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Estado do Mundo 2004

O ESTADO DO CONSUMO HOJE

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Estado do Mundo 2004

O ESTADO DO CONSUMO HOJE

C A P Í T U L O 1

O Estado doConsumo HojeGary Gardner, Erik Assadourian

e Radhika Sarin

A China bem merece a reputação de ser opaís da bicicleta. Durante todo o século XX,milhões de bicicletas, literalmente, apinha-vam as ruas de suas cidades, não apenascomo meio de transporte pessoal, mas tam-bém como veículo de entrega – levando detudo, desde materiais de construção atéfrangos a caminho do mercado. Mesmonos anos 80 poucos automóveis circula-vam nas ruas chinesas.1

Um visitante dos anos 80 que retornehoje a Xangai ou outra cidade chinesa di-ficilmente a reconhecerá. Em 2002, havia10 milhões de carros particulares e o nú-mero de proprietários crescia acelerada-mente: a cada dia, em 2003, cerca de11.000 mais veículos juntavam-se ao trá-fego das rodovias chinesas – 4 milhõesde carros novos no ano. As vendas au-mentaram 60% em 2002 e em mais de80% no primeiro semestre de 2003. Até

2015, nesse ritmo, os analistas da indús-tria calculam que 150 milhões de automó-veis estarão congestionando as ruas chi-nesas – 18 milhões a mais do que circula-vam nas ruas e rodovias dos Estados Uni-dos em 1999. A classe emergente de con-sumidores chineses está aderindo entusi-asticamente ao aumento da mobilidade eelevação do status social representado peloautomóvel – milhões aguardam durantemeses e assumem dívidas substanciaispara tornarem-se membros pioneiros danova cultura automobilística chinesa.2

A s v a n t a g e n s d e s s e c a m i n h odesenvolvimentista são evidentes para asautoridades governamentais, que o encora-jam. Cada novo automóvel fabricado naChina representa dois novos postos de tra-balho para trabalhadores chineses, e a rendaque recebem estimula, por sua vez, outrossetores da economia chinesa. Ademais, acorrida para atender à demanda está atrain-do investimentos maciços de empresas es-trangeiras – a General Motors investiu US$1,5 bilhão em uma nova montadora em Xan-

As unidades de medidas mencionadas neste livro sãométricas, salvo quando o uso normal determine deoutra forma.

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gai, enquanto a Volkswagen comprometeu-se a aplicar US$ 7 bilhões, ao longo dos pró-ximos 5 anos, no aumento de produção.3

A China está, naturalmente, seguindoum caminho muito bem marcado, emborajá tenham passado-se oito décadas desdeque o uso generalizado do automóvel po-pularizou-se nos Estados Unidos. Entretan-to, a história automotiva da China não estáligada nem aos chineses nem ao automó-vel. Dos estabelecimentos de fast-food àscâmeras descartáveis, e do México à Áfri-ca do Sul, grande parte do mundo está hojeentrando na sociedade de consumo numritmo alucinante. Segundo uma estimativa,a “classe consumista” possui hoje mais de1,7 bilhão de adeptos – com quase a meta-de deles no mundo “em desenvolvimento”.Uma cultura e estilo de vida que se torna-ram comuns na Europa, América do Nor-te, Japão e em alguns outros bolsões doplaneta no século XX e que se globalizamno século XXI.4

A sociedade de consumo tem, claramen-te, um forte encanto e traz consigo muitosbenefícios econômicos. Também seria in-justo argumentar que as vantagens obtidaspor uma geração anterior de consumidoresnão deveriam ser compartilhadas pela gera-ção seguinte. Todavia, o aumento disparadodo consumo na última década – e as proje-ções alucinantes que logicamente dele deri-vam – indica que o mundo como um todose verá, em breve, frente a um grande dile-ma. Caso os níveis de consumo que as vá-rias centenas dos milhões de pessoas maisafluentes gozam hoje repliquem-se por, pelomenos, metade dos cerca de 9 bilhões depessoas que deverão ser adicionadas à po-pulação mundial em 2050, o impacto emnossa oferta de água, qualidade do ar, flo-

restas, clima, diversidade biológica e saúdehumana será extremamente grave.5

Apesar dos perigos à frente, há poucosindícios de qualquer desaceleração da loco-motiva consumista – nem mesmo em paí-ses como os Estados Unidos, onde a maio-ria dispõe de uma oferta ampla dos bens eserviços necessários à condução de uma vidadigna. Em 2003 os Estados Unidos dispu-nham de mais carros particulares do que demotoristas, e os utilitários esportivos,beberrões de gasolina, estavam entre os ve-ículos mais vendidos do país. Novas habi-tações aumentaram 38% em 2002, em com-paração a 1975, apesar de haver um núme-ro menor de pessoas, em média, por mora-dia. Os próprios americanos estão maiorestambém – tão maiores, na realidade, que umaindústria multibilionária surgiu para atenderàs necessidades desses cidadãos, oferecen-do tamanhos maiores de roupas, mobíliamais resistente e até mesmo ataúdes maisespaçosos. Se as aspirações consumistas danação mais rica do mundo não podem sersaciadas, as perspectivas de controle doconsumo nos outros países, antes dodesnudamento e degradação por completodo nosso planeta, são desanimadoras.6

Entretanto, nem tudo está perdido.Defensores do consumo, economistas,legisladores e ambientalistas vêm desen-volvendo opções criativas para atender àsnecessidades das pessoas e, ao mesmotempo, reduzir os custos ambientais e so-ciais associados ao consumo em massa.Além de ajudar as pessoas a encontrar oequilíbrio entre muito e pouco consumo,dão maior ênfase a bens e serviços públi-cos, a serviços em lugar de bens, a benscom maior teor de reciclados e a alterna-tivas genuínas para os consumidores.

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Conjuntamente, essas medidas poderãoajudar na obtenção de alta qualidade de vidacom um mínimo de agressão ambiental edesigualdade social. A chave é aplicar umolho crítico não apenas na “quantidade”do consumo, mas também na“racionalidade”. (Vide Capítulos 5 e 8.)

O consumo não é um mal. As pessoasprecisam consumir para sobreviver, e osmais pobres precisam consumir mais paraterem vidas dignas e oportunidades. Porémo consumo ameaça o bem-estar das pes-soas e do meio ambiente quando se tornaum fim em si mesmo – quando se torna oprincipal objetivo de vida de um indivíduo,por exemplo, ou a medida máxima de su-cesso da política econômica de um gover-no. As economias de consumo em massaque geraram um mundo de abundância paramuitos no século XX vêem-se frente a umdesafio diferente no século XXI: enfocarnão o acúmulo indefinido de bens, e simuma melhor qualidade de vida para todos,com o mínimo de dano ambiental.

Consumo em Cifras

Por qualquer medida – despesas domésti-cas, número de consumidores, extração dematéria-prima – o consumo de bens e ser-viços tem aumentado constantemente nasnações industrializadas durante décadas, ecresce aceleradamente em muitos paísesem desenvolvimento. As cifras contam ahistória de um mundo sendo transformadopor uma revolução do consumo.

As despesas domésticas – o que segasta em bens e serviços em nível famili-ar – ultrapassaram US$ 20 trilhões em2000, contra US$ 4,8 trilhões em 1960(em dólares de 1995). Parte desse aumento

quádruplo deveu-se ao aumentopopulacional (vide Quadro 1-1), mas ovolume maior ocorreu em função do avan-ço da prosperidade em vários países. Es-sas cifras globais mascaram gigantescasdisparidades nos gastos. Os 12% da po-pulação mundial que vivem na América doNorte e na Europa respondem por 60%do consumo privado global, enquanto aterça parte da humanidade que vive no Sulda Ásia e na África Subsaariana, repre-senta apenas 3,2%. (Vide Tabela 1-1.)7

Em 1999, cerca de 2,8 bilhões de pes-soas, duas entre cada cinco no planeta –sobreviviam com menos de US$ 2 por dia,o que as Nações Unidas e o Banco Mun-dial consideram como mínimo para aten-der às necessidades básicas. Aproximada-mente, 1,2 bilhão de pessoas viviam sob“extrema pobreza”, medida por uma ren-da diária média de menos de US$ 1. Entreos mais pobres estão centenas de milhõesde agricultores de subsistência, que, pordefinição, não têm salário e raramente en-volvem-se em transações comerciais. Paraeles, e para todos os pobres do mundo,os gastos em consumo concentram-sequase que totalmente no atendimento àsnecessidades básicas.8

Embora a maior parte dos gastos deconsumo ocorra nas regiões mais ricas domundo, o número de consumidores distri-bui-se mais eqüitativamente entre as regi-ões industrializadas e em desenvolvimen-to. Isso ficou evidente pela pesquisa reali-zada pelo ex-consultor do Programa dasNações Unidas para o Meio Ambiente(PNUMA), Matthew Bentley, que descre-ve a existência de uma “classe de consu-midor” global. Essas pessoas têm rendasuperior a US$ 7.000 anuais em termos de

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paridade de poder aquisitivo (uma medidade renda ajustada ao poder aquisitivo emmoeda local), ou seja, aproximadamente onível da linha oficial de pobreza da EuropaOcidental. A própria classe de consumidorglobal varia muito em termos de riqueza,

mas seus membros caracteristicamente dis-põem de televisão, telefones e Internet, juntoà cultura e idéias que esses produtos trans-mitem. Essa classe de consumidor somacerca de 1,7 bilhão de pessoas – mais deum quarto do mundo. (Vide Tabela 1-2.)9

A Divisão de População das Nações Unidascalcula que a população mundial crescerá 41%até 2050, atingindo 8,9 bilhões de pessoas. Damesma forma que a crescente aquisição deaparelhos eletrodomésticos e automóveis podeacabar com a economia de energia conquistadapelas melhorias de eficiência, esse aumento nosnúmeros humanos ameaça neutralizar qualqueravanço na redução do volume de bens que cadapessoa consome. Por exemplo, mesmo que oamericano comum coma 20% menos carne em2050 do que comia em 2000, o consumo total decarne nos Estados Unidos será aproximadamente5 milhões de toneladas superior em 2050 devido,unicamente, ao crescimento populacional.

Com a expectativa de 99% do crescimentopopulacional ocorrer nas nações emdesenvolvimento, esses países precisarãoconsiderar cuidadosamente o duplo objetivo daestabilização populacional e maior consumopara o desenvolvimento humano. O mundoindustrializado poderá ajudar os países emdesenvolvimento a estabilizar suas populaçõesdando apoio ao planejamento familiar, educaçãoe melhoria da situação das mulheres. E poderáreduzir o impacto de um maior consumoajudando na adoção de tecnologias mais limpase mais eficientes.

Mas seria um erro considerar o crescimentopopulacional como um desafio enfrentadoapenas pelas nações pobres. Quando semisturam crescimento populacional e altosníveis de consumo, como ocorre nos EstadosUnidos, a importância do primeiro exacerba-se.Por exemplo, embora a população dos EstadosUnidos aumente a um ritmo de,

aproximadamente, 3 milhões de pessoas ao ano,e a Índia aumente em quase 16 milhões, essecontingente americano adicional causa maiorimpacto ambiental. Ele é responsável por 15,7milhões de toneladas adicionais em emissões decarbono na atmosfera, contra apenas 4,9milhões de toneladas na Índia. Países ricos, compopulações em crescimento, precisam atentarpara o impacto tanto do seu consumo quantode suas políticas populacionais.

Outras tendências demográficas menosdiscutidas mesclam-se também ao consumosob formas surpreendentes. Por exemplo, emfunção do aumento da renda, urbanização efamílias menores, o número de pessoas em umúnico domicílio, entre 1970 e 2000, caiu de 5,1para 4,4 nos países em desenvolvimento e de3,2 para 2,5 nas nações industrializadas,enquanto o número total de domicíliosaumentou. Cada nova residência naturalmenterequer espaço e materiais. Além disso, aseconomias obtidas com um maior número depessoas compartilhando energia,eletrodomésticos e mobiliário são perdidasquando menos pessoas vivem na mesma casa.Assim, alguém morando só nos EstadosUnidos consome 17% mais energia, per capita,do que uma moradia com duas pessoas. Então,mesmo em algumas nações européias e noJapão, onde a população total não sofre umaumento significativo, ou até mesmo nemcresce, a dinâmica doméstica emtransformação deve ser analisada comocondutora de maior consumo._______________________________________FONTE: vide nota final 7.

QUADRO 1-1. E QUANTO À POPULAÇÃO?

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O ESTADO DO CONSUMO HOJE

Tabela 1-1. Gastos com Consumo ePopulação, por Região, 2000

FONTE: vide nota final 7.

Quase a metade dessa classe de consu-midor global vive nos países em desenvolvi-mento, e somente China e Índia respondempor 20% do total mundial. (Vide Tabela 1-3.)Na verdade, a classe conjunta de consumi-dores nesses dois países, com 362 milhõesde pessoas, é maior do que esta classe emtoda a Europa Ocidental (embora o consumi-dor chinês ou indiano comum, naturalmente,consuma significativamente menos do que oeuropeu). Entretanto, grande parte do mundoem desenvolvimento não está representadaneste incremento de novo consumo: a classede consumidor da África Subsaariana, a me-nor de todas, é de apenas 34 milhões de pes-soas. Na realidade, a região tem ficado essen-cialmente à margem da prosperidade vivida pelamaior parte do mundo nas últimas décadas.Medidas em termos de gastos per capita deconsumo privado, a África Subsaarianacaiu 20% em 2000, em comparação àsduas décadas anteriores, distanciado-secada vez mais do mundo industrializado.10

Tabela 1-2. Classe de Consumidores, por Região, 2002

1A soma não confere devido a arredondamentos.FONTE: vide nota final 9.

Região

(percentual)

Participaçãonos Gastos

Mundiais doConsumoPrivado

Participaçãona

PopulaçãoMundial

Estados Unidos eCanadá

Europa Ocidental

Leste da Ásia ePacífico

América Latina eCaribe

Europa Oriental eÁsia Central

Sul da Ásia

Austrália e

Nova Zelândia

Oriente Médio eÁfrica do NorteÁfrica Subsaariana

31,5

28,7

21,4

6,7

3,3

2,0

1,5

1,41,2

5,2

6,4

32,9

8,5

7,9

22,4

0,4

4,110,9

Estados Unidos e CanadáEuropa OcidentalLeste da Ásia e PacíficoAmérica Latina e CaribeEuropa Oriental e Ásia CentralSul da ÁsiaAustrália e Nova ZelândiaOriente Médio/África do NorteÁfrica SubsaarianaPaíses IndustrializadosPaíses em Desenvolvimento

Mundo

Região

Número de PessoasPertencentes à Classe

de Consumidores

Classe de Consumidorescomo Parcela da

População Regional

Classe de Consumidorescomo Parcela da Classe

de Consumidores Globais1

(milhões)

271,4348,9494,0167,8173,2140,719,878,034,2

912816

1.728

(percentual)

85892732361084255

8017

28

(percentual)

16202910108142

5347

100

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Tabela 1-3. Dez Maiores PopulaçõesNacionais de Classe de Consumidor, 2002

FONTE: vide nota final 10.

Os países em desenvolvimento não sódispõem de grandes blocos de consumido-res como também têm maior potencial paraexpandir suas fileiras. Por exemplo, o grandecontingente de consumidores da China eÍndia constitui apenas 16% da população,enquanto na Europa esta cifra atinge 89%.Efetivamente, na maioria dos países emdesenvolvimento, a classe de consumido-res representa menos da metade da popu-lação – às vezes muito menos –, havendobastante espaço para crescimento. Combase apenas nas projeções populacionais, aclasse de consumidores globais está proje-tada, conservadoramente, para atingir pelomenos 2 bilhões de pessoas até 2015.11

Esses números indicam que a história doconsumo no século XXI poderá referir-setanto a nações consumidoras emergentesquanto a tradicionais. Em um dos seus in-formativos em 2003, o Programa das Na-ções Unidas para o Meio Ambiente obser-vou que o incremento da posse de automó-

veis na Ásia para os níveis da média mundi-al adicionaria 200 milhões de veículos à fro-ta global – uma vez e meia o número decarros existentes, hoje, nos Estados Unidos.Preocupações quanto ao impacto desse tipode desenvolvimento demonstram a urgên-cia da busca de caminhos alternativos, sus-tentáveis, para a prosperidade da região. Aomesmo tempo, temores quanto a aumentospotenciais do consumo asiático ficarão des-locados caso ofusquem a necessidade dereformas nos países ricos, onde altos níveisde consumo têm sido a regra por décadas.Os antigos países industrializados da Euro-pa e América do Norte, juntamente com Ja-pão e Austrália, são responsáveis pelo maiorvolume de degradação ambiental global as-sociada ao consumo.12

As tendências do consumo abrangempraticamente todo e qualquer bem e servi-ço, que podem ser categorizados sob diver-sas formas. De maior interesse são os itensfundamentais, como água e alimentos; suastendências indicam se as necessidades bási-cas estão sendo satisfeitas. Outros itens deconsumo indicam como as opções de vidaestão se desenvolvendo para as pessoas e onível de conforto que estão tendo.

Em termos de necessidades básicas, astendências são mistas. A absorção diária decalorias aumentou tanto no mundo industria-lizado quanto nos países em desenvolvimen-to, desde 1961, à medida que a oferta de ali-mentos ampliou-se pelo menos em nível glo-bal. Todavia, a Organização das Nações Uni-das para Alimento e Agricultura (FAO) divul-ga que 825 milhões de pessoas ainda estãosubnutridas e que, em 1961, uma pessoa ab-sorvia, diariamente, 10% a mais de calorias(2.947 calorias) no mundo industrializado doque as pessoas consomem, hoje, no mundo

Estados UnidosChinaÍndiaJapãoAlemanhaFederação RussaBrasilFrançaItáliaReino Unido

(milhões)242,5239,8121,9120,776,361,357,853,152,8

50,4

(percentual)841912959243338991

86

País

Populaçao daClasse de

Consumidores

Participaçãona População

Nacional

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Tabela 1-4. Proporção das DespesasDomésticas em Alimentação

1 Paridade em poder aquisitivo.FONTE: vide nota final 13.

em desenvolvimento (2.675 calorias). A pre-sença da fome frente à oferta recorde de ali-mentos reflete a realidade de seu alto custopara a grande parcela da população pobremundial, que não dispõe de renda suficientepara adquiri-los. Na Tanzânia, por exemplo,onde os gastos per capita domésticos foramde US$ 375 em 1998, 67% das despesas fa-miliares destinavam-se à alimentação. No Ja-pão, as despesas domésticas per capita fo-ram de US$ 13.568 naquele ano, porém ape-nas 12% foram gastos em alimentação. (VideTabela 1-4.)13

volvimento. Mesmo assim, o consumo decarne está subindo nas regiões mais prós-peras do mundo em desenvolvimento, àmedida que as taxas de renda e urbaniza-ção aumentam. Metade da carne suínamundial é consumida na China, por exem-plo, enquanto o Brasil é o segundo maiorconsumidor de carne bovina, em seguidaaos Estados Unidos. E a carne está sendocada vez mais consumida como fast-food,freqüentemente mais intensiva em termosde energia para produzir. De acordo comum recente estudo de marketing, a indús-tria de fast-food na Índia está crescendo auma taxa de 40% ao ano, devendo gerarmais de um bilhão de dólares em vendasaté 2005. Enquanto isso, um quarto da suapopulação continua subnutrida – uma situ-ação praticamente inalterada ao longo daúltima década.14

Água limpa e saneamento adequado,instrumentais para prevenir a disseminaçãode doenças contagiosas, são também ne-cessidades básicas de consumo. Da mes-ma forma que ocorre com a maioria dosbens, o acesso à água e ao saneamento estámais disponível para as populações maisricas, embora a situação dos mais pobresneste particular tenha melhorado um pou-co durante a última década. Em 2000, 1,1bilhão de pessoas não tinham acesso à águapotável, definido como a disponibilidade de,pelo menos, 20 litros por pessoa, por dia, auma distância de um quilômetro da mora-dia do consumidor. E duas em cada cincopessoas ainda não dispunham de instala-ções sanitárias adequadas, como uma liga-ção com sistemas de esgotos ou fossa sép-tica, ou até mesmo latrina de fossa. As po-pulações rurais são as que mais sofrem.Em 2000, apenas 40% das populações ru-

Os ricos do mundo não só absorvemmais calorias do que os pobres, mas essascalorias provêm de alimentos mais intensi-vos em recursos, como carne bovina e la-ticínios, que são produzidos por meio douso de grandes volumes de grãos, águae energia. (Vide Capítulos 3 e 4.) Aspessoas nos países industrializados obtêm856 de suas calorias diárias de produtosanimais, contra 350 nos países em desen-

TanzâniaMadagáscarTajiquistãoLíbiaHong KongJapãoDinamarcaEstados Unidos

(dólares)1

375608660

6.13512.46813.56816.38521.515

(percentual)6761483110121613

País

DespesaDoméstica PerCapita, 1998

Parcela Gastaem

Alimentação

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O ESTADO DO CONSUMO HOJE

Tabela 1-5. Consumo Familiar, Países Selecionados, Cerca de 2000

FONTE: vide nota final 17.

rais dispunham de instalações sanitáriasadequadas, em comparação com 85% doshabitantes urbanos.15

Conforme cresce a renda, as pessoasobtêm acesso a outros bens de consumoque não os alimentos. O uso de papel, porexemplo, tende a aumentar à medida queas pessoas tornam-se mais alfabetizadas eaumentam os elos de comunicação. Glo-balmente, o consumo de papel mais quesextuplicou, entre 1950 e 1997, tendo do-brado desde meados dos anos 70; o britâ-nico médio consumiu 16 vezes mais papelno final do século XX do que no início.Na realidade, a maior parte do papel mun-dial é produzida e consumida nos paísesindustrializados: só os Estados Unidos pro-duzem e utilizam um terço do papel mun-dial, e os americanos consomem mais de300 quilos anuais per capita. Em contras-te, nas nações em desenvolvimento comoum todo, as pessoas consomem 18 quilosde papel cada uma, anualmente. Na Índia,a cifra anual é de 4 quilos, e em 20 naçõesda África é de menos de 1 quilo. OPNUMA estima que 30–40 quilos de papel

são o mínimo necessário para atender àsnecessidades básicas de alfabetização ecomunicação.16

A prosperidade crescente também dáacesso a bens que asseguram novos ní-veis de conforto, conveniência e entrete-nimento para milhões de pessoas. (VideTabela 1-5.) Em 2002, 1,12 bilhão de fa-mílias, cerca de três quartos da popula-ção mundial, possuíam pelo menos umtelevisor. Assistir à TV tornou-se uma dasprincipais formas de lazer, com o cida-dão médio do mundo industrializado pas-sando três horas – metade do seu tempode lazer – na frente de um televisor, dia-riamente. A TV oferece aos telespec-tadores acesso a notícias locais e entre-tenimento, mas também exposição aincontáveis produtos de consumo veicu-lados em comerciais e durante os pro-gramas. E a visão que emerge da tela temum escopo cada vez mais global. Dentreos 1,12 bilhão de domicílios com televi-sores, 31% eram assinantes de TV acabo, expostos freqüentemente a umacultura global de entretenimento.17

NigériaÍndiaUcrâniaEgitoBrasilCoréia do SulAlemanhaEstados Unidos

(Dólares de 1995per capita)

194294558

1.0132.7796.907

18.58021.707

(kWhper capita)

81355

2.293976

1.8785.6075.963

12.331

PaísGastos Familiares

em ConsumoEnergiaElétrica

Aparelhos deTelevisão

LinhasTelefônicas

TelefonesCelulares

ComputadoresPessoais

6883

456217349363586835

640

212104223489650659

46

4443

167621682451

76

181675

556435625

(por mil habitantes)

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Estado do Mundo 2004

O ESTADO DO CONSUMO HOJE

Muitas dessas conveniências eram con-sideradas como luxo quando surgiram ori-ginalmente, mas são agora consideradasnecessidades. Realmente, onde infra-es-truturas sociais desenvolveram-se em tor-no deles, alguns desses bens de consumotornaram-se parte integrante do dia-a-diamoderno. Os telefones, por exemplo,transformaram-se num instrumento es-sencial de comunicação – em 2002, havia1,1 bilhão de linhas fixas e outro 1,1 bi-lhão de aparelhos celulares. Um percentualsignificativo da população mundial, inclu-indo a grande maioria dos consumidoresglobais, hoje dispõe no mínimo de acessobásico a telefones. As comunicações tam-bém avançaram após a introdução daInternet. Esta adição mais recente às co-municações modernas conecta hoje cercade 600 milhões de usuários.18

Uma grande parcela dos gastos em con-sumo está concentrada em produtos reco-nhecidamente desnecessários para o con-

forto ou sobrevivência, mas que tornam avida mais agradável. Essas compras inclu-em desde os pequenos prazeres diários,como doces e refrigerantes, até grandesaquisições, como iates oceânicos, jóias ecarros esportes. Os gastos nesses produ-tos não representam necessariamente con-duta censurável por parte da sociedade glo-bal de consumo, uma vez que pessoas sen-satas podem discordar quanto ao que cons-titui consumo excessivo. Mas esses gas-tos são uma indicação da riqueza exceden-te que existe em muitos países. Na realida-de, os valores gastos no consumo extremocontestam a visão de que muitas das ne-cessidades básicas dos pobres mundiaisnão-atendidas sejam muito dispendiosaspara atender. A provisão de alimentação ade-quada, água potável e educação básica paraos mais pobres pode ser realizada gastan-do-se muito menos do que se gasta anual-mente em cosméticos, sorvetes e ração deanimais de estimação. (Vide Tabela 1-6.)19

Tabela 1-6. Gasto Anual em Itens de Luxo Comparado com os Recursos Necessáriospara o Atendimento de Necessidades Básicas Selecionadas

FONTE: vide nota final 19.

Cosméticos

Ração de animais deestimação na Europa eEstados Unidos

Perfumes

Cruzeiros marítimos

Sorvetes na Europa

US$ 18 bilhões

US$ 17 bilhões

US$ 15 bilhões

US$ 14 bilhões

US$ 11 bilhões

Saúde reprodutiva para todas as mulheres

Erradicação da fome e má-nutrição

Alfabetização universal

Água potável para todos

Vacinação de todas as crianças

País

GastoAnual

Objetivo Social ou Econômico Investimento ExtraAnual Necessário para

Atingir o Objetivo

US$ 12 bilhões

US$ 19 bilhões

US$ 5 bilhões

US$ 10 bilhões

US$ 1,3 bilhão

A crescente febre do consumo duranteo século XX levou a um maior uso de ma-térias-primas, o que complementa os gas-tos familiares e a quantidade de consumi-

dores como medida de consumo. Entre1960 e 1995 o consumo mundial de mine-rais aumentou 2,5 vezes, metais, 2,1 ve-zes, produtos madeireiros 2,3 e produtos

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sintéticos, como plásticos, 5,6 vezes. Essecrescimento superou o aumento da popu-lação mundial, tendo ocorrido mesmo quan-do a economia global mudou para abran-ger mais indústrias de serviços, como tele-comunicações e finanças, que não são tãointensivas em materiais como indústria,transportes e outros setores outrora domi-nantes. A duplicação do consumo de me-tais, por exemplo, ocorreu mesmo quandoestes se tornaram menos essenciais para ageração de riqueza: em 2000, a economiaglobal consumiu 45% menos metais do quetrês décadas anteriores para gerar um dó-lar de produto econômico.20

O consumo de combustível e materi-ais reflete o mesmo padrão de desigual-dade global encontrado no consumo deprodutos finais. Só os Estados Unidos,com menos de 5% da população global,consomem aproximadamente um quartodos recursos mundiais de combustíveisfósseis, queimando quase 25% do car-vão, 26% do petróleo e 27% do gás na-tural mundial. Adicionando-se a isso oconsumo de outras nações ricas, adominância de apenas uns poucos paísessobre o consumo de materiais globais faz-se evidente. Em termos de consumo demetais, os Estados Unidos e Canadá, Aus-trália, Japão e Europa Ocidental – que de-têm, entre si, 15% da população mundial– consomem 61% do alumínio produzi-do a cada ano, 60% do chumbo, 59% docobre e 49% do aço. O consumo percapita também é alto, especialmente emrelação ao que é verificado nas naçõesmais pobres. O americano comum con-some 22 quilos de alumínio por ano, en-quanto o indiano consome 2 quilos e oafricano, menos de 1 quilo.21

Enquanto isso, o apetite mundial cres-cente por papel pressiona cada vez mais asflorestas globais. Reservas virgens desti-nadas à produção de papel, por exemplo,representam, aproximadamente, 19% dacolheita mundial de madeira e 42% da ma-deira produzida para uso “industrial” (tudomenos lenha). Em 2050, a indústria de ce-lulose poderá representar mais da metadeda demanda industrial da madeira global.22

O consumo de matérias-primas comometais e madeira poderá, em princípio,separar-se do consumo de bens e servi-ços, uma vez que muitos produtos pode-rão ser remanufaturados ou fabricados demateriais reciclados. Todavia, os materiaisna maioria das economias no século XXnão circularam mais de duas ou três vezes.Mesmo hoje, a reciclagem fornece apenasuma pequena parcela dos materiais utiliza-dos nas economias mundiais. Cerca de me-tade do chumbo consumido atualmentevem de fontes recicladas, como tambémum terço do alumínio, aço e ouro. Apenas13% do cobre vem de fontes recicladas,em comparação a 20% em 1980. Enquan-to isso, a reciclagem do lixo urbano conti-nua, em geral, baixa, mesmo nas naçõesque têm condições de implantar uma infra-estrutura de reciclagem. As 24 nações quecompõem a Organização para Cooperaçãoe Desenvolvimento Econômico (OCDE) efornecem esses dados, por exemplo, têmuma taxa média de reciclagem de apenas16% para o lixo urbano; metade deles reciclamenos de 10% do seu lixo.23

Enquanto isso, a parcela do suprimentototal de fibra de papel originária de fibrareciclada teve um crescimento apenas mo-desto, de 20% em 1921 para 38% hoje.Esse pequeno aumento, frente a aumentos

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bem superiores no consumo de papel, sig-nifica que o volume de papel não-recicladoé maior do que nunca. À luz das projeçõesda FAO de que o consumo global de papelaumentará em quase 30% entre 2000 e2010, a parcela de papel a ser reciclada seráde importância crucial e terá um grandeimpacto sobre a saúde das florestas mun-diais nos anos futuros.24

Motivadores Díspares,Resultados Comuns

O apetite global por bens e serviços é movi-do por um conjunto de influências, em gran-de parte, independentes, desde avançostecnológicos e energia barata até novas es-truturas comerciais, meios poderosos decomunicação, crescimento populacional eaté mesmo necessidades sociais dos sereshumanos. Esses motivadores díspares – al-guns heranças naturais, outros acidentes dahistória e outros mais inovações humanas –interagiram para impulsionar a produção e ademanda a níveis recordes. No processo,criaram um sistema econômico de abundân-cia sem precedentes e impacto ambiental esocial sem paralelo.

A história começa com o consumidor.Economistas de renome, desde AdamSmith, têm alegado que os consumidoressão atores “soberanos” que fazem esco-lhas racionais a fim de maximizar sua sa-tisfação. Ao contrário, os consumidorestomam decisões falhas por intermédio deum conjunto de julgamentos baseados eminformações incompletas e tendenciosas.Suas decisões são basicamente movidaspela propaganda, regras culturais, influên-cias sociais, impulsos fisiológicos e asso-

ciações psicológicas, cada um dos quaispotenciais incrementadores do consumo.25

As motivações fisiológicas desempe-nham um papel central no estímulo ao con-sumo. O desejo inato do estímulo prazerosoe alívio do desconforto são motivaçõespoderosas que evoluíram durante milêniospara facilitar a sobrevivência, como quan-do a fome leva uma pessoa a buscar comi-da. Esses impulsos são reforçados pelasexperiências dos consumidores. Produtosque nos satisfizeram no passado são lem-brados como prazerosos, aumentando odesejo de consumi-los novamente. Nassociedades de consumo, onde alimentos eoutros bens são abundantes, esses impul-sos estão levando a níveis danosos de con-sumo devido, em parte, a serem mais esti-mulados ainda pela propaganda. De fato,estudos psicológicos recentes constataramque esses impulsos podem até ser incita-dos subconscientemente, despertando umdesejo maior, como por uma bebida após asensação de sede ter sido instigada.26

Hábitos de consumo, também, têmraízes sociais. O consumo é, em parte, umato social através do qual as pessoas ex-pressam suas identidades pessoais e grupais– escolhendo o jornal de uma certa linhapolítica, por exemplo, ou a moda preferidaentre pares sociais. Motivadores sociaispodem ser impulsionadores insaciáveis deconsumo, contrastando com o desejo poralimento, água ou outros bens, que estácircunscrito aos limites da capacidade. Em1954, o cidadão britânico comum, porexemplo, podia contar com uma base ma-terial ampla – alimentos, vestuário, abrigoe acesso a transporte em quantidade sufi-ciente para levar uma vida digna. Assim, ogasto maior que acompanhou a duplicação

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da riqueza em 1994 foi, provavelmente, umatentativa de satisfazer necessidades sociaise psicológicas. Após o primeiro par de sa-patos, por exemplo, a posse de sapatos podenão ter nada a ver com a proteção dos pés,e sim com conforto, estilo ou status. Taisdesejos podem ser ilimitados e, portanto,ter o potencial de manter o consumo emconstante crescimento.27

Estoques abundantes de bens, produtode gigantescos aumentos de eficiência pro-dutiva desde a Revolução Industrial, esti-mulam ainda mais a propensão social e psi-cológica da humanidade de consumir. Umoperário industrial moderno produz numasemana o que suas contrapartidas no sé-culo XVIII realizavam em quatro anos. Ino-vações, como a linha de montagem deHenry Ford, reduziram drasticamente otempo de produção de uma carroceria, de12,5 horas em 1912 para 1,5 hora em 1913– e têm melhorado tremendamente desdeentão. Hoje, uma montadora da Toyota noJapão produz 300 Lexuses completos, pordia, empregando apenas 66 operários e 310robôs. Aumentos de eficiência como estesreduziram dramaticamente os custos eincrementaram as vendas. Isso é mais evi-dente na indústria de semicondutores, naqual eficiências de produção ajudaram a re-duzir o custo de um megabit de computa-ção, de cerca de US$ 20.000 em 1970, paraaproximadamente US$ 0,02 em 2001. Ta-manha ordem de grandeza em capacidadede computação a custos tão reduzidos ati-çou a revolução da informática.28

A globalização também baixou os pre-ços e estimulou o consumo. A partir de 1950rodadas sucessivas de negociações comer-ciais reduziram gradativamente as tarifasde muitos produtos, com conseqüências

diretas nos consumidores. Os australianos,por exemplo, já têm hoje uma economia de2.900 dólares australianos na compra deum automóvel, devido a reduções tarifáriasque entraram em vigor após 1998. E oAcordo da Tecnologia de Informação daOrganização Mundial de Comércio, em1996, eliminou por completo as tarifas so-bre a maioria dos computadores e outrastecnologias de informação, com algumasreduções chegando a 20–30%. As oito ro-dadas das negociações comerciais globaisdesde 1950 atiçaram a expansão econômi-ca mundial.29

Um mundo globalizante também permi-tiu que grandes corporações buscassemalém-fronteiras uma mão-de-obra mais ba-rata – chegando a pagar poucos centavospor hora. (Vide Capítulo 5.) Zonas deprocessamento de exportação (ZPEs) –áreas industriais minimamente regulamen-tadas que produzem bens para o comércioglobal – vêm multiplicando-se ao longo dasúltimas três décadas, em resposta à deman-da por mão-de-obra barata e ao desejo deincrementar exportações. Das 79 ZPEs em25 países em 1975, houve um aumentopara cerca de 3.000 em 116 nações em2002, com as zonas empregando cerca de43 milhões de trabalhadores na montagemde tênis, brinquedos, vestuário e outrosbens por muito menos do que custariamnos países industrializados. As zonas au-mentam a disponibilidade de mercadoriasbaratas para consumidores globais, porémsão freqüentemente criticadas por abusosem direitos trabalhistas e humanos.30

Enquanto isso, inovações tecnológicasde todos os tipos aumentaram a eficiênciaindustrial, elevando a capacidade das pes-soas e das máquinas na extração dos re-

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cursos. Hoje, frotas de “supertraineiras”,por exemplo, podem processar centenas detoneladas de peixe por dia. São responsá-veis, em parte, por declínios da ordem de80% sofridos por comunidades de peixesoceânicos nos 15 anos desde o início daexploração comercial. Os equipamentos deminas também são mais musculosos: nosEstados Unidos, as mineradoras hoje dedi-cam-se à “remoção de cumes”, que podereduzir a altura de uma montanha em deze-nas de metros. Além disso, a capacidadedos caminhões octuplicou, aumentando de32 para 240 toneladas entre 1960 e iníciodos anos 90. E a produção por mineiroamericano mais que triplicou no mesmoperíodo. Finalmente, serrarias de cavaco –instalações que lascam árvores inteiras emcavacos para papel e compensados – po-dem transformar mais de 100 cargas deárvores em cavacos diariamente. Essesavanços da capacidade humana em explo-rar imensas áreas de recursos naturais, e acusto baixo, ajudam a suprir os mercadoscom produtos baratos – um estímulo amaior consumo.31

apenas 7% maior no período 1997–2001do que no período 1970–74. E as redu-ções nos custos dos transportes ajuda-ram a disponibilizar maior quantidade debens para um maior número de pesso-as. As taxas de frete aéreo caíram emquase 3% anuais na maioria das rotasinternacionais entre 1980 e 1993, o queajuda a explicar por que produtos pere-cíveis como maçãs da Nova Zelândia ouuvas do Chile são hoje facilmente en-contradas em supermercados europeuse americanos. Os mercados em expan-são também permitem às empresas au-mentar a divisão da mão-de-obra utili-zada na produção e entrega de bens eserviços e conseguir maior economia deescala, cada uma das quais reduzindoainda mais os custos de produção.32

O ritmo incomparável desses avançostecnológicos durante o século XX levou àadoção cada vez mais acelerada de novosprodutos. Nos Estados Unidos, passaram-se 38 anos até que o rádio chegasse a umaaudiência de 50 milhões de pessoas, 13 anospara a televisão atingir igual número e ape-nas 4 anos para a Internet fazer o mesmo.Isso manteve as linhas de produção em ple-no funcionamento nas indústrias da in-formação, nas quais a Lei de Moore – aregra empírica de que a capacidademicroprocessadora dobra a cada 18 meses– provocou o lançamento de computadorese outros produtos digitais cada vez mais pos-santes. O suprimento regular de novos pro-dutos, por sua vez, provocou giro acelera-do nas últimas duas décadas – aumentandoainda mais o consumo.33

As forças que movem o consumo sãoencontradas até nas realidades econômi-cas que as modernas corporações enfren-

Nas sociedades de consumo,onde os alimentos e outros bens sãoabundantes, os impulsos estãolevando a níveis danosos de consumo.

A energia barata e a melhoria dostransportes também alimentaram a pro-dução, reduzindo custos e facilitando oaumento da distribuição. Apesar do sur-to nos preços do petróleo nos anos 70,o preço deflacionado do petróleo estava

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Figura 1-1. Gastos em Publicidade nos Estados Unidose Mundiais, 1950–2002

tam. A maioria das empresastem custos fixos substanciais –maquinaria pesada, prédios fa-bris e veículos de entrega ne-cessários para produzir e ven-der seus produtos. Uma indús-tria de última geração desemicondutores, por exemplo,custa hoje algo em torno de US$3 bilhões, um gigantesco inves-timento, que deve gerar retor-no mesmo quando as vendasestão fracas. Os custos fixos,então, representam risco finan-ceiro. Esse perigo pode ser re-duzido por meio do aumentoda produção e das vendas,para que os custos fixos diluam-se porum maior volume de produtos e maiordiversidade de mercados. Assim, a pres-são constante para a cobertura dos cus-tos fixos cria uma urgência na amplia-ção da produção – e na busca de novosclientes para adquirirem a produção con-tínua dos bens.34

A necessidade de novos clientes in-centiva as empresas a desenvolver umagama de novos instrumentos destinadosa estimular a demanda, muitos dos quaisse aproveitam das necessidades fisioló-gicas, psicológicas e sociais das pesso-as. A propaganda tem sido, talvez, o maispoderoso desses instrumentos. Hoje, apublicidade permeia quase todos os as-pectos da mídia, incluindo transmissõescomerciais, mídia impressa e Internet. Osgastos globais em publicidade atingiramUS$ 446 bilhões em 2002 (em dólares de2001), um aumento quase nove vezessuperior a 1950 (Vide Figura 1-1.) Maisda metade foi gasta nos Estados Unidos,

onde os anúncios representam cerca dedois terços do espaço de um jornal co-mum, quase metade da correspondênciaque os americanos recebem, e cerca deum quarto da programação da televisão.Mas a publicidade também expande-semundialmente. Gastos em publicidadefora dos Estados Unidos aumentaram 3,5vezes ao longo de 20 anos, com os mer-cados emergentes mostrando um cresci-mento particularmente acelerado. NaChina, os gastos em anúncios publicitá-rios aumentaram 22% só em 2002.35

A publicidade está cada vez mais dirigidae sofisticada, como se vê pelos esforçosde veiculação de produtos nos filmes e pro-gramas de televisão. Estudos recentes cons-tataram que mais da metade dos casos denovos fumantes entre a juventude deveu-se à sua exposição ao fumo em filmes, porexemplo. E apesar de uma “proibição” vo-luntária na veiculação de produtos por par-te da indústria, nos Estados Unidos aveiculação efetiva quase duplicou, com 85%

500

400

300

200

100

0

Bilhões de Dólares

(base=2001)

Mundo

Estados Unidos

Fonte: McCann-Erickson

1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

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dos 250 principais filmes realizados entre1988 e 1997 mostrando fumantes em cena.De fato, o fumo está mais predominantenos filmes do que entre a população dosEstados Unidos. Com Hollywoodauferindo talvez metade da sua receita devendas fora dos Estados Unidos, o fumonos filmes continua a formar padrões deconduta também. E os estúdios estrangei-ros prestam-se, cada vez mais, comoveículos de propaganda do tabaco. Entre1991 e 2002, cerca de três quartos dosfilmes produzidos em Bollywood (o equi-valente indiano de Hollywood) continhamcenas de fumantes.36

Práticas inovadoras de vendas tambémajudaram a incrementar a demanda. A intro-dução do cartão de crédito nos Estados Uni-dos, nos anos 40, ajudou a aumentar o totaldo consumo quase onze vezes entre 1945 e1960. Hoje, o uso maciço de cartões de cré-dito é incentivado vigorosamente, uma vezque os lucros das empresas emitentes de-pendem da manutenção de grandes saldosmensais por parte dos consumidores. Em2002, 61% dos usuários de cartões de cré-dito nos Estados Unidos mantiveram umsaldo médio mensal em aberto de US$12.000, a uma taxa de juros anual de 16%.(Vide Capítulo 5.) Dessa forma, um usuáriopagaria cerca de US$ 1.900 anuais em cus-tos financeiros – mais do que a renda médiaper capita (na paridade de poder de com-pra) de pelo menos 35 países.37

O crédito também incentiva o gasto naÁsia, América Latina e Europa Oriental. NoLeste Asiático, a parcela familiar dos em-préstimos bancários totais aumentou de27%, em 1997, para 40% em 2000. Emvários países, as principais montadorasestão ampliando sua linha de produção de-

vido a essa explosão do financiamento. Umdos diretores da General Motors, PhilipMurtaugh, realça a importância do créditona China: “Assim que implantamos o tipode sistema financeiro abrangente da GM,como temos nos Estados Unidos, anteci-pamos um grande salto nas vendas”.38

Finalmente, políticas governamentaissão, às vezes, responsáveis pelo incremen-to do consumo. Subsídios econômicos,que hoje totalizam cerca de US$ 1 trilhãoanuais, mundialmente, age como umamarola através da economia, estimulandoo consumo ao longo do seu curso. O go-verno dos Estados Unidos, por exemplo,desde a II Guerra Mundial, subsidiou aconstrução de residências suburbanas porintermédio de benefícios fiscais e outrosincentivos. Lares suburbanos espaçososajudaram a atiçar o consumo de uma vas-ta gama de bens de consumo duráveis,incluindo refrigeradores, televisores, mo-bílias, lavadoras e automóveis. Estes, porsua vez, requerem enormes quantidadesde matérias-primas, um terço do ferro eaço, um quinto do alumínio e dois terçosdo chumbo e borracha nos Estados Uni-dos. E a expansão dos subúrbios levou aum maior gasto público em novas rodovi-as, postos de bombeiros, delegacias depolícia e escolas. O Centro de TecnologiaDistrital de Chicago constatou, no final dosanos 90, que empreendimentos imobiliári-os de baixa intensidade são cerca de 2,5vezes mais intensivos no uso de materiaisdo que os empreendimentos de alta densi-dade. Assim, a decisão de subsidiar resi-dências suburbanas teve um grande efeitonos padrões de consumo nos EstadosUnidos na última metade do século XX.39

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Problemas no Paraíso

Em Capitalismo Natural, uma análise daseconomias industriais em 1999, seus auto-res, Paul Hawkins, Amory Lovins e HunterLovins, declaram que os Estados Unidosgeram um volume gigantesco do que esteschamaram de “desperdício” – todo gastopara o qual nenhum valor é recebido. Essesdesembolsos pagam por uma multidão desubprodutos indesejados do sistema econô-mico americano, inclusive poluição hídricae atmosférica, tempo perdido em engarra-famentos do trânsito, obesidade e crime,entre muitos outros. De acordo com os cál-culos dos autores, esse desperdício custouaos Estados Unidos pelo menos US$ 2 trilhõesem meados dos anos 90 – cerca de 22% dovalor da economia. Essa estimativa, eviden-temente, é uma projeção, porém a análise éútil ao chamar a atenção de forma abrangenteà quase despercebida subestrutura das eco-nomias industriais modernas. O custoambiental e social das economias industriaisestá cada vez mais evidente.40

Realmente, a própria existência dodesperdício, ou refugo no sentido maistradicional – seja de domicílios, minas,canteiros de obras e fábricas –, demons-tra que as economias industriais são fa-lhas em seus projetos. Contrastandocom os bens e serviços produzidos pe-los milhões de outras espécies do nossoplaneta, que geram subprodutos úteis enão refugo sem valor, as economias hu-manas são projetadas sem muita aten-ção aos resíduos da produção e do con-sumo. O impacto dessa falha é gigan-tesco, a começar pelo extrativismo. Porcada tonelada aproveitável de cobre, porexemplo, são descartadas 110 toneladas

de restos rochosos e minérios. À medi-da que os metais rareiam, o refugo ten-de a aumentar: para se obter o ouro ne-cessário para fazer uma aliança de ca-samento, são produzidas cerca de 3 to-neladas de resíduo tóxico.41

Quase todos os ecossistemasmundiais estão perdendo lugarpara residências, fazendas,shoppings e fábricas.

O refugo do consumo é igualmentesombrio, especialmente nos países ricos.O habitante comum de um país da OCDEgera 560 quilos de lixo urbano por ano e,com exceção de três, todos os 27 paísesgeraram mais, per capita, em 2000 doque em 1995. Mesmo nos países consi-derados líderes em política ambiental,como a Noruega, a redução dos fluxosde lixo é um desafio constante. Em 2002,o norueguês comum gerou 354 quilos delixo, 7% mais do que no ano anterior. Aproporção do lixo reciclado tambémcresceu, porém estancou em menos dametade do total gerado. Enquanto isso,os americanos continuam sendo os cam-peões mundiais do lixo, produzindo, percapita, 51% mais lixo urbano do que ohabitante comum de qualquer outro paísda OCDE. Há um vislumbre de boas no-tícias dos Estados Unidos: o índice percapita aparentemente estabilizou-se nosanos 90. Mesmo assim, somando-se osaltos níveis de lixo por cidadão america-no ao crescimento contínuo da popula-ção dos Estados Unidos, chega-se a umentulho descomunal.42

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As tendências do uso dos recursos eda saúde dos ecossistemas indicam queas áreas naturais também estão sob oestresse das pressões crescentes do con-sumo. (Vide Tabela 1-7.) Uma equipe in-ternacional de ecólogos, economistas ebiólogos conservacionistas publicaram umestudo em Science, em 2002, indicandoque quase todos os ecossistemas mundi-ais estão perdendo lugar para residências,fazendas, shoppings e fábricas. Como re-vela o estudo, a relva marinha e leitos dealgas estão declinando 0,01–0,02% ao ano,florestas tropicais 0,8%, pesqueiros ma-rinhos 1,5%, ecossistemas de água doce(pântanos, baixios, lagos e rios) 2,4% e

manguezais em assustadores 2,5%. Tam-bém mencionou grandes perdas anuais,difíceis de quantificar, de recifes de co-ral, pradarias e terras cultivadas. Apenasas florestas temperadas e boreais mostra-ram revitalização, aumentando 0,1% aoano após décadas de declínio. Verificaçõesconstantes de declínio ambiental globalpodem ser encontradas no Índice PlanetaVivo, um instrumento desenvolvido pelaWWF International (Fundo Mundial paraa Natureza) para medir a saúde das flo-restas, oceanos, rios e outros sistemasnaturais. O Índice mostra um declínio de35% na saúde ecológica do planeta desde1970. (Vide Figura 1-2.)43

Tabela 1-7. Tendências Globais dos Recursos Naturais e do Meio Ambiente

FONTE: vide nota final 43.

Indicador Ambiental

O consumo global de carvão, petróleo e gás natural foi 4,7 vezes maior em 2002 do que em1950. Os níveis de dióxido de carbono em 2002 foram 18% maiores do que em 1960, e estãoestimados em 31% a mais desde o início da Revolução Industrial, em 1750. Os cientistasatribuíram a tendência de aquecimento durante o século XX ao acúmulo de dióxido de carbonoe outros gases retentores de calor.

Mais da metade das terras alagadas do planeta, desde pântanos costeiros a baixios interioranos,foi perdida devido, em grande parte, à drenagem ou aterro para loteamentos ou agricultura.Cerca da metade da cobertura florestal original do mundo também já deixou de existir, enquantooutros 30% estão degradados ou fragmentados. Em 1999, o consumo global de madeira paracombustível, madeireiras, papel e outros produtos foi mais que o dobro do consumo de 1950.

O nível do mar subiu 10 – 20 centímetros no século XX, uma média de 1– 2 milímetros ao ano,como conseqüência do degelo da massa continental polar e da expansão dos oceanos devido àmudança climática. Pequenas ilhas-nações, embora responsáveis por menos de 1% das emissõesglobais de gases de estufa, correm o risco de serem inundadas pelo aumento do nível do mar.

Cerca de 10 – 20% das terras cultivadas mundiais sofrem algum tipo de degradação, enquantomais de 70% dos pastos globais estão degradados. Ao longo do último meio século, a degradaçãodo solo reduziu a produção de alimentos em cerca de 13% nas terras cultivadas e 4% nos pastos.

Em 1999, o pescado total foi 4,8 vezes o volume de 1950. Apenas nos últimos 50 anos asfrotas de traineiras pescaram pelo menos 90% de todos os grandes predadores oceânicos –atum, marlim, peixe-espada, tubarão, bacalhau, halibut, arraia e linguado.

O bombeamento excessivo da água subterrânea está causando declínio dos lençóis freáticos emregiões agrícolas chave na Ásia, África do Norte, Oriente Médio e Estados Unidos. A qualidadeda água também está deteriorando-se devido ao escoamento de fertilizantes e pesticidas,produtos petroquímicos que vazam de tanques de armazenagem, solventes clorados, metaispesados despejados pelas indústrias e lixo radioativo de usinas nucleares.

Combustíveis fósseise a atmosfera

Degradação deecossistemas

Nível do mar

Solo/terras

Pesqueiros

Água

Tendência

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Figura 1-2. Mudanças na Atividade Econômica e naSaúde dos Ecossistemas, 1970–2000

sumo já haviam excedido acapacidade ecológica do pla-neta no final dos anos 70 ouinício dos anos 80. Tamanhosuperconsumo só é possívelpor meio da redução dos es-toques das reservas naturais,como quando a água de poçoé bombeada a ponto de redu-zir os níveis freáticos.44

A busca agressiva de umasociedade de consumo demassa também corre-laciona-se com um declínio dos indi-cadores de saúde em muitospaíses. “Doenças do consu-mo” continuam a crescer. Ofumo, por exemplo, um hábi-

to de consumo alimentado por dezenasde bilhões de dólares em publicidade,contribui para cerca de 5 milhões demortes, mundialmente, a cada ano. Em1999, despesas médicas e perdas de pro-dutividade relacionadas ao tabaco custa-ram aos Estados Unidos mais de US$ 150bilhões – quase uma vez e meia a receitadas cinco maiores multinacionais de fumonaquele ano. Igualmente, o excesso depeso e a obesidade, resultantes geralmentede uma dieta inadequada e estilo de vidacada vez mais sedentário, afetam mais deum bilhão de pessoas, reduzindo a quali-dade de vida, custando bilhões em trata-mento de saúde à sociedade e contribu-indo para o aumento acelerado da diabete.Nos Estados Unidos, cerca de 65% dosadultos estão com excesso de peso ouobesos, causando uma perda anual de300.000 vidas e pelo menos US$ 117 bi-lhões em tratamento de saúde em 1999.45

Uma medida do impacto do consu-mo humano sobre os ecossistemas glo-bais é encontrada no sistema de conta-bilidade da “pegada ecológica,” que medea quantidade de terra produtiva que umaeconomia requer para produzir os recur-sos de que precisa e assimilar seus resí-duos. Cálculos realizados pelo grupocaliforniano Redefining Progress reve-lam que a Terra possui 1,9 hectare, percapita, de terras produtivas para suprirrecursos e absorver resíduos. Todavia,são tão grandes as demandas ambientaisdas economias mundiais que o cidadãocomum hoje utiliza 2,3 hectares de terraprodutiva. Esse número global oculta,certamente, uma enorme variedade depegadas ecológicas – desde os 9,7 hec-tares demandados pelo americano co-mum, até o 0,47 hectare utilizado pelomoçambicano comum. A análise das pe-gadas revela que os níveis totais de con-

3,0

2,5

2,0

1,5

1,0

0,5

0,0

1970=1,0

Índice do ProdutoMundial Bruto

Índice Planeta Vivo

Fonte: Maddison, FMI, WWF Intl, PNUMA, RP

1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000

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Estado do Mundo 2004

O ESTADO DO CONSUMO HOJE

O fracasso da tese de que maisriqueza e consumo proporcionam àspessoas uma vida mais realizadapode ser o argumento mais eloqüentepara uma reavaliação da nossaabordagem do consumo.

tuições. Dados de outros países prósperossão mais encorajadores, embora já estejamevidentes alguns sinais de desengajamentosocial. A participação organizacional conti-nua alta em muitos países europeus, mas onível de envolvimento e interação pessoalestá em queda em algumas nações e a par-ticipação é, freqüentemente, mais transitó-ria do que no passado. Até na Suécia, comfortes redes comunitárias e sociais, há si-nais preocupantes: o engajamento políticoé cada vez mais passivo e os níveis de con-fiança nas instituições estão caindo.47

Robert Putnam, professor de PolíticasPúblicas da Universidade de Harvard, identi-ficou limitações de tempo, dispersãoresidencial e longa permanência frente à tele-visão como os três destaques da sociedadeamericana que podem explicar o declínio noengajamento cívico e, em conjunto, respon-sáveis por parte da situação. Todos os trêsestão ligados ao alto consumo: pressões detempo estão freqüentemente ligadas à neces-sidade de trabalhar longas horas para susten-tar hábitos de consumo; a dispersão é resul-tado da dependência do automóvel e do de-sejo de casas e terrenos maiores; e o longotempo frente à televisão ajuda a promover oconsumo através da exposição à publicidadee programações que freqüentemente roman-tizam estilos consumistas de vida.48

Talvez a prova mais contundente de oconsumo contínuo estar gerando benefíci-os decrescentes esteja nos estudos que com-param o nível cada vez mais alto de riquezapessoal nos países ricos, com a parcela es-tagnada da população, nessas nações, quealega estar “muito feliz”. Embora a felicida-de auto-revelada entre os pobres tenda acrescer com o aumento da renda, os estu-dos revelam que o elo entre felicidade e au-

A “saúde social” em geral também caiunos Estados Unidos nos últimos 30 anos,conforme o Índice de Saúde Social da Uni-versidade Fordham. Esse índice documentaaumentos da pobreza, suicídio juvenil, ca-rência de seguro-saúde e desigualdade derenda a partir de 1970. E apesar de possuirníveis de consumo superiores à maioria dasnações industrializadas, os Estados Unidostêm o pior escore em inúmeros índices dedesenvolvimento: está em último lugar en-tre os 17 países da OCDE medidos no Ín-dice de Pobreza Humana dos países indus-trializados, do Programa das Nações Uni-das para o Desenvolvimento, que compilaindicadores de pobreza, analfabetismo fun-cional, longevidade e inclusão social.46

Um estudo da OCDE também docu-mentou o desengajamento de envolvimentocívico em alguns países industrializados,particularmente os Estados Unidos e Aus-trália. Em ambos os países, o número deassociados em organizações formais temcaído, como tem caído também a intensi-dade de participação em termos de presen-ça e disposição de assumir lideranças. En-quanto isso, interações sociais informais –jogar cartas com vizinhos, ir a piqueniques,etc. – também declinaram sensivelmente emambos os países, da mesma forma que osníveis de confiança entre pessoas e insti-

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O ESTADO DO CONSUMO HOJE

mento de renda é quebrado logo que níveismodestos de renda são atingidos. O fracas-so da tese de que mais riqueza e consumoproporcionam às pessoas uma vida maisrealizada pode ser o argumento mais elo-qüente para uma reavaliação da nossa abor-dagem do consumo.49

O desapontamento pela capacidade de oconsumo produzir vidas mais realizadas estágerando descontentamento entre acadêmicos,legisladores e a população. Um grande nú-mero de livros publicados nos anos 90 docu-mentou o desagrado com as sociedades or-ganizadas em torno do consumo. Os títulosdizem tudo: O Americano Pródigo, O Ame-ricano Estressado, Um Século TodoConsumista, Confrontando o Consumo e OAlto Preço do Materialismo, entre outros.Embora as análises divirjam, todos esses au-tores expressam o ponto de vista de que associedades focadas no consumo não são sus-tentáveis, por razões ambientais ou sociais.

