estado_constituição_e_direitos_sociais

7
127 REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO CARLOS MIGUEL HERRERA ** ESTADO, CONSTITUIÇÃO E DIREITOS SOCIAIS * * A versão original deste trabalho foi apresentada ao Colóquio Internacional Droits de l’homme, Menschenrechte, Civils Rights, organizado pelo Centre Marc Bloch de Berlim na Humbolt Universität, em 15 de junho de 2002, e publicada na Revue Universelle des Droits de l’Homme, vol. 16, nº 1-4, de 29 de outubro de 2004, pp. 32-39. A versão em espanhol foi publicada na Revista Derecho del Estado nº 15, dezembro de 2003, pp. 75-92. A presente tradução da versão espanhola para o português foi feita por Luciana Caplan. ** Professor Catedrático de Direito Público, Université de Cergy-Pontoise, França. Membro do Institut Universitaire de France e Diretor do Centre de Philosophie Juridique et Politique da Université de Cergy-Pontoise. Resumo: No presente trabalho, pretende-se abordar a questão concernente a serem os direitos sociais considerados ou não, pela doutrina, como direitos do homem, examinando-se o grau -se existe- de sua exigibilidade, se podem ser reclamados do Estado, especialmente em se cuidando de um Estado Democrático, analisando-se as diversas essências dos direitos do homem e dos direitos sociais, para o que se procede a um olhar sobre o surgimento destes, denunciando-se, outrossim, a existência de uma tensão dos direitos sociais, colocando-os entre dois polos, o de emancipação social e o de integração social. Para atingir os objetivos visados, faz-se um bosquejo histórico, com as vistas voltadas para a situação/evolução da questão social em alguns países, em especial a Alemanha e a França, mas sem olvidar da relevante contribuição mexicana, com a sua Constituição de 1917; nesse caminhar, são feitas referências a Revolução Social, ao Constitucionalismo Social e ao Estado de Bem-Estar, sempre com vistas ao surgimento e espaço pretendido pelos direitos sociais em cada qual, após o que são apresentadas as conclusões obtidas.” Palavras-chave: direitos sociais; direitos do homem; direito; direito ao trabalho; Estado; Estado Social”. 1 INTRODUÇÃO Convém, talvez, começar precisan- do que a expressão “direitos sociais” será utilizada aqui de maneira convencional: seu uso não presume sua pertinência teórica. Contudo, não é casual que partamos da de- nominação corrente – que resume por sua vez a de «direitos econômicos, sociais e cul- turais» -, já que os problemas de expressão são centrais neste campo do direito, talvez mais que em qualquer outro, sobretudo quan-

Upload: fls-kelsen

Post on 02-Jan-2016

12 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Estado_Constituição_e_Direitos_Sociais

127REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

CARLOS MIGUEL HERRERA**

ESTADO, CONSTITUIÇÃO

E DIREITOS SOCIAIS*

*A versão original deste trabalho foi apresentada ao Colóquio Internacional Droits de l’homme, Menschenrechte,Civils Rights, organizado pelo Centre Marc Bloch de Berlim na Humbolt Universität, em 15 de junho de 2002, epublicada na Revue Universelle des Droits de l’Homme, vol. 16, nº 1-4, de 29 de outubro de 2004, pp. 32-39. Aversão em espanhol foi publicada na Revista Derecho del Estado nº 15, dezembro de 2003, pp. 75-92. A presentetradução da versão espanhola para o português foi feita por Luciana Caplan.

**Professor Catedrático de Direito Público, Université de Cergy-Pontoise, França. Membro do Institut Universitairede France e Diretor do Centre de Philosophie Juridique et Politique da Université de Cergy-Pontoise.

