue Heidegger e x p l i c a , de um modo belo mas algo dram-t i c o , o q ue entende po r experincia: Fazer uma experincia com o q ue quer q ue

    s e j a , uma c o i s a , um s e r humano, um deus, i s s o quer d i z e r : o deixar v i r a t n s ,deixar q ue no s a t i n j a , no s sobrevenha, no s derrube e no s transforme. Nesta

    5 4 Ib id . , 4 6 8 .5 5 I b i d . 4 6 9 .5 6 I b i d . 4 7 0 .

    Reviera Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994) p p . 3 6 1 - 3 9 6

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    14/36

    3 7 4 Eunice Pinho

    acepo f a z e r no s i g n i f i c a p r e c i s a m e n t eque n s efectuamos p o r n smesmosa e x p e r i n c i a f a z e r q u e r d i z e r a q u i , . . . ) ,p a s s a r p o r, s o f r e r a t a o extremo s u p o r -t a r , a c o l h e ro que n o s a t i n g e submetendo - n o s 5 7 .

    Por o u t r o l a d o , t a m b m p a r a Gadamer a marca d a h i s t o r i c i d a d e i n c r u s t a d aem t o d a a e x p e r i n c i a o l e v a a a f i r m a rque a v e r d a de i r ae x p e r i n c i a a q u e l aem que o homem se t o r n a c o n s c i e n t ed a s u a f i n i t u d e Nela encontram o s e u l i m i t eo poder f a z e r e a a u t o c o n s c i n c i ad e uma r a z o p l a n i f i c a d o r a 5 8 .

    O s e n t i m e n t o l o n g e d e c o n s t i t u i r como a t r s r e f e r i m o s um e s t a d o s u b j e c -t i vo , i m p l i c a da p a r t e do s u j e i t o u n ia d i s p on i b i l i da d ee a b e r t u r a q u i l o que dos e r a d v m e que e s t i l h a a e excede q u a l q u e rt e n t a t i v a d e p r e v i s o e domnio.No sentimento o s e r a p a r e c ecomo o u t r o do q ue e l e , e i n e s g o t v e l , nosomente porque c o r n o a imaginao a d v e r t i u e u posso sempre s u b s t i t u i r ouj u n t a r uma r e p r e s e n t a oa o u t r a , ma s porque q u a l q u e rc o i s a n e l e me d a d a , q uer e j e i t a t o d a a r e p r e s e n t a oe t o d a a aco 5 9

    O sentimento considerado deste modo , desvia a experincia e s t t i c a do p r i -mado do t e r e leva o s u j e i t o a colocar-se a s i mesmo em questo Tra ta - se desaber reflectindo s e s e ou no capaz de es cut ar es s a mensagem de q ue oobjecto e s t t i c o portador 6 0 e q ue escapa a toda a apropriao porque a s uavoz a do s i l n c i o .

    P a r a Dufrenne, o s e n t i m e n t o uma o u t r a v i a n a q u a l a percepo se podecomprometer, e v i t a n d o o campo d a s s i g n i f i c a e spuramente o b j e c t i v a sque c o n -sagram o nosso poder e a n o s s a i n d i f e r e n a 6 1 .Por o u t r o l a d o , e s s a e x p e r i n c i ag i z a d a p e l a a b e r t u r ado fundo d e n smesmos a u ma r e a l i d a d e s o b r e a q u a lno temos j u r i s d i o , r e v e s t e - s e ,p a r a Dufrenne, d e um c a r c t e r o n t o l g i c o .P a r auma melhor d i l u c i d a od a q u i l oem q ue c o n s i s t e o s e n t i m e n t os e r i m p o r t a n t ea t e n d e r - s e d i s t i n o , que Dufrenne o p e r a , e n t r e e u s u p e r f i c i a l e e u profundoo u , o que s e e q u i v a l e ,e n t r e emoo e s e n t i m e n t o .Enquanto a emoo t em umc a r c t e r c o n t i n g e n t ee t r a n s i t r i o , no e x i g i n d ode n s p r p r i o sum v e r d a d e i r oenvolvimento/consentimento; o s e n t i m e n t otem o c a r c t e r d e uma r e v e l a o n aq u a l o e u profundo s e deve e n c o n t r a rcomprometido Ass im a emoo domedo no o s e n t i m e n t odo h o r r v e l : uma c e r t a forma de r e a g i r a o h o r r v e l . . . ) .T a l como a a l e g r i a no o s e n t i m e n t odo cmico, ma s a forma como pene-tramos n o mundo do cmico e o usamos ( . . . ) Medo, a l e g r i a , piedade designammovimentos do s u j e i t o , num s e n t i d o a l a r g a d od e emoes, s e entendermos p o ri s s o no somente desregulaes mas, em primeiro l u g a r , empreendimentos,p o n t o s d e p a r t i d a d e a c o , q u a l q u e rque s e j a o d e s t i n o d e s t a a c o .Enquantoo s e n t i m e n t o conhecimento ( . . . )E e s t e conhecimento, r e c i p r o c a m e n t e , s e n t i -mento ( . . . ) porque supe uma c e r t a d i s p o n i b i l i d a d ep a r a a co l h e ro a f e c t i v o 6 2 .

    5 7 M. HEIDEGGER, Acheminement v e r s I a p a r o l e . P a r i s , Gallimard, 1 9 9 0 , 1 4 3 .s x H . - G . GADAMER, Verdad y Metodo . Sa lamanca , Ediciones Sgueme, 1 98 4 , 4 3 3 .s v M. DUFRENNE, P. E . E . 1 1 ,4 7 0 .R 0C f . I b i d . , 4 7 0 .f i I b i d . 4 7 1 .f i z I b i d . 471-472.

    p p . 3 6 1 - 3 9 6 Revista Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    15/36

    A E s t t i c a de Dufrenne ou a Procura da Origem 3 7 5

    O t r a o decisivamente d i s t i n t i v o e n t r e emoo e s e n t i m e n t o - l h e c o n f e r i d opor a q u i l o que Dufrenne d e s i g n ap o r funo n o t i c a do s e n t i m e n t o :enquantoa emoo apenas comentadora d e um mundo j d a d o , o sentimento r e v e l a

    mundo 6 3 .Noo mundo f a m i l i a r , povoado de o b j e c t o se u t e n s l i o s , no q u a l n o s

    situamos segundo coordenadas e s p a c i o - t e m p o r a i sp r e c i s a s . No o mundo q ues e r i a o d u p l o , a c p i a daquele q ue cada um de n s , o a r t i s t a i n c l u s i v , h a b i t a .M a s t a m b m no s e t r a t a a i n d a de uma s i m p l e smoldura meramente imaginadae a c r e s c e n t a d a soma d a s c o i s a s p r e s e n t e s6 4

    O mundo, que a o b r a de a r t e i n s t i t u i , um mundo a u r o r a l , i n o b j e c t i v v e l ,i m p o s s v e lde d i m e n s i o n a r ,no s u s c e p t v e ld e s e r d i t o n a linguagem comum, ma scapaz d e f a z e r d e s p e r t a rum s e n t i m e n t o i n d e f i n i d o[como] uma p o t n c i a , quenenhuma a c t u a l i z a oe s g o t a . p o s s i b i l i d a d ei n d e f i n i d a d e o b j e c t o s l i g a d o s ,

    u n i d o s p o ruma q u a l i d a d ecomum, comoum s om p l e n o d eh a r m o n i a s ,em r i g o r ,

    i n u m e r v e i s . p o r i s s o que tem a s dimenses de um mundo, dimenses quedesafiam a medida , no porque h sempre mais a m e d i r , ma s porque no s e podea i n d a m e d i r : e s t e mundo no e s t povoado de o b j e c t o s , e l e p r e c e d e - o s , comoa a u r o r a onde e l e s s e revelam e onde s e revelam t o d o s o s que s o s e n s v e i s ae s t a l u z , t o d o s o sque podem desabrochar n e s t a a t m o s f e r a 5

    , pois , p e l o s e n t i m e n t oq ue s e e s t a b e l e c ea a l i a n a c o m o contedo e x p r e s -s i v o da o b r a , c o m e s s e r o s t o a f e c t i v o , q ue o o b j e c t oe s t t i c o e s t e n d ep a r a n se q ue c o n s t i t u i uma a tm o s f e r a d emundo 6 6

    Aquilo que n a o b r as e d i z , no o j a ,a d i t a r e a l i d a d eque s e p a t e n t e i a

    claramente a o s n o s s o s o l h o s , a o c r u z a r a e s q u i n a . O que a o b r a n o sr e v e l a e queapreendemos p e l o s e n t i m e n t o a q u i l o que da r e a l i d a d eno d i r e c t a m e n t ev i s v e l o mo o rumor suave d a s e s p i g a sde V a n G o g h a balanarem-se ao s a b o rda b r i s a 6 7 .Por i s s o a a r t e d i t a f i g u r a t i v a um l o g r o . R e p r e s e n t a rs e r sempret r a n s f i g u r a r , r e c r i a r um s e n t i d o , porque a e x p r e s s odetm a p r i m a z i a : O mundoexprimido a alma do mundo r e p r e s e n t a d o .( . . . )Exprimir t r a n s c e n d e r- s e p a r aum s e n t i d o , e a l u z d e s t e s e n t i d o q u a l i d a d eda a t m o s f e r a a z s u r g i r umr o s t o novo do o b j e c t o 6 8 .

    O que a o b r a m o s t r a ,no o mundo j d a d o ,ma s a emergncia do r e a l no

    a a p a r n c i a ,ma s o a p a r e c e r6 9 .A o b r a de a r t e a s s i mpaixo da o r i g e m ,d e s e j ode a d i z e r e , c o n t u d o ,mera a l u s o : O que e u t e n t o t r a d u z i r - v o s , mais m i s t e -r i o s o , confunde-se c o m a s r a z e s mesmas do s e r com a f o n t e impalpvel d a ssensaes 7 0 .

    6 3 C f . Ib id . , 4 7 2 .6 4 M. HEIDEGGER, A origem da obra de a r t e L i s b o a , Edies 7 0 , 1 9 8 9 , 3 5 .6 5 M. DUFRENNE, P. E . E . , 1 , 2 4 0 .6 6

    C f . I b i d . , 235 e M. DUFRENNE,Le p o t i q u e . P a r i s , P . U . F. , 1 9 7 3 , 9 2 - 9 3 .

    6 7 V . GOGH, Carta a Gauguin c i t . por Bonafoux P . , V a n G o g h a l u z e a c o r . L i s b o a , L i v r a r i a

    C i v i l i z a o / C r c u l ode L e i t o r e s 1 9 9 1 , 1 4 1 .6 8 M. DUFRENNE, P. E . E . , 1 , 247-248.6 9 C f . M. DUFRENNE, La profondeur comme dimension de I o b j e t e s t h t i q u e i n E s t h t i q u e

    e t P h i l o s o p h i e ,I I I . P a r i s , E d i t i o n s Klincksieck 1 9 8 1 , 1 4 5 .

    7 0 J . GASQUET, Czanne c i t . por M. MERLEAU-PONTY, L o e i l e t l e s p r i t P a r i s , Gallimard,

    1 9 6 4 , 7 , sublinhados n o s s o s .

    R e v i s t a F i l o s f i c a d e Coimbra n . 6 ( 1 9 9 4 ) pp . 361-396

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    16/36

    3 7 6 Eunice Pinho

    O q ue o sentimento, na s ua funo n o t i c a , apreende do objecto e s t t i c o , e s t para a l m da aparncia do mesmo s se s e r o t e r r e n o , onde o entendimentoopera para o i n t e r p r e t a r . O sentimento antes de mais, encontro com, modo deresponder expresso, q ue da obra emana. Expresso, que, para Dufrenne ,

    s imultaneamente a condio e o modo originrio de significao 7 1 . No aindaa s i d e i a s depuradas, c l a r a s e d i s t i n t a s q ue o pensamento cartesiano v a l o r i z a , maso sentido na s ua emergncia.

    I l uma d i f e r e n ae s s e n c i a l a s e p a r a r a a p a r n c i ada e x p r e s s o .Enquanto aa p a r n c i an o s d a c e s s o a o conhecimento d e u n i a c o i s a , a expresso r e v e l a - n o su n i s u j e i t o ou u n i q u a s e - s u j e i t o .Nesse s e n t i d o , o o b j e c t oe s t t i c o , a o t e r o poderd e se e x p r e s s a rp o r s i mesmo, assume-se como sendo um q u a s e - s u j e i t o7 2 .

    Entre o homem e o objecto e s t t i c o h , p o i s , algo em comum: a capacidadede expresso q ue os torna i r r e du t v e i s s c o i s a s .

    A coisa aquilo q ue sem segredos. No compor ta em s i par tes intencio-nalmente escondidas. Mesmo q ue o objecto s e no ex iba na s ua comple tude e anossa viso s e j a sempre p e r s p e c t i v s t i c a , a s ua opacidade e s t sempre fendidapelo anunciar dessa mesma zona de obscuridade. Dufrenne d i r mesmo que, s es e pode f a l a r em m i s t r i o , aprops ito das c o i s a s , esse mistrio ainda v i s v e l 7 3 .

    A c o i s a e x i s t e n a s u a p u r a e x t e r i o r i d a d e ,s em e m i t i r q u a i s q u e rs i n a i s de ump o s s v e l i n t e r i o r a p u l s a r d e n t r o d e s i . Por i s s o a c o i s a pode sempre s e r o b j e c -t i v a d a . De a p a r n c i aem a p a r n c i a , o s a b e r v a i - s e r e c t i f i c a n d o e p r o g r e d i n d o .

    Contudo , o q ue aqui e s t em jogo, o t i p o de relao q ue s e ins t aura ent re

    um s u j e i t o e aquilo q ue o aparecer manifesta objecto a s e r conhecido e q ue o correlato de uma percepo: a p a s s a g e m da apa rncia ao objecto cer tamente um acto meu, e o percebido com certeza o correlato da minhapercepo` E no cas o da e s t t i c a , entre o s u j e i t o e aquilo mesmo q ue s eexpr ime e nessa medida, s e metamorfose ia em q u a s e s u j e i t o . Numa palavra,t emos no primeiro c a s o , uma relao de t i p o objectivante; no s egundo , um d i -logo entre um eu e um t u , um encontro de alteridades e q ue , po r i s s o mesmo,i r r e d u t v e l tematizao e ao conceito.

    A linguagem, q ue entretece a relao com a c o i s a , a l inguagem na s ua

    dimenso empobrecida, degradada; em q ue a s pa la vr as s o meros instrumentos,q ue se rvem para designar a s coisas palavra a veste e x t e r i o r , q ue revesteum r e a l mudo, desnudado de l inguagem 7 5 . E po r i s s o q ue nomear no mais, como na palavra o r i g i n r i a , fazer eco do objecto e s e r possu do po r e l e , possui-lo. A palavra o instrumento e o s igno do domnio, e l a confirma q uedetenho a chave da aparncia 7 6 .

    Pelo c o n t r r i o , o sentimento, no assumindo para Dufrenne a acepo de umadisposio ou reaco s u b j e c t i v a , surge como resposta ao apelo q ue pela expressi-

    7 1 C f . M. DUFRENNE Le potique P a r i s P. U . F. , 1 9 7 3 , 8 7 .7 2 C f . M. DUFRENNE, P. E . E . , I I , 4 7 3 .

    C f . Ib id . , 4 7 3 .7 4 M. DUFRENNE, P. E . E . , I I , 4 7 8 .7 5 C f M. B . PEREIRA Compreenso e a l t e r i d a d e . B i b l o s , L I I 1 9 7 6 , 9 1 .7 M. DUFRENNE, P. E . E . , I I , 4 7 8 .

    p p . 361-396 R e v i s t a F i l o s f i c a d e Coimbra n . 6 ( 1 9 9 4 )

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    17/36

    A E s t t i c a de Dufrenne ou a Procura da Origem 3 7 7

    vidade da obra advm. O sentimento l e i t u r a da expresso: Eu j no decifromais uma aparncia, j no reconstituo o q ue f o i constitudo pelo corpo, noexploro mais um c a p i t a l . Sem dvida, no posso l e r seno na condio de q ue

    os signos se j am signos para mim, quer d i z e r , q ue e l e s desper tem a lgum eco nomeu corpo. ( . . . ) O q ue me aparece o sentido mesmo ao q u a l acedo directamentepo r uma clarividncia n a t u r a l 7 7 . Pelo sentimento, h as sim uma adeso imediataao s e n t i d o , o u , s e s e q u i s e r , ao mundo em direco ao qual o objecto e s t t i c oaponta, e q ue nenhum aparelho conceptual poder t r a d u z i r ou domina r. S al inguagem autntica, a l inguagem potica, porque mantm em s i o eco dasexperincias primordiais 7 8 , pode entretecer e s t a r e l a o . O sentido no maisaquilo q ue eu p o s s o dominar, ma s algo q ue me chega s ob o modo de umaoferta O poema veio de longe assim, t r a n q u i l o , com os seus g e s t o s , a s uav i d a , para no s reencontrar 7 9 .

    Dufrenne concebe a experincia e s t t i c a como um encontro no qual a obrano s toca profundamente orque a profundidade uma dimenso essencial ecomum ao objecto e ao sentimento e s t t i c o s .

    E s t e c a r c t e r d e s e r profundo no pode se r i d e n t i f i c a d ocom qualquer p a r t i -c u l a r i d a d edo o b j e c t o e s t t i c o , como, p o r exemplo, o s e u ex ot is mo o u a n t i g u i -d a d e . Por o u t r o l a d o , d a p a r t e do s u j e i t o no i n d i c a qualquer marca d e um

    passado remoto o u d e uma i n s t n c i a desconhecida o u mesmo o i n c o n s c i e n t eao p e r a r n e l e 8 0 .O s er profundo, antes de mais, a prpria intensidade da presena em q ue

    s e r e a l i z a esse encontro / comunho Para apreender essa dimenso constitutivado objecto e s t t i c o , i s t o para co-responder a essa i n t e r i o r i d a d e ,q ue s e e x t e r i o -r i z a , expressando- s e , 8 1 sem contudo s e esvaziar, ma s pelo c ont r rio , a s s e-gurando o s eu e s t a t u t o mesmo de interioridade preciso q ue o s u j e i t o reveletambm a sua profundidade. Esta no mais do q ue a capacidade de a b e r t u r a , agenerosidade e confiana com q ue deixa ecoar em s i a voz da obra 8 2 .

    Neste s e n t i d o , a experincia e s t t i c a eminentemente experincia do outro,q ue vem a t n s , pelo silenciamento da nossa subjectividade. Dufrenne d i r mesmo q ue s e r necessrio reencontrar a inocncia do olhar ou do escutar 8 3 .

    No q ue o pas sado do s u j e i t o , a s ua dimenso de pertena a uma situao possas e r abolida o h nunca uma s uperfcie l i s a de acolhimento. No existenada antes do s a b e r , d i r Deleuze.

    7 7 I b i d . , 4 7 8 .7 8

    C f . M. DUFRENNE

    Lepotique P a r i s , P. U . F. , 1 9 7 3 , 9 6 .