Descontentamento com um compro-misso com o alto consumo ficou patentetambém em termos políticos e básicos.Vários governos europeus já estãoimplementando ou planejando reformas dehorários de trabalho e férias, por exemplo.E algumas pessoas na Europa e nos Esta-dos Unidos estão começando a adotar esti-los de vida mais simples. De forma lenta,mas constante, já é evidente o interesse daspessoas em atribuir ao consumo um papelmais coadjuvante do que principal.50

Um Novo Papelpara o Consumo

Apesar dos problemas associados à socie-dade de consumo, e não obstante as medi-das experimentais para redirecionar as

sociedades para um caminho menos dano-so, a maioria das pessoas nos países in-dustrializados ainda continua numa rota deconsumo ascendente e muitas outras, nospaíses em desenvolvimento, permanecematoladas na pobreza. A fim de promover ointeresse experimental por um novo papelpara o consumo, qualquer visão terá queincluir respostas a quatro quesitos-chave:

• Estará a classe de consumidor globaltendo uma qualidade de vida melhorem função dos seus níveis crescen-tes de consumo?

• Poderão as sociedades perseguir oconsumo de forma equilibrada, espe-cialmente harmonizando o consumoao ambiente natural?

• Poderão as sociedades reformular asopções do consumo para uma esco-lha genuína?

• Poderão as sociedades priorizar oatendimento às necessidades básicasde todos?

De modo geral, os consumidores es-tarão se beneficiando da cultura globalde consumo? Indivíduos, importantesárbitros dessa questão, podem conside-rar os custos pessoais associados a altosníveis de consumo, dívida financeira,tempo e estresse relacionado ao trabalhopara sustentar um alto consumo e ao tem-po necessário para limpar, melhorar, guar-dar ou, de outra forma, manter as pos-ses. E como o consumo substitui o tem-po com família e amigos.

Tanto indivíduos quanto legisladores de-vem analisar o aparente paradoxo de que aqualidade de vida, freqüentemente, é melho-rada quando se age dentro de limites clara-

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O ESTADO DO CONSUMO HOJE

mente definidos sobre o consumo. As flo-restas, por exemplo, podem serdisponibilizadas para todos indefinidamentese não forem exploradas mais rapidamenteque sua taxa de renovação. Igualmente, aque-le que adotar parâmetros claros de bem-es-tar pessoal – exercitando-se diariamente ealimentando-se bem, por exemplo – prova-velmente terá uma qualidade de vida melhordo que outro que consuma de formadesordenada e irrestrita. Na realidade, a pre-missa básica da economia do consumo emmassa – ou seja, que o consumo ilimitado éaceitável, e até desejável – choca-se, funda-mentalmente com os padrões de vida domundo natural e com os ensinamentos so-bre moderação, comuns a filósofos e líde-res religiosos em todas as culturas e atravésde grande parte da história da humanidade.

taxas de renovação; e os empregadoresfreqüentemente premiam trabalhadores quepassam longas horas no trabalho. Cada umdesses excessos impõe um preço em bem-estar pessoal ou social. Existem inúmerasformas imaginativas de harmonizar as op-ções de consumo às necessidades sociais eambientais – desde legislação estabelecendoníveis obrigatórios de teores de reciclagem,até leis de “devolução” de produtos que res-ponsabilizam os fabricantes pelos produtose resíduos que criam.

Terceiro, estarão sendo proporciona-das aos consumidores oportunidades deescolha genuínas, que os ajudam a aten-der suas necessidades? Claramente, associedades de consumo em massa ofere-cem mais produtos e serviços do que qual-quer outro sistema econômico da históriada humanidade. Todavia, os consumido-res nem sempre encontram o que preci-sam. Consideremos os transportes: o aces-so seguro e conveniente a apenas cincoalternativas – andar a pé, de bicicleta,transportes públicos, transporte solidárioou carro particular – poderá proporcionaropções mais eficazes de levar as pessoasa seus destinos do que uma escolha entre100 modelos numa revendedora de auto-móveis. E onde a escolha genuína estiverpresente a opção mais desejável pode nãoser acessível, como ocorre com alimen-tos orgânicos em alguns países. Os go-vernos precisam reformular incentivos eregulamentos econômicos para facilitar àsempresas a oferta de opções acessíveisque atendam às necessidades dos clien-tes. Também têm um papel na contençãodos excessos do consumo, principalmen-te através da remoção de incentivos paraconsumir – desde a energia subsidiada até

A premissa básica da economia doconsumo em massa – ou seja, queo consumo ilimitado é aceitável, eaté desejável – choca-se,fundamentalmente, com ospadrões de vida do mundo natural.

Segundo, será que nosso consumo estáeconomicamente, socialmente e ambien-talmente equilibrado? Nas sociedades deconsumo em massa, as leis e incentivos eco-nômicos freqüentemente encorajam as pes-soas a cruzar importantes limiares econô-micos, ambientais e sociais. Bancos e agên-cias de crédito instam os consumidores aassumir dívidas pesadas; empresas e indiví-duos exploram florestas, água subterrâneae outros recursos renováveis além de suas

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O ESTADO DO CONSUMO HOJE

a promoção de empreendimentos imobili-ários de baixa densidade.

Finalmente, poderão as sociedades cri-ar uma ética de consumo que priorize oatendimento às necessidades básicas detodos? O bem-estar físico – incluindo aces-so adequado a alimentos sadios, água po-tável e saneamento, educação, tratamentode saúde e segurança pessoal – é base detodas as realizações individuais e sociais.Negligenciar essa base inevitavelmente li-mitará a capacidade de muitos realizaremseu potencial pessoal – e sua capacidadede fazer contribuições significativas à so-ciedade. Num mundo em que há mais pes-soas vivendo com menos de US$ 2 por diado que há na classe de consumidores glo-bais, a busca contínua por maior riquezapelos ricos – quando há pouca evidênciade que isso aumente a felicidade – suscitaquestões éticas graves.

Além do imperativo ético, a assistência atodos é uma razão de auto-ajuda. A falta deatenção às necessidades dos mais pobrespode causar maior insegurança aos maisprósperos e maiores gastos em medidas

defensivas. A necessidade de gastar bilhõesde dólares em guerras, segurança de fron-teiras e manutenção da paz está segura-mente relacionada à negligência mundialaos prementes problemas sociais eambientais. O mesmo ocorre em termoscomunitários. Gastos em educação particu-lar, comunidades cercadas, sistemas de alar-me doméstico são apenas algumas das for-mas em que a falta de investimentos nosmais pobres retorna para assombrar os ri-cos. Atender às necessidades básicas de to-dos, então, tanto é certo quanto inteligente.

Tratar dessas quatro questões daria aoconsumo um papel menos central em nos-sas vidas e liberaria tempo para o aperfei-çoamento comunitário e o fortalecimentodas relações interpessoais – fatores que ospsicólogos dizem ser essenciais para umavida realizada. Ao redirecionar as priorida-des sociais em direção à melhoria do bem-estar das pessoas, em vez de simplesmen-te acumular bens, o consumo poderá agirnão como o motor que conduz a econo-mia, e sim como um instrumento que pro-porciona uma qualidade melhor de vida.

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O ESTADO DO CONSUMO HOJE

Sacos Plásticos

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

Sacos plásticos são o item deconsumo mais comum na faceda Terra. Sua leveza, baixocusto e impermeabilidade ostornam extremamenteconvenientes para carregarmantimentos, peças devestuário ou qualquer outracompra do dia-a-dia, sendodifícil imaginar a vida sem eles.

As primeiras “embalagens” plásticaspara pão, sanduíches, frutas e outrasverduras surgiram nos Estados Unidos, em1957. Sacos plásticos de lixo já estavampresentes nos lares e ao longo das calçadasem todo o mundo no final dos anos 60. Masesses itens popularizaram-se realmente emmeados dos anos 70, quando um novoprocesso de produção barata de sacosplásticos tornou possível para os grandesvarejistas e supermercados oferecerem aseus clientes uma alternativa para os sacosde papel. Hoje, em cada cinco sacos usadosnos mercados, quatro são plásticos, do tipode duas alças, semelhantes a uma camiseta.1

Esses sacos partem do petróleo bruto,gás natural ou outros derivadospetroquímicos, que são transformados nasfábricas de plásticos em cadeias demoléculas de hidrogênio e carbono,conhecidas como polímeros ou resina depolímero. (Resina de polietileno de alta

densidade é o padrão industrial para ossacos plásticos.) O polietileno ésuperaquecido e a resina líquida éextraída com um tubo, semelhante ao

processo de fabricar macarrão.Quando se obtém a forma

desejada, a resina éresfriada e endurecida,podendo ser achatada,selada, reforçada,perfurada ou impressa.2

Os sacos plásticostípicos, que pesam apenas alguns gramas etêm poucos milímetros de espessura,poderiam parecer completamente inócuosnão fosse o gigantesco volume da produçãoglobal. Fábricas em todo o mundoproduziram aproximadamente 4–5 trilhões desacos plásticos – desde grandes sacos delixo e sacolas resistentes para lojas até sacosmais finos para supermercados – em 2002, deacordo com estimativas do Chemical MarketAssociates, uma firma de consultoria daindústria petroquímica. A América do Norte eEuropa Ocidental são responsáveis porquase 80% do consumo desses produtos. Osamericanos descartam, anualmente, 100bilhões de sacos plásticos, que estão setornando cada vez mais comuns também nasnações mais pobres. E hoje sacos produzidosna Ásia representam um quarto dos sacosusados nas nações ricas.3

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ATRÁS DOS BASTIDORES: SACOS PLÁSTICOS

A produção de sacos plásticosconsome cerca de 20–40% menos energiae água do que a produção de sacos depapel e gera menos poluição e resíduossólidos, conforme avaliações de ciclo devida por parte de grupos industriais enão-industriais. Representantes daindústria de plástico também observamque sacos de papel ocupam menosespaço num aterro e que nenhum dosdois produtos decompõe-se sob ascondições predominantes nos aterros.(Sob condições adequadas, o saco depapel decompõe-se rapidamente,enquanto o mesmo não ocorre com osaco plástico.)4

Porém muitos sacos não encontram ocaminho dos aterros. Alguns são levadospelo ar depois de descartados. No Quênia,fazendeiros e conservacionistas reclamamcontra sacos presos em cercas, árvores emesmo nas goelas de pássaros. EmXangai, o governo estava gastando tantodinheiro na limpeza de sarjetas, esgotos etemplos antigos que lançou umacampanha para encorajar as pessoas adarem nós nos sacos, para impedi-los deserem levados pelo vento. O irlandêsdenomina os sacos, onipresentes, de sua“bandeira”; os sul-africanos resolveramapelidá-lo de “flor nacional”.5

Alguns fabricantes introduziramrecentemente no mercado sacosplásticos biodegradáveis ou orgânicos,fabricados com amidos, polímeros ouácido polilático, e não polietileno. Atéagora, estes correspondem a menos de1% do mercado a preços proibitivos,conforme o Biodegradable ProductsInstitute, uma associação que promoveo uso de materiais poliméricosbiodegradáveis. Não obstante, osorganizadores dos Jogos Olímpicos

2000, em Sidnei, Austrália, recolheram76% dos restos de comida gerados noseventos esportivos e vila olímpicausando utensílios e sacos plásticosbiodegradáveis, que se decompõem tãorapidamente quanto o alimento,eliminando a necessidade de separar olixo. (Na primavera seguinte, acompostagem adubou os jardins dacidade.)6

Em outros países, governos eindivíduos propõem uma solução maispermanente, que não dependa de novatecnologia. A Aliança de Mulheres deLadack e outros grupos de cidadãoslideraram uma campanha bem-sucedidano início dos anos 90 para proibir sacosplásticos naquela província da Índia,onde o dia 1o de maio é agoracomemorado como “Dia da Proibição doPlástico”. Bangladesh deu início à suaprópria proibição após constatar quesacos descartados estavam entupindoesgotos e drenos pluviais, aumentandoas inundações e a incidência de doençasveiculadas pela água.7

Em janeiro de 2002, o governo daÁfrica do Sul agiu, exigindo que aindústria fabricasse sacos maisresistentes e mais caros, a fim dedesencorajar o descarte – provocandouma redução de 90% em seu uso. AIrlanda criou um imposto de 15 centavospor saco a partir de março de 2002, o quelevou a uma redução de 95% em seu uso.Austrália, Canadá, Índia, Nova Zelândia,Filipinas, Taiwan e Reino Unido tambémplanejam proibir ou taxar os sacosplásticos.8

Supermercados em todo o mundoestão tomando a iniciativa de encorajarseus clientes a dispensarem os sacos – outrazerem suas próprias sacolas –

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ATRÁS DOS BASTIDORES: SACOS PLÁSTICOS

concedendo um pequeno desconto porsaco ou cobrando uma pequena taxa porestes. A Weaver Street Market, umamercearia comunitária na Carolina doNorte, deu um passo além ao vendersacolas de lona com desconto. As vendasdessas alternativas duráveisquintuplicaram, declarou o gerente JamesWatts, e o uso de sacos plásticos

despencou. “É bom para os negócios etambém para o meio ambiente”,acrescentou . Entretanto, a idéia de levarsacolas reutilizáveis sempre que se vai àscompras é tão simples e óbvia que amaioria das pessoas pode não perceber ogrande impacto que pode ter.9

— Brian Halweil

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O ESTADO DO CONSUMO HOJE

C A P Í T U L O 2

Escolhendo Melhora Energia

Janet L. Sawin

Aninhadas entre as ondulantes e verdescolinas ao sul do Estado de West Virginia,encontram-se velhas cidades como ClearCreek, Duncan Fork, Superior Bottom eWhite Oak. As Montanhas Apalaches nes-sa região abrigam algumas das pessoasmais pobres dos Estados Unidos. Durantegerações, os habitantes dependeram da mi-neração do carvão para seus empregos esustento. Mas muitos acreditam que “asApalaches estão sendo assaltadas” e que aindústria que os sustentaram por geraçõesestá hoje empobrecendo-os. Cumes estãosendo explodidos para extrair o carvão quecobriam. No processo, montanhas trans-formaram-se em terra agreste, florestasnobres desapareceram, córregos entupi-ram-se com lodo tóxico, poços secaram ecomunidades inteiras foram expulsas.1

A quilômetros de distância desses cu-mes áridos, alguém chega em casa e acen-de a luz, querendo apenas clarear a escuri-dão, sem pensar no que isso envolve alémdas paredes da casa. Para a grande maioriade pessoas, a eletricidade é uma força invi-

sível que flui mágica e silenciosamente parailuminar um cômodo, resfriar um refrige-rador, aquecer um fogão ou dar vida à tele-visão. Entre uma conta de energia e outra,a maioria pouco pensa a respeito.

Todavia, no momento em que alguémaciona um interruptor de luz, ou liga umcomputador, uma reação em cadeia entraem ação. A corrente flui para o imóvel, atra-vés de linhas de transmissão que se esten-dem por meio de campos e vias urbanas,trazendo eletricidade de usinas distantes. Aolongo do caminho, grande parte dessa ener-gia perde-se pela resistência nas linhas detransmissão e dissipa-se como calor.

Para criar eletricidade, em grande partedo mundo pilhas gigantescas de carvão sãoconduzidas por correias transportadoraspara serem pulverizadas em um fino pó elançadas numa fornalha na usina. O fogoproduz vapor d’água, que move um gera-dor, a fim de produzir uma corrente elétri-ca. No processo, a usina emite poluentesque causam chuva ácida e nevoeiroenfumaçado, como também mercúrio e

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ESCOLHENDO MELHOR A ENERGIA

dióxido de carbono (CO2), um gás de aque-

cimento global. No máximo, 35% da ener-gia do carvão é convertida em eletricidade,o que significa que quase dois terços sãoperdidos sob a forma de calor de escape,sem beneficiar ninguém e freqüentementeprejudicando os ecossistemas vizinhos. Etodo esse carvão tem que ser transportadopara a usina, por trens ou chatas, de locaiscomo as Montanhas Apalaches ou sul deWest Virginia.2

Tudo o que consumimos ou utilizamos– nossos lares, seu conteúdo, nossos car-ros e as vias que percorremos, as roupasque usamos e os alimentos que comemos– requer energia para ser produzido e em-balado, distribuído às lojas ou em domicí-lio, operado e depois descartado. Raramentepensamos de onde vem essa energia ouquanto consumimos – ou de quanto real-mente precisamos.

Seja na forma de gasolina para alimen-tar um carro, ou urânio para gerar eletrici-dade, a energia necessária para sustentarnossas economias e estilos de vida propor-ciona grande conveniência e benefícios.Mas também impõe altos custos à saúdehumana, aos ecossistemas e até à seguran-ça. O consumo de energia afeta tudo, des-de a dívida externa de um país (devido àsimportações de combustíveis) até a estabi-lidade do Oriente Médio. Desde o ar querespiramos até a água que bebemos, nossouso da energia afeta a saúde das geraçõesatuais e futuras. O uso ineficiente e insus-tentável da biomassa em países pobres levaao desmatamento e desertificação, enquantoo uso insustentável de combustíveis fós-seis está alterando o clima global. E à me-dida que buscamos fontes mais remotas decombustível, colocamos em perigo a cul-

tura e o modo de vida de povos indígenas,da Amazônia ao Ártico.

A intensidade energética – ou seja, oinsumo de energia por dólar de produto –da economia global está em declínio, tendohavido melhorias contínuas de eficiênciaenergética nas décadas recentes. Todavia,essas melhorias estão sendo neutralizadaspor um nível cada vez maior de consumoem todo o mundo. Naturalmente, não é dese estranhar que o uso de energia estejacrescendo nos países em desenvolvimen-to, onde a maioria das pessoas nunca diri-giu um carro, ligou um ar-condicionado oucozinhou utilizando outra coisa que não le-nha ou dejeto animal. À proporção que ob-têm melhoria de vida, seu uso de energiaaumenta, e vice-versa.

O que é mais surpreendente é o aumen-to dramático do uso de energia em muitospaíses industrializados. Em comparação aapenas 10 anos atrás, por exemplo, osamericanos estão dirigindo carros maiorese menos eficientes, comprando casas mai-ores e mais eletrodomésticos. Conseqüen-temente, o consumo de petróleo nos Esta-dos Unidos aumentou ao longo da décadaem quase 2,7 milhões de barris/dia – maisdo que é consumido, diariamente, na Índiae no Paquistão, que, conjuntamente, têmmais de quatro vezes a população dos Es-tados Unidos. Será que essa demanda cres-cente é sustentável? E deverá haver umamudança fundamental no modo que pro-duzimos e consumimos energia?3

O tipo e o volume de energia que as pes-soas consomem são influenciados por vári-os fatores, incluindo renda, clima, recursosdisponíveis e políticas corporativas e gover-namentais. Por intermédio de impostos,subsídios, regulamentos, normas e investi-

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ESCOLHENDO MELHOR A ENERGIA

mentos em infra-estrutura, os governos in-fluenciam como, onde, quanto e que formade energia utilizamos. Mas nós, como con-sumidores, não somos meros e impotentesespectadores. Somos aqueles que adquiremveículos, eletrodomésticos, roupas, casas eoutros bens e serviços, com base emparâmetros como preço, moda e valores. Nofundo, dentro dos limites de disponibilidadee acessibilidade, são os consumidores queescolhem o produto a ser comprado e suautilização; e, assim, são os consumidores quepodem provocar mudanças.

Tendências Globais doUso de Energia

Entre 1850 e 1970, a população mundial maisque triplicou e a energia consumida aumen-tou 12 vezes. Em 2002, nossos números jáhaviam crescido mais 68% e o consumo decombustíveis fósseis outros 73%. O uso deenergia alimentou o crescimento econômi-co e vice-versa, mas não estão tão estreita-mente ligados, como acreditava-se outrora.Antes da primeira crise global do petróleo,muitos economistas pensavam que o con-sumo maior de energia era pré-requisito decrescimento econômico. Mas quando ospreços do petróleo deram um salto repenti-no, no início dos anos 70, governos e con-sumidores reagiram, estabelecendo padrõesde eficiência e conservando combustível.Entre 1970 e 1997, a intensidade global deenergia caiu 28%, enquanto a produção eco-nômica continuou a crescer.4

Quanto mais eficientemente produzirmose consumirmos energia, de menos energianecessitaremos para os mesmos serviços.Caso os Estados Unidos consumissem, em

2000, a mesma energia por dólar de PIBconsumida em 1970, o consumo de energiateria totalizado 177 quads, em vez dos 98,5quads efetivamente consumidos. De acor-do com o analista de energia Amory Lovins,medidas de eficiência energética, promulga-das a partir de meados dos anos 70, propor-cionaram uma economia de US$ 365 bilhõespara os Estados Unidos só em 2000.5

Com apenas 2% das reservasglobais e 4,5% da população total,os Estados Unidos continuamsendo o maior consumidormundial de petróleo.

O potencial para poupanças futuras nosEstados Unidos e outros países continuagigantesco. Ainda desperdiçamos imensasquantidades de energia. Consideremos ocaminho percorrido da mina de carvão atéo interruptor de luz e imaginemos essasperdas de energia através de toda a eco-nomia e em cada país. Nos Estados Uni-dos, por exemplo, para cada 100 unida-des de energia que alimenta usinas, prédi-os, veículos e fábricas, apenas 37 unida-des emergem como serviços úteis, taiscomo calor, eletricidade e mobilidade. Glo-balmente, a eficiência média da conver-são de energia primária em energia útil éde 28%. E as perdas variam enormemen-te de um uso ou país para o próximo: porexemplo, Lovins calcula que apenas 14%do petróleo na boca do poço chega às ro-das de um automóvel moderno.6

O consumo de energia, especialmentede petróleo, vem crescendo constantemen-

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ESCOLHENDO MELHOR A ENERGIA

te, com apenas uma pequena desaceleração,durante as crises dos anos 70. Apenas aEuropa Oriental e os antigos estados sovi-éticos sofreram declínios no consumo deenergia. Os países industrializados conti-nuam a consumir a maior parcela do pe-tróleo global – 62%. O consumo de petró-leo nos Estados Unidos duplicou a partirde 1960. Embora sua participação no con-sumo global tenha caído consideravelmen-te desde 1960, começou a subir novamen-te durante os anos 90. Com apenas 2% dasreservas globais e 4,5% da população to-tal, os Estados Unidos continuam sendo omaior consumidor mundial de petróleo.7

Hoje, os povos mais ricos do mundoconsomem, em média, 25 vezes mais ener-gia, per capita, do que os pobres. Na rea-lidade, quase um terço da população mun-dial não dispõe de acesso à eletricidade ououtros serviços modernos de energia, en-quanto outro terço dispõe apenas de aces-so limitado. Cerca de 2,5 bilhões de pes-soas, a maioria na Ásia, dispõem apenasde madeira ou outra biomassa para suaenergia. O cidadão americano comumconsome cinco vezes mais energia que ocidadão global, 10 vezes mais que o chi-nês e quase 20 vezes mais que o indiano.(Vide Tabela 2–1.)8

Tabela 2-1. Consumo de Energia e Emissões de Dióxido de Carbono Anuais, Países Selecionados

1Excluindo Hong Kong.FONTE: vide nota final 8.

Há também extremas desigualdades den-tro do mundo em desenvolvimento, onde oconsumo de energia cresce mais rapida-mente e onde só o uso do petróleo quadru-plicou desde 1970. Por exemplo, a Índiatem uma crescente classe de consumidorque dispõe de automóveis e eletrodomésti-cos, enquanto 48% das famílias vivem sem

habitação permanente. O mesmo ocorre emoutros países, de Gana ao Vietnã.9

Mais e mais pessoas no Sul conso-mem, em média, tanta energia quanto noNorte, e estudos indicam que suas rendasestão aumentando a uma taxa mais acelera-da do que qualquer outra experimentada pelomundo industrializado. (Vide Quadro 2-1.)

Estados UnidosJapãoAlemanhaPolôniaBrasilChina1

ÍndiaEtiópia

8,14,14,12,41,10,90,50,3

70,242,032,510,910,54,22,00,3

País Energia Comercial Petróleo EletricidadeEmissões de Dióxido

de Carbono

12.3317.6285.9632.5111.878

82735522

19,79,19,78,11,82,31,10,1

(toneladas deequivalência em

petróleo por pessoa)

(barris por dia pormil habitantes)

(quilowatt-horapor pessoa)

(toneladas porpessoa)

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ESCOLHENDO MELHOR A ENERGIA

A China já é o maior consumidor de carvãodo mundo e o 3º maior de petróleo, en-quanto o Brasil é o sexto maior, a Índia ooitavo e o México o décimo.10

Até hoje, o consumo de energia no Sultem sido limitado principalmente por ques-tões de renda e infra-estrutura – a falta deacesso a estradas e eletricidade restringiuo uso de automóveis e aparelhos, porexemplo, mesmo entre as classes média e

alta, em expansão. No futuro, entretanto,as pessoas no mundo em desenvolvimen-to estarão mais restringidas pela exaustãode recursos e realidades ambientais. ATerra não pode prover o suficiente para apopulação global atual viver como o cida-dão americano comum ou até mesmo oeuropeu comum. (Vide Capítulo 1.) Porexemplo, se o consumidor comum chinêsutilizasse a mesma quantidade de petróleo

Embora a China e Índia abriguem mais de umterço da população mundial, representamhoje apenas 13% do consumo global deenergia. Mas esse consumo está crescendorapidamente, e essas duas nações dependemsignificativamente do carvão – a China emmais de 70% para sua energia comercial e aÍndia em mais de 50%. A AgênciaInternacional de Energia projeta que ademanda crescente na China e na Índiarepresentará mais de dois terços do aumentoglobal esperado no consumo de carvão entrehoje e 2030. Esses gigantes populacionaiscausarão, então, impactos colossais nomercado global de energia e no meio ambientenas décadas futuras.

Os níveis de renda aumentaram rapidamenteem ambos os países, graças ao declínio da taxade crescimento populacional e aceleramentodo crescimento econômico. A economiachinesa mais que quadruplicou desde 1980.Durante os anos 80, a demanda de eletricidadena China aumentou mais de 400% devido àsaquisições de eletrodomésticos. Na Índia, onúmero de famílias “afluentes” – com rendamensal de US$ 220 ou mais – sextuplicou emapenas cinco anos, enquanto o número defamílias de baixa renda caiu significativamente.Essas tendências apontam para umaceleramento, alimentando uma classecrescente de consumidores que deseja teracesso às conveniências de aparelhos

domésticos, iluminação, fogões a gás e maiormobilidade.

A demanda por petróleo crescerárapidamente também à medida que mais e maispessoas adquiram automóveis. A produçãointerna de petróleo atualmente atende a cercade dois terços das necessidades chinesas, masos consumidores irão, em breve, dependermuito mais das importações caso a demandadobre, até 2025, como se espera – fazendocom que a China supere o Japão como osegundo maior consumidor mundial depoisdos Estados Unidos. As vendas de automóveisna China aumentaram 82% durante o primeirosemestre de 2003 em relação ao mesmoperíodo do ano anterior. Às taxas projetadasde crescimento, a frota chinesa de veículosparticulares poderá saltar dos 5 milhões em2000 para quase 24 milhões até o final de2005, aumentando substancialmente ocongestionamento de ruas e da poluiçãoatmosférica.O crescimento nas compras dos chamadosSUVs (veículos utilitários esportivos),pródigos no consumo de combustível, excedeuaté mesmo as expectativas dos fabricantes. NaÍndia, as vendas de SUVs representam, hoje,10% das compras de veículos e poderão, embreve, superá-las.

– Tawni Tidwell________________________________________FONTE: vide nota final 10.

QUADRO 2-1. SURTO DA DEMANDA ENERGÉTICA NA CHINA E ÍNDIA

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de um americano comum, a China neces-sitaria de 90 milhões de barris/dia – 11milhões a mais do que o planeta produziu,diariamente, em 2001. No futuro, o cres-cimento populacional, mudança climáticae outros desafios ambientais poderãoestressar os sistemas naturais a seus limi-tes, enquanto os combustíveis convenci-onais não poderão atender ao crescimen-to projetado da demanda energética. Narealidade, muitos analistas prevêem que,mesmo às taxas atuais de consumo, a pro-dução mundial de petróleo atingirá seu picoantes de 2020. Isso tem implicações gi-gantescas para o nosso estilo de vida emodo de mobilidade.11

A Energia que nos Move

Durante o século XX, a humanidade tor-nou-se uma espécie extremamente móvel.Nos países industrializados, hoje, é comumalguém viajar 10.000 ou até mesmo 50.000quilômetros em um ano. E grande partedo que utilizamos como consumidores,desde nosso próprio computador até o ali-mento que comemos, atravessa continen-tes e oceanos para chegar até nós. Há ape-nas 150 anos, movimentos eram limita-dos à distância que uma pessoa ou animalpudesse percorrer a pé. Para cerca de umterço da humanidade, certamente, isso ain-da é realidade. Para os outros dois terços,entretanto, uma maior mobilidade de pes-soas e propriedade causou impactos pro-fundos, alterando tudo, desde o trabalhoe família até a natureza e o planejamentode nossas cidades.

Hoje, o transporte representa quase 30%do uso global de energia e 95% do consu-

mo mundial de petróleo. Os Estados Uni-dos são, de longe, o maior consumidormundial de energia para os transportes,devorando mais de um terço do total glo-bal. A partir de uma base reduzida, entre-tanto, o consumo de energia para trans-portes está atualmente aumentando maisrapidamente na Ásia, Oriente Médio e Áfri-ca do Norte.12

Na realidade, os transportes são a for-ma de consumo de energia com crescimen-to mais acelerado em todo o mundo, pro-vocado, em parte, pela mudança dos mei-os de transporte utilizados pelas pessoas ecargas para outros mais flexíveis, porémmais intensivos no consumo de energia.Embora mais passageiros viajem de tremem vez de avião, e mais cargas por naviosdo que por outros meios, mesmo mudan-ças relativamente pequenas nas escolhas dotransporte causam impactos significativos.Apenas 0,5% da distância total que as pes-soas percorrem anualmente é realizada peloar; entretanto, os aviões consomem cercade 5% da energia de transportes. E os ca-minhões requerem quatro a cinco vezesmais energia que as ferrovias ou navios parao mesmo peso e distância.13

Porém o fator mais determinante doaumento progressivo do consumo de ener-gia para transportes é a crescente depen-dência do carro particular. Cerca de 40,6milhões de carros de passeio saíram daslinhas de montagem em 2002, cinco vezeso total de 1950. A frota global hoje ultra-passa 531 milhões de unidades, aumentan-do em cerca de 11 milhões de veículos anu-almente.14

Cerca de um quarto desses veículosestão nas estradas americanas, onde os

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automóveis e caminhões leves representam40% do consumo nacional de petróleo econtribuem com outro tanto para a mudançaclimática, da mesma forma que toda a ati-vidade econômica do Japão. A distância totalpercorrida por americanos excede a de to-das as outras nações industrializadas jun-tas – não só por suas dimensões territoriais,mas também porque os americanos prefe-rem dirigir quando outros andam a pé oude bicicleta. Como observou recentementeum consultor de transportes, “o automó-vel ficou parecido com os aparelhos de te-levisão. Há mais deles numa casa do queolhos para vê-los”. Hoje há mais carros doque americanos habilitados para dirigi-los,e a maioria das famílias possui dois ou maisveículos.15

Em bases per capita, a posse de umautomóvel na Europa Ocidental e Japão écomparável aos níveis dos Estados Unidosno início dos anos 70, enquanto a EuropaOriental compara-se aos Estados Unidos nosanos 30. Mas rendas em alta, mudanças deestilo de vida, mulheres entrando na forçade trabalho, políticas nacionais que incen-tivam a mobilidade e a queda dos custos decombustíveis provocaram um crescimen-to significativo. A posse de automóveis, porpessoa, no Japão quadruplicou entre 1975e 1990, e na Polônia aumentou 15 vezes,desde o início dos anos 70 até 2001. Ape-nas cerca de 20% dos veículos mundiaisestão na Ásia e região do Pacífico, mas osnúmeros lá estão crescendo a um ritmo de10-15% ao ano. (Vide Tabela 2-2.)16

Tabela 2-2. Frotas de Veículos Particulares e Comerciais,Países Selecionados e Total, 1950–99

FONTE: vide nota final 16.

O tamanho e peso dos veículos tambémtêm aumentado – uma tendência que já eli-minou mais de 20 anos de melhorias de efi-ciência ganhas nos Estados Unidos, atravésde padrões de eficiência de combustível es-

tabelecidos em lei federal. Na realidade, aeconomia de combustível dos veículos ame-ricanos seria um terço maior do que é hojecaso o peso e desempenho tivessem perma-necido constantes desde 1981.

País 19991990198019701960

(milhões de veículos)

1950

Estados UnidosJapãoAlemanhaChinaÍndiaArgentinaÁfrica do SulReps. Tcheca eEslovaca

Mundo

49,2—————

0,6

0,2

70,4

73,91,35,6—

0,50,91,2

0,4

126,9

108,417,315,5

—1,12,32,1

1,0

246,4

155,837,124,61,71,94,33,4

2,6

411,0

188,856,532,25,84,25,95,1

3,7

583,0

213,571,745,812,88,26,66,6

5,1

681,8

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Ironicamente, o Modelo T da FordMotor Company obtinha melhor quilome-tragem, quase um século atrás, do que oFord médio de hoje (se bem que com umavelocidade máxima de 70 quilômetros porhora). Quase metade dos veículos que osamericanos adquirem hoje são SUVs ecaminhões leves bebedores de gasolina.E o desejo por veículos maiores é conta-gioso. Caso as tendências atuais conti-nuem, em 2030 metade dos veículos depasseio mundiais serão SUVs ou outroscaminhões leves.17

As pessoas também viajam para maislonge. Entre 1952 e 1992, enquanto o nú-mero de pessoas no Reino Unido aumen-tava 15%, a distância que estas dirigiamtriplicou. E de 1970 a 2000, os quilôme-tros percorridos nos países da União Eu-ropéia (UE) mais que duplicaram. NosEstados Unidos, o número de percursospor família aumentou 46% entre 1983 e1995, enquanto o tempo médio de viagemcresceu mais de 5%.18

Embora a mobilidade contribua para obem-estar econômico e social, há altoscustos externos associados à extensão enatureza de nossas viagens. Mundialmen-te, quase um milhão de pessoas – a maioriapedestres – são mortas em acidentes detrânsito, anualmente, e o número de mor-tes causadas por poluição atmosférica vei-cular é maior. À medida que o uso de veí-culos aumenta, as vias congestionam-se,desperdiçando horas produtivas e reduzin-do a eficiência dos veículos. Os custos detransporte rodoviário não-coberto pelosmotoristas – poluição atmosférica, ruído,congestionamentos, acidentes e danos àsestradas – começam a 5% do PIB nos pa-íses industrializados, aumentando em algu-

mas cidades dos países em desenvolvimen-to. E o dinheiro que se investe em infra-estrutura rodoviária significa menos inves-timentos em outras áreas, o que agrava asdesigualdades sociais existentes para aque-les que não podem utilizar o meio de trans-porte predominante. Mesmo nos EstadosUnidos, cerca de um terço da população épobre demais, velha demais, ou jovem de-mais para dirigir um carro.19

Os europeus ocidentais hojeutilizam transportes públicospara 10% dos seus trajetosurbanos e os canadenses 7%,contra apenas 2% dos americanos.

As escolhas que as pessoas fazem paraseu deslocamento são influenciadas, em gran-de parte, por políticas governamentais, comoimpostos sobre veículos e combustíveis, re-gras do uso do solo e subsídios para trans-portes aéreos e automóveis, em detrimentodo transporte público e uso de bicicletas. Háum século, os EUA lideravam o mundo emtransporte público. Em 1910, quase 50 vezesmais americanos deslocavam-se para o tra-balho em trens do que em carros, e uma dé-cada depois quase todas as principais cida-des americanas dispunham de malhas ferro-viárias. Mas, após a II Guerra Mundial, ogoverno deu ênfase à construção de rodovi-as e auto-estradas Hoje, quem se desloca parao trabalho de carro tem subsídios em estaci-onamentos, enquanto aqueles que utilizamtransportes públicos recebem consideravel-mente menos, e os ciclistas nada. Assim, não

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é de se estranhar que a média de passageirosnos transportes seja menor hoje que há 50anos, apesar da duplicação da população dosEstados Unidos. Uma exceção para essa ten-dência é a cidade de Nova Iorque, onde, de-vido à alta densidade e proliferação de táxis eopções de transportes urbanos, apenas 25%dos seus habitantes têm habilitação para diri-gir. E em cidades como Denver, Colorado,onde os serviços estão melhorando ou ampli-ando, a utilização de transportes de massavoltou a crescer.20

Em contraste, muitos países destinaramrecursos significativos para os transportespúblicos, desencorajando o uso de veículosparticulares por meio de políticas de trânsitoe cobrança de taxas. No Japão e Europa, gran-de parte dos investimentos em infra-estrutu-ra de transportes após a II Guerra Mundialcentrou-se em trens e ônibus urbanos. Hoje,quase 92% das pessoas que se deslocam aocentro de Tóquio utilizam trens, com apenas55% utilizando carros. Os europeus ociden-tais, hoje, utilizam transportes públicos para10% dos seus trajetos urbanos e os canaden-ses 7%, contra apenas 2% para os america-nos. Isso é significativo porque, para cadaquilômetro rodado por um veículo particular,consome-se duas a três vezes mais combus-tível do que por transporte público.21

As diferenças nas tendências dos trans-portes também explicam-se pelos preços. Ocrescimento mais acelerado na propriedadee uso de um veículo particular ocorre ca-racteristicamente em países com os maisbaixos preços de combustível e automóveis.Os carros e a gasolina são mais baratos nosEstados Unidos do que na Europa, porexemplo, por não sofrerem tanta taxação.Na realidade, os maiores beberrões de ga-solina são subsidiados: em 2003, o Congres-

so dos Estados Unidos promulgou uma leitriplicando um crédito fiscal corporativo nascompras de SUVs, da ordem de US$ 75.000cada, comparado com uma dedução de US$2.000 para veículos elétricos híbridos.22

Apesar das políticas norte-americanase dos baixos preços de combustível, algunsamericanos preferem pagar mais, a fim deconsumir menos. Enquanto os motoresmodernos de combustão interna são ape-nas 20% eficientes, os carros híbridos po-dem ir mais longe com um litro de com-bustível. Em janeiro de 2003, cerca de150.000 motoristas em todo o mundo com-praram um carro híbrido; muitos dessesnovos proprietários estão nos Estados Uni-dos, onde as vendas mensais do modeloPrius, da Toyota, foram quatro vezes maisque no Japão. (Vide Quadro 2-2.)23

QUADRO 2-2. SÓ EFICIÊNCIANÃO BASTA

Inúmeros estudos constataram que, ao longo dospróximos 10–15 anos, a economia decombustível dos novos carros e caminhões levesnos Estados Unidos poderá aumentar em até umterço com as tecnologias existentes. A mais longoprazo, o uso de materiais compostos leves,porém resistentes, da era espacial, com base emfibras de carbono, desenho avançado e tecnologiahíbrida ou de célula de combustível, poderá nomínimo triplicar a economia de combustível.Todavia, melhorias de eficiência irão apenascomeçar a resolver os problemas associados àsnossas escolhas de transporte. E os avanços deeficiência, por si só, poderão na realidadeencorajar as pessoas a utilizar mais energia,incrementando suas viagens e compras deveículos já que os custos de energia representamuma parcela menor das despesas totais.___________________________________________________________________________________________________FONTE: vide nota final 23.

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A crescente conscientização sobre osproblemas da poluição atmosférica, segu-rança e congestionamentos associados aosautomóveis motivou medidas severas pararedução do aumento do trânsito, particu-larmente nos países em desenvolvimento.Em 1999, um grupo de cidadãos em San-tiago, Chile, uniu-se ao grupo ambientalGreenpeace numa campanha de um anopara modernizar o sistema de transportesurbanos. Como resultado, Santiago hojedispõe de vias exclusivas para ônibus, asruas mais largas estão restritas ao trans-porte público em dias de alta poluição e ouso do transporte urbano aumentou con-sideravelmente.24

A Prefeitura de Bogotá, na Colômbia,começou a trocar os carros por bicicletasem algumas vias no final dos anos 80, e até2025 planeja proibir o uso do automóveldurante o horário de pico. O ex-prefeitoEnrique Peñalosa, o impulsionador dessemovimento, acredita que os carros são “oinstrumento mais poderoso de diferencia-ção e alienação social que temos na socie-dade”, pois desviam recursos da educaçãoe outros serviços sociais. Hoje, Bogotá dis-põe de um bom sistema de transportes pú-blicos, os níveis de poluição caíram e o tem-po gasto durante os horários de pico foireduzido à metade. Inúmeras outras cida-des, desde Zurique, na Suíça, até Portland,em Oregon, reduziram os níveis de polui-ção ao mesmo tempo em que aumentaramo uso dos transportes públicos, através doreplanejamento das áreas urbanas e melhoriade eficiência nos transportes.25

“Taxas de congestionamento” sobreveículos que entram nos centros das cida-des, juntamente com investimentos emtransporte público, também reduziram o uso

do carro e a poluição. Motoristas em Lon-dres passavam metade de seu tempo pre-sos no trânsito, andando na mesma veloci-dade que os londrinos de um século atrás.Mas, em resposta a um pedágio promulga-do no início de 2003, os níveis de trânsitocaíram 16% em média nos primeiros me-ses e a maioria dos motoristas começou autilizar os serviços públicos. Taxas de con-gestionamento para centros urbanos foramimplantadas anos atrás em Cingapura eTrondheim, na Noruega, e mais recente-mente em Toronto e Melbourne, com re-sultados semelhantes.26

Em outros países as pessoas preferiramcompartilhar frotas de veículos, em vez depossuí-los, e em alguns casos abrir mãodeles por completo. Uma rede conjunta,Eurocities – Comissão Européia, está nomomento promovendo uma “nova culturada mobilidade” por toda a UE, objetivandomelhorar a qualidade de vida e deslocar adependência dos carros para transportespúblicos, bicicletas e andar a pé. Zermatt,na Suíça, faz uso do seu status de longo tem-po livre de carros como apelo de vendaspara os turistas, e 280 famílias em Freiburg,na Alemanha, foram as primeiras entre maisde 40 comunidades alemãs a decidir viversem automóveis. Aparentemente, uma vezque as pessoas dispõem de alternativas se-guras, confortáveis e confiáveis, um maiornúmero delas prefere viver sem carros.27

A Energia OndeVivemos e

Trabalhamos

Mundialmente, as pessoas consomem cer-ca de um terço de toda a energia nos prédi-

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os – para aquecimento, refrigeração, culi-nária, iluminação e uso de eletrodomésti-cos. A demanda de energia relacionada aprédios está crescendo rapidamente, parti-cularmente dentro dos nossos lares.28

Mas há grandes diferenças no uso do-méstico de energia de um país para outro.As pessoas nos Estados Unidos e Canadáconsomem 2,4 vezes mais energia em casado que na Europa Ocidental. Uma pessoacomum, no mundo em desenvolvimento,consome cerca de um nono da energia emprédios do que a pessoa comum do mundoindustrializado, mesmo incluindo combus-tíveis não-comerciais. Entretanto, uma par-cela bem maior da energia total nos paísesem desenvolvimento é consumida em casa,devido à ineficiência de combustíveis etecnologias. Na China, os domicílios con-somem cerca de 40% da energia nacional;na Índia, 50% e na maioria da África é ain-da maior, em comparação aos 15–25% domundo industrializado.29

Embora talvez um quarto da populaçãomundial disponha de abrigos inadequadosou até abrigo nenhum, para muitas outraspessoas o tamanho de suas casas aumentamesmo quando o número de pessoas porfamília diminui. Os Estados Unidos repre-sentam o caso extremo, onde as novas re-sidências cresceram quase 38% entre 1975e 2000, para 210 m2 – duas vezes o tama-nho das residências típicas da Europa ouJapão, e 26 vezes o espaço de habitação doafricano comum.30

À medida que os lares tornam-se maio-res devido, em grande parte, aos baixos pre-ços da energia, cada lar individual tem maisespaço para aquecer, resfriar e iluminar,como também espaço para aparelhos maio-

res e em maior número. E à medida que caia quantidade de pessoas por residência, de-vido a uma variedade de tendências sociais,aumenta o número de casas necessárias parauma determinada população. Cada residên-cia adicional requer materiais de construção,iluminação aquecimento e refrigeração, apa-relhos eletrodomésticos e freqüentementemais carros e vias – tudo que requer energiapara produzir e operar. Entre 1973 e 1992, aredução do tamanho das famílias, só nospaíses industrializados, foi responsável porum aumento de 20% no consumo per capitade energia.31

Eletrodomésticos são os consumidoresde energia de crescimento mais aceleradodo mundo, responsáveis por 30% do con-sumo de eletricidade dos países industriali-zados e 12% das emissões de gases de es-tufa. A saturação da propriedade de gran-des aparelhos nessas nações é continuamen-te compensada pela difusão de novos, in-clusive computadores e outras formas detecnologia da informação (TI), enquanto osganhos de eficiência obtidos a partir dosanos 70 estão sendo desperdiçados na tro-ca por mais (e maiores) amenidades. (VideQuadro 2-3.) O tamanho médio de refrige-radores nas residências americanas, porexemplo, aumentou 10% entre 1972 e2001, e a quantidade por residência tam-bém subiu. O ar-condicionado também se-guiu um caminho semelhante: em 1978,56% dos lares americanos dispunham desistemas de refrigeração, a maioria dosquais consistiam de pequenas unidades ins-taladas nas janelas; 20 anos depois, trêsquartos dos lares dispunham de condicio-nadores de ar e quase a metade consistiade sistemas centrais.32

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QUADRO 2-3. OS ALTOS E BAIXOS DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

A era da tecnologia da informação prometiaum caminho mais claro para odesenvolvimento sustentável e para umaeconomia sem papel. Aparentemente nãocumpriu nenhum dos dois. Até hoje osimpactos da TI sobre o consumo global deenergia apresentam um quadro complexo.

Os americanos consomem 2% da suaeletricidade apenas para operar oscomputadores e a Internet, enquanto oconsumo do ciclo de vida de toda a infra-estrutura da Internet na Alemanha absorve 3–4% da energia nacional. Atribui-se grande partedo aumento de consumo de energia a novasindústrias (como os provedores da Internet),aos métodos de comunicação (como aparelhoscelulares) e novas formas de gestão dainformação criadas através do uso da TI. Aoinvés de reduzir o consumo de papel, o correioeletrônico na realidade aumentou-o em 40%,com impactos dramáticos no uso associado deenergia – desde a operação de impressoras até oapoio a um dos maiores setores de energiaintensiva do mundo, a indústria de papel. Eembora pedidos feitos por meio eletrônicoparecessem, à primeira vista, exigir menosenergia do que o deslocamento para lojasdiferentes, isso, de fato, não ocorreu. Umestudo de “telecompras” revelou nenhumaeconomia de transporte, enquanto outroconstatou que custou 55% mais emcombustível para entregar compras desupermercado feitas on-line.

Conforme alguns relatos, entretanto, osconsumidores nas nações industrializadasestão reduzindo seu consumo de energia comTI através de mudanças em inventários deprodutos e através do teletransporte, que

reduz o volume de energia utilizada paraconstruir e ocupar novos prédios. A TI temtambém sido creditada a grande parte docrescimento econômico dramático que muitospaíses obtiveram no final dos anos 90 – umatendência não-acompanhada por aumentossemelhantes no consumo de energia devido àexpansão de setores menos intensivos emenergia como o banqueiro e financeiro.

Outros benefícios da TI incluem:• Um novo chip de computador e o desenho

de equipamento podem reduzir a energiade stand-by em até 90%.

• O mais novo veículo híbrido-elétrico daToyota dispõe de um sistema eletrônico esoftware que continuamente otimiza aoperação de componentes-chave,assegurando um desempenho constante demodo mais eficiente.

• Pesquisadores do Pacific NorthwestNational Laboratory estão desenvolvendouma “grade inteligente”, que induzirá osconsumidores a variar suas cargasenergéticas à medida que as tarifas deeletricidade mudarem. Isso aumentará aeficiência operacional de usinas existentes,reduzindo a necessidade de capacidadeadicional de grade e permitindo controles esensores avançados para melhorias deeficiência dos aparelhos. Também iráproporcionar energia renovável, comacesso mais fácil à grade e aos mercadosenergéticos.

– Tawni Tidwell________________________________________FONTE:vide nota final 32.

Entre 2000 e 2020, o consumo de ele-tricidade para os aparelhos no mundo in-dustrializado poderá aumentar 25%. Aenergia stand-by – a eletricidade que éconsumida quando computadores, televi-sores, aparelhos de fac-símile, estéreos e

muitos outros estão “desligados” mas nãodesconectados – será provavelmente oconsumidor de maior crescimento. Em2020, poderá representar 10% do consu-mo total de eletricidade nesses países,exigindo quase 400 usinas adicionais de

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500 megawatts, que emitirão mais de 600milhões de toneladas de dióxido de carbo-no anualmente.33

Nos países em desenvolvimento, amaior parte das necessidades energéticasrelacionadas aos prédios é para a cozi-nha, aquecimento de água e aquecimentoespacial – o básico – e a maior parte des-

sa energia é gerada através de combustí-veis tradicionais, não-comerciais. Porexemplo, quase três quartos da popula-ção da Índia depende da biomassa tradi-cional para cozinhar. Mesmo assim, ademanda por aparelhos modernos estácrescendo também no mundo em desen-volvimento. (Vide Tabela 2-3.)34

Tabela 2-3. Posse de Eletrodomésticos nos Países Industrializadose em Desenvolvimento, Anos Selecionados

1Outras fontes mostram aumentos contínuos até 2000. 2Reino Unido, Alemanha Ocidental, França e Itália.FONTE: vide nota final 34.

Na realidade, grande parte do cresci-mento da demanda de eletricidade, desde1990, ocorreu no mundo em desenvolvi-mento, onde o consumo per capita aumen-tou mais rapidamente que a renda e onde oconsumo de energia de prédios triplicouentre 1971 e 1996. A posse de um televisorquintuplicou no leste da Ásia e Pacíficoentre 1985 e 1997. Mas as taxas de pene-tração de eletrodomésticos ainda são rela-tivamente baixas nos países em desenvol-vimento, e assim o potencial de crescimento

é gigantesco. Na Índia, vendas de refrige-radores frost-free estão projetadas a cres-cer quase 14% ao ano. A Agência Interna-cional de Energia espera que, com base empolíticas vigentes, a demanda mundial deeletricidade duplique entre 2000 e 2030,com o maior aumento de demanda nos pa-íses em desenvolvimento e o crescimentomais acelerado em lares residenciais.35

Todavia, as mesmas necessidades po-deriam ser atendidas com muito menosenergia. Programas de eficiência demons-

País

Estados Unidos

Japão

Europa Ocidental2

Índia

China rural/urbana

Ano

197319921998

19731992

19731992

199419961999

198119911998

Refrigerador

100118 1151

104117

91111

7 9 12

0/02/539/76

Lavadora deRoupa

707777

9699

6989

2 4 6

0/612/8323/91

(número por 100 domicílios)

Lavadora dePrato

254550

0 0

524

---

---

Condicionadorde Ar

47 69 72

16131

0 1

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0/00/01/20

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traram alta eficácia até hoje, e as melhoriascontínuas podem nos ajudar a avançar noatendimento a essa demanda crescente. OsEstados Unidos implantaram padrões na-cionais em 1987 após uma proliferação deprogramas em âmbito estadual. Em res-posta, os fabricantes obtiveram grandeseconomias no consumo de energia de ele-trodomésticos, quase triplicando a efici-ência de novos refrigeradores entre 1972e 1999, proporcionando, ao mesmo tem-po, economia aos consumidores. Na Eu-ropa, os preços mais altos de energia, com-binados com normas e selos, como o BlueAngel (Anjo Azul) da Alemanha, influen-ciaram as opções dos consumidores e le-varam os fabricantes a produzir produtosmais eficientes, a fim de competir, e as-sim transformar mercados inteiros. (VideCapítulo 5.) Ainda assim, muito mais podeser feito. As tecnologias disponíveis hojepodem avançar a eficiência dos eletrodo-mésticos em, pelo menos, mais 33% aolongo da próxima década, e outrasmelhorias no consumo de energia de se-cadores, televisores, i luminação estand-by poderão economizar mais dametade do crescimento projetado do con-sumo no mundo industrializado até 2030.36

Nos países em desenvolvimento, aspessoas poderiam economizar até 75% dasua energia, por meio de melhorias no iso-lamento dos prédios, cozinha, aquecimen-to, iluminação e aparelhos eletrodomésti-cos. Infelizmente, a difusão de tecnologiasmais eficientes é extremamente lenta, de-vido aos altos custos iniciais, à falta decombustíveis modernos, como gásencanado, e às falhas nos sistemas de dis-tribuição existentes. Entretanto, experiên-cias na Tailândia e no Brasil mostram o que

é possível. No início dos anos 90, frente aum aumento anual de 14% na demanda deeletricidade, o governo da Tailândia deu iní-cio a uma parceria com fabricantes paramelhorar a eficiência dos prédios, ilumina-ção e eletrodomésticos frios (como refri-geradores e condicionadores de ar). Em2000, a Tailândia havia excedido suas me-tas de economia de energia e redução deCO

2 em pelo menos 200%. Só entre 1996

e 1998, a participação de mercado de refri-geradores eficientes disparou de 12 para96%. E no Brasil, graças, em grande parte,a normas voluntárias e de rotulagem, osconsumidores reduziram o consumo deenergia relacionada a refrigeradores em15% entre 1985 e 1993.37

Melhorias no desenho e construção deprédios também poderão gerar economiassignificativas de energia. De acordo com oanalista de energia Donald Aitken, “os pré-dios continuam sendo o aspecto mais me-nosprezado da ciência econômica da ener-gia, e a oportunidade mais inexplorada paramelhoria de eficiência”. O potencial de eco-nomia nos prédios existentes é gigantesco,e os consumidores já começaram a realizarmelhorias. Na UE, a construção de prédiosé responsável por mais de 12% da ativida-de econômica, e mais da metade disso en-volve reinstalação de prédios existentes.Mas as edificações novas têm maior po-tencial para economia e os números nãosão insignificantes – só nos Estados Uni-dos 1,7 milhão de casas residenciais foramconstruídas em 2002.38

Uma vez que novas edificações durampelo menos 50–100 anos – e alguns sécu-los – é essencial que estejam adequadasdesde o início. Mesmo em climas frios,as pessoas podem reduzir as necessida-

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des de aquecimento das novas constru-ções em até 90%, através de uma combi-nação de projeto e melhorias materiais,embora a iluminação e outras demandasenergéticas também possam ser reduzidas.Como a maioria das pessoas não constróisuas próprias casas ou escritórios, a efi-ciência do projeto de construção e dosmateriais depende, em geral, de regulamen-tos governamentais. Os prédios daCalifórnia são muito mais eficientes do quea média dos Estados Unidos, uma vez queo código de construção do estado é atua-lizado regularmente, com base emtecnologias correntes. Talvez o maisrevelador seja o fato de que, enquanto oconsumo per capita de eletricidade tenhadobrado ao longo dos últimos 30 anos noresto do país, permaneceu constante naCalifórnia.39

As demandas energéticas dos prédiospodem ser reduzidas dramaticamente semaumentar os custos de construção por meioda aplicação de uma abordagem integradaao “pacote” construtivo (paredes, tetos,fundações, etc.) e sistemas mecânicos eelétricos. Muitos dos novos prédios naEuropa e região do Pacífico asiático foramconstruídos com a incorporação dessaabordagem, inclusive o prédio do Parlamen-to Europeu em Estrasburgo, na França, oPotsdamer Platz, em Berlim, e o AuroraPlace, em Sidnei, Austrália.40

“Prédios verdes” estão surgindo emtodo o mundo, que incluem característicasadicionais poupadoras de energia, como luzdiurna, refrigeração natural, janelas de altodesempenho, isolamento superior e siste-mas fotovoltaicos (PVs). Conforme oRocky Mountain Institute, a iluminaçãoconsome até 34% da eletricidade dos Esta-

dos Unidos, incluindo as necessidadesenergéticas para a compensação do calorde escape. O uso pleno, apenas detecnologias avançadas de iluminação, po-derá eliminar a necessidade de 120 usinasde 1.000 megawatts nos Estados Unidos,economizando dinheiro e melhorando, aomesmo tempo, a saúde e produtividadehumana.41

Encorajada pelo programa americanoLEED (sigla em inglês para Liderança emDesenho Energético e Ambiental) – umanorma voluntária para “prédios verdes” –uma imobiliária construiu o primeiro edi-fício verde em Nova Iorque. Estes apar-tamentos em Battery Park consumirão35% menos energia e 65% menos eletri-cidade do que um prédio comum duranteas horas de pico, com PVs atendendo, pelomenos, 5% da demanda. E no Dia da Ter-ra, em maio de 2003, a Toyota inaugurouum novo complexo na Califórnia,construído com aço de automóveisreciclados, com projeto e iluminação efi-cientes e com um dos maiores sistemasfotovoltaicos da América do Norte.42

Da Califórnia ao Quênia e à Alemanha,os consumidores estão instalando sistemasfotovoltaicos, desde diminutos até de dimen-sões de megawatts, nos telhados de resi-dências e escritórios. Em 2002, mais de40.000 residências japonesas adicionaram140 megawatts de instalações fotovoltaicas,graças ao apoio governamental. A geraçãolocal de eletricidade com energia solar oueólica não é apenas mais limpa do que a con-vencional, mas também reduz ou eliminaperdas de transmissão e distribuição, quevariam de 4–7% nas nações industrializadasaté mais de 40% em algumas regiões domundo em desenvolvimento.43

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Em outros países as pessoas estão pin-tando telhados e plantando jardins para re-duzir seu consumo de energia em 10–50%.Os alemães desenvolveram uma tecnologiamoderna de telhado verde, inspirados nostelhados e paredes de grama da Islândia.Substituir as superfícies escuras, absorven-tes de calor dos telhados com plantas, re-duz a temperatura ambiente e o consumode energia para aquecimento e refrigera-ção. Exemplos de telhados verdes podemser vistos em todo o mundo, da Prefeiturade Chicago ao Aeroporto Schiphol, deAmsterdã, à Fabrica da Ford MotorCompany em Rouge River, Michigan – emtodos os seus 4,2 hectares.44

Energia em Tudo queAdquirimos

Tudo que usamos possui insumosenergéticos associados e compostos, e amaior parcela do consumo global de ener-gia destina-se à produção de nossos veí-culos, eletrodomésticos, prédios e até nos-sas roupas e alimentos. Nos anos 70, afabricação desses produtos exigia 25–70%de energia total (com grande variação depaís a país). Esse percentual vem caindoconstantemente em todos os países, poisos setores de transportes e construçãocresceram com maior rapidez, mas o con-sumo de energia na indústria ainda estáaumentando à medida que adquirimos eusamos mais e mais produtos.45

Muitos bens manufaturados atravessamfronteiras e oceanos para chegar até nós,onde a energia necessária para fabricá-lose transportá-los é omitida das contas naci-onais. Conseqüentemente, alguns técnicos

argumentam que a intensidade energética,na realidade, está aumentando em algumasnações, pois estas efetivamente importaminsumos energéticos do exterior. Por exem-plo, segundo uma estimativa, a energia in-corporada nas importações australianassupera a das suas exportações.46

A energia investida em determinado itemdurante sua vida útil chama-se a “energiaincorporada” daquele objeto. O volume deenergia incorporada contida em um itemdepende em grande parte da tecnologia apli-cada em sua criação, do grau de automação,do combustível utilizado por uma determi-nada máquina ou usina – e sua eficiência –e da distância percorrida pelo item desdeseu começo até sua compra. O valor difereconsideravelmente de local a local e atémesmo de residência a residência.

Segundo algumas estimativas, as pes-soas podem morar numa casa típica du-rante 10 anos antes que a energia consumidanela exceda o que entrou em seus compo-nentes – vigas de aço, fundações de cimen-to, vidros das janelas e esquadrias, pisos ecarpetes, paredes pré-fabricadas, revesti-mento de madeira ou escadas – e sua cons-trução. E a energia incorporada na estrutu-ra raramente é estática. Conforme velhosmateriais são removidos e novos instala-dos, mais um quarto ou piso, a energia in-corporada na casa aumenta.47

Da mesma forma que ocorre com ca-sas, são necessários altos volumes de ener-gia para a montagem de nossos automó-veis, construção e operação de indústrias efabricação dos vários insumos que com-põem um carro. A maior parte do consu-mo de energia associado à fabricação deum veículo está na manufatura de aço, plás-ticos, vidros, borrachas e outros insumos

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materiais. Quanto maior o veículo, maior ovolume de energia exigida, aumentandomais a importância da tendência em dire-ção a carros maiores e SUVs. E assim quecolocamos um carro na estrada, suas ne-cessidades estendem-se a toda energia ne-cessária para construção e manutenção derodovias e pontes por onde viajamos, esta-cionamentos, revendedoras de autos e pe-ças e os muitos postos de abastecimentonecessários para mantê-lo em movimento.No total, o consumo de energia associadoa um automóvel pode ser 50–63% maiordo que o consumo direto de combustívelao longo de sua vida útil, e também os im-pactos ambientais são gigantescos.48

Mas a maior parcela do consumo deenergia associado aos veículos é a gasolinaque os movem. Para dirigi-los, o petróleo éextraído da terra, transportado para locaisadequados e refinado. O refino do petróleoé uma das maiores indústrias de energiaintensiva do mundo – e a maior nos Esta-dos Unidos. Em 1998, o refino do petróleorepresentou 8% de todo o consumoenergético dos Estados Unidos.49

Em muitos países, uma parcela cada vezmaior do consumo de combustível para trans-porte domiciliar é na ida aos gigantescos“hipermercados” fora de áreas urbanas, queestão substituindo as mercearias de bairro.Hoje, muitas pessoas utilizam quase a mes-ma energia para recolher alguns alimentos queos produtores consumiram para transportá-las ao mercado. E quanto mais longe o ali-mento viaja, maior sua energia incorporada,não só por necessitar de mais combustívelpara transporte, mas também por necessitarde maior número de conservantes e aditivos,refrigeração e embalagem. Em grande parte

do mundo, o transporte de alimentos paralojas locais e depois para as residências estáentre as mais crescentes fontes de emissãode gás de estufa.50

A produção de nossos alimentos tam-bém requer volumes maciços de energia.Embora grande parte venha do sol, quase21% da energia fóssil que consumimosdestina-se ao sistema alimentar global.David Pimentel, da Universidade Cornell,estima que os Estados Unidos destina cer-ca de 17% de seu consumo de combustí-veis fósseis à produção e consumo de ali-mentos: 6% para a produção agropecuária,6% para processamento e embalagem e 5%para distribuição e cozimento.51

A questão quanto a se o consumo daenergia incorporada está subindo em algunspaíses é discutível, dependendo em grandeparte da intensidade energética dos paísesfabricantes dos bens consumidos. Porexemplo, a Coréia do Sul possui a indústriasiderúrgica mais eficiente do mundo em ter-mos de energia e o transporte por navio érelativamente eficiente em ternos de ener-gia. Assim, a exportação de carros coreanospara países com siderúrgicas menos efici-entes, como os Estados Unidos, poderá efe-tivamente reduzir a energia incorporada dosveículos nas rodovias americanas.52

Em 1998, o refino do petróleorepresentou 8% do consumo totalde energia dos Estados Unidos.

Na realidade, há diferenças extremasna intensidade de energia da indústria

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manufatureira de um país para outro. Noinício dos anos 90, os japoneses e alemãesconsumiam menos da metade da energia,por unidade de produção em suas indús-trias pesadas, que os canadenses e ameri-canos, devido principalmente a diferençasnos preços de energia. Japão, Coréia doSul e países da Europa Ocidental possu-em os setores industriais mais eficientes,enquanto os países em desenvolvimento,o antigo bloco soviético e uns poucos pa-íses industrializados – particularmente osEstados Unidos e Austrália – possuem omenos eficiente. Todavia, alguns paísesem desenvolvimento aproveitaram a opor-tunidade e deram um salto para tecnologiasmodernas, rivalizando o Japão e Europaem eficiência industrial.53

Ao dar apoio a itens e processos quetêm menos energia incorporada, comotambém às empresas que os produzem,os consumidores podem reduzir signifi-cativamente o consumo de energia da so-ciedade. Infelizmente, até agora, progra-mas de rotulagem informam apenas o con-sumo direto de energia dos produtos, enão sua energia plena incorporada, difi-cultando a comparação de um produtocom outro. Apesar disso, muitos consu-midores já pouparam grandes volumes deenergia através da reciclagem e da com-pra de materiais reciclados, em vez dedepender de recursos virgens. A produ-ção de alumínio de material reciclado, porexemplo, requer 95% menos energia doque sua fabricação da matéria-prima.54

Política e Escolha

Constantemente fazemos escolhas queafetam nosso consumo de energia. Na re-

alidade, a quantidade e tipo de energia queconsumimos é resultado de dois tipos deescolha: aquelas que fazemos como soci-edade e aquelas que fazemos como indi-víduos e famílias. As decisões da socie-dade de taxar ou subsidiar atividades –como motorização ou construção de es-tradas, por exemplo – encorajam as pes-soas a adotar certos estilos de vida, tantoestendendo quanto limitando suas opções.Porém, como consumidores individuaisainda temos escolhas importantes a fazer,desde o quanto dirigimos até se iremoscalafetar nossas casas. Duas pessoas coma mesma renda, vivendo na mesma socie-dade e sob climas semelhantes, freqüen-temente consomem quantidades muito di-ferentes de energia como resultado de suasescolhas pessoais.

A fim de atender às necessidadesenergéticas de bilhões de pessoas que hojenão dispõem de serviços modernos, e aomesmo tempo equilibrar o consumo deenergia com o mundo natural, novas esco-lhas energéticas terão que ser feitas – tantoindividual quanto socialmente. Políticas go-vernamentais são uma forma de as socie-dades fazerem escolhas energéticas, e aspolíticas que afetam o preço da energia es-tão entre as mais importantes.

À medida que as economias desenvol-vem-se, fatores como clima, densidadepopulacional e taxa de urbanização tornam-se menos importantes, e os preços relativosa energia convertem-se em fatores fundamen-tais para se determinar a intensidade energéticade um país. Países com maiores tarifas –como Japão e Alemanha – também têm me-nor intensidade energética, enquanto aquelescom tarifas menores são, em geral, muitomais intensivos em energia, como os Esta-

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dos Unidos, em gás e petróleo, Austrália, emcarvão, e a Escandinávia, em eletricidade.55

Quando os preços estão baixos, oconsumo de energia para os indivíduosrepresenta a parcela menor do custo deexplorar um negócio, fabricar um pro-duto ou administrar um lar; conseqüen-temente, investimentos em economia deenergia são baixos. A longo prazo, os pre-ços afetam o que decidimos possuir, otamanho de nossas casas, quando utili-zamos nossos carros e eletrodomésticose até os bens e tecnologias à nossa dis-posição. Entretanto, políticas governa-mentais desempenham um papel impor-tante, às vezes sustentando ou reduzindoos preços de energia. Por intermédio desubsídios, impostos, normas e outrasmedidas, políticas governamentais têmum impacto direto sobre a oferta, deman-da e eficiência energética de nossos la-res, aparelhos, carros e fábricas.56

Impostos sobre automóveis e combus-tível em muitos países, juntamente cominvestimentos em transportes públicos einfra-estrutura ciclista, afetam as tendên-cias de propriedade e distância percorridapor automóveis e até as características dafrota veicular, podendo encorajar o uso deônibus, bicicletas e trens. Onde os gover-nos ou empresas subsidiam o transportepúblico, as pessoas são mais propensas adeslocarem-se de ônibus ou metrô do quede automóvel. Na Dinamarca, onde o im-posto sobre registros de veículos ultrapas-sa o preço de varejo do automóvel, e ondea infra-estrutura de ferrovias e cicloviasestão bem desenvolvidas, mais de 30% dasfamílias nem possuem carro – principal-mente porque não o desejam, e não porquenão poderiam tê-lo. Taxas de congestiona-

mento, como aquelas introduzidas recen-temente em Londres, também podem en-corajar as pessoas a fazerem escolhasenergéticas mais eficientes.57

Até mesmo a escolha do tamanho elocalização da residência é influenciadapor impostos, políticas habitacionais enormas. Os Estados Unidos oferecemuma dedução fiscal plena sobre juros emhipotecas, permitindo às pessoas adqui-rir residências de qualquer tamanho, mas,ao mesmo tempo, encorajando lares mai-ores em comunidades estendidas. A polí-tica fiscal da Suécia também favorece aaquisição de uma propriedade, porém,devido à política habitacional ter se con-centrado durante décadas em apartamen-tos, a maioria das pessoas optou por essetipo de moradia, resultando assim em ci-dades mais compactas. Os lares e seuconteúdo são mais eficientes em locaiscomo Califórnia e Japão, onde os códi-gos de construção e normas de eletrodo-mésticos estão se tornando cada vez maisrigorosos à medida que as tecnologiasaprimoram-se.58

E os governos podem influenciar o vo-lume de energia incorporada nos produtosque as pessoas utilizam e o que é descarta-do. Pelo menos 28 países – do Brasil e Uru-guai até a China, passando pela Europa –hoje obrigam os fabricantes a receber seusprodutos de volta para reutilização ereciclagem. Assim, as empresas interessam-se mais e investem na desmontagem ereciclagem de sua mercadoria e aumentama qualidade e vida útil de seus produtos,reduzindo o volume de energia que é utili-zado em sua fabricação.59

Mesmo assim, a maioria dos paísesincentiva viagens de avião e automóvel em

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detrimento de alternativas menos intensi-vas em energia, e tendem mais para ener-gia convencional versus energia renovável,e novos suprimentos versus medidas deeficiência. Em meados dos anos 90, osgovernos mundiais distribuíram US$ 250–300 bilhões em subsídios anuais para com-bustíveis fósseis e energia nuclear. Desdeentão, vários países em transição e desen-volvimento reduziram os subsídiosenergéticos significativamente, porém sub-sídios globais para energia convencionalpermanecem em níveis muito mais altosdo que para suas alternativas, como ener-gias renováveis e eficiência energética. Epaíses em todo o mundo investem volu-mes gigantescos de recursos em grandesinfra-estruturas de transportes e indústri-as de energia intensiva, em vez de opta-rem por alternativas menos intensivas emenos danosas.60

Devido ao fato de subsídios reduzi-rem artificialmente o preço de energia,podem levar ao consumo excessivo.Políticas sul-coreanas diminuíram ospreços de eletricidade, solapando asmetas nacionais de melhoria de eficiên-cia. No final dos anos 90, o consumofamiliar per capita nesse país ultrapas-sou os níveis médios da Europa. E assubvenções freqüentemente beneficiammais aqueles que não precisam. Até2003, por exemplo, o governo da Nigériaconcedia, anualmente, mais de US$ 2bilhões em subsídios aos combustíveis,que beneficiavam tantos os ricos quan-to os pobres. Estes também encoraja-ram o contrabando de combustível ba-rato para fora do país, forçando aNigéria a importá-lo a um custo maior.61

Pelos menos 28 países hojeobrigam os fabricantes a receberseus produtos de volta parareutilização e reciclagem.

Juntamente com os bilhões de dólaresfornecidos anualmente pelo Banco Mundi-al e agências de crédito à exportação, paraprojetos de combustível fóssil intensivo emcarbono, os subsídios nacionais tambémimpedem alternativas possíveis, como efi-ciência e tecnologias de energia renovável,e encorajam indústrias de energia intensivaa transferirem-se para países em desenvol-vimento, sendo oportunidades perdidas paraessas nações darem um salto em direção anovas tecnologias.62

O fracasso em internalizar os custosplenos de energia age como um subsídiotambém, pois os consumidores não pagamdiretamente pelos impactos ambientais,sociais ou de segurança de suas escolhasenergéticas – seja a escolha da fonte deenergia ou da quantidade que decidem con-sumir. Durante décadas, tentativas gover-namentais para resolver os problemasenergéticos e desafios associados enfo-caram quase que inteiramente a redução daintensidade de produção, em vez de ata-car as motivações e problemas associa-dos ao nosso sempre crescente consumo.Infelizmente, as melhorias em eficiênciaenergética obtidas na ponta de produção têmsido mais do que neutralizadas pelos níveiscrescentes de consumo na ponta do con-sumidor.

Mas vários países começaram a pro-mover o consumo sustentável através deimpostos verdes, deslocando o ônus fiscal

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da mão-de-obra para a energia e outros re-cursos, devido freqüentemente a preocu-pações ambientais, como mudança climá-tica. Como parte do seu esforço para redu-zir dramaticamente as emissões de gás deestufa, por exemplo, a Alemanha instituiunovos impostos sobre energia convencio-nal em 1999, concedendo incentivos finan-ceiros para a conservação de energia etecnologias de energia renovável, como tam-bém redução da carga fiscal sobre folhasde pagamento.63

Enquanto políticas governamentaisagem influenciando o consumo de ener-gia sob várias formas, as decisões indivi-duais dos consumidores também causamgrande impacto. Em todo o mundo, os con-sumidores estão fazendo a diferença, paramelhor ou pior. Se compram um novoveículo híbrido ou “Hummer”, se viajamde avião, trem ou bicicleta, ou se decidemnão ir a lugar algum, são, todas, escolhasque fazem diferença. Infelizmente, mais emais consumidores estão escolhendo apa-relhos eletrodomésticos maiores, laresmais amplos e veículos que mais parecemtanques para percursos individuais emvias urbanas para shopping centers ouhipermercados. Em contrapartida, masnem tanto, outros consumidores estão ad-quirindo carros híbridos eficientes, esco-lhendo produtos agrícolas cultivados lo-calmente, instalando sistemas foto-voltaicos e comprando energia verde.(Vide também Capítulo 6.)

Em grande parte da Alemanha e Dina-marca, as pessoas individualmente, e comoparte de cooperativas, instalaram turbinaseólicas para fornecimento de energia localàs suas comunidades. Em outros países, aspessoas estão explorando energia renovável

através de mercados de energia verde. Até ofim de 2002, mais de 980 megawatts denova capacidade renovável havia sido adici-onada para atender à demanda de clientesde energia verde nos Estados Unidos, e ou-tros 430 megawatts estavam projetados ouem construção. E como resultado de cam-panhas estudantis reclamando por liderançano manejo ambiental, os campi da Universi-dade da Califórnia e Los Angeles CollegeDistrict comprometeram-se a reduzir o con-sumo de energia, adquirindo energia verde einstalando sistemas fotovoltaicos nos prédi-os. Esses dois sistemas universitários, jun-tos, podem aumentar as instalaçõesfotovoltaicas conectadas à grade nos Esta-dos Unidos em 30%.64

Alguns consumidores estão indo maisalém. Autoridades locais e representantesmunicipais de toda a Europa assinaram aDeclaração de Bruxelas em prol de umaPolítica Urbana de Energia Sustentável,comprometendo-se a trabalhar pelo uso deenergia sustentável na Europa e encorajan-do a criação de um arcabouço legal emapoio à iniciativa. Em 1992, as populaçõesde mais de 30 municípios holandeses vota-ram para eliminar os carros do centro desuas cidades, enquanto por todo o país, porexigência da população, os estacionamen-tos de bicicletas excedem, de longe, as áreaspara automóveis nas estações de trem. Osalemães e suíços iniciaram o com-partilhamento de carros nos anos 80 e oconceito ampliou-se desde então para maisde 550 comunidades em oito países euro-peus, com pelo menos 70.000 membros.O compartilhamento de carros está se di-fundindo na América do Norte também,com programas em mais de 40 cidades, deSeattle a Washington, D.C.66

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Comunidades em mais de 40 países cri-aram ecovilas, buscando conquistar esti-los de vida sustentáveis, através de proje-tos e construções ecológicos, uso de ener-gia renovável e passiva, espaços comuni-tários de construção e agricultura orgâni-ca local. Mas não é preciso viver numaecovila para reduzir o consumo geral deenergia e o impacto sobre o meio ambi-ente natural. Os californianos provaramisso quando a crise de energia de 2001os levou, por meio de mudançascomportamentais e tecnológicas, a con-sumir 7,5% menos eletricidade do que noverão anterior. E em Londres uma novacomunidade – ZED (sigla em inglês deCondomínio de Emissão Zero), cujas uni-dades habitacionais foram totalmente ven-didas antes da conclusão – foi construídapra minimizar a poluição e consumo deenergia, através de uma combinação detecnologias verdes e projetos, proximida-de a transportes públicos, uma frota com-partilhada de veículos elétricos e medido-res expostos com destaque, permitindoaos moradores acompanhar seu consumo.O arquiteto Bill Dunster, inspirado pelo fatode grande parte da energia ser desperdiçadadevido a escolhas rotineiras, declara que“pode-se obter uma melhor qualidade devida fazendo essas mudanças, então porque não fazê-las?”66

É uma premissa generalizada que a qua-lidade de vida e o consumo de energia es-tão inexplicavelmente ligados. A energiapode melhorar a vida fornecendo serviçosque atendam às necessidades básicas e li-vrem as pessoas de doenças, fome, frio epobreza. E o desejo por uma “melhor qua-lidade de vida” – ainda muito freqüente-mente definida como um lar maior e mais

veículos, aparelhos e posses – motiva mai-or consumo de energia. Mas será que che-gará um ponto além do qual um maior con-sumo proporcionará apenas pequenos be-nefícios marginais? De quanto realmenteprecisamos para alcançar uma boa quali-dade de vida?

Para responder essas perguntas, é bomverificar a relação entre a qualidade vidapercebida em várias nações e seu consu-mo de energia. O Índice de Desenvolvimen-to Humano (IDH) foi criado pelas NaçõesUnidas para enfatizar pessoas, em vez deapenas crescimento econômico, como focodo desenvolvimento. Este mede conheci-mento, longevidade e padrões de vida. Oanalista de energia Carlos Suárez mapeou acorrelação entre IDH e consumo de ener-gia. Para os mais pobres, mesmo peque-nos aumentos no consumo de energia po-dem provocar melhorias dramáticas naqualidade de suas vidas, tanto direta quan-to indiretamente. Por exemplo, a luz elétri-ca reduz o estresse ocular e estende o tem-po disponível para educação; os combus-tíveis modernos para cozinhar diminuemos riscos à saúde e bombas elétricas redu-zem o tempo gasto recolhendo água.Melhorias dos serviços de energia tambémpodem oferecer oportunidades para aumen-to da renda e também para mais melhoriasna qualidade de vida. De acordo comSuárez, o benefício adicional por unidadede energia cai quando o consumo de ener-gia atinge 1.000 quilos de equivalência empetróleo (kgep) por pessoa, por ano. E en-tre 1.000–3.000 kgep por pessoa, os bene-fícios do consumo adicional de energia co-meçam a declinar significativamente. Alémdesse ponto, mesmo triplicando o consu-

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mo per capita de energia de um país, issonão se correlacionaria com um aumento noIDH daquele país. Países que se aproxi-mam de 3.000 kgep per capita incluem Itá-lia, Grécia e África do Sul; em contrapartida,os americanos consomem quase três ve-zes mais por pessoa.67

Bem-estar. (Vide Capítulo 8.) Esta é umaclassificação numérica de 180 países, ba-seada em 87 indicadores de bem-estarhumano e de ecossistemas, incluindo saú-de, educação, riqueza e direitos e liberda-des individuais, como também diversida-de e qualidade de ecossistemas, qualidadedo ar e da água e uso dos recursos. Deacordo com o índice, a Suécia ocupa oprimeiro lugar em bem-estar mundial, en-quanto os Emirados Árabes Unidos (EAU)figuram quase em último; todavia, o cida-dão comum nos EAU consome quase odobro da energia do sueco. (Vide Tabela2-4.) Os austríacos, por outro lado, con-somem cerca de 61% da energia do sue-co; contudo, ainda figuram próximos aotopo em termos de bem-estar. Assim, nãohá uma relação fixa entre consumo deenergia e bem-estar visível, e há potencialpara grandes avanços no front do consu-mo, com melhoria da qualidade de vida.68

A Alemanha instituiu novosimpostos sobre energiaconvencional em 1999, concedendoincentivos financeiros paraconservação de energia etecnologias de energia renovável.

Tabela 2-4. Consumo de Energia e Bem-Estar, Países Selecionados

1De um total de 180 países. 2Baseado em fornecimento total de energia primária.FONTE: Vide nota final 68.

Numa tentativa diferente de medir aqualidade de vida, o pesquisador RobertPrescott-Allen desenvolveu o Índice do

Isso é encorajador porque o status-quoé insustentável – social, econômica ouambientalmente. Está cada vez mais eviden-

te, mundialmente, que os atuais padrões deconsumo de energia estão efetivamente de-gradando a qualidade de vida de muitas pes-

País

SuéciaFinlândiaNoruegaÁustriaJapãoEstados UnidosFederação RussaKuwaitEmirados Árabes Unidos

Classe deBem-Estar1

1235

242765

119173

Classe de Consumo per capita2

1068

26194

1732

Comparação com Consumoper capita da Suécia

(percentual)

1001121046170

14071

162190

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ESCOLHENDO MELHOR A ENERGIA

soas – agravando a poluição atmosférica ehídrica, aumentando os problemas de saúdee elevando os custos econômicos e de se-gurança associados à extração e uso de com-bustíveis, como também enfraquecendo ossistemas naturais dos quais dependemos paranossa própria existência, inclusive o climaglobal. Muitas nações em desenvolvimento,com populações gigantescas em áreas den-samente povoadas, estão percebendo esseslimites rapidamente e começando aadministrá-los. Por exemplo, os graves pro-blemas de congestionamentos e poluição emXangai forçaram a cidade a limitar o regis-tro de novos veículos mensalmente.69

Poderá a Terra sustentar nossas necessi-dades crescentes de energia no século XXI,mesmo com uma mudança rápida e dramáti-ca para tecnologias mais eficientes e uso maisintenso de energia renovável? Ninguém sabeao certo, mas com certeza não será fácil.Aumentos populacionais e níveis crescentesde consumo per capita – particularmente nospaíses em desenvolvimento, onde 75% domundo vive hoje – têm o potencial de suplan-tar até mesmo os mais ambiciosos esforçosda tecnologia energética.70

Em 2050, a população global está proje-tada para aumentar mais de 40%, para 8,9bilhões de pessoas. Se cada pessoa no mun-do em desenvolvimento consumir o mesmovolume de energia que uma pessoa comumem países de alta renda hoje – um nível sig-nificativamente abaixo do consumo percapita dos Estados Unidos – o consumo deenergia no mundo em desenvolvimento au-mentará mais de oito vezes entre 2000 e2050. Caso todos no planeta consumissemnesse ritmo, o uso global de energia aumen-taria cinco vezes ao longo desse período.71

Embora essa taxa de crescimento seja al-tamente improvável, dificilmente as fontesconvencionais de combustíveis fósseis aten-derão à demanda crescente ao longo do pró-ximo século. E cada vez mais nosso consu-mo de combustíveis e tecnologias convenci-onais ameaçará ainda mais o meio ambientenatural, a saúde pública e a estabilidade inter-nacional, com graves implicações em nossaqualidade de vida. Seremos pressionados paraatender às necessidades energéticas mundi-ais, mesmo com energia renovável e grandesmelhorias em eficiência, caso as tendênciasatuais de consumo continuem. Padrões deconsumo terão que mudar também. Precisa-remos encontrar novas formas de satisfazeras necessidades do corpo e da mente e aomesmo tempo reduzir o consumo de energiapara os transportes e nossos prédios enquantominimizamos a energia incorporada em tudoque adquirimos.

O Secretário-Geral da Organização paraCooperação e Desenvolvimento Econômi-co, que representa as nações mais ricas domundo, reconheceu recentemente que emtodo o mundo “existe um consenso cres-cente de que os padrões de consumo deenergia precisam ser alterados radicalmen-te”. Governos poderão ajudar a determinaro consumo de energia por meio de medidascomo investimentos em infra-estrutura, re-gulamentos, incentivos e tarifas. Vontadepolítica e programas eficazes e adequadossão essenciais para promover a mudança.72

Mas também cabe a nós, como indiví-duos – tanto como consumidores comomembros de comunidades diversificadas –,reconhecer os elos entre nossas escolhasde consumo e os impactos que causamosno mundo todo. Devemos saber lidar comos limites que teremos à frente e mudar amaneira que consumimos energia.

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ATRÁS DOS BASTIDORES: COMPUTADORES

Computadores

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

A economia da informaçãopós-industrial é muitas vezeserradamente caracterizadacomo precursora de uma erade “desmaterialização”,porque minúsculossemicondutores, oingrediente básico para oschips de computador edispositivos eletrônicos, geram altovalor e utilidade. Mas, na realidade,semicondutores são intensivos em materiaisdo que a maioria dos produtos“tradicionais”. Um simples microchip de 32megabites requer pelo menos 72 gramas deprodutos químicos, 700 gramas de gaseselementares, 32.000 gramas de água e 1.200gramas de combustíveis fósseis. Outros 440gramas de combustíveis fósseis são usadospara operar o chip durante seu ciclo de vida– quatro anos de operação por três horasdiárias. A massa total de materiaissecundários usados para produzir um chipde 2 gramas é 630 vezes a do produto final.Comparativamente, os recursos necessáriospara fabricação de um automóvel pesam emtorno de duas vezes o produto final.1

Os chips são fabricados em “ambienteslimpos”, livres de poeira e outras partículasprejudiciais às delicadas membranas desilicone. No entanto, os trabalhadores nessesambientes ficam expostos a uma gama de

produtos químicos que podem serassociados a cânceres, abortos e

defeitos congênitos. Essasinstalações tambémgeram volumeexagerado de lixoquímico, que contaminouos lençóis freáticos emnumerosos centros de altatecnologia. O condado deSanta Clara, na Califórnia,

terra natal da indústria desemicondutores, contém mais

locais de lixo tóxico do que qualquer outrocondado nos Estados Unidos.2

O número de computadores no mundoquintuplicou de 1988 a 2002 – de 105milhões para mais de meio bilhão. Cada umdesses aparelhos é uma armadilha tóxica.Um monitor típico, com tubo de raiocatódico (CRT), contém de dois a quatroquilogramas de chumbo, bem como fósforo,bário e cromo hexavalente. Outrosingredientes tóxicos incluem o cádmio, nosresistores e semicondutores do chip, berílio,nas placas-mãe e conectores e retardadoresde chama à base de bromo, nas placas decircuito e capas plásticas.

Plásticos, incluindo cloreto de polivinil(PVC), compõem até 6,3 quilos de umcomputador comum. A combinação devários plásticos torna a reciclagem um

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desafio. PVC é particularmente difícil dereciclar, contaminando outros plásticosdurante o processo.3

A indústria eletrônica é o maior setormanufatureiro de crescimento mais rápido nomundo e, devido às altas taxas deobsolescência do produto, o lixo eletrônico (e-lixo) cresce rapidamente. Até 2005, umcomputador irá tornar-se obsoleto para cadanovo computador colocado no mercadoamericano. Muitas vezes, computadores sãodescartados não porque estejam quebrados,mas porque a rápida evolução da tecnologiatorna-os indesejáveis ou incompatíveis comsoftware mais novo. Os americanossubstituem seus computadores desktopPentium logo após dois a três anos de uso. Asgrandes instituições sempre fazem umupgrade regularmente; 50.000 empregados daMicrosoft, em todo o mundo, recebem umnovo computador a cada três anos em média.4

Pesquisadores governamentais calculamque três quartos de todos os computadoresvendidos nos Estados Unidos estão jogadosem porões e armários de escritórios, à esperado descarte. Aqueles que estão quebradosmuitas vezes terminam em aterros ouincineradores. Cerca de 70% dos metaispesados encontrados nos aterros americanosprovêm do e-lixo. Essas toxinas podemlixiviar no solo e água subterrânea, causardanos ao sistema nervoso central,perturbações endócrinas, interferir nodesenvolvimento cerebral e causar danos aórgãos caso as pessoas sejam expostas aelas. A queima de PVC e os retardadores dechama à base de bromo, por exemplo, liberamdioxinas e furanos – dois dos mais letaispoluentes orgânicos persistentes.5

Velhos computadores do mundoindustrializado são enviados para oestrangeiro, por meio da indústria dereciclagem, que estima que 50–80% do e-lixo

coletado para reciclagem nos EstadosUnidos são enviados para a Ásia,principalmente China, Índia e Paquistão. Deacordo com a Agência de ProteçãoAmbiental dos Estados Unidos, é 10 vezesmais barato enviar monitores de CRT para aChina do que reciclá-los internamente. Essecusto maior, juntamente com o fraco sistemaregulatório das nações recebedoras, estáincentivando o comércio tóxico a despeitoda proibição internacional, nos termos dotratado principal sobre resíduos perigosos,a Convenção de Basel. (Os Estados Unidossão o único país industrializado que nãoratificou a Convenção de Basel; a suaexportação de materiais perigosos continualegal e recentemente tornou-se isenta dosregulamentos.)6

Uma investigação da Basel ActionNetwork e Greenpeace China, em dezembrode 2001, constatou que a maioria doscomputadores em Guiyu, um centro deprocessamento de e-lixo na China, provémda América do Norte, e em menor proporçãodo Japão, Coréia do Sul e Europa. O estudoaveriguou que nessas instalações de“reciclagem” os computadores sãodesmontados a martelo, formões, chaves defenda e até mesmo “na marra”. Ostrabalhadores quebram os monitores CRTpara retirar o cabeçote de cobre, enquanto oresto do monitor é jogado ao ar livre ou nosrios. Os residentes locais dizem que a águaagora tem gosto ruim, devido ao chumbo eoutros contaminadores.7

Sem nenhuma roupa de proteção oumáscaras, os trabalhadores usam pincéis ouas próprias mãos nuas para abrir cartuchosvazios de impressoras e recolher o tonerrestante em baldes. Conforme a Xerox eCanon, o negro-de-fumo e outrosingredientes do toner causam irritaçãorespiratória e pulmonar. Os trabalhadores

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também são expostos aos vapores tóxicosda solda de chumbo e estanho quandoaquecem as placas de circuito pararecuperar o conteúdo de ouro dos chips, eos banhos de ácidos usados para dissolvere precipitar o ouro emitem gases de cloro edióxido sulfúrico. Pilhas de cabos de PVCsão queimadas ao ar livre, para recuperar afiação de cobre. Ironicamente a Chinaproibiu a importação de resíduos sólidos em1996 e acrescentou uma proibição específicaem 2000 contra computadores usados,monitores e CRTs, mas a implementaçãodessas leis é muito fraca.8

À proporção que as naçõesindustrializadas adotem leis mais rigorosas

para regulamentar a disposição final doe-lixo em aterros e incineradores, o fluxode computadores para os países emdesenvolvimento provavelmenteaumentará, a menos que outras medidassejam introduzidas para lidar com o lixo. Em2002, o parlamento da União Européiaadotou duas diretivas sobre o “princípio daresponsabilidade do produtor”, exigindoque os fabricantes de produtos eletrônicosdiminuam gradativamente o uso demateriais prejudiciais e sejamresponsabilizados pela recuperação ereciclagem do e-lixo.9

— Radhika Sarin

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C A P Í T U L O 3

Incrementando aProdutividade Hídrica

Sandra Postel e Amy Vickers

Na xícara do café desta manhã e no goledo chá da tarde residem moléculas de águaque circularam pela atmosfera terrestremilhares e milhares de vezes. Esse líquidotem estado presente no planeta por pelomenos 3 bilhões de anos, circulando entreterra, mar e ar. Impelido pelo sol, esse ci-clo cria uma ilusão de abundância – águadoce aparentemente ilimitada, pois cai docéu, ano após ano.

Ao longo das duas últimas décadas, en-tretanto, essa ilusão foi desfeita pela escalade influências humanas sobre osecossistemas de água doce da Terra – osrios, lagos, terras alagadas e aqüíferos sub-terrâneos que armazenam, movem e limpama água à medida que ela circula. Lençóisfreáticos estão em queda devido à extraçãopredatória da água subterrânea em grandes

áreas da China, Índia, Irã, México, OrienteMédio, África do Norte, Arábia Saudita eEstados Unidos. Muitos córregos e rios –inclusive os grandes, como o Amu Dar’ya,Colorado, Ganges, Indus, Rio Grande e oAmarelo – secam hoje durante parte do ano.Grandes lagos interioranos, particularmenteo Mar de Aral, na Ásia Central, e o LagoChad, na África, estão reduzidos a merassombras do que foram. Mundialmente, áre-as alagadas de água doce – ecossistemasque realizam um esplêndido serviço de puri-ficação da água – diminuíram pela metade.Pelo menos 20% das 10.000 espécies depeixe de água doce estão ameaçadas deextinção ou já estão extintas.1

A escala e ritmo dos impactos huma-nos sobre os sistemas de água doce ace-leraram ao longo do último meio século,

Sandra Postel é co-autora de Rivers for Life: Managing Water for People and Nature (Island Press, 2003) ediretora do Projeto de Políticas Globais para a Água em Amherst, MA. Amy Vickers, autora do premiadoHandbook of Water Use and Conservation: Homes, Landscapes, Business, Industries, Farms (WaterPlowPress, 2001), é engenheira e especialista em conservação hídrica, residente em Amherst, MA.

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INCREMENTANDO A PRODUTIVIDADE HÍDRICA

juntamente com o crescimento popula-cional e o consumo. Mundialmente, asdemandas hídricas triplicaram. O núme-ro de grandes represas (com pelo menos15 metros de altura) saltou de 5.000 em1950 para mais de 45.000 hoje – uma taxamédia de construção equivalente a duasgrandes represas por dia, durante 50anos. Por algum tempo, registramos ape-nas os benefícios desses projetos de en-genharia, dando pouca atenção aos cus-tos sociais e ecológicos. Medimos oshectares adicionais irrigados, os quilo-watt-hora gerados e a população atendi-da, mas não os pesqueiros destruídos, asespécies aquáticas ameaçadas, as pesso-as desalojadas de seus lares ou asustentabilidade dos padrões de uso daágua criados por grandes empreendimen-tos hídricos.2

Uma sociedade sustentável e segura éuma que atenda suas necessidades hídricassem destruir os ecossistemas dos quaisdepende ou as perspectivas das geraçõesfuturas. A boa notícia é que é possível atin-gir esse objetivo.

Atualmente, a agricultura é responsá-vel por cerca de 70% do consumo globalde água, a indústria por 22% e as cidadese municípios por 8%. As oportunidadespara o aumento da eficiência do uso daágua nas fazendas, fábricas e em cidadese lares têm sido minimamente exploradas.Só melhorias de eficiência, entretanto, nãoserão suficientes. Face ao crescimentopopulacional e afluência crescente, as pes-soas têm um papel importante a desempe-nhar fazendo escolhas responsáveis sobreseus padrões de consumo – desde dietasaté compras de materiais.3

Um Novo Conceito para aGestão da Água

Diferentemente do cobre, petróleo e damaioria das outras commodities, a águadoce não é apenas um recurso que adquirevalor apenas quando é extraído e colocadoem uso. Mais fundamentalmente, a águadoce é o sustentáculo da vida. Quando bom-beamos ou desviamos água para atenderdemandas humanas, exploramos um siste-ma vivo do qual miríades de outras espéci-es dependem para sua sobrevivência e quepresta serviços valiosos para a economiahumana. A função desempenhada só pelasterras alagadas pode valer cerca de US$20.000 por hectare, por ano.4

O fato da nossa contabilidade econômi-ca não refletir esses serviços significa que ocusto real do nosso uso da água é sensivel-mente maior do que pensamos. À medidaque mais e mais água é desviada para agri-cultura, indústria e cidades, o volume res-tante para executar o trabalho da naturezafica cada vez menor. A uma certa altura, osecossistemas deixam de funcionar. As trá-gicas condições de saúde e econômicas emtorno do Mar de Aral, que perdeu mais de80% do seu volume devido a desvios fluvi-ais excessivos, são um alerta claro sobre ofatídico destino dessa trajetória.5

Hoje os cientistas sabem queecossistemas sadios requerem não apenasuma quantidade e qualidade mínimas deágua, e sim um padrão de fluxo que se as-semelhe a seu regime natural de vazão. Issoocorre porque as espécies passaram milê-nios adaptando-se à variabilidade do fluxoda natureza – o ciclo natural de altos e bai-xos, enchentes e secas – e suas vidas es-

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tão harmonizadas a ele. Elas migram, ge-ram, nidificam e alimentam-se segundo asleis da natureza. Ao perturbar os padrõesnaturais de fluxo, através da construção debarragens, represas e projetos de desvio derios, a humanidade involuntariamente des-trói muitas das condições de habitat e desustentação de vida que nossos companhei-ros terrenos – e os serviços ecológicos quenos prestam – necessitam.6

O que isso implica para o consumo egestão da água doce? Significa que o velhoobjetivo do esforço contínuo para atendera demandas cada vez maiores é um empre-endimento fadado ao fracasso. A otimizaçãode um equilíbrio entre o atendimento dasnecessidades humanas e a proteção dasfunções valiosas dos ecossistemas requera alocação de água suficiente durante todoo ano para a sustentação dessas funções.Uma vez estabelecida essa alocação, o de-safio é utilizar a água remanescente parasatisfazer as demandas humanas de formaeficiente, eqüitativa e produtiva.

Para realizar essa mudança é mais fácilfalar do que fazer. Porém, aqui e ali começaa acontecer. Na Austrália, as extrações deágua da bacia hidrográfica do Rio Murray-Darling – o maior e mais economicamenteimportante do país – foram limitadas, numesforço para coibir a deterioração grave desua saúde ecológica. Esforços que já tarda-vam: a vazão do Murray caiu tanto em 2003que seu estuário ficou entupido com areia.A inovadora legislação hídrica da África doSul, em 1998, exigiu o atendimento às ne-cessidades hídricas básicas tanto das pes-soas quanto dos ecossistemas antes que aágua seja alocada a usos não-essenciais. Essa“reserva” de água doce é priorizada e, sefor implementada como se pretende, asse-

gurará que as extrações permaneçam den-tro dos limites ecológicos definidos por ci-entistas e pelas comunidades. Nos EstadosUnidos, num caso envolvendo alocação deágua na Ilha de Oahu, a Corte Suprema doHavaí determinou, em agosto de 2000, quecada desvio particular de água fique subor-dinado “a um interesse público superior nes-sa riqueza natural” e que o interesse públi-co, que inclui o ecossistema, deve serpriorizado frente a usos comerciais priva-dos nas decisões de alocação de água.7

O estabelecimento de limites para o usode rios e outros ecossistemas de água doceé a chave para o avanço econômico sus-tentável, pois protege os ecossistemas queescoram a economia enquanto promovemmelhorias na produtividade hídrica – o be-nefício líquido derivado de cada unidadede água extraída do meio ambiente natural.

Da mesma forma que a melhoria deprodutividade da mão-de-obra – a produ-ção por trabalhador – ajuda uma econo-mia, também o fazem as melhorias na pro-dutividade hídrica – a produção por metrocúbico de água. (Um metro cúbico equi-vale a 1.000 litros.)

Medida a grosso modo como o valorde bens e serviços econômicos por metrocúbico de água consumida, a produtivi-dade hídrica tende a aumentar, juntamen-te com a renda nacional, por três razõesprincipais. Primeiro, porque a produçãoagrícola é tão intensiva em água e os pre-ços são tão baixos, em relação à maioriade outros bens, que uma mudança em di-reção a uma economia mais industrializa-da aumentará a produção econômica pormetro cúbico de água. Segundo, porqueleis de controle de poluição, como asadotadas no Japão, Estados Unidos e mui-

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tos países europeus, freqüentemente tor-nam mais econômico para as fábricasreciclar e reutilizar sua água de processoem vez de despejá-la no meio ambiente. Eo terceiro motivo é que à medida que aseconomias deslocam-se de indústrias de

transformação para indústrias de serviço,a produtividade hídrica tende a aumentarainda mais. A economia da Alemanha, porexemplo, hoje gera US$ 40 de produçãopor metro cúbico de água, mais de 10 ve-zes a da Índia. (Vide Figura 3-1.)8

Figura 3-1. Produtividade Hídrica de Economias Nacionais,Países Selecionados, 2000

A produtividade hídrica nos EstadosUnidos (que destina uma parcela muitomaior de água para a agricultura irrigadado que a Alemanha) registra cerca de US$18 por metro cúbico. Hoje, a economiados Estados Unidos gera 2,6 vezes maisvalor econômico por metro cúbico extra-ído dos seus rios, lagos e aqüíferos doque em 1960. (Vide Figura 3-2.) Mesmoassim, apesar desse avanço, os Estados

Unidos têm todos os sinais reveladores douso insustentável da água – inclusiveexaustão de água subterrânea, perda deterras alagadas, dizimação de pesqueirose rios secos. Por quê? Legisladores aindanão impuseram limites ao uso humano daágua em níveis ecologicamente sustentá-veis – uma barreira que promoveria efeti-vamente níveis muito maiores de produti-vidade hídrica.9

BangladeshEgitoÍndiaPeru

ChinaIndonésia

MéxicoFederação Russa

África do SulEstados Unidos

BrasilEspanhaAustrália

FrançaAlemanha

Fonte: FAO, USGS, OCDE(Dólares de 2000)

0 10 20 30 40PIB por metro cúbico de consumo

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dial, uma vez que a distribui-ção de água é freqüentementedesigual também dentro depaíses. A China, por exemplo,tem 21% da população mun-dial, mas apenas 7% da águadoce do planeta – e a maiorparte encontra-se na regiãosul do país. A Planície Norteda China, que inclui o RioAmarelo, é uma das regiõesmais populosas do mundo,com escassez hídrica. Abri-gando cerca de 450 milhõesde pessoas, seu suprimento

per capita de água é de menos de 500 metroscúbicos por ano, quase igual à Argélia. Oconsumo de água na Planície Norte já su-pera o suprimento sustentável. Quase todoano, o baixo Rio Amarelo seca completa-mente antes de alcançar o mar. E por todaa planície, que produz um quarto dos grãosda China, os lençóis freáticos estão caindoa uma taxa de 1–1,5 metro ao ano. Comoobserva o economista hídrico JeremyBerkoff, a escassez de água na PlanícieNorte da China “afetará mais aqueles commenor condição de suportá-la e pequenosagricultores que cultivam grãos em locaismais isolados”.11

Locais de pobreza hídrica geralmenteexercem maior pressão sobre rios eaqüíferos do que locais de riqueza (videTabela 3-1) porque em climas mais secosa produção agrícola – intensiva no uso daágua – requer irrigação. O consumo deágua per capita do Egito é quase o dobroda Rússia, não porque os egípcios sejammais sedentos (embora consumam maisdo que sua parcela justa do Nilo), e simporque toda sua região agrícola necessita

Figura 3-2. Produtividade Hídrica dos EstadosUnidos, 1950–2000

Riqueza Hídrica,Pobreza Hídrica

O ciclo hidrológico da Terra distribui águade forma irregular por todo o planeta. Ape-nas seis países – Brasil, Rússia, Canadá,Indonésia, China e Colômbia – representammetade do suprimento renovável total deágua doce, de 40.700 quilômetros cúbicos(contando apenas o escoamento de rios eáguas subterrâneas, sem a evaporação etranspiração vegetal). O fato de uma regiãoser hidrologicamente rica ou pobre depen-de, em parte, de quanto do legado globalrecebe em relação à sua população. O Cana-dá, por exemplo, situa-se próximo ao topoda riqueza hídrica, com mais de 92.000metros cúbicos de água por habitante. Nolado pobre do espectro estão a Jordânia, comum manancial renovável anual de 138 metroscúbicos por habitante, Israel com 124 e oKuwait, com basicamente nada.10

Entretanto, as cifras nacionais masca-ram grande parte do estresse hídrico mun-

1950 1960 1970 1980 1990 2000

20

15

10

5

0

PIB real por metro cúbico de extração anual de água

Fonte: USGS, OCDE(base=2000)

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de irrigação, contra apenas 4% na Rússia.Os Estados Unidos, todavia, emergem efe-tivamente como uma nação pródiga no usoda água: possui uma das maiores taxas percapita de consumo em todo o mundo,mesmo irrigando apenas 11% da sua re-gião agrícola.12

verdes, campos de golfe e piscinas em cadaquintal. Mas esse luxo tem um preço alto –a exaustão de aqüíferos e importações deágua do distante Rio Colorado às custas docontribuinte. Por outro lado, um sobrevôopela Etiópia, no leste da África, onde, em2003, mais de 12 milhões de pessoas en-frentaram a fome, revela uma terra seden-ta de água, mesmo com 84% da vazão doNilo fluindo por seu território. Devido àinfluência do poder, da política e do dinhei-ro, a escassez natural de água não implicaprivação; nem também a abundância natu-ral implica acesso.13

Facilitar tanto o sobreconsumo quantoo subconsumo são dois aspectos do desa-fio global da água. A tarefa mais urgente éfornecer a todos os povos pelo menos umvolume mínimo de água potável e sanea-mento necessários para uma boa saúde.Hoje, uma em cada cinco pessoas no mun-do em desenvolvimento – 1,1 bilhão ao todo– enfrenta riscos diários de doença e mortepor lhe faltar “acesso razoável” a água po-tável, definida pelas Nações Unidas comoa disponibilidade de, pelo menos, 20 litrospor pessoa por dia, de uma fonte a umadistância não-superior a 1 quilômetro dolar. A grande lacuna na disponibilidade temquase nada a ver com escassez de água. AIndonésia, por exemplo, tem um legadonatural de água superior a 13.000 metroscúbicos por pessoa; entretanto, um quartoda sua população não tem acesso a águapotável. Globalmente, proporcionar aces-so universal a 50 litros por pessoa, por dia,até 2015, exigirá menos de 1% das extra-ções atuais em todo o mundo. Há água maisdo que suficiente, porém, até agora, faltamvontade política e compromissos financei-ros para proporcionar acesso aos pobres.14

Assim, o quadro só estará completo seconsiderarmos afluência e pobreza. Paraisso, basta voar até Phoenix, Arizona, nosudoeste dos Estados Unidos, para ver umacidade-oásis que desafia seu legado hídriconatural. Embora seu índice pluviométricoseja de apenas 19 cm anuais, Phoenix pos-sui uma paisagem exuberante de gramados

Tabela 3-1. Extrações AnuaisEstimadas de Água, Per Capita,

Países Selecionados, 2000

FONTE: vide nota final 12.

País

EtiópiaNigériaBrasilÁfrica do SulIndonésiaChinaFederação RussaAlemanhaBangladeshÍndiaFrançaPeruMéxicoEspanhaEgitoAustráliaEstados Unidos

Extrações de ÁguaPer Capita

(metros cúbicos por pessoapor ano)

4270

348354390491527574578640675784791893

1.0111.2501.932

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Em 2000, a Assembléia Geral das Na-ções Unidas adotou, como uma das MetasDesenvolvimentistas do Milênio para 2015,a redução pela metade da parcela de pesso-as sem condições de acesso à água potá-vel. Dois anos depois, na Cúpula Mundialsobre Desenvolvimento Sustentável, emJoanesburgo, as nações comprometeram-se igualmente a reduzir à metade, até 2015,a proporção de pessoas sem acesso a sa-neamento adequado. A difusão de serviçosde saneamento tem ficado bem atrás dofornecimento de água doméstica, deixan-do 2,4 bilhões de pessoas, mundialmente,sem saneamento básico. (Vide Tabela 3-2.)A fim de atender aos novos compromis-sos, os serviços de água terão que alcançarmais 100 milhões de pessoas, e o sanea-mento adequado outras 125 milhões depessoas, anualmente, entre 2000 e 2015.15

tísticas da ONU, cinco países – Bangladesh,Camoros, Guatemala, Irã e Sri Lanka –obtiveram sucesso em reduzir à metade aparcela de suas populações carentes de águapotável entre 1990 e 2000. (Essas estatís-ticas, entretanto, não incluem a descobertade níveis venenosos de arsênio em poçosde água subterrânea em extensas áreas deBangladesh.)16

A África do Sul avançou também naprestação de serviços de água. Quando oCongresso Nacional Africano assumiu opoder, em 1994, cerca de 14 milhões desul-africanos não tinham acesso a águapotável. A constituição pós-apartheid,ratificada em 1996, declarou a água po-tável um direito universal, e a lei da águade 1998, que estabeleceu uma reservahídrica em duas partes – atender às ne-cessidades hídricas de todas as pessoas eecossistemas –, concedeu prioridade má-xima à prestação de serviços de abasteci-mento de água. Entre 1994 e abril de 2003,o Programa Comunitário de Abastecimen-to de Água e Saneamento do país propor-cionou acesso a 8 milhões de pessoas, aum custo médio de US$ 80 por pessoa. Asautoridades estimam que os 6 milhões depessoas restantes terão acesso até 2008.17

A fim de atender à população mais po-bre da África do Sul e, também, conseguiruma recuperação razoável de custos, foiestabelecido um preço baixo de “linha devida” para os primeiros 25 litros diários,aumentando a tarifa acima desse nível. Umavez que até a tarifa mínima onerava as fa-mílias pobres, as autoridades começarama conceder gratuidade a esse volume. Nasregiões onde o governo contratou empre-sas privadas para gerir os sistemas de água,entretanto, a recuperação de custos parece

Tabela 3-2. Populações sem Acesso a ÁguaPotável e Saneamento, 2000

FONTE: vide nota final 15.

Embora ambiciosas, essas metasconquistáveis são marcos essenciais nocaminho para uma cobertura universal deágua e saneamento. De acordo com esta-

Região

ÁfricaÁsiaAmérica Latina eCaribe

ÁguaPotável

3619

13

SaneamentoAdequado

4053

22

(percentual)

Parcela da PopulaçãoSem Acesso a

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ter adquirido prioridade sobre o direito cons-titucional à água, provocando protestos dapopulação. Em Joanesburgo, por exemplo,onde a concessionária assinou um contra-to de gestão com a corporação francesaSuez, foram instalados hidrômetros de pa-gamento prévio que só fornecem às famí-lias a quantidade paga antecipadamente.Empresas privadas de água, preocupadasprincipalmente em aumentar os lucros paraseus acionistas, pouco incentivo têm paraatender às necessidades básicas dos pobres,a não ser quando obrigadas, pelos poderespúblicos, a fazê-lo.18

Água, Lavouras e Dietas

A agricultura consome cerca de 70% de todaa água extraída dos rios, lagos e aqüíferossubterrâneos da Terra, e até 90% em mui-tos países em desenvolvimento. Projeçõesrecentes indicam que, até 2025, inúmerasbacias hidrográficas e nações enfrentarãouma situação em que 30% ou mais de suasnecessidades de irrigação não poderão seratendidas, devido à escassez de água. Essasincluem a maioria das bacias da Índia, asbacias Hai e Amarela, na China, do Indus,no Paquistão, e muitas bacias hidrográficasda Ásia Central, África Subsaariana, Áfricado Norte, Bangladesh e México.19

Elevar a produtividade do uso da águaagrícola é crucial para o atendimento das ne-cessidades alimentares das pessoas à medidaque o estresse hídrico aumente e se espalhe.Esse desafio tem três partes principais: for-necer e aplicar água à agricultura com maioreficiência, aumentar a produtividade por litrode água consumida, tanto por lavourasirrigadas quanto alimentadas pela chuva, e

mudar as dietas, a fim de satisfazer as neces-sidades nutricionais com menos água.

Uma grande parte da água armazenadapor trás de barragens, e desviada através decanais de irrigação, nunca beneficia uma la-voura. Uma análise em 2000 constatou quea eficiência de irrigação da água de superfí-cie varia entre 25 e 40% na Índia, México,Paquistão, Filipinas e Tailândia; entre 40 e45% na Malásia e Marrocos e entre 50 e60% em Israel, Japão e Taiwan. A grandeparcela de água que não atinge as raízes daslavouras não é, necessariamente, perdida oudesperdiçada: pode, por exemplo, escorrerpor um campo ou canal e recarregar o len-çol subterrâneo, transformando-se no su-primento de outro agricultor. Todavia, parteé perdida pela evaporação do solo ou super-fícies de canais. De qualquer forma, essasineficiências acarretam altos custos:indisponibilidade de água quando e onde ne-cessária, habitats aquáticos destruídos des-necessariamente, maior área de terra tornan-do-se salina e maior volume de água docepoluído por sais e pesticidas.20

A maioria das regiões obteve ganhos ape-nas modestos na melhoria da eficiência deirrigação. Com a água de irrigação,freqüentemente cobrada a menos de umquinto do seu custo real, e com a extraçãode água subterrânea praticamente não-regu-lamentada, os agricultores e gestores de ir-rigação têm pouca motivação para moderni-zar suas práticas. Melhorias na regulação econfiabilidade na distribuição de água sãopré-requisitos para muitas das medidas deeficiência que os próprios agricultores po-dem tomar. Produtores de alguns distritosda Califórnia, por exemplo, gostariam detransferir-se para sistemas mais eficientesde irrigação, porém precisam de maior se-

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gurança sobre a freqüência, taxa de vazão eduração de seu fornecimento de água antesde fazê-lo.21

Há um rico cardápio de escolhas para amelhoria da produtividade da água de irri-gação, inclusive um conjunto de medidastécnicas, gestoras, institucionais e agronô-micas. Um número cada vez maior de agri-cultores em todo o mundo está constatan-do, por exemplo, que sistemas de irrigaçãopor gotejamento – que fornecem água di-retamente às raízes das plantas em baixovolume, através de tubos perfurados insta-lados sobre ou sob o solo – podem econo-mizar água, incrementando as colheitas aomesmo tempo. Comparados à irrigaçãoconvencional por inundação ou valas, mé-todos de gotejamento freqüentemente re-duzem o volume de água distribuída aoscampos em 30–70%, aumentando a pro-

dução em 20–90%. Essa combinação podesignificar uma duplicação ou triplicação daprodutividade hídrica.22

Mundialmente, métodos de microirri-gação (inclusive gotejamento e micro-espargidores) são utilizados em aproxima-damente 3,2 milhões de hectares ou poucomais de 1% das terras irrigadas. Um pu-nhado de países carentes de água hoje de-pende, e muito, deles. (Vide Tabela 3-3.)Ademais, a área sob gotejamento e outrastécnicas de microirrigação ampliou-se sen-sivelmente em vários países ao longo daúltima década: mais do dobro no México eÁfrica do Sul, um aumento de 3,5 vezesna Espanha e quase nove vezes no Brasil.Embora partindo de uma base pequena,China e Índia também ampliaram o uso deirrigação por gotejamento, a fim de lidarcom a crescente escassez hídrica.23

Tabela 3-3. Uso de Gotejamento e Microirrigação,Países Selecionados, 1991 e Cerca de 20001

1 A microirrigação inclui métodos de gotejamento (tanto superficial quanto subsuperficial) emicroespargidores; o ano de divulgação varia de país a país.FONTE: vide nota final 23.

ChipreIsraelJordâniaÁfrica do SulEspanhaBrasilEstados UnidosChileEgitoMéxicoChinaÍndia

25,0104,312,0102,3160,020,2606,0

8,868,560,619,017,0

35,6125,038,3

220,0562,8176,1850,362,1

104,0143,1267,0260,0

906655171764332

<1<1

Área Irrigada por Gotejamento eOutros Métodos de Microirrigação

Parcela da Área Total Irrigada sobGotejamento e Microirrigação

País 1991 Cerca de 2000 Cerca de 2000

(mil hectares) (percentual)

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Mudanças nos padrões de produção emétodos de cultivo também oferecem opor-tunidades para se colher mais por gota. Essedesafio é mais destacado na produção dearroz, o alimento básico preferido de cercada metade da população global. Mais de 90%do arroz mundial é cultivado na Ásia, ondemuitos rios e aqüíferos já estão excessiva-mente explorados e a pressão para desviarágua das fazendas para as cidades está au-mentando. Ao longo do último quarto deséculo, a adoção generalizada de variedadesde arroz de alta produtividade e amadureci-mento precoce levou a um aumento de 2,5a 3,5 vezes o volume de arroz colhido porunidade de água consumida – uma conquis-ta impressionante. Maiores ganhos serãomais difíceis de serem obtidos. Muitos es-tudos demonstraram, todavia, que a práticatradicional de inundar arrozais durante a es-tação de cultivo não é essencial para aumen-tar a produção. Aplicar um espelho d’águamais raso, ou até mesmo deixar os arrozaissecos entre irrigações, pode, em alguns ca-sos, reduzir o uso de água em 40–70% semperda significativa de produção.24

Igualmente, pesquisadores constataramque a produção de grãos pode ser susten-tada com 25% menos de água de irrigaçãodo que é normalmente utilizado, contantoque as lavouras recebam água suficientedurante seus estágios críticos de cresci-mento. Chamada de irrigação de déficit,essa prática está se tornando um recursonecessário em algumas áreas carentes deágua. Na Planície Norte da China, por exem-plo, os agricultores hoje irrigam o trigo trêsvezes numa safra em vez de cinco.25

Para muitos agricultores pobres, aquestão não é como irrigar com maioreficiência, e sim como irrigar, simples-

mente. A maioria dos cerca de 800 mi-lhões de pessoas famintas ou malnutridaspertencem a famílias de agricultores daÁfrica Subsaariana e sul da Ásia. Paraelas, os equipamentos convencionais deirrigação são muito dispendiosos, e oacesso à água de irrigação é sua esperan-ça para colheitas mais estáveis e produti-vas, maior segurança alimentar e melho-res rendas. Aumentar o acesso dos agri-cultores pobres à irrigação, por meio dadisseminação de tecnologias acessíveispara pequenas áreas, melhoraria imensa-mente a produtividade hídrica – gerandomelhor saúde e benefícios sociais por li-tro de água consumida.26

Um modelo de sucesso está emBangladesh, onde agricultores pobres ad-quiriram mais de 1,2 milhão de bombas apedal que lhes dão acesso a lençóis rasos epermitem cultivos durante a estação seca,aumentando suas rendas em US$ 100, emmédia, por cada bomba de US$ 35 no pri-meiro ano. A International DevelopmentEnterprises, do Colorado, está hoje desen-volvendo sua experiência em Bangladesh eem inúmeros outros países, numa iniciati-va multidoadora internacional chamada Ini-ciativa Mercadológica de Irrigação paraPequenos Produtores, que objetiva facili-tar o acesso de agricultores pobres à irri-gação – incluindo sistemas de gotejamentode baixo custo e bombas a pedal – com ameta de livrar da pobreza cerca de 30 mi-lhões de famílias rurais até 2015.27

Por grandes áreas da Índia, gruposcomunitários estão reativando o uso deaçudes tradicionais, barragens de deten-ção e outros equipamentos para captaçãoe armazenagem de água da chuva, parairrigar suas lavouras durante a estação

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seca e recarregar os lençóis freáticos. Nodistrito de Alwar, em Rajasthan, 2.500açudes (chamados de johads) foramconstruídos em 500 vilarejos, aumentan-do a produção agrícola e de leito signifi-cativamente. Ao repor a água subterrânea,os johads também elevam o lençol freáticode uma média de 60 metros abaixo da su-perfície para 6 metros.28

Esses exemplos mostram apenas algu-mas das inúmeras formas pelas quais agri-cultores e gestores de água podem aumen-tar a eficiência da irrigação, fazendo me-lhor uso da chuva e aumentando a produti-vidade agrícola por litro de água consumida.Por intermédio de suas escolhas dietéticas,consumidores individuais também têm umpapel importante a desempenhar – um quese mostrará vital para dobrar a produtivi-dade hídrica da agricultura.

Os vários alimentos que ingerimos exi-gem volumes de água imensamente dife-rentes para serem produzidos. Tambémvariam nos seus valores nutricionais – in-cluindo energia, proteína, cálcio, gordura,vitaminas e ferro. A combinação dessas duascaracterísticas dá uma medida da produti-vidade nutricional da água – quanto valornutricional é derivado de cada unidade deágua consumida. Utilizando o consumo deágua na agricultura e a produção daCalifórnia, os pesquisadores Daniel Renaulte Wes Wallender estimaram a produtivida-de nutricional da água para as principaislavouras e produtos alimentícios. Os resul-tados foram reveladores: é necessário cin-co vezes mais água para suprir 10 gramasde proteína da carne bovina do que do ar-roz, e quase 20 vezes mais água para su-prir 500 calorias da carne bovina do quedo arroz. (Vide Tabela 3-4.)29

Com seu alto teor de carne, a dieta co-mum nos Estados Unidos requer 5,4 metroscúbicos de água por pessoa, por dia – odobro de uma dieta vegetariana, igualmen-te (ou mais) nutritiva. Mesmo uma saídaparcial de produtos animais faria uma dife-rença imensa. Por exemplo, a redução deprodutos animais pela metade e substitui-ção por produtos vegetais altamente nutri-tivos diminuiria a intensidade hídrica da di-eta americana em 37%. Realizar essa tran-sição até 2025, quando a população dosEstados Unidos deverá somar mais de 350milhões de pessoas, reduziria as necessi-dades hídricas alimentares da nação, na-quela ocasião, em 256 bilhões de metroscúbicos por ano – uma economia equiva-

Tabela 3-4. Água Consumida para SuprirProteínas e Calorias, Alimentos Selecionados1

1Baseado na produção agrícola e na produtividade hídricada Califórnia; leva em consideração apenas as exigênciashídricas das lavouras, não eficiências de irrigação ou outrosfatores.FONTE: vide nota final 29.

Alimento

BatatasAmendoimCebolaMilhoFeijãoTrigoArrozOvoLeiteAvesCarne SuínaCarne Bovina

Água Consumidapara Suprir 10

Gramas de Proteína

6790

118130132135204244250303476

1.000

Água Consumidapara Suprir

500 Calorias

89210221130421219251963758

1.5151.2254.902

(litros)

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lente à vazão anual de 14 rios Colorado.Muitos outros benefícios resultariam tam-bém – inclusive redução de doenças cardí-acas, menor crueldade com os animais emenor poluição de córregos e baías causa-da por currais industriais.30

Mundialmente, assegurar uma dietasadia para todos, face à crescente es-cassez hídrica, exigirá ajustes em ambasas pontas do espectro dietético. O bi-lhão malnutrido de pessoas no mundoprecisa alimentar-se mais, a fim de vi-ver com saúde. A ampliação do acesso aníveis mínimos de água de irrigação po-derá ajudar a atingir esse objetivo. Umaparticipação mais eqüitativa da água in-corporada nos alimentos, através docomércio e programas de ajuda, tambémserá importante. E a mudança dietéticasensata descrita acima para a populaçãodos Estados Unidos liberaria água sufi-ciente para proporcionar dietas sadias acerca de 400 milhões de pessoas, quaseum quarto do número que se antecipaserá adicionado à população do mundoem desenvolvimento até 2025.31

Cidades e Lares

As demandas – e carências – de água emmuitas cidades por todo o mundo aumen-tam aceleradamente. Com quase metade dapopulação global hoje vivendo em áreasurbanas, que deverá aumentar para 60%até 2030, satisfazer os desejos cada vezmaiores dos ricos pela água e as necessi-dades dos pobres é um grande desafio. (VideQuadro 3-1.) Embora as cidades sejam res-ponsáveis por menos de 10% das extra-ções mundiais de água doce, seu consumo

concentrado requer uma infra-estruturacapital-intensiva complexa, que exercegrande pressão sobre os mananciais super-ficiais e subterrâneos finitos.32

QUADRO 3-1. DESSALINIZAÇÃO –SOLUÇÃO OU SINTOMA?

Um número crescente de cidades estárecorrendo à água do mar dessalinizada ouágua salobra como prevenção à futuraescassez hídrica. Existem atualmente cerca de9.500 usinas de dessalinização em todo omundo, com uma capacidade instaladaestimada de 11,8 bilhões de metros cúbicospor ano – 0,3% do atual consumo mundial.Um processo intensivo no uso de energia, adessalinização está concentrada no GolfoÁrabe e Oriente Médio, ricos em petróleo,responsáveis por cerca da metade dacapacidade global. Entretanto, tanto asnecessidades energéticas quanto os custosvêm caindo com a melhoria das tecnologias, ea capacidade mundial de dessalinização estáexpandindo a uma taxa anual de cerca de11%. O projeto israelense de gerar até metadedo seu abastecimento urbano de água dadessalinização até 2008 poderá efetivamenteliberar outros mananciais para umadistribuição eqüitativa com os palestinos.

Porém, será que para a maioria do mundoa dessalinização é uma opção sensata ououtra solução dispendiosa para oabastecimento? Em termos unitários, amaioria das medidas de conservação eeficiência pode atender às novasnecessidades hídricas a 10–25% do custo deprodução de água dessalinizada. Não fazmuito sentido dessalinizar o mar e, noprocesso, lançar mais gases de estufa naatmosfera, quando a redução de desperdíciose o aumento da eficiência poderão suprirágua com melhor custo/benefício e menordano ecológico.________________________________________FONTE: vide nota final 32.

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Demandas excessivas de água têm cus-to. A maioria das 16 megacidades mundiais– aquelas com 10 milhões de habitantes oumais – situa-se entre regiões que sofremestresse hídrico de fraco a agudo, umacondição em que as extrações exaurem osmananciais disponíveis. À medida que a de-manda urbana vai aumentando, a pressãosobre a agricultura e áreas rurais para ven-derem ou abrirem mão de seus direitos àágua intensifica-se.33

Uma manchete de primeira página so-bre o uso da água urbana pode ser resu-mida em uma palavra: desperdício. “Pre-cisamos... reduzir vazamentos, especial-mente nas muitas cidades onde as perdasde água atingem o nível assustador de40%, ou mais, do manancial total”, decla-ra o Secretário-Geral das Nações Unidas,Kofi Annan. Vazamentos e outras perdassão, em muitos casos, fontes de desper-dício negligenciadas ou ocultas: muitosgestores de sistemas de abastecimento nãodão conta de 15–40% do seu fornecimen-to. Em regiões dos países em desenvolvi-mento, como a África, é comum 50–70%da água extraída dissipar-se através devazamentos, conexões ilegais e contabili-dade falha. Até um terço do abastecimen-to de água de uma cidade típica do GolfoÁrabe pode perder-se por vazamentos emtubulações e adutoras. Taiwan perde qua-se 2 milhões de metros cúbicos diariamen-te com vazamentos, volume equivalente a325 milhões de descargas de sanitários.Calcula-se que essas perdas atinjam US$200 milhões ao ano.34

A “prestação de contas” da água é oindicador principal da eficiência e gestãodas concessionárias; todavia, elascomumente falham nessa tarefa básica de

manutenção. (Vide Tabela 3-5.)Freqüentemente, são os países pobres,cuja população carece de suprimento su-ficiente, que têm as maiores taxas de des-perdício de água, embora a reputação dosetor privatizado nos países industriali-zados seja longe de exemplar. (Vide Qua-dro 3-2.) Vazamentos e outras perdas dossistemas de abastecimento – comumentechamados “água não-contabilizada”(ANC) ou “água não-faturada” – são ovolume retirado, mas que nunca chegaou nunca é registrado como tendo sidoentregue a um consumidor final. Geral-mente é calculado como a diferença en-tre a água “produzida” (conforme medi-ção no ponto de extração ou estação detratamento) e a água vendida (baseada emleituras de hidrômetros dos consumido-res), embora o setor, há muito, careça denormas consistentes para definir, medire informar a ANC. A maior parte da ANCé o resultado de vazamentos em adutorase tubulações sem manutenção adequada;também ocorrem roubo e defeitos emhidrômetros, particularmente em sistemasantigos e malcuidados. Assim, grandeparte da ANC representa água que pode-ria abastecer outros consumidores, eoutra parte dela resulta em perda de re-ceita, pois a água é utilizada e não-paga.O valor econômico da água perdida de-vido a falhas na leitura de hidrômetrosou roubo freqüentemente chega a 10 ve-zes o custo operacional marginal associ-ado a vazamentos.35

As cidades americanas, consideradascomo possuidoras das tecnologias einfra-estrutura hídricas mais modernas,têm ANCs que variam entre 10 e 30% e,às vezes, mais. Na ausência de códigos

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nacionais que definam e meçam as perdasde água, alguns estados estabeleceramsuas próprias normas. Estas variam de 7,5a 20%, mas não são bem aplicadas. Ape-nas uns poucos estados publicam os nú-meros de perda de água. Por exemplo,Kansas, cuja região ocidental cobre oaqüífero declinante de Ogallala, possuiuma norma ANC de 15%; entretanto, osnúmeros mais recentes divulgados sobreas perdas estaduais relacionam 52 forne-cedores com ANCs de 30% ou mais. Aseu crédito, o Programa Hídrico de Kansasdeterminou a redução de ANC como umadas suas metas prioritárias.36

Tabela 3-5. Vazamentos e Perdas em Sistemas deAbastecimento de Água, Países Selecionados

FONTE: vide nota final 35.

QUADRO 3-2. PRIVATIZAÇÃO EVAZAMENTO: OMISSÃO DEPRESTAÇÃO DE CONTAS

Apesar das promessas de maior eficiênciae sistemas de “gestão inteligente” quesupostamente viriam junto à privatizaçãodos sistemas de abastecimento de água,várias empresas privadas não prestamconta dos volumes maciços de água queseus sistemas perdem em vazamentos eoutros usos, não-medidos ou justificados.

As metas de redução das perdas de água, tão alardeadas pelas empresas privadasda Grã-Bretanha, ainda estão para seralcançadas e a realidade é que algumas“empresas ainda não atingiram seus níveiseconômicos de vazamento”, de acordocom um relatório da Câmara dos Comuns.A medição correta de vazamentos é aindamais complicada no Reino Unido, devidoao fato de apenas 20% dos domicíliospossuírem hidrômetros, o que torna asestimativas de vazamentos da empresa“sujeitas a manipulação”, de acordo com orelatório. Em seguida à privatização dossistemas de água, em 1989, os níveis devazamento em todo o setor hídrico do RUatingiram o nível médio de 30% em 1995.O Departamento de Serviços de Água, queregula o setor de abastecimento esaneamento da Inglaterra e País de Gales,interveio e estabeleceu metas obrigatóriaspara redução de vazamento. Váriasempresas com altos níveis de perda,notadamente a Thames Water UtilitiesLTD, atendem a áreas que enfrentamquedas de abastecimento. Em 2003,vazamentos e perdas de água pela ThamesWater foram responsáveis por mais de25% do total de vazamentos na Inglaterrae País de Gales; todavia, a empresa atendeapenas a 15% dos consumidores faturadosnessas regiões.________________________________________

FONTE: vide nota final 35.

País

África do Sul

AlbâniaCanadáCingapuraDinamarcaEspanhaEstados Unidos

França

JapãoJordâniaQuêniaRepública TchecaTaiwan

Área de Serviço

JoanesburgoTshwane (Pretória)NacionalKingston, OntarioNacionalCopenhagueNacionalNacionalBethlehem, PAParisNacionalFukuokaNacionalNairobiNacionalNacionalTaipei

Estimativa dasPerdas Médias no

Suprimento Total

(percentual)4224

até 753853

24–3410–30

2730

até 5054840

20–302542

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A recuperação da água “perdida”por vazamentos, falha de medição oucontabilização corrupta representa umenorme manancial inexplorado que pode-ria ajudar cidades e regiões que enfren-tam escassez a atender suas reais neces-sidades hídricas. Argumentos de que per-das por vazamentos não são significati-vas porque recarregam os aqüíferos ouabastecem outros usuários ignoram o fatode que extrações têm custo. A águadeslocada da sua “área de serviço” originalna natureza e dissipada a usuários de tubu-lações falhas causa secas em rios, destrui-ção de habitats e desaparecimento de vidasilvestre. Da mesma forma que as cavida-des dentárias, tubulações corroídas podemficar sem atenção por um tempo, mas te-rão que ser cuidadas; quanto mais tempo oproblema for negligenciado, mais custososerá para reparar. Caso a infra-estruturaexistente não seja estanque, os projetos decapital propostos, destinados a atender às“necessidades” hídricas, são ilusórios.

Copenhague, na Dinamarca, com ape-nas 3% de ANC (cerca de 1,6 metro cúbi-co por pessoa, por ano, ou um galão pordia), é uma exceção positiva ao controlehistoricamente fraco do setor hídrico. ODepartamento de Águas de Copenhaguetambém tem sofrido um declínio constan-te no consumo per capita domiciliar diá-rio, entre seu meio milhão de habitantes,desde que implantou metas de conserva-ção e iniciou uma série de campanhaseducativas e aumentos tarifários.

Talvez o incentivo mais forte para amanutenção de sistemas ajustados na Di-namarca seja o fato de as concessionári-as serem taxadas (0,7 euros ou 85 cen-tavos de dólar por metro cúbico) caso o

índice de vazamento exceda 10%. Em2000, apenas 8 dos 40 maiores fornece-dores da Dinamarca reportaram uma per-da acima de 10%. (Vide Quadro 3-3 parauma descrição de outros programas deeficiência urbana.)37

A redução de vazamentos e o uso maiseficiente da água também poupam ener-gia, uma vez que o bombeamento, trata-mento e distribuição da água requeremenergia em cada estágio. Os sistemas deágua da Califórnia são um dos maioresconsumidores de energia do estado, por-que transportam a água a longas distânci-as e por regiões altas. Em média, obombeamento de um acre-pé (1.234metros cúbicos) de água, por meio doAqueduto do Rio Colorado, para o sul daCalifórnia consome cerca de 2.000 kWhde eletricidade, enquanto o envio de umacre-pé para o mesmo destino, através doProjeto Estadual de Água, requer cerca de3.000 kWh. Numa residência típica do sulda Califórnia, a energia necessária para ofornecimento de água potável chega a atin-gir o terceiro lugar em importância, apóscondicionadores de ar e refrigeradores.Uma vez que o uso mais eficiente da águareduz o consumo de energia, também re-duz a produção dos gases de estufaalteradores do clima, que ameaçam pertur-bar vazões fluviais e sistemas hidrológicosem todo o mundo.38

A conservação da água obviamenteconserva energia, mas a conservação daenergia também conserva a água. Usinastermelétricas (a carvão, petróleo, gás na-tural, nuclear ou geotérmica) consomemágua pela evaporação, quando o calor ex-cessivo é retirado dos condensadores. Aextração dos combustíveis utilizados para

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operar essas usinas também consomeágua. A geração de energia hidrelétrica re-sulta na evaporação da água de reserva-tórios. Em conjunto, a água necessáriapara atender às demandas energéticas ésubstancial – nos Estados Unidos chegaa cerca de 8,3 litros por kWh de eletrici-

dade fornecida. Assim, a família médianorte-americana, utilizando 10.000 kWhde eletricidade por ano, está indiretamenteconsumindo também mais 83 metroscúbicos de água – um volume equivalen-te a quase 14.000 descargas de um vasosanitário eficiente.39

Várias cidades e sistemas de água lançaramprogramas de eficiência hídrica nos últimosanos, e várias outras conseguiram umaeconomia impressionante de custo e consumo:

• Cingapura reduziu o índice de água não-contabilizada de 10,6 para 6,2%, entre 1989e 1995, e economizou mais de US$ 26milhões, evitando gastos de capital naexpansão de suas instalações, por meio deiniciativas agressivas de detecção e reparode vazamentos, renovação de adutoras e100% de leituras (incluindo o Corpo deBombeiros). Em 2003, a ANC caiu para5%. Hidrômetros industriais e comerciaissão substituídos a cada quatro anos ehidrômetros residenciais a cada sete anos,para assegurar faturamento correto eminimizar perdas de água não-medida. Osgestores de água de Cingapura tambémpromovem educação pública, programasescolares, auditorias hídricas e reutilizaçãode água não-potável pelas indústrias.Conexões ilegais são sujeitas a multas de atéUS$ 50.000 ou três anos de detenção. Em1995, os 3 milhões de habitantes da cidadeconsumiram, em média, 1,2 milhão demetros cúbicos por dia; em 2003, ademanda total de água havia aumentadoapenas 8%, embora a população tenhacrescido 40%, para 4,2 milhões.

• Fukuoka, no Japão, conhecida como aCidade com Consciência de Conservação

QUADRO 3-3. PROGRAMAS URBANOS DE CONSERVAÇÃO HÍDRICA QUEPOUPAM ÁGUA E DINHEIRO

Hídrica, tem uma das menores taxas devazamento (cerca de 5%) do Japão, com umconsumo per capita de aproximadamente20% menos do que outras cidades domesmo tamanho. Fukuoka conseguiu essaseconomias através de esforços em detecçãode vazamentos e reparo, técnicassofisticadas de leitura, coleta de águaspluviais, utilização de água recuperada parasanitários, instalação de dispositivoseficientes de torneiras em mais de 90% dasresidências e promoção de programas deconscientização pública das questõeshídricas.

• Desde o final dos anos 80, o Departamentode Água do Estado de Massachusetts(MWRA, na sigla em inglês), que abastecemais de 40 cidades na área de Boston,reduziu a demanda em toda a rede em cercade 25%, por intermédio da implementaçãode um programa abrangente de redução dedemanda que incluía reparos de vazamentose instalação de equipamentos e dispositivoseficientes na tubulação. Isso permitiu ocancelamento de um projeto para represaro Rio Connecticut – uma propostapoliticamente polêmica – e poupou aos2,1 milhões de consumidores do MWRAmais de meio bilhão de dólares só emdispêndio de capital.

__________________________________________

FONTE: vide nota final 37.

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O uso doméstico de água varia sensi-velmente em todo o mundo e revela mui-to sobre as diferenças de riqueza e cultu-ra. (Vide Figura 3-3.) Por exemplo, oshabitantes do Reino Unido consomemapenas cerca de 70% da água consumidapelo americano mais poupador. Estima-se que o consumo interno nos lares dosEstados Unidos é de uma média de 262litros per capita, por dia (lpcd). As resi-dências que instalam utensílios eficien-tes em termos de consumo de água (sa-nitários, chuveiros e torneiras) e eletro-

domésticos (lavadoras de roupa e prato),e que reduzem vazamentos, consomemapenas 151–170 lpcd. Desde 1997, to-dos os sanitários, mictórios, torneiras echuveiros instalados nos Estados Unidossão obrigados a satisfazer as normasestabelecidas pela Lei de Polít icaEnergética (EPAct, na sigla em inglês) de1992. Até 2020, essas normas de efici-ência deverão poupar cerca de 23–34milhões de metros cúbicos por dia, águasuficiente para abastecer de quatro a seiscidades do tamanho de Nova Iorque.40

Figura 3-3. Consumo Doméstico de Água, Cidade e Países Selecionados

Estudos de 16 localidades nos EstadosUnidos revelam que as reduções de águaconforme as normas da EPAct pouparãoàs concessionárias US$ 166 a US$ 231milhões ao longo dos próximos 15 anos,

como conseqüência de investimentos di-feridos ou evitados em aumento de capa-cidade ou em novas instalações de trata-mento e armazenamento de água potável.As necessidades energéticas das instala-

Quênia (domicílios conectados)

Uganda (domicílios conectados)

Tanzânia (domicílios conectados)

Copenhague, Dinamarca

Reino Unido

Cingapura

Manilha, Filipinas,

Waterloo, Canadá

Melbourne, austrália

Sidnei, Austrália

Seattle, Estados Unidos

Tampa, Estados Unidos

Phoenix, Estados Unidos

0 200 400 600 800 1.000Litros per capita, por dia

Fonte: Vide nota final 40

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ções de tratamento de água e esgoto estãoprojetadas para caírem em 6 bilhões dekWh anuais. Parte dessa poupança deágua, energia e custos, todavia, já estáameaçada: vários grandes fabricantes deutensílios estão promovendo agressiva-mente as vendas de portentosos boxes dechuveiros com múltiplos bocais que es-guicham mais de 300 litros por minuto –mais do que a maioria da população mun-dial consome em um dia.41

Quando se trata do consumo de águae dos custos pagos por ricos e pobres,ocorre uma típica inversão de relação:aqueles que consomem mais pagam me-nos, e aqueles que pouco consomem pa-gam mais. Populações urbanas de baixarenda e pobres, não-conectadas à rede,freqüentemente são forçadas a recorrera suprimentos alternativos e caros, comovendedores de água, que podem cobrarmuitas vezes mais do que usuários pa-gam pela água encanada. Por exemplo,os pobres em Nova Délhi pagam a ven-dedores informais US$ 4,50 por metrocúbico de água, quase 500 vezes o cen-tavo de dólar pago por metro cúbico porquem dispõe de ligação domiciliar. EmManilha, vendedores cobram dos pobres42 vezes mais do que os usuáriosconectados.42

As demandas hídricas domésticasdos mais ricos assumem uma trajetóriaascendente dramática diante de grama-dos irrigados. Em volume, o maior pro-blema de bebida nos Estados Unidos nãoé o álcool, e sim a rega de gramados. Airrigação diária dos gramados e jardinsdos Estados Unidos consome cerca de30 bilhões de litros de água – um volu-me que encheria 14 bilhões de pacotes

de 6 latas de cerveja. O gramado irriga-do médio consome cerca de 38.000 li-tros por verão. E o pior: um morador deOrange County, cidade da Flórida comcarência de água, foi faturado em 15,9milhões de litros em um ano, a maiorparte utilizada na irrigação de sua pro-priedade de 2,4 hectares. Esse volumeequivale, a grosso modo, ao consumoanual de 900 quenianos.43

Gramados bem aparados e carpetesde grama em áreas privadas, públicas eà beira de vias nos Estados Unidos co-brem 12 a 20 milhões de hectares, umaárea maior do que o estado de Louisiana– mais do que é plantado em qualquercultura agrícola. Os Estados Unidostambém possuem cerca de 60% doscampos de gol fe mundiais; seus700.000 hectares absorvem cerca de 15bilhões de litros de água por dia. Gra-mados e campos de golfe não apenasbebem volumes gigantescos de água,mas também o fazem durante os mesesmais quentes do verão, quando a vazãode muitos rios e córregos estão em seusníveis mais baixos.44

Entusiastas por gramados e jardins dosEstados Unidos aplicam, anualmente, maisde 45 milhões de quilos de fertilizantes eprodutos químicos para eliminar insetos,ervas daninhas e fungos. Na realidade, osmoradores utilizam quase 10 vezes maispesticidas por hectare de grama do queagricultores aplicam nas lavouras. Fertili-zantes e produtos químicos não-absorvi-dos diretamente pelas gramas e plantasfreqüentemente escoam para córregos ouinfiltram-se em aqüíferos, onde podemcontaminar a água potável e eutrofizar la-gos e lagoas. (Vide Quadro 3-4.)45

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Embora espargidores e sistemas maiseficientes de irrigação possam reduzir o con-sumo de água em jardins, está ocorrendouma mudança mais fundamental na maniaamericana por gramados, através de ummovimento emergente de paisagismo natu-ral e plantas nativas. Residências e empre-sas estão obtendo economias duradouras esubstanciais de água com o plantio de gra-ma nativa resistente à seca, proteção vege-tal, flores silvestres e plantas que vicejamnaturalmente em seus climas locais. Proje-tos em Prairie Crossing, uma subdivisão naperiferia de Chicago, e na sede da Sears,Roebuck & Company, em Hoffman Estates,Illinois, por exemplo, integram as caracte-

rísticas naturais da paisagem, em vez deeliminá-las. Igualmente, campos de golfecomo os do Prairie Dunes Country Club,em Hutchinson, Kansas, e The Landings, emSavannah, Geórgia, estão reduzindo o usoda água por meio de medidas como irriga-ção controlada pelo tempo, rega limitada dostees e fairways, uso de plantas nativas, con-servação das características naturais dosterrenos acidentados e manutenção orgâni-ca do solo e das plantas.46

A participação em organizações depaisagismo natural, como Wild Ones eEcological Landscaper, está aumentandorapidamente, demonstrando o desejo daspessoas por um relacionamento mais sa-

QUADRO 3-4. BEBENDO O GRAMADO E A FARMÁCIA DO VIZINHO

“É de manhã, você sabe onde estão os seusremédios?” pergunta Christian Doughton, daAgência de Proteção Ambiental dos EstadosUnidos, num artigo em The Lancet. “Muitoprovavelmente, alguns estão a caminho decórregos, rios e talvez até fazendas locais, naforma de biossólidos de esgoto utilizadoscomo fertilizante”. Num estudo deamostragem de 139 córregos em 30 estados, aU.S. Geological Survey constatou que 80%continham traços de pelo menos um produto,seja droga, hormônio endócrino-perturbador,inseticida ou outro produto químico – algunsem níveis que, comprovadamente, causamdanos a peixes e outras vidas aquáticas. Issonão deve surpreender, visto que os EstadosUnidos são os maiores usuários de pesticidase que mais de 3 bilhões de receitas sãofornecidas anualmente para quase metade dosamericanos que tomam, no mínimo, ummedicamento por dia. Estudos no Canadá,Reino Unido e Alemanha também constataramresíduos de produtos farmacêuticos e decuidados pessoais (PFCPs) em água doce,

inclusive protetores solares, antibióticos eplastificantes.

Praticamente nenhuma literatura médicadocumenta a extensão, riscos ou solução para oproblema das drogas como poluentes e seuefeito à saúde humana e ao meio ambiente. Nomomento, não há, a rigor, regulamentaçãoquanto a PFCPs contaminadores na águapotável. Pelo menos com os pesticidas,algumas comunidades não estão assumindoriscos. No Canadá, tanto o subúrbio deHudson, em Montreal, quanto o de Halifax, naNova Escócia, proíbem o uso cosmético(puramente estético) de pesticidas, como nosgramados. “Melhor errar por excesso desegurança do que sofrer enquanto se aguardacomprovação científica”, assinalou um lídercomunitário. Apesar de uma contestação à lei,por parte das indústrias químicas e dejardinagem, a Corte Suprema do Canadádeterminou que todos os municípioscanadenses têm o direito de proibir o uso depesticidas em propriedades públicas e privadas.__________________________________________FONTE: vide nota final 45.

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dio com a terra. Outros conscientizam-sequanto aos benefícios financeiros. ACIGNA Corporation, de Bloomfield,Connecticut, gastou cerca de US$ 63.000ao longo de cinco anos para convertergrande parte dos 120 hectares do seu gra-mado corporativo num aprazível descam-pado com trechos de flores silvestres, lu-crando várias centenas de milhares dedólares anuais em economia no uso deágua, fertilizantes, pesticidas e equipamen-tos e manutenção. Como disse o paisagis-ta da CIGNA, “o que devemos fazer, gas-tar 5.000 dólares em controle de pragas?”

Uso de Água Industriale Consumo de Bens

Materiais

As indústrias são responsáveis por cerca de22% de todas as extrações mundiais de águadoce; no entanto, têm uma participação bemmaior nos países industrializados (59% emmédia) do que nos países em desenvolvimento(10%). As demandas industriais nas econo-mias em desenvolvimento e emergentes es-tão aumentando rapidamente e competirãopelas escassas reservas tanto nas cidadesquanto nos campos. Ademais, as indústriasgeram grandes volumes de água servida, enos países em desenvolvimento grande partedesta continua sendo despejada, sem trata-mento, em rios e córregos vizinhos, poluin-do o pouco que resta de água potável.48

O volume total da demanda de água in-dustrial não é bem avaliado devido ao fatode as grandes indústrias freqüentementeextraírem água – sem medição – diretamen-te de seus poços ou de rios e córregos vizi-nhos. Mundialmente, as maiores indústrias

consumidoras de água incluem termelétricas,metalúrgicas e siderúrgicas, indústrias depapel e celulose, químicas, petrolíferas efabricantes de máquinas. A maioria utiliza osmaiores volumes de água em refrigeração,lavagem, processamento e aquecimento.49

Um número impressionante de usuáriosindustriais e comerciais reduziu suas deman-das hídricas de 10 a 90%, aumentando, aomesmo tempo, sua produtividade e lucros.(Vide Tabela 3-6.) Freqüentemente, essesinvestimentos em eficiência hídrica são pa-gos dentro de dois anos, gerando poupançade energia e também benefícios na preven-ção da poluição. Por exemplo, em 2002, aUnilever, multinacional produtora de alimen-tos e produtos para o lar e cuidados pesso-ais, consumiu em média 4,3 metros cúbi-cos de água por tonelada de produção, umaredução de um terço dos 6,5 metros cúbi-cos por tonelada consumidos em 1998.50

Embora para muitas indústrias a reduçãode custos seja a principal motivação para in-vestimentos em eficiência, existem tambémoutros incentivos, incluindo a necessidade decumprir as regras de licenciamento, avançosdas tecnologias de tratamento in-loco que per-mitem que a água de processamento sejareciclada e reutilizada e a disponibilidade deágua não-potável recuperada a custo baixo.Por exemplo, todo o esgoto de Cingapura étratado em seis estações de recuperação deágua para reutilização pelas indústrias, ajudan-do a preservar a água de alta qualidade paraconsumo humano e outras finalidades. Tarifasmais altas para água e esgoto também podemagir como um incentivo de conservação paraas indústrias; entretanto, tais estratégiastarifárias às vezes têm efeito contrário nos for-necedores, por motivarem os consumidores adesistir do sistema e abrir poços artesianos.51

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Tabela 3-6. Exemplos de Economia de Água Industrial pela Conservação

FONTE: Vide nota final 50.

Com a expansão de empresas industri-ais nos países em desenvolvimento, car-gas poluentes estão aumentando juntamentecom a demanda pela água industrial, amea-çando a vida aquática e a saúde humana.

As indústrias de alimentação e bebidas, ce-lulose e papel e têxtil são responsáveis pormais de três quartos das cargas poluentesda água nos países em desenvolvimento.Por exemplo, a água de enxágüe têxtil con-

Categoria Industrialou Produto

Laticínios(leite e derivados)

Computadores(fábricas elaboratórios)

Siderurgia

Farmacêuticos(pesquisa de ciênciade vida ebiofarmacêuticos)

Chocolate

ConstruçãoHabitacional

Produtos Agrícolas(frutas, legumes,vegetais e ervaslivres de pesticidas)

Cerveja

Empresa

United MilkPlc. Inglaterra

IBM, mundial

Columbia SteelCasting Co.Inc., NorthPortland, OR,EUA

Millpore Corp.,Jaffrey, NH,EUA

GhirardelliChocolate Co.,San Leandro,CA, EUA

Gusto Homes,Inglaterra

Unigro, Plc.Inglaterra

Anheuser-BuschInc., nacional,EUA

Economia

657.000 metroscúbicos/ano;US$ 405.000por ano

690.000 metroscúbicos/ano

1,63 milhão demetros cúbicos/ano US$ 588.000ao ano

31.000 metroscúbicos/ano;US$ 55.000ao ano

78.840 metroscúbicos/ano

50% de economiade água nasresidências(50 metroscúbicos/ano)

9.000–18.000metroscúbicos/ano;US$ 7.400ao ano

90.850 metroscúbicos/ano

Medidas de Eficiência Hídrica

Sistemas de membranas de osmose reversa (OR),recupera e trata o condensado do leite para reutilizaçãopela fábrica, eliminando a necessidade de abastecimentoexterno. O excesso da água recuperada é posto à vendapara outros usuários na área industrial.

A economia de água em 2000 foi de 4,6% do totalutilizado; 375.000 metros cúbicos por ano poupadoscom múltiplos projetos de eficiência hídrica e 315.000metros cúbicos poupados com reciclagem ereutilização.

Substituição do sistema de resfriamento por fluxoúnico, por torres de resfriamento recirculantes.Instalação de sistemas de reciclagem e tanques dearmazenagem para captação de águas pluviais ereutilização de água não-potável de lavagem.Otimização de práticas industriais.

Água servida de processamento, reciclada através detecnologia OR; investimento de US$61.000, retornadoem 1,2 anos em redução de custos de água, água servidae energia.

Instalação de anel recirculante de resfriamento de água,eliminando o uso de água potável para o resfriamentodo chocolate em grandes tanques.

O projeto Millenium Green envolveu a instalação desistema de coleta de água pluvial e armazenagemsubterrânea em 24 residências e escritório da empresa.Instalação também de sanitários de descarga dupla,chuveiros e sanitários aerados e aquecedores solaresde água.

Instalações seladas, com controle climático, utilizamo sistema Greengro Farming e incluem irrigação deprecisão e coleta de águas pluviais, requerendo 30%menos água por unidade de produção do que a irrigaçãoconvencional.

Hidrômetros instalados em todas as instalações paramedir o consumo. Equipamentos de garrafas e latasrecalibrados.

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tém tinturas que exaurem os níveis de oxi-gênio de rios e lagos quando despejada semtratamento. Ao captar e reciclar essas tin-turas dentro do processo fabril, as indús-trias podem reduzir as cargas poluentes eeconomizar em custos de insumos. EmGana, na África Ocidental, um programa-piloto, chamado de Sistema de Manejo deTroca do Estoque de Rejeitos, objetiva au-mentar a reutilização e reciclagem de rejeitosindustriais, a fim de proteger osecossistemas costeiros, fluviais e lacustres.Com o slogan “lixo de um, matéria-primade outro”, a iniciativa tem recebido umaresposta entusiástica das indústrias locais.52

Da mesma forma que escolhas individu-ais de dietas e paisagens podem fazer umagrande diferença no impacto humano sobrecorpos d’água, também o fazem as escolhasde consumo de bens materiais. (Vide Quadro3-5.) Praticamente tudo que se compra – deroupas a computadores e a automóveis –necessita de água para ser fabricado, e esteprocesso pode também resultar em poluiçãode córregos e lagos também. As pessoas quedirigem veículos utilitários esportivos, ávidosconsumidores de gasolina, em vez de carroseficientes no consumo de combustível, porexemplo, não estão apenas gastando cercade três vezes mais gasolina por quilômetrorodado, mas também estão indiretamente uti-lizando muito mais água, uma vez que sãonecessários 18 litros de água para produzirapenas um litro de gasolina.53

No credo ambientalista de reduzir,reutilizar, reciclar, a redução de comprasmateriais sempre tem lugar de destaque notopo. Quando as pessoas adquirem algo,todavia, podem diminuir seus impactos àágua e energia escolhendo produtos fabri-cados com materiais reciclados. Comprar

produtos de papel reciclado em vez de pa-pel virgem, por exemplo, poupa não só ár-vores e energia, mas também a água utiliza-da na manufatura do papel. E produtos dealumínio fabricados com sua sucata reque-rem apenas 17% da água que o mesmo pro-duto necessita se feito de alumínio bruto.54

Prioridades Políticas

Não há mistério algum sobre o fato de oenorme volume de água extraído para con-sumo humano ser desperdiçado e mal-ad-ministrado: as políticas que embasam deci-sões sobre a água, na maioria das vezes,fomentam ineficiências e más alocações, enão a conservação e uso sustentável. Emvez de nos desesperarmos frente a uma novaera de escassez hídrica, precisamos con-frontar velhos erros e desperdícios.

QUADRO 3-5. MEDIDAS QUEPODEMOS TOMAR PARAREDUZIR NOSSO IMPACTOSOBRE A ÁGUA DOCE

• Adquirir menos bens materiais.

• Adotar dietas nutritivas, com menoscarne vermelha.

• Selecionar plantas e gramas nativas parajardins e paisagismo e depender apenasdas chuvas.

• Instalar aparelhos e utensílios maiseficientes em termos de água e energia.

• Pressionar por normas de uso do soloque protejam áreas alagadas, aqüíferos ebacias hidrográficas.

• Participar de comissões locais de gestãode água, a fim de monitorar eimplementar estratégias de proteçãohídrica.

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Em primeiro lugar, é essencial quegovernos cumpram suas obrigações eprotejam a segurança pública da água.A maioria dos ecossistemas de águadoce não é avaliada nem valorizada pelomercado; todavia, sustentam nossaseconomias e vidas com serviços quevalem centenas de bilhões de dólaresao ano. Leis e regulamentos que sal-vaguardem essas funções são cruciais,pois as forças de mercado apenas – in-clusive a tarifação e comercializaçãoda água – nunca poderão proteger ade-quadamente valores não-cotados. A di-retriz da água de 2000, da União Eu-ropéia, a Lei da Água de 1998, da Áfri-ca do Sul, e um punhado de leis esta-duais dos Estados Unidos são exem-plos promissores de governos tentan-do assumir suas responsabilidades naproteção da segurança pública no quediz respeito à água.55

Governos e autoridades comunitári-as precisam instituir ou fortalecer regu-lamentos sobre a água subterrânea. Umrecurso coletivo clássico, a água sub-terrânea é vulnerável ao uso predatório,uma vez que o impacto conjunto de cadausuário, agindo por interesse próprio, éa exaustão do suprimento para todos. Ouso sustentável de aqüíferos renováveisexige que nossas retiradas não excedamo nível de recarga. Entretanto, comoassinalam os pesquisadores do InstitutoInternacional de Gestão da Água, em SriLanka, “em nenhum lugar do mundoexiste um regime tão perfeito efetiva-mente em ação... Pouquíssimo está sendofeito para reduzir a demanda da águasubterrânea ou economizar o seu uso”.56

No leste de Massachusetts, osmoradores secaram o Rio Ipswichdurante vários anos devidoà extração maciça de águasubterrânea para irrigaçãode jardins.

A água subterrânea não está apenas mal-regulamentada, mas também seu uso éfreqüentemente subsidiado sob várias for-mas. No Texas, os agricultores que bom-beiam água do aqüífero Ogallala, em que-da, podem pleitear um abatimento deexaustão em seu imposto de renda. Os agri-cultores indianos recebem energia subsidi-ada, no valor de US$ 4,5–5 bilhões ao ano,para bombear 150 bilhões de metros cúbi-cos de água subterrânea – um incentivoperverso para exaurir os aqüíferos nacio-nais. Embora sustentem a produção nocurto prazo, esses subsídios, na realidade,aceleram o ritmo de exploração excessivae o dia do ajuste final. Com a água subter-rânea contribuindo US$ 25–30 bilhões anu-ais para a economia agrícola da Ásia, urgea adoção e implementação de políticas quelevem a seu uso sustentável.57

Uma tarifa escalonada é um instrumen-to econômico que pode proporcionar umuso mais eficiente e eqüitativo da água.Com esse método, o preço unitário da águapara um consumidor aumenta juntamentecom o volume utilizado. Isso permite queum nível básico de água domiciliar tenhaum preço bastante baixo, enquanto ummaior uso é cobrado a uma taxa mais alta,de modo escalonado. Um estudo em 2002de 300 cidades indianas constatou queapenas 13% utilizam essas estruturas

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tarifárias de blocos ascendentes. Ademais,mesmo quando elas são aplicadas, os blo-cos de menor preço incluem, às vezes,muito mais água do que seria necessáriopara satisfazer as exigências básicas de umdomicílio. Em Bangalore, por exemplo, osdois primeiros blocos, conjuntamente,abrangeram 50 metros cúbicos de águapor mês, um consumo similar ao uso do-miciliar médio nos Estados Unidos.58

Particularmente nos locais ricos, só atarifa não desencoraja o uso pródigo da água.Nos domicílios de renda alta com extensosgramados, por exemplo, manter a gramaverde durante o ano todo é freqüentementemais importante do que a conta de água.Nessas áreas, o próximo passo é restringiro uso da água. No leste de Massachusetts,os moradores secaram o Rio Ipswich du-rante vários anos devido à extração maciçade água subterrânea para irrigação de jar-dins, que exauriu suas vazões de verão. Ogrupo conservacionista American Riversrelacionou o Rio Ipswich em 2003 comoum dos 10 rios mais ameaçados do país.Em maio, o Departamento de ProteçãoAmbiental estabeleceu restrições obrigatóri-as para a extração de água em cada cidadelicenciada a utilizar o Ipswich. Quando avazão atinge um determinado nível, essascomunidades instituem medidas legais deconservação hídrica. Devido a um verãochuvoso em 2003, ainda não foi realizadoum teste real dessa política. Mas deixa evi-dente que o interesse do estado na proteção

da vazão do rio assume prioridade sobre osinteresses particulares dos moradores namanutenção de seus gramados verdes.59

Juntamente com regulamentos rígidose tarifação mais efetiva, os mercados daágua podem ajudar a melhorar a eficiênciade uso e alocação. Com um teto estabele-cido nas extrações da bacia hidrográfica doMurray-Darling, na Austrália, por exemplo,a comercialização da água entre vendedo-res e compradores está ajudando a realocaro manancial disponível. A cidade de Adelaidepoderá, em breve, adquirir água dos agri-cultores, uma vez que já atingiu o limite desua extração do rio. A capacidade de nego-ciar água encoraja os consumidores aconservá-la, já que podem vender a que foipoupada e faturar uma renda extra. Ondeexistem títulos ou direitos claros sobre apropriedade da água, “limitar-conservar-e-negociar” pode ser uma estratégia eficazpara a proteção de ecossistemas e incre-mento da produtividade hídrica.

Finalmente, consumidores individuaistêm também que fazer importantes esco-lhas de política pessoal. Ao optar por umadieta sadia e menos intensiva no uso deágua, uma paisagem atraente e adequadaao clima e um estilo de vida com menosbens materiais, as pessoas poderão re-duzir seu impacto sobre os sistemas deágua doce da Terra, sem sacrificar suasatisfação pessoal. Essas opções pode-rão transformar os consumidores de águaem gestores da água.

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INCREMENTANDO A PRODUTIVIDADE HÍDRICA

Sabonetes Antibacterianos

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

“Livrar-se dos germes é hojemais divertido do quenunca”, diz o rótulo de umfrasco de sabonete líquidocom aroma de fruta Dial, omaior fabricante desabonetes antibacterianosdos Estados Unidos. Narealidade, o disparo naprodução e uso globais detais produtos apresenta algunsriscos não tão divertidos para asaúde e meio ambiente.

Sabonetes líquidos e gel para banhocom propriedades antibacterianastornaram-se cada vez mais populares nosúltimos anos. Nos Estados Unidos, 75%dos sabonetes líquidos e aproximadamente30% dos sabonetes em barra contêm agoratriclosan e outros compostos químicosformulados para atacar os germessuperficiais. Embora rotulada deantibacteriana, a maioria é na realidadeantimicrobiana, atacando tanto vírusquanto bactérias.1

O mercado mundial para sabonetes estáprojetado pra crescer continuamente, deUS$ 5,5 bilhões em 2003 para US$ 6,1bilhões em 2008, informa o Icon Group, umaempresa de pesquisa mundial de mercado. Omaior crescimento deverá ocorrer na Ásia eno Pacífico, onde a indústria de sabonetesprevê que o crescimento econômico

incentivará a demanda dosconsumidores por sabonetesincrementados, inclusiveantimicrobianos. Na Índia e China, ondeos sabonetes líquidos são vistos como

produtos caros de luxo, aProcter & Gamble estáagora produzindo umaversão antibacteriana de

seu sabonete em barra,Safeguard.2

Todos os sabões são produzidospor meio de uma reação química conhecidacomo saponificação, na qual um sal alcalino,como soda cáustica (hidróxido de sódio),potassa (hidróxido de potássio) ou barrela, éaquecido com uma gordura vegetal ouanimal (sebo) e água. No processo, agordura transforma-se em glicerol líquido(glicerina – que é normalmente removidapara outros usos cosméticos oufarmacêuticos) e sais ácidos graxos – queformam os coalhos do sabão bruto. Essescoalhos são fervidos em água, para remoçãode impurezas, despejados em fôrmas ecortados em barras.3

Alguns dos mais antigos restos desabonetes foram encontrados em potes debarros, datados de 2800 a.C., na Babilônia.Antes do aparecimento das versõesgermicidas, em 1948, os saboneteseliminavam os microorganismos, tornando asujeira e oleosidades superficiais

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ATRÁS DOS BASTIDORES: SABONETES ANTIBACTERIANOS

escorregadias o bastante para quepudessem ser esfregadas e enxagüadas.Desde a II Guerra Mundial, os produtosquímicos engendrados pelo homemalteraram a receita tradicional. Entre eles,surfactantes, que intensificam a espuma e asolubilidade, compostos antimicrobianos,tais como triclosan, e plastificantes,conhecidos como ftalatos.4

Do mesmo modo que qualquer indústria,a fabricação de sabonetes consomematérias-primas e energia, tais comocombustíveis fósseis para aquecer caldeiras,gerando poluição atmosférica quandoqueimados. Outros subprodutos incluemresíduos graxos sólidos e produtosquímicos que podem escoar, poluindo oscursos d’água. Mas não precisa ser assim.Na Tunísia, uma indústria que fabricasabonetes a partir de resíduos daprensagem do óleo de oliva instaloucaldeiras eficientes e controla as emissõesde resíduos na atmosfera e na água – e afábrica vem economizando mais dinheiro,anualmente, do que o custo inicial demodernização.5

Além do efluente industrial, existe oproblema do escoamento pelo ralo, após obanho, do sabonete usado. Um estudo doU.S. Geological Survey, de 2002, constatouque substâncias químicas em medicamentose detergentes – entre as quais triclosan eftalatos – estão penetrando nos cursosd’água dos Estados Unidos em baixasconcentrações, através dos esgotos. Isso épreocupante, já que os níveis aceitáveis nãoforam estabelecidos para água potável paraa maioria dessas substâncias.6

O triclosan e outros antimicrobianossuscitam questões preocupantes para asaúde e o meio ambiente. A fabricação detriclosan pode criar dioxinas altamente

tóxicas – compostos de cloro cancerígenos,perturbadores hormonais, que se dispersamfacilmente no meio ambiente e são recolhidosna cadeia alimentar. O triclosan também podecausar náusea, vômito e diarréia se ingerido,o que é um problema, já que os sabonetescom “sabor de fruta” podem induzir ascrianças a experimentá-los.7

Mais urgentemente, entretanto, aAssociação Médica Americana e os Centrosde Controle e Prevenção de Doenças(CCDs) estão advertindo contra o usodoméstico de sabonetes antibacterianos,uma vez que esses produtos contribuempara o aumento de bactérias resistentes amedicamentos. A Organização Mundial deSaúde lançou uma campanha contra o usoindiscriminado de antibióticos, observandoque doenças como tuberculose, pneumoniae malária revelaram-se resistentes a váriosantibióticos comumente usados em seutratamento. O triclosan age destruindo asenzimas nas paredes da célula da bactéria eassim elas não podem se reproduzir; esteataca a mesma enzima que o antibióticoisoniazid, usado para o tratamento datuberculose.8

Ademais, estudos demonstraram que ossabonetes antimicrobianos têm a mesmaeficácia no combate aos germes que ossabonetes comuns. “Constatamos que ossabonetes antimicrobianos eantibacterianos não possuem nenhumaqualidade superior aos sabonetes comuns”,declara Elaine Larson, professora Associadada Faculdade de Farmácia da ColumbiaUniversity e autora líder de um relatório doNational Institute of Health, de 1992, sobreo assunto. Os autores recomendam lavar asmãos com sabonete comum e água mornaapós a ida ao sanitário e antes de prepararos alimentos como o melhor modo de

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ATRÁS DOS BASTIDORES: SABONETES ANTIBACTERIANOS

prevenir resfriados e doenças transmitidaspelos alimentos.9

Como também, apesar da obsessãomoderna pela limpeza, uma casa semnenhuma bactéria não é, necessariamente,uma boa coisa. Na realidade, pode ter umefeito oposto: um estudo recente chegou àconclusão de que adolescentes que viveramem fazendas e eram regularmente expostos àpoeira e germes eram menos propensos aasma e sintomas alérgicos do que osadolescentes criados em outros ambientesrurais. Pesquisadores sugerem que aexposição a bactérias, fungos e poeira podena verdade ajudar a fortalecer os sistemasimunológicos das crianças.10

A solução? Os consumidores devemparar de comprar sabonetes e outrosprodutos de limpeza antimicrobianos, umaatitude que pode eventualmente forçar aindústria a reduzir a intensidade

promocional e produtiva em todo o mundo.“Os sabonetes e loções antibacterianosdevem ser destinados a pacientes doentes,não a uma família sadia”, observou Dr.Stuart Levy, da Alliance for Prudent Use ofAntibiotics, da Universidade Tufts. Paraconter a disseminação de germes noshospitais, os CCDs aconselham queprofissionais de saúde usem gel com basealcoólica para as mãos, pois não apresentamos mesmos riscos de resistência aosantibióticos que os antimicrobianos. O gelpode também ser usado nos lares onde ummembro da família seja portador de AIDS ououtro problema do sistema imunológico.Mas como esses produtos não podemlimpar a velha sujeira comum, eles não sãosubstitutos para o simples e velhosabonete.11

— Mindy Pennybacker, The Green Guide

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CONTROLANDO NOSSA ALIMENTAÇÃO

C A P Í T U L O 4

Controlando NossaAlimentação

Brian Halweil e Danielle Nierenberg

Em meados dos anos 80, os cafeicultoresmexicanos informaram à organização ho-landesa de ajuda Solidaridad que mal con-seguiam manter-se. Enquanto a fartura decafé no mercado mantivera baixos os pre-ços do produto in natura, os programasde ajuda internacional dos países industri-alizados pouca utilidade tinham. Além dis-so, a Solidaridad soube que os produtorese suas famílias adoeciam quando aplica-vam os fungicidas e outros agrotóxicosem voga em todo o mundo. Tudo issosuportado em prol de cada xícara de ex-presso e cappuccino tomada pelos holan-deses, milhares de quilômetros de distân-cia – e não por mexicanos.1

A Solidaridad reagiu, unindo-se comoutros grupos holandeses de ajuda paracriar a Fundação Max Havelaar. (MaxHavelaar foi uma personagem escrupu-losa de uma novela holandesa do séculoXIX, que retratava a crueldade do trata-mento colonial nas Índias Orientais Ho-landesas.) A Fundação desenvolveu um

selo de “comércio justo”, que garante aosprodutores de café um preço fixo acimados níveis internacionais – um preço quecubra seus custos de produção e asse-gure uma vida decente – e estabelece umasérie de outras condições sociais eambientais, desde o direito a se organiza-rem em cooperativas até certos requisi-tos básicos de segurança. Em contrastecom o relacionamento injusto, em que obebedor de café aparentemente beneficia-se – embora involuntariamente – do so-frimento do produtor, os compradores docafé Max Havelaar pagam um pequenoágio para assegurar uma vida melhor aosprodutores e comunidades no outro ex-tremo do negócio.2

A idéia não era original. Já nos anos50, grupos como Oxfam, no Reino Uni-do, Ten Thousand Villages, nos EstadosUnidos, e Stichting Ideele Import, naHolanda, ofereciam produtos dos paísesem desenvolvimento. Porém, a influên-cia dessas “lojas do Terceiro Mundo” eralimitada e o mercado pequeno.3

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CONTROLANDO NOSSA ALIMENTAÇÃO

A inovação efetiva da Max Havelaarfoi “introduzir alimentos de comércio jus-to ao mercado de massa e operar comempresas comerciais”, de acordo comRita Oppenhuizen, que dirige as relaçõespúblicas da Fundação. Quinze anos apóso primeiro pacote de café com o rótuloMax Havelaar chegar ao porto deRotterdam, a marca pode ser encontradaem pelo menos 90% dos supermercadosholandeses e detém uma participação demercado de 3%. A Câmara Baixa do Par-lamento, a maioria dos ministérios e qua-se todos os governos provincianos ser-vem o café Max Havelaar. Chocolate como rótulo Max Havelaar foi introduzido em1993 e é utilizado por quatro dos princi-pais chocolateiros holandeses. O mel se-guiu-se em 1995. As primeiras bananascertificadas pela Max Havelaar chegaramem 1996 (e hoje representam 5% do mer-cado holandês), e o chá, em 1998.4

Mais recentemente, a noção de que osalimentos poderiam ser “justos” evoluiuainda mais. Nos Estados Unidos, a UnitedFruit Workers desenvolveu uma campa-nha de maçãs justas, que é um programade colaboração entre trabalhadores rurais,produtores de maçã e supermercados paraassegurar aos trabalhadores nos poma-res – muitos dos quais são imigrantesrecém-chegados – salário, direito de or-ganização e acesso aos benefícios soci-ais básicos. Agricultores e a Associaçãodo Solo no Reino Unido colaboram paraestender a distinção “comércio justo” aprodutos agrícolas locais, argumentan-do que os caprichos do mercado livre e aconsolidação do agronegócio causaramàs áreas rurais da Grã-Bretanha os mes-mo danos provocados na África.5

Uma Revolução emCada Garfada

Naturalmente as pessoas não comem ape-nas por uma questão de sobrevivência,mas também para socializarem-se, porprazer e satisfação e definirem quem são.Cada vez mais, as pessoas estão comen-do para fazer uma declaração política eajudar a mudar a forma como os produ-tores cultivam suas lavouras. Alimento“justo” é apenas uma entre um crescentenúmero de distinções que as pessoas hojeutilizam para assegurar que seus hábitosalimentares não destruirão o planeta ouos produtores. “Certificação orgânica”,para frutas e legumes, “criado a pasto”,para carne bovina, “pescado sustentavel-mente”, para frutos do mar, e “benéficoàs aves”, para café, cacau e lavouras deflorestas tropicais, são outros rótulos quese vêem com mais freqüência hoje emdia. Os consumidores que procuram es-ses produtos não estão simplesmentebuscando uma promoção ou embalagemvistosa: são proativos e inquisitivos.Porém, essas distinções continuam àmargem – apesar de uma cozinha decontestação em rápido crescimento, masrelativamente pequena – e a maioria daspessoas não estão prontas a se veremcomo comedores ativistas nem comoconhecedores das origens íntimas de suapróxima refeição. O aumento do comér-cio internacional de alimentos e a proli-feração de alimentos altamente proces-sados e embalados distanciaram aindamais a maioria das pessoas daquilo quecomem, tanto geográfica quanto psico-logicamente.6

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Mas, devido à humanidade destinar ta-manha parcela da superfície do planeta paraa produção de alimentos – 25%, mais doque a área florestal mundial –, é impossívelseparar a forma como os agricultores cul-tivam os alimentos da saúde de rios, áreasalagadas, florestas e nosso ambiente devida. De acordo com um relatório da Uniãode Cientistas Engajados, nossas escolhasalimentares equiparam-se aos transportescomo a atividade humana com maior im-pacto sobre o meio ambiente. Um estudoeuropeu constatou que o consumo de ali-mentos é responsável por 10 a 20% doimpacto ambiental do domicílio médio.Quando Annika Carlson-Kanyama, da Uni-versidade de Estocolmo, comparou o vo-lume de emissões de gás de estufa geradopor diferentes opções alimentares, verifi-cou que uma refeição rica em carne, comingredientes importados, emite nove vezesmais carbono que uma refeição vegetaria-na feita com ingredientes produzidos local-mente, que não precisam ser transporta-dos a longas distâncias.7

Não importa o que se adquira, seja a pes-ca marinha chilena de traineiras industriaisque varrem os peixes dos oceanos, maçãsimpregnadas de pesticidas transportadas dooutro lado do planeta ou carne criada emfábricas gigantescas inchadas com esterco,muitas compras de alimentos hoje susten-tam formas destrutivas de agricultura. (VideQuadro 4-1.) Para as pessoas que vivem emnações ricas, onde não há fome generaliza-da, a ubiqüidade e a modicidade mascarammuitos desses problemas. O “charme” as-sociado a alimentos de luxo também enco-rajou os ricos a fecharem os olhos ao modocomo tais itens chegam às suas mesas. (VideQuadro 4-2.)8

A alta dependência de produtos quí-micos, desde antibióticos e pesticidas atéfertilizantes e preservativos alimentícios,representa a maneira “convencional” deproduzir alimentos – ou seja, a maioriados ministérios de agricultura, colégios eagências de extensão agrícola promovemcampos de monocultura e um coquetelcorrespondente de produtos químicos.Os agricultores aceitam exporem-se aagrotóxicos como um risco inevitável quegostariam de não assumir, e os consumi-dores aceitam os resíduos desses tóxi-cos como uma realidade infeliz que gos-tariam de esquecer. Muitos dos riscossuportados por agricultores, consumido-res e empresas alimentícias estão envol-vidos na mesma síndrome de consumoconspícuo que permeia outros aspectosda economia. (Vide Capítulo 1.) Porexemplo, os defensores de lavourastransgênicas, freqüentemente criadas paracombinar o material genético de espéci-es totalmente não-relacionadas que nãose reproduziriam naturalmente, sugeremque essas lavouras são essenciais paraajudar a alimentar a crescente populaçãoglobal e baixar os preços dos alimentos.Quaisquer riscos advindos dessa últimageração de tecnologia agrícola, eles ar-gumentam, são superados pelos benefí-cios de mais alimentos, e alimentos maisbaratos. (Atualmente, essa tecnologia éutilizada não para alimentar os famintos,mas principalmente para cultivar milho esoja para ração de gado e o crescenteapetite humano por carne.)9

Talvez o exemplo mais evidente deconsumo em desordem no suprimento dealimentos seja as cinturas mais largas e oaumento perturbador da obesidade, que

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está se tornando uma epidemia, não ape-nas nas nações mais ricas, mas nos cen-tros urbanos de países pobres também.Nutricionistas, psicólogos e defensores deconsumidores concordam que pelo menosuma das causas da epidemia de obesidade

QUADRO 4-1. VARRENDO OS MARES

Frotas industriais já pescaram pelo menos90% de todos os grandes predadoresoceânicos – atum, marlim, peixe-espada,tubarões, bacalhau, halibut, arraias e linguados– só nos últimos 50 anos, conforme um estudoem Nature, em 2003. “Somos tão bons namatança”, diz o pesquisador sênior daUniversidade Dalhousie, no Canadá, RansomMyers, “que nem sabemos quanto jáperdemos”. De acordo com oceanógrafos não-ligados ao estudo, essa pesquisa fornece a“melhor evidência até agora de que as recentescolheitas de peixe têm sido sustentadas emantidas em níveis altos apenas porque asfrotas têm buscado e exploradoagressivamente populações de peixes cada vezmais distantes”.

O uso generalizado de traineiras possantes(imensos barcos que raspam, literalmente, ofundo do oceano) e outros que arrastamlinhas com anzóis com vários quilômetros deextensão, tem sido uma receita mortal para amaioria dos grandes peixes predadoresmundiais. Quando esses predadoresdesapareceram dos oceanos, peixes menoresconseguiram incrementar suas populações,porém só por pouco tempo, até que elas,também, foram pescadas excessivamente. Sãoaqueles peixes maiores, conforme BorisWorm, co-autor do Instituto de CiênciasMarinhas da Alemanha, que “valorizamosmais” por seus serviços ao ecossistema e àeconomia. E se os peixes desaparecerem,

também desaparecerão os milhões decomunidades e empresas que dependem delespara alimento e renda.

A solução para esse problema, dizem ostécnicos, exige cooperação internacional. Em2002, na Cúpula Mundial sobreDesenvolvimento Sustentável, 192 naçõesassinaram um acordo voluntário para restauraros estoques pesqueiros à sua produçãomáxima sustentável até 2015. Isso significaráreduzir a porcentagem de peixes mortosanualmente, através da redução de cotas, cortede subsídios, redução do bycatch (pescadoindesejado que é descartado por não sereconomicamente viável) e criação de redes dereservas marinhas para proteção de estoquespesqueiros.

Em âmbito local, organizaçõesconservacionistas marinhas estão ajudando osconsumidores a identificarem peixessustentáveis nos mercados e restauranteslocais, fornecendo fichas práticas deinformação. De tamanho adequado para cabernuma carteira, essas fichas fornecem umarelação abreviada de opções de espéciesecologicamente amigáveis. A Seafood ChoicesAlliance, uma coalizão de chefs, hoteleiros,atacadistas, varejistas e pescadores, foi umpasso além. Está incentivando os restaurantes,hotéis e mercados a não venderem espéciesque estão em declínio.__________________________________________FONTE: vide nota final 8.

é a tendência cada vez maior de as em-presas de alimentos, em busca de clien-tes, inundarem a mídia com publicidade etornarem os alimentos tão ubíquos quan-to possível – uma combinação que torna agula quase inevitável.10

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QUADRO 4-2. ALIMENTOS DE LUXO

Do “foie gras” às barbatanas de tubarão e aocaviar, os consumidores em todo o mundosempre almejaram alimentos raros eexóticos, como símbolos de riqueza echarme. Pagam caros por eles, apesar do seuvalor nutricional, às vezes, marginal: ocomércio de US$ 57 bilhões de café, cacau,vinho e fumo vale mais do que o comérciointernacional de grãos. O crescimento dasclasses consumidoras em países como aChina e Índia significa que mais pessoas emtodo o mundo têm acesso a esses alimentos.A distinção desses itens advém, em parte,do seu alto preço e escassez, embora issoinvariavelmente mascare as condiçõesbrutais e ecologicamente desastrosas portrás da produção.

Consideremos o “patê de foie gras”.Embora os franceses consumam 90% detodo o “foie gras”, este é considerado umaiguaria por consumidores ricos em todo omundo. O nome, que significa literalmentefígado gordo, dá pouca indicação de como éproduzido. O “foie gras” é feito forçandopatos e gansos a ingerirem grandes volumesde alimento através de tubos. Isso faz seusfígados crescerem de forma anormal –chegam a pesar mais de 10 vezes o tamanhode um fígado normal de aves – sem falar nasérie de outros problemas de saúde,incluindo hemorragia hepática, lesões nagarganta e até mesmo asfixia.

O comércio global do caviar afetou o bem-estar animal de forma diferente. Caviar é aova não-fertilizada da fêmea do esturjão e,mais recentemente, do salmão, da espátula eoutras espécies que se popularizaramquando as populações do esturjãoencolheram. Pesca predatória, perda dehabitat, poluição e as lentas taxas dereprodução desses grandes peixescontribuíram para o declínio mais marcantenos estados da ex-União Soviética no MarCáspio, fonte de mais de 90% da ova doesturjão. Técnicos pesqueiros especulamque todas as espécies de esturjão estão sobalgum tipo de ameaça de extinção; o esturjãobeluga, a fonte mais famosa de caviar, talvez

não mais se reproduza na natureza. Só osamericanos importam mais de 40.000 quilosde caviar por ano –representando mais de 40% das vendasmundiais – apesar do preço de US$ 2.000por quilo.

Pescadores também chegam a matar 100milhões de tubarões a cada ano paraalimentar o apetite mundial por carne detubarão e sopa de barbatana de tubarão –uma iguaria na China desde 960 d.C., e hojevenerada na cozinha chinesa em todo omundo. Os caçadores capturam e cortam asbarbatanas com os tubarões ainda vivos,lançando-os de volta ao mar, onde morremafogados ou de hemorragia. Na Ásia, oscomerciantes podem chegar a oferecer 30–40espécies diferentes e podem vender asbarbatanas até a US$ 400 por quilo. Mas,do mesmo modo que o esturjão, os tubarõesreproduzem-se lentamente e a pescapredatória está provocando uma quedarápida em seus estoques.

Grupos de proteção aos animais,ecólogos, biólogos marinhos, chefs e outrosgrupos interessados estão envidandoesforços para proibir e estigmatizar certostipos de cozinha de luxo e, em termos maisgerais, tentar fazer com que as pessoasreflitam antes de comer. Defensores do bem-estar dos animais fazem campanhas paraque os restaurantes e chefs nos EstadosUnidos e Grã-Bretanha retirem o “foie gras”de seus cardápios. Na Holanda, os chefsvoluntariamente fizeram isso (embora osfregueses ainda peçam), e outros paísesproibiram a alimentação forçada de patos egansos. A Convenção sobre o ComércioInternacional de Espécies da Fauna e FloraSilvestre Ameaçadas de Extinção solicitou oestabelecimento de cotas mais rígidas depescado e exportação, como também umsistema universal de rotulagem de caviar.Órgãos internacionais também empenham-se na proibição da prática destrutiva decoleta de barbatanas de tubarões._________________________________________FONTE: vide nota final 8.

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Parte do papel evolutivo do consumi-dor incluirá entender que – embora possaparecer polêmico – o alimento barato podenem sempre ser desejável, particularmentequando o preço marcado não reflete ossubsídios que os governos concedem aprodutores ou o custo da limpeza dos pro-blemas ambientais causados pela agricul-tura. Pesquisas recentes na Alemanha, Es-tados Unidos e Reino Unido revelam queas pessoas pagam bilhões de dólares, anu-almente, para limpar a poluição e lidar comos outros custos associados à agriculturamoderna: desde a remoção de pesticidas daágua potável, passando pelos reparos aosdanos da erosão do solo, até a perda deaves e outras vidas silvestres.11

Preços artificialmente baixos tambémmascaram o fato de que alimentos cultiva-dos na vizinhança e consumidos sazonal-mente podem ser, quase sempre, mais bara-tos e mais sadios do que os alimentos culti-vados e transportados de milhares de quilô-metros de distância. Por exemplo, levanta-mentos realizados no sudoeste da Inglaterrarevelaram que alimentos vendidos em cen-trais de abastecimento e através de esque-mas de entregas diretas das fazendas – in-clusive frutas, legumes, carne, ovos e pro-dutos com certificação orgânica – eram, emmédia, 30–40% mais baratos do que os mes-mos produtos nos supermercados locais.12

Embora os executivos das empresas dealimentação e economistas freqüentementeapontem a demanda do consumidor poralimentos baratos como o motivador bási-co da forma como cultivamos, os consu-midores causaram pouco impacto diretosobre a forma como a produção de alimen-tos evoluiu. Entretanto, isso não quer dizerque os consumidores não tenham força.

Boicotes de empresas de alimentos e deprodutos, movimentos lobistas de comu-nidades locais contra certos pesticidas e aseleção de vários alimentos com selo eco-lógico são exemplos do poder que os con-sumidores podem exercer para influenciara agricultura.

À primeira vista, forçar gigantes doagronegócio a mudar pode parecer umafantasia; todavia, a McDonald’s recente-mente, respondendo às preocupações deativistas de direitos animais e ambientalistas,encorajou seus fornecedores a mudaremcertas práticas industriais. E Kraft, a maiorempresa de alimentos do mundo, anunciouplanos para parar com sua publicidadedirigida às crianças, reduzir o tamanho desuas porções e eliminar alguns dos seusprodutos mais nocivos à saúde. WilliamVorley, do Instituto Internacional para oMeio Ambiente e Desenvolvimento, argu-menta que o alto nível de concentração doagronegócio, em que apenas um punhadode grandes empresas controlam cada eta-pa da cadeia alimentar, pode na realidadefacilitar esse tipo de ativismo, uma vez queos alvos são relativamente poucos e óbvi-os. Essa lógica ajudou a deslanchar o pro-jeto “Corrida ao Topo”, para “direcionar aspoucas redes de supermercados que do-minam o mercado nos Estados Unidos paraum sistema alimentar mais verde e justo”.A concentração “torna os varejistas maissensíveis às campanhas desenvolvidas emtorno da ética, segurança ou meio ambien-te”, observa Vorley, porque nenhuma rededeseja aparecer como a menos ética pe-rante o grande público.13

Embora estas pareçam ações isoladas deconsumidores, objetivam assumir o contro-le de como o alimento é produzido e afastar

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CONTROLANDO NOSSA ALIMENTAÇÃO

o sistema global de alimentos de sua trajetó-ria atual. As manifestações locais dessa “de-mocracia alimentar” serão naturalmente di-ferentes em todo o mundo, e as motivaçõesnem sempre serão humanitárias, mas inclui-rão preocupações mais egoístas como sa-bor, segurança alimentar, saúde pessoal e apreservação de espaços abertos. As ofertasnos supermercados comuns são, obviamen-te, infindáveis. Mas algumas das mudançasmais profundas que os “comedores” podemfazer incluem repensar sua relação com acarne vermelha, selecionar alimentos pro-duzidos sem agrotóxicos e comprar alimen-tos produzidos localmente. A carne repre-senta o segmento mais intensivo em recur-sos da nossa dieta; agrotóxicos mantêm osprodutores atados a uma paisagem agrícolamonótona; e os alimentos locais represen-tam a melhor esperança de devolver o podertanto para as pessoas que cultivam os ali-mentos como àqueles que os consomem.

Da Fazenda à Fabrica – ede Volta à Fazenda

Como a maioria dos suínos no Centro-Oestedos Estados Unidos, as mais de 200 por-cas criadas na fazenda de Paul Willis, emIowa, adoram comer milho. Mas os ani-mais de Willis têm uma dieta e estilo de vidamuito diferentes dos outros 15 milhões deporcos criados no estado. Juntamente comos grãos que comem diariamente, os por-cos de Willis pastoreiam em campos, nãoestando confinados nas fábricas de con-creto que dominam a produção suína ame-ricana. Os animais de Willis não só têm aoportunidade de exibir seus comportamen-tos naturais e instintivos, como fuçar por

comida, brincar e aninhar-se, mas a carneque produzem é mais sadia e saborosa doque a produzida em fazendas industriais.14

Uma vez que os porcos se dão bem sobessas condições mais naturais, Willis podecriá-los sem uso de antibióticos eestimuladores de crescimento, o que reduzseus custos. E em vez de vender a carnepara uma das grandes empresas que con-trolam a maior parte da produção suína dosEstados Unidos – Smithfield ou IBP –,Willis comercializa sua carne através doNiman Ranch, uma empresa da Califórnia,formada em 1982 para distribuir carne deanimais criados humanitariamente aos con-sumidores e restaurantes.15

Willis é parte de um movimento cres-cente de criadores e consumidores paradevolver os rebanhos de volta às suasraízes. Embora a mudança possa parecerantiquada, produtores que criam animais aoar livre – e consumidores que adquirem acarne rotulada como “alimentada a pasto”ou free-range – estão ajudando a limpar oque se tornou o setor mais ecologicamentedestrutivo e insalubre da produção animal.(Vide Figura 4-1.) A produção global decarne quintuplicou desde 1950, e a fazen-da industrial é o método de produção como crescimento mais acelerado em todo omundo. Sistemas industriais são responsá-veis por 74% da produção mundial de aves,50% da produção suína, 43% da bovina e68% da produção de ovos. Os países in-dustrializados dominam a produção, masas nações em desenvolvimento estão ex-pandindo-se rapidamente e intensificandoseus sistemas produtivos. De acordo coma Organização das Nações Unidas para Ali-mentos e Agricultura (FAO), a Ásia possuio setor pecuário de maior desenvolvimen-to, depois da América Latina e Caribe.16

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Ração• Uma caloria de carnebovina, suína ou de avenecessita de 11– 17calorias de ração.• 95% da safra de soja éconsumida por animais, enão pessoas.• Ração contendo farelo decarne e osso pode causar adoença da vaca louca, queafetou milhares de cabeçasde gado nos paísesindustrializados.

Água• A produção de 8 onças decarne bovina requer25.000 litros de água.

Aditivos• Vacas, porcos e frangosrecebem 70% de todas asdrogas antimicrobianas dosEstados Unidos.

Combustíveis Fósseis• Uma caloria de carnebovina consome 33% maisenergia de combustívelfóssil do que uma caloriade energia da batata.

Alguns podem argumentar que a pro-dução moderna de carne é a única maneirade atender ao apetite crescente por ela emtodo o mundo. Em 2020, as populações dospaíses em desenvolvimento consumirãomais de 39 quilos per capita – o dobro doque se comia nos anos 80. Nos países in-dustrializados, todavia, as pessoas aindaconsumirão o maior volume de carne – 100quilos por ano em 2020, ou o equivalente àlateral de um boi, 50 frangos e 1 porco.

Todavia, é questionável se o sistema quefornece toda essa carne poderá persistir,uma vez que aumentam suas deficiências eprosperam alternativas como vegeta-rianismo e carne criada em pasto.17

Os problemas em cascata das fazendasindustriais começam com as condições res-tritas e a alimentação do confinamento. Va-cas são ruminantes, o que significa que di-gerem gramíneas, leguminosas e resíduosagrícolas. Mas sua ração em confinamento

Fonte: vide nota final 16.

Figura 4-1. Carne Industrial: Insumos e Produtos

INSUMO PRODUTO Esterco• Esterco da atividade suínaintensiva armazenado emlagoas pode infiltrar naágua subterrânea ou poluiráguas superficiais vizinhas.

Metano• Gado com flatulênciaemite 16% da produçãomundial de metano, umpoderoso gás de estufa.

Doença• O consumo de produtosanimais com alto teor degordura saturada ecolesterol está ligado aocâncer, doenças cardíacas eoutras doenças crônicas.• As condições dasfazendas industriais podemdisseminar E. coli,Salmonella e outraspatogenias veiculadas pelosalimentos.• A doença de Creutzfeldt-Jakob, variante humana dadoença da vaca louca,matou pelo menos 100pessoas.

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consiste de um misto de milho e soja, já quevacas e outros animais sob essa dieta po-dem adquirir peso rapidamente – e gado maisgordo obtém maior preço. Embora muitosconsumidores tenham se adaptado ao sa-bor, textura e aparência da carne industrialentremeada de gordura, esse gado alimenta-do a grãos tem vários custos ocultos. Emprimeiro lugar, as vacas tendem a sofrer deinchaço, acidose, abscessos hepáticos, ga-ses e outros sintomas dessa dieta rica. Se-gundo, a dieta padrão nas fazendas industri-ais tem sido ligada também à disseminaçãode patogenias transmitidas por alimentos,como Escherichia coli 0157:H7, que podecontaminar a carne ou legumes, se o ester-co bruto for utilizado como adubo. Verifi-cou-se que a dieta de grãos também enco-raja o desenvolvimento do micróbio nocivono estômago da vaca, enquanto uma dietagramínea elimina o micróbio.18

Essa é uma das razões por que os reba-nhos são alimentados com níveis baixos deantibióticos. Nos Estados Unidos, o gadobovino consome oito vezes mais antibióti-cos por volume do que os seres humanos.De acordo com a Organização Mundial deSaúde e a FAO, o uso generalizado dessasdrogas na pecuária está ajudando a criarmicróbios resistentes a antibióticos e difi-cultando o combate a doenças tanto emanimais quanto em seres humanos. Porém,as condições amontoadas e insalubres en-fraquecem ainda mais os animais eSalmonella, E. coli e outras doenças mor-tais podem disseminar-se rapidamente numrebanho pouco saudável.19

Animais criados em condições de ajun-tamento, diz Ian Langford, da Universida-de de East Anglia, encoraja o desenvolvi-

mento e disseminação de microorganismosna carne, uma vez que freqüentementechegam aos matadouros cobertos de fe-zes. “O problema”, de acordo comLangford, “não está no consumidor cui-dar bem do que come, e sim... no proces-so industrial do alimento”.20

Esses tipos de inovações e tecnologiasdas fazendas industriais modernas têm opotencial de causar desastres na segurançaalimentar. Por exemplo, a encefalopatiaespongiforme bovina (BSE, conhecidacomo doença da vaca louca) é causada porum vírus transmitido pela ração feita comresíduos de outros ruminantes, podendo serdisseminado para seres humanos que con-sumam a carne contaminada. Desde seusurgimento no Reino Unido, em 1986, aBSE tem sido detectada em 33 países, eautoridades sanitárias calculam que 139pessoas em todo o mundo sucumbiram àdoença de Creutzfeldt-Jakob, variante dadoença em seres humanos.21

Igualmente, surtos de gripe do frangoem granjas abarrotadas de galinhas emHong Kong, durante os últimos cinco anos,provocaram o abate maciço de milhares defrangos. A doença saltou a barreira das es-pécies pela primeira vez em 1997, matan-do 6 das 18 pessoas contaminadas. Em2003, a gripe do frango disseminou-se en-tre seres humanos novamente, matandoduas pessoas. Dr. Gary Smith, da Facul-dade de Medicina Veterinária, da Universi-dade da Pensilvânia, alerta que essa e ou-tras doenças continuarão a disseminar-se,porque “a forma moderna de criação en-volve maior deslocamento de animais en-tre fazendas do que no passado... O pro-blema é que a pecuária opera em âmbito

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global, nacional e regional”. A recente epi-demia de aftosa no Reino Unido é um exem-plo perfeito de como umas poucas vacaspodem disseminar a doença através de umanação inteira.22

Além das quebras na segurança alimen-tar, nutricionistas constatarem que o gadoalimentado com grãos não é tão sadio quan-to o alimentado com capim. Animais con-finados acumulam ácidos graxos Ômega 6(a má gordura), que estão ligados ao cân-cer, diabetes, obesidade e distúrbiosimunológicos. Em contraste, a carne ali-mentada a pasto contém ácidos graxosÔmega 3, como aqueles encontrados empeixes gordurosos, que ajudam a reduzir ocolesterol. Além disso, produtos alimenta-dos a pasto têm níveis mais altos de ácidolimoléico conjugado, que pode bloquear odesenvolvimento de tumores e reduzir orisco de obesidade e outras doenças.23

Essas razões de saúde motivaram mui-tas pessoas a preferirem carnes alimenta-das a pasto, sem antibióticos, hormôniosou qualquer outro insumo utilizado em fa-zendas industriais. Mas as pessoas que li-mitaram seu consumo de carne podem tam-bém estar interessadas nas implicações eco-lógicas de retornar os animais ao pasto. Deacordo com o cientista canadense VaclavSmil, alimentar os animais com grãos é“altamente ineficiente e um uso absurdo derecursos”. A produção de apenas uma ca-loria de carne – bovina, suína ou aviária –requer 11–17 calorias de ração, conformeSmil, enquanto animais criados em pastosquase não precisam de grãos. Conseqüen-temente, uma dieta com alto teor de carnealimentada a grãos poderá exigir duas aquatro vezes mais terra do que uma dietavegetariana. Quando as pessoas comem

menos carne, é pouco provável que osgrãos não-utilizados cheguem a bocas fa-mintas, mas significa efetivamente que ha-verá consideravelmente menor pressão so-bre terras agrícolas para cultivar gigantes-cas monoculturas de milho e soja.24

A reversão dos problemas de saúde eambientais causados por nosso apetite porcarne moderna significará consumir me-nos produtos animais. Animais criados empastos não se desenvolvem com a mesmavelocidade que os animais confinados, e aspastagens sustentarão menos animais doque podem ser espremidos em confi-namentos. Mas a demanda pela carne estácrescendo, especialmente no mundo emdesenvolvimento, onde o aumento da ren-da e desenvolvimento urbano estão mudan-do os hábitos alimentares. De acordo comDavid Brubaker, ex-vice-presidente execu-tivo e presidente do Conselho da PennAgIndustries, as pessoas nas nações em de-senvolvimento não têm o luxo da escolhaentre carnes alimentadas a pasto ou orgâ-nicas. Em vez disso, galgam a escadaprotéica e seguem o mau exemplo de pro-duzir e consumir produtos animais de bai-xa qualidade impostos pelos Estados Uni-dos e outros nações de fast-food. Coibiresse apetite significará encorajar as naçõesem desenvolvimento a preservarem osmétodos tradicionais de criação de gado,que tanto sustentam as economias locaiscomo enriquecem o meio ambiente.25

Os insumos ineficientes das fazendasindustriais são espelhados nos produtosineficientes em termos de dejetos. Quandodejetos do gado são utilizados para adubarlavouras, enriquece o solo e é a parte es-sencial de uma fazenda sadia – uma dasrazões principais de os agricultores em todo

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o mundo criarem animais. Todavia, o dejetoproduzido por milhares de animais emconfinamento geralmente excede a área deterra disponível para manejá-lo. Assim, oesterco transforma-se de valioso recursoagrícola para resíduo tóxico. O estercocontém nitratos, que em altas concentra-ções podem causar metemoglobinemia(síndrome do bebê azul), câncer, flores-cência de algas e eutrofização de águassuperficiais. As lagoas utilizadas para ar-mazenar resíduos líquidos também sãovulneráveis a desastres naturais, como acon-teceu na Carolina do Norte, quando rom-peram durante o Furacão Floyd, em 1999,poluindo quilômetros de cursos d’água comexcremento e causando uma mortandademaciça de peixes.26

Agricultores que começam a ter umapercepção diferente do papel dos animaisfreqüentemente usufruem uma série debenefícios inesperados. Nas Filipinas,Bobby Inocêncio mudou a forma de mui-tos filipinos produzirem e consumirem fran-go. Anteriormente um produtor industrial,Inocêncio criou frangos brancos para PureFoods, uma das maiores empresas das Fi-lipinas, seguindo o modelo padrão de es-premer dezenas de milhares de aves emgalpões apinhados de gaiolas. Mas em 1997ele decidiu revitalizar empreendimentosavícolas locais que sustentam fazendas fa-miliares. Começou a criar galinhas caipirase a ensinar a outros criadores como fazero mesmo. Suas aves circulam livrementeem áreas arborizadas em sua propriedade,cercadas com redes de pesca recicladas. Esua fazenda é lucrativa – em parte, porqueseus custos por ave são sensivelmentemenores: nenhum antibiótico, promotoresde crescimento, rações caras ou imensos

galpões. Também achou um nicho no mer-cado filipino ao oferecer aos consumido-res o gosto de antes. Suas galinhas são partenativas e parte Sasso (uma raça francesa),mais adaptadas ao clima das Filipinas, con-trariamente às brancas, que se ressentemdo calor. As galinhas de Inocêncio não sãoapenas criadas sem agressividade, mas sãonutritivas e de bom sabor. Têm apenas 5%de gordura, em comparação a 35% dasbrancas, e não contêm antibióticos.27

A criação de espaço e mercado paraesses tipos de granjas requer, às vezes,mais do que ações dos produtores. NaPolônia, onde quase todas as granjas cri-am alguns porcos alimentados a capim oufeno, grandes corporações de carne jácomeçaram a instalar-se. Animex, a sub-sidiária polonesa da Smithfield, o maiorprodutor mundial de carne suína, tem pla-nos de transformar parte das terras pro-dutivas mais ricas do país em áreas deconfinamento animal (ACAs), como asque ponteiam as paisagens dos estados deCarolina do Norte e Iowa, nos EstadosUnidos. Todavia, ativistas do AnimalWelfare Institute, dos Estados Unidos,uniram-se a Andrzej Lepper, diretor doSindicado dos Fazendeiros da Polônia, emoposição à tentativa da Smithfield de as-sumir a indústria suína polonesa. Ao de-monstrar aos produtores poloneses comoas ACAS destruíram muitas fazendas pe-quenas de gado nos Estados Unidos, es-peram convencê-los, e ao governo polo-nês, a resistir à agricultura corporativa.28

Essas coalizões estão motivando algu-mas corporações a mudarem seus concei-tos sobre como a carne é produzida. Em2002, cedendo à pressão de grupos de di-reitos animais e saúde pública, a McDonald’s

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anunciou que não mais compraria ovos defrangos confinados e forçados à postura deovos adicionais por inanição – práticas jáproibidas na Europa, mas ainda permitidasnos Estados Unidos. Em 2004, a McDonald’sexigirá que seus fornecedores não utilizemantibióticos para promover o crescimento edará preferência a fornecedores indiretos quenão os utilizem.29

Uma vez que a McDonald’s é um dosmaiores compradores de frango dos EstadosUnidos, a decisão da empresa de mudar seuspadrões terá um efeito dominó em toda a in-dústria de carne. Wendy’s, Burger King eKentucky Fried Chicken contrataram recen-temente especialistas em bem-estar animalpara pesquisarem e desenvolverem novospadrões, a fim de assegurar melhor bem-es-tar animal. O Banco Mundial também mudouseus critérios de financiamento de projetospecuários de porte nas nações em desenvol-vimento. Em 2001, o Banco declarou que àmedida que o setor cresce “há um perigo sig-nificativo de exclusão dos mais pobres, ero-são do meio ambiente e ameaça à segurançaalimentar global”. Prometeu adotar uma“abordagem focada nas pessoas” para proje-tos de desenvolvimento pecuário que redu-zam a pobreza, protejam a sustentabilidadeambiental, assegurem segurança alimentar epromovam o bem-estar animal.30

Alimentos sem Poluição

Há apenas poucos anos, beber água naLituânia era um risco de saúde pública. Emalgumas regiões as concentrações de ni-trato, um subproduto de fertilizantes, ve-nenoso em altas doses, estavam muito aci-ma dos limites de segurança – seis vezes o

nível aceitável. Desde os anos 50, o Minis-tério de Agricultura e o Ministério de Pro-teção Ambiental da Lituânia vêm esforçan-do-se para reduzir as taxas de aplicaçõesde fertilizantes e pesticidas na região nortede Karst, epicentro agrícola do país, ondea água subterrânea tinha tornado-se alta-mente contaminada. E em 1993 começa-ram a encorajar os agricultores a abriremmão de produtos químicos.31

Ofereceram aulas de produção orgâni-ca, prestaram apoio técnico no campo e re-muneraram os agricultores nos primeirosanos de conversão. O programa cresceu de9 fazendas com certificação orgânica em1993 para 106 em 1998, e depois para 290em 2001, cobrindo 6.469 hectares, junta-mente com 8 empresas de processamentoorgânico certificadas e 11 outras empresascom certificação orgânica. Esse setor aindarepresenta uma pequena fração da área emercado totais do país. Não obstante, astaxas de contaminação da água subterrâneanas comunidades vizinhas às fazendas con-vertidas caíram substancialmente, e a po-pulação local desfruta uma nova fonte dealimentação, livre de produtos químicos.32

Outras regiões em todo o mundo tam-bém utilizam a agricultura orgânica paraevitar a poluição da água subterrânea.Desde 1992, autoridades municipais emMunique e Leipzig vêm oferecendo incen-tivos financeiros a agricultores que ado-tem métodos orgânicos, tendo constata-do a queda dos níveis de nitrato na águasubterrânea não-tratada de mais de 40miligramas por litro, nos anos 80, paramenos de 26 miligramas em 1996. As con-cessionárias nessas cidades alemãs nãoapenas remuneram e prestam consultoria:a empresa de água de Munique assessora

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a comercialização de produtos orgânicoscultivados em seu distrito e só serve pro-dutos orgânicos locais em sua cantina. (Asautoridades calculam que o total gasto atéhoje é apenas um sétimo do que teriamdespendido em nova tecnologia de purifi-cação e processamento da água.)33

Como esses órgãos governamentaisconstataram, embora os produtos orgâni-cos sejam mais caros nos mercados – re-sultado, dizem os analistas, de distribui-ção e comercialização limitadas –, o culti-vo orgânico pode efetivamente ser maisbarato que várias outras formas. Pesqui-sadores da Universidade de Essex verifi-caram que o custo de remover pesticidasda água potável na Inglaterra é equivalen-te a um quarto do que os agricultores pa-gam pelos produtos químicos. Tambémcalcularam que a agricultura orgânica cus-ta à sociedade um terço, em termos depoluição por pesticidas, erosão e outrasconseqüências, do que a agricultura não-orgânica. Um estudo nas Filipinas com-provou que os custos à saúde dos agri-cultores devido à aplicação de pesticidas– dias de afastamento por doença, con-sultas médicas e medicação – excederamo valor das lavouras salvas de pragas, semfalar no custo dos próprios pesticidas.34

Uma vez que o escoamento deagrotóxicos perturba ou simplesmente mataos organismos benéficos que vivem no solo,córregos, lagos e cursos d’água, não é desurpreender que estudos em todo o mundotenham comprovado que as fazendas or-gânicas abrigam um número e uma diver-sidade maiores de aves, insetos, plantas sil-vestres, minhocas e outras espécies do queas fazendas não-orgânicas vizinhas. Emoutras palavras, a agricultura orgânica não

é apenas uma reação às fazendas industri-ais. É uma forma mais sadia da humanida-de produzir alimentos. À medida que foraumentando o custo da agricultura intensi-va em produtos químicos, uma abordagemmais orgânica à agricultura poderá ser aúnica opção.35

O interesse público em alimentos orgâ-nicos já elevou as vendas globais a cercade US$ 23 bilhões em 2002, um aumentosuperior a 10% em comparação ao ano an-terior, conforme a Organic Monitor, umaempresa de consultoria que acompanha aindústria. Agricultores, da Austrália à Ar-gentina, cultivam lavouras orgânicas emquase 23 milhões de hectares, e muitosoutros cultivam sem agrotóxicos, por es-colha ou necessidade, mas não são certifi-cados como orgânicos. A América do Nor-te e Europa ainda são responsáveis pelamaior parte das vendas, embora os merca-dos estejam crescendo rapidamente em to-das as regiões. (Vide Figuras 4-2 e 4-3.)36

Alguns dos maiores obstáculos à disse-minação contínua da agricultura orgânicatendem a ser conceituais. Muitos produto-res, pesquisadores agrícolas e pessoas quefazem as políticas agrícolas simplesmenteacreditam que cultivar com pouco, ou ne-nhum, produto químico não seja viável emlarga escala. É verdade que os agricultoresque realizam a conversão para a produçãoorgânica freqüentemente enfrentam quedade produção nos primeiros anos, enquantoa qualidade e vida do solo e populações deinsetos recuperam-se de anos de assaltocom produtos químicos. Pode levar váriassafras para refinar a nova abordagem. E,devido à ênfase na diversidade de culturascomo meio de reduzir os problemas de pra-gas, as fazendas orgânicas não cultivarão

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a mesma lavoura a cada ano, dificultando acompetição com outras fazendas na pro-dução total de uma única cultura. Mas es-

tudos demonstraram que a agricultura or-gânica pode ser igualmente produtiva e,geralmente, mais lucrativa.37

Figura 4-2. Vendas Globais de Alimentos Orgânicos,Cerca de 2002

Figura 4-3. Principais Plantios Nacionais em ÁreaOrgânica Certificada, Cerca de 2002

Canadá (US$ 850 milhões)Japão (US$ 350 milhões)

Resto do Mundo (US$ 725 milhões)

Alemanha (US$ 2,8 bilhões)

Reino Unido (US$ 1,6 bilhão)

Itália (US$ 1,2 bilhão)

França (US$ 1,2 bilhão)Fonte:IFOAM

Estados Unidos(US$ 11 bilhões)

OutrosEuropeus

(US$ 3,2 bi)

Fonte: IFOAM

Milhões de hectares12

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Uma pesquisa recente, comparando pro-duções orgânicas e não-orgânicas em es-tações de pesquisa agrícola nos EstadosUnidos, constatou que produções orgâni-cas de milho representaram 94% da pro-dução convencional; trigo orgânico, 97%e soja, 94%; tomates orgânicos não mos-traram diferença alguma.38

Um estudo de sete anos no DistritoMaikaal, na Índia central, envolvendo1.000 agricultores que cultivaram 3.200hectares, comprovou que a produção mé-dia de algodão, trigo, chili e soja foi igualou até 20% superior nas fazendas orgâni-cas do que nas convencionais vizinhas. Pro-dutores e cientistas agrícolas atribuíramas produção maiores nessa região seca àênfase em lavouras de cobertura,compostagem, esterco e outras práticasque aumentaram a matéria orgânica (queajuda a reter água) no solo.39

Um estudo em Quênia constatou queenquanto os agricultores orgânicos em “áre-as de alto potencial” (aquelas com índicespluviométricos acima da média e alta quali-dade do solo) produziam menos milho doque os agricultores convencionais, os agri-cultores orgânicos em áreas de recursosmais fracos consistentemente superavama produção convencional. Em ambas asregiões, os agricultores orgânicos auferiammaiores lucros líquidos, retorno de capitale retorno de mão-de-obra.40

Um relatório da FAO em 2002 obser-vou que “sistemas orgânicos podem du-plicar ou triplicar a produtividade de sis-temas tradicionais” nos países em desen-volvimento, mas acrescentou que compa-rações dão um “quadro limitado, restritoe freqüentemente errôneo”, uma vez que“os múltiplos benefícios ambientais da

agricultura orgânica, difíceis de quantificarem termos monetários, são ingredientesessenciais em qualquer comparação”. NickParrott, da Universidade de Cardiff, querecentemente avaliou o potencial da agri-cultura orgânica no mundo em desenvol-vimento, encontrou inúmeros exemplos naÁsia, África e América Latina de como aadoção da agricultura orgânica aumentoua produtividade em comparação a “práti-cas tradicionais não-melhoradas”. E ob-serva: “Muitos casos mostram que a agri-cultura orgânica aumenta a segurança ali-mentar e receita agrícola. Isso ocorre comsistemas certificados dirigidos basicamentea mercados do norte e sistemas informaisdirigidos a mercados locais”. Parrot des-creve vários mecanismos em operação,inclusive o uso de esterco e compostagempara ajudar a conservar água, protegendoos agricultores contra a seca, e a elimina-ção de insumos artificiais dispendiosos,que pode reduzir o endividamento.41

Talvez uma pergunta mais importantedo que se a agricultura orgânica é viávelseja por quanto tempo mais os agricultorespoderão continuar a depender deagrotóxicos em altas doses. As pragas têmdemonstrado uma capacidade impressio-nante de se desviar, resistir e evoluir emtorno de qualquer coisa que lancemos emsua direção, e hoje os agricultores efetiva-mente perdem uma parcela maior de suaslavouras devido a pragas do que perdiam50 anos atrás. Até mesmo lavourastransgênicas, alardeadas como ajuda à eli-minação do uso de pesticidas, são vulnerá-veis à rotina da resistência. Pesquisadoresda Universidade Estadual de Iowa desco-briram pelo menos quatro espécies de er-vas daninhas comuns que desenvolveram

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resistência ao herbicida Roundup, produtoutilizado com plantas tolerantes a herbicidasque têm sido cultivadas no Centro-Oestehá menos de uma década. Estas necessita-rão de maior aplicação de pesticida. Nesseesforço inútil, os agricultores gastaram bi-lhões de dólares atacando pragas cada vezmais resistentes com pesticidas cada vezmais potentes, e a maioria desses pesticidasacabou em nossa água, ar, solo e corpos.42

Embora os benefícios públicos daagricultura orgânica – redução da polui-ção hídrica ou aumento da vida silvestre– estejam alimentando parte do cresci-mento das vendas, o maior interesse veiode consumidores com maior interessepessoal. Pais, por exemplo, podem pre-ferir alimentar seus bebês com alimentosinfantis orgânicos – sabendo que peque-nos corpos em desenvolvimento são maissensíveis a pesticidas endócrino-perturbadores, resíduos de antibióticos ehormônios de crescimento e outros in-gredientes sintéticos utilizados rotineira-mente na produção de alimentos. Ou po-dem decidir por mudança para toda a fa-mília. A agricultura orgânica é o únicosistema de produção alimentar no qual osconsumidores têm uma idéia clara daspráticas permitidas e proibidas, e os pro-dutores não só têm que demonstrar quenão estão aplicando poluentes conheci-dos no solo, como também precisam se-guir uma série de práticas que efetiva-mente restaurem a paisagem, desde ro-tação da lavoura, passando por cultivo decobertura, até a compostagem. Esse ní-vel de transparência não existe na maio-ria da produção de alimentos, onde é per-mitido aos agricultores utilizar um coque-tel de produtos químicos, ministrar aos

animais quantidades indiscriminadas deantibióticos e hormônios e até mesmoaplicar lodo de esgoto em seus campos.

Pessoas que consomem frutas elegumes orgânicos expõem-se a umterço dos resíduos tóxicos que seexporiam com produtosconvencionais.

Há evidências abundantes de que os agri-cultores expostos regularmente a pesticidascorrem um risco maior de contrair certoscânceres, distúrbios do sistema imunológico,doença mental e uma variedade de outrascondições. Testes em animais demonstraramque altas doses de produtos químicos comunssão altamente tóxicas. Porém, a maioria dostécnicos concorda que é mais difícil identifi-car os efeitos à saúde da exposição crônica aníveis menores de pesticidas em alimentosou água subterrânea. Reguladores governa-mentais em geral consideram que o nível desegurança para seres humanos é de 100 ve-zes, ou até 1.000 vezes, menos do que osníveis que não causam efeito adverso emestudos animais. Porém, a exposição dietéticahumana pode exceder essas definições con-servadoras de risco aceitável.

“A possibilidade de atingirmos um ní-vel inseguro aumenta devido aos múltiplosresíduos na dieta”, além da exposição àágua potável, ao ar e outras fontes, dizEdward Groth, cientista sênior daConsumers Union. Groth observa que 40diferentes pesticidas com organofosfatosão aprovados para uso em lavouras sónos Estados Unidos e, devido a todos os

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organofosfatos compartilharem o mesmomecanismo de efeitos tóxicos, “é razoá-vel supor que os impactos sejam aditivosou sinérgicos”. Pesquisadores constata-ram recentemente que homens com níveismaiores de três pesticidas comuns em suaurina tiveram contagens de esperma dra-maticamente baixas e maior incidência deesperma irregular. E toxicólogos estão hojeconstatando que uma mistura de fertilizan-tes químicos (nitratos) e pesticidas, osprincipais insumos da agricultura indus-trial que freqüentemente acabam juntos naágua subterrânea, pode efetivamente agra-var os efeitos adversos à saúde da expo-sição a cada um deles. Groth acrescentaque a exposição de crianças situa-se pro-vavelmente na faixa de perigo, devido aseus pequenos corpos e maior sensibili-dade. “Mas o tipo de dano que estamosfalando” – dano ao sistema nervoso, queaparece mais tarde, por exemplo, comouma deficiência de aprendizado – “é sutile difícil de ser detectado sem estudos cui-dadosos em grandes populações”, diz ele.43

A exposição é claramente agravada peloconsumo de alimentos cultivados compesticidas. Pesquisadores, ao analisaremmilhares de amostras de alimentos do De-partamento de Agricultura dos EstadosUnidos, verificaram que pessoas que con-somem frutas e legumes orgânicos ex-põem-se a um terço dos resíduos tóxicosa que se exporiam com produtos conven-cionais, que provavelmente também po-deriam conter seis vezes mais resíduosmúltiplos de pesticidas. E um estudo re-cente comprovou que crianças que se ali-mentaram predominantemente com pro-dutos e sucos orgânicos tinham apenas umsexto dos subprodutos de pesticidas em

sua urina que crianças que consumiramalimentos convencionais.44

A maioria dos estudos sobre os impac-tos à saúde e ecológicos do uso depesticidas foi realizada no mundo industri-alizado. Mas algumas dessas preocupaçõessão mais agudas no mundo em desenvolvi-mento, não só porque os agricultores lácontinuam a utilizar alguns dos pesticidasmais tóxicos – aqueles proibidos em na-ções mais ricas – mas também porque es-ses mesmos agricultores estão sentindo queo uso mais intenso de produtos químicosestá se tornando mais caro e inadequadopara suas condições. Na Índia, de acordocom o Ministério da Agricultura, 32 dos180 pesticidas registrados para uso foramproibidos em outros países devido a ques-tões de saúde. Entre 1998 e 2001, a Índiaproduziu 40.000 toneladas desses compos-tos anualmente. Monocrotofós, um inseti-cida altamente nocivo ao sistema neuroló-gico, cujo registro foi cancelado nos Esta-dos Unidos em 1988, é o pesticida maisvendido na Índia.45

Embora a maioria das pessoas escolhaos alimentos orgânicos por aquilo que nãocontêm, comprovou-se recentemente queesses produtos possuem concentraçõessubstancialmente maiores de antioxidantese outros compostos benéficos à saúde doque os alimentos produzidos compesticidas. Um estudo da Universidade daCalifórnia confirmou uma antiga suspeitaentre alguns nutricionistas e cientistasagrícolas de que o uso intensivo depesticidas e fertilizantes químicos podeafetar a capacidade das lavouras de sinte-tizarem certos fitoquímicos – compostosque possuem propriedades antioxidantese são associados à redução de riscos de

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câncer, derrame, doença cardíaca e ou-tras enfermidades. Alguns observadoresapontaram a ironia de os produtos con-vencionais trazerem não só traços de pro-dutos químicos reconhecidamente, oususpeitados de serem, cancerígenos comomenos compostos que ajudam nosso or-ganismo a precaver-se do câncer.46

Coma Aqui

Um dos conceitos mais em voga na indús-tria alimentícia é o de “rastreamento”. Aexpressão descreve a capacidade de umrestaurante, mercado ou comprador sabera origem de um determinado alimento, quemo produziu, que produtos químicos foramaplicados nele e inúmeras outras caracte-rísticas que vão além das preocupações tra-dicionais de sabor, preço e embalagem.Obter essas informações depende, em gran-de parte, do encurtamento da distância en-tre agricultor e consumidor.

A motivação para consumir alimentoslocais é tão variada quanto os próprios ali-mentos. Donas de casa reagindo a notíci-as alarmantes e almejando alimentos fres-cos. Cidadãos rebelando-se contra umacadeia alimentar distante. Ambientalistastentando conter o alastramento urbano ea perda de espaços verdes. Nutricionistaspressionando por menos alimentos pro-cessados. Agricultores tentando resgatarseus meios de vida. Políticos, em paísesem desenvolvimento, esperando que ali-mentos cultivados internamente possamajudá-los a reter divisas preciosas. Chefs,donos de restaurantes e culinaristas des-pertando para os prazeres da cozinha re-gional e de pratos artesanais.

A preservação de sabores distintos e o“direito de degustar” são apenas parte damissão de um novo movimento internacio-nal chamado Slow Food (Alimento Lento).Esse grupo, de 17 anos, com 75.000 mem-bros em 80 países, vê as interações sociaisentre consumidores e cozinheiros, açouguei-ros e fazendeiros, como também refeiçõescompartilhadas com amigos e familiares,como inseparáveis do prazer de comer.Carlo Petrini, fundador e presidente, ob-serva que o preço que as sociedades paga-ram para ter acesso a qualquer tipo de ali-mento em qualquer época do ano é “o de-senvolvimento deliberado de espécies comcaracterísticas apenas funcionais para aindústria alimentícia, e não para o prazerdo alimento, e o conseqüente sacrifício demuitas variedades e raças no altar da pro-dução em massa”.47

Nos Andes peruanos, a Associação paraConservação da Natureza e Desenvolvi-mento Sustentável (Andes) está não ape-nas tentando preservar os padrões tradi-cionais de cultivo como forma de melho-rar a renda agrícola, como também revi-gorar um corredor comercial de alimen-tos leste-oeste, iniciado pelos incas hámilhares de anos. Em Choquecancha, acidade central ao longo desse corredor, aspessoas trocam alimentos planaltinos (ba-tatas, porquinhos-da-guiné, lama, feijão-de-lima, amaranto e tubérculos locaiscomo ulloca, oca e mashua) por outrosda planície (cacau, coca, manga, papaia ecoco). Para os peruanos que se mudarampara áreas urbanas, onde a cozinha de fast-food e alimentos processados estão subs-tituindo a alimentação local, esse merca-do permite que compartilhem alimentosmontanheses variados, usufruídos na re-

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gião por milhares de anos. Nesse caso, aspessoas não estão apenas pagando pelovalor nutricional, segundo AlejandroArgumedo, da Andes, mas também “parapreservar o manejo espiritual das culturasmontanhesas, das culturas planaltinas edas variedades indígenas que proporcio-nam melhor nutrição”. A Andes planejaabrir um restaurante em Cuzco que se es-pecializaria em alimentos regionais.48

O movimento para a preservação defazendas, terras agrícolas e culinária estáevoluindo numa ocasião em que os alimen-tos viajam mais e são controlados por umnúmero extremamente pequeno de entida-des globais. O valor do comércio interna-cional de alimentos triplicou a partir de1960, tendo seu volume quadruplicado.

Nos Estados Unidos, o item alimentar co-mum viaja 2.500–4.000 quilômetros, cer-ca de 25% mais longe do que em 1980. NoReino Unido, os alimentos viajam 50% maislonge do que há duas décadas. Uma refei-ção “tradicional” domingueira na Grã-Bretanha, feita com ingredientes importa-dos, gera quase 650 vezes as emissões decarbono relacionadas aos transportes quea mesma refeição feita com ingredientesproduzidos localmente. (Vide Figura 4-4.)Como resultado, as pessoas que consomemprodutos locais podem ajudar a poupargrandes quantidades de energia, reduzir asemissões de gás de estufa, conservar o di-nheiro em suas comunidades e ganhar umacerta paz de espírito, que vem de conhecerseus produtores.49

Figura 4-4. Ingredientes Locais Versus Importados: Grã-Bretanha

Morangos8.772 kmCALIFÓRNIA

Brócolis8.780 kmGUATEMALA

Mirtilo18.835 kmNOVA ZELÂNDIA

Quartos de Reses21.462 kmAUSTRÁLIA

Fonte: Jones

Batatas2.447 km

ITÁLIA

Vagem 9.532 km

TAILÂNDIA

Cenouras9.620 km

ÁFRICA DO SUL

Britânicos48 km

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Uma boa regra empírica é que quantomais um alimento viaja, menor é o valorretido pelo produtor e a comunidade rural.O transporte, embalagem, processamentoe intermediação do alimento engole parce-las cada vez maiores do preço final. Essevazamento de dinheiro das comunidades –e a capacidade dos alimentos locais de aju-dar a estancá-lo – pode ser particularmen-te relevante onde as pessoas ainda estejamengajadas na agricultura. Um estudo daNew Economics Foundation, em Londres,constatou que cada £10 gastas em um es-tabelecimento local vale £25 para a comu-nidade, comparado com apenas £14 quan-do o mesmo valor é gasto num supermer-cado – ou seja, uma libra, dólar, peso ourúpia gasto localmente gera quase o dobrode renda para a economia local.50

Esse multiplicador é parte da motiva-ção por trás do movimento Navdanya(Nove Sementes), da Índia, fundado em1987 pela Fundação de Pesquisa para aCiência, Tecnologia e Ecologia, destina-da a proteger variedades locais de trigo,arroz e outras culturas contra patentes,catalogando-as e declarando-as comopropriedade comum. “Iniciamos o movi-mento como precaução contra a engenha-ria genética e monopólios de patentesagrícolas”, explicou o ativista e cientistaindiano Vandana Shiva, que dirigeNavdanya, “e também para incrementaras economias locais”. Navdanya come-çou implantando bancos de sementes lo-cais, lojas de suprimentos agrícolas e ins-talações de armazenagem, encorajandouma mudança para agricultura orgânica,a fim de reduzir a dependência de produ-tos químicos importados. “Neste momen-to temos mais de 3.000 vilarejos onde os

agricultores criaram basicamente o quechamamos de ‘Zonas de Liberdade’, ouseja, culturas livres de agrotóxicos, livresde insumos corporativos, livres de se-mentes híbridas, livres no futuro de pa-tentes e lavouras transgênicas”. Traba-lhando com organizações de produtores,grupos femininos e religiosos, Navdanyaimplantou mais de 20 bancos de semen-tes em sete estados. Organizadores domovimento calculam que atendem a maisde 10.000 produtores e resgataram maisde 1.500 variedades de arroz, centenasde variedades de painços, leguminosas,oleaginosas e legumes.51

Diversidades agrícolas locais podemsuprir tudo que houver para comer emmuitas das nações mais pobres, onde aspessoas não têm condições de adquirir ali-mentos importados. Em Zimbábue, agri-cultores urbanos encontraram um merca-do para legumes indígenas nos morado-res das cidades que almejam um elogastronômico com a identidade cultural doseu país. As famílias dependem de apro-ximadamente 25 legumes indígenas, inclu-indo quiabo, cleome, pepino e cabaça, queproporcionam uma fonte de legumesfolhosos, altamente nutritivos, de agostoa dezembro – época característica de es-cassez –, dando aos pobres tanto uma fon-te de renda como de nutrição. O Institutode Criação de Lavouras está ajudando osagricultores no cultivo de suas lavourasdistribuindo sementes e desenvolvendotecnologias de processamento e preserva-ção. Os governos também podem enco-rajar economias agrícolas domésticas atra-vés de programas de aquisição que levemprodutos locais a repartições públicas,hospitais e escolas.52

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“Programas de lanches escolares, porexemplo, podem proporcionar um estímu-lo significativo para a expansão dos mer-cados de alimentos, se o produto for cul-tivado localmente”, escreveu recentementeo cientista agrícola, e Prêmio Nobel,Norman Borlaug, no New York Times,quando reivindicou maior auto-suficiênciaalimentar na África. Em 2000, vários dis-tritos escolares no norte da Itália promul-garam novas leis, que exigem que as es-colas regionais dêem preferência a pro-dutos locais e orgânicos em suas com-pras. Há atualmente mais de 300 serviçosescolares de refeições orgânicas na Itáliae centenas de outros serviços de refeiçõeslocais. Autoridades e cidadãos pressiona-ram por essa mudança, em parte, parapreservar a paisagem rural e meios de vidaagrícola, e também constataram que re-feições mais frescas, com menos ingredi-entes processados, eram mais econômi-cas, mais sadias e de melhor sabor.53

Maior auto-suficiência, por sua vez, sig-nifica que as nações, regiões e comunida-des exercem maior controle sobre como oalimento é produzido. “No mercado alimen-tício atual, existem grandes desigualdadesem relação ao poder de voto e, mais funda-mentalmente, em relação a controle”, con-forme a socióloga JoAnn Jaffe, da Univer-sidade de Regina, no Canadá, uma situaçãodevida, em parte, à forma como o sistemaalimentício alastrou-se. Jaffe sugere umaestratégia retaliatória de “comer menos nacadeia mercadológica” através de comprasde alimentos o mais localmente possível, afim de retomar a soberania e criar umfeedback direto entre agricultor e consumi-dor. (Comer menos na cadeia alimentíciaserá, freqüentemente, mais sadio porque a

compra mais direta de alimentos geralmentesignifica consumir mais frutas e legumesfrescos e porque muitas das etapas adicio-nais entre agricultor e consumidor retiramnutrientes e fibras e adicionam gordura, açú-car, sal e outros recheios.) Em contraste comas decisões internas por trás de poucas por-tas corporativas, as centrais agrícolas deabastecimento, agricultura apoiada pela co-munidade e comércio alimentício local, to-dos tendem a devolver as tomadas de deci-são às comunidades locais.54

Comer não é escolha, esim necessidade.Porém, temos efetivamente odireito – e a responsabilidade –de escolher como nossoalimento é produzido.

Em muitas comunidades esse comér-cio local não mais existe. O açougueiro epadeiro da esquina, a leiteria e fábrica deconservas locais fecharam sob ondas deconsolidação. À medida que restaurantes,cantinas escolares, supermercados e ou-tros empreendimentos alimentícios come-çarem a comprar alimentos mais localmente– e à medida que os consumidores exigi-rem – a infra-estrutura esquecida poderáressurgir gradativamente. Navdanya abriurecentemente um café local em NovaDélhi, semelhante ao café Andes, emCuzco, ligando o campo à cidade ao pro-mover tradições alimentares indianas e ce-lebrações que girem em torno das colhei-tas sazonais. Em Hope’s Edge, Maya Jani,do Navdanya, explica: “Navdanya deseja

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resgatar os alimentos e bebidas indígenas daextinção por meio do prazer – e rapidamen-te, antes que nosso paladar seja totalmentedominado pela Pepsi e Coca-Cola”. Duran-te os escaldantes meses do verão, o festivalpanna, do Navdanya, celebra bebidas refres-cantes tradicionais, inclusive as fermenta-das feitas com coco, manga, lechia, cevadae rododendro. “Nossos festivais são umaforma de ajudar as pessoas a renovarem ascrenças em suas tradições”.55

A Ascensão da DemocraciaAlimentícia

Democracia alimentícia é um termo quepode melhor descrever o número crescen-te de agricultores, consumidores, chefs eempresas alimentícias que resistem à ten-tação de comer cegamente, em vez de cons-cientemente. Entretanto, repensar nossarelação com o alimento não é simplesmen-te abandonar a carne vermelha ou a supos-ta conveniência de fazer compras numarede de supermercados.

Mudar nossa dieta é reaver algo emnossas vidas que foi perdido – nossa liga-ção com os alimentos e com as pessoasque o produzem. Seja agricultor, dono derestaurante, político, banqueiro, empresá-rio, estudante buscando carreira ou paispreocupados, todos precisamos saber maissobre o alimento que compramos e consu-mimos. E há quantidades infinitas de aces-sos para nos alimentarmos mais conscien-temente e reforçarmos a democracia ali-mentícia. Comer não é escolha, e sim ne-cessidade. Porém, temos efetivamente odireito – e a responsabilidade – de escolhercomo nosso alimento é produzido. Das

compras numa central local de abasteci-mento ao preparo de refeições sem carne,e até a compra de café e cacau de comér-cio justo, grupos pequenos, mas crescen-tes, em todo o mundo estão votando comseus garfos e suas carteiras por um siste-ma alimentício mais sadio.

O consumidor típico não irá, necessa-riamente, tomar essas medidas sozinho. Eembora poucas pessoas tolerassem seusgovernos ditarem o que deviam comer,governos detêm poder considerável paramudar a forma de cultivarmos alimentos– por todos os meios, desde regulamen-tos sobre quais produtos químicos os agri-cultores podem utilizar até o tipo de pes-quisa promovida em universidades agrí-colas. (Vide Quadro 4-3.) Como observa-do anteriormente, governos compram vo-lumes consideráveis de alimentos para lan-ches escolares, repartições públicas e exér-citos – o governo dos Estados Unidos ser-ve mais de 26 milhões de refeições diaria-mente a crianças em escolas, por exem-plo – e podem utilizar essas compras paraincentivar certos mercados agrícolas.(Vide também Capítulo 6.) A Agência deProteção Ambiental Sueca juntou-se recen-temente à Administração de Alimentos e àAgência de Consumo suecas numa cam-panha para ligar os hábitos alimentares nãoapenas à nutrição, mas também ao meioambiente. Essa iniciativa colaborativa re-sultou num livro de culinária chamado MatMed Känsla för Miljö – Alimentos comConsciência Ambiental –, argumentandoque os consumidores podem reduzir subs-tancialmente o uso de energia na cadeiaalimentar por meio de escolhas alimentí-cias corretas.56

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No âmbito dos alimentos, governos ecorporações freqüentemente são lentos emefetuar mudanças sem que haja algum cla-mor público, persistente e generalizado.Historicamente, as maiores vitórias rela-cionadas aos alimentos, inclusive arotulagem obrigatória mostrando conteú-do e valor nutricional, originaram-se eminiciativas de consumidores, apesar darelutância de governos e da indústria ali-mentícia. Em retrospecto, as mudançassempre pareceram lógicas e bem atrasa-das. A energia necessária de base, por suavez, freqüentemente origina-se de umamudança de conceitos. Mudar nosso car-dápio coletivo, escreve Stuart Laidlaw emSecret Ingredients: The Brave New Worldof Industrial Food, significa produzir ali-mentos que “não matem peixes ou façamcrianças correrem para dentro durante orecreio, para fugir de pesticidas... Deve-mos adotar esse comportamento... nãoporque o alimento em nosso prato sejamelhor para nós, e sim porque será me-lhor para o planeta”. O potencial para re-criar o cardápio coletivo é imenso – comotambém a necessidade. Mas o esforçosempre dependerá de indivíduos motiva-dos, que busquem um meio de vida maisseguro, uma comunidade mais forte, ummeio ambiente mais sadio ou, simplesmen-te, uma refeição deliciosa.57

QUADRO 4-3. POLÍTICASPRIORITÁRIAS PARAREPENSARMOS NOSSA RELAÇÃOCOM OS ALIMENTOS

• Os governos devem realocar os recursosaplicados anualmente em subsídiosagrícolas – mais de US$ 300 bilhões –para apoio à agricultura ecológica.

• Os governos devem considerar taxarpesticidas, fertilizantes sintéticos,fazendas industriais e outros insumospoluentes ou práticas agrícolas.

• Os governos devem colaborar comorganizações agrícolas para o aumento daparcela de suas terras com produçãoorgânica para 10%, durante os próximos10 anos, através da melhoria dosprogramas de certificação orgânica,incrementando capacitação orgânica nasuniversidades agrícolas, centros depesquisa e agências de extensão econcedendo subsídios ou créditos fiscaisa agricultores nos primeiros anos daconversão.

• Os governos devem reformar acordosinternacionais de comércio, por meio daproibição de garantia de preços internose tarifas em mercadorias importadas, afim de eliminar subsídios à exportação,“dumping” de alimentos e outraspráticas injustas de comércio, querestringem a capacidade das nações deprotegerem e construírem economiasagrícolas domésticas.

• Governos, em âmbito nacional e local,devem instituir licitações para escolas,hospitais, repartições públicas e outrasinstituições, para apoiar lavourascultivadas ecologicamente poragricultores locais.

________________________________________FONTE: vide nota final 56.

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Água Engarrafada

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

A próxima vez que você for aosupermercado local, poderásurpreender-se com avariedade de escolha de águaengarrafada, desde marcasnobres como Perrier e Evianaté as populares, engarrafadaspelo próprio supermercado.Mundialmente, o consumo deágua engarrafada estácrescendo a uma taxa anual de12%, embora em mercados mais novos,como a Índia, esteja aumentando em até50% anualmente. Consumidores em todo omundo gastam hoje cerca de US$ 35 bilhõesanuais em água engarrafada.1

Embora o conteúdo possa parecer igualpor toda parte, água engarrafada éessencialmente apresentada de três formasdiferentes: água mineral natural, água defonte e água purificada. De acordo com adefinição da União Européia, “água mineralnatural é considerada como sendobacteriologicamente pura, tendo por origemum lençol de água ou um depósitosubterrâneo e proveniente de uma nascente,explorada através de um ou mais pontosnaturais ou perfurados”. Na Europa, areputação da água mineral como benéfica àsaúde remonta ao Império Romano.Entretanto, os benefícios reais dessesminerais são, atualmente, tidos comomínimos. Embora as nascentes dessas

águas estejam protegidas dapoluição, pode ocorrerincidência de bactériasnaturais, uma vez que aágua não é desinfetada.Ainda que osengarrafadoresprecavenham-se, acontaminação é semprepossível, como ocorreu, em

1990, com o recall mundial daPerrier, devido aos altos níveis de benzeno.2

Nos Estados Unidos, a Food and DrugAdministration (agência norte-americana parao controle de drogas e alimentos) define águamineral natural como a que contém 250 ppm(partes por milhão) de sólidos totaisdissolvidos e é originária de uma nascentesubterrânea protegida. A água de fonte, poroutro lado, não precisa ter uma composiçãoinvariável de minerais e é, usualmente, maisbarata. A água purificada, também chamadade água potável, é retirada de lagos, rios oufontes subterrâneas e é tratada – tornando-sequase idêntica à água da torneira. 3

A popularidade disparada da águaengarrafada decorre de várias razões. NaÁsia e Pacífico, o crescimento populacionale problemas com a qualidade eabastecimento da água são as maisimportantes. (De modo geral, 1,5 bilhão depessoas em todo o mundo não têm acesso aágua potável, e 12 milhões de pessoas

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ATRÁS DOS BASTIDORES: ÁGUA ENGARRAFADA

morrem anualmente por doenças veiculadaspor água insalubre). Embalagens de grandevolume tornaram a água engarrafada maisacessível na Índia e nos Estados Unidos eem muitos outros países no início dos anos90. E, motivados pela propaganda, muitosconsumidores compram água engarrafadacomo uma alternativa a refrigerantes eálcool, porque é considerada mais saudáveldo que a água da torneira, e particularmentena França, porque tem melhor sabor.4

Porém, muitos estão preocupados comos custos ambientais da produção da águaengarrafada. Uma preocupação maior é quea demanda crescente por água possaestressar os recursos aqüíferos existentes.Nos últimos anos, muitas companhiasinternacionais de bebidas vêm explorandoos abundantes mananciais do Canadá comofonte de água engarrafada. Numa medida deprevenção, muitas províncias canadensesproibiram, ou estão considerando proibir, aexportação de água a granel.5

O Container Recycling Institute relataque as vendas de resina virgem (tereftalatode polietileno – PET), o plástico mais usadonas garrafas de água, dispararam para 738milhões de quilos em 1999, mais do que odobro do volume de 1990. A produção de 1quilo de plástico PET requer 17,5 kg de águae resulta em emissões atmosféricas de 40gramas de hidrocarbonos, 25 gramas deóxidos sulfúricos, 18 gramas de monóxidode carbono, 20 gramas de óxido denitrogênio e 2,3 kg de dióxido de carbono.Só em termos de uso de água, a quantidadegasta na fabricação das garrafas é muitasvezes maior do que a quantidade a serengarrafada.6

E no que concerne à distribuição, agrande diferença entre a água engarrafada ea água da torneira provém da queima de

combustíveis fósseis no seu transporte porcaminhão, trem ou navio, em vez de adutora.O Fundo Mundial para a Natureza, emboraobservando que 75% da água engarrafada éproduzida para consumo local, argumentaque as companhias internacionais deveriaminvestir em engarrafadoras para o mercadolocal e transportar a água engarrafada emembalagens de grande volume. Mesmoassim, isso seria mais ineficiente do que ossistemas públicos de água potável.7

Um dos maiores problemasenfrentados pela água engarrafada é orefugo plástico. Conforme o ContainerRecycling Institute, cerca de 14 bilhões degarrafas de água foram vendidos nosEstados Unidos em 2002, 90% das quaisforam jogadas no lixo – mesmo que amaioria delas tenha sido feita com plásticoPET reciclável. Em junho de 2003, oConselho de Controle da Poluição, daBengala Ocidental, na Índia, determinouque os fabricantes de garrafas fossemresponsabilizados pela coleta e reciclagemde garrafas usadas. Regulamentaçõeseficazes promovendo a reciclagem degarrafa existem também na Áustria,Bélgica, Canadá, Dinamarca, Finlândia,Alemanha, Holanda, Noruega, Suécia,Suíça e 11 estados dos Estados Unidos.8

Os americanos dizem que a razãoprincipal de eles beberem águaengarrafada é por ser mais segura do quea água da torneira. Mas um estudoquadrienal do Conselho de Defesa dosRecursos Naturais testou mil garrafasvendidas nos Estados Unidos e detectouque um quinto continha produtosquímicos tais como tolueno, xileno ouestireno – tidos como, ou compossibilidade de serem, cancerígenos – eneurotoxinas. Na Índia, testes realizados

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ATRÁS DOS BASTIDORES: ÁGUA ENGARRAFADA

em fevereiro de 2003 pelo Centro paraCiência e Meio Ambiente encontraramníveis altos de pesticidas em amostras deágua, resultando na retirada decertificados oficiais de qualidade de umasérie de marcas e em advertênciasdirigidas à Coca-Cola e PepsiCo.9

As Nações Unidas declararam 2003como o Ano Internacional da Água Doce, eestão trabalhando no sentido de melhorar aqualidade da água doce em todo omundo.Um dos objetivos da Meta deDesenvolvimento do Milênio, das Nações

Unidas, para assegurar a sustentabilidadeambiental, é reduzir à metade, até o ano de2015, o número de pessoas sem acesso aágua potável. Todavia, considerando osimpactos ambientais do uso e descarte daágua engarrafada, vale a pena indagar senão existiria uma melhor forma de distribuiresse recurso vital. Para os felizardos quetêm opção, a água da torneira (filtrada, senecessário) é a escolha mais barata emenos poluidora.10

— Paul McRandle, The Green Guide

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ATRÁS DOS BASTIDORES: FRANGOS

Frangos

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

A maior parte dasgalinhas tem doisdestinos: são criadaspara pôr ovos(poedeiras) ouunicamente pela carne(frango de corte).

Começam sua jornada aolongo da cadeia alimentíciaindustrial nas granjas depropriedade da Tyson Foods, PerdueChicken, ou qualquer outra empresa deagronegócio. Lá, os ovos são conservadosaquecidos por incubadoras cuidadosamentecontroladas.Os criadores providenciam quetodos os pintos saiam do ovo quase aomesmo tempo, pela inseminação artificialdas matrizes. Após a saída do ovo, ospintos destinados a poedeiras entram emcontato com seres humanos pela primeira e,muitas vezes, única vez. Com um dia denascidos, os operários selecionam asfêmeas, jogando os machos em grandesrecipientes. Esses infelizes pintos sãomoídos (às vezes, ainda vivos), para usocomo fertilizantes ou ração animal.1

As fêmeas são enfileiradas numa linhade montagem e debicadas, dolorosamente,com lâminas quentes. Após 18–20 semanas,são enviadas para criadores contratados(juntamente com a ração, antibióticos eoutros insumos). As poedeiras sãoabrigadas em galpões de 18 m x 110 m (como

são os frangos de corte) –aproximadamente a metadedo tamanho de um campode futebol americano.

Cada galpão pode acomodarmais de 90.000 frangos; uma vez

que a criação de frangos tornou-seum negócio altamente tecnológico: um

fazendeiro pode, normalmente, administrarum galpão inteiro com pouca mão-de-obra.Embora muitos desses fazendeiros sejamproprietários de terra e arquem com a maiorparte do risco financeiro, estes não sãodonos dos pintos que cuidam. Do início aofim, os pintos são propriedade da empresa.O galpão custa cerca de US$ 250.000, maisoutros US$ 200.000 pelos equipamentospara seu funcionamento; juntando osfrangos, ração e outras despesas gerais, oscustos iniciais nos países industriaischegam a US$ 1 milhão no mínimo.2

Uma vez na fazenda, cada poedeira écolocada numa bateria de gaiolas de aramecom outras nove aves. Essas poedeirasproduzirão, cada uma, cerca de 300 ovos porano – mais de três vezes o que as mesmasgalinhas punham um século atrás, graças àmanipulação genética e drogas decrescimento misturadas ao alimento. Asgalinhas também são induzidas a pôr maisovos pela iluminação artificial contínua.Suas gaiolas, empilhadas umas sobre asoutras e cobertas de fezes, permitem pouco

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ATRÁS DOS BASTIDORES: FRANGOS

movimento. Elas assustam-se facilmente,porque raramente têm qualquer contatohumano. Geralmente, as únicas aves que osprodutores entram em contato são aquelasque, de algum modo, escaparam da gaiolaou morreram de estresse.3

Não é de estranhar que galinhascriadas nessas condições sejam maisvulneráveis e morram mais cedo do queas galinhas criadas da maneiratradicional. De fato, em torno de um ano,mais ou menos, a maior parte dasgalinhas está tão desgastada que suaprodução de ovos diminui. Osprodutores costumavam enviá-las paraserem processadas em alimento para cãese gatos, nuggets e mesmo alimentoinfantil. Mas em alguns lugares elas sãoabatidas na fazenda ou enviadas paramercados de animais vivos, onde a carnede aves no fim de sua vida poedeiraainda é valorizada pelo seu sabor.4

Os frangos de corte têm uma vida aindamais curta. Embora não sejam mantidos emgaiolas individuais, são apinhados emcompartimentos com pouco espaço – cadaum tem cerca de 22 cm x 22 cm. Tais avesnão são expostas à luz natural ou ar fresco etêm dias artificialmente longos, porque oscompartimentos, sem janelas, sãoiluminados até 23 horas por dia.5

Esses frangos comem, diariamente, cercade 0,86 kg de ração especialmenteformulada, podendo conter antibióticos eestimuladores do crescimento. Embora osfrangos sejam eficientes na conversão degrãos em proteína, as condições em que sãocriados os tornam vulneráveis a doençasrespiratórias. Assim, os produtores vêm, hámuito, adicionando antibióticossemelhantes aos usados para tratar doençashumanas. (Em 2002, um estudo averiguou

que 37% dos frangos destinados ao corte,encontrados nos principais fornecedores,estavam contaminados com patógenosresistentes a antibiótico.) Freqüentemente,esses frangos ganham peso com tantarapidez que não podem manter-se em pé. Osfrangos criados em fazendas industriaismuitas vezes manquejam, e muitos morremde ataque cardíaco, porque seus coraçõesnão são fortes o bastante para suportarseus corpos desproporcionais. 6

Quando estão pesando cerca de 2 kg, osfrangos de corte são arrebanhados poroperários (“pegadores”), estufados emgaiolas e levados para fábricas deprocessamento. Operários separam, cortame pesam os frangos para distribuição emmercearias e restaurantes. Envoltas emplásticos, as sobrecoxas, asas e coxaspouco assemelham-se ao animal vivo.Algumas embalagens trazem um aviso aosconsumidores para cozinharem bem ofrango, a fim de evitar que a carne, muitasvezes contaminada com fezes, transmitadoenças, tais como Escherichia coli eSalmonella, comuns em ambientes decriação industrial.7

Porém, nem todos os fazendeiros estãocriando galinhas industrialmente. Conformea Organização para Alimentos e Agriculturadas Nações Unidas (FAO), galinhas dequintal e caipiras chegam a representar70% da produção de ovos e carne emalguns dos países mais pobres. Essasgalinhas não somente fornecem alimento,como são, também, fonte de segurançaeconômica. Como declara Robyn Alders, daFAO, os fazendeiros podem usá-las comoum tipo de “cartão de crédito, disponível acada momento, para venda ou troca emsociedades em que o dinheiro não éabundante”. Elas são também uma fonte

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importante de fertilizante e controle depragas. Projetos em Bangladesh e Áfricado Sul estão melhorando a saúde das aves,propiciando renda para membros decomunidades pobres e dando às espéciesde galinhas nativas – já adaptadas ao calore às condições de baixos insumos – umachance de sobrevivência.8

Alguns produtores de galinha e ovos empaíses ricos estão atendendo à demanda deconsumidores por galinhas orgânicas,criadas sem agressão. Nas West WindFarms, a única fazenda no estado doTennessee que produz carnes e aves

orgânicas certificadas, Ralph e KimberlieCole criam 600 galinhas por ano em pastos egrãos orgânicos. As galinhas ciscam empequenos gramados perto de galinheirosmóveis, que podem ser movidos de umcampo para o outro. Os Coles referem-se àsgalinhas como parte de “sua equipe demelhoramento do solo”, porque estas fertilizama terra e controlam as pragas. Criar galinhasdessa maneira – em vez de em fazendasindustriais – pode ajudar o meio ambiente e é,seguramente, mais gentil com as aves.9

— Danielle Nierenberg

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ATRÁS DOS BASTIDORES: FRANGOS

Chocolate

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

A próxima vez que você provar umabarra de chocolate pense nestegosto como uma referência aalgumas das florestasmais ameaçadas domundo – e nosmilhões defazendeiros que vivemperto delas. O chocolateprovém das sementes de umapequena árvore de floresta tropical, o cacau(Theobroma cacao). O cacau é nativo donorte da América do Sul e talvez também dosul da América Central. Seu fruto tem otamanho aproximado de um melão pequenoe é recheado com essas sementes – asamêndoas de cacau. Elas são processadasde vários modos para fabricação de licor decacau, manteiga de cacau e chocolate.1

O cacau é cultivado comercialmente emquase 60 países, mas a produção estáconcentrada em apenas alguns deles.Costa do Marfim, o maior produtormundial, produziu cerca de 35% dacolheita mundial de amêndoa de cacau em2002, abaixo de seu pico de 41%, em 1999e 2001. Os cinco maiores produtores, em2002 – Costa do Marfim, Gana, Indonésia,Nigéria e Brasil – representaram 79% daprodução global. Atualmente, asplantações de cacau cobrem mais de70.000 km2 em todo o mundo, uma área umpouco maior do que a Irlanda. A área de

produção aumentousubstancialmente nasúltimas décadas,crescendo quase um

quarto desde 1990..2

Uma vez que oscacaueiros necessitam de um

suprimento abundante econstante de água, só pode ser

cultivado comercialmente em biomas defloresta tropical. Esta limitação é umaespécie de bênção econômica: seja qual foro valor que o cacau agrega às áreas defloresta tropical, este não pode ser reduzidose tal fruto for cultivado em outro lugar. Issotem também grande importância para aconservação porque todas as principaisáreas de cacau – no Caribe, América Centrale do Sul, arquipélago indonésio-malaio eÁfrica Ocidental – são “hotspots debiodiversidade”. Estas são regiões queforam identificadas como prioritárias para aconservação global por seremextraordinariamente ricas em biodiversidadee altamente ameaçadas. O cacau é umalavoura hotspot.3

O cacaueiro requer sombra, podendocrescer sob a cobertura da floresta. Nasáreas de floresta tropical, a agriculturageralmente substitui a floresta, mas o cacaupermite que os fazendeiros ganhem dinheirosob as árvores – ou pelo menos sobalgumas árvores. (Colheitas razoáveis

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ATRÁS DOS BASTIDORES: CHOCOLATE

podem ser provavelmente alcançadasmesmo mantendo-se 50–60% da coberturaoriginal.) Infelizmente, a maior parte docacau mundial é cultivado em terras que jáperderam muito de sua cobertura original.) –devido ao próprio cacau ou a alguma outraatividade que o precedeu. Na Indonésia, porexemplo, o cultivo do cacau freqüentementeseguiu-se à derrubada da floresta primária.Apesar da sua tolerância ao sombreamento,o cacau tem sido muitas vezes um agente dedesmatamento, embora comumente oresultado seja um pequeno desmatamento.Isso porque o cacau é muitas vezescultivado juntamente com outras culturasarbóreas nativas ou introduzidas. Algumasdessas agroflorestas são bastantecomplexas e sustentam uma parcelaconsiderável da vida silveste local. Poroutro lado, o cacau é algumas vezescultivado como monocultura a sol aberto,uma alternativa que sustenta umadiversidade bem menor.4

Numa escala global, a contribuição docacau para o desmatamento tropical éínfima– talvez um terço de 1% da áreaoriginal de floresta tropical mundial tenhaagora cultivo de cacau. Porém, numa escalaregional, o cultivo do cacau tem sido, àsvezes, uma força importante na natureza.Porexemplo, o cacau representa mais de 13%das terras florestais originais da Costa doMarfim e ainda está eliminando florestas empartes da África Ocidental e Indonésia. Masnão precisa ser assim. Em alguns locais, ocultivo do cacau já tornou-se um sistema defacto de conservação. Na Bahia, Brasil, porexemplo, e ao sul dos Camarões central, ocacau é cultivado sob floresta nativa rala,em áreas onde resta pouca floresta.Inadvertidamente, as fazendas tornaram-se,na verdade, florestas.5

O cacau tem também um grandepotencial social fora do Brasil e Malásia,onde é quase totalmente cultivado emgrandes fazendas; o cacau é,geralmente,uma cultura de pequenos proprietários.Milhares de fazendas de cacau da ÁfricaOcidental têm menos de 1 hectare, e otamanho médio de uma fazenda na Costa doMarfim é inferior a 3 hectares. O cacaufunciona bem em pequena escala porquetem um valor relativamente alto e porque ocacaueiro reage a cuidados especiais.Pequenos proprietários capacitados, cujasroças de cacau são pequenos “jardins”,podem alcançar níveis de produtividadesuperiores às grandes fazendas, quepossuem árvores demais para seremcuidadas individualmente. Potencialmente,pelo menos, o cacau compensa o trabalho.6

Mas do ponto de vista dos fazendeirosessa compensação está mal-distribuída. Novarejo, o negócio de chocolate vale $42–60bilhões, anualmente, dependendo de comoo “produto chocolate” é definido. É difícildeterminar quanto desse dinheiroefetivamente retorna às fazendas, porém,uma estimativa muito generosa seria de 6 a8% e, talvez, consideravelmente menos.Entretanto, mesmo essa pequena parcela dariqueza do cacau significa uma vida melhorpara milhões de fazendeiros e suas famílias.Contudo, a economia do cacau, como suaecologia, tem também um ladotriste.Aparentemente, a exploração da mão-de-obra predomina na zona cacaueira daCosta do Marfim. Denúncias constantes deque alguns fazendeiros estão escravizandomilhares de trabalhadores infantis migrantesdesencadearam críticas generalizadas daindústria. Em 2002, a Costa do Marfimreagiu, ratificando um tratado contra aexploração do trabalho infantil e as grandes

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ATRÁS DOS BASTIDORES: CHOCOLATE

companhias de chocolate lançaram umacampanha com o objetivo de certificar ochocolate da Costa do Marfim como “livreda escravidão” até 2005. (Não se podecalcular que efeito a guerra civil do país teránesse objetivo.)7

O que poderiam fazer os consumidoresem relação a isso? Da próxima vez que vocêdecidir deliciar-se com chocolate, procureum rótulo que prometa três coisas.Primeiro, uma alta concentração de cacau.Geralmente, mais cacau significa melhorqualidade e – pelo menos potencialmente –mais renda para o produtor. Depois,

procure um selo de “comércio justo” ou amarca de um produtor semelhante,socialmente responsável. E mesmo que ocacau não tenha um certificado de“cultivado à sombra”, vale a pena procurarum produto orgânico. Um dos pesticidasde cacau mais comuns na África Ocidental,por exemplo, é o lindano, umorganoclorado, primo do DDT. Aeliminação de tais produtos químicos seriauma benesse tanto para trabalhadoresrurais quanto para as florestas. 8

— Chris Bright

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ATRÁS DOS BASTIDORES: CAMARÕES

Camarões

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

Há muito, camarõestêm constado noscardápios depopulações costeiras.Pinturas nas tumbasdo antigo Egito retratamcenas de pescadores retirando camarões doNilo. E por séculos produtores do sudesteasiático mantêm camarões nativosconfinados em lagoas litorâneas para umacoleta fácil.1

Hoje, a multibilionária indústria decamarão pouco assemelha-se à pesca docamarão de outrora. Por uma razão, essepequeno crustáceo de muitas pernas não émais uma iguaria usufruída principalmentepor quem vive perto da fonte. Hoje,quantidades imensas de camarões sãoproduzidas no mundo em desenvolvimentopara consumo no Japão, Estados Unidos eEuropa Ocidental. A produção de camarãonão é mais um negócio pequeno: em 2001,mais de 4,2 milhões de toneladas decamarões entraram no mercado mundial.2

A China produz mais camarão quequalquer outro país: mais de 1,2 milhão detoneladas em 2000, mais do dobro do seutotal em uma década antes e três vezes maisdo que seus concorrentes mais próximos –Índia, Tailândia e Indonésia. Porém, ogrosso da pesca chinesa permanece no país.A honra do primeiro lugar na exportação decamarão fica com a Tailândia.3

Nos fins dos anos 90,os Estados Unidos

ultrapassaram oJapão como ocliente principaldo mercado de

camarão, com asimportações

anuais alcançando 300.000 toneladas.Na verdade, em 2001 o camarão haviasubstituído o atum enlatado como a primeiraescolha em frutos do mar nos pratosamericanos. Entretanto, os japonesescontinuam encabeçando o consumo percapita, apesar do recuo da economia, queajudou a diminuir o consumo anual decamarão para menos de 3 kg por pessoa.4

Partindo de um início modesto hápoucas décadas, a indústria do camarãotornou-se uma das mais lucrativasatividades pesqueiras do mundo. EstadosUnidos e Japão, sozinhos, importaram umvolume equivalente a US$ 7 bilhões em2000. No entanto, essa indústria é tambémuma das mais destrutivas.Aproximadamente, três quartos do camarãono mercado são pescados imoderadamente– principalmente por barcos de pescapuxando imensas redes cônicas (arrasto)sobre estuários, baías e plataformascontinentais. As traineiras varrem o leito domar de forma semelhante a uma derrubadade mata – destruindo o habitat e escavando

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ATRÁS DOS BASTIDORES: CAMARÕES

o que esteja no caminho das redes. Essemétodo arrasa alguns dos pontos maisbiologicamente produtivos dentro doecossistema marinho.5

A pesca do camarão, como é praticadaatualmente, não é apenas destrutiva, mastambém incrivelmente inconseqüente.Tartarugas, peixes e outras espéciesmarinhas arrastadas nas redes sãoconsideradas “pesca indesejada”, não-lucrativa, e geralmente são jogados –mortos – de volta ao mar. Em áreastemperadas, a relação da pesca indesejadapara o camarão é de 5:1. Nos trópicos, essarelação chega a 10:1, e é mais alta em algunspesqueiros. No total, a pesca do camarão éresponsável por um terço da pescadescartada no mundo, enquanto produzmenos de 2% do pescado mundial.6

Nos anos 80, novas tecnologiasinovadoras provocaram um incremento naaqüicultura do camarão, suplementando acaptura oceânica. Em 1989, criatórios decamarões floresceram ao longo do litoraltropical em todo o mundo e produziram umquarto da safra mundial de camarões. Desdeentão, a participação de mercado docamarão cultivado estabilizou-se, com seucrescimento prejudicado, em parte, porsurtos de doenças disseminadas emcriatórios densamente povoados.7

A aqüicultura de camarão não é maisbenigna, ecologicamente, do que a capturanatural. Uma fazenda típica de camarãoproduz quantidades copiosas de lixo,altamente tóxico. Produtos químicos efertilizantes utilizados nas fazendas escoampara manguezais e estuários, enquantocriadores jogam grande quantidade de lixodiretamente no oceano.

Onde são instaladas fazendas decamarão, os manguezais nativos são

extirpados. Os manguezais têm muitasfunções, servindo como local de procriaçãoe habitat a muitas espécies (inclusiveproporcionando criatórios para 85% dasespécies comerciais de peixes tropicais),funcionando como filtro da água eoferecendo proteção vital contra a erosãodo litoral e tempestades tropicais violentas.Quase um quarto dos manguezaisremanescentes do mundo foi destruído nasúltimas duas décadas, na maior parte paradar lugar a fazendas de camarão.8

Uma série de abusos de direitoshumanos tem acompanhado a gravedegradação ambiental da cultura docamarão, ao tempo em que poderososinteresses dos criadores chocam-se com oshabitantes locais prejudicados pelaatividade. Caracteristicamente, investidoresdomésticos e estrangeiros, com pouco ounenhum laço com as comunidades locais,entram para implantar as fazendasdestruindo, no processo, recursos vitais,esgotando meios de vida e deixando apopulação desamparada. Confisco de terra,intimidação violenta de pescadores locais eaté assassinatos são muito comuns.9

O físico e advogado ambiental indianoVandana Shiva fez uma estimativa de que,em média, uma fazenda de camarão criatalvez 15 empregos na fazenda e 50empregos em segurança ao redor dafazenda, enquanto desloca 50.000 pessoaspela perda da terra e abandono daagricultura e pesca tradicionais. Umpescador filipino lamentava: “O camarãovive melhor do que nós. Eles têmeletricidade, mas nós não. O camarão temágua limpa, nós não. O camarão tem muitacomida, e nós passamos fome”.10

A indústria de camarão tem um longocaminho a percorrer antes que possa ser

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ATRÁS DOS BASTIDORES: CAMARÕES

considerada, remotamente, sustentável; emuitos grupos de defesa sugerem que osconsumidores simplesmente não comamcamarão, para diminuir a carga em ambos,ecossistemas e pessoas. Numa notapositiva, um consórcio envolvendo oBanco Mundial, a Organização das NaçõesUnidas para Alimentos e Agricultura (FAO)e o Fundo Mundial para a Natureza estáexplorando normas de certificaçãoambiental para a aqüicultura. E o Sea TurtleRestoration Project e outros estãotrabalhando com a indústria paradesenvolver e promover dispositivos quereduzam, drasticamente, a pescaindesejada. Enquanto isso, grupos

ambientais comunitários, em áreas defazendas, estão juntando-se a grupos não-governamentais internacionais parapromover uma cultura mais ecologicamentesegura do camarão. Em um caso, o Projetode Ação em Manguezais e a Federação dePequenos Pescadores do Sri Lankaaproximam comunidades de pescadores eoutros interessados para promoverem aconservação e trabalharem com criadoresde camarão, a fim de coibir a destruiçãodos manguezais, protegendo o habitatdos peixes.11

— Dave Tilford,Center for a New American Dream

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ATRÁS DOS BASTIDORES: CAMARÕES

Refrigerantes

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Os refrigerantes, com suadoçura decadente, provaramser donos de um apelo universal.Em 2002, as pessoas beberam 185bilhões de litros de refrigerante,constituindo-se a terceirabebida comercial mais populardo mundo, depois do chá e doleite. No entanto,diferentemente dos dois, orefrigerante é uma misturacomplexa de ingredientes, incluindoágua, adoçantes, dióxido de carbono, dúziasde sabores naturais e artificiais efreqüentemente cafeína. Toda essa mistura écuidadosamente acondicionada em garrafase latas atraentes, comercializada edistribuída, para a delícia de consumidoresem quase todos os países do mundo.1

A água é o principal ingrediente dorefrigerante e é também vital para oprocessamento de seus outros ingredientese materiais de embalagem. As instalações deuma engarrafadora média produz mais de300.000 litros de bebida diariamente – umprocesso que requer até 1,5 milhão de litrosde água, o bastante para atender àsnecessidades mínimas de pelo menos 20.000pessoas. Na verdade, em algumas áreas comestresse hídrico, engarrafadoras entraramem conflito com comunidades locais. EmPlachimada, na Índia, por exemplo, asautoridades locais revogaram, em abril de

2003, a licença de funcionamento deuma fábrica da Coca-Cola depois dereclamações dos habitantes sobre

poços secando, piora daqualidade da água restantee liberação de efluentestóxicos. Porém, apóspressão da Coca-ColaCompany, um dos

maiores investidoresestrangeiros na economia

indiana, o governo nacional estáconsiderando a revogação dessa medida.Mais recentemente surgiram novosproblemas para as companhias derefrigerantes na Índia, quando cientistas dogrupo ambientalista Centre for Science andthe Environment detectaram pesticidas nasprincipais marcas de refrigerante em todo opaís – uma descoberta mais tardeconfirmada pelo governo.2

Os refrigerantes devem muito do seugosto, textura e todas suas calorias àgenerosa dose de adoçantes. Um lata médiade refrigerante comum, 355 mililitros, tem 38gramas (ou 150 calorias) de adoçantesadicionados. Ao tempo em que contribuempara a cárie dentária, os adoçantessubstituem alimentos mais saudáveis ou,quando consumidos conjuntamente com adieta costumeira, aumenta a ingestãocalórica total. Assim a adição de açúcarespode levar à deficiência de nutrientes ou

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ATRÁS DOS BASTIDORES: REFRIGERANTES

obesidade. Essa é uma preocupaçãoespecial com relação a crianças eadolescentes, que são mais vulneráveis àdeficiência alimentar e cujos hábitosalimentares são particularmente flexíveis.Nos Estados Unidos, quando o consumoanual de refrigerante dobrou para 185 litrospor pessoa, entre 1970 e 2001, o consumo deleite caiu 30%. Ao mesmo tempo, a ingestãototal de cálcio, por adolescentes, caiusignificativamente, enquanto os índices deexcesso de peso e obesidade quase quetriplicaram, passando para 14% (enquantochegava a 61% nos adultos). Um estudorecente demonstrou que crianças queingerem bebidas adoçadas com açúcar são,freqüentemente, mais obesas e que esserisco aumenta outros 60% com cada bebidaadicional consumida.3

Cafeína é um dos outros principaisingredientes dos refrigerantes – presente em80% do volume global nas 10 principaisbebidas carbonadas. Embora a indústria derefrigerantes alegue que usa cafeína pararealçar o sabor, estudos demonstraram queas pessoas não notaram diferençassignificativas em amostras cafeinadas edescafeinadas. Mais provavelmente, acafeína é adicionada por suas propriedadesestimulantes, que dão ao refrigerante umaexcitação extra, bem como ajuda a fidelizarclientes. A cafeína fisiologicamente criahábito com apenas 100 miligramas diários –e com menos em crianças. Uma lata de Pepsicontém 41 miligramas de cafeína.4

Enquanto em alguns países asengarrafadoras ainda dependam de garrafasde vidros reutilizáveis, usam mais comumenterecipientes plásticos ou latas de alumínio. Em2001, engarrafadoras em todo o mundoencheram 159 bilhões de recipientesplásticos, 112 bilhões de latas e 72 bilhões de

garrafas de vidro. Uma vez empacotados, osrefrigerantes são enviados, regionalmente,por caminhões para mercados, restaurantes,escolas e máquinas automáticas.Para tercerteza de que as pessoas vão comprar essasbebidas, os fabricantes de refrigerantesgastam bilhões em publicidade – natelevisão, outdoors e Internet, entre outrosmeios. A Coca-Cola Company e PepsiCo., osdois maiores fabricantes de refrigerantes, sãoo 13o e 20o maiores anunciantes do mundo.Conjuntamente, gastaram US$ 2,4 bilhões empublicidade em 2001. Os fabricantes tambémtrabalham por trás dos bastidores paragarantir um suprimento de refrigerante paratodos que subitamente desejem algo doce.Por exemplo, nos Estados Unidos, asengarrafadoras freqüentemente assinamcontratos de exclusividade com a direção deescolas, oferecendo uma parcela dos lucrosna venda de um determinado volume – umaestratégia que está sendo replicada em todoo mundo.5

A lata média de refrigerante, uma vezaberta, dura talvez 20 minutos antes de serjogada fora. Nos Estados Unidos, quasesempre termina no lixo. Se os americanostivessem reciclado os 32 bilhões de latas derefrigerantes que jogaram fora em 2002,teriam economizado 435 milhões detoneladas de alumínio – o suficiente parareconstruir toda a frota aérea comercialmundial mais de uma vez e meia.Umacoalizão de grupos ambientalistas nosEstados Unidos está, atualmente,trabalhando para criar uma nova lei, queestabelecerá uma meta nacional de 80% derecuperação de recipientes de bebidas epermitirá à indústria desenvolver seupróprio sistema para esse fim.Essaestratégia teve grande sucesso na Suécia,onde uma meta nacional tem mantido uma

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ATRÁS DOS BASTIDORES: REFRIGERANTES

taxa de recuperação de 86%, motivadaprincipalmente por um depósito de 10centavos de dólar por garrafa, imposto pelaindústria. Michigan, o único estado dosEstados Unidos com depósito de 10centavos por garrafa, tem uma taxa derecuperação de 95%.6

Enquanto os ambientalistas esperamdiminuir o volume do descarte,nutricionistas e autoridades governamentaisprocuram moderar o consumo total derefrigerantes, principalmente para combatera crescente obesidade epidêmica infantil. ACalifórnia, por exemplo, promulgoulegislação que eliminará gradativamente avenda de junk food (inclusive refrigerantes)nas suas escolas primárias públicas até o

início de 2004. Atualmente, a Califórnia taxajunk food, o que ajuda a reduzir o consumototal, servindo ao mesmo tempo como umafonte potencial de receita para educação dasaúde. Alguns países, tais como Suécia ePolônia, chegaram a banir comerciais nosprogramas infantis da televisão,reconhecendo a vulnerabilidade daaudiência às mensagens de marketing. Noentanto, as vendas de refrigerantescresceram 2,1% em 2002, globalmente. Osespecialistas da indústria prevêem que orefrigerante ultrapassará o leite como asegunda bebida mais consumida,mundialmente, nos próximos cinco anos.7

— Erik Assadourian

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

C A P Í T U L O 5

Rumos para umaEconomia Menos

ConsumistaBrian Halweil e Danielle Nierenberg

Em 1895, o caixeiro viajante King CampGillette teve a idéia de vender lâminas debarbear descartáveis – um produto que osconsumidores teriam que comprar cons-tantemente. As vendas logo dispararam,atingindo mais de 70 milhões em 1915, ten-do a Gillette hoje transformado-se numaempresa com um faturamento anual de US$10 bilhões. O que começou como um veí-culo de alto lucro para um comercianteassegurar um fluxo inesgotável de vendastransformou-se num conceito amplamenteadotado – a obsolescência programada.1

Pulando para o presente: em meados de2003, a Walt Disney anunciou que iria, embreve, testar no mercado um novo DVD,destinado a substituir os videodiscos e cas-setes de locadoras e que deixam de funcio-nar após um tempo predeterminado. A aber-tura da embalagem hermeticamente fecha-da dispara uma contagem regressiva quí-mica que torna o disco inutilizável apósmeras 48 horas. As sofisticadas tecnologiasenvolvidas podem ser estritamente do sé-culo XXI, mas a filosofia subjacente vem

do tempo daquele conceito introduzido porGillette e seus contemporâneos.2

Consumo comoMeio de Vida

Os avanços tecnológicos do último séculotornaram possível “produzir mais que a de-manda e oferecer mais que o necessário”,como observou o jornalista Edward Rothsteinrecentemente no New York Times. Cresci-mento econômico infindável, motivado peloconsumo descontrolado, tem sido elevadoao status de religião moderna. Isso é tantoum objetivo de executivos corporativos,desejosos de manter acionistas felizes, comoé uma meta de líderes políticos com um olhona vitória nas próximas eleições.3

Deixando de lado se posse material e fe-licidade humana trilham o mesmo caminho(vide Capítulo 8), alguns observadores ar-gumentam que produção em massa, consu-mo em massa e sistemas de descarte emmassa são nada menos do que simples ne-

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cessidade econômica. Em 1950, por exem-plo, o analista de marketing americano VictorLebow escreveu que “Nossa economia al-tamente produtiva... exige que façamos doconsumo um meio de vida... Precisamos queas coisas sejam consumidas, queimadas,desgastadas, substituídas e descartadas a umritmo cada vez mais intenso”.4

Mas a veneração compulsiva no altar doconsumo colocou a humanidade à beira de umabismo ambiental – exaurindo recursos, dis-seminando poluentes perigosos, minandoecossistemas e ameaçando conturbar o equilí-brio climático do planeta. Afastar-se desse pre-cipício exigirá um recuo radical das preten-sões humanas sobre os recursos da Terra.

As profundas divisões de classe da hu-manidade dificultam essa tarefa. Mesmo quan-do crescem evidências de que a classe globalde consumidores, com cerca de 1,7 bilhãode pessoas (vide Capítulo 1), precisará con-ter seu apetite material voraz, um númeroigualmente significativo de pessoas numaclasse média global emergente busca emulara aparente “boa vida.” E quase 3 bilhões depessoas – os pobres do mundo – lutam parasobreviver com poucos dólares por dia.5

Há muito se vem repetindo que o plane-ta não poderá suportar o ônus de todos nomundo em desenvolvimento possuírem tan-tos carros, refrigeradores e outros bens deconsumo como americanos, europeus oujaponeses. Do ponto de vista da justiça eigualdade global, entretanto, a solução nãopode ser um sistema de apartheid do con-sumo, que apóia a farra ocidental e negaaos pobres um padrão de vida decente. Pelocontrário, os ricos precisam conter seusapetites materiais descomunais. Cálculosaproximados indicam que, para acomodaro duplo imperativo de proteção ambiental e

igualdade social, as nações ricas precisari-am reduzir seu uso de materiais em até 90%ao longo das próximas décadas.6

No momento, o mundo lança-se na dire-ção oposta. Economias modernas são capa-zes de produzir imensas quantidades de bensa um custo muito baixo. Isso leva tanto pro-dutores quanto consumidores a considera-rem mais e mais produtos como nada maisque commodities que podem ser descarta-das com relativa rapidez, e não como itensque incorporam valiosos materiais e energiae que devem ser bem conservados eprojetados para uma longa vida útil.

Matérias-primas baratas, muitas delas ori-ginárias de países em desenvolvimento, sus-tentam a fartura consumista. As quantidadesglobais de matérias-primas comercializadasinternacionalmente estão aumentando signi-ficativamente, porém os preços dascommodities têm mantido-se numa trajetóriadescendente desde meados dos anos 70, con-tinuando uma queda que remete ao início doséculo XX. A extração maciça de combustí-veis, minerais e madeira assola ecossistemasdos países em desenvolvimento, provoca dis-túrbios sociais e, em alguns casos, causaguerras devastadoras por recursos, mesmoquando as pessoas nas áreas em conflitoauferem pouco benefício.7

Matérias-primas baratas, muitasdelas originárias de países emdesenvolvimento, sustentam afartura consumista.

Embora as velhas nações industriali-zadas continuem sendo os principais pro-

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dutores, volumes crescentes de merca-dorias estão sendo fabricadas em paísespobres. Particularmente nas indústrias demão-de-obra intensiva, como no setortêxtil e de confecções, as corporaçõesmultinacionais estão continuamente embusca de mão-de-obra mais barata, en-quanto muitos países em desenvolvimentotentam competir entre si mantendo ossalários baixos. A China surgiu como umgrande produtor de bens de consumobaratos, exportados principalmente parao mercado norte-americano. Seu supe-rávit comercial com os Estados Unidosdisparou de pouco mais de US$ 10 bi-lhões em 1990 para US$ 103 bilhões em2002. Até o México, há muito um pólode fábricas de baixo custo, vê-se cadavez mais incapaz de competir, uma vezque os salários na China são, em média,apenas um quarto do que se paga nessepaís. De 2001 para cá, um sétimo dasindústrias de exportação mexicanas, asmaquiladoras, fecharam.8

Há grande divergência de opiniões quan-to a tais estratégias de exportação e a bus-ca de um comércio livre mais abrangentepoderem alcançar um desenvolvimento sig-nificativo. Mas, independentemente de sa-lários baixos serem vistos como ingredien-tes inevitáveis de uma estratégia exporta-dora bem-sucedida, ou como símbolo deexploração e impedimento a mercados in-ternos vibrantes, o que fica evidente é quesustentam o consumismo.

A classe global de consumidores é, ob-viamente, a chave para reformular a rela-ção entre consumo e sustentabilidade – nãosó porque esta reivindica o grosso dos re-cursos globais, mas também porque suasações ecoam por todo o mundo. Todavia,

as soluções precisam levar em considera-ção as formas como os países em desen-volvimento estão atados à economia globale seu desejo de emular o modelo intensivoem materiais que ainda são vistos comorepresentativos da “vida boa”. É crucialdesenvolver formas de aliviar o ônusambiental associado ao consumo, particu-larmente para que um aumento dos níveisde consumo nos países mais pobres sejaplenamente compatível com a meta desustentabilidade.

A fim de seguir em direção a uma eco-nomia menos consumista, tanto consu-midores quanto produtores precisarãoatentar cuidadosamente para o pleno ci-clo de vida dos produtos. Isso significaque precisarão ater-se não apenas às ca-racterísticas do produto propriamentedito, como quanta energia seu uso requer,mas também aos materiais e métodosprodutivos utilizados em sua fabricaçãoe os tipos e qualidade de rejeitos geradosno processo. Além disso, consumidorese produtores precisarão considerar se osprodutos prestam os serviços e confor-tos desejados, quanto tempo irão durar eo que lhes acontecerá quando atingiremo fim de sua vida útil.

Uma variedade de ferramentas está,potencialmente, à disposição de governos,empresas e consumidores individuais paraque estes avancem em direção ao objeti-vo global de uma economia menosconsumista. Muitas não só estão em dis-cussão, como já começam a serimplementadas. Para fazer a diferença,entretanto, essas iniciativas terão que serincrementadas significativamente, e asbarreiras políticas e estruturais à mudan-ça terão que ser derrubadas.

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A Caixa de FerramentasGovernamental

Os governos podem tomar uma série demedidas para facilitar a transição parauma economia menos consumista. Entreas ações necessárias, as principais sãoreformular políticas fiscais e de subsídi-os, estabelecer regras licitatórias favorá-veis ao meio ambiente e estabelecer nor-mas adequadas para produtos e progra-mas de rotulagem.

Inúmeros subsídios permitem que ospreços de combustível, madeira, metais eminerais (e os produtos que os incorpo-ram) sejam bem menor do que seriam semos benefícios, encorajando maior consu-mo. Falta de dados disponíveis impede umacontabilidade completa dos subsídios ematividades ambientalmente danosas, e asmetodologias e definições podem divergirde estudo a estudo. Porém, um relatóriorecente da Organização para Cooperação eDesenvolvimento Econômico (OCDE) es-tima que os subsídios globais atinjam algoem torno de US$ 1 trilhão por ano, com ospaíses membros da OCDE representandotrês quartos do total.9

Um estudo realizado pelos pesquisado-res Norman Myers e Jennifer Kent relacio-na subsídios perversos em seis setores –agricultura, energia, transporte rodoviário,água, pesca e silvicultura –, somando US$850 bilhões, ou mais, anuais. Além disso,há cerca de US$ 1,1 trilhão de“externalidades” ambientais quantificáveis.(Vide Tabela 5-1.) Embora não sejam sub-sídios no sentido formal, representam efe-tivamente custos não-compensados, quetêm que ser assumidos pela sociedade e que,

como os subsídios, causam impactosdesvirtuantes e prejudiciais. Por exemplo,os custos ambientais e da saúde associa-dos ao do automóvel não são cobrados dosmotoristas, o que barateia uma viagem in-dividual de automóvel em comparação auma viagem de trem ou por outros meios.Subsídios e externalidades não-compensa-das, em conjunto, equivalem a 5–6% daeconomia global – aproximadamente omesmo que a economia alemã.10

Tabela 5-1. Estimativas de Subsídios eExternalidades Globais Ambientalmente Danosas

FONTE: vide nota final 10.

A eliminação gradativa de subsídiosdestrutivos e o deslocamento, mesmo deuma parcela desses recursos, para energiarenovável, tecnologias de eficiência, méto-dos limpos de produção e transportes pú-blicos dariam um impulso poderoso à tran-sição para a sustentabilidade.

Uma reforma fiscal ecológica é outramedida-chave. A intenção é fazer com que ospreços de mercado reflitam o custo ambientalpleno das atividades econômicas de uma for-ma mais adequada. Tributos de carbono,

Setor

AgriculturaCombustíveisFósseis, EnergiaNuclearTransporteRodoviárioÁguaPescaSilvicultura

Total

Subsídios

260

100

400502514

849

ExternalidadesQuantificáveis

250

200

380180n.d.78

1.088

Total

510

300

7802302592

1.937

(bilhões de dólares)

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impostos sobre o uso de energia não-renovávele materiais virgens, taxas de aterros sanitári-os e outros encargos sobre resíduos e polui-ção incentivariam os fabricantes a distancia-rem-se do uso pesado de combustíveis fós-seis, incrementaria a produtividade energéticae de materiais e coibiria a geração de resídu-os e emissões. Em vez da simples imposiçãode um novo imposto, entretanto, o conceitomais em discussão é a realocação fiscal. Ossistemas fiscais atuais tornam o uso de re-cursos naturais extremamente barato e enca-recem a mão-de-obra. A receita ecofiscal se-ria aplicada no alívio do ônus fiscal que hojerecai sobre o trabalho, o que incentivaria acriação de emprego.11

Discutida teoricamente desde o finaldos anos 70, a realocação fiscal ecológicacomeçou a tornar-se realidade nos anos90 num número cada vez maior de paíseseuropeus, com maior ímpeto entre 1990 e1994. Dinamarca, Alemanha, Itália,Holanda, Noruega, Suécia e Reino Unidointroduziram reformas que ligam uma sé-rie de impostos verdes a reduções em con-tribuições sociais. A receita de impostosambientais na União Européia (UE), antesdo ajuste da inflação, mais que quadrupli-cou entre 1980 e 2001, para 238 bilhõesde euros (Vide Tabela 5-2.) O grosso des-sa receita deriva de impostos sobre gaso-lina, diesel e veículos a motor.12

Tabela 5-2. Receita Fiscal Ambiental, União Européia, Anos Selecionados

FONTE: vide nota final 12.

Não obstante esses totais, realocaçõesecofiscais, até hoje, ainda são relativa-mente poucas. Impostos ambientais nospaíses da OCDE representam, em mé-dia, apenas 6–7% de toda a receita fis-cal. Impostos sobre folhas de pagamen-to e contribuições sociais, por outro lado,têm uma carga de 25%. (Na União Euro-péia, devido a seus programas sociaisextensos, o ônus fiscal da mão-de-obraé muito maior – entre 45 e 47% no finaldos anos 90).13

Isso não quer dizer que nada foi con-quistado. Na Alemanha, por exemplo, umecoimposto sobre formas diferenciadas deconsumo de energia foi introduzido origi-nalmente em 1999, com quatro aumentosanuais subseqüentes. Em 2002, já havia aju-dado a evitar emissões de mais de 7 mi-lhões de toneladas de dióxido de carbono(CO

2). As receitas anuais aumentaram de

aproximadamente US$ 4 bilhões em 1999para cerca de US$ 19 bilhões em 2003. Asreduções nas contribuições sociais,

Impostos Ambientais

Receita

Receita como Parcela de Todos os Impostos eContribuições SociaisReceita como Parcela do Produto Interno Bruto

1980

54,6

5,82,2

(percentual)

1990

130,4

6,22,5

2001

237,7

6,52,7

(bilhões de euros)

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viabilizadas por esses recursos, ajudarama criar 60.000 postos adicionais de traba-lho em 2002, um número que deverá cres-cer para 250.000 até 2010.14

al subiu para 60%, tendo o governo decla-rado que a indústria, em breve, terá quepagar a taxa plena caso não atinja uma metavoluntária para 2010 de redução das emis-sões de CO

2 em até 35%.16

Para chegar a ser uma ferramenta im-portante para a sustentabilidade, o escopoda reforma ecofiscal precisaria ser bemmais ampla e eliminar todas as brechas.Isso exigirá vencer difíceis batalhas políti-cas contra aqueles interessados em mantero status-quo. O desafio é ilustrado pela ex-periência alemã, na qual políticos oposici-onistas e setores da mídia lançaram umaintensa campanha desabonadora doecoimposto. Tendo alcançado rapidamenteuma ampla aceitação junto a todos os par-tidos políticos e o grande público nos anos90, a reforma ecofiscal sofreu um declínioigualmente veloz em sua popularidade logoque foi implementada.17

Outra ferramenta importante que osgovernos podem utilizar é a licitação, con-forme descrito detalhadamente no Capítu-lo 6. Seja em âmbito federal ou municipal,autoridades governamentais nos países in-dustrializados gastam trilhões de dólares emconcorrências públicas todo ano. Ao ad-quirir produtos ambientalmente desejáveis,poderão exercer uma forte influência so-bre o modo como esses produtos sãoprojetados, sua eficiência e durabilidade, etambém se são manejados responsavelmen-te no fim de sua vida útil. Regras de aquisi-ção bem planejadas podem provocar ino-vações tecnológicas e ajudar a implantarmercados verdes.18

Os governos poderão influenciar o de-senvolvimento de produtos ainda mais, atra-vés de instrumentos normativos. Normas

Todas as economias modernaspodem ser mais enxutas semque isso implique em suacondenação.

Infelizmente, ecoimpostos são enfraque-cidos freqüentemente por uma série de bre-chas – concessão de isenções a certas in-dústrias ou fontes energéticas, aplicação dealíquotas reduzidas a empresas de energiaintensiva ou concessão de reembolsos par-ciais a empresas. Isso quase sempre é fei-to em nome da preservação dacompetitividade da indústria doméstica nomercado internacional. Esses argumentosperderiam força se as políticas nacionaisfossem harmonizadas. (Vide Capítulo 7.)Isso é o que a União Européia está tentan-do fazer com uma diretriz para taxação deenergia, que deverá entrar em vigor em2004. Até hoje, entretanto, as deliberaçõesiniciadas em 1997 resultaram num textodesapontador de concessões que enfraque-ceram o projeto original.15

Na Alemanha, o carvão e combustíveisde jatos não estão sujeitos ao ecoimposto.Empresas dos setores mineiros emanufatureiros, concessionárias de servi-ços públicos, construtoras e empreendimen-tos agrícolas são taxados a apenas 20% dataxa nominal aplicada ao gás natural, óleopara aquecimento e eletricidade. Entretan-to, no início de 2003, essa taxa preferenci-

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nacionais têm sido adotadas em um númerocrescente de países para poupar energia eágua, por exemplo. Em 2000, 43 países dis-punham de programas de eficiência em ele-trodomésticos – sete vezes mais do que em1980. A maioria deles na Europa e Ásia.19

Normas que forçam o mercado a exigirque fabricantes atendam padrões mínimossão bem complementadas por programasde ecorrotulagem, que motivam o merca-do ao oferecer aos consumidores as infor-mações necessárias para tomarem decisõesresponsáveis de compra e, conseqüente-mente, encorajar os fabricantes a projeta-rem e comercializarem produtos maisecoamigáveis.20

Esquemas de rotulagem foram desenvol-vidos para uma vasta gama de produtos, in-cluindo eletrodomésticos, eletricidade, pro-dutos de madeira e produtos agrícolas comocafé e banana. Alguns enfocam um únicoproduto ou classe de produto, enquanto ou-tros avaliam uma ampla série de itens. Oprimeiro e mais abrangente programa derotulagem – o Anjo Azul, da Alemanha – acabade celebrar seu 25o aniversário. O númerode produtos cobertos cresceu de cerca de100 em 1981 para 3.800 hoje. Tanto os pro-gramas de rotulagem governamentais quan-to os privados cresceram aceleradamentenos últimos anos.21

Na realidade, há rótulos concorrentesem algumas áreas, o que pode confundiros consumidores e até mesmo frustrar op-ções ecoamigáveis de consumo. Algunsprogramas, particularmente aqueles patro-cinados pelas indústrias, podem fazer ale-gações vagas ou sem substância sobre oteor de reciclagem de um produto, méto-dos de cultivo orgânico, biodegradabilidadee outras questões. Outros podem basear-

se em padrões de desempenho relativamen-te baixos. Preocupado com esses proble-mas, um relatório recente da OCDE argu-mentou: “A fim de evitar uma descrençageral nos esquemas de rotulagem, algumtipo de instrumento normativo pode sernecessário para sinalizar aos consumido-res que certos esquemas são mais adequa-dos para certas questões que outros”. Esseregulamento pode tomar a forma de pro-gramas de certificação. Uma variedade deórgãos certificadores (agências governa-mentais ou grupos privados especializados)pode avaliar se um produto está em con-formidade com as normas vigentes ou ve-rificar a correção das alegações ambientaisfeitas pelos fabricantes.22

Todas as ferramentas discutidas aqui– eliminação gradativa de subsídios,realocação fiscal, licitações verdes, nor-mas para produtos e programas derotulagem – precisarão ser expandidasdramaticamente para colocar o consumonuma base sustentável; mas o esforço paraconseguí-lo é extremamente árduo. O fra-casso da comunidade internacional emchegar a um acordo sobre reduções desubsídios agrícolas, durante a rodada denegociações no México, em setembro de2003, demonstrou claramente quão arrai-gados são os interesses particulares.

Enxuto e Limpo

As economias industrializadas mobilizamgigantescas quantidades de combustíveis,metais, minerais, materiais de construçãoe matérias-primas florestais e agrícolas. Umestudo para a União Européia constatou queem 1997 a produção per capita de materi-

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ais somou cerca de 80 toneladaspor americano, 51 toneladas porcidadão da UE e 45 toneladas porjaponês. Por meio demetodologias diferentes, um es-tudo do World Resources Institutechegou a números semelhantes,embora tenha assinalado os flu-xos japoneses de materiais emapenas 21 toneladas por pessoa.23

Nenhuma das economias in-dustrializadas é hoje verdadeira-mente sustentável. Todas aseconomias modernas podem sermais enxutas sem que isso im-plique em sua condenação. Sen-do seus níveis de padrão de vidarelativamente equivalentes, se europeuspodem viver com praticamente metadeda produção material que é mobilizadapara os americanos (e os japoneses atécom menos), há bastante espaço paramelhoria nos Estados Unidos – o arqué-tipo do consumo que grande parte do res-to do mundo esforça-se para emular.

Na realidade, a maior parte do fluxode materiais nas economias industrializa-das não tem finalidade alguma e, efetiva-mente, nunca passa pelas mãos de con-sumidor algum. Os chamados fluxosocultos representam um pouco mais de60% do fluxo total na UE – uma parcelaque tem se mantido mais ou menosinalterada nas últimas duas décadas. NosEstados Unidos, fluxos ocultos são res-ponsáveis por mais de 70%; no Japão,por um pouco menos da metade. (VideFigura 5-1.) Esses fluxos ocultos inclu-em rejeitos da mineração e de outras in-dústrias, acúmulo de terra (terra retirada

por mineradoras para chegar ao minério),materiais de dragagem, dióxido de car-bono e outras emissões e poluentes, alémde perda do solo, devido à erosão de ter-ras cultivadas. A expressão “fluxos ocul-tos” é adequada, pois são em grande parteinvisíveis para os consumidores. É ocaso, particularmente, das crescentesquantidades de resíduos associados àextração de recursos nos países em de-senvolvimento, posteriormente importa-dos pelas nações industrializadas.24

Lidar com fluxos ocultos exige quealgumas das atividades mais destrutivas– mineração, fundição e extração de ma-deira, particularmente – sejam reduzidas.Isso pode ser obtido através da melhoriada eficiência energética e material,incrementando a reciclagem e reutilização,e estendendo a vida útil dos produtos paraque haja menor necessidade de extraçãode matérias-primas virgens. Mas há tam-bém bastante espaço para redução do

Figura 5-1. Necessidades Materiais Per Capita nosEstados Unidos, Alemanha e Japão, 1996

100

80

60

40

20

0

Estados Unidos Alemanha Japão

Toneladas

Produção Domésticapara Consumo

Fluxos Ocultos

Fonte: WRI

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impacto ambiental dos bens e serviçosefetivamente oferecidos aos consumido-res. Desmaterialização, produção limpa esistemas de laço fechado de resíduo zerosão alguns dos conceitos-chave por trásde uma nova abordagem.

Uma variedade de estudos e avaliaçõesafirmou o potencial de uma estratégia de“desmaterialização” – um conceito criadopelos co-fundadores do Rocky MountainInstitute, Amory e Hunter Lovins, o eco-empresário Paul Hawken e o pesquisadore político alemão Ernst Ulrich vonWeizsäcker. Objetiva reduzir o volume dematérias-primas necessárias para criaçãode um produto, através, por exemplo, daprodução de papel mais fino e veículosmais leves e redução do volume de ener-gia necessária para operar produtos – delâmpadas a lavadoras e automóveis. Es-pecificamente, os defensores da desma-terialização pugnam por políticas “Fator10”, que buscam oferecer um dado volu-me de bens e serviços com um décimo deinsumo material.25

Embora o potencial tecnológico paradesmaterialização esteja longe de serexaurido, já está havendo um certodesatrelamento entre crescimento econô-mico e produção material. Na União Eu-ropéia, por exemplo, a produtividade dosrecursos (medida como produto internobruto por necessidades totais de materi-ais) melhorou 39% entre 1980 e 1997.Porém, essa conquista não se traduziu emmenor demanda global pelos recursos: naEuropa Ocidental, América do Norte e Ja-pão, o consumo total de recursos tem per-manecido relativamente constante e emníveis altos e insustentáveis.26

E por quê? Enquanto o consumo demateriais, por unidade, declinou, as pre-ferências e desejos do consumidor man-têm-se numa espiral ascendente: carros ecasas estão cada vez maiores e mais so-fisticados, as viagens são para lugarescada vez mais distantes, dietas estão cadavez mais concentradas em carnes e hásempre um fluxo constante de “novida-des” e acessórios afins. E as economiasindustrializadas passaram por inesperadoefeito repique: menor energia por unidadeou menor exigência de materiais equivalea menores custos de consumo, o que, porsua vez, encoraja maior uso. Ganhos deeficiência vêm sendo, repetidamente, neu-tralizados ou superados. Por exemplo,maior eficiência de combustível significaque motoristas podem viajar mais longepelo mesmo custo. E o número cada vezmaior de automóveis significa que a de-manda de combustível e materiais comoalumínio, cobre, aço e plásticos, da indús-tria automotiva, continua subindo. A des-peito da importância da desmaterialização,ela, por si só, não será suficiente frente àforça irresistível do consumo.27

Os produtos tóxicos da nossa socie-dade material são outro motivo de preo-cupação. Defensores da “produção lim-pa” dizem que há diversas oportunidadespara reduzir, e talvez eliminar, a depen-dência de materiais tóxicos na industria-lização, evitando a poluição atmosféricae hídrica e impedindo a geração de resí-duos perigosos.28

Uma fábrica de papel e celulose no RioAndroscoggin, em Jay, Maine, é umexemplo inspirador. No início dos anos90, a fábrica, pertencente ao gigante in-dustrial International Paper, era grande

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poluidora e mantinha um relacionamentoantagônico com seus operários e comu-nidade local. Uma reforma administrati-va resultou em colaboração ativa cominteressados locais, e regulamentosambientais estaduais e comunitários fo-ram fatores fundamentais de mudança.Um foco inicial no modelo de contençãode efluentes para posterior tratamento edestinação, conhecido como end-of-pipe,cedeu lugar rapidamente a medidas deprevenção de poluição. A fábrica reduziudramaticamente as l iberações depoluentes orgânicos e mercúrio; eliminouemissões de dioxina, furano e clorofór-mio e reduziu as emissões de particuladosà metade. Reduziu, também, a geraçãode resíduos perigosos, de 2,72 milhõesde quilos em 1990 para 136.000 quilosem 1998, e cortou o volume de resíduossólidos em aterros em 91%.29

De forma mais ambiciosa, a adminis-tração da fábrica esforçou-se para se afas-tar da ortodoxia industrial em que, namodalidade “berço-a-túmulo”, matérias-primas são extraídas e processadas, esubstâncias não diretamente úteis à indús-tria transformam-se em refugo indesejado.Um sistema alternativo “berço-a-berço”busca criar sistemas integrados, de laçofechado, onde os subprodutos de uma in-dústria viram insumo de outra, em vez deconverterem-se em bombas-relógioambientais. (Vide Quadro 5-1.) Algunssubprodutos, incluindo as cinzas da inci-neração de lodo e casca e dióxido de car-bono de um forno de cal, estão sendo uti-lizados por outras indústrias locais. Narealidade, várias empresas decidiram im-plantar-se próximas à fabrica para apro-veitamento dos seus subprodutos.30

Na Europa Ocidental, América doNorte e Japão, o consumo total derecursos tem permanecido em níveisaltos e insustentáveis.

Ambientalistas em todo o mundo consi-deram a comunidade de Kalundborg, na Di-namarca, como desbravadora da ecologiaindustrial. Uma teia cada vez mais compactade relações simbiônticas entre várias empre-sas locais foi lentamente tecida ao longo dasúltimas três décadas, gerando ganhos eco-nômicos e ambientais. Por exemplo, o gásnatural que antes queimava nas torres damaior refinaria da Dinamarca está sendo uti-lizado como insumo numa fábrica de pape-lão; cinza em suspensão, dessulfurizada, deuma termelétrica a carvão (também a maiordo país), é destinada a uma fábrica de ci-mento; e lodo contendo nitrogênio e fósforode uma indústria farmacêutica é utilizadocomo fertilizante por agricultores vizinhos.31

Em vez de um plano diretor, a rede exis-tente em Kalundborg evoluiu, na realidade,lenta e espontaneamente a partir de uma sériede acordos bilaterais, todos concluídos porserem economicamente atraentes. Essa ex-periência apresenta uma alternativa real e efe-tiva à ortodoxia industrial. Porém, a replicaçãodesse modelo pode não ser muito fácil. Oestabelecimento de uma simbiose industrialde resíduo-zero leva um tempo considerável.Talvez seja mais viável construir essas teiasrecíprocas peça por peça, em vez de desen-volver projetos excessivamente ambiciososlogo de início. Mesmo assim, a noção de pro-dução limpa está despertando um interessecrescente em todo o mundo. Entre outras,algumas empresas estão se empenhando nes-se objetivo na China, Fiji, Índia, Japão,Namíbia, Filipinas, Porto Rico e Tailândia.32

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

QUADRO 5-1. A ALTERNATIVA BERÇO-A-BERÇO

Imaginemos um mundo onde tudo quefazemos, usamos e consumimos nutre anatureza e a indústria – um mundo onde ocrescimento é bom e a atividade humana gerauma pegada ecológica agradável e restauradora.

Embora isso possa parecer heresia paramuitos no mundo do desenvolvimentosustentável, as qualidades destrutivas dosistema industrial moderno de berço-a-túmulopodem ser consideradas como resultado de umproblema fundamental de planejamento, e não aconseqüência inevitável do consumo e daatividade econômica. Efetivamente, o bomplanejamento – o planejamento ético, baseadonas leis da natureza – pode transformar o fazere consumir numa força regeneradora.

Esse novo conceito de planejamento –conhecido como berço-a-berço – vai além damodernização de sistemas industriais pararedução dos seus efeitos danosos. Abordagensconvencionais à sustentabilidadefreqüentemente fazem do uso eficiente deenergia e materiais seu objetivo final. Emborapossa ser uma estratégia útil de transição, tendea reduzir os impactos negativos semtransformar a atividade danosa. A reciclagem decarpetes, por exemplo, pode reduzir oconsumo, porém, caso o forro contenha PVC,como a maioria dos forros de carpetes, oproduto reciclado ainda está numa viagem sóde ida para o aterro, onde se transforma emresíduo perigoso.

O planejamento berço-a-berço, por outrolado, oferece um arcabouço onde os ciclosefetivos e regenerativos da naturezaproporcionam modelos para projetoshumanos totalmente positivos. Dentro dessaestrutura podemos criar economias quepurificam o ar, terra e água; que dependem dareceita solar e não geram nenhum resíduotóxico; que utilizam materiais seguros e sadios,reabastecendo o planeta e sendo eternamentereciclados, e que geram benefícios que realçamtoda a forma de vida.

Ao longo da última década, a estruturaberço-a-berço evoluiu constantemente dateoria à prática. No mundo industrial, está secriando um novo conceito de materiais e defluxos de materiais. Da mesma forma queocorre no mundo natural, onde o “resíduo” deum organismo circula através de um

ecossistema, proporcionando alimento paraoutras criaturas vivas, os materiais de berço-a-berço circulam em ciclos de laço fechado,fornecendo nutrientes para a natureza ouindústria. Esse modelo reconhece doismetabolismos, dentro dos quais os materiaisfluem como nutrientes sadios.

Primeiro, os ciclos nutrientes da naturezaconstituem o metabolismo biológico.Materiais destinados a um fluxo ótimo nometabolismo biológico são nutrientesbiológicos. Produtos concebidos com essesnutrientes, como embalagens biodegradáveis,são destinados a serem utilizados e devolvidoscom segurança ao meio ambiente, paraalimentar sistemas vivos. Segundo, ometabolismo técnico, destinado a refletir osciclos berço-a-berço do planeta, é um sistemade laço fechado, em que recursos sintéticos eminerais de alta tecnologia, e valiosos –nutrientes técnicos – circulam num cicloperpétuo de produção, recuperação erefabricação. Idealmente, todos os sistemashumanos que compõem o metabolismo técnicosão movidos pela energia renovável do sol.

Nutrientes biológicos e técnicos já estão nomercado. O tecido de estufaria ClimatexLifecycle é uma mistura de lã livre de resíduosde pesticidas e rami cultivado organicamente,tingido e processado inteiramente comprodutos químicos não-tóxicos. Todos seusinsumos de produto e processo foramdefinidos e selecionados em função dasegurança humana e ecológica, dentro dometabolismo biológico. Resultado: os retalhosdo tecido são transformados em feltro eutilizados por clubes de jardim como matériavegetal para cultivo de frutas e legumes,devolvendo os nutrientes biológicos do tecidoao solo.

Enquanto isso, a Honeywell está lançandouma fibra de carpete de alta qualidade chamadaZeftron Savant, feito da fibra de nylon 6,perpetuamente reciclável. Zeftron Savant foiprojetada para ser recuperada e repolimerizada– retornada a suas resinas constituintes – paratransformar-se num novo material para novoscarpetes. Na realidade, a Honeywell poderecuperar o velho e convencional nylon 6 etransformá-lo em Zeftron Savant, ou seja, umaefetiva reciclagem “ascendente”, e não

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

“descendente”, de um material industrial. Onylon é “rematerializado”, e não-desmaterializado – um produtoverdadeiramente berço-a-berço.

Na indústria de carpetes comerciais,sistemas de recuperação de materiais estãoproporcionando um modelo para odesenvolvimento de metabolismos técnicos. AShaw Industries, por exemplo, desenvolveuuma placa de carpete de nutriente técnico paraseus clientes comerciais. A empresa garanteque toda fibra de seus carpetes de nylon 6 serárecebida de volta e retransformada em fibra denylon 6 para carpete, e seu forro seguro depoliolefina retornado a forro seguro depoliolefina. Matéria- prima a matéria-prima.Um ciclo de berço-a-berço.

A placa de carpete de nutriente técnico daShaw é concebida como um produto de serviço,um elemento-chave da estratégia berço-a-berço.Produtos de serviço são bens duráveis, comocarpetes e lavadoras, projetados por seufabricante para serem devolvidos ereutilizados.O produto presta um serviço aocliente enquanto o fabricante mantém apropriedade dos bens materiais do produto. Aofim de um determinado período de uso, ofabricante retoma o produto e reutiliza seusmateriais em outro produto de alta qualidade.Amplamente praticado, o conceito de produtode serviço pode mudar o estilo de consumo, àmedida que os sistemas humanos movidos aenergia renovável reutilizam materiais valiosos,através dos ciclos de vida de muitos produtos.

Em larga escala, esse conceito podetransformar a natureza das economias. EmChicago, por exemplo, esses princípios sãoum referencial para os esforços do PrefeitoRichard Daley de transformar a cidade na maisverde da América, um pólo de eficiênciaenergética e fluxos benéficos de materiais.

Numa economia berço-a-berço, as cidadessão o lar e a fonte principais da nutriçãotécnica – o local onde metais são forjados,

polímeros sintetizados e tratores,computadores e moinhos desenhados efabricados. As cidades enviam esses materiaispara o mundo, recebendo-os de volta àmedida que transitam pelos ciclos de laçofechado. Enquanto isso, o campo pode serconsiderado o lar do metabolismobiológico.Os materiais lá gerados – alimentos,madeiras, fibras – são criados por meio dasinterações da energia solar, solo e água e são afonte da nutrição biológica das comunidadesrurais e cidades vizinhas. Um dos papéisfundamentais das cidades nesse metabolismoé devolver a nutrição biológica de formasegura e sadia, digamos, como fertilizantelimpo, ao solo rural. Esses fluxos denutrientes e energia são os metabolismosduplos da cidade viva, a força motriz daseconomias vibrantes do futuro.

Mesmo nações grandes e influentes como aChina adotaram estratégias berço-a-berço.Criado a partir de uma tradição de 4.000 anosde agricultura sustentável, o Vice-Ministro deCiência e Tecnologia, Deng Nan, anunciou emsetembro de 2002 que a China dará início aodesenvolvimento de indústrias e produtoscom base em princípios berço-a-berço,através do Centro de DesenvolvimentoSustentável China–Estados Unidos. A Chinajá está desenvolvendo uma vila berço-a-berçocomo também empreendimentos de energiasolar e eólica.

A estratégia berço-a-berço revela nossosprojetos como expressões encantadoras decriatividade, como sistemas de sustentação devida em harmonia com os fluxos de energia,almas humanas e outros seres vivos. Quandoisso tornar-se o símbolo das economiasprodutivas, o próprio consumo terá sidotransformado.

– William McDonough e MichaelBraungart, McDonough Braungart DesignChemistry______________________________________FONTE: vide nota final 30.

QUADRO 5-1. (continuação)

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Tome de Volta

É muito mais provável que o consumo derecursos seja minimizado e a geração deresíduos e emissões evitada se os fabrican-tes, desde o início, incorporarem conside-rações ambientais ao projeto de produtos,desenvolvimento de tecnologias de produ-ção e seleção de materiais. A fim de incen-tivar as empresas a seguirem essa direção,um número crescente de governos promul-gou leis que tratam do “princípio de res-ponsabilidade do produtor” (PRP), obrigan-do as empresas a aceitarem os seus produ-tos de volta no final de sua vida útil. Essesprincípios proíbem disposição final em ater-ros e incineração da maioria dos produtos,estabelecem requisitos mínimos dereutilização e reciclagem, especificam se osprodutores devem ser responsabilizadosindividualmente ou coletivamente pelos pro-dutos devolvidos e estipulam se os produ-tores podem cobrar uma taxa quando re-cebem seus produtos de volta.33

A meta do PRP é induzir fabricantes areavaliarem os impactos totais do ciclo devida de seus produtos. Idealmente, elimi-narão peças desnecessárias, abandonarãoembalagens dispensáveis e desenharão pro-dutos facilmente desmontáveis, recicláveis,remanufaturáveis ou reutilizáveis.34

Parte do desafio é desenvolver materi-ais que possam ser facilmente reutilizadosou que, de outra forma, não permaneçamem aterros durante séculos. Por exemplo,a gigante química alemã BASF inventou umnovo material feito de fibra de nylon 6 infi-nitamente reciclável; pode ser retornada asuas resinas constituintes e transformadaem novos produtos. A empresa têxtil suíça

Rohner e a empresa de desenho têxtil DesignTex desenvolveram, em conjunto, um te-cido de estofamento que, uma vez removi-do de uma cadeira ao final de sua vida útil,decompõe-se naturalmente.35

A filosofia do PRP nasceu na Diretivade Embalagem da Alemanha, em 1991.Responsabilizando os produtores pela de-volução e manejo dos resíduos das emba-lagens, a lei provocou reduções constan-tes de materiais de embalagem. E o maisimportante: atribui-se a ela a motivação demuitos governos na Europa, Ásia e Amé-rica Latina abraçarem esse conceito. Des-de então, a abordagem PRP disseminou-se muito além das embalagens para abran-ger uma variedade crescente de produtose indústrias, incluindo aparelhos elétricose eletrônicos, máquinas de escritório, au-tomóveis, pneus, mobília, produtos depapel, baterias e materiais de construção.(Vide Tabela 5-3.)36

A Europa continua no centro do movi-mento PRP. Muitos governos europeus ins-tituíram leis sobre o PRP e a União Euro-péia promulgou diretivas para embalagens,produtos eletrônicos, baterias e automóveisnuma iniciativa para harmonizar esforçosnacionais às vezes divergentes.37

Motivada por preocupações sobre oacelerado acúmulo de lixo elétrico e eletrô-nico de computadores, celulares e equipa-mentos semelhantes, a UE adotou umaDiretiva para Equipamentos Elétricos e Ele-trônicos em fevereiro de 2003. Os paísesmembros devem implementar legislaçãonacional até agosto de 2004 (estão livrespara impor políticas mais restritivas) e osprodutores dos equipamentos terão queimplantar sistemas de devolução e manejo

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do lixo elétrico e eletrônico gratuitamenteaos consumidores até agosto de 2005. Paraprodutos comercializados antes de agostode 2005, os custos deverão ser comparti-lhados entre todos os produtores, confor-me sua participação de mercado; para itensvendidos posteriormente, os produtores têmresponsabilidade individual. (Embora a res-ponsabilidade individual seja um incentivopara adoção de mudanças de projetoambientalmente amigáveis que reduzam oscustos dessa responsabilidade, há tambémo perigo de sistemas individuais de retornoprovocarem duplicação de esforços e pos-sivelmente maiores custos.)38

Uma diretiva paralela sobre Restrições aSubstâncias Perigosas exige que os fabri-

cantes de equipamentos elétricos e eletrôni-cos não mais utilizem chumbo, mercúrio,cádmio, cromo hexavalente e retardadoresde chama bromados PBDE e PBB em pro-dutos vendidos após 1o de julho de 2006. Háuma preocupação crescente em todo o mun-do quanto a esses materiais perigosos; oJapão é o líder na eliminação dessas subs-tâncias dos produtos elétricos e eletrônicose a China anunciou que modelará sua políti-ca à diretiva da UE.39

Os Estados Unidos ficaram para trásna questão da responsabilidade do pro-dutor. A oposição da indústria bloqueoulegislação federal sobre devolução. É ten-tador presumir que empresas norte-ame-ricanas que operam mundialmente aca-

Tabela 5-3. Leis sobre o Princípio de Responsabilidade do Produtor, Setores Selecionados1

1As diretivas na União Européia foram promulgadas em todos os setores cobertos pela tabela, excetopneus. Além das regras nacionais adotadas individualmente por países membros da UE, essas diretivassão obrigatórias para todos os atuais 15 membros (e serão obrigatórias para os 10 países do LesteEuropeu que estão prestes a se tornar membros).

FONTE: vide nota final 36.

Área de Produçãoou Setor

Embalagens

Equipamentos Elétricose Eletrônicos

Veículos

Pneus

Baterias

Países com Legislação PRP

Mais de 30 países, inclusive Alemanha, Brasil, Coréia do Sul, China, Holanda,Hungria, Japão, Peru, Polônia, República Tcheca, Suécia, Taiwan e Uruguai(apenas vasilhames de bebidas).

Atualmente, mais de uma dúzia de países, inclusive Alemanha (voluntariamente),Bélgica, Brasil, Coréia do Sul, China, Dinamarca, Holanda, Itália, Japão, Noruega,Portugal, Suécia, Suíça e Taiwan.

Alemanha, Brasil, Dinamarca, França, Holanda, Japão, Suécia e Taiwan.

Brasil, Coréia do Sul, Finlândia, Suécia e Taiwan; Uruguai está considerandomedidas voluntárias.

Pelo menos 15 países, inclusive Alemanha, Áustria, Brasil, Holanda, Japão,Noruega e Taiwan; Uruguai está considerando medidas voluntárias.

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barão decidindo que, já que são obriga-das a atender às exigências do PRP naEuropa e em outros países, poderiamadotar essas políticas também nos Esta-dos Unidos. A IBM começou a implantarprogramas de devolução já em 1989, naEuropa, e depois iniciou um programamais restrito nos Estados Unidos em1997. Mas a IBM pode ser uma exceção;o que se vê atualmente oferece poucaesperança para que isso ocorra.40

Vários governos estaduais e muni-c ipais ( inc lu indo Flór ida, Maine,Massachusetts, Minnesota, Carolina doSul e Wisconsin) demonstraram interes-se em leis de devolução no estilo euro-peu. Caso surgisse um conjunto de re-gulamentos locais, poder-se-ia esperarque as empresas decidissem que regrasnacionais (embora talvez ainda voluntá-rias) seriam preferíveis. Foi exatamenteisso que ocorreu em relação às bateriasde níquel-cádmio – tendo a indústria lan-çado uma iniciativa nacional de devolu-ção e reciclagem em 1995.41

Algumas empresas estão imple-mentando ações voluntárias de devolução,para que se evitem programas obrigató-rios. Sob crescente pressão das autori-dades normativas e grupos locais paracuidarem do lixo eletrônico, grandes fa-bricantes de computadores como Dell,Hewlett Packard e IBM implantaram pro-gramas voluntários. Todavia, as taxas dedevolução tendem a ser baixas, pois co-bram dos consumidores US$ 20–30 nadevolução do produto.42

Outras empresas e indústrias vêem oPRP como uma oportunidade de reduzircustos de produção ou angariar simpatiade consumidores ambientalmente consci-

entes. Fabricantes de carpetes e alguns dosseus maiores fornecedores, por exemplo,vêem a devolução como um veículo devantagem competitiva, tendo iniciado umavariedade de programas para a reutilizaçãoe reciclagem de carpetes usados. A Kodakdeu início a um programa de devolução decâmeras descartáveis em 1990 (porémacredita-se que um quarto dessas câmerasainda acabe em lixões). A Nike implantouum programa chamado “Reutilize-um-Sa-pato”, numa reciclagem “descendente” detênis usados. A borracha da sola e a espu-ma da meia-sola dos tênis usados são con-vertidas em material de revestimento depistas de corrida e outras instalações atléti-cas e playgrounds. O tecido da parte supe-rior transforma-se em estofamento paracarpetes.43

Mas o progresso ainda é limitado nosEstados Unidos. E, apesar de avançossignificativos na Europa, ainda há algunsdesafios técnicos e políticos. A reci-clagem de plásticos tem mostrado-se re-sistente a soluções fáceis, como tam-bém certos materiais de embalagem queconsistem de um amálgama complexo decamadas de materiais diferentes. A opo-sição da indústria está longe de ser der-rubada. Na Alemanha, o setor de varejoestá minando uma tentativa ambiciosa deexigir a devolução de todas as garrafas elatas de bebida e desencorajar o uso dedescartáveis. Finalmente, o ritmo acele-rado com que muitos aparelhos eletrôni-cos, como celulares, palm-pilots e com-putadores, ficam obsoletos é um desafiotremendo: é difícil implantar sistemas efi-cientes de coleta quando o giro é tão ace-lerado e o volume de materiais acumula-se tão rapidamente.44

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Repensando Produtos eServiços

As economias industriais modernas são ca-pazes de produzir imensas quantidades debens com tanta facilidade, e a um custotão baixo, que há um grande incentivo paraconsiderar a maioria das mercadorias comodescartável, destinada a se desfazer rapi-damente, em vez de projetar e fabricar du-rabilidade. Muitos bens de consumo sãofeitos de tal forma que desencorajam repa-ros e substituição de peças e, às vezes, tor-nam isso praticamente impossível. E mes-mo quando algo pode ser reparado, o cus-to é freqüentemente muito alto em relaçãoa um produto novo. Isso se deve ao fatode o custo de descarte dos valiosos mate-riais e mão-de-obra incorporados em no-vos produtos não estarem plenamente re-fletidos no preço de compra.

Durabilidade, reparabilidade e capacidadede instalar novas versões (upgradability) sãoessenciais para minorar o impacto ambientaldo consumo. Para facilitar reforma e aper-feiçoamento (para que a durabilidade não setraduza em um beco sem saída tecnológicoque impeça a introdução de desenhos maiseficientes), uma abordagem “modular” dáacesso a peças e componentes individuais,permitindo sua fácil substituição. Empresascomo Xerox (copiadoras e impressoras) eNortel (telecomunicações) adotaram essa fi-losofia. Trabalhando para estender eincrementar a vida útil de um produto, asempresas poderão extrair desempenhos cadavez melhores dos recursos incorporados nosprodutos, em vez de vender a maior quanti-dade possível. Embora a legislação do PRPnão trate da questão da longevidade de um

produto, pode ser um incentivo para as em-presas seguirem esse caminho.45

Quando produtos não se desgastam ra-pidamente, não precisam ser substituídoscom tanta freqüência. Uma implicação ób-via é que serão produzidos menos produ-tos, o que significaria que as empresas fa-riam menos negócios. Mas haverá maioroportunidade e incentivo para manter, re-parar, atualizar, reciclar, reutilizar eremanufaturar produtos, e assim mais ne-gócios e maior potencial de emprego du-rante a vida de um produto.

A reciclagem e remanufatura já torna-ram-se indústrias de porte. A Agência deReciclagem Internacional, em Bruxelas, es-tima que em pelo menos 50 países a indús-tria de reciclagem processa mais de 600milhões de toneladas anualmente. Com umfaturamento anual de US$ 160 bilhões, a in-dústria emprega mais de 1,5 milhão de pes-soas. A reciclagem não só mantém os mate-riais fora de lixões e incineradores, comoproporciona uma poupança substancial deenergia ao substituir a extração de novasmatérias-primas e processamento por ma-teriais secundários. (Vide Tabela 5-4.)46

Tabela 5-4. Economia de Energia Obtida pelaSubstituição da Produção Primária por

Materiais Secundários

FONTE: vide nota final 46.

Material

AlumínioCobrePlásticoAçoChumboPapel

Economia

(percentual)958580746564

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A remanufatura também está transfor-mando-se em um grande negócio, particu-larmente em áreas como componentes deveículos a motor. Essa atividade em todo omundo poupa, no mínimo, 11 milhões debarris de petróleo por ano – um volume deeletricidade igual ao gerado por cinco usinasnucleares – e um volume de matéria-primaque encheria 155.000 vagões ferroviáriosanualmente. Nos Estados Unidos, aremanufatura é um negócio de mais de US$50 bilhões anuais, empregando quase meiomilhão de pessoas diretamente em 73.000empresas diferentes; isso equivale aproxima-damente a toda a força de trabalho do setorde bens de consumo duráveis nos EstadosUnidos. De acordo com Walter Stahel, doProduct-Life Institute, em Genebra, o setorde remanufatura nos países membros da UErepresenta cerca de 4% do PIB da região.47

A Xerox é uma das pioneiras desse con-ceito, tendo adotado uma iniciativa de Ma-nejo de Reciclagem de Bens em 1990.Embora a empresa já tenha feito algumaremanufatura, esse programa levou a Xe-rox a projetar seus produtos desde o iníciotendo a remanufatura em mente, e a fazercada peça reutilizável ou reciclável. Comoresultado, 70–90% dos equipamentos (me-didos em peso) retornaram à Xerox no fi-nal de sua vida útil para serem refeitos. Damesma forma que alguns dos seus con-correntes, a Xerox também remanufaturacartuchos usados para copiadores e im-pressoras; em 2001, refez ou reciclou cer-ca de 90% dos 7 milhões de cartuchos etoners devolvidos por seus clientes. No to-tal, a empresa calcula que projetosambientalmente amigáveis mantiveram pelomenos meio milhão de toneladas de lixo ele-trônico fora de lixões entre 1991 e 2001.48

O princípio da responsabilidade do pro-dutor, a remanufatura e conceitos afins le-vam, logicamente, a toda uma nova manei-ra de pensar os produtos, como uma eco-nomia funciona e o que deve alcançar. Emvez de simplesmente vender bens – o má-ximo possível, sem se interessar com o queacontece após a venda –, os fabricantesavançam para prestar um serviço deseja-do. No futuro, os consumidores poderãoarrendar ou alugar produtos, em vez deadquiri-los. Ao manter a propriedade, osfabricantes também mantêm-se responsá-veis pela manutenção e reparos adequados,tomam as medidas necessárias para esten-der a vida útil e, finalmente, recuperam oscomponentes e materiais para reciclagem,reutilização ou remanufatura. Podem tra-balhar diretamente com seus clientes ouvarejistas. Mas a ênfase estaria no “varejode qualidade”, assessorando clientes sobreas melhores opções de arrendamento dis-poníveis e sobre qualidade e manutençãodos produtos; aconselhando-os como es-tender a vida útil com um mínimo de con-sumo de energia e materiais e diagnosti-cando se os aperfeiçoamentos ou outrasmudanças maximizariam a utilidade de umdeterminado produto. Tal sistema seriacomo construir um tipo totalmente novode economia de serviços, muito diferenteda economia de serviços atual.49

Consumir melhor não significadeixar de manter a moderaçãonos níveis gerais de consumo.

Várias empresas começaram a transfor-mar esse conceito em realidade. A Xerox já

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arrenda três quartos dos seus equipamen-tos. A Carrier Corp., em vez de vender equi-pamento de ar-condicionado, está criandoum programa de venda de serviços de re-frigeração, assessorando clientes sobre me-didas de eficiência energética que ajudarãoa reduzir as necessidades de ar-condicio-nado. A Dow Chemical e Safety-Kleen de-ram início ao arrendamento de solventesorgânicos para clientes industriais e comer-ciais, aconselhando-os quanto ao uso ade-quado e recuperando esses produtos, emvez de deixar o cliente com a responsabili-dade de descartá-los. Isso é um forte in-centivo para utilizarem menos solventes.50

Algumas empresas especializam-se em“contratação de desempenho”, ajudandoclientes institucionais – empresas privadas,órgãos governamentais, hospitais e outros– a identificarem formas de reduzir seuconsumo de energia, matérias-primas eágua. Num contraste marcante com os in-teresses comerciais tradicionais, impediu oconsumo de recursos e evitou o desperdí-cio e poluição que fazem essas empresasprosperarem.51

Um exemplo freqüentemente citado deuma empresa buscando reinventar-se dessaforma é a Interface, um dos maiores fabri-cantes de tapetes comerciais. Após seu fun-dador e diretor-presidente, Ray Anderson,experimentar uma epifania ambiental emmeados dos anos 90, a empresa empenhou-se numa iniciativa para reduzir drasticamenteseu impacto ambiental, saindo de vendaspara arrendamento de carpetes. Conseguiureduzir substancialmente seu consumo deágua e energia e cortou sua dependênciade matérias-primas de petróleo. Em 1999,introduziu “solenium”, um material que duraquatro vezes mais que os carpetes tradici-

onais, utiliza 40% menos matéria- prima eincorpora energia, podendo ser totalmen-te remanufaturado em novos carpetes, emvez de ser descartado ou sofrer“reciclagem descendente” para produtosde menor valor.52

Talvez no seu lance mais audacioso, aInterface introduziu o “Arrendamento Sem-pre Verde” em 1995, com o qual a empresaretém a propriedade do produto e permane-ce responsável por mantê-lo limpo median-te uma remuneração mensal. Inspeções re-gulares permitiriam à empresa concentrar-se apenas na substituição das placas commaior desgaste, em vez de todo o carpete,como no passado. Essa substituição maisdirecionada ajuda a reduzir o volume dematerial necessário em cerca de 80%.53

Porém, apenas uma meia-dúzia de ar-rendamentos foram efetivamente realizados,pois a maioria dos clientes optou pela com-pra tradicional. O programa não teve suces-so por várias razões, algumas específicasao negócio de carpetes. Alguns clientes acha-ram o contrato de arrendamento muito com-plexo ou muito inflexível, amarrando-os numacerto de longo prazo que limitava suas op-ções futuras. Mas talvez o maior problematenha sido o custo – um reflexo da ênfaseda Interface em material e serviços de ma-nutenção de alta qualidade. No final, a em-presa viu-se forçada a abandonar o arrenda-mento “sempre-verde”.54

A história da Interface é, ao mesmo tem-po, encorajadora e acauteladora. É claroque o novo modelo comercial que a em-presa estava propondo ainda enfrenta obs-táculos gigantescos. Mas, da mesma for-ma que ocorre com todos os desafios radi-cais às práticas estabelecidas, uma aceita-ção ampla não virá facilmente.

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

Consumo Público eCrédito Sustentável

Tecnologias mais eficientes e limpas são ins-trumentos essenciais da caixa de ferramen-tas da sustentabilidade. E a emergência deum novo tipo de economia de serviços pro-porcionará espaço adicional de manobra nabusca de uma economia mais sustentável.Mais cedo do que tarde, todavia, precisare-mos confrontar o espectro do consumismoinsaciável. Há o perigo do dragão do consu-mo suplantar até mesmo métodos etecnologias mais sofisticados criados paratornar o consumo mais enxuto esupereficiente. Consumir melhor não signifi-ca deixar de manter a moderação nos níveisgerais de consumo. Vale recordar o alerta doeconomista ecológico Herman Daly: “Fazercom maior eficiência aquilo que não deverianem ter sido feito não é motivo de alegria”.53

Como deveriam conduzir-se as socie-dades na tarefa de desencorajar o consu-mo “excessivo”? Embora um imposto deluxo, bem planejado, possa desempenharum papel útil, sempre haverá polêmicasobre o que seja luxo desnecessário. Aqui-escendo à “soberania do consumidor”, associedades capitalistas deixam quase queinteiramente a critério das pessoas a deci-são de comprar, considerando regulamen-tos governamentais como uma intrusãoindesejada (enquanto convenientementeignoram as tentativas incessantes de ma-nipulação dos “consumidores soberanos”através de campanhas publicitárias). Cla-ramente, uma abordagem “comandar-e-controlar” não é viável nem desejável. Masenquanto decisões específicas de fazercompras devem ficar a critério de indiví-

duos e famílias, há um aspecto mais am-plo e estrutural para o qual os governosprecisam atentar.

A predominância de padrões de consumoaltamente individualizados leva, inevitavelmen-te, à multiplicação de muitos bens e serviçosem escala grandiosa. Isso praticamente as-segura a redundância e muito mais necessi-dades materiais do que seria necessário. Go-vernos e comunidades podem agir para con-seguir um melhor equilíbrio entre formaspúblicas e privadas de consumo. Mesmo nassociedades mais orientadas para o mercadohá bibliotecas, piscinas e parques públicos.Esse compartilhamento organizado de equi-pamentos e amenidades pode ser ampliado.Por exemplo, o compartilhamento de auto-móveis está ganhando adesões rapidamenteem cidades européias e em outros países,proporcionando uma alternativa necessária,se bem que parcial, à propriedade de veícu-los e ao aluguel estritamente comercial deautomóveis. Governos podem facilitar essasiniciativas estabelecendo regimes fiscais fa-voráveis. Comunidades locais também podemimplantar sistemas de compartilhamento deferramentas, para que ninguém precise pos-suir individualmente uma furadora, serra cir-cular ou cortador de grama.56

A ação governamental também é indis-pensável para superar os imensos empeci-lhos estruturais a níveis menores de con-sumo e a formas mais públicas de consu-mo. E isso é muito mais evidente nos trans-portes: padrões de habitações espalhadas,de baixa densidade, traduzem-se em gran-des distâncias separando as residências,locais de trabalho, escolas e lojas – fazen-do com que andar a pé, de bicicleta ou pe-gar um ônibus ou metrô torne-se uma ta-

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

refa difícil ou impossível. Embora a deci-são sobre que tipo de automóvel comprarseja do consumidor, a necessidade decomprá-lo, ou não, freqüentemente foge deseu controle. Da mesma forma, na mora-dia, os proprietários dispõem de escolhassobre aquecimento e ar-condicionado. Masé decisão das incorporadoras e construto-ras se uma residência terá isolamento ade-quado e janelas eficientes em energia; es-sas decisões fundamentais ditam as neces-sidades de aquecimento e refrigeração du-rante a vida de uma casa.

Reconhecendo essas realidades, a OCDEtem referido-se a uma “infra-estrutura deconsumo” que força as pessoas a adotarpadrões involuntários de consumo. Da mes-ma forma que é importante para os consu-midores escolher produtos mais eficientes,só isso não pode superar essas limitaçõesestruturais. Políticas governamentais avan-çadas – melhor planejamento do uso do solo,normas e padrões focados no meio ambi-ente e a criação de uma infra-estrutura pú-blica revigorada, que permita maior provi-são social de certos bens e ser-viços – ajudarão a assegurar queos consumidores não sejamcompelidos a fazer “escolhas”consumo-intensivas.57

Outra área-chave em queuma ação governamental faz-senecessária é o crédito ao con-sumidor. O rufo inexorável dapropaganda, insinuando quemarcas corporativas simboli-zam estilos desejáveis de vida eque a felicidade individual estáintrinsecamente relacionada aosprodutos que possuímos, aju-da a propelir a preferência do

consumidor cada vez mais alto. Porém, acapacidade de anunciantes projetarem no-vas “necessidades” ultrapassa facilmente oalcance do bolso do consumidor; “dese-jos” sempre parecem maiores do que osmeios disponíveis.

Particularmente a partir dos anos 90, apoupança na maioria dos países da OCDEcomeçou a cair, enquanto as dívidas fami-liares subiam. Jovens adultos, vulneráveisao marketing agressivo direto de bancos eoutros emitentes de cartões de crédito, es-tão afundando cada vez mais num atoleirode dívidas. O número de jovens de 20 a 24anos à beira da falência pessoal na Alema-nha, por exemplo, aumentou um terço sóentre 1999 e 2002.58

O endividamento dos consumidoresamericanos cresce hoje duas vezes mais rá-pido que suas rendas. O crédito ao consu-midor a receber disparou nas últimas duasdécadas, atingindo US$ 1,8 trilhão em julhode 2003. (Vide Figura 5-2.) A proporção deportadores de cartões de crédito com sal-

Figura 5-2. Crédito ao Consumidor a Recebernos Estados Unidos, 1950–2003

1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

2.000

1.500

1.000

500

0

Bilhões de Dólares

(base=2001)

Fonte: Federal Reserve Board

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dos em aberto no final de cada mês aumen-tou para 61%, e o endividamento médio su-perou US$ 12.000 em 2002. No Reino Uni-do, a dívida do consumidor quase triplicou(em bases atuais) entre 1991 e 2001. NaAlemanha, o crédito ao consumidor dobrouem 1989–99 para 216 bilhões de euros, eem 2001 quase um quarto de todas as famí-lias tinham dívidas pendentes. E o númerode famílias holandesas buscando proteçãocontra credores dobrou em 1992–99.59

Até meados dos anos 90, consumidoresfora da América do Norte e Europa Ociden-tal raramente assumiam um grande volumede dívidas pessoais. Hoje, os gastos comcartões de crédito estão aumentando rapi-damente entre consumidores emergentes, declasse média, na Ásia, América Latina, Eu-ropa Oriental e até em partes da África. Ovolume de dinheiro gasto por sul-coreanospor meio de cartões de crédito mais queduplicou em 2001, mas 2,5 milhões destesestão inadimplentes. Falências pessoais es-tão aumentando não apenas na Coréia doSul, mas também na Argentina, Brasil, Chi-le, China, México e Tailândia.60

Embora o crédito ao consumidor estejahoje atrelado à manutenção de uma econo-mia hiperprodutiva, que encoraja as pessoasa assumir altas dívidas pessoais, as finançasde uma economia de consumo sustentávelterão que desenvolver formas que permitam– e premiem – a compra de produtos eficien-tes, de alta qualidade, duráveis eambientalmente amigáveis. Estes, sem dúvi-da, terão maior custo inicial de aquisição, masao longo do tempo serão mais economica-mente vantajosos para os consumidores doque produtos mais baratos e frágeis, que te-rão de ser substituídos com freqüência.

Os governos poderão ajudar os consu-

midores, oferecendo condições vantajosas definanciamento para determinadas aquisições.Os governos do Japão e Alemanha fazem issoem apoio à instalação de telhados solares emresidências, porém muitas outras aquisiçõesecoamigáveis poderiam ser incentivadas damesma forma. Ou governos podem oferecerdescontos direcionados. O governo do Ca-nadá, por exemplo, anunciou em agosto de2003 que iria destinar C$ 131,4 milhões (US$95 milhões) para um programa que ofereceum desconto médio de C$ 1.000 por resi-dência, a fim de motivar proprietários a faze-rem melhorias em eficiência energética.61

A fim de encorajar ainda mais a fabrica-ção e compra de produtos ambientalmentebenignos, os governos poderiam desenvol-ver políticas que oferecessem descontos fis-cais a produtos de melhor desempenho, ta-xando aqueles que fiquem aquém dos pa-drões. Poderia ser criado um sistema gra-duado onde os níveis tanto de descontosquanto de taxas seriam escalonados confor-me a eficiência, durabilidade ou nível de be-nefício ambiental de determinado produto.Essa combinação, conhecida como “taxa-desconto”, tem sido utilizada para produto-res de energia, porém o conceito ainda nãofoi implementado num cenário consumidor.Um sistema taxa-desconto poderá até sermais eficaz se for atrelado a outras políti-cas, como leis de ecorrotulagem e PRP.62

Livrando-se da Armadilhado “Ganhar-e-Gastar”

Os países industrializados são extraordi-nariamente produtivos – ou seja, a mes-ma quantidade de produto pode serfabricada com cada vez menos trabalho

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

humano. Nos Estados Unidos, por exem-plo, apenas cerca de 12 horas semanaisde trabalho foram necessárias para pro-duzir, em 2000, o mesmo que em 40 ho-ras em 1950. Em princípio, isso pode sertransformado em um de dois objetivos:elevação de salários (em linha com a pro-dutividade), conservando a jornada detrabalho constante, ou concessão de mai-or tempo de lazer, mantendo constante arenda do trabalho. Na prática, quase sem-pre tem sido o primeiro. A maioria daspessoas tem ficado presa a um padrãode “ganhar-e-gastar”. Maior disponibili-dade de renda traduz-se em maior des-pesa de consumo. E a sedução da propa-ganda, o acompanhamento de status maiselevados e outros fatores fazem com quecada centavo ganho seja necessário paracontinuar na senda batida do consumo.63

Desde a ascensão da industrialização emmassa do final do século XIX tem havidoum cabo-de-guerra contínuo entre patrõese sindicatos sobre a jor-nada de trabalho. Osempregados batalhampela redução das horasde trabalho, seja dire-tamente, diminuindo-serealmente a jornada, oumaior período de féri-as, aposentadoria maiscedo ou ausência re-munerada. A motivaçãobásica disso foi o de-sejo de melhoria daqualidade de vida e cri-ação de mais empre-gos. Embora as ques-tões ambientais não te-nham desempenhado

Figura 5-3. Jornada Anual de Trabalho por Pessoa Empregadanos Principais Países Industrializados,

Anos Selecionados, 1913–98

um papel central, a canalização de ganhosde produtividade para maior tempo de lazer,em vez de aumento de salário, que poderiaredundar em consumo crescente, tambémfaz sentido sob uma perspectiva ecológica(presumindo-se que um maior tempo delazer não se traduza em atividadesambientalmente questionáveis, como via-gens aéreas longas para férias em locais“exóticos”).64

Levou quase um século para se che-gar à semana de 40 horas na maioria dospaíses industrializados. Onde outrora ha-via uma tendência comum para jornadasmenores por todo o mundo industrializa-do, há hoje uma divergência cada vezmaior entre Estados Unidos e Europa.Numa reversão da situação antes dos anos70, os americanos hoje trabalham perío-dos mais longos que a maioria dos euro-peus (trabalhadores japoneses, entretan-to, ainda têm, de longe, a maior jornadade trabalho). (Vide Figura 5-3.)65

Reino Unido

Japão

Alemanha

Estados Unidos

França

Fonte: Hayden

Horas2.800

2.600

2.400

2.200

2.000

1.800

1.600

1.4001913 1929 1938 1950 1960 1973 1990 1998

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

A maioria dos empregadores tem se mos-trado relutante em concordar com maioresreduções, e a mudança no equilíbrio patrão-sindicato, com o enfraquecimento deste e oaumento da pressão da globalização, dificul-tou qualquer mudança. Em linhas gerais, umemprego em tempo integral, algo como 40horas semanais, ainda é considerado normalpara qualquer um que deseja considerar-seelegível para um emprego com oportunida-des de avanço na carreira. Porém, a discus-são deslocou-se de jornadas semanais fixas

para a introdução de maior flexibilidade,com patrões e empregados promovendoconceitos e interesses concorrentes. Ospatrões buscam a capacidade de ligar edesligar a torneira da oferta de mão-de-obrade acordo com as flutuações na demandade seus produtos. Os empregados pleitei-am opções mais individualistas para aco-modar as necessidades pessoais e familia-res e conquistar maior “soberania de tem-po”. Vários modelos promissores surgiramna Europa. (Vide Tabela 5-5.)66

Tabela 5-5. Novas Abordagens para a Jornada de Trabalho na Europa

FONTE: vide nota final 66.

Mais do que os americanos, os euro-peus preferem reduções da jornada emlugar de aumento de renda. Mesmo as-sim, as pesquisas revelam que quase doisterços de todos os empregados nos Es-tados Unidos trabalhavam mais tempo doque desejado no final dos anos 90, con-tra metade em 1992. Ao mesmo tempo,todavia, a economista do Boston College,

Juliet Schor, relata que “durante a pri-meira metade dos anos 90, um quinto detodos os americanos passaram por algumtipo de redução voluntária da jornada detrabalho, com um pouco mais da metadedesejando que fosse uma mudança per-manente”. “Redução da jornada” é a reti-rada, ou retirada parcial, da força de traba-lho, que é às vezes disparada por uma mu-

País

Bélgica

Dinamarca

Holanda

Situação

Implantou um sistema de “crédito de tempo”, permitindo às pessoas trabalharem umasemana de quatro dias até 5 anos e tirar férias de um ano durante a carreira, recebendo umaremuneração do governo.

Inaugurou um sistema pioneiro de férias pagas para educação, cuidado infantil e estudosuniversitários que permite rotação entre empregados e desempregados. (Variações dissoforam posteriormente implementadas na Bélgica, Finlândia e Suécia).

Em 1982, o governo, empresas e sindicatos concordaram em reduções da jornada em trocade moderação salarial. A semana de trabalho foi reduzida de 40 para 38 horas em meadosdos anos 80 e para 36 horas no início dos anos 90. A redução parcial voluntária cresceudramaticamente, com trabalhadores com meio turno tendo direito ao mesmo salário/hora,benefícios e oportunidades de promoção dos trabalhadores em tempo integral. A legislaçãoem 2000 estendeu o direito de redução de horas a todos os trabalhadores, enquantotrabalhadores com meio turno podem solicitar períodos mais longos.

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

dança de valores e comportamentos parafora do consumismo. (Embora algumaspessoas reduzam suas jornadas voluntaria-mente, outras, entretanto, são forçadas aaceitar trabalhar meio turno, contra suavontade.)67

Por outro lado, trocar renda por temponão é uma opção realista para muitas pesso-as, em vista das tendências adversas do salá-rio. Nos Estados Unidos, os salários médiosestagnaram entre o início dos anos 70 e me-ados para fins dos anos 90. Mas as médiasmascararam um alto grau de desigualdade nadistribuição de renda durante o último quartode século. Para 10% dos trabalhadores nafaixa baixa, os salários em 2001 não eramsuperiores a 1979; na realidade, 70% da for-ça de trabalho não se deu melhor, não tendopraticamente ganho real de salário até 1998.68

Uma fração significativa da populaçãosentiu-se compelida a trabalhar períodosadicionais, freqüentemente pegando outrosempregos apenas para se manter. No todo,há inúmeras tendências contraditórias. NaEuropa, as tendências foram mais favorá-veis, mas o crescimento salarial ficou paratrás da expansão da produtividade da mão-de-obra. Para serem viáveis, então, políti-cas de redução de jornadas de trabalhoprecisam ser acompanhadas por aumen-tos de salário, a fim de estreitar o diferen-cial de renda entre ricos e pobres.69

Nova Dinâmica e Valores

Como foi descrito por todo este capítulo, comajuda de uma grande variedade de ferramen-tas programáticas, as economias modernaspodem ser muito menos intensivas em con-sumo. Entretanto, o que significa consumirmenos para uma economia capitalista

estruturada para uma expansão econômicaperpétua? Afinal, a cultura consumista desem-penha um papel importante: assegura que osbens produzidos por uma economiahiperprodutiva sejam, efetivamente, adquiri-dos. Isso significa que o acúmulo do capitalpode seguir adiante, o que move a inovaçãotecnológica e que, por sua vez, resulta naprodutividade cada vez maior da mão-de-obra(e que proporciona, pelo menos em princí-pio, rendas e poder aquisitivo crescentes,necessários ao consumismo). Essa dinâmicapode desmoronar caso os consumidores nãogastem bastante.70

E há outro complicador: embora asustentabilidade exija que apetites materiaissejam contidos, as gigantescas sobrecapa-cidades que têm surgido em muitas indústri-as parecem exigir que o consumo seja esti-mulado. O setor automotivo global, por exem-plo, está trabalhando a apenas 70% de suacapacidade. No setor de semicondutores, autilização da capacidade está a 65% e nosequipamentos de telecomunicações, meros50%. A economia mundial defronta-se comcontradições crescentes. Economias movi-das por exportações em vários países em de-senvolvimento estão rapidamente ampliandosua produção. Na China, os setores siderúr-gicos, químicos, de materiais de construçãoe telefones celulares, por exemplo, deverãodobrar suas capacidades de produção nospróximos três anos, aumentando a pressão.71

Uma enorme fatia das exportaçõesmundiais está sendo absorvida pelaterra do consumismo par-excellence,os Estados Unidos. Durante os anos90, a economia americana agia mais emais como um grande aspirador, su-gando grande parte da produçãosuperavitária mundial. (Vide Quadro 5-2.)

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QUADRO 5-2. CONSUMIDORES AMERICANOS, PRODUTOS BARATOS EEXPLORAÇÃO GLOBAL DA MÃO-DE-OBRA

Durante a última década, os consumidoresamericanos aumentaram seus gastos anuais embens e serviços a uma taxa média de 3% aoano, ou quase tão rápido quanto nas décadasanteriores. Se o consumo é medido porquantidade de itens, todavia, em vez de fluxosde dinheiro, as taxas de aquisição para umagama variada de produtos manufaturados sãomuito maiores. O pensamento econômicopadrão vê essa tendência como simples ganhono bem-estar dos consumidores. Mas, sob umponto de vista ambiental, é negativo. Novosconceitos econômicos e evidências tambémreconhecem que quando o gasto satisfazobjetivos de status e sociais, em vez denecessidades puramente funcionais, há muitomenos bem-estar real a ser ganho do consumoadicional. O motivo principal das altas taxasde aquisição de produtos é que os preçoscaíram significativamente na última década.Entretanto, isso não foi devido à maioreficiência ou tecnologia. A estrutura e normasque regem a economia global deprimiram oscustos da mão-de-obra e saquearam osrecursos naturais.

Consideremos o caso do vestuário, umproduto historicamente valioso. Em 1920, afamília típica americana gastava 17% de suasdespesas totais em roupas. Em 2001, essacifra foi de meros 4,4%, apesar de osconsumidores estarem comprando muito maispeças. Realmente, o vestuário tornou-se tãobarato que é difícil até dar de graça. O excessode roupas é atribuído em grande parte àexploração da mão-de-obra feminina nasfábricas de confecções da Ásia e AméricaCentral. A parcela de mão-de-obra naprodução está em níveis historicamentebaixos, e os salários caíram abaixo da linha desubsistência. Relatos em primeira mão detrabalhadores e observadores ocidentais nasfábricas que produzem para Disney, Nike, LizClaiborne e muitas outras empresasamericanas comprovaram que as pessoasfreqüentemente trabalham mais de 100 horassemanais. Os trabalhadores são submetidos a

uma autoridade supervisora arbitrária; casosde abusos físicos, sexuais e verbais sãocomuns e bem documentados; e sindicatos sãoproibidos.

Os eventos da nova economia globalagravaram esses problemas. A crise financeirada Ásia, no final dos anos 90, foi resultadodireto de reformas neoliberais impostas peloTesouro dos Estados Unidos, através do FundoMonetário Internacional, que levaram umnúmero de economias asiáticas ao colapso, sobo peso da privatização e liberalização docapital. Os salários por toda a regiãodespencaram após a crise. Salários e benefíciosna indústria de confecção da Indonésia caírampara 15 centavos de dólar por hora. EmBangladesh, que se tornou o quarto maiorexportador de confecções para os EstadosUnidos, os salários caíram para uma faixa de 7–18 centavos por hora. A Wal-Mart, quecontrola 15% do mercado americano deconfecções e é a maior rede varejista devestuário do mundo, continuamente pressionaos custos de mão-de-obra nas fábricas chinesas– que podem ser até de 13 centavos por hora, ea norma é abaixo de 25 centavos. (Linhas maiscaras, como Ralph Lauren e Ellen Tracy,também dependem da mão-de-obra barata daChina.) Os trabalhadores têm tido poucosucesso na resistência a essas condições, poisas empresas transnacionais simplesmentemudam-se caso estes façam exigências, eporque os donos das fábricas gozam deproteção política de seus governos. Ademais, odeslocamento de trabalhadores rurais da terra edos meios de vida em conseqüência dasatividades das empresas transnacionais asseguraum fluxo constante de novos recrutas para asfábricas urbanas.

Enquanto isso, esses fatores levaram aodeclínio dos preços nos Estados Unidos, onde opreço de confecções caiu 10% ao longo da últimadécada, com uma queda especial após o débâcleasiático. O número de peças adquiridas disparou,aumentando em incríveis 73% entre 1996 e2001. Os consumidores reduziram a freqüência

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do uso de roupas novas e descartam suascompras num ritmo recorde. Até 2001, oconsumidor americano comum adquiria 48 peçasnovas de roupa por ano. As taxas de descarte doconsumidor aumentaram 10% ao ano durante osanos 90 e as roupas tornaram-se um produtodescartável e, portanto, plenamente disponível.

Embora menos dramática, ocorreu umadinâmica semelhante com outros bens deconsumo. Os consumidores americanosgastam cerca de US$ 30 bilhões ao ano embrinquedos, 60% dos quais são feitos emfábricas chinesas, onde salários e condiçõesde trabalho são semelhantes àqueles dasconfecções. Desde 1994, os preços debrinquedos caíram 33%, e as criançasganham, em média, 69 brinquedos por ano.Os preços de computadores pessoais eequipamentos periféricos caíram 81% desde1997, como resultado de chips maispoderosos, salários baixos e desembaraço decustos ambientais. Em 2001, quase 23milhões de computadores novos foramadquiridos, com quantidades semelhantessendo descartadas. Estima-se que em 2005,63 milhões de computadores pessoais serãodescartados só nos Estados Unidos. Quedade preços e aumento de quantidades tambémcaracterizam eletrodomésticos, equipamentosesportivos internos e externos, ferramentas eferragens. Os preços nas lojas dedepartamento caíram quase um terço desde1993, e bens duráveis caíram 57%. Isso deve-se em parte à pressão constante nos preçosda Wal-Mart, pois esta empresa explora mão-de-obra externa e interna, obtendo vantagenscom subsídios em transportes e degradaçãoambiental não-registrada.

O consumo sustentável requer preços maisaltos para bens de consumo e uma mudançapara melhor qualidade, produtos mais duráveisfeitos por trabalhadores mais bem-remunerados, sob condições ambientalmenteseguras. Isso ajudará a satisfazer critérioselementares de justiça, como o direito detrabalhadores estrangeiros e domésticos a umavida decente e direito de todos compartilharemda abundância do planeta. Mas essa é umaquestão não só de consumo, mas tambémpolítica. As políticas atuais distanciam-sedessas condições de sustentabilidade.Pesquisas consideráveis sobre os efeitos doBanco Mundial e do Fundo MonetárioInternacional revelam que estes representambasicamente os interesses do governo dosEstados Unidos e corporações americanas, àscustas dos trabalhadores e indústrias locais empaíses pobres. À medida que aumenta aoposição à economia global, o governo dosEstados Unidos responde com grandesaumentos nos gastos militares. Uma economiaglobal justa e sadia deverá finalmente enraizar-se numa estrutura mundial de salários altosbastante para sustentar uma forte demandainterna, num equilíbrio mais íntimo de poderentre capital e trabalho e maior distribuiçãoeqüitativa de renda e riqueza. A necessidade deambientalistas desenvolverem uma causacomum com outros interessados em justiça epaz globais torna-se, assim, uma tarefa damaior urgência.

– Juliet Schor, professora de Sociologia,Boston College

_______________________________________FONTE: vide nota final 73.

QUADRO 5-2. (continuação)

A partir de 1995, a demanda interna nosEstados Unidos cresceu o dobro da taxade outras nações industrializadas. O saldoda balança de pagamentos dos EstadosUnidos (medindo fluxos comerciais etransferências financeiras) saiu de um

valor positivo de US$ 3,7 bilhões em 1991para um negativo de US$ 503 bilhões em2002 – um nível recorde. Os dólares quefluíram para fora dos Estados Unidos,para pagar importações crescentes, estãovoltando aos Estados Unidos à medida que

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RUMOS PARA UMA ECONOMIA MENOS CONSUMISTA

investidores estrangeiros compram notasdo tesouro, títulos, ações e imóveis. Essesfluxos de dólar criaram um imenso reser-vatório de liquidez global. Essa explosão decrédito tem sido a principal força motriz daatividade econômica mundial. Mas enco-rajou grandes e exagerados investimentosem praticamente todo setor de porte. E obem-estar da economia global tem mostra-do-se cada vez mais dependente de umconsumo em contínua expansão nos Esta-dos Unidos. Alguns observadores, inclusi-ve os analistas do Economic PolicyInstitute, em Washington, e Stephen Roach,economista-chefe da Morgan Stanley, pen-sam que esse sistema é intrinsecamenteinstável, não podendo permanecer indefi-nidamente em expansão.72

Uma série de investimentos e inovaçõestecnológicas para realizar a mudança emdireção à sustentabilidade suavizarão a tran-sição. Promovendo fontes renováveis deenergia; expandindo sistemas de transpor-tes urbanos; substituindo maquinaria, equi-pamentos, prédios e veículos ineficientespor outros modelos, muito mais eficientes;redesenhando produtos mais duráveis –todas essas atividades representam, efeti-vamente, um programa de estímulo ecoló-gico para a economia.

É essencial reformular não apenas aeconomia, mas também o pensamento eco-nômico. Já atores econômicos estão pre-parados para responder a sinais de cresci-mento quantitativo. O conceito de produtointerno bruto, onde todas as atividades eco-nômicas são jogadas, contribuam ou nãopara o bem-estar, reina supremo. (VideCapítulos 1 e 8.) Uma economia sustentá-vel necessita de uma forma diferente demedir a atividade humana e de sinalizar ainvestidores, produtores e consumidores.Precisa de uma teoria diferente, abando-nando-se a premissa ultrapassada de que ocrescimento quantitativo é incondicional-mente desejável e abraçando-se, em vezdisso, a noção de crescimento qualitativo.

O mais fundamental, entretanto, é umamudança na percepção humana de valoreconômico. Em Capitalismo Natural, AmoryLovins e os co-autores Hunter Lovins e PaulHawken defendem “uma nova percepção devalor, uma mudança da aquisição de benscomo medida de afluência para uma econo-mia na qual o recebimento contínuo de qua-lidade, utilidade e desempenho promova obem-estar”. Nessa economia, receitas e lu-cros corporativos não mais seriam associa-dos à maximização da quantidade de coisas

Uma economia sustentávelnecessita de uma forma diferentede medir a atividade humana e desinalizar a investidores,produtores e consumidores.

É certo então, tanto sob uma perspec-tiva ambiental quanto econômica, que é che-gada a hora para uma alteração de curso.Mas será que uma recalibração é viável?Certamente, um grande e repentino declíniono consumo provavelmente faria a econo-mia mundial cair em parafuso. Porém émuito mais provável que uma economiamenos consumista venha a surgirgradativamente. Isso daria tempo para umareorientação de como funciona uma eco-nomia, dando às empresas uma oportuni-dade de ajustarem-se.73

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produzidas e vendidas, mas sim à obtençãode mais serviços e melhores desempenhosde um produto, minimizando, assim, o con-sumo de energia e materiais e maximizandoa qualidade.74

Na medida em que a explosão do“ponto-com” dos anos 90 foi uma ilusão,mostrou efetivamente o potencial para seperceber valores sob novas formas – me-nos ligadas à mobilização de recursos físi-cos. O futuro pode não estar na “conta-gem de olhos” – ou seja, quantos pares deolhos podem ser atraídos para um websiteem particular –, mas consumidores, indus-triais, instituições financeiras e governosprecisam desenvolver um novo conceito doque é realmente valioso e o que, conseqüen-temente, vale a pena realizar.

Sem dúvida alguma, obstáculos políti-cos sérios terão que ser superados. Os quese preocupam apenas com interesses par-

ticulares, especialmente nos setores deenergia e mineração, são exímios defen-sores de subsídios lucrativos e opositoresde reformas fiscais significativas. Por todaa economia, muitas empresas industriaisestão presas ao modelo comercial com oqual estão familiarizadas e inclinadas amanter as premissas de ontem, em vez deaventurarem no território ainda desconhe-cido da devolução de produtos e concei-tos afins. E os varejistas, particularmentenos Estados Unidos, estão fortemente ori-entados a maximizar vendas de produtosbaratos em vez de buscar um varejo dequalidade. O poder de resistência dessesinteresses não deve ser subestimado. Umaeconomia menos orientada ao consumo épossível, mas necessitará de ação gover-namental, educação do consumidor e nú-meros crescentes de desbravadorescorporativos para fazê-la surgir.

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ATRÁS DOS BASTIDORES: TELEFONES CELULARES

Telefones Celulares

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

Telefones celulares hoje sãoonipresentes. Em 1992, menosde 1% da população mundialpossuía um celular e somente umterço de todas as nações tinhauma rede de telefonia celular.Apenas 10 anos depois, 18%das pessoas já tinham um celular– 1,14 bilhão, mais do que o 1,10bilhão com linha fixa convencional– e mais que 90% dos paísesdispunham de uma rede. 1

Agora, europeus enviam e recebemtextos curtos nos seus celulares mais doque usam a Internet de seuscomputadores.Os filipinos lideram o enviode textos via celular, mundialmente; narealidade, “mensagens de textos” via celulardos manifestantes para organizardemonstrações contra o Presidente JosephEstrada contribuíram para sua expulsão. NaÁfrica, os celulares ultrapassam as linhasfixas numa média mais alta do que emqualquer outro continente; lá, donos decelulares que alugam seus aparelhos fazemum benefício aos habitantes de vilarejos,que anteriormente tinham de caminharquilômetros para fazer uma ligação.2

Como as pessoas usam seus celularesprincipalmente para bater papo, o aparelhoatrai ondas de rádio mais perto de suascabeças do que a maioria de outrosaparelhos eletrônicos. Um estudo de 10

países, promovido pelaOrganização Mundial de Saúdepara determinar se o uso decelulares pode estar relacionadocom cânceres de cabeça epescoço, deve ser concluído em2004. Sem dados de longo prazodisponíveis, os pesquisadores

estão recomendando aos usuáriosa colocação de um dispositivo em

seus celulares para manter oaparelho mais afastado. E um estudo

de um grupo organizado pelo governobritânico desencorajou o uso excessivo decelulares por crianças.3

Similarmente aos computadores, oscelulares são produtos de vida curta,representando a mais patente ameaça àsaúde humana e ao meio ambiente, quandosão criados ou destruídos, porque contêmchips semicondutores, ricos em substânciastóxicas. Análises de ciclo de vida revelam aplaca de circuitos contendo o chip docelular, o visor de cristal líquido e asbaterias como os maiores riscos, seguidosda capa plástica, de difícil reciclagem. NosEstados Unidos, segundo maior mercadomundial de celulares depois da China,aparelhos são rejeitados depois de 18meses, e o grupo de pesquisa INFORMcalcula que até 2005 os consumidores terãoacumulado cerca de 500 milhões de celularesusados, que provavelmente terminarão em

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um aterro, onde poderão lixiviar cerca de141.500 quilos de chumbo.4

O tamanho diminuto torna os celularesmais fáceis de serem descartados do quecomputadores, mas são também maisfacilmente reaproveitados. O prolongamentoda vida dos celulares dessa maneira diminuiseu ônus ambiental. Grupos beneficentesassociaram-se a empresas pararecondicionar aparelhos usados – algunssão programados para discar serviços deemergência e oferecidos a vítimas deviolência doméstica ou idosos, enquantooutros são revendidos em países emdesenvolvimento – e empresas, como aReCelular, compram e vendem celularesusados a granel.5

Normas competitivas entre redes decelulares são uma das razões por que elessão descartados tão rapidamente nosEstados Unidos. Inversamente, a Europatem a mesma norma desde o início dos anos80. Uma vez que as empresas que exploramequipamentos ultrapassados teriam muito aperder, a indústria tem obstaculizadotentativas da InternationalTelecommunication Union para se chegar aum consenso sobre um padrão único; noentanto, alguns observadores da indústriaacreditam que tal movimento será inevitávelà medida que for aumentando o número deusuários .6

No final, incentivos para empresasprojetarem e reciclarem celulares menostóxicos têm melhores perspectivas paraminimizar-se a carga ambiental. A partir de1998, o Japão obrigou os fabricantes areceber de volta a maioria dos aparelhoseletrônicos; essa decisão estende-se hoje acomputadores e normas estão em estudopara outros produtos eletrônicos. Asempresas devem pagar pela reciclagem de

seus produtos, incentivando empresascomo a Sony a investir em tecnologias quesejam facilmente recicláveis.7

Holanda, Noruega, Suécia e Suíçaimplantaram o “princípio deresponsabilidade do produtor”, incluindocelulares, nos quais os consumidorespagam, antecipadamente, taxas de descartepara financiar a reciclagem. Em algunspaíses, programas de certificação informamaos consumidores quais celulares são maisambientalmente amigáveis: na Alemanha, oselo Blue Angel é usado em celulares queatendem às exigências de conteúdo tóxico e,na Suécia, o TCO Development certificaaparelhos conforme critérios de emissões,ergonomia e ambientais, inclusive se sãofacilmente recicláveis.8

Duas diretivas, da Comissão Européia,entraram em vigor em 2003, com o mais fortealerta ambiental jamais sinalizado à indústriaeletrônica. A diretiva Waste Electrical andElectronic Equipment (Descarte deEquipamentos Elétricos e Eletrônicos)tornará cada empresa responsável pelacoleta e reciclagem de seus novos produtosapós 13 de agosto de 2005, enquanto todasas empresas serão responsáveis,coletivamente, pelos produtos eletrônicoscolocados no mercado antes dessa data.Uma regra associada proíbe o uso de certastoxinas em produtos eletrônicos, incluindochumbo, mercúrio, cádmio, cromohexavalente e certos retardadores de chamabrominados.9

Novas leis européias estão fomentando osurgimento de tecnologias ecologicamenteamigáveis. Por exemplo, a Nokia temtrabalhado com cientistas acadêmicos paradesenvolver plásticos e telefonesbiodegradáveis, que se desmontam, para fácilreciclagem, pela ação do calor.10

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A Silicon Valley Toxics Coalition, daCalifórnia, está lutando para que osEstados Unidos revoguem a legislação dedevolução. Na falta de leis nacionais,Minnesota introduziu legislação tornandoos produtores responsáveis por certosmateriais tóxicos, Massachusetts proibiuo lixo eletrônico nos aterros sanitários ecriou um fundo para reciclagem deeletrônicos, a Califórnia introduziu umaproibição limitada e espera que osgovernos locais cubram os custos dareciclagem, Nova Iorque recentementeobrigou os comerciantes a aceitar ereciclar qualquer celular vendido por eles,e outros estados estão elaborandolegislação para reduzir a quantidade dodescarte eletrônico permitido.11

No âmbito internacional, no fim de 2002, aSecretaria da Convenção da Basiléia sobre ocomércio de resíduos perigosos convocou osprincipais fabricantes para formar um novogrupo de trabalho sobre telefonia celular.Ultimamente, os perigos à saúde provenientesdo lixo eletrônico têm recebido mais atençãoda mídia, devido à comprovação, por ativistasambientais, da exportação de lixo eletrônicodos Estados Unidos para a Ásia. A Secretariada Convenção pretende que esse novo grupode pesquisa sobre telefonia celular seja aprimeira de várias iniciativas que busquemtrabalhar conjuntamente com a indústria emproblemas do lixo associado a produtosespecíficos.12

— Molly O‘Meara Sheehan

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ATRÁS DOS BASTIDORES: TELEFONES CELULARES

C A P Í T U L O 6

Comprando para asPessoas e o Planeta

Lisa Mastny

Na primavera de 2001, dois estudantes doConnecticut College, no nordeste dos Es-tados Unidos, distribuíram uma petiçãoambiciosa. Preocupados com as emissõesde poluentes danosos do colégio, pediramapoio aos colegas para um aumento vo-luntário da taxa de atividades estudantis, afim de levantar recursos para inclusão dauniversidade numa cooperativa local deenergia renovável. Mais de três quartos dosestudantes assinaram a petição, que obte-ve apoio unânime, tanto da administraçãoestudantil quanto do Conselho deCuradores. Embora a cooperativa tenhafechado um ano depois, as sementes paraa transição haviam sido plantadas. Em ja-neiro de 2003, o Connecticut College jáatendia a 22% de suas necessidades atra-vés da energia eólica – a maior parcela deenergia obtida dessa forma por um colé-gio ou universidade americana.1

Em todo o mundo, mais e mais univer-sidades, corporações, órgãos governamen-tais e outras instituições estão reavaliandoseus hábitos de compra e incorporandoquestões ambientais em todas as etapas desuas aquisições. Ao fazê-lo, ajudam a in-centivar mercados para uma gama variadade produtos ambientalmente desejáveis. Asvendas globais de lâmpadas fluorescentescompactas, eficientes no consumo de ener-gia (LFCs), aumentaram quase 13 vezesdesde 1990 para cerca de 606 milhões deunidades em 2001. O uso de energia solare eólica avançou em mais de 30% ao ano,ao longo dos últimos cinco anos, em paí-ses como Japão, Alemanha e Espanha. NosEstados Unidos, as vendas no varejo deprodutos orgânicos cresceram pelo menos20% ao ano desde 1990 para US$ 11 bi-lhões por ano, enquanto as vendas de car-ros elétricos híbridos duplicaram em 2001.2

Uma versão mais detalhada deste capítulo foi publicada como Worldwatch Paper 166, Purchasing Power:Harnessing Institutional Procurement for People and the Planet (Washington, DC: Worldwatch Institute,julho 2003).

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COMPRANDO PARA AS PESSOAS E O PLANETA

Mesmo assim, os mercados verdes sãominúsculos em comparação com os conven-cionais. O Natural Marketing Institute, dosEstados Unidos, estima que a demanda glo-bal por produtos de “saúde e sustentabilidade”– desde transporte alternativo até alimentosorgânicos – atingiu a cifra recorde de US$546 bilhões em 2000. Mas isso ainda é ape-nas cerca de 1% da economia mundial total.3

Mercados verdes estão se dando melhorem algumas regiões do que em outras. NaEuropa, por exemplo, o papel reciclado hojecusta o mesmo preço, ou até menos, que opapel virgem, principalmente porque sua pro-cura vem aumentando continuamente. Com-pradores municipais em Dunquerque, na Fran-ça, economizam aproximadamente 50 centa-vos de dólar por resma (cerca de 16%) aoexigir papel reciclado. Nos Estados Unidos,entretanto, os compradores ainda pagam umágio de 4–8% pelo conteúdo reciclado. Ape-sar de intensos esforços para incrementar aparticipação do papel reciclado no mercado,cerca de 95% do papel para impressão e deescrever (que representa mais de um quartodo mercado americano de papel) ainda derivade madeira virgem. O uso interno de papelreciclado, na realidade, caiu nos últimos anos,e caso a demanda não se recupere, a infra-estrutura fabril poderá desaparecer.4

Esses mercados são ainda menores nomundo em desenvolvimento, embora o inte-resse em energia renovável e outras áreasesteja crescendo em muitos países. O usogeral de recursos no mundo em desenvolvi-mento ainda é baixo em relação ao mundoindustrializado, porém a demanda consumistacrescente por tudo, de carros a computado-res, tornará o fortalecimento de mercadoslocais para tecnologias ambientalmente segu-ras cada vez mais importante.5

Esverdeando as AquisiçõesInstitucionais

Através dos artigos que compram, as ins-tituições exercem grande influência sobreo futuro do planeta. Quase todas as aqui-sições que uma organização realiza, sejade uma resma de papel para copiadorasou um novo prédio comercial, têm custosocultos que oneram o meio ambiente e apopulação mundial. Muitos produtos re-querem imensos insumos de água, madei-ra, energia, metais e outros recursos, nemsempre renováveis. E freqüentemente con-têm produtos químicos tóxicos que, quan-do liberados no meio ambiente, ameaçama saúde dos seres humanos e sistemasecológicos dos quais dependemos. Essesimpactos podem ocorrer em qualquer eta-pa do ciclo de vida de um produto: na ob-tenção da matéria-prima, industrialização,embalagem, transporte, uso e até mesmoapós o descarte.6

Que poder tem a aquisição institucional?Consideremos o setor público. Nos paísesindustrializados, as aquisições públicas che-gam a representar 25% do produto internobruto (PIB). (Vide Figura 6-1.) As licita-ções governamentais só na União Euro-péia (UE) totalizaram mais de US$ 1trilhão em 2001, ou cerca de 14% doPIB. Na América do Norte, atingiu US$2 trilhões, ou aproximadamente 18% doPIB. Essas aquisições ocorrem em to-dos os âmbitos de governo: em 2002, ogoverno federal americano gastou cer-ca de US$ 350 bilhões em bens e servi-ços (excluindo gastos militares), enquan-to estados e municípios gastaram maisde US$ 400 bilhões.7

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COMPRANDO PARA AS PESSOAS E O PLANETA

Corporações, universidades, entidadesreligiosas e outras grandes instituiçõestambém têm grande poder aquisitivo.Muitas empresas, por exemplo, compramnão apenas miríades de produtos acaba-dos, como canetas e computadores, mastambém matérias-primas, embalagem eoutros bens como insumos para seu pro-cesso fabril. Segundo uma estimativa, ogasto agregado das empresas ao longo desuas “cadeias de suprimento” supera, emmuito, o consumo dos produtos finais. Àmedida que a produção torna-se cada vezmais global, as indústrias podem desem-penhar um papel importante, influencian-do o comportamento ambiental de forne-cedores em outros países, inclusive nomundo em desenvolvimento.8

Enquanto isso, as universidades gas-tam bilhões de dólares anualmente emuma enorme diversidade de compras,desde prédios de campus universitário até

alimentos para lanchonete.Nos Estados Unidos, cer-ca de 3.700 colégios e uni-versidades, conjuntamente,adquiriram aproximada-mente US$ 250 bilhões embens e serviços em 1999 –o equivalente a quase 3%do PIB nacional, e mais doque o PIB de qualquer paísabaixo dos 18 maiores. Ins-tituições religiosas tambémtêm esse poder, adminis-trando um imenso númerode escolas e templos emtodo o mundo. E institui-ções internacionais, comoas Nações Unidas e o Ban-

co Mundial, adquirem grandes quantida-des de bens e serviços para suas ativida-des nos países industrializados, comotambém para manter seus escritórios decampo e operações no mundo em desen-volvimento – tendo assim uma oportuni-dade singular de ajudar a construir mer-cados sustentáveis em todo o mundo. Sóas Nações Unidas compraram quase US$4 bilhões em bens e serviços em 2000.9

Mas o enorme volume de suas aquisi-ções é apenas uma das razões por que asinstituições podem ser agentes poderososde mudanças ambientais positivas. “Con-trariamente a muitas pessoas, grandes ins-tituições adotam uma abordagem muitosistêmicas em suas compras”, observaScot Case, do Center for a New AmericanDream, de Maryland. “Aquisições são cla-ramente definidas em contratos detalha-dos, que especificam quase todos os as-pectos do produto ou serviço a ser adqui-

Figura 6-1. Gastos Governamentais como Parcela do PIBem Países Selecionados, 1998

30

25

20

15

10

5

0

Percentual

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Fonte: OCDE

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COMPRANDO PARA AS PESSOAS E O PLANETA

rido”. Com metodologias estruturadas jáimplantadas, a inserção de consideraçõesambientais nas aquisições institucionaispode ser um processo relativamente fácil,com vantagens significativas.10

A maioria das organizações que reali-zam compras de alto valor as fazem sob aforma de concorrência pública, ou seja,recebem propostas de vários fornecedo-res em potencial para adjudicarem o con-trato. “Esverdear” a licitação significa que,além de especificar os requisitos básicosem termos de quantidade, preço, funçãoou segurança, os compradores insti-tucionais também fazem exigênciasambientais a seus fornecedores. Porexemplo, podem exigir que os produtossatisfaçam certas normas de eficiênciaenergética ou tenham um teor específicode material reciclado, ou até mesmo queos próprios fornecedores tenham creden-ciais verdes. (Vide Quadro 6-1.) (Os com-pradores também podem estipular certoscritérios de justiça social, embora isso nãoseja muito comum. O governo da Bélgica,por exemplo, está considerando proibircontratos públicos com empresas cujascondições de produção sustentem regimesantidemocráticos ou que não respeitemdireitos humanos.)11

Em muitas compras institucionais co-muns, existem hoje alternativas menos inten-sivas em recursos, menos poluentes e me-nos prejudiciais à saúde humana e ambientaldo que suas contrapartidas convencionais. Aoadquirir papel com até mesmo uma pequenaporcentagem de conteúdo reciclado, porexemplo, as instituições podem desviar volu-mes significativos de lixo dos aterros. Po-dem também economizar energia, madeira e

outros recursos: o grupo EnvironmentalDefense, de Nova Iorque, estima que, casotodo o setor de catálogos dos Estados Uni-dos adotassem em suas publicações apenas10% de papel reciclado, a economia só em

QUADRO 6-1. ESVERDEANDOCONTRATOS DE COMPRA

Nos contratos com fornecedores, oscompradores poderão estipular que:

• Produtos possuam um ou mais atributosambientalmente positivos comoconteúdo reciclado, eficiência energéticaou hídrica, baixa toxicidade oubiodegradabilidade.

• Produtos gerem menos resíduos,inclusive menos embalagem, sejamduráveis, reutilizáveis ouremanufaturados – a cidade de SantaMônica, na Califórnia, exige que seusclientes forneçam produtos de limpezasob forma concentrada, a fim de evitarembalagens.

• Produtos atendam a certos critériosambientais durante o processo fabril ouprodutivo, como papel processado semcloro ou originário de madeira de florestade manejo sustentável.

• Fornecedores recuperem ou levem devolta itens como baterias, equipamentoseletrônicos ou carpetes no fim de suasvidas úteis – algumas agências federaisnos Estados Unidos hoje utilizamcontratos de “laço fechado”, obrigandoempreiteiras a recolher produtos usadosde petróleo, pneus e cartuchos de tonerpara disposição final.

• Os próprios fornecedores possuamcredenciais ambientais – algumasaquisições governamentais na Suíça dãopreferência a empresas que implantaram,ou estejam implantando, sistemas demanejo ambiental.

__________________________________________FONTE: vide nota final 11.

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madeira seria suficiente para atravessar setevezes todo o território americano com umacerca de 1,8 metro de altura.12

A aquisição de produtos mais verdes tam-bém pode trazer benefícios à saúde de funci-onários e ocupantes de prédios. Muitas com-pras comuns, inclusive tintas para paredes emóveis, pesticidas para prédios e manuten-ção de áreas externas, como também produ-tos de limpeza e manutenção, contêm ingre-dientes tóxicos, como metais pesados e com-postos orgânicos voláteis. Essas substânciaspodem poluir o ar interno e acumular-se emtecidos vivos, ameaçando a saúde humana eambiental. O Projeto de Prevenção à Polui-ção, da Janitorial Products, divulgou que 6em cada 100 faxineiros no estado de Wa-shington ficaram ausentes do serviço devidoa doenças relacionadas ao uso de produtostóxicos de limpeza, particularmente limpado-res e desengraxantes de vidros e sanitários.13

Muitas instituições têm constatado queaquisições verdes também poupam dinheiro.Alguns produtos verdes são mais baratos quesuas alternativas tradicionais. Por exemplo,cartuchos reciclados de toner para impresso-ras e copiadoras chegam a custar até um terçodo preço do produto original. Outros itens,como sanitários de descarga baixa ou lâmpa-das fluorescentes compactas, proporcionameconomia considerável ao longo de sua vidaútil. Embora as LFCs cheguem a custar até 20vezes mais que as lâmpadas incandescentes,duram 10 vezes mais e consomem um quartoda eletricidade para gerar a mesmaluminosidade. Adquirir produtos que sejamduráveis, remanufaturados ou recicláveis podebaixar os custos da manutenção, substituiçãoou disposição final de um produto. Enquantoisso, produtos de limpeza e outros menos tó-

xicos podem reduzir os custos de indeniza-ções de seguro e de trabalhadores associadosa certos acidentes de trabalho.14

Talvez o mais importante, a demandainstitucional crescente poderá desempenharum papel preponderante na criação de mer-cados maiores para bens e serviços maisverdes. Se esses consumidores buscaremcada vez mais produtos e serviços mais be-néficos ao meio ambiente, os produtoresterão mais incentivo para projetá-los e pro-duzi-los. À medida que os mercados paraesses produtos crescerem, impulsionadospelas forças da concorrência e da inovação,as economias de escala resultantes acaba-rão por reduzir os preços, tornando as com-pras verdes mais acessíveis a todos.

Pioneiros daCompra Verde

A maioria das instituições que compramverde visam aquisições menores, comopapel e artigos de escritório, fáceis de ma-nejar sem mudanças significativas nas prá-ticas organizacionais. Porém, algumas ou-tras já começaram a reestruturar fundamen-talmente a forma de fazerem negócios.

Em termos corporativos, os pioneiros dacompra verde incluem empresas em pratica-mente todos os setores da economia, inclu-indo bancos, hotéis, montadoras, varejistasde confecções e supermercados. (Vide Ta-bela 6-1.) Muitas dessas empresas são moti-vadas por um auto-interesse esclarecido: es-tão constatando que, ao adotarem medidasde eficiência energética e outras mudançasem pequena escala em suas operações inter-nas, podem reduzir seus impactos ambientaise também incrementar sua rentabilidade.

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Tabela 6-1. Exemplos de Aquisições Verdes em Empresas Selecionadas

FONTE: vide nota final 15.

Bank of America

Boeing

Canon

Federal Express

Hewlett-Packard

IKEA

McDonald’s

Migros

Riu Hotels

Staples

Starbucks

Toyota

Incrementou compras de papel reciclado em 11% em 2001 para 54% do papel adquirido. Reutiliza erecupera móveis de escritórios e carpetes e utiliza materiais reciclados nos utensílios e balcões deserviço do banco. Pretende incluir exigências ambientais em todos os contratos futuros com fornecedores.

Até 1999, modernizou mais da metade de seu espaço funcional com iluminação eficiente, reduzindoos custos de energia em US$ 12 milhões ao ano e economizando energia suficiente para suprircerca de 16.000 residências.

Dá prioridade em suas aquisições globais a quase 4.600 fornecedores de artigos verdes de escritórioaprovados pela empresa. Atualmente procura esverdear suas licitações para construção de instalaçõesno Japão, Ásia e América do Norte. Um amplo plano de ação direcionado a fornecedores redundouem níveis altos de cumprimento a políticas vigentes.

Em 2002, comprometeu-se a substituir todos os 44.000 veículos da frota com caminhões elétricosa diesel, aumentando a eficiência de combustível pela metade e reduzindo as emissões de fumaçae fuligem em 90%.

Em 1999, decidiu adquirir papel apenas de fontes florestais sustentáveis. Prioriza fornecedoresque vendem produtos verdes e mantém práticas comerciais verdes. Restringe ou proíbe o uso decertos produtos químicos na industrialização e embalagem.

Prioriza madeira de florestas que sejam certificadas como de manejo sustentável ou em transiçãopara esse padrão. Adquire madeira através de um processo de quatro etapas que encoraja osfornecedores a buscar certificação florestal.

Gastou mais de US$ 3 bilhões em compras com teor reciclado entre 1990 e 1999, inclusivebandejas, mesas, carpetes e embalagem. Em 2001, adotou embalagens compostáveis para alimentofeitas de amido recuperado de batata e outros materiais. Instalou iluminação de eficiência energéticanos restaurantes.

Em 2002, esse supermercado suíço tornou-se o primeiro varejista europeu a deixar de comprarsuprimentos de óleo de palma de fontes não-seguras, ecologicamente, na Malásia e Indonésia.Realiza auditorias nos fornecedores para constatar cumprimento dos critérios ambientais e rotulaprodutos que “protegem florestas tropicais”.

Ao mudar para compras a granel de itens de café da manhã, essa cadeia alemã de hotéis conseguiureduzir o lixo em 5.100 quilogramas anuais, poupando 24 milhões de itens de embalagens individuaise uma média de 5 milhões de sacos plásticos de lixo a cada ano.

Em 2002, comprometeu-se a incrementar o conteúdo reciclado médio em seus artigos de papel para30% e eliminar gradativamente as compras de florestas ameaçadas. Utiliza iluminação e material decobertura de eficiência energética em seus prédios. Até o final de 2003 pretende adquirir apenasprodutos de papel reciclado para operações internas e aumentar suas compras de energia verde em 5%.

Desde novembro de 2001, ofereceu incentivos financeiros e preferência de fornecimento a produtoresde café que atendiam a determinados padrões ambientais, sociais, econômicos e de qualidade. Em2002, 28% da fibra de papel utilizada era pós-consumo e 49% continham fibra não-branqueada.

Em 2001, trocou 1.400 itens de artigos de escritório e 300 computadores e outros equipamentos poralternativas verdes. Atingiu 100% de compras verdes nessas áreas em 2002. No exercício financeirode 2001, adquiriu 500.000 kWh de energia eólica e pretende aumentar para 2 milhões de kWh ao ano.

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COMPRANDO PARA AS PESSOAS E O PLANETA

Em 1992, o Business Council forSustainable Development endossou essaabordagem como ecoeficiência. AL’Oreal, o maior fabricante mundial decosméticos, reduziu suas emissões de gásde estufa em 40% entre 1990 e 2000, au-mentando, ao mesmo tempo, a produçãoem 60%, principalmente através da ins-talação de iluminação eficiente em todasua área e a introdução de um programade reciclagem para reduzir a incineraçãodo lixo. Anheuser-Busch e IBM estão en-tre as várias outras empresas que vêmeconomizando milhões de dólares pormeio de melhorias em eficiênciaenergética e hídrica.15

Mesmo nos casos em que a compraverde não leva a economias diretas, estapode trazer benefícios comerciais. Numestudo recente para o Centro de EstudosAvançados em Aquisições, Craig Carter eMarianne Jennings verificaram que o au-mento da responsabilidade socialcorporativa está geralmente correlacionadocom receitas maiores, ambientes de traba-lho mais sadios e seguros e melhoria derelacionamento com clientes e fornecedo-res – fatores que superam, em muito, qual-quer potencial custo monetário. Comprasverdes também podem ser uma forma deempresas ganharem pontos em relaçõespúblicas com seus defensores e críticos(embora alguns grupos ambientais aleguemque isso é apenas demagogia).16

Muitas empresas também perceberamque podem perder competitividade se con-tinuarem adotando métodos intensivos emrecursos ou ambientalmente destrutivos. Ofabricante de produtos esportivos Nike, porexemplo, incrementou o teor de algodãoorgânico em seus artigos devido a preocu-

pações com prejuízos à saúde e ao meioambiente associados aos produtos de algo-dão tradicional, que requerem altos insumosde pesticidas e fertilizantes químicos. “É aúnica forma inteligente de fazer negócio”,diz Heidi McCloskey, diretora deSustentabilidade Global da Nike Apparel.“Ao administrar e retirar todos os produ-tos danosos, a Nike não correrá o risco decustos maiores no futuro”. Em 2001, maisde um terço das peças de algodão que aempresa produziu continham pelo menos3% de algodão orgânico certificado.17

A Nike está na vanguarda das empresasque hoje pretendem assumir um papel dedestaque na introdução de produtos verdesno mercado. Em 2001, ajudou a lançar aBolsa Orgânica, uma rede de 55 empresasque pretende ampliar substancialmente o usode algodão orgânico na indústria ao longodos próximos 10 anos. Outras empresas,incluindo Texas Instruments, Levi Strausse Ford Motor Company, juntaram-se à Co-alizão de Papel Reciclado, fundada em 1992,para utilizar a força do poder aquisitivocorporativo para incrementar a oferta e qua-lidade de produtos de papel reciclado (e afas-tar as empresas do papel virgem antes queregulamentos o façam). Os 270 membrosda coalizão adquiriram quase 150.000 tone-ladas de papel reciclado em 2002, com umteor pós-consumo médio de 29%.18

Mas equilibrar compras verdes commotivação corporativa de lucro pode serum processo delicado. Uma vez que asempresas têm, no final das contas, de semanter fiéis a seus propósitos, acionis-tas e fornecedores, em alguns casos fa-zer a coisa certa pode ainda ser uma des-vantagem competitiva. Jeffrey Hollender,diretor-presidente da Seventh Generation,

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fabricante de produtos ambientalmenteseguros, observa que sua empresa estáconstantemente comparando a urgênciade incrementar o conteúdo reciclado deseus produtos com o alto custo de fazê-lo. “No fundo, é muito melhor fabricarum produto menos benéfico ao meioambiente durante um certo tempo do quese ver fora do ramo e sem condições defazer qualquer diferença”. Hollender diz:“O truque é conseguir um equilíbrio en-tre avançar rápido demais e não avançarrápido o bastante”.19

Ao longo da última década, as deman-das por licitações públicas mais verdestambém aumentaram. Mais recentemen-te, os delegados presentes à Cúpula Mun-dial de 2002 sobre Desenvolvimento Sus-tentável, em Joanesburgo, reiteraram anecessidade de “promover políticas de li-citações públicas que encorajem o desen-volvimento e difusão de bens e serviçosambientalmente seguros”. Muitos gover-nos também reconhecem, cada vez mais,o valor de operações verdes como formade reduzir custos e alcançar objetivos maisabrangentes de políticas ambientais, comoredução do lixo e atendimento das metasde eficiência energética.20

Embora alguns governos já tenhamadotado medidas para esverdear suasaquisições 20 anos atrás, a maior partedas ações só ocorreu a partir dos anos90. (Vide Tabela 6-2.) Vários países –incluindo Áustria, Canadá, Dinamarca,Alemanha, Japão e Estados Unidos –hoje possuem leis ou políticas rigorosasque obrigam órgãos governamentais acomprarem verde (embora isso não sig-nifique que sempre o façam). Na maio-

ria dos outros países, onde já ocorremcompras verdes, as normas ou “reco-mendam” que os adquirentes conside-rem opções ambientalmente desejáveisou não há norma alguma, embora com-pradores tenham condições de conside-rar variáveis ambientais nas aquisições.Da mesma forma que em termos indus-triais, grande parte da atividade gover-namental tem focado a compra de pro-dutos reciclados ou eficientes em ener-gia, apesar de o interesse em energiarenovável e outras aquisições verdestambém ter aumentado.21

Também tem havido uma onda decompras verdes por parte de governosmunicipais, estaduais e regionais.Christoph Erdmenger, coordenador dasatividades de ecolicitações do ConselhoInternacional para Iniciativas AmbientaisLocais (ICLEI, na sigla em inglês), ob-serva que na maioria dos países agressi-vos em aquisições verdes foram as auto-ridades locais que se puseram na van-guarda. Na Europa, 250 líderes munici-pais em mais de 30 países compromete-ram-se, na Declaração de Hanover de2000, “a utilizar seu poder aquisitivo paradirecionar o desenvolvimento, visandosoluções sociais ambientalmente segu-ras”. Kolding, na Dinamarca, estabeleceuuma meta ambiciosa em 1998 de incor-porar considerações ambientais a 100%de sua estrutura de aquisições até 2002.Em maio de 2001, cerca de 70% de seuspedidos especificavam e incorporavamexigências ambientais, principalmente nasáreas de alimentos, equipamentos de es-critório, produtos de limpeza, informáticae artigos para tratamento de saúde.22

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Tabela 6-2. Exemplos de Aquisições Governamentais Verdes

FONTE: Vide nota final 21.

Áustria

Canadá

Dinamarca

Alemanha

Japão

Reino Unido

Estados Unidos

As atividades em âmbito municipal datam do final dos anos 80. Legislação federal de 1990e 1993 obriga os órgãos públicos a inserirem critérios ambientais nas especificações dosprodutos. (A Lei de 1993 foi adotada por oito das nove províncias.) A partir de 1997, oMinistério do Meio Ambiente ajudou as prefeituras e outros ministérios a compraremverde. Em 1998, o governo aprovou diretrizes básicas de aquisições verdes em setores comoo de equipamentos de escritório, construção, limpeza e energia.

Existe uma forte estrutura nacional, legislativa e política para aquisições verdes. As metasincluem atingir 20% das compras federais de energia de fontes verdes até 2005 e, onde forviável, tanto em termos de custo quanto operacionais, operar 75% da frota de veículosfederais com combustíveis alternativos até abril de 2004. O programa Canadá Ambientalorienta os compradores a considerarem os impactos do ciclo de vida de um produto,utilizarem produtos ecorrotulados e adotarem critérios de eficiência energética e outrosverdes em suas aquisições.

Líder mundial em aquisições verdes. Uma lei de 1994 obriga todos os órgãos públicosfederais e municipais a utilizarem produtos reciclados ou recicláveis, e também todas asautoridades a adotarem uma política de aquisições verdes. Em 2000, 10 dos 14 condados jáhaviam adotado essa política. Pelo menos metade dos municípios também declarou jádispor de políticas implantadas ou em implantação.

Legislação federal sobre o lixo obriga as instituições públicas a darem preferência a produtosverdes nas suas aquisições. Diretrizes estaduais e municipais também exigem a inclusão decritérios ambientais nas licitações, embora critérios econômicos assumam prioridade nasavaliações;

Outro líder mundial em aquisições verdes, a partir de atividades municipais desde o início dosanos 90. Uma lei de 2001 obriga organizações governamentais federais e municipais adesenvolverem políticas e compras específicas de produtos verdes. No início de 2003, 47órgãos municipais e 12 das principais prefeituras estavam comprando verde, com quase ametade dos 700 municípios tendo implantado essa política. O maior avanço está nossetores de papel, artigos de escritório, informática, veículos e eletrodomésticos.

Regulamentos permitem aos compradores utilizarem critérios ambientais nas aquisições,contanto que isso não prejudique a livre concorrência. As autoridades podem escolher quepeso aplicar a critérios ambientais e outros ao adjudicarem contratos. Órgãos governamentaissão obrigados a adquirir pelo menos 5% de sua energia de fontes renováveis até março de2003, quando deverão aumentar para 10% até 2008.

Uma ampla variedade de leis e diretrizes exige que os órgãos federais adquiram itens verdes,incluindo produtos com conteúdo reciclado e eficientes em energia, e veículos bi-combustível.A coordenação e implementação nas agências têm sido fracas, mas estão melhorando.Entre os estados, 47 do total de 50 possuem programas “compre reciclado” desde o finaldos anos 80. Pelo menos uma dúzia de estados ampliaram esses programas para incluiroutras compras verdes.

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Os Estados Unidos também têm teste-munhado um maior avanço no esverde-amento das aquisições públicas mais emâmbito estadual e municipal do que fede-ral. Em 1999, Santa Mônica, na Califórnia,tornou-se a primeira cidade a adquirir 100%de sua energia municipal de fontesrenováveis, inclusive energia geotérmica eeólica. O estado de Minnesota hoje temcerca de 110 contratos diferentes para pro-dutos e serviços verdes, incluindo veícu-los bicombustível, produtos de limpeza debaixa toxicidade, computadores eficientesem energia e tinta sem solventes. Outrospioneiros locais incluem os estados deMassachusetts, Vermont e Oregon; a cida-de de Seattle, Washington e o condado deKalamazoo, em Michigan.23

No mundo em desenvolvimento, Taiwané um dos poucos países que formalizaramaquisições públicas verdes, declarando umapreferência por produtos verdes aprovadosnum decreto presidencial de 1998. Outrosgovernos promulgaram leis em apoio a pro-gramas de reciclagem; todavia, as iniciati-vas para agilizar a promoção e compra deprodutos reciclados não têm avançado mui-to. Está se discutindo a inclusão de com-pras verdes nas políticas públicas no Brasil,Irã, México e Tailândia, e o governo deMauritius movimenta-se para um uso maiorde plásticos e papéis reciclