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VIVER SAUDÁVEL . A revista dos profissionais de nutrição 6 ENTREVISTA «ESTAMOS A EVOLUIR DE “SOMOS AQUILO QUE COMEMOS” PARA “COMERMOS AQUILO QUE SOMOS”» Coordenadora do Departamento de Alimentação e Nutrição (DAN) do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) Falar de alimentação e nutrição sem falar do trabalho que Maria Antónia Calhau tem de- senvolvido é praticamente impossível. Com 44 anos de carreira ao serviço da saúde públi- ca, o seu percurso confunde-se com a história do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) e do departamento que hoje coordena, e que ajudou a construir de raiz. Em entrevista à VIVER SAUDÁVEL, confessa que o «serviço público» é aquilo que a move e que o grande desafio do DAN é inovar, sempre. A responsável acredita ainda que o futuro da nutrição passa, obrigatoriamente, pela nutrigenómica. VIVER SAUDÁVEL (VS) - É complicado dissociar o seu nome do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA)… Maria Antónia Calhau (MAC) - Neste momento é. Sou a pessoa mais antiga e estou aqui desde o início. VS – 44 anos de carreira… É uma responsabilidade acres- cida ou encara isso com naturalidade? MAC – Com muita naturalidade, porque tenho tido muita sorte com as pessoas com quem tenho trabalhado, quer as pessoas que estiveram a dirigir-me e que fizeram a minha formação, quer as direções do Instituto, quer as equipas que formei e aqueles em quem investi. Por isso, considero-me uma pessoa muito feliz na- quilo que faço e é por isso que ainda cá estou. VS – Pode contar-nos um pouco do seu percurso? MAC – Tive um percurso muito feliz. Sou licenciada em química (quando comecei a trabalhar nem havia nutricionistas) e vim para aqui trabalhar para o laboratório, que era uma coisa que eu adora- va. A única coisa que tenho saudades é de trabalhar na bancada. VS – Quais as principais diferenças que identifica desde que começou a trabalhar no INSA? MAC – Há imensas. Quando eu comecei, o problema da alimen- tação era a higiene e a sanidade. Era este o fundamento do de- partamento, que esteve na génese do Ricardo Jorge, porque a primeira preocupação do INSA eram as condições sanitárias, quer das águas quer dos alimentos. A nutrição só veio depois. Só depois da higiene e da sanidade dos alimentos é que aparece a composição dos alimentos, com o grande Gonçalves Ferreira, que foi quem publicou a primeira tabela de composição dos alimen- tos portugueses e com quem tive o prazer e honra de trabalhar. A publicação da primeira tabela de composição dos alimentos é um marco na nossa nutrição. Neste momento, já estamos mais preocupados com a nutrige- nómica. Estamos a evoluir do “somos aquilo que comemos” para “comermos aquilo que somos”, ou seja, vamos estudar o nosso genoma e ver o que é que devemos comer. Por isso, posso dizer que acompanhei toda esta evolução. VS – Identifica três “patamares” de evolução. O que pode- mos esperar deste último, relativo à nutrigenómica? MAC – Acho que é um desafio enorme para a investigação mas é qualquer coisa que não está tão perto assim, apesar de já estar- mos a caminhar para lá. Nesse sentido, o que fazemos hoje em dia, no departamento, não tem nada a ver com o que fazíamos quan- do aqui entrei. Neste momento, fazemos, por exemplo, estudos de bioacessibilidade, como é que os alimentos são processados dentro do organismo. Antes, trabalhávamos mais nas recomen- dações, análise de alimentos e a parte de nutrição com base no conhecimento que tínhamos da composição dos alimentos. Mari a Antónia Calhau

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Page 1: «ESTAMOS A EVOLUIR DE “SOMOS AQUILO QUE … · compostos que antigamente desconhecíamos que existiam nos ali-mentos e que, agora, conseguimos determiná-los e estudar a sua ação

VIVER SAUDÁVEL . A revista dos profissionais de nutrição 6

ENTREVISTA

«ESTAMOS A EVOLUIR DE “SOMOS AQUILO QUE COMEMOS” PARA “COMERMOS AQUILO QUE SOMOS”»

Coordenadora do Departamento de Alimentação e Nutrição (DAN) do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA)

Falar de alimentação e nutrição sem falar do trabalho que Maria Antónia Calhau tem de-senvolvido é praticamente impossível. Com 44 anos de carreira ao serviço da saúde públi-ca, o seu percurso confunde-se com a história do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) e do departamento que hoje coordena, e que ajudou a construir de raiz. Em entrevista à VIVER SAUDÁVEL, confessa que o «serviço público» é aquilo que a move e que o grande desafio do DAN é inovar, sempre. A responsável acredita ainda que o futuro da nutrição passa, obrigatoriamente, pela nutrigenómica.