    7 9 H . HELDER A s magias i n Poesia Toda. L i s b o a , A s s r i o Alvim, 1 9 9 0 , 4 6 6 .x o C f . M. DUFRENNE P. E . E . , 1 1 , 495-504.x l Porque o p r e f i x oex des igna a s a d a de algo q ue vem a t ns e , d e s s e modo, no f i c a r e t i d o ,

    enclausurado em s i mesmo Algo d e s s e i nt er io r s e d e e s p e r a a c o l h i m e n t o .8 2 C f . M. DUFRENNE P. E . E . , 1 1 , 5 0 3 .8 3 C f . M. DUFRENNE La profondeur comme dimension d e I o b j e t e s t h t i q u e i n E s t h i i q u e

    e t philosophie 1 1 1 .P a r i s , E d i t i o n s Klincksieck 1 9 8 1 , 1 4 2 .

    Revista Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994) p p . 3 6 1 - 3 9 6

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    18/36

    3 7 8 Eunice Pinho

    Mas mesmo assim, o patrimnio de saberes ou, numa perspectiva herme-n u t i c a , a dimenso pr-compreensiva , longe de ofuscar ou de c o n s t i t u i r umobs tculo a o novo, ser a s ua condio mesma de possibilidade: No p o s s orenegar os saberes ou os habitus q ue a d q u i r i e q ue em mim do oportunidade

    o b r a . E nesta condio q ue a presena s e r e a l i z a na intimidade, que, pela minhap a r t e , longe de s e r passivo, penetro no inundo desta obra q ue me penetra, a t me perder nela 8 4 .

    E Dufrenne retoma o tema d a r e f l e x o procurando a r t i c u l - l o c om o s e n t i -m e n t o .A r e f l e x oa s s u n t e a g o r aum novo r o s t o , a s u a r e l a o com a o b r a d e i x ad e s e r a d e um e n c o n t r od e e x t e r i o r i d a d e s ,e l a t o r n a - s e r e f l e x os i m p t i c a ;porquee s t a g o r a imb u da do p r pr i o s e nt i m e n t o .Se o s e u p a p e l s e d e f i n i u p r i m e i r a -mente p e l a t a r e f a d e p r e p a r a re c l a r i f i c a r o s e n t i m e n t o ,l i b e r t a n d o - oassim d aqueda n o i r r e f l e c t i d o , numa segunda f a s e , o p e r c u r s ocomo que se i n f l e c t e , ar e f l e x o d i r i g i d a p e l o p r p r i o s e n t i m e n t o ,a b r i n d oo espao a uma e x p e r i n -c i a mais n t i m a do o b j e c t o e s t t i c o 8 5 .

    A promessa de s aber

    A r e f l e x o d u f r e n n i a n aem t o r n o da e x p e r i n c i ae s t t i c a abandona agora os e u momento d e s c r i t i v o e prossegue num t r a a d ot r a n s c e n d e n t a l ,em que s e t r a t ade p e r g u n t a rp e l a s c o n d i e sd e p o s s i b i l i d a d ed e s s a mesmae x p e r i n c i ae s t t i c a ,que , a l i s ,paradigma d a e x p e r i n c i aem g e r a l .

    Se a experincia e s t t i c a s e cumpre num sentimento s us c it a do pela l e i t u r ada expresso emanada do objecto e s t t i c o , preciso c ompr eende r q u e liamesfundam esse vnculo e s t r i t o e n t r e o homem e a a r t e , o u , s e s e q u i s e r , o q ue tornapossvel essa co-presena g izada pela escuta de uma palavra esteticamente profe-r i d a , a q ue s podemos d i z e r , sem ordenar, em; e a s palavras ( . . . ) reencon-t r am no fundo de ns a s ua prpria imagem, como sob revoando um grande lagoquieto 8 6 .

    H p o i s a q u i um i n e l u d v e ld e s e j od e e n c o n t r a rum fundamento l t i m o , uma a n t e r i o r i d a d er a d i c a l q ue s e j a a r a i z d e s t e pacto e n t r e o s u je it o e o o b j e c t oe s t -t i co o u , formulado em termos mais g e r a i s , e n t r e o homem e o mundo. Dufrenneresponder a e s t a q u e s t ofazendo e n t r a r d e novo n a cena f i l o s f i c a u ma c e r t aforma de a p r i o r i s m o ,q ue e n t r o n c a d i r e c t a m e n t en a Modernidade.

    Pea matriz da f i l o s o f i a kantiana, a noo de a priori s e r re tomada e acres-cida de um sentido novo. Em Phnomno log ie de l 'exprience esthtique,Dufrenne afirmar explicitamente q ue a experincia e s t t i c a radica num novo t i p ode a p r i o r i . s o os a priori da afectividade. Estes devero s e r entendidos nosentido mesmo em q ue K a n t f a l a de a p r i o r i da sensibilidade e do entendimento;T al como os a priori kantianos s o a s condies segundo a s quais um objecto

    8 4 i b i d . 1 4 2 .x s C f . I b i d . 524-526.1 6 H . HELDER, Magias i n Poesia t o d a . L i s b o a , A s s r i o Alvim, 1 9 9 0 , 4 6 6 .

    p p . 3 6 1 - 3 9 6 Revista Filo s f i c a de C o i m b r a . 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    19/36

    A E s t t i c a d e Dufrenne ou a Procura da Origem 3 7 9

    dado ou pensado s o a q u i a s c o n d i e s ,s o b a s q u a i s um mundo pode s e r s e n t i d o ,de modo algum condies do s u j e i t o i m p e s s o a la o q u a l Kant s e r e f e r e ( . . . ) ma sde um s u j e i t o c o n c r e t o capaz d e e n t r e t e c e ruma r e l a o v i v a com o mundo 8 7 .

    O afastamento relativamente a Kant ass im desde logo sublinhado: o a p r i o r is e r definido po r Dufrenne como o e l o comum q ue consagra o acordo fundamen-t a l entre homem e mundo, afas tando qualquer possibilidade de pensar umaespcie de po der demi r gic o da conscincia. De notar q ue quando s e f a l a aquide poder demirgico, e s t e deve s e r entendido segundo a l e t r a de kantiana: o apriori funda a experincia, i s t o , torna-a possvel para um s u j e i t o , confere-lhes e n t i d o , eleva-a i n t e l e c t u a l i d a d e ,como d i r Ricoeur, ma s no s i g n i f i c a funda-o, i s t o , no , em r i g o r , a causa, a origem da prpria experincia 8 8 .