Resumo: No presente trabalho, pretende-se abordar a questão concernente aserem os direitos sociais considerados ou não, pela doutrina, como direitosdo homem, examinando-se o grau -se existe- de sua exigibilidade, se podemser reclamados do Estado, especialmente em se cuidando de um EstadoDemocrático, analisando-se as diversas essências dos direitos do homem edos direitos sociais, para o que se procede a um olhar sobre o surgimentodestes, denunciando-se, outrossim, a existência de uma tensão dos direitossociais, colocando-os entre dois polos, o de emancipação social e o deintegração social. Para atingir os objetivos visados, faz-se um bosquejohistórico, com as vistas voltadas para a situação/evolução da questão socialem alguns países, em especial a Alemanha e a França, mas sem olvidar darelevante contribuição mexicana, com a sua Constituição de 1917; nessecaminhar, são feitas referências a Revolução Social, ao ConstitucionalismoSocial e ao Estado de Bem-Estar, sempre com vistas ao surgimento e espaçopretendido pelos direitos sociais em cada qual, após o que são apresentadasas conclusões obtidas.”

Palavras-chave: direitos sociais; direitos do homem; direito; direito aotrabalho; Estado; Estado Social”.

1 INTRODUÇÃOConvém, talvez, começar precisan-

do que a expressão “direitos sociais” seráutilizada aqui de maneira convencional: seuuso não presume sua pertinência teórica.

Contudo, não é casual que partamos da de-nominação corrente – que resume por suavez a de «direitos econômicos, sociais e cul-turais» -, já que os problemas de expressãosão centrais neste campo do direito, talvezmais que em qualquer outro, sobretudo quan-

Page 2: Estado_Constituição_e_Direitos_Sociais

128 REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

direitos individuais e «direitos sociais», às ve-zes tematizada por distinções do tipo «direi-tos de liberdade» e «direitos dívida» (droits-créances) ou de «direito (ou liberdade) de»e «direito a», implicando os primeiros em umaabstenção do Estado enquanto os segundosconduziriam a uma prestação material. Umavez definidos como obrigações (prestações)ligadas à atribuição de bens, considera-seque os «direitos sociais» não são direitos fun-damentais no mesmo sentido que os direitosdo homem, já que estes, por definição, pre-cedem à sociedade, enquanto que os outrossão obrigações que não existem até que setenha constituído a sociedade, um Estado quepermitirá que sejam colocados em funcio-namento os serviços públicos destinados asatisfazer as necessidades sociais por meiode prestações materiais.

Pretendemos discutir aqui esta repre-sentação que estabelece uma diferença deessência entre os direitos do homem e os«direitos sociais», em que as dificuldadestécnico-jurídicas para a realização efetivadestes últimos não seria mais que uma con-seqüência dessa natureza oposta. E porquenão há uma «natureza» própria aos direitossociais, é na história de sua constituciona-lização que se poderão determinar seus di-ferentes níveis de significação. Não é casu-al que a doutrina jurídica francesa apresen-te suas diferenças, ainda que de maneirasecundária, em termos de «gerações» dedireitos. Mas se esta distinção entre direitosdo homem e “direitos sociais” é, antes detudo, histórica, significa também que é con-tingente. Em todo caso, o primeiro obstácu-lo que se apresenta à juridicidade dos «di-reitos sociais», sempre em relação com osdireitos individuais, ou seja, que aqueles exi-gem uma ação positiva do Estado, não pa-rece um fundamento suficiente para cons-truir uma categoria teórica diferente. Ditode outro modo, a definição dos «direitos so-ciais» como direitos a prestações é tambémproduto de uma história (política). Por cer-to, uma apresentação diacrônica dos dife-rentes direitos do homem é sempre conce-bível, porque sua significação variou com a

1Para uma síntese, ver Ch. AUTEXIER, Introduction au droit public allemand, Paris, 1997, p. 109.2Ver a posição de E. Forsthoff na reunião da Associação Alemã de Professores de Direito Público em 1953, agora emE. FORSTHOFF, Rechtsstaat im Wandel, München, 1976.

do se pensa que a doutrina jurídica aparecefreqüentemente em atraso em relação ànormativa constitucional positiva. Com efeito,quando se encontram enunciados normativossobre os «direitos sociais» na maior partedas constituições ocidentais redigidas nosúltimos trinta anos, a doutrina dominante namaioria dos países europeus se mostra sem-pre disposta a sustentar que eles não seri-am autênticos direitos, exigíveis no sentidotécnico-jurídico do termo, mas pelo contrá-rio «objetivos», «fins», «princípios», nãojusticiáveis perante (e pelos) tribunais. Nãoseriam exigíveis porque o Estado, e menosainda o Estado democrático, não pode serobrigado por uma autoridade judicial a fazeralgo, enquanto que, pelo contrário, pode sercompelido a abster-se no campo dos direi-tos e liberdades individuais.

A doutrina jurídica alemã, que foi aprimeira a analisar sistematicamente a ques-tão, considera, majoritariamente, que não setrata de direitos garantidos constitucional-mente, entendidos como direitos subjetivos,para empregar uma expressão tradicional,ou seja, diretamente aplicáveis e, portanto,invocáveis de maneira autônoma perante ostribunais1 . Esta conclusão é o corolário dedebates mais gerais que tiveram lugar já nosinícios dos anos 1950, onde se negava o ca-ráter jurídico-constitucional à noção de «Es-tado social», retirada da Grundgesetz2. Ainfluência desta discussão — herdeira, porsua vez, de outras polêmicas surgidas ao finailda República de Weimar, foi notável epersistente, não só no plano da doutrina mastambém no do direito positivo europeu —assim a Constituição espanhola de 1978 pre-feriu apresentar os artigos referentes à ma-téria social como «princípios dirigentes(principios rectores) da política social eeconômica». Não nos encontraríamos, umavez mais, diante de «direitos subjetivos», masde padrões que devem orientar a ação doEstado, sobretudo do Legislador, e, no me-lhor dos casos, a interpretação constitucio-nal de normas jurídicas.

Esta conclusão resulta de uma supos-ta diferença de «natureza jurídica» entre

Page 3: Estado_Constituição_e_Direitos_Sociais

129REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

evolução de certas relações sociais, mas istonão deve se confundir com uma naturezaparticular, «social» ou «econômica», de cer-tos direitos fundamentais. O que nos con-duz, em outras palavras, a sustentar a uni-versalidade do social, a negar sua particula-ridade.

Um olhar sobre a aparição dos «di-reitos sociais» permitirá relativizar algunsobstáculos que a doutrina jurídica tradicio-nal sustenta como inibitórios para sua com-pleta caracterização jurídica. Mas não pre-tendemos traçar aqui uma história integraldos «direitos sociais», e menos ainda legiti-mar uma tese teórica por seu fundamentohistórico. O que aparece nasdistintas formas deconstitucionalização dos «di-reitos sociais» são duas ló-gicas em conflito, uma dasquais foi deslocada, ou aomenos ocultada, pela evolu-ção contemporânea do Es-tado social. Com efeito, exis-te uma tensão própria aos«direitos sociais» entre doispólos, de emancipação soci-al, por um lado, e deintegração social, pelo outro,e que condiciona por sua vezo par conceitual utilizadopara determinar seu caráter,universalidade e particulari-dade.

A dificuldade desteenfoque reside na sobreposição de momen-tos e de tradições. Mas ainda com risco decerto esquematismo, a identificação de am-bos os pólos pode resultar determinante le-vando-se em conta que a modalidadeconceitual que nega o caráter jurídico dos«direitos sociais», para limitá-los a meras«políticas», combina em sua definição umafunção política de integração social com suacaracterização como direitos particulares —quanto ao objeto (prestações materiais) equanto à categoria de sujeitos beneficiários(os indigentes) —. Nesse sentido, nossaanálise deter-se-á mais nas descontinuidades

do processo de constitucionalização do so-cial, em suas rupturas. O que equivale, nofundo, a sublinhar o caráter político dos di-reitos do homem, de todos os direitos dohomem.2 DIREITOS SOCIAIS E REVOLU-ÇÃO SOCIAL