VIVER SAUDÁVEL (VS) - É complicado dissociar o seu nome do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA)…Maria Antónia Calhau (MAC) - Neste momento é. Sou a pessoa mais antiga e estou aqui desde o início.

VS – 44 anos de carreira… É uma responsabilidade acres-cida ou encara isso com naturalidade?MAC – Com muita naturalidade, porque tenho tido muita sorte com as pessoas com quem tenho trabalhado, quer as pessoas que estiveram a dirigir-me e que fizeram a minha formação, quer as direções do Instituto, quer as equipas que formei e aqueles em quem investi. Por isso, considero-me uma pessoa muito feliz na-quilo que faço e é por isso que ainda cá estou.

VS – Pode contar-nos um pouco do seu percurso?MAC – Tive um percurso muito feliz. Sou licenciada em química (quando comecei a trabalhar nem havia nutricionistas) e vim para aqui trabalhar para o laboratório, que era uma coisa que eu adora-va. A única coisa que tenho saudades é de trabalhar na bancada.

VS – Quais as principais diferenças que identifica desde que começou a trabalhar no INSA? MAC – Há imensas. Quando eu comecei, o problema da alimen-tação era a higiene e a sanidade. Era este o fundamento do de-partamento, que esteve na génese do Ricardo Jorge, porque a

primeira preocupação do INSA eram as condições sanitárias, quer das águas quer dos alimentos. A nutrição só veio depois.

Só depois da higiene e da sanidade dos alimentos é que aparece a composição dos alimentos, com o grande Gonçalves Ferreira, que foi quem publicou a primeira tabela de composição dos alimen-tos portugueses e com quem tive o prazer e honra de trabalhar. A publicação da primeira tabela de composição dos alimentos é um marco na nossa nutrição.

Neste momento, já estamos mais preocupados com a nutrige-nómica. Estamos a evoluir do “somos aquilo que comemos” para “comermos aquilo que somos”, ou seja, vamos estudar o nosso genoma e ver o que é que devemos comer. Por isso, posso dizer que acompanhei toda esta evolução.

VS – Identifica três “patamares” de evolução. O que pode-mos esperar deste último, relativo à nutrigenómica?MAC – Acho que é um desafio enorme para a investigação mas é qualquer coisa que não está tão perto assim, apesar de já estar-mos a caminhar para lá. Nesse sentido, o que fazemos hoje em dia, no departamento, não tem nada a ver com o que fazíamos quan-do aqui entrei. Neste momento, fazemos, por exemplo, estudos de bioacessibilidade, como é que os alimentos são processados dentro do organismo. Antes, trabalhávamos mais nas recomen-dações, análise de alimentos e a parte de nutrição com base no conhecimento que tínhamos da composição dos alimentos.

Maria Antónia Calhau

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VIVER SAUDÁVEL . nº6 abril 2016 7

VS – Uma evolução enorme em 44 anos…MAC – Enorme! Nós sabíamos o que comíamos mas sabia-se pouco como é que esses alimentos eram depois absorvidos e in-teragiam no nosso organismo. Hoje em dia, já conseguimos per-ceber esta parte.

VS – Isso pode, de alguma forma, mudar a nutrição e a for-ma como nos relacionamos com a alimentação? MAC – Enquanto Instituto Nacional de Saúde, preocupamo-nos com aquilo que tem a ver com a saúde, por isso, com a relação entre alimentação e saúde, quer na parte de segurança e higie-ne, quer na parte da nutrição. Se pensarmos no genoma e na genética, nos polimorfismos, etc… Podermos adaptar a alimen-tação a essas pessoas que têm esses problemas e esses po-limorfismos, acho que é fundamental para a saúde. Vamos, de facto, conseguir que as pessoas sejam mais saudáveis, que é o que nós pretendemos. O caso simples da Doença Celíaca, por exemplo… Neste momento está perfeitamente identificado que a pessoa pode ter uma boa qualidade de vida se comer os alimentos certos. Para a população em geral, todos aqueles problemas comuns (que espero que se resolvam) como a redução do açúcar, a redução do sal, etc.

Cada vez sabemos mais porque a tecnologia permite-nos chegar a compostos que antigamente desconhecíamos que existiam nos ali-mentos e que, agora, conseguimos determiná-los e estudar a sua ação no organismo e ver, de facto, como é que podemos proteger a saúde.

VS – Como é que vê a massificação da informação sobre alimentação e nutrição, muitas vezes contraditória? Preo-cupa-a?MAC – Acho que é uma questão de educação, por isso, acho que temos de apostar muito na formação. É uma preocupação que também temos aqui no INSA, até com as crianças. Vamos às escolas, vamos fazer sessões para as crianças porque temos de começar com eles, de pequeninos. Se as pessoas tiverem educa-ção e formação conseguem distinguir o que está certo. Mas, in-formação a mais não faz mal. É preciso é saber distinguir o que é, de facto, conhecimento científico e o que é alarmismo. Acho que a desinformação só se pode combater com informação, educação e evidência científica.

VS – Tem dedicado a sua vida à saúde, em concreto, à ali-mentação e nutrição… Alguma razão em particular? MAC – O serviço público. No meu tempo, havia possibilidades e tive muitos convites e desafios para sair e ir para outros lados, mas o fazer serviço público e o servir a população é, para mim, fundamental, e sinto-me bem a fazê-lo, a ser útil à sociedade. E na área da saúde consigo realizar isso.

E mais ainda a transmissão do conhecimento. Eu dei aulas no Ins-tituto Superior de Ciências da Saúde, quando começou o curso de nutrição aqui em Lisboa, e foi uma experiência muito agradá-vel poder transmitir os conhecimentos aos jovens que estavam a começar. Sinto-me muito feliz por ver que grande parte dos meus alunos, hoje em dia, está a trabalhar pela nutrição. Isso é das coi-

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ENTREVISTA Maria Antónia Calhau

sas que dá satisfação a qualquer pessoa que contribuiu para a for-mação de pessoas que, neste momento, também estão a contribuir para a formação de outros e para o desenvolvimento desta área.

VS – Quais os principais desafios enquanto coordenadora do Departamento de Alimentação e Nutrição do Instituto Ricar-do Jorge?MAC – O maior desafio é fazermos sempre coisas novas, sermos pró-ativos. É o que a minha equipa faz: procura andar sempre à frente, fazer aquilo que os outros ainda não fazem, não fazer mais do mesmo, é inovar! E isso é o grande desafio.

VS – E têm estado à altura desse desafio?MAC – Acho que sim, que conseguimos. Por exemplo, em relação à tabela, tínhamos a do Dr. Gonçalves Ferreira, depois fizemos uma nova tabela, que começou por ser disponibilizada apenas em papel para agora estar no site do INSA e ser de consulta online para con-sulta. Neste momento, temos um portal novo de consulta em que vamos disponibilizar, para além da composição, os contaminantes, consumos, etc.

O desafio agora é virarmo-nos para as novas tecnologias, como é evidente. E temos tido colaborações com pessoas que estão a de-senvolver aplicações para telemóveis, etc. Tentamos acompanhar o desenvolvimento tecnológico e trabalhar em temas que sabe-mos que são importantes para a saúde.

Participámos numa “Network of Excelence” (EUROFIR) – a palavra excelência é um bocado presunçosa, mas de facto era o nome dado pela Comissão Europeia para o financiamento, e não gosto muito de usar a palavra excelência, mas se pensarmos a nossa visão, essa deve ser sempre caminhar para a excelência. E o caminho para a excelência é, de facto, o nosso objetivo.

Fazemos bastante investigação, praticamente toda com financia-mento externo. Os nossos investigadores têm a preocupação de se candidatarem a tudo e mais alguma coisa, e conseguem, são bem-sucedidos, são bons. Como imagina, o orçamento do Instituto não dá para fazer toda a investigação que gostaríamos. Para estamos na linha da frente, temos de apostar em financiamentos externos.

VS – Para além da investigação, que outras atribuições têm aqui no DAN?MAC – Uma das funções essenciais do INSA é a observação em saúde. Neste âmbito, somos responsáveis por vários projetos de vigilância. Por exemplo, portal Portfir resulta, no fundo, da compila-ção de dados de vigilância.

Neste momento, somos ponto de contacto para a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA). Temos um sistema de transmissão eletrónica de todos os dados do controlo oficial dos contaminantes em Portugal, para além dos dados que consegui-mos compilar da nossa rede de contactos, desde universidades a todos os laboratórios que produzem dados analíticos. Por isso, somos nós que fazemos a transmissão quer dos contaminantes químicos quer dos microbiológicos. Neste momento, estamos a desenvolver este trabalho até para resíduos de medicamentos ve-

terinários nos alimentos. E isto é tudo financiado pela EFSA, com quem trabalhamos também na parte de transmissão dos surtos de toxinfeção alimentar. Apoiamos também as autoridades de saú-de no esclarecimento dos surtos de toxinfeção alimentar e depois transmitimos os dados nacionais para a EFSA.

VS - O DAN colabora com outras instituições e organismos nacionais e internacionais de renome…MAC – Somos Centro Colaborativo da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a nutrição e obesidade infantil desde o ano pas-sado. Termos conseguido este reconhecimento da OMS é algo que me deixa bastante orgulhosa, até porque já tínhamos feito várias tentativas e a OMS só reconhece como Centro Colaborativo aque-las entidades com as quais já tem uma relação de trabalho contí-nua. Um exemplo dessa colaboração é a coordenação do estudo COSI em Portugal, desde 2008. As nossas relações com a OMS são muito boas, quer na parte da nutrição quer na área da segurança alimentar. Há muito tempo que traduzimos para português os ma-nuais que a OMS produz em inglês. Acredito que Portugal deveria ter um papel mais ativo nesta questão de produção de informa-ção e conhecimento científico em português, por isso, produzimos muita informação em português que distribuímos por todos os países lusófonos.

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Somos ainda responsáveis pela coordenação dos programas de avaliação externa da qualidade em microbiologia de alimentos e águas, em que temos, além de todos os laboratórios nacionais, Angola, e estamos em negociações com os outros países de ex-pressão portuguesa, até porque temos uma parceria com o Public Health of England e fornecemos todos os relatórios e todas as in-formações que daí advêm em português.

VS – “Traduzir” o conhecimento científico para a população é um desafio?MAC – É, e fazemo-lo com imenso gosto. Não podemos estar aqui fechados e falar apenas com as autoridades de saúde. Precisamos chegar às pessoas e se conseguirmos que as pessoas passem a comer menos sal e a lavar as mãos antes de ir para a mesa, já esta-mos a cumprir o nosso serviço público e a nossa missão.

VS – E em relação aos nutricionistas? De que forma são uma ferramenta e um aliado desta profissão?MAC – Temos procurado ser. Antes existia o Centro de Estudos de Nutrição, que já tinha nutricionistas mas funcionava um pouco à margem do departamento. Só a partir do momento em que fiquei com a coordenação do departamento é que houve esta junção. Os nutricionistas estavam mais afastados da produção dos dados analíticos, faziam recomendações, pareceres, estudos, compilavam dados. A junção entre o Centro de Estudos de Nutrição, que publi-cava as recomendações da alimentação saudável, e a parte labora-torial foi um casamento excelente.

Naquela experiência que tivemos com o EUROFIR constatei que os nutricionistas e as pessoas que compilavam dados, estavam afas-tadas de quem os produzia. Não sabiam como é que o dado era pro-duzido e a sua qualidade. Juntar, nesta rede, os compiladores dos dados, que no fundo eram nutricionistas que trabalhavam com os dados, com os produtores dos dados, foi uma experiência enrique-cedora e de grande trabalho. Demorámos cinco anos e só ao fim do terceiro ano é que passámos a falar a mesma linguagem.