    O q ue a c r t i c a de Dufrenne v i s a sobretudo, a concepo u n i l a t e r a l e empo-brecedora desta noo, enquanto mero poder conferido ao s u j e i t o um s u j e i t o q ue ainda pensado como correlato impessoal de um conhecimento puro) de da rsentido a o diverso s e n s v e l : O a priori a forma, q ue o processo do conheci-mento imprime a o conhecido o r eflex o no objecto dos actos transcendentais dos u j e i t o 8 9 .

    T r a t a - s ea s s i m d e p r o p rum a p r i o r i , que d e i x e d e s e r o p r i v i l g i o e x c l u s i v ode uma s u b j e c t i v i d a d ee p o s s a t a m b m s e r c o n s t i t u t i v o do o b j e c t o : D i s t i n g u i -remos e n t o num mes moa p r i o r i o a s p e c t o o b j e c t i v oe o a s p e c t o s u b j e c t i v o . precisamente e s s a , a nosso v e r a p r i m e i r a r a z op a r a manter a noo d e ap r i o r i : h um acordo do homem e do mundo que se r e a l i z a no conhecimento( . . . ) e que s e m a n i f e s t amenos como um poder do homem s o b r e o mundo, out ambm numa p e r s p e c t i v an a t u r a l i s t a como um p o d e rdo mundo s o b r e o homem,ma s a n t e s co mo umaf a m i l i a r i d a d e c o n s u b s t a n c i a l i d a d edo homem e do mundo;p o i s e s t e conhecimento no p o s s v e l seno n a condio d e que o mundo e s t e j aa b e r t o a o homem e o homem a b e r t o a o mundo. E s t a a b e r t u r ar e c p r o c a , o ap r i o r i que o exprime o s e n t i d o p r e s e n t ee dado a o mesmotempo no o b j e c t oeno s u j e i t o assegurando a comunicao e mantendo i g u a l m e n t ea d i f e r e n a 9 0 .

    Em L'inventaire des a priori obra posterior em q ue e s t e t ema s e r r e t o -mado , Dufrenne sublinha , ta lvez de um modo mais e x p l c i t o e s t e duplo rosto doa priori mos t rando q ue a possibilidade da experincia e da conscincia e s t o ,na verdade, imbricadas. Para q ue o dado possa aparecer conscincia, previa-mente necessrio que, e l e m e s m o , s e j a j portador de um s e n t i d o . Por outro l a d o ,da parte da conscincia, -lhe exigido q ue e s t e j a apta e disponvel para recolheresse sentido. Ora, e s t a aptido da conscincia, e s t e e s t a r preparado para oq ue ainda no chegou, pressupe como q ue uma antecipao da experincia.A conscincia possui j , de a lgum modo, um s a b e r , uma pr-compreenso do s e n -t i d o ainda po r v i r mas j a . Como afirma Levinas Nem r e f l e x o , nem criadordas estruturas a priori q ue const i tuem o mundo, o s u j e i t o conhece-as por um

    8 7 M. DUFRENNE, P. E . E . , 1 1 . 5 3 9 , sublinhado n o s s o .a s C f . M. DUFRENNE, La n o t i o n d ' A p r i o r i . P a r i s , P. U . F. , 1 9 5 9 , 4 - 5 .8 9 I b i d . , 1 7 .x I b i d . 5 3 - 5 4 .

    Revista Filosfica de C o i m b r a nP 6 (1994) p p . 3 6 1 - 3 9 6

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    20/36

    380 Eunice Pinho

    conhecimento v i r t u a l , o qual no o resduo de uma experincia pas sada 9 1 .

    Trata-se de um saber q ue saber de uma experincia po r acontecer mas q ue tambm a s ua prpria condio Cer tamente e l a [ a conscincia ] t em tudo paraaprender ma s no aprende seno porque previamente compreende ; a experincia

    q ue adquire supe uma experincia q ue no adquirida, um saber v i r t u a l q uefunda toda a experincia 9 2 .

    Por o u t r o l a d o , e s t e s a b e r como q ue em e s t a d o de l a t n c i a q ue apenaspromessa do a v i r , p o s t u l a o p r p r i o movimento do mundo, q ue vem f a z e rd e s p e r t a re s s e s e n t i d o . p r e c i s o que em s e g u i d a , p a r a que e s t e s e n t i d o nopermanea e n t o r p e c i d oe a c on sc i n c i a n an o i t e que o inundo s e p r e s t e a e s t acompreenso p r - d a d a :que s e d o q ue a c o n s c i n c i ae s t a v a p r o n t a p a r ar e c e b e r .E p r e c i s o que o s e n t i d o h a b i t e o o b j e c t o , que informe a m a t r i as e n s v e l : n a s u af a l t a ,e s t a m a t r i apermaneceria impermevel e no s e r i a p e r c e b i d a 3 .

    No entanto a noo de a priori parece compor ta r em s i um pa radoxo funda-mental p o i s , como explicar q ue aquilo q ue antecede radicalmente a experincia,no s e j a po r e l a conta minado ao revelar - s e apenas n e l a , i s t o , a posteriori?Como delimitar ento o prprio campo do s a priori?

    O prprio f i l s o f o admite que, ao pretender e v i t a r a interpretao i d e a l i s t ado kantismo, segundo a qual postulada a impo s io da actividade do e s p r i t o experincia ( o a priori apenas princpio formal de conhecimentos) e a odefender q ue o a priori s e d na prpria experincia s e corre o r i s c o de umregresso ao empirismo. Ora, a posio empirista p la smada no princpio de q ue

    a experincia a nica fonte de conhecimento m a r c a o pr pr io eclipse do ap r i o r i , i s t o a s ua dissoluo no a posteriori 9 4 .

    Cont ra o empir ismo, Dufrenne reafirmar a anterioridade e irredutibilidadede um princpio de i n t e l i g i b i l i d a d eque, ao fundar a experincia a elege simul-taneamente como palco da s u a r ev ela o e e x p l i c i t a o . Por outro l a d o , a defesade um apriorismo configura uma da s t e s e s c e n t r a i s da prpria f i l o s o f i a dufrennia-n a : o homem e o mundo s o contemporneos O homem no somen te partedo da do e produto do dado, mas c o r r e l a t o do da do ( . . . ) vem ao mundo como i g u a lao mundo 9 5 .

    Se a e x p e r i nc ia n o sp e r m i t ea d q u i r i r conhecimentos, nem t u d o no c o n h e c i -mento n o s p o r e l a ensinado : q u a l q u e rc o i s a sempre j c o n h e c i d a ,no hg n e s et o t a ldo s e n t i d o o a p r i o r i p r e c i s a m e n t ea q u i l od e que no h gnese 9 6 .