A codificação de direitos do homemnuma declaração tal como aparece em finsdo século XVIII expressa a tentativa deconstitucionalizar um movimentoinsurrecional. Mas no caso dos direitos hu-manos de conteúdo social, esta intençãoparece expressada de forma mais direta. É

por isso que a referência asua «transcendência» pare-ce reduzir-se aqui ao míni-mo, para transformar-se emum projeto político. Diferen-temente também dos direi-tos do homem de conteúdoindividual, os «direitos soci-ais» aparecem sempre comofruto de uma revoluçãoinconclusa, não só no senti-do de movimentos que nãoconseguem realizar seu pro-grama original — o que po-deria ser só umaconstatação banal desde oponto de vista histórico —,mas na idéia de que estadeve ser terminada por e emum novo ordenamento jurí-dico (positivo). Isto explica,

uma vez mais, por que os direitos «sociais»se apresentam menos como direitos natu-rais, imprescritíveis e transcendentes que soba forma de políticas (estatais). Um exemploclaro desta modalidade nos dão os termosdo célebre decreto de 25 de fevereiro de1848 que impõe ao governo da II Repúblicafrancesa «garantir a existência do trabalha-dor através do trabalho, o Governo se com-promete a garantir um trabalho a todos oscidadãos»3. Assim, desde o início, a idéia de«direitos sociais», e mais particularmente,esta referência direta ao social, expressaesse ponto de passagem consciente da in-

3Esta pode ser uma das limitações das análises de Hannah Arendt sobre a questão social em On Revolution (1963), queopera como se entre 1789 e Marx não tivesse ocorrido a Revolução Francesa de fevereiro de 1848, que ela descartamuito rapidamente. Pelo contrário, é mérito de Anton Menger, e antes, de Lorenz von Stein, terem assinalado suaimportância.

“Com efeito, existe uma tensãoprópria aos «direitos sociais» entredois pólos, de emancipação social,

por um lado, e de integraçãosocial, pelo outro, e que condiciona

por sua vez o par conceitualutilizado para determinar seu

caráter, universalidade eparticularidade.”

“A codificação de direitos dohomem numa declaração tal comoaparece em fins do século XVIII

expressa a tentativa deconstitucionalizar um movimento

insurrecional.”

Page 4: Estado_Constituição_e_Direitos_Sociais

130 REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

surreição à instituição através de suapositivação (constitucionalização). Talvezquem tenha expressado mais claramente, emtermos políticos, esta idéia foi um dos líde-res mais influentes desta Revolução de 1848,Louis Blanc: «a reforma política não era maisque um meio para conseguir o objetivo, ouseja a reforma social». À medida em queesta conexão entre direitos sociais e mudan-ça social se debilita, especialmente depoisde 1945, com a generalização (relativa) deum modelo de Estado social, por um lado, eaceitação definitiva (também relativa) dosdireitos sociais no direito constitucional, poroutro, sua significação teórica e jurídica setransformará.

Na verdade, a afirmação do cará-ter social dos direitos do homem encontra-se de maneira explícita nos trabalhos doComitê de Mendicância da Constituinte, queconsidera, em seu plano de trabalho de 1790,que «todo homem tem direito a sua subsis-tência». Nesse sentido, o Comitê declara queali onde se encontrem homens sem meiosde subsistência, existe uma violação aos di-reitos do homem4 . Num discurso de junhode 1792, Bernard precisa que o direito à sub-sistência apresenta dois aspectos: o traba-lho, se o homem é apto, ou os auxílios gra-tuitos, se não tem a possibilidade de fazê-lo5. Quando a Constituição de 1793 procla-ma, no artigo 21 de sua célebre Declaração,um «direito aos auxílios públicos» para aque-les que não estão em condições de traba-lhar, não faz mais que seguir uma das linhasde evolução presentes desde o início na Re-volução de 1789, aquela justamente que as-socia este direito a uma categoria social, aindigência. Isto nos mostra também que alógica de integração social dos direitos soci-ais está presente desde a origem, e é a pri-meira a ser constitucionalizada6 .

Mas junto a esta primeira tentativa de

constitucionalização, subsiste outra lógica,que se encontra sobretudo em Robespierre,ao menos desde seu célebre «Discurso daSubsistência». Ele defende ali o «direito àexistência» como o «primeiro» direitoimprescritível do homem, assumindo destemodo a universalidade do social. Mais ain-da, radicaliza esta perspectiva, afirmandoque dito direito implica em uma limitação dodireito de propriedade, já que a subsistênciaobriga a «assegurar a todos os membros dasociedade o usufruto da porção de frutos daterra que é necessária para sua subsistên-cia»7. A propriedade é «uma instituição so-cial», tal como Robespierre afirma na apre-sentação de seu projeto de Declaração, emabril de 1793. Os principais direitos do ho-mem reduzem-se ali a dois: «procurar a con-servação da existência e a liberdade» (art.2º). Nesse sentido, o caráter universal dodireito à existência encontra-se nos doismeios que Robespierre explicita no ponto Xda Declaração jacobina: «a sociedade estáobrigada a prover a subsistência de todosseus membros, seja procurando-lhes traba-lho ou assegurando os meios de existência aquem não esteja em condições de trabalhar».

Mas a questão constitucional instala-se com mais força em meados do séculoXIX, quando a questão social e os direitossociais em sentido estrito convergem, seconfundem inclusive, pela aparição de um«quarto» estado como sujeito de direito. Éassim que, em 1848, o problema dos direitossociais concentra-se na discussão sobre um«direito ao trabalho», fórmula de origemfourierista que conhece uma grande popu-laridade nesses momentos. O caráter inte-gral do «direito ao trabalho» aparece já noprojeto constitucional de junho de 1848, ondesão reconhecidas como garantias essenci-ais a esse direito, entre outras, a liberdade, aliberdade de associação, a igualdade, oensino gratuito.

4Cit.em R. CASTEL, Les métamorphoses de la question sociale, Paris, 1999, p. 296. Vide também M. BORGETTO,La notion de fraternité en droit public français, Paris, 1993.

5Cit. por M. BORGETTO, La notion de fraternité, op. cit., p. 165.6As investigações históricas demonstraram como o primeiro desenvolvimento do Estado Social está ligado à

responsabilidade frente aos pobres, para transformar-se logo na questão social. Para uma síntese, vide G. RITTER,Der Sozialstaat. Entstehung und Entwicklung im internatinalen Vergleich, München, 1989, p. 19. Na França, ostrabalhos de síntese defendem, por sua vez, esta tese, vide. F. EWALD, L’État providence, Paris, 1986, P.ROSANVALLON, L’État en France de 1789 à nos jours (1990), Pars, 2002, R. CASTEL, Les métamorphoses dela question sociale, (1995), Paris, 1999.

7ROBESPIERRE, «Discurso de 2 de dezembro de 1972», em Textes Choisis, T. II, Paris, 1957.

Page 5: Estado_Constituição_e_Direitos_Sociais

131REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

Como se pode prever, é nos escritosdos socialistas de 1848 em que apareceteorizado de maneira mais direta o caráteruniversal dos «direitos sociais». Para Blanc,o direito ao trabalho tem seu fundamento nodireito a viver produtivamente, e por meiodele, ao direito de conservar a vida. O direi-to ao trabalho está ligado ao direito à propri-edade por uma dupla via: toda propriedadeque não provém do trabalho não estájustificada, todo trabalho que não conduz àpropriedade é opressivo. Para trabalhar, énecessário contar com os instrumentos detrabalho, do contrário, aqueles que não ostêm estão submetidos a quem os possui. Sea desigualdade é um fato geral, permanen-te, Blanc afirma, pelo contrário, a variabili-dade da idéia de propriedade, como assimtambém das de liberdade e livre concorrên-cia8. A afirmação do direito ao trabalho comonegação do direito à propriedade aparecetambém em Proudhon, um nome significati-vo nesta história, não tanto por ter sido oconhecido motivo do rechaço a todo reco-nhecimento constitucional do direito ao tra-balho, por haver pronunciado uma frase de-masiado sincera na Assembléia nacional,mas por não associar em sua concepção estedireito a um Estado produtor, como faziaBlanc. Com efeito, para o teórico domutualismo, o direito ao trabalho não se re-duz à promoção de obras públicas e ao au-mento do gasto público; pelo contrário, estáinscrito na idéia de uma constituição social,definida como «o equilíbrio de interesses fun-dado no livre CONTRATO e a organizaçãodas Forças econômicas», e que opõe à cons-tituição política, autoritária9. Na última ten-tativa parlamentar de incluir no texto consti-tucional o direito ao trabalho, Félix Pyat afir-ma sua continuidade com a tradição dosdireitos do homem: «ao entrar em socieda-

de num mundo ocupado, compartilhado, par-celado, o homem troca seus direitos indivi-duais por seus direitos sociais. Quais sãoseus direitos sociais? O trabalho e a pro-priedade»10 . A prioridade, todavia, pertenceao trabalho, que é «a fonte e a garantia» dapropriedade, porque o trabalho é o único meiode aquisição com que contam os pobres.

