estado plurinacional comunitário e a nova constituição política do estado da bolívia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE NACIONAL DE DIREITO O ESTADO PLURINACIONAL COMUNITÁRIO E A NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO DA BOLÍVIA VICTOR CARNEIRO CORRÊA VIEIRA RIO DE JANEIRO 2011

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Monografia apresentada em 2011 na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E ECONMICAS

    FACULDADE NACIONAL DE DIREITO

    O ESTADO PLURINACIONAL COMUNITRIO E A NOVA CONSTITUIO POLTICA DO ESTADO DA BOLVIA

    VICTOR CARNEIRO CORRA VIEIRA

    RIO DE JANEIRO

    2011

  • VICTOR CARNEIRO CORRA VIEIRA

    O ESTADO PLURINACIONAL COMUNITRIO E A NOVA

    CONSTITUIO POLTICA DO ESTADO DA BOLVIA

    Trabalho de concluso do curso apresentado Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Direito.

    Orientadora: Prof. Dra. Vanessa Oliveira

    Batista

    RIO DE JANEIRO

    2011

  • Vieira, Victor Carneiro Corra. O Estado Plurinacional Comunitrio e a Nova Constituio Poltica do Estado da Bolvia / Victor Carneiro Corra Vieira 2011.

    67f. Orientadora: Vanessa Oliveira Batista. Monografia (graduao em Direito) Universidade Federal do

    Rio de Janeiro, Centro de Cincias Jurdicas e Econmicas, Faculdade Nacional de Direito.

    Bibliografia: f. 63-67. 1. Bolvia. 2. Constituio. 3. Estado Plurinacional Comunitrio. I.

    Batista, Vanessa Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Cincias Jurdicas e Econmicas. Faculdade Nacional de Direito. III. Ttulo

  • VICTOR CARNEIRO CORRA VIEIRA

    O ESTADO PLURINACIONAL COMUNITRIO E A NOVA CONSTITUIO

    POLTICA DO ESTADO DA BOLVIA

    Trabalho de concluso do curso apresentado Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Direito.

    Data de aprovao: ____/____/______

    Banca Examinadora: ________________________________________________ Presidente da Banca Examinadora Prof. Dra. Vanessa Oliveira Batista Faculdade Nacional de Direito Orientadora ________________________________________________ 2 Examinador Prof. Dr. Elidio Alexandre Borges Marques Ncleo de Estudos de Polticas Pblicas em Direitos Humanos ________________________________________________ 3 Examinador Prof. Luiz Felipe Osrio Programa de Ps-Graduao em Economia Poltica Internacional

  • AGRADECIMENTOS

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo acolhimento nesses anos de

    graduao, nos quais aprendi muito, no s na Faculdade de Direito mas em todos os campi pelos quais tive o prazer de passar e debater com pessoas das mais

    diversas culturas e posies polticas.

    Professora Vanessa Batista, por sua orientao e acompanhamento deste

    trabalho, sem a qual ele no seria possvel, e pela pacincia ao me receber at mesmo nos finais de semana em sua casa para discusso acerca de sua redao.

    minha famlia, pelo apoio em todos os momentos de minha vida e pela

    disposio sempre que expliquei a histria boliviana, as inovaes sua da

    Constituio e a democracia participativa.

    Renata Tavares, pela amizade e ensinamentos, que me ajudaram a ter uma

    viso mais crtica do mundo.

  • Depois de 500 anos de rebelio, invaso

    e saque permanente; depois de 180 anos

    de resistncia contra um Estado colonial;

    depois de 20 anos de luta permanente

    contra um modelo neoliberal; hoje, 7 de

    fevereiro de 2009, um acontecimento histrico [] promulgar a nova

    Constituio Poltica do Estado.

    Evo Morales

  • RESUMO VIEIRA, V. C. C. O Estado Plurinacional Comunitrio e a Nova Constituio Poltica do Estado da Bolvia. 2011. 67 f. Monografia (Graduao em Direito) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Este trabalho tem por objetivo analisar a Nova Constituio Poltica do Estado da Bolvia e o Estado Plurinacional Comunitrio. Para a melhor compreenso do tema, a primeira parte se dedica no estabelecimento de marcos tericos, sendo eles a nao, a soberania, o Estado Nacional, o monismo estatal, o Estado Plurinacional e o pluralismo jurdico. Na segunda parte feito um recorte histrico e geopoltico no mundo, partindo do final da Guerra Fria, passando pelo estabelecimento do neoliberalismo como nova ordem global e finalizando com a emergncia dos movimentos sociais, e na Amrica Latina, com incio na redemocratizao, ps governos militares, avaliando os efeitos da poltica neoliberal na regio e concluindo com as eleies de presidentes smbolos de esquerda em diversos pases da regio. A terceira parte dedica-se ao Estado Boliviano, primeiramente fazendo uma analise histrica do mesmo perodo e, posteriormente, apontando as inovaes trazidas pela Nova Constituio Poltica do Estado nas questes de (i) a organizao do Estado, (ii) a separao dos poderes, (iii) as relaes internacionais, e (iv) a estrutura e organizao territorial do Estado. Palavras-chave: Bolvia; Estado Plurinacional Comunitrio; Constituio da Bolvia; pluralismo jurdico

  • ABSTRACT

    VIEIRA, V. C. C. O Estado Plurinacional Comunitrio e a Nova Constituio Poltica do Estado da Bolvia. 2011. 67 f. Monografia (Graduao em Direito) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

    This work has for objective to analyze the New Political Constitution of the State of Bolivia and the Multinational State of Community. For a better understanding of the topic, its first part focuses on establishing theoretical frameworks: the nation, the sovereignty, the National State, the monism state, the Multinational State and legal pluralism. In the second part is made a historical and geopolitical side view, in the world, from the end of the Cold War, through the establishment of neoliberalism as the new global order, and ending with the emergence of the social movements, and in Latin America, beginning in the re-democratization, after the military governments, evaluating the effects of neoliberal policies in the region and concluding with the election of leftist presidents in many different countries of the region. The third part is dedicated to the Bolivian State, first by making a historical analysis of the same period and later, pointing out the innovations introduced by the New Political Constitution of the State in matters of (i) the state organization, (ii) the separation of powers, (iii) the international relations, and (iv) the structure and territorial organization of the state. Key Words: Bolivia; Multinational State of Community; Constitution of Bolivia; legal pluralism.

  • RESUMEN

    VIEIRA, V. C. C. O Estado Plurinacional Comunitrio e a Nova Constituio Poltica do Estado da Bolvia. 2011. 67 f. Monografia (Graduao em Direito) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

    Este trabajo tiene como objetivo analizar la Nueva Constitucin Poltica del Estado Boliviano y el Estado Plurinacional Comunitario. Para una mejor comprensin del tema, la primera parte se centra en el establecimiento de marcos tericos, que son: la nacin, la soberana, el Estado-nacin, el monismo del Estado, el Estado Plurinacional y el pluralismo jurdico. En la segunda parte se hace un recorte histrico y geopoltico, en el mundo, desde el final de la Guerra Fra, a travs del establecimiento del neoliberalismo como la nueva orden mundial y terminando con la aparicin de los movimientos sociales, y en la Amrica Latina, a partir de la democratizacin, despus de los gobiernos militares, haciendo la evaluacin de los efectos de las polticas neoliberales en la regin y concluyendo con la eleccin de presidentes de izquierda en los diferentes pases de la regin. La tercera parte est dedicada al Estado boliviano, primero haciendo un anlisis histrico de la misma poca y ms tarde, sealando las innovaciones introducidas por la Nueva Constitucin Poltica del Estado en materia de (i) la organizacin del Estado, (ii) la separacin de poderes (iii) las relaciones internacionales, y (iv) la estructura y organizacin territorial del Estado. Palabras clave: Bolivia; Estado Plurinacional Comunitrio; Constitucin de Bolivia; pluralismo jurdico.

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................... 11 1 MARCOS TERICOS ............................................................................................ 13 1.1 Nao e soberania ............................................................................................. 14 1.2 Dos Estados Nacionais aos Estados Plurinacionais ..................................... 19 1.3 Monismo estatal e pluralismo jurdico ............................................................ 23 2 RECORTE HISTRICO E GEOPOLTICO ........................................................... 29 2.1 A Amrica Latina ............................................................................................... 34 3 O CASO DA BOLVIA ........................................................................................... 37 3.1 Aspectos polticos, sociais e econmicos (recorte histrico) .................... 37 3.1.1 A democracia participativa ............................................................................... 44

    3.2 A Nova Constituio Poltica do Estado boliviano ........................................ 46 3.2.1 A organizao do Estado ................................................................................. 46

    3.2.2 Os poderes ....................................................................................................... 48

    3.2.3 As relaes internacionais ............................................................................... 51

    3.2.4 A estrutura e organizao territorial ................................................................. 56

    CONCLUSO ........................................................................................................... 60 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................... 63

  • INTRODUO

    Este trabalho, apresentado como Monografia de concluso da Graduao em

    Direito da Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro (UFRJ), tem por objetivo principal avaliar as inovaes trazidas pela Nova

    Constituio Poltica do Estado da Bolvia, que fundou as bases de um novo

    Constitucionalismo Plurinacional. Para que se tornasse possvel tal anlise, foram

    tomados por marcos tericos os conceitos de nao, soberania, entre outros.

    Aps analisadas as diversas definies de nao e soberania e chegada a

    uma concluso de qual a que melhor se encaixa no modelo Boliviano, partiu-se para

    a diferenciao entre o Constitucionalismo Moderno e o Constitucionalismo

    Plurinacional. O ltimo ponto dos marcos tericos diz respeito ao monismo estatal e

    ao pluralismo jurdico. Findada a pesquisa em torno dos marcos tericos, iniciou-se

    um recorte histrico e poltico que tornasse possvel a compreenso dos motivos

    que levaram mobilizao de setores da sociedade boliviana antes excludos. Nele, foi possvel avaliar que o fim das ditaduras militares que assolaram a

    Amrica Latina dos anos 60 a 80, inclusive, levaram consigo o fim do milagre

    econmico que era vivido pela regio graas a emprstimos monumentais dos

    rgos monetrios internacionais. A crise econmica assolava os pases do Terceiro

    Mundo e logo ameaava chegar aos pases centrais, visto que suas exportaes

    vinham diminuindo consideravelmente, devido inflao desenfreada e desestabilidade poltica de seus principais compradores.

    Com o fim de impedir uma crise no corao do capitalismo, foi lanado um

    pacote de medidas, que viria a ficar conhecido pelo nome de Consenso de

    Washington. Esse pacote foi lanado pelos Estados Unidos, pelo Banco Mundial e

    pelo Fundo Monetrio Internacional, estabelecendo condies para emprstimos e

    investimentos destes na Amrica Latina, visando recuperar suas economias da

    profunda crise por que passaram.

    O neoliberalismo se alastrou por toda Amrica Latina, diminuindo o poder

    interventor do Estado e privatizando suas estatais. No entanto, o resultado foi

    diverso do esperado. Com as privatizaes, subiu o nmero de demisses visando o

    corte de gastos, consequentemente, o desemprego gerou uma crise econmica

  • 12

    ainda maior, j que a populao no tinha dinheiro para comprar. Aumentou, assim, o emprego informal, a marginalidade, a criminalizao e o narcotrfico.

    No que diz respeito aos governos, a grande circulao de dinheiro oriunda

    das negociaes das vendas das estatais abriu caminho para o aumento da

    corrupo e estelionato eleitoral, beneficiando os grandes conglomerados

    internacionais em detrimento dos investimentos sociais. Esse quadro serviu para

    agravar a crise da representatividade da populao, que no reconhecia a

    legitimidade de seus representantes.

    Insatisfeita, a populao comeou a lutar pelos seus interesses, combatendo

    o modelo poltico-econmico que depredava a economia de seus Estados e

    vitimizava-os. Como resultado, a Amrica Latina presenciou, no incio do sculo XXI,

    a chegada ao poder de diversos presidentes de esquerda, com bandeiras contrarias

    quelas levantadas pelos governos anteriores e pelas elites nacionais que se

    associaram ao capital privado transnacional.

    A escolha da Bolvia se d pelo fato de seu povo ter realizado uma revoluo cultural baseada na pluralidade cultural e tnica, buscando a igualdade perante

    todas as naes que compem o Estado. Nesse sentido, diferente do previsto por

    Marx, na Bolvia, a luta no foi entre classes, liderada pelos operrios contra a

    burguesia, mas uma luta tnico-cultural, liderada pelos povos indgenas originrios

    contra a elite burguesa.

    Dessa forma, a ascenso de Evo Morales, na Bolvia, foi o acontecimento

    mais icnico desta nova realidade, por se tratar do primeiro presidente ndio da

    histria do pas, formado por uma esmagadora maioria indgena. Evo representava

    para as elites no s a derrota em uma eleio, mas tambm a derrota ideolgica, por figurar tudo aquilo que ela combateu por anos: indgenas, sindicalistas e

    cocaleiros.

    Morales foi eleito prometendo uma Revoluo cultural, desconstruindo o mito

    da existncia de uma cultura superior (europeia) e lutando para o reconhecimento da

    igualdade entre todas as crenas dentro da Bolvia. Para tal, convocou a Assembleia

    Constituinte para a redao de uma nova Constituio que ilustrasse o novo

    momento do Estado.

    A Nova Constituio Poltica do Estado da Bolvia viria a ser promulgada no

  • 13

    dia 18 de maro de 2009, renomeando o Estado de Repblica da Bolvia para Estado Plurinacional da Bolvia. Porm, o nome seria a menor das modificaes

    trazidas pela nova Magna Carta boliviana, que conta com uma maior

    representatividade por parte dos povos originrios em todos os poderes e o

    reconhecimento de suas culturas como culturas oficiais da Bolvia.

    A presente monografia pretende analisar as inovaes trazidas por tal texto

    constitucional no que diz respeito organizao do Estado, separao de poderes, s relaes internacionais da Bolvia e da organizao territorial.

    1. MARCOS TERICOS

    Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o Capitalismo, como modelo nico e

    incontestvel de formulao estatal, comea a mostrar seus primeiros sinais de

    fraqueza. O Socialismo se apresenta como uma alternativa promissora aos Estados

    perifricos, prometendo a igualdade que nunca foi real no modelo burgus-

    centralizador. A Guerra Fria passou, a grande potncia smbolo deste modelo

    alternativo, a Unio Sovitica, sucumbiu, deixando o mundo subserviente aos

    interesses da nica e incontestvel potncia internacional, os Estados Unidos. Esse

    destino foi apresentado como o nico caminho possvel de se traar, mas ser que no se pode decidir por um caminho que seja mais justo para os pases perifricos?

    A partir desse questionamento, a Amrica Latina vem apresentando um

    pensamento de vanguarda, refundando o Estado sob o prisma dos diferentes grupos

    tnicos e sociais que nele convivem, flexibilizando conceitos que at ento eram indiscutveis, tais como a soberania Estatal para promulgar leis, a indissociabilidade

    da nao do Estado, a superioridade incontestvel da cultura europeia exportada

    para todos os continentes e a incontestabilidade do sistema liberal-centralista-

    individualista que apresenta sinais de desgaste por todo o mundo.

    Surge, assim, o Estado Plurinacional, democrtico e plural, que reconhece as

    diversas naes dentro do seu territrio, admitindo a legitimidade dessas diversas

    naes que habitam seu territrio para se autorregular e, ao flexibilizar sua

    soberania, garante sociedade uma maior participao na determinao do seu futuro. Porm, para compreender essa nova proposta de organizao estatal, preciso definir alguns conceitos bsicos, tais como nao e soberania, alm de

  • 14

    entender a formao do Estado Moderno e seu monismo jurdico, para que seja

    possvel a compreenso desse modelo alternativo e sua proposta de pluralismo

    jurdico.

    1.1. Nao e soberania

    Ao estudar uma civilizao do passado, busca-se entender sua cultura, seu

    modo de vida, sua organizao social, legislativa e poltica. Dessa forma, possvel diferenciar os diversos povos que estiveram pela Terra muito antes dos pases,

    como hoje so conhecidos, se unificarem. Entre eles, gregos, romanos, egpcios,

    incas, maias, astecas e muitos outros. possvel encontrar, em todos eles, uma noo nacional, mesmo que esta no tenha sido planejada ou compreendida pelos

    habitantes da poca, tanto que tal conceito s veio a ser reconhecido nos ltimos dois sculos. No entanto, apesar de facilmente identificvel e superficialmente

    conhecido, o conceito de nao nunca foi unnime ou universal, mas muito pelo

    contrrio, variando de acordo com o tempo e o enfoque que cada autor pretende dar

    a cada aspecto de uma sociedade.

    Essa flexibilidade do conceito de nao pode ser facilmente verificada, visto que sempre que se analisa um livro diferente que versa sobre o assunto, pode-se

    observar variados conceitos. O historiador Eric J. Hobsbawm evidencia tal situao

    ao fazer um apanhado das variaes de significado em diferentes perodos

    histricos, apontando, por exemplo, que at 1884, o conceito de nao exclua o governo, restringindo-se origem e descendncia. Ele se refere, ainda, a um dicionrio francs antigo que cita uma frase de Froissart: je fus retourn au pays de ma nation en la cont de Haynnau (Eu retornei terra de meu nascimento/origem, no condado de Hainault) 1. No entanto, Hobsbawm defende que o conceito mais

    adequado realidade aquele surgido na Era das Revolues, especialmente a partir de 1830, que garantia nao um sentido poltico e social, sob o titulo de princpio da nacionalidade.

    J Emmanuelle Siyes, por sua vez, ao afirmar que una ley y una

    representacin comunes son o que constituyen uma nacin delimita a nao como

    fruto do Estado, grifando ainda que es, pues, necessaria una regia comn y unas

    1 HOBSBAWM, Eric J. Naes e nacionalismos desde 1780: programa, mito e

  • 15

    condiciones que, por ms que no sean del agrado de algunos comitentes puedan

    amparar a la totalidad de la nacin del capricho de algunos electores 2 [sic],

    demonstrando, assim, que apenas aqueles designados como sujeitos detentores de

    determinadas culturas ou grupos sociais podem exercer pleno gozo de seus direitos.

    O cientista poltico Benedict Anderson apresenta um conceito sociolgico de

    nao como uma comunidade poltica imaginada e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana3 (grifo nosso). limitada porque todas esto restritas a um determinado territrio definido, e soberana porque

    o conceito nasceu na poca em que o Iluminismo e a Revoluo estavam destruindo

    a legitimidade do reino dinstico hierrquico de ordem divina4. Dessa forma, com o

    fim dos reinados fundados na religiosidade, as naes passaram a desejar

    liberdade, forando os Estados a se tornarem laicos e se afirmarem como Estados

    Soberanos. E, por ltimo, ela imaginada como uma comunidade porque, independentemente da desigualdade e da explorao efetivas que possam existir

    dentro dela, a nao sempre concebida como uma profunda camaradagem horizontal5 (grifo do autor).

    Em sentido oposto, para Otto Bauer, em seu texto A Nao Um mapa da

    Questo Nacional, a nao pode ser definida como uma comunho de carter que

    brota de uma comunho de destino, e no de uma mera semelhana de destino6.

    Para compreender o conceito de nao de Bauer, preciso dividir sua definio em duas partes para que se possa melhor avali-la. A primeira a que diz respeito necessidade de uma comunho de carter. possvel compreender carter, como um conjunto de caractersticas fsicas e mentais que unem os membros de uma

    nao, ou seja, no basta a existncia de um ancestral comum, imprescindvel que haja uma semelhana cultural, atravs da educao, da legislao, dos costumes,

    religio, cincia, arte e poltica. J, por comunho de destino, faz-se entender um

    conjunto de acontecimentos que envolveu todo o povo no mbito nacional,

    culminando em um destino comum. No basta ter um destino semelhante, porque, 2 SIYES, Enmanuelle J.. Qu es el Tercer Estado? pg.10 e 23. Net. Disponvel em . Acesso em: 5 de fevereiro de 2011. 3 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. 1a ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, pg. 32. 4 Idem., p. 34. 5 Loc. cit. 6 BAUER, Otto. A nao in BALAKRISHNAM, Gopal (org.). Um mapa da questo nacional. 1a reimpresso. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 58.

  • 16

    de fato, todo o processo de desenvolvimento para a chegada quele fim, foi o meio

    que permitiu diferenciar os dois povos. A grande diferena est nesse meio que leva ao mesmo fim. Para ilustrar tal afirmativa, basta observar as ditaduras Latino-

    americanas que, aps constantes lutas da sociedade civil chegaram a um fim

    comum, a democracia. O simples fato de brasileiros e chilenos terem lutado por um

    mesmo ideal, contra um mesmo tipo de governo e terem atingido o mesmo fim, no

    os fazem membros de uma mesma sociedade, pois as experincias vividas nos dois

    casos foram diferentes.