    A verdadeira gnese no po der s e r , de modo nenhum, aquela q ue s e a t ma um dos polos da r e l a o , dotando-o do princpio da anterioridade, a q ue depoiss e s e g u i r i a o outro A verdadeira gnese i r Dufrenne e r i a precisamente

    9 1 E . LEVINAS, A p r i o r i e t s u b j e c t i v i t i n En dcouvrant I e x i s t e n c e a vec H us s er l e i

    Heidegger. P a r i s , J . Vr i n , 1 9 8 8 , 1 8 1 .9 2 M. DUFRENNE, L i n v e n t a i r e des A p r i o r i : Recherche de l o r i g i n a i r e . P a r i s , C h r i s t i a nBourgois E d i t e u r 1 9 8 1 , 8 .

    9 1 I b i d . 8 - 9 e c f . M. DUFRENNE, J a l o n s . La Haye , Mart inus N i j h o f f , 1 9 6 6 , 1 8 - 1 9 .9 4 C f . M. DUFRENNE, La n o t i o n d ' A p r i o r i . P a r i s , P. U . F. , 1 9 5 9 , 5 4 .9 5 M. DUFRENNE, L i n v e n t a i r e des A p r i o r i : Recherche de l o r i g i n a i r e . P a r i s , C h r i s t i a n

    Bourgois E d i t e u r 1 9 8 1 , 1 0 .

    p p . 361- 3 9 6 Revista Filosfica de Coimbra . 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    21/36

    A E s t t i c a de Dufrenne ou a Procura da Origem 3 81

    uma gnese do t r a n s c e n d e n t a l ,q ue f a r i a a p a r e c e r a o mesmo tempo o mundocomo campo t r a n s c e n d e n t a le o s u j e i t o t r a n s c e n d e n t a lcomo c o r r e l a t o d e s t emundo 9 7 .

    Deste modo, s a noo d e a p r i o r i , t o r n a d a d e novo fecunda n a f i l o s o f i ade Dufrenne, poder o f e r e c e r -n o s um v i s l u m b r e m a c t o a q u i l o que n o sa n t e c e d e ,ma s t a m b msimultaneamente n o s c o n s t i t u i : estamos a b e r t o sa o mundo;o mundo tem um s e n t i d o p r p r i oque podemos a p r e e n d e rp o r q u e ,v i r t u a l m e n t e ,e l e e s t j em n s e r e q u e re s s a mesma a b e r t u r ad e q ue f a l m o s .

    O a priori d-nos conta dessa harmonia pr-es tabelecida , desse entrelaa-mento e n t r e ns e o mundo, ou s e quisermos, (usando a terminologia de Merleau--Ponty), de q ue ns e o mundo s o m o s da mesma carne.

    A questo ser a de como pensar e s t e a priori s em fazer dele um poderno s so , ex clus ivo e , po r outro l a d o , como pens-lo tambm a l i , no mundo, na sc o i s a s , q u a s e i n d i f e r e n t e a ns conservando-se na s ua espessura e densidade? E , no entanto, paradoxalmente , o sentido como q ue do a l t o da s ua auto-sufi-cincia, aguarda-nos para q ue possa s e r conhecido. Ser talvez necessrior e f e r i r aqui q ue a palavra sentido na s ua r a z designa originariamente o pro-cesso de i r a t junto de a l g o , donde p r o v m a c a r a c t e r s t i c a fundamental dosentido: a dua lidade dos r e l a t a e a relao entre e l e s . Da a t r p l ic e dimensode s e n t i d o : o s u j e i t o q ue v a i ou s e d i r i g e , o pr oc es s o de i d a e o o u t r o , termosdo movimento e s ua primeira e mais importante condio 9 8 . Ora, ser e s t emovimento de i d a a t ao o u t r o , pelo qual s e d o enc ont r o e n t r e s u j e i t o eobjectoq ue a noo de a p r i o r i procura da r c o n t a .

    A e s t e propsito, Levinas denunciar um do s t r a o s ma is ma r ca nt es da f i l o -s o f i a contempornea que, apesar do s eu ` ontologismo , incapaz de esquecerK a n t A manifestao do s e r , e no o ju zo do pensador, d e f i n e , com e f e i t o ,para Heidegger como j pa ra H us s er l fenmeno o r i g i n a l da verdade.A forma como o Ser do sendo s e most ra ou s e dissimula, comanda pensamento,cultura e h i s t r i a ; o s e r q ue d q ue pensar. Mas o pensador ou o s u j e i t o ou ohomem necessrio ao Ser q ue resplandece. A f i l o s o f i a con tempornea aomesmo t empo a n ti - id e a l i s t a e cuidadosa

    dolugar e da misso nicas do homem

    na economia g e r a l do Ser 9 9 .

    Por outro l a d o , como pensar e s t a simultaneidade do homem e do mundo, aq ue o a priori no s convida, seno a p a r t i r de uma deiscncia sempre j em curso?

    Ganha a s s i m sentido o gesto de Dufrenne de r e s t a u r a r e v i v i f i c a r a noode a p r i o r i , dotando-o d e uma dupla f a c e o a p r i o r i r e n a s c e n a f i l o s o f i acontempornea como t e n t a t i v a d e s u t u r a oda f e r i d a .

    1 6 M. DUFRENNE, La n o t i o n d ' A p r i o r i . P a r i s , P. U . F. , 1 9 5 9 , 6 2 .(Nas prximas r e f e r n c i a se s t a obra aparecer des ignada do s e g u i n t emodo: La n o t i o n )9 7 M. DUFRENNE, L i n v e n t a i r e des A p r i o r i : Recherche de l o r i g i n a i r e . P a r i s C h r i s t i a n

    Bourgois E d i t e u r 1 9 8 1 , 1 0 .(Nas prximas r e f e r n c i a se s t a obra aparecer designada do s e g u i n t emodo: L i n v e n t a i r e )9 6 M. B . PEREIRA, Experincia e s e n t i d o . B i b l o s , LV , 1 9 7 9 , 2 94 .

    E . LEVINAS, a r t c i t . , 1 7 9 - 1 8 0 .

    Revista F i l o s j i c a de C o i m b r a . 6 ( 1 9 9 4 ) p p . 3 6 1 - 3 9 6

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    22/36

    3 82 Eunice Pinho

    Atentemos um pouco mais pormenorizadamente no s e n t i d o d e s t a n o o ,s emdvida complexa, ma s pea chave n o pensamento de Dufrenne. No o b s t a n t er e c o n h e c e ra s u a d v id a p a r ac o m K a n t , s e r s o b r e t u d o d eH u s s e r le S c h e l e rquei r r e c e b e ra noo d e a p r i o r i m a t e r i a l . m a t e r i a l .

    O a p r i o r i no s e n t i d o m a t e r i a l , t a l como o d e f i n e Dufrenne, insubmissoa o s c r i t r i o s k a n t i a n o sd e u n i v e r s a l i d a d ee n e c e s s i d a d e ,apenas a p l i c v e i s a o sj u z o s e que determinam a s u a c l a u s u r an o f o r m a l i s m o : M e s m o quando o campodo a p r i o r i se e s t e n d e r m o r a lou e s t t i c a , sempre em j u z o s a p r i o r i ques e e x p r i m i r e p o r c r i t r i o s l g i c o s que s e r determinado 1 0 0 .

    Ora, s e o a p r i o r i material no s e submete aos c r i t r i o s kantianos, agora os eu carcter r e l a t i v o e histrico q ue vem ao de cima e q ue importa sublinhar.Por i s s o , Levinas, referindo-se a L a notion d'a p r i o r i , apresentar o projectodufrenniano pelas seguintes p a l a v r a s : A f irmar q ue e x i s t e uma funo i r r e d u t v e l

    do s u j e i t o transcendental, sem recusar desdenhosamente, como faz o idealismot r a d i c i on a l , a s motivaes q ue conduzem a um certo materialismo, historicismoe sociologismo a l o projecto deste l i v r o sobre a noo de a priori 1 0 1 .A s ua obra p o s t e r i o r : L'inventaire des a p r i o r i : Recherche de 1 o r i g i n a i r e manter-- s e - f i e l a e s t e i n t e n t o .

    O a p r i o r i , considerado na s ua parte subjectiva, definido po r Dufrennecomo a m a r c a inengendrada de um sabe r v i r t u a l , de q ue no podemos s i t u a r os eu comeo h i s t r i c o . Contudo e como q ue paradoxalmente, esse s aber s encon-t r a a s ua actualizao e realizao no t empo s e o a priori experimentadopor uma conscincia q ue deve s e r singular para o experimentar, e l e no maisu n i v e r s a l , histrico 1 0 2 .

    Qualquer c o i s a no homem t r a z p o i s , o s t r a o s d e uma origem s em tempo,i m e m o r i a l ,ma s a i n d a enquanto s e r h i s t r i c o que e s sa a n t e r io r id a d er a d i c a ls e d i z . A s u a a b e r t u r aa o o u t r o , a o novo que c h e g a , e n co n t r ao s e u fundamentono a p r i o r i , t em apenas como l u g a r d e r e a l i z a oa p r p r i ah i s t r i a o h ,p o i s , e x p e r i n c i a ,no s e n t i d o a u t n t i c o , que possa s e r s u b t r a d aa o tempo e q ueno mergulhe a s s u a s r a z e s no mundo da v i d a . S o emp r ic o condio der e v e l a odo a p r i o r i .

    Por o u t r o l a d o , Dufrenne c o n s i d e r aa i n d a que e s t e s a b e r v i r t u a l , e s t a p r --compreenso do s e n t i d o q ue a n t e c e d ee p r e p a r aa c o n sc i n c i a p a r aa c o l h e rc e r t o sa s p e c t o sdo mundo, e n c o n t r a - s eno s a n v e l i n d i v i d u a l , no corpo p r p r i o ,comopode a i n d a em n e l a s e d i s s o l v e r e d i m e n t a r - s enuma c u l t u r a .

    Dufrenne c l a s s i f i c a r de r u i n o s a e s t a economia da noo de a p r i o r i : A onde a gnese pode s e r s e g u i d a ,no h l u g a r p a r a i n v o c a ro i n e n g e n d r v e l( . . . ) .No podemos r e d u z i r o a p r i o r i a o passado i n d i v i d u a lou s o c i a l , e no podemoscompreender o p a s s a d os em d a r l u g a r a o a p r i o r i . Por o u t r o l a d o , o a p r i o r i comov i r t u a l no pode i d e n t i f i c a r - s e r e c o r d a od e p o s i t a d a n amemria; a s minhas

    1 0M. DUFRENNE, La n o t i o n , 6 8 .1 0 1E . LEVINAS, A p r i o r i e t s u b j e c t i v i t i n En dcouvrant t e x i s t e n c e avec Husser l e t

    Heidegger. P a r i s , J . Vr i n , 1 9 8 8 , 1 7 9 .1 1 2M. DUFRENNE, L i n v e n t a i r e , 2 3 .

    p p . 3 6 1 - 3 9 6 Revis ta Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994)

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    23/36

    A E s t t i c a de Dufrenne ou a Procura da Origem 3 8 3

    r e c o r d a e sforam a d q u i r i d a s ,trazem uma d a t a e a minha memria o r e c o l h i -mento da minha e x p e r i n c i a .P e l o c o n t r r i o , o a p r i o r i em mim, h i s t r i c o s emt e r uma h i s t r i a , no p o r t a d o rd e uma d a t a , a p o s s i b i l i d a d eda minha e x p e -

    r i n c i a e da minha memr ia1 0 3

    Se o a priori s e d i z apenas na e pela h i s t r i a , no s e deve pensar q ue o sen-t i d o s e mantenha i n a l t e r v e l , i n t a c t o e d i t o de uma vez po r todas na s ua t o t a l i -dade sentido q ue leva a m a r c a do t empo sempre p a r c i a l e o a priori e s t sempre por e x p l i c i t a r 10 4

    Esta t e s e de Dufrenne pode, primeira v i s t a , parecer contraditria com aafirmao sempre re tomada da imediatidade do s e n t i d o . No esqueamos contudoq ue a palavra s entido na s ua r a i z a lem (derivada do termo sinn) significacaminho 1 0 5 .Ora, pensar o sentido como caminho a c e i t a r o adiamento inexor-

    v e l da s ua conclusividade; tambm pressupor q ue o novo pode sempre irromper, , por i s s o , a c e i t a r a inexistncia de uma perspectiva p r i v i l e g i a d a , f o r a do t empoe do espao, q ue most rasse o caminho na s ua i n t e i r e z a .

    Procurando da r sentido t e s e de q ue h um a p r i o r i de o r d e m afectiva am a r c a r a especificidade da experincia e s t t i c a , Dufrenne f a r notar q ue aafectividade no c o n s t i t u i um simples meio a t r a v s do q u a l o a p r i o r i s e r e v e l a r i a .Mas o afectivo pertence s ua natureza mesma a l como o a priori do enten-dimento t em uma natureza racional 1 0 6 .Contudo, sendo o afectivo o traoespecfico destes a p r i o r i , no h aqui lugar para s e pensar numa e s t t i c a

    i d e n t i f i c v e l a uma experincia puramente subjectiva e i nd iv id ua l , nem t o poucopara uma e s t t i c a o b j e c t i v i s t a , O q ue chamamos sentimento, e q ue i r r e -dutvel a o desejo, somente uma c e r t a forma ainda desinteressada, apesar dot i p o de participao q ue e l a supe, de conhecer uma qualidade afectiva comoestrutura de um objecto ( . . . ) s e n t i r experimentar um sentimento, no como umestado do meu s e r , mas enquanto propriedade do o b j e c t o . O afectivo no emmim seno a resposta a uma c e r t a e s t r u t u r a afectiva do o b j e c t o . E , inversamente,e s t a e s t r u t u r a c onfir ma q u e o objecto para um s u j e i t o , no sendo pois r e d u t v e l s dimenses da objectividade, q ue o tornar iam o bj ec to pa r a ningum: h nele

    qua lquer coisa q ue no pode s e r conhecida s eno por uma espcie de simpatiae na c ondio de q ue o s u j e i t o s e abra a ele 1 0 7 .Alm d i s s o , a s qualidadesafectivas, q ue emanam do objecto e s t t i c o , ao se rem designadas antropo-morfi camente espelham a complementar idade c o n s t i t u t i v a da experincia e s t t i c a : O horrvel de Bosch , a a l e g r i a de Mozar t , o trgico de Macbeth , o i r r i s r i o deFaulkner des ignam tanto a atitude do s u j e i t o como uma c e r t a estrutura doobjecto ' 1 0 8 .O a priori afectivo r e v e s t e - s e , assim, de um carcter singular umavez q ue designa a e s t r u t u r a de um objecto e s t t i c o especfico e concreto e aindaporque o s u j e i t o s u s c e p t v e lde experimentar em s i um sentimento, no o s u j e i t o

    1 0 3I b i d . , 4 4 , sublinhados n o s s o s .1 1 aC f . M. DUFRENNE, La n o t i o n , 2 5 7 .1 0 5C f . M. B . PEREIRA, Experincia e s e nt id o . B i b l os ,LV , 1 9 7 9 , 2 9 4 .1 0 6C f . I b i d . , 5 4 2 .1 0 7Ib id . , 5 4 4 . RI b i d . 5 4 4 .

    R e v i s t a F i l o s f i c a d e Coimbra n . 6 ( 1 9 9 4 ) pp . 361-396

  • 8/14/2019 estetica_dufrenne

    24/36

    3 8 4 Eunice Pinho

    impessoal k a n t i a n o , ma s um s u j e i t o i r r e d u t i v e l m e n t es i n g u l a r ; em suma, umser-no-mundo.

    A experincia e s t t i c a a s s u m e em Dufrenne um carcter verdadeiramentee x i s t e n c i a l : A experincia de q ue e s t e a priori funda a possibilidade uma

    experincia a q ue devemos c h a m a r e x i s t e n c i a l e os objectos desta experinciacompem um mundo apenas acessvel ao sentimento 1 0 9 .No s e t r a t a pois deum mundo susceptvel de um conhecimento universalmente v l i d o . A relao aoinundo, prpria da experincia e s t t i c a , e s t para a l m de uma simples relaocognitiva entre u n i s u j e i t o e um objecto radicalmente d i s t i n t o s e i n d i f e r e n t e s ,

    mas o s u j e i t o deve e l e mesmo reconhecer-se e exprimir-se no mundo do objectoe s t t i c o .

    A r t i s t a e e s p e c t a d o rencontram-se assim u n i d o s numa mesma e x p e r i n c i ag i z a d a no p e l o f a z e r , p e l o c r i a r, propriamente d i t o , ma s p o r uma mesmaa f i n i d a d e assumida com o o b j e c t o e s t t i c o .

    O mundo do objecto e s t t i c o assim, segundo a expresso de Dufrenne,s imultaneamente acto e destino do s u j e i t o 1 1 0 . acto de um s u j e i t o enquantoo mundo do objecto e s t t i c o precisa de um s u j e i t o (uma testemunha) para o d i z e r ,mas tambm destino , no sentido em que, na condio de dizer esse mundoe de o e x p l i c i t a r q ue o s u j e i t o e s e diz a s i mesmo O s u j e i t o , em lugar desimplesmente s e projectar a s i mesmo no o b j e c t o , recebe do objecto e s t t i c o um(novo) modo de s e r . Autocompreende-se , deix a ndo -s e c onduz ir na direco des e n t i d o , ou na a tmos fer a de mundo , q ue o objecto e s t t i c o prope.

    Entre o a priori cosmolgico e o a priori e x i s t e n c i a l no h a s s i m qualqueroposio ou d i s t n c i a M o z a r t a serenidade, Beethoven a violncia p a t t i c a ; O a priori afectivo c o n s t i t u i um mundo consistente e coerente porque residenaquilo q ue h de ma is pr o fu nd o num s u j e i t o , como tambm o q ue h de ma isprofundo no objecto e s t t i c o 1 1 1

    Ora s e r j u s t a m e n t ee s t a a f i r m a od e que o cosmolgico e o e x i s t e n c i a l nos o seno a s duas f a c e s do mesmo a p r i o r i , o u , se quisermos, da mesmaq u a l i d a d ea f e c t i v a , que conduzir Dufrenne a e f e c t u a r a pass agem/ salto dop l a n o t r a n s c e n d e n t a lp a r a o p l a n o o n t o l g i c o A condio d e p o s s i b i l i d a d et o r n a - s e uma p r o p r i e d a d edo s e r : o a p r i o r i no pode s e r a o mesmo tempo u madeterminao do o b j e c t o e uma determinao do s u j e i t o seno porque umap r o p r i e d a d edo s e r , simultaneamente a n t e r i o r a o s u j e it o e a o o b j e c t oe que t o r n ap o s s v e l a a f i n i d a d e do s u j e it o e do o b j e c t o 1 1 2 .

    O encontro com o inencontrvel a Natureza naturante

    Na s ua obra Phnomnologie de I 'exprience esthtique Dufrenne most ra -

    - s e j s e n s v e l ao problema q ue a noo de a p r i o r i coloca. No obstante permit ir

    1 1 1 ` 1I b i d . , 552.Cf. I b i d . , 553.I b i d . , 55 e 554.

    1 1 2I b i d . 5 6 1 .

    p p . 3 6 1 - 3 9 6 Revista Filosfica de C o i m b r a . 6 (1994)

  • 8/14/2019 este