Um depoimento interessado destesdebates constituintes sustenta que a fórmu-la “direito ao trabalho” não se torna centralpara os trabalhadores senão após a repres-são sangrenta das revoltas de junho, «quan-do a Assembléia nacional busca curar ascicatrizes deixadas pela (supressão dos)ateliers nacionais»; antes, os trabalhadoresreclamam «a organização do trabalho», o queequivaleria menos a um direito que a umnovo sistema social11. Na realidade, ambasas questões encontram-se intimamente liga-das, como resulta da afirmação de FrançoisVidal, secretário geral da Comissão deLuxemburgo, que sustenta que «o direito aotrabalho (...) implica necessariamente naorganização do trabalho, e a organização dotrabalho implica na transformação econômicada sociedade»12. O projeto de constituição(de 19 de junho), depois de haver proclama-do o «direito ao trabalho» entre os direitosgarantidos em seu artigo 2º, definira-o emseu artigo 7º como «aquele que tem todohomem de viver de seu trabalho». Este di-reito estaria acompanhado de uma política:«A sociedade deve, pelos meios produtivose gerais de que dispõe, e que serão organi-zados posteriormente, prover um trabalho atodos os homens válidos que não possamprocurar sê-lo de outro modo». O dispositi-vo completa-se com uma série de garantias,enumeradas no artigo 132.

8L. BLANC, «Le Socialisme - Le Droit au Travail» (1848), en Questions d’Aujourd’hui et de Demain, Paris, T. IV,1882, p. 320-323 e 361.

9P. J. PROUDHON, «Le Droit au Travail et le Droit de Propriété», Oeuvres Complètes, nova edição, Paris, 1926,T. X, p. 421 ; Les Confessions d’un Révolutionnaire (1849), Oeuvres Complètes, cit., T. II, p. 217. É «o destino daConstituição política o de provocar e produzir incessantemente a Constituição social». Proudhon verá na Consti-tuição de 1848 algo parcial, de fundo socialista, «uma expressão incompleta e disfarçada da Constituição social»,mas incompatível com as atribuições políticas, o que a condena à impotência (p. 222). O que equivaleria dizer quea reforma política não pode dar a reforma social.

10J. GARNIER (ed.), Le Droit au Travail à l’Assemblée Nationale. Recueil complet de tous les discours prononcésdans cette mémorable discussion (1848), reimpressão, Paris, 1984, p. 408.

11Ibidem, p. VII.12F. VIDAL, Vivre en travaillant! Projets, voies et moyens de réformes sociales (1948), Montargis, 1997, p. 28.

Page 6: Estado_Constituição_e_Direitos_Sociais

132 REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

Mas o projeto original será modifica-do na Comissão. E, entre as mudanças, fi-gura a supressão do direito ao trabalho, subs-tituído por um direito à assistência. Entre-tanto, durante a discussão deste projeto naAssembléia, a oposição entre «direito ao tra-balho» e «direito de propriedade» — ou, sese quer formular de forma positiva, a rela-ção entre direitos sociais e transformaçãosocial — aparece em toda sua dimensão.Os socialistas não são os únicos que esta-belecem uma correlação entre «direito aotrabalho» e (negação do) direito de proprie-dade. «Se o escrevemos na Constituição —disse Duvergier de Hauranne —, tomamosnesse mesmo instante a obrigação de mu-dar radicalmente todas as condições soci-ais» (p. 130). O impacto político de seu re-conhecimento jurídico-constitucional apare-ce também muito claramente expresso nasreflexões de Tocqueville, que busca quebrartoda continuidade entre a revolução de 1789e «a social», para poder distinguir logo entrea caridade e um direito dos trabalhadoressobre o Estado. E, ainda mais nitidamente,na posição falsamente paradoxal de Thiers,que é contrário ao reconhecimento do «di-reito ao trabalho», mas promove uma políti-ca ativa do Estado em matéria econômica esocial. Para Thiers, um direito não deve con-fundir-se com uma política social: um direitose aplica a todos, sem exceção, enquantoque um «direito ao trabalho» (como se dirámais tarde dos direitos sociais) se dirige auma categoria específica. Para insistir so-bre o caráter de direitos do homem, um so-cialista como Ledru-Rollin está disposto aaceitar uma mera declaração formal, admi-tindo que sua realização fosse imaginada emum futuro mais ou menos distante13. Comefeito, mesmo aqueles que são favoráveisao reconhecimento explícito do «direito aotrabalho», como Mathieu (de la Drôme), quereintroduz a questão no debate parlamentar,retiram explicitamente também sua garan-tia. Mais tarde, inclusive Proudhon dirá queembora o «direito ao trabalho» expresse umanecessidade respeitável, é, no fundo,