    Dessa forma, possvel concluir o mesmo que Boaventura de Sousa Santos em seu livro La reinvencin del Estado y El Estado Plurinacional. Para ele,

    historicamente, exixtem dois conceitos distintos de nao: um conceito liberal, que

    associa a nao ao Estado, tornando a existncia de um impossvel sem o outro, e

    excluindo de um Estado a possibilidade de diversas naes diferentes, j que a nao est ligada a um territrio, da o conceito de Estado Nao; e um conceito comunitrio, que no restringe a existncia de uma nao a um Estado. Um exemplo

    europeu deste segundo conceito seria a Espanha, que abarca dentro do seu

    territrio diversas outras nacionalidades, como castelhanos, catales, bascos,

    galegos, andaluzes e outros. Esse conceito comunitrio o que hoje defendido pelas naes indgenas sulamericanas, que reivindicam sua autodeterminao, sem

    buscar uma independncia territorial e ser ele o conceito central adotado por esta monografia7.

    Outro conceito extremamente importante a ser compreendido o de soberania, que pode ser verificado pela primeira vez no perodo de formao dos Estados modernos e das monarquias europeias. Com esse intuito, Alain Pellet

    remete obra de Jean Bodin de 1576, Les six livres de la Republique, que define o Estado pela expresso Res publica da seguinte forma: O justo governo de vrias

    famlias e do que lhes comum com poder soberano 8, tornando, assim, o Estado e a soberania dois conceitos indivisveis. Pellet completa ainda que ao sublinhar que

    a soberania deve ser una e indivisvel, perptua e suprema, pretende, no contexto

    7 SANTOS, Boaventura de S. La reinvencin del Estado y El Estado Plurinacional. 1a ed. Cochabamba: Alianza Interinstitucional CENDA, CEJIS, CEDIB, 2007, p. 18. 8 PELLET, Alain; DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick. Direito Internacional Pblico. 2a ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003, p. 52.

  • 17

    poltico da poca, que ela devia ser monoplio de um monarca hereditrio9.

    No entanto, a concepo moderna de soberania estatal s pode ser observada com o fim da Guerra dos Trinta Anos, que culminou na concluso de dois

    tratados, em outubro de 1648, o de Osnabrck e o de Mnster, que constituem os

    Tratados de Vestflia, sendo considerados a Carta Constitucional da Europa10. Tal

    qualificao ocorre pelo fato de legalizarem formalmente o nascimento dos novos

    Estados soberanos e a nova carta poltica da Europa da resultante 11, alm de assentarem os primeiros elementos de um direito pblico europeu 12 ,

    transformando, assim, a soberania e a igualdade dos Estados em princpios

    fundamentais das relaes internacionais.

    A delimitao da soberania dos Estados permaneceu sendo discutida por

    diversos tericos do direito internacional. Hugo Grcio, um dos autores mais

    expoentes do direito natural, considerado por muitos o pai do direito internacional,

    define o poder soberano como aquele cujos atos so independentes de qualquer

    outro poder superior e no podem ser anulados por nenhuma outra vontade

    humana13, mas que deve compreender seus limites estipulados pelo direito, visto

    que no existem rgos superiores aos Estados. Portanto, a soberania do Estado

    possui como delimitadores o direito natural, que, para Grcio, consiste em certos

    princpios de reta razo que nos permitem saber se uma ao moralmente honesta ou desonesta consoante a sua conformidade ou desconformidade com uma

    natureza racional ou socivel14, e o direito voluntrio, que engloba a vontade das

    naes, por vezes, expressa atravs de acordos entre elas. Essa vontade a que se

    refere no soberana, visto que est subordinada ao direito natural. O positivismo, entretanto, afirmou que os limites da soberania vinham nica e

    exclusivamente dos tratados e dos costumes, e no de um direito superior, como

    defendido por Grcio. Entre seus principais defensores, Moser, autor de Principes du

    droit des gens actuel afirma:

    No escrevo um direito das gentes escolstico baseado na aplicao da jurisprudncia natural; no escrevo um direito das gentes

    9 PELLET, Alain. Op. Cit., p. 53. 10 Idem., p. 52-53. 11 Idem., p. 53. 12 Loc. cit. 13 GRCIO aput PELLET, Alain. Op. cit., p. 57. 14 Loc. cit.

  • 18

    filosfico construdo segundo algumas noes bizarras da histria e da natureza humana; enfim, tambm no escrevo um direito das gentes poltico no qual visionrios como o abade de Saint-Pierre plasmavam a seu talante o sistema da Europa, mas descrevo o direito das gentes que existe na realidade, como o qual os Estados soberanos regularmente se conformam.15

    Alain Pellet conclui que o direito necessrio para limitar as pretenses dos diversos Estados em exercer a soberania absoluta, afirmando que o conceito de

    soberania no pode receber um sentido absoluto e significa somente que o Estado

    no est subordinado a nenhum outro mas que deve respeitar regras mnimas garantindo o mesmo privilgio a todos os outros16. Pode-se afirmar, portanto, que,

    no plano internacional, nenhum Estado sobrepe a sua soberania a outro, o que faz

    com que eles se apresentem em situao de igualdade, estando submetidos apenas

    s regras internacionais aceitas por elas.

    Desse modo, ao se abandonar o mbito estatal e transportar a soberania para

    o internacional pode-se avaliar que h uma flexibilizao de seu conceito clssico, devido a uma organizao dos Estados em blocos econmicos, tais como o

    Mercosul e a Unio Europia. Para que tais formas de organizao fossem

    possveis, os Estados se viram obrigados a ceder parte de sua soberania a um

    rgo de viria a ser considerado superior a todos os Estados-Membros dele, de

    modo que suas decises se tornassem exequiveis imediatamente, surgindo, assim,

    a supranacionalidade. Portanto, supranacionalidade um ato pela qual os Estados-membros, livremente e por um ato de soberania, delegam aos rgos comunitrios

    poderes constitucionais para legislar sobre determinada matria17. A partir de ento,

    os Estados passam a flexibilizar sua soberania com o fim de se relacionarem com

    outros de modo igualitrio, trazendo vantagens e desvantagens para ambos. com esse conceito flexibilizado de soberania que a presente monografia pretende

    trabalhar, visto que, a partir dele, possvel aceitar que dentro de um nico Estado tenhamos diversas naes com soberania prpria perante seus indivduos.

    15 MOSER aput PELLET, Alain. Op. cit., p. 60. 16 PELLET, Alain. Op. cit., p. 85. 17 GOMES, Eduardo Biacchi. A supranacionalidade e os blocos econmicos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paran, Curitiba, v. 38, n.0, 2003, p. 162.

  • 19

    1.2. Dos Estados Nacionais aos Estados Plurinacionais

    O Estado Moderno surge com o fim da Idade Mdia, quando a Monarquia,

    exaltada sob o pretexto de ter sido escolhida por Deus para reinar e proteger seus

    sditos, cria a ideia do Absolutismo, decidindo usar de seu poder e influncia para

    subjugar todos aqueles mais fracos ou que, de algum modo, dependiam dela. A

    justificativa da criao de tais Estados pode ser analisada no Leviat de Thomas

    Hobbes, que justifica:

    A nica maneira de instituir um (...) poder comum, capaz de os defender das invases dos estrangeiros e dos danos uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurana suficiente para que, mediante o seu prprio labor e graas aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, conferir toda a sua fora e poder a um homem, ou a uma assemblia de homens, que possa reduzir todas as vontades, por pluralidade de votos, a uma s vontade.18

    Assim, criado o Estado Moderno, e, com ele, se marca o fim da longa era do constitucionalismo antigo, informal, que legitimava a forma organizacional dos

    diferentes grupos dentro de um Estado e a primazia da cultura europeia ocidental,

    legitimada atravs do constitucionalismo moderno19.

    Para Boaventura de Souza Santos, este constitucionalismo moderno extremamente oposto ao modelo anterior, se caracterizando por ser un acto libre de

    los pueblos que se imponen una regla a traves de un contrato social para vivir en

    paz dentro de un Estado, marcado por uma dupla igualdade, entre los ciudadanos

    o entre indivduos, y entre estados independientes20. Desse modo, pode-se dizer

    que ele se fundou em dois pilares, o da soberania popular e o da homogeneidade do

    povo. Assim, surgiram os Estados europeus, monoculturais, porm, ao mesmo

    tempo, com tantas naes e culturas diferentes, como o caso da Espanha, anteriormente citado.

    Entretanto, diferentemente da Europa, que viveu a transio de um

    constitucionalismo para o outro, as Amricas se depararam com a imposio da

    cultura europeia, desde o perodo das grandes navegaes, quando ocorreu sua

    colonizao at as suas independncias, que garantiriam direitos somente aos descendentes dos colonizadores, marcando a supremacia do conhecimento de

    18 HOBBES, Thomas. Leviat. 2a ed. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 147. 19 SANTOS, Boaventura de S. Op. cit., p. 20. 20 Loc. cit..

  • 20

    regulao sobre o conhecimento de emancipao.

    Tais conceitos so introduzidos por Boaventura em outro artigo, quando ele

    explica que todo conhecimento se distingue por seu tipo de trajetria, que vai de um

    ponto A chamado ignorncia a um ponto B chamado saber, e os saberes e conhecimentos se distinguem exatamente pela definio das trajetrias pelos pontos

    A e B 21 . A partir desse ponto, possvel delimitar os extremos de cada conhecimento, ou seja, seu ponto de ignorncia e o de saber.

    Dessa forma, o conhecimento de regulao caracterizado por considerar como ignorncia o caos, ou seja, uma realidade incontrolada e incontrolvel. J o saber seria a completa ordem. Enquanto isso, o conhecimento de emancipao

    tomaria como marco o colonialismo, ou seja, a incapacidade de reconhecer o outro

    como igual, e como fim a autonomia solidria, na qual as diversas naes

    coexistissem em perfeita harmonia, respeitando seus limites e contribuindo para o

    desenvolvimento mtuo.

    Contudo, ao sair vitorioso, o conhecimento-regulao instituiu uma ligao

    entre o caos e a autonomia solidria, argumentando que a solidariedade entre as

    classes perigosa, a solidariedade no povo uma forma de caos que necessrio controlar 22 e, ao mesmo tempo, o colonialismo passou a ser considerado o ideal de

    ordem. Uma vez constatado isso, Boaventura aponta cinco desafios a serem

    superados para que se possa desfazer tal associao.