Quando estive no Instituto Superior de Ciências da Saúde, a dar o cur-so que, na altura, era Nutrição e Engenharia Alimentar, procurávamos, para além da parte da nutrição, dar a parte laboratorial, ou seja, como é que se chega à produção dos dados que são, depois, usados pelos nu-tricionistas. Tenho aqui pessoas, no laboratório, que são nutricionistas.

VS – A multidisciplinariedade é importante?MAC – Fundamental. São precisas equipas multidisciplinares e é o que temos aqui no DAN. Temos desde nutricionistas, biólogos, químicos, microbiologistas, a engenheiros alimentares. Tem de ser uma equipa multidisciplinar porque a nutrição é uma ciência cada vez mais vasta. Temos também a grande vantagem de fazer parte do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. O nosso de-partamento não está sozinho. O que é uma riqueza!

VS – Essa é também uma das razões pela qual conseguem estar na linha da frente?MAC – Claro. Dentro do Instituto Ricardo Jorge, temos todas as áreas científicas que precisamos para o desenvolvimento do nos-so trabalho. Não há dinheiro que pague a riqueza de conhecimento que existe no Instituto.

VS – Um dos desafios futuros na área da nutrição e alimen-tação prende-se com o “terceiro patamar” de que falávamos anteriormente… MAC – Isso arrasta problemas éticos muito complicados e terá de ser tratado com “pinças”. Acho que isso já não vai acontecer no meu tempo, o que tenho pena, porque vão ter de se resolver muitos outros problemas antes de lá chegar. Não quero dizer com isto que a ciência pare. A ciência não para e vai-se desenvolvendo.

Além disso, levantam-se problemas económicos, financeiros e sociais, porque este processo pode criar condições de desigualda-de entre os mais fracos e os mais fortes, quem tem mais e menos capacidade financeira... Mas o futuro passará por aqui, como é evi-dente. No fundo, é uma alternativa à engenharia genética. Quem é que não quer ser saudável?

VS – Além deste, que outros desafios se colocam à nutrição e alimentação num futuro mais próximo? MAC – O maior desafio que temos é o combate à obesidade e à obesidade infantil, assim como reduzir o consumo de sal.

VS – E como é que isto se faz?MAC – Só se consegue com formação e educação. Não há outro caminho. A educação do paladar é importantíssima. Todos nós fo-mos habituados a comer com sal, por exemplo. Se o nosso paladar está educado para comer com sal, como revertemos isto? Portugal come salgado porque começamos por conservar os alimentos em sal. Por isso, tem de se apostar, de facto, na educação do gosto e dos paladares que, por aquilo que se sabe hoje, começa ainda na barriga da mãe e durante os primeiros meses de vida.

Claro que podemos ir corrigindo. É possível. No caso do pão, por exemplo, ninguém deu por isso. Não houve qualquer revolta porque o pão passou a ter menos sal. As pessoas adaptam-se!

VS – Em 2012, recebeu a Medalha de Ouro dos Serviços Dis-tintos do Ministério da Saúde… MAC – É uma grande honra. Eu, de facto, fiz alguma coisa, mas não fiz sozinha. Nada se faz sozinho. Eu sou uma pessoa feliz com a equipa que tenho, porque de facto são excecionais. É a equipa fan-tástica, como eu lhes chamo!

VS – Se tivesse que nomear um projeto marcante nestes 44 anos de carreira, qual seria?MAC – Tenho vários, mas reconstruir o departamento foi, de facto, um marco. O Instituto foi encerrado em 97 e tivemos todos que sair daqui. Fomos acolhidos pelo Laboratório Nacional de Investigação Veterinária, em Benfica, onde ficámos durante cinco anos.

Foi nessa altura que fiquei com a coordenação do departamento. Foi um período muito difícil... Mudar as pessoas todas para lá, estar-mos lá. Depois, fazer todas as obras necessárias para regressar-mos, arranjar financiamento para equipar os laboratórios, tudo isso foi muito complicado. Praticamente, partimos do zero. E recons-truimos tudo com as pessoas que ficaram. Nessa altura, houve também muitas pessoas que deixaram o Instituto, mas, apesar de todas essas dificuldades, conseguimos reconstruir o Departamen-to desde as suas infraestruturas aos recursos humanos.

ENTREVISTA Maria Antónia Calhau