irrealizável — estabelecendo a distinçãoentre «reconhecimento do direito» e a sua«realização»14.

Não é casual o fato de que quem negaentão todo valor jurídico ao «direito ao tra-balho», o subsuma no «direito à assistên-cia»15. Finalmente, o artigo VIII do Preâm-bulo associa a assistência à possibilidade doscidadãos desvalidos de procurar «um traba-lho dentro dos limites de seus recursos». Oartigo 13 do texto definitivo da Constituiçãoestabelece, num mesmo plano, que a «soci-edade favorece e estimula o desenvolvimen-to do trabalho pelo ensino primário gratuito,a educação profissional, a igualdade nas re-lações patrão-empregado, as instituições defomento e crédito e a liberdade de associa-ção», ao mesmo tempo em que «promove aassistência aos menores abandonados, aosdesamparados e aos idosos sem recursos,cujas famílias não podem ajudá-los». Entre-tanto, o primeiro projeto de preâmbulo, emseus artigos 7º e 9º, respectivamente, haviaestabelecido claramente a diferença: en-quanto que «o direito ao trabalho» é próprioa «cada homem», o direito à assistência per-tence «aos menores abandonados, aos de-samparados, aos idosos». Finalmente, aConstituição de 1848 precisa a lógica que jávimos na Constituição de 1793, limitando aconcessão de trabalho aos recursos existen-tes do Estado, por meio de obras públicas.Em ambos os casos, os titulares do direitonão são os homens, mas os necessitados. Apartir de então, os «direitos sociais» encon-tram-se ligados não só à particularidade deuma categoria social, mas sempre à ativida-de benfeitora do Estado.

Em todo caso, é o que reterá uma tes-temunha do processo francês, cuja influên-cia sobre as idéias sociais será determinantenas concepções da outra margem do Reno,do Kaiserreich à República Federal: Lorenzvon Stein. Segundo Stein, o movimento so-cial põe a reforma no terreno das classespossuidoras, podendo, assim, evitar a revo-lução social. Disso resulta uma aritmética

13A. TOCQUEVILLE, Écrits et discours politiques, Oeuvres complètes, T. III, Paris, 1990. O discurso de Thiers estáem Le droit au travail à l’Assemblée nationale, cit. Sobre esse ponto, veja-se também P. ROSANVALLON, L’Étaten France, op. cit., p. 158.

14P. J. PROUDHON, Idée generale de la Révolution au XIXe siécle (1851), Paris, 1979, pp. 167-168.15Encontramos afirmações equivalentes em outros socialistas, distintos de Blanc y Proudhon, no que poderia ser,

diante de tudo, uma estratégia para fazê-lo emergir em um texto constitucional que finalmente não o reconhece.

Page 7: Estado_Constituição_e_Direitos_Sociais

133REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

política, na qual o Estado, enquanto admi-nistração social-reformista, deve garantir àclasse expropriada a aquisição de capital,superando assim o primeiro conteúdo socialda idéia de igualdade, a negação da proprie-dade privada. Neste sentido, o social colo-ca-se explicitamente fora da constituição,para ser concentrado na administração16.

A questão social, e seus espectros,percorre a Europa. E, no plano do pensa-mento, serão as correntes do liberalismosocial, caracterizado, na França e na Ale-manha, por um forte componente cristão,quem irá estabilizar, e logo absolutizar, o ele-mento de integração social. Além das tenta-tivas bonapartistas, encon-traremos no Estadobismarckiano uma primeirarealização sistemática, a par-tir das leis de seguro de en-fermidades, em 1883, e deseguro de acidentes, no anoseguinte, inaugurando, as-sim, uma tradição autoritá-ria do Estado de Bem- Es-tar. Mas esse dispositivo depolítica social não inclui umreconhecimento constitucio-nal de «direitos sociais» —esta, de fato, como é conhe-cido, estava inclusive acom-panhada por uma legislaçãorepressiva anti-socialista,que começa com a lei de1878 e prolonga-se até o«novo curso» de 1890.

No entanto, é neste período que co-meçamos a encontrar a noção de «direitossociais» como «direitos fundamentais». Umadas primeiras formulações, a primeira denosso conhecimento, aparece na doutrina deAnton Menger, que emprega a expressão«direitos econômicos fundamentais»(ökonomische Grundrechte) do socialismo.Para Menger, estes eram três: o «direito aoproduto integral do trabalho», o «direito àexistência» e o «direito ao trabalho». En-

16L. von STEIN, Geschichte der sozialen Bewegung in Frankreich, von 1789 bis auf unsere Tage (1850), (ed.Salomon), München, 1921, T. III, p. 193 e ss. Stein considera que a forma da constituição é indiferente às classesexpropriadas, porque ainda que seus interesses (sociais) fossem levados em conta, isto não se faria senão de maneiralenta.

17A. MENGER, El derecho al producto íntegro del trabajo en su desarrollo histórico (1886), Buenos Aires, 1944,p. 19 e ss., Neue Staatslehre (1903), trad. francesa, p.138.

tretanto, como se pode apreciar de sua meraenunciação, esse «fundamental», reenviamais a uma visão filosófica que jurídico-po-sitiva, embora Menger imagine um Estadosocial que realizará estes «direitos». MasMenger é um teórico pós-1848, discípulo deStein, que pensa esse Estado «popular detrabalho» como «um sistema jurídico quereconhece a cada membro da sociedade odireito de obter, em proporção aos recursosexistentes, os bens e serviços necessáriospara uma existência humana, antes que asnecessidades menos urgentes de outros ci-dadãos sejam satisfeitas»17, numa lógica querecorda as formulações de um John Rawls.

3 DIREITOS SOCIAIS EC O N S T I T U C I O N A -LISMO SOCIAL

A questão daconstitucionalização do soci-al ressurge de maneira vigo-rosa com as revoluções doperíodo entre-guerras. Esteprocesso, que se estende aomenos até a Constituição daSegunda República espa-nhola de 1931, dará lugar àdenominação característicade «constitucionalismo soci-al», para referir-se ao movi-mento de incorporação decláusulas programáticas deconteúdo econômico e soci-al nos textos constitucionais.

A história constituci-onal tem oficialmente a sua certidão de nas-cimento com a Constituição alemã de 18 deagosto de 1919. Mas, para dizer a verdade,esta já tem um precedente fundamental naConstituição mexicana de 31 de janeiro de1917, elaborada em Querétaro. Se este an-tecedente não pode ser evitado, não se tratade um simples (e inútil) gesto de erudição:encontramos ali, estabelecida pela primeiravez em um texto constitucional que alcan-çará vigência, a relação específica entredireitos sociais e revolução inconclusa.

“A questão social, e seus espectros,percorre a Europa. E, no plano dopensamento, serão as correntes do

liberalismo social, caracterizado, naFrança e na Alemanha, por umforte componente cristão, quem iráestabilizar, e logo absolutizar, oelemento de integração social.”

“A história constitucional temoficialmente a sua certidão de

nascimento com a Constituição alemãde 18 de agosto de 1919. Mas,para dizer a verdade, esta já tem

um precedente fundamental na Cons-tituição mexicana de 31 de janeirode 1917, elaborada em Querétaro.”