    Como primeiro desafio, se estabelece a necessidade de reinventar as

    possibilidades emancipatrias atravs de uma utopia crtica. Para ele, o mundo

    encontra-se dominado por utopias conservadoras, as quais Franz Hinkelammert

    define como a radicalizao do presente 23 e Boaventura exemplifica com o

    neoliberalismo24, que justifica a fome, a desnutrio pelo fato de o mercado no ter

    21 SANTOS, Boaventura de S. Renovar a teoria critica e reinventar a emancipao social. 1a ed. So Paulo: Boitempo, 2007, p. 52. 22 SANTOS, Boaventura de S. Op. Cit., p. 53. 23 HINKELAMMERT aput SANTOS, Boaventura de S. Op. cit., p. 54. 24 (...)o neoliberalismo debatido e combatido como uma teoria econmica, quando na realidade deve ser compreendido como um discurso hegemnico de um modelo civilizatrio, isto , como uma extraordinria sntese dos pressupostos e dos valores Basicos da sociedade liberal moderna no que diz respeito ao ser humano, riqueza, natureza, histria, ao progresso, ao conhecimento e boa vida. As alternativas s propostas neoliberais e ao modelo de vida que representam no podem ser buscados em outros modelos ou teorias no campo da economia, visto que a prpria economia como disciplina

  • 21

    se expandido totalmente, mas que, quando o fizer, estaro resolvidos todos os

    problemas.

    Indica, ento, como segundos desafios o silncio e a diferena. Este primeiro

    pelo fato de, ao entrarem em contato com a cultura ocidental, as outras culturas,

    como as indgenas, por exemplo, foram caladas e at consideradas inferiores e insignificantes, reprimindo aqueles que as defendiam, ou por se considerarem parte

    ou por serem simpatizantes causa. O dilogo no possvel simplesmente porque as pessoas no sabem dizer, no porque no tenham o que dizer25. Nesse mesmo

    sentido vem o segundo ponto: a diferena intercultural. Ela deve ser compreendida e

    respeitada, abolindo as polticas de hegemonia26 e de identidade absoluta. Ileana

    Almeida compartilha desse entendimento ao afirmar que:

    (...) al funcionar el Estado como representacin de una nacion nica cumple tambin su papel en el plano ideolgico. La privacin de derechos polticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la existncia misma de otros pueblos y convierte al indgena em vitima del racismo. La ideologa de la discriminacin, aunque no es oficial, de hecho est generalizada em los diferentes estratos tnicos. Esto empuja a muchos indgenas a abandonar su identidad y pasar a forma filas de la nacin ecuatoriana aunque, po lo general, en su sectores ms explotados.27

    O terceiro desafio se apresenta na dificuldade da compreenso de que todo

    saber local. Para ela, devemos ter uma distncia crtica em relao realidade, mas ao mesmo tempo, no podemos nos isolar totalmente das conseqncias e da

    natureza do nosso saber, porque ele est contextualizado culturalmente28, ou seja, a capacidade de agir muito maior que a capacidade de prever as consequncias dessa ao. Pode-se exemplificar tal afirmativa apresentando o ato dos jesutas

    europeus, que, ao catequizarem os ndios, menosprezaram suas religies e crenas

    anteriores. Para os jesutas, tal ato tinha como objetivo converter os nativos na f crist e torn-los mais dceis, contudo, jamais poderiam imaginar que tal empreitada cientfica assume, em sua essncia, a viso de mundo liberal. Cf. LANDER, Eduardo. A colonialidade do saber: Eurocentrismo e cincias sociais. Perspectivas latinoamericanas. 1a ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005, p. 21. 25 SANTOS, Boaventura de S. Op. Cit., p. 55. 26 A hegemonia uma tentativa de criar consenso baseada na idia de que o que ela produz bom para todos. Mas houve uma mudana nessa hegemonia, e hoje o que existe deve ser aceito no porque seja bom, mas porque inevitvel, pois no h nenhuma alternativa. Idem. 27 ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional: valor histrico e libertad poltica para los indgenas ecuatorianos. 1a ed. Quito: Editora Abya Yala, 2008, p.19. 28 SANTOS, Boaventura de S. Op. Cit., p. 57.

  • 22

    causaria o suicdio de milhares de ndios que no se conformavam com o fato de

    sua cultura e crena serem consideradas erradas.

    Outro desafio institudo o de se criar subjetividades rebeldes e no apenas subjetividades conformistas. Para Boaventura, todos os indivduos possuem duas

    correntes, uma fria e uma quente, explicando a primeira como a conscincia dos

    obstculos e a segunda como a vontade de super-los. Portanto, h culturas que so mais introspectivas e no esto sujeitas a novidades, enquanto h outras mais flexveis, dispostas a progredir. Dessa forma, necessrio que se mantenha a corrente fria para que no haja o risco de engano, mas tambm a corrente quente

    para que no se desista no surgimento da primeira dificuldade.

    Por fim, o quinto desafio, e o maior deles, o que ele chamaria de ps-colonialismo. Aqui, quando se fala de colonialismo, no se refere ao colonialismo

    poltico de uma metrpole sobre sua colnia, mas a um colonialismo cultural, do

    Norte sobre o Sul, ou seja, a transposio dos valores eurocntricos para o resto do

    mundo; de modo que, nas palavras de Eduardo Lander,

    a superioridade evidente desse modelo de organizao social e de seus pases, cultura, histria e raa fica demonstrada tanto pela conquista e submisso dos demais povos do mundo, como pela superao histrica das formas anteriores de organizao social, uma vez que se logrou impor na Europa a plena hegemonia da organizao liberal da vida sobre as mltiplas formas de resistncia com as quais se enfrentou.29

    Tal conceito de ps-colonialismo de extrema importncia para a compreenso dos motivos que levaram ao surgimento do Estado Plurinacional e que

    ser retomado posteriormente. Entretanto, a luta para superar tais desafios j vem sendo travada por diversos pases da Amrica do Sul, o que garantiu o surgimento de um terceiro tipo

    de constitucionalismo, plurinacional, pluricultural e pluritnico. Esse

    constitucionalismo se funda na interculturalidade, ou seja, no fato de que, apesar de

    existirem diversas naes com diferentes costumes, organizaes polticas e

    culturas dentro de um mesmo Estado, poder haver, ainda assim, uma cultura comum

    e compartilhada, que se verifica na organizao da sociedade plurinacional e em sua

    29 LANDER, Eduardo. Op. cit., p. 33.

  • 23

    convivncia30.

    Dessa forma, o constitucionalismo plurinacional constitui a base para o

    surgimento do Estado Plurinacional e, como tal, se caracteriza como um dos marcos

    tericos desta monografia.

    1.3. Monismo estatal e pluralismo jurdico

    Conforme visto anteriormente, o Estado Nao marcou a era da nao nica,

    vinculada ao territrio e, a partir de ento, a nao determinada como mais

    avanada passou a se sobrepor a todas as outras e ser considerada como norte de

    desenvolvimento e sabedoria, no s cultural e poltica, como tambm jurdica31. Surge, assim, um fenmeno jurdico conhecido como Monismo Estatal, marcado por

    um poder centralizado e burocrtico, no qual somente o Estado e seus rgos so

    capazes de produzir o direito, sustentado no modo de produo capitalista, na

    sociedade burguesa, na ideologia liberal-individualista e no moderno Estado

    Soberano.

    Wolkmer estabelece, portanto, o capitalismo como um marco para o

    surgimento desse novo modelo jurdico que rompeu com o pluralismo corporativista

    medieval, e analisa, atravs de Gian R. Rusconi, seus pressupostos essenciais:

    a) propriedade privada dos meios de produo, para cuja ativao necessria a presena do trabalho assalariado formalmente livre; b) sistema de mercado, baseado na iniciativa e na empresa privada, no necessariamente pessoal; c) processos de racionalizao dos meios e mtodos diretos e indiretos para a valorizao do capital e a explorao das oportunidades de mercado para efeito de lucro.32

    Desse modo, o capitalismo serviu como alavanca para que a burguesia se

    consolidasse como nova classe dominante, controlando as novas formas de

    organizao do poder e estabelecendo sua cultura liberal individualista. Nas

    palavras de Marx, a burguesia desempenhou na Histria um papel eminentemente

    30 SANTOS, Boaventura de S. La reinvencin del Estado y El Estado Plurinacional. 1a ed. Cochabamba: Alianza Interinstitucional CENDA, CEJIS, CEDIB, 2007, p. 18. 31 Para Wolkmer, ao se conceber o Direito como produto da vida humana organizada e como expresso das relaes sociais provenientes de necessidades, constatar-se- que, em cada perodo histrico da civilizao ocidental, domina um certo tipo de ordenao jurdica. WOLKMER, Antonio C. Pluralismo Jurdico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3a ed. So Paulo: Editora Alfa e Omega, 2001, p. 26. 32 RUSCONI, Gian R. aput WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 30.

  • 24

    revolucionrio. (...) Onde quer que ela tenha conquistado o poder, a burguesia jogou

    por terra as relaes feudais, patriarcais e idlicas33, utilizando do liberalismo,

    baseado na noo de liberdade total, como bandeira revolucionria contra o antigo

    Regime Absolutista. No entanto, a burguesia que brotou das runas da sociedade

    feudal, no aboliu os antagonismos de classe. No fez mais do que estabelecer

    novas classes, novas condies de opresso, novas formas de luta em lugar das

    velhas34.

    Vitoriosa, a burguesia tratou de enraizar como seu fundamento ideolgico-

    filosfico o liberalismo-individualista, instaurando nova fase do Estado Moderno,

    revestido do monoplio da fora soberana, da centralizao, da secularizao

    utilitria, que deslocou o controle scio-poltico da Igreja para a autoridade soberana

    e laica, e da burocracia administrativa. dessa racionalizao da fora soberana somada positividade formal do direito que surge o Monismo Estatal, que, como visto anteriormente, garante ao Estado a exclusividade de legislar e de julgar, por

    intermdio de seus rgos, revestidos de leis gerais e abstratas, sistematizadas no

    Direito Positivo. O Estado, ento, para legitimar sua ordem jurdica, limita sua

    atuao atravs de uma legislao que concede certos direitos aos indivduos,

    criando o Estado de Direito, que se auto-afirma como neutro, sendo controlado e

    regulado pelo direito35.

    Para se sustentar, o Estado Moderno baseou sua doutrina em quatro

    pressupostos ideolgicos principais: a estatalidade, ou seja, o Estado soberano e detm exclusividade na produo das normas jurdicas; a unicidade, pois o direito

    Estatal burocrtico-centralizador, o que significa dizer que ele unifica nacionalmente o direito, j que, de outro modo, no seria possvel a supremacia Estatal; a positivao, visto que todo o direito est regulamentado por um conjunto de regras coercitivas que legitima a organizao centralizada do poder,

    determinando rgos fiscalizadores do cumprimento de suas regras; e, por fim, a

    racionalizao, que, conforme Max Weber, pode ser material, relacionada aos

    valores, tica da convico e razo substancial, de modo que os meios quase sempre costumam ser escolhidos aps determinao dos fins desejados. (...) a

    33 MARX, Karl H., ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 10a ed. So Paulo: Global Editora, 2006, p. 86. 34 Idem, p. 84-85. 35 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 40-49.

  • 25

    racionalidade material traduz a subordinao das normas individuais s normas

    gerais, basicamente em razo de seu contedo36, ou formal, segundo a qual os atos

    so definidos a partir da razo instrumental e dos procedimentos tcnico-formais, os

    fins so determinados em funo de procedimentos previamente definidos,

    conhecidos e regulados por uma ordem legal.37

    No entanto, o direito nunca foi uma constante na sociedade moderna, de

    modo que se pode identificar quatro grandes fases do monismo, a formao, a

    sistematizao, o apogeu e a crise do paradigma.

    A primeira fase, conforme dito anteriormente corresponde formao do monismo jurdico, situada entre os sculos XVI e XVII, caracterizada pelo

    rompimento com o pluralismo corporativista medieval e com a Igreja, fundando-se no

    capitalismo mercantil e no fortalecimento do poder aristocrtico, culminando em um

    Estado Absolutista, que se utilizava do Jusnaturalismo38 para legitimar as decises

    de seus soberanos absolutistas. Para compreender tal perodo, vale retornar a

    Hobbes, que afirma que a lei civil estatal para todo sdito constituda por aquelas regras que a repblica39 lhe impes, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal

    suficiente da sua vontade, para usar como critrio de distino entre o bem e o mal,

    admitindo ainda que o legislador soberano e que a repblica o nico legislador, de modo o soberano de uma repblica (...) no se encontra sujeito das leis civis.

    Como tem o poder de fazer e revogar leis, pode, quando lhe aprouver, libertar-se

    dessa sujeio, revogando as leis que o estorvam e fazendo outras novas40.

    O segundo perodo se inicia com a Revoluo Francesa e se estende at o final das principais codificaes do sculo XIX. Trata-se da verdadeira etapa de

    consolidao da legalidade estatal burgus-capitalista, sob as bandeiras de

    liberdade, igualdade e fraternidade. Dessa forma, o papel do soberano absolutista substitudo pela tripartio de poderes e pelo iderio do Estado enquanto vontade da

    36 WEBER, Max aput WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 64 37 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 60-65. 38 O Jusnaturalismo defende a existncia de um Direito Natural, decorrente de um valor tico, que se sobrepe ao Direito Positivo, do ordenamento jridico. Bonavides ensina: (...) Os princpios habitam ainda esfera por interior abstrata e na sua normatividade, basicamente nula e duvidosa, contrasta com o reconhecimento de sua dimenso ticovalorativa ou idia que inspira os postulados de justia. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24a ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 259. 39 Cabe lembrar que, nesse perodo, compreendia-se repblica como Estado. 40 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 226-227.

  • 26

    nao. Wolkmer afirma que:

    (...) a burguesia, ao instalar-se no poder, no s cobe as formas herdadas de organizaes corporativas, como, sobretudo, cria uma moderna instituio burocrtica centralizadora (Conselho de Estado) e implementa, mediante o controle do poder estatal, um corpo orgnico de normas abstratas, genricas e sistematizadoras, visando a constituir um Direito nacional unificado.41

    Portanto, a partir da Revoluo Francesa, tornou-se possvel o fortalecimento

    do Jusnaturalismo que, aliando-se aos ideais iluministas e dinmica de unificao legal, garantiram o surgimento das codificaes que viriam a ser responsveis pela

    consolidao da burguesia como nova classe dominante. Promulgadas as grandes

    constituies, surge, ento um lao ainda maior entre o Estado e o Direito, o que

    contribuiu para o surgimento da teoria do Positivismo Jurdico. Apesar de no

    ameaar a hegemonia do Jusnaturalismo no perodo, o positivismo jurdico viria a se

    tornar a principal doutrina jurdica contempornea, ao afirmar que o Estado soberano e nica fonte de direito42, legitimando-o como expoente mximo da fora43.

    Nesse sentido, Rudolf Von Jhering afirma em sua obra O Fim no Direito que:

    (...) (o) Direito de coao social acha-se somente nas mos do Estado; o seu monoplio absoluto. Toda associao que queira fazer valer os seus direitos contra os seus membros, mediante a fora, deve recorrer ao Estado, e este fixa as condies segundo as quais presta o seu concurso. Em outros termos, o Estado a fonte nica do Direito, porque as normas que no podem ser impostas por ele no constituem regras de direito. No h, pois, direito de associao fora da autoridade do Estado, mas apenas direito de associao derivado do Estado. Este possui, como exigido pelo princpio do poder soberano, a supremacia sobre todas as associaes de seu territrio, e isto se aplica tambm Igreja.44

    Pode-se dizer que a terceira fase monstica se define no sculo XVIII, com

    esse aumento do intervencionismo scio-econmico do Estado, porm, se consolida

    somente no sculo XIX e atinge seu apogeu dos anos 20/30 aos anos 50/60 do

    sculo XX. Essa fase marcada pelo centralismo jurdico defendido pela Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, ou seja, Kelsen descarta o dualismo Estado-

    Direito, fundindo-os, de tal modo que o Direito passou a ser o Estado, e o Estado o 41 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 52. 42 Dessa forma, abandona-se o Direito Natural, de modo que, segundo Bonavides, os princpios estavam entrando nos cdigos como fora normativa subsidiria, ou seja, s seriam aplicados quando a lei fosse omissa. Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 262. 43 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 51-56. 44 JHERING, Rudolf von. aput WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 56.

  • 27

    Direito Positivo45. Portanto, surge, assim, o Estado do Bem-Estar Social, com

    intervencionismo poltico-jurdico, defensor do monoplio nos meios de produo,

    das liberdades e direitos civis individuais, denominados direitos sociais e que, posteriormente, no sculo XIX, defenderia a expanso dos direitos polticos da

    cidadania e do voto46.

    O ltimo grande perodo monstico se inicia por volta dos anos 60/70 com o

    enfraquecimento produtivo do Estado do Bem-Estar Social, forando uma

    reordenao e globalizao do capital monopolista. Isso ocorre porque, passada a

    Segunda Guerra Mundial, a legalidade que sustentou por tanto tempo a

    modernidade burgus-capitalista mostrou-se ineficaz perante as novas demandas

    poltico-econmicas, o aumento dos conflitos entre grupos e classes, e o surgimento

    de complexas contradies culturais e matrias de vida inerentes sociedade de massa47.

    Dessa forma, o modelo burocrtico-centralizador apresentado pela burguesia

    no amanhecer do Capitalismo mostra-se cada vez mais frgil e incapaz de

    obscurecer as desavenas entre classes e os conflitos sociais na periferia do

    sistema, tornando inadivel a discusso acerca da necessidade de um novo

    referencial para o direito que solucione a crise do projeto jurdico estatal. Torna-se

    essencial, nas palavras de Celso Campilongo, abandonar a concepo meramente

    legalista da justia, de modo que, ao desvincular o direito da lei, se permita a

    soluo de conflitos atravs de frmulas inteiramente novas de negociao,

    mediao e arbitramento48. a partir desse quadro de desgaste que surge, na periferia do Capitalismo, a proposta progressista do pluralismo jurdico de base

    democrtico-participativa, defensor da multiplicidade de fontes normativas no

    obrigatoriamente estatais, de uma legitimidade embasada nas justas exigncias fundamentais de sujeitos sociais e, finalmente, de encarar a instituio da Sociedade

    como estrutura descentralizada, pluralista e participativa49.

    O pluralismo, portanto, reconhece a existncia de diversas culturas,

    sociedades, religies, enfim, realidades, com particularidades prprias que se

    45 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 57. 46 Idem., p. 57-58. 47 Idem., p. 59. 48 CAMPILONGO, Celso F. aput. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 76. 49 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 78.

  • 28

    correlacionam de forma igualitria dentro de um Estado, respeitando-se

    mutuamente. Pode-se estabelecer, ainda, diversas concepes de pluralismo, tais

    como filosfica, cultural, sociolgica, poltica, econmica e ideolgica.

    A concepo filosfica de pluralismo defende que h uma independncia e, ao mesmo tempo, uma inter-relao entre as realidades e os princpios diversos.

    Nesse mesmo sentido, N. Glazer define pluralismo cultural como um estado de

    coisas no qual cada grupo tnico mantm, em grande medida, um estilo prprio de

    vida, com seus idiomas e seus costumes, alm de escolas, organizaes e

    publicaes especiais50. A concepo sociolgica, por sua vez, vai de encontro ao

    absolutismo estatal soberano, defendendo uma ampliao das diversas associaes

    livres, de tal modo que estas sejam capazes de mediar a relao entre o indivduo e

    o Estado, conceito muito prximo ao poltico, que luta contra um poder unitrio

    hegemnico, buscando um complexo corpo societrio formado pela multiplicidade

    de instancias sociais organizadas e centros autnomos de poder51. Por fim, a

    concepo econmica defende a inter-relao entre empresas pblicas e privadas,

    que concorrem entre si. A poltica, conforme defende Bobbio, refere-se s diversas

    orientaes de pensamento, diversas vises de mundo, diversos programas polticos

    (...) no uniformes52.

    Aps analisar as diversas concepes acerca do pluralismo, ressaltada a necessidade de uma delimitao de seus Princpios norteadores. O primeiro a ser

    listado a autonomia, que garante s diversas associaes livres independncia do Estado, de modo que tais associaes s sero eficazes quando forem livres e reivindicarem seus direitos. Outro princpio o da descentralizao, que defende o deslocamento dos centros de deciso das instituies formais para as esferas locais

    e fragmentadas, garantindo, assim, igualdade entre os diversos sujeitos coletivos de

    um Estado, incitando a participao de base. Ainda com esse ideal, tem-se outro

    Princpio: o localismo, que ressalta o poder local em contraponto ao estatal, ou seja,

    na capacidade das foras sociais determinarem, entre si, suas relaes econmicas,

    culturais e polticas, sem a necessidade do intermdio do Estado. A diversidade um Princpio cujo nome auto-explicativo, significa dizer que o pluralismo funda suas bases nas diferenas de cada grupo. O ltimo Princpio elencado o da 50 LEISERSON, Avery aput. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 172. 51 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 173. 52 BOBBIO, Norberto. aput. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 173.

  • 29

    tolerncia. Tal Princpio se aproxima de conceitos como o da liberdade e da

    autodeterminao, ao pregar que deve haver um respeito mtuo entre os diversos

    sujeitos coletivos do Estado.

    Compreendidos os conceitos de Nao e Soberania, os diferentes tipos de

    constitucionalismo e determinando o Pluralismo Jurdico como o quarto marco

    terico, possvel, agora, aplicar tais conceitos da realidade internacional. Esse ser o tema tratado a seguir.

    2. RECORTE HISTRICO E GEOPOLTICO

    Com o fim da Guerra Fria e a desintegrao da Unio Sovitica, as recentes

    democracias sulamericanas se depararam, no incio da dcada de 90, com o

    enfraquecimento de suas esquerdas nacionais, concomitante com um pacote de

    medidas econmicas que passava a ser imposto pelo Consenso de Washington53,

    apresentando o neoliberalismo como nica soluo para a profunda crise na regio. O desaparecimento ou derrota das principais oposies polticas que historicamente se confrontaram na sociedade liberal (o socialismo real e as organizaes e lutas populares anticapitalistas em todas as partes do mundo), bem como a riqueza e o poderio militar sem rivais das sociedades industriais do Norte, contribuem para a imagem da sociedade liberal de mercado como a nica opo possvel, como o fim da Histria.54

    A vitria do capitalismo sobre o socialismo serviu como locomotiva para a

    reascenso das economias que se encontravam em crise, no s devido crise do Petrleo, na dcada de 1970, como tambm pelo fato de no terem se recuperado

    por completo dos efeitos da grande crise de 1929. A necessidade de um contraponto

    ao que era anteriormente pregado pelo Oriente gerou um repdio poltica intervencionista do estado e ao estado de bem-estar social.

    Nesse sentido, Stephen Gill aponta que surgimento e efetivao do 53 A disciplina fiscal, uma poltica de austeridade, de modo a conter o processo inflacionrio, praticamente j fora do controle, constitua, de fato, uma necessidade, para que os pases da Amrica Latina pudessem retomar o crescimento econmico autosustentvel. As medidas recomendadas pelo que se convencionou chamar de Washington Consensus, rejuvenescendo e encorajando os princpios do liberalismo/libertarianismo econmico, sobretudo a privatizao das empresas estatais, a desregulamentao da economia e a liberalizao unilateral do comrcio exterior (...). BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formao do Imprio Americano: da guerra contra a Espanha guerra no Iraque. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006, p. 518. 54 LANDER, Eduardo. Op. cit., p. 22.

  • 30

    neoliberalismo caracterizou uma significativa mudana na economia poltica global,

    marcada por um profundo descaso pelos recursos energticos, ecolgicos e sociais,

    conforme apontado diversas vezes por relatrios do Programa de Desenvolvimento

    da Organizao das Naes Unidas (PNUD). A partir de ento, o sistema

    individualista se tornou modelo para as relaes interpessoais, discriminando

    programas sociais e aumentando o contingente de pessoas marginalizadas,

    foradas a trabalhar no setor informal e a morar em favelas ou em reas rurais distantes55.

    Porm, o individualismo no foi a nica novidade trazida com a nova era

    econmica. A globalizao foi a grande responsvel pela perpetuao do

    imperialismo dos pases do norte sobre os do sul, atravs da multiplicao das multinacionais que eram exportadas para estes pases e que quebravam as indstrias locais, tornando-as incapazes de competir; o estabelecimento de

    instituies internacionais financeiras56, como o FMI (Fundo Monetrio Internacional)

    e o Banco Mundial, que, alm de interferirem nas polticas econmicas,

    direcionavam os gastos dos pases perifricos. Lnin considera o imperialismo uma

    fase evoluda do capitalismo, sendo possvel traar seus cinco princpios bsicos,

    que so facilmente identificados no presente contexto:

    1) a concentrao da produo e do capital levada a um grau to elevado de desenvolvimento que criou os monoplios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econmica; 2) a fuso do capital bancrio com o capital industrial e a criao, baseada nesse "capital financeiro" da oligarquia financeira; 3) a exportao de capitais, diferentemente da exportao de mercadorias, adquire uma importncia particularmente grande; 4) a formao de associaes internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potncias capitalistas mais importantes. O imperialismo o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominao dos monoplios e do capital financeiro, adquiriu marcada importncia a exportao de capitais, comeou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os pases capitalistas mais importantes.57

    55 GILL, Stephen (org.). Gramsci: materialismo histrico e relaes internacionais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p.13 56 Cox afirma que as instituies internacionais tambm desempenham um papel ideolgico. Elas ajudam a definir diretrizes polticas para os Estados e a legitimar certas instituies e prticas no plano nacional, refletindo orientaes favorveis s foras sociais e econmicas dominantes. COX, Robert W. Gramsci, hegemonia e relaes internacionais: um ensaio sobre o mtodo. in. GILL, Stephen. Op. cit., p. 121. 57 LENINE, Vladimir I. O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Net. Moscou, 1917. Disponvel em .

  • 31

    O fantasma dessas crises trazia consigo a necessidade de uma reformulao

    no cenrio econmico global. Dessa forma, o capitalismo apresentou duas correntes

    opostas que lutaram pela hegemonia, o keynesianismo, que, segundo Hobsbawn,

    defendia que os altos salrios, pleno emprego e o Estado de Bem-estar haviam

    criado a demanda de consumo que alimentara a expanso, e que bombear mais

    demanda na economia era a melhor maneira de lidar com as depresses

    econmicas, e os neoliberalismo, afirmando que a economia e a poltica da Era de

    Ouro impediam o controle da inflao e o corte de custos tanto no governo quanto

    nas empresas privadas, assim permitindo que os lucros, verdadeiro motor do

    crescimento econmico numa economia capitalista, aumentassem58. Cabe ressaltar

    que o papel das agencias internacionais recentemente criadas foi essencial para a

    definio do novo modelo econmico a ser adotado. Nesse sentido, afirmam Augelli

    e Murphy:

    As agencias intergovernamentais, principalmente o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Mundial, passaram a ser um dos poucos centros de poder do bloco ocidental reconstitudo interessado em transformar a poltica de uso da fora no Terceiro Mundo em uma poltica para construir consenso. As agencias intergovernamentais se juntaram e se reuniram a algumas instituies privadas da sociedade civil internacional na luta ideolgica contra as muitas verses do keynesianismo global.59

    O Consenso de Washington trouxe consigo a vitria do neoliberalismo sobre

    o at ento vigente modelo de Estado intervencionista. Entre seus princpios centrais, pode-se grifar:

    I poltica fiscal: cortes radicais nos gastos correntes (notadamente em salrios, gastos sociais e subsdios diversos) e no investimento pblico; poucas alteraes na tributao em face da restrio da demanda; II poltica monetria: conter drasticamente a expanso dos meios de pagamento, do crdito interno e elevao das taxas de juros reais; III poltica salarial: conteno dos reajustamentos e queda do salrio real; IV - poltica cambial e de comrcio exterior: desvalorizao do cmbio, incentivos s exportaes e restries s importaes.60

    Acesso em: 9 mai. 2011. 58 HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O breve sculo XX: 1914-1991. 2a ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 399. 59 AUGELLI, Enrico e MURPHY, Craig N. Gramsci e as relaes internacionais: uma perspectiva geral com geral com exemplos da poltica recente dos Estados Unidos no Terceiro Mundo. in. GILL, Stephen. Op. cit., p. 211 60 CANO, Wilson. Soberania e poltica econmica na Amrica Latina. 1a ed. So Paulo: UNESP, 2000, p. 34.

  • 32

    A implementao das polticas de orientao neoliberal acabou por

    enfraquecer o Estado e estagnar a indstria que perdeu seu papel para a

    especulao financeira. Nesse sentido, Lnin afirma que a exportao de capitais

    (...) acentua ainda mais este divrcio completo entre o setor dos rentiers

    (especuladores) e a produo, imprime urna marca de parasitismo a todo o pas,

    que vive da explorao do trabalho de uns quantos pases e colnias do ultramar61.

    Segundo Chomsky:

    Em 1971, 90 por cento das transaes financeiras internacionais tinham alguma relao com a economia real comrcio e investimentos de longo prazo e 10 por cento eram especulativas. Em 1990, essa proporo se inverteu e, por volta de 1995, cerca de 95 por cento de um valor total imensamente maior era de natureza especulativa, com fluxos dirios que geralmente excediam as reservas em moeda estrangeira das sete maiores potncias industriais somadas, ou seja, mais de um trilho de dlares, por dia, a curtssimo prazo: cerca de 80 por cento com prazo de resgate de uma semana ou menos.62

    As transnacionais se tornaram ainda mais fortes ao comprarem as empresas

    privatizadas de pases subdesenvolvidos, concentrando mais de 50% da renda

    mundial em 300 corporaes, enquanto 70% da populao mundial se manteve em

    situao de pobreza ou pobreza extrema, segundo dados do Banco Mundial63. Foi

    surgindo, assim, a globalizao, com a diminuio do poder dos Estados. As

    empresas transnacionais eram apoiadas pelos governos dos pases desenvolvidos,

    e entravam no mercado dos pases mais pobres oferecendo produtos e servios de

    melhor qualidade que suas empresas, a preos mais acessveis, se tornando, ento,

    fortes comercial e economicamente para que, no futuro, viessem a intervir nestes

    estados perifricos.

    Nas palavras de Bautista,

    la globalizacin es un proceso que se define por la prdida de las fronteras nacionales como limitadoras del espacio donde tienen lugar los flujos comerciales y econmicos principalmente. Este proceso cuenta con diversos motores: a) El impulso empresarial con

    61 LENINE, Vladimir I. Op. cit. Disponvel em http://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap8.htm 62 CHOMSKY, Noam. O lucro ou as Pessoas? Coletivo Sabotagem, 2004, p. 12-13. 63 ARAUJO, Rafael Pinheiro de. Dissertao de ps-graduao: Por uma anlise comparada entre os movimentos sociais na Bolvia e Venezuela e os partidos polticos MAS (Movimento al Socialismo) e PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009, p. 35.

  • 33

    desarrollo tecnolgico punta, b) La sed insaciable de acumulacin de capital y c) La accin poltica, voluntaria o bajo presin, de los representantes de los Estados nacionales respecto a participar en el juego globalizador.64

    Nesse sentido, aps definir o Estado como la forma de organizacin poltica

    de una comunidad cuyo propsito es el bien comn, la justicia, la liberdad y la

    felicidad de su pueblo65, ele conclui que, ao perder seu foco do bem estar de seu

    povo, ele perde tambm sua razo de existir. Isso ocorre pelo fato de, ao abraar o

    neoliberalismo combinado com a globalizao, os Estados foram levados a adotar

    novos aspectos polticos, econmicos, sociais e culturais, baseados nos que foram

    adotados nos pases centrais. Bandeira afirma que:

    Esse elenco de reformas, que representava, em realidade, o consenso existente entre o Departamento do Tesourso dos Estados Unidos, o FMI e o Banco Mundial, resumia-se na recomendao de que o Estado se retirasse da economia, quer como empresrio quer como regulador das transaes domsticas e internacionais, de modo que toda a Amrica Latina e o resto do Terceiro Mundo se submetessem s foras do mercado, ou seja, das 51 maiores corporaes, a maior parte americanas, transformadas em virtuais Estados transnacionais.66

    No entanto, Chomsky ressalta que nem todos os pases seguiram a cartilha

    neoliberal. A Europa, em conjunto com os Estados Unidos e alguns pases do leste

    asitico mantiveram seu protecionismo e interveno estatal. Ele apresenta o Japo

    como exemplo de subverso poltica do livre mercado, ao adotar uma poltica de Estado forte e intervencionista. (...) desprovido de uma base de recursos naturais, o

    Japo se tomou, na dcada de 1990, a maior economia industrial do mundo e a

    mais importante fonte mundial de investimento estrangeiro, alm de responder por

    metade da poupana lquida mundial e financiar o dficit norte-americano67.

    O mesmo se passou nas ex-colnias japonesas. Nem Taiwan, nem a Coria

    do Sul adotaram polticas neoliberais, mantendo o Estado forte e interventor. O

    destino foi muito diferente desses pases do Leste Asitico para os que adotaram o

    neoliberalismo como modelo a ser seguido.

    64 BAUTISTA, Oscar Diego. Ideologa neoliberal y poltica de globalizacin. Medidas implementadas por los pases globalizadores y cambios generados en los pases globalizados. p. 6-7. 65 Idem., p. 12. 66 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op. cit., p. 520. 67 CHOMSKY, Noam. Op. cit., p. 17.

  • 34

    Entre as principais alteraes polticas sofridas, Bautista grifa a incorporao

    do marketing s campanhas polticas, mudando o papel da imprensa, que passa a

    atuar como panfletria do candidato de sua preferncia. Alm disso, ocorre a

    vinculao do governo aos interesses privados, se tornando refm, vez que estes

    investem da campanha dos candidatos que se sentem obrigados a retribuir o

    investimento ao serem eleitos, alm do surgimento dos lobbies, que, apesar de

    ilegais no Brasil, so autorizados em muitos pases. Por fim, h a desestruturao do Estado, j que, segundo ele, ao privatizar suas estatais, aumenta a taxa de desemprego, devido s polticas de cortes, o que faz com que a populao se torne

    descrdita no Estado, tendo, por consequncia, sua desestruturao.

    J no mbito econmico, houve uma maior concentrao da riqueza, vez que as empresas multinacionais compraram as menores, que eram incapazes de

    competir com aquelas, consolidando seu poder econmico. Bautista grifa que en

    algunos Estados, sobre todo del tercer mundo, una empresa llega a tener ms poder

    que el mismo gobierno e incluso puede ser capaz de desestabilizarlo68. Com o

    enfraquecimento econmico do Estado, surge a negligncia com a educao, sade,

    qualidade de vida, emprego, e tudo que possa ser ligado ao gasto social,

    culminando na privatizao desses setores, excluindo, cada vez mais, os setores

    mais pobres da sociedade.

    Essa conjuntura de descaso e excluso serviu como alavanca para o

    fortalecimento de movimentos sociais que reivindicavam mudanas na poltica do

    governo, como maior distribuio de renda, mais empregos e melhor qualidade de

    vida. Esses movimentos se espalharam em grande parte dos pases

    subdesenvolvidos e em desenvolvimento, principalmente no caso da Amrica do

    Sul, que ser objeto de estudo a seguir.

    2.1. A Amrica Latina

    A dcada de 80 foi marcada pela redemocratizao da grande maioria dos

    pases latino-americanos, que enfrentavam graves crises econmicas geradas pela

    grande fuga de capitais, tanto estrangeiros quanto nacionais, o que contribuiu para

    um aumento incontrolvel da inflao e, consequentemente, a estagnao

    68 BAUTISTA, Oscar Diego. Op. cit., p.15.

  • 35

    econmica. O quadro de retrao econmica do sul comeava a afetar os Estados

    Unidos, que, alm de no receberem o pagamento das dvidas da Amrica Latina,

    tiveram suas exportaes diminudas.

    Foi nesse contexto que os Estados Unidos apresentou um plano, em 1989,

    visando promover a reduo no valor da dvida externa, mediante a diminuio do

    principal ou das taxas de juros, a extenso dos prazos de pagamento e a

    substituio de obrigaes com taxas de juros flutuantes, por ttulos com taxas

    fixas69. A condio para que os pases se adequassem ao plano de reduo da

    dvida externa era que estes realizassem reformas estruturais inspiradas nas recomendaes do Consenso de Washington. Bandeira grifa, ainda, que tanto os

    pases do sul quanto os do Leste Europeu foram forados pelo FMI e pelo Banco

    Mundial a empreenderem eles mesmos ajustes estruturais, em base permanente,

    enquanto as potncias industriais poderiam faz-lo voluntariamente70.

    Chomsky revela que documentos de alto nvel, antes secretos, apontam como

    maior ameaa aos interesses estadunidenses na Amrica Latina os regimes

    nacionalistas e radicais sensveis presso popular pela melhoria imediata do baixo nvel de vida das massas e por um desenvolvimento voltado ao atendimento das necessidades do pas 71 . Para o governo americano da poca, essas

    tendncias conflitam com a exigncia de um clima poltico e econmico propcio

    para o investimento privado, com a adequada repatriao dos lucros e a proteo

    de nossas matrias-primas nossas, ainda que localizadas em outro pas72. Dessa forma, ao impor sua poltica econmica, os Estados Unidos impediau o retorno

    desses governos e manteve o excedente de capital nas transnacionais que,

    consequentemente, eram exportados para seus pases sede, eliminando os

    investimentos sociais que visavam a distribuio de renda.

    Com relao a isso, Galeano conclui que a industrializao dependente

    agua a concentrao de renda, dos pontos de vista regional e social.A riquesa

    gerada no se irradia sobre o pas inteiro nem sobre a soiedade inteira, mas

    69 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op. cit., p. 517. 70 Idem. p. 518. 71 CHOMSKY, Noam. Op. cit., p. 11. 72 Loc. cit.

  • 36

    consolida os desnveis existentes e at os aprofunda73. O contraste nas sociedades era visvel, de um lado o crescimento espantoso das empresas internacionais, que

    lucravam com a produo a baixos custos, contrastados com os produtos

    manufaturados extremamente supervalorizados; do outro, o aumento do

    desemprego, diminuio de salrios, dos direitos trabalhistas e dos investimentos

    estatais no desenvolvimento social.

    A consequncia desse quadro foi o aumento em 7,8% do nmero de pessoas

    em situao de pobreza e misria de 1980 1990, alcanando a marca de 200 milhes de pessoas, nmero que ainda aumentaria um pouco at 2002, quando chegou a 221 milhes 74 . Cabe ressaltar que considera-se pobre, segundo a

    Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL), a renda familiar

    dividida pelo nmero de membros menor que a linha da pobreza, ou seja, o montante mnimo necessrio para que se satisfaa as necessidades essenciais75.

    O aumento da pobreza foi um fator chave para o aumento da criminaidade e

    do narcotrfico que, apesar de serem extremamente combatidos desde seu

    surgimento, nunca receberam programas sociais para a recuperao das classes

    marginalizadas que se submetem a tais fardos.

    Alm disso, desemprego e a falta de perspectiva de contrataes acabou por

    ampliar o setor informal76 da economia, nesse sentido, o emprego formal cresceu

    somente 2,2% na Amrica Latina dos anos 90, sendo 2,2% no setor privado e 0,7%

    no pblico, enquanto o emprego informal crescia 2,8% por ano77.

    73 Galeano, Eduardo. As veias abertas da Amrica Latina. 49a ed. So Paulo: Editora Paz e Terra, 2009, p. 323. 74 CEPAL. Panorama social da Amrica Latina - 2006. Net. Santiago do Chile, fev. 2006, p. 59. Disponvel em: . Acesso em: 17 mai. 2011. 75 A linha da pobreza determinada pelo valor da cesta bsica de bens e servios na moeda de cada pas. Idem, p. 62. 76 Compreende-se por economia informal uma modalidade urbana caracterizada por: 1) existncia de barreiras ao ingresso no mercado de trabalho, seja pela competncia, renda ou organizao; 2) as empresas de propriedade familiar; 3) a reduzida escala de operaes; 4) a utilizao de mtodos de produo com grande nmero de trabalhadores e pouca tecnologia; e 5) a existncia de mercados no regulamentados e competitivos. Por esse ponto de vista, a atividade informal no , obrigatoriamente, ilegal, e sim uma resposta da sociedade civil a uma interferncia no desejada do Estado. PORTES, Alejandro; HALLER, William. La economa informal. Net. Santiago do Chile, Nov. 2004, p. 9-10 e 42. Disponvel em: . Acesso em 25 mai. 2011. 77 CEPAL. Panorama social da Amrica Latina - 2006. Op. cit., p.115.

  • 37

    Essa conjuntura de sucateamento do Estado e crescente excluso social

    serviu como alavanca para o crescimento de movimentos sociais que buscavam a

    melhoria na qualidade de vida em seus pases, uma maior distribuio de renda e

    igualdade de direitos para todos os nacionais, com o fim de acabar com a histrica

    segregao vivida pelas minorias tnicas. Esses movimentos terminaram por eleger,

    em grande parte da Amrica Latina, presidentes que viriam a governar voltados para

    as classes mais excludas da sociedade, como por exemplo, o que ocorreu na

    Bolvia, com Evo Morales, eleito pelos povos originrios para acabar com a histrica

    excluso destes no Estado. Ser sobre este caso que a presente monografia se aprofundar a seguir.

    3. O CASO DA BOLVIA

    Assim como em toda a Amrica Latina, a Bolvia passou por um grande

    perodo militar, que se estendeu de 1964 a 1982, paralisando os avanos

    conquistados no perodo anterior, tais como a reforma agrria, urbana e educativa.

    No entanto, o que diferenciou o perodo ditatorial boliviano daqueles dos demais

    Estados latinoamericanos, foi a proximidade do governo com os trabalhadores rurais

    organizados em sindicatos, o que ajudou a consolidar o Pacto Militar Campons, em

    uma clara tentativa do governo de controlar os setores populares. Porm, tal pacto

    no seria suficiente para manter os setores populares inertes por muito tempo. J no final da dcada de 1970, o movimento indgena no mais aceitava sua

    subordinao, organizando-se com o fim de recuperar suas identidades originrias

    de grupos tnicos.

    3.1. Aspectos polticos, sociais e econmicos (recorte histrico)

    A consolidao da democracia, marcada por um grande acordo entre diversos

    partidos polticos, denominado Pacto Democrtico, acabou por coincidir com a

    grande crise econmica da dcada de 1980 que, segundo Gumucio:

    (...) afetava a todos os setores, e nada garantia que, depois desse retorno ttico do exrcito aos seus quartis, a democracia pudesse florescer com vigor. A economia no mostrava nenhum crescimento fazia anos. O estanho confrontou uma nova cada em seus preos internacionais e o Banco Central apenas possua US$ 1 milho de dlares de reservas. O nico setor prspero era o do narcotrfico, o

  • 38

    que se evidenciava nas ruas pelo livre movimento de dlares nas mos dos cambistas, quando trs dcadas atrs era necessrio fazer um trmite vagaroso no Banco Central para obter limitadas somas que permitissem a seguir estudos ou tratamento mdicos no exterior.78

    Desse modo, a recesso econmica combinada com a baixa dos preos das

    matrias-primas no mercado internacional, a queda da produo de estanho, a m administrao das empresas estatais, a inflao alta e a dvida externa acumulada

    configuraram o ambiente perfeito para o desenvolvimento da ideologia neoliberal,

    contrria poltica intervencionista do Estado. A conjuntura de crise econmica combinada com a instabilidade poltica, gerada pela multiplicidade de partidos

    polticos no governo, culminaram na antecipao das eleies para 1985, com o

    objetivo de preservar a democracia.

    As eleies foram marcadas pela volta ao cenrio poltico boliviano de um ex-

    ditador, Hugo Banzer, candidato da ADN (Ao Democrtica Nacionalista), que

    alcanou o segundo lugar nas eleies. Com o fim de evitar outro perodo de

    instabilidade poltica, o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionrio), partido

    vitorioso, fez uma aliana com a ADN, inaugurando um sistema de democracia de

    consenso, onde formaes polticas importantes alcanam acordos que incorporam

    consultas recprocas entre os integrantes, estabelecimento de maiorias congressuais

    e distribuio de postos na burocracia estatal79.

    O presidente eleito foi, ento, Vitor Paz Estenssoro, do MNR, ex-presidente

    boliviano nos perodos de 1952-1956 e 1960-1964. Porm, o presidente que no

    passado lutou pela Revoluo de 1952, com reformas de base e incluso dos

    grupos excludos, abraava agora o neoliberalismo, reformulando economicamente

    o pas por meio do Decreto Supremo 21060, que estabeleceu a Nova Poltica

    Econmica. Tal decreto determinava o controle inflacionrio, fixando o cmbio

    nico, real e flexvel; a liberdade de comrcio, liberando a importao de

    mercadorias sem incidncia de impostos e incentivando a exportao de novos

    produtos; a privatizao da Comibol (Corporao Mineira da Bolvia), e, alm dela,

    diversas outras empresas pblicas foram privatizadas, com a venda de 50% da

    empresa para um scio estratgico internacional e a transferncia dos outros 50%

    para os cidados bolivianos maiores de 20 anos; a renegociao da dvida externa e 78 GUMUCIO, Mariano B. aput. ARAUJO, Rafael Pinheiro de. Op. cit.9, p. 52. 79 PITTARI, Salvador aput. Idem., p. 55.

  • 39

    seu pagamento pontual; a flexibilizao das leis trabalhistas e o corte nos gastos

    pblicos80. Nesse sentido, Marcelo Argento Cmara afirma que:

    O impacto das reformas fez-se sentir principalmente sobre o operariado. O fechamento das estatais implicou a quebra da confiana entre operrios e governos, no fim de um projeto de estabilidade que fez sucumbir projees pessoais de toda uma gerao, que se via, agora, lanada no desemprego em uma economia incapaz de oferecer alternativas consistentes. O Decreto Supremo (DS) 21.060 tornou-se o mais emblemtico de todo este processo, pois atingia a empresa que era o principal motor do governo revolucionrio: a Comibol. Este decreto descentralizava a empresa em quatro subsidiarias, alem de suspender qualquer tipo de investimento no setor e de encerrar as atividades em vrios centros mineiros (que s voltariam a operar de forma praticamente artesanal sob a administrao de cooperativas).81

    A poltica neoliberal do governo trouxe consigo a polarizao da sociedade,

    entre os setores mais esquerda, liderados pelos mineiros, que mobilizaram manifestaes, greves e paralisaes, na chamada Marcha pela Vida; e mais direita, liderados pelos empresrios, defensores fervorosos das mudanas

    realizadas pelo novo governo, que propiciaram um maior lucro, uma maior

    explorao do trabalho e maior acesso aos recursos estratgicos. Apesar das

    constantes manifestaes, o governo conseguiu concretizar a reforma neoliberal no

    Estado, tornando-se menos intervencionista e vendendo suas estatais. Para se ter

    noo, com a privatizao da Comibol, cerca de 21 mil dos 27 mil mineiros que

    trabalhavam na antiga estatal ficaram desempregados, sob a justificativa do preo

    dos minrios estar muito baixo naquele momento e de promessas do governo de

    recolocao dos desempregados em outros setores do mercado de trabalho. O

    grande ndice de demisses culminou na migrao dos mineiros desempregados

    para o Chapare, no departamento de Cochabamba, onde trabalhavam na produo

    de coca, e para a cidade de El Alto, prxima a La Paz, o que, segundo Wasserman,

    gerou

    (...) uma fuso muito particular entre culturas polticas diferentes; de um lado, o movimento campons, que exige terra, autonomia cultural indgena, respeito aos valores culturais arraigados nas comunidades camponesas, e, de outro, a experincia de mobilizao e de

    80 ROCHA, Maurcio Santoro. A outra volta do bumerangue: estado, movimentos sociais e recursos naturais na Bolvia. in. Prmio Amrica do Sul. Bolvia: de 1952 ao Sculo XXI. Braslia: Funag, 2006, p. 29 e 30. 81 CMARA, Marcelo Argenta. Bolvia: de 1952 ao sculo XXI processos sociais, transformaes polticas. in. Idem, 2006, p. 89-90.

  • 40

    confronto dos sindicatos operrios organizados.82

    Nesse contexto de insatisfao poltica e enfraquecimento dos dois

    tradicionais atores polticos bolivianos, o COB (Central Obrera Boliviana) 83 ,

    enfraquecido com as privatizaes, e as Foras Armadas, excluda do poder poltico

    desde a transio para a democracia, surgem novos movimentos, camponeses e

    indgenas, organizados pela expresso de interesses tnicos e coletivos. Sobre tais

    movimentos, deve-se destacar que esses movimentos no mais se baseavam na

    diviso tradicional classista - operariado contra burguesia - mas na diviso cultural e

    tnica da sociedade boliviana que buscava no s o acesso terra e seu reconhecimento como naes, mas a sua participao no processo poltico atravs

    de uma democracia participativa. No entanto, tais movimentos decidem, em um

    primeiro momento, se organizar fora do mbito dos partidos polticos, o que causaria

    um enfraquecimento ainda maior na esquerda, j debilitada com a desorganizao da populao desempregada84.

    Esse enfraquecimento da esquerda abriu espao para que as eleies de

    1989 fossem centralizadas nos candidatos do MNR, Gonzalo Snchez de Lozada,

    da ADN, Hugo Banzer e do MIR (Movimento Esquerda Revolucionria), Jaime Paz

    Zamora. Como nas eleies no houve um candidato vitorioso com mais de 50%

    dos votos, coube ao Congresso decidir quem seria o futuro presidente85, o que

    resultou na escolha de Paz Zamora, que havia recebido a menor expressividade dos

    votos, mas que se aliou ADN para que pudesse ser eleito atravs de um acordo, denominado Acordo Patritico.

    Apesar das promessas de gerao de empregos, combate pobreza e a misria, elevao dos investimentos em reas sociais e em infra-estrutura, o que se

    verificou foi uma continuidade na poltica econmica do governo anterior. Sob a

    82 WASSERMAN, Cludia. Bolvia: histria e identidade. In. Arajo Helosa Vilhena de (org.). Os pases da comunidade andina. (2 v.) Braslia: Funag/Ipri, 2004, p. 332. 83 O COB foi o principal rgo sindical da Bolvia desde os anos 1950. Com as privatizaes e as demisses em massa, o sindicalismo boliviano se viu com os dias contados. O COB organizou a Marcha pela Vida com o intuito de retomar seu papel protagonista, contudo, com seu fracasso, ficou selado seu fim. 84 ARAUJO, Rafael Pinheiro de. Op. cit., p. 55-56. 85 Segundo o artigo 90 da Constituio boliviana de 1967, que esteve em vigor at janeiro de 2009, Si en las elecciones generales ninguna de las frmulas para Presidente y Vicepresidente de la Repblica obtuviera la mayora absoluta de sufragios vlidos, el Congreso elegir por mayora absoluta de votos vlidos, en votacin oral y nominal, entre las dos frmulas que hubieran obtenido el mayor nmero de sufragios vlidos.

  • 41

    justificativa de necessidade de modernizao do pas, foi elaborado o decreto 22407

    que buscou a estabilidade macroeconmica, o controle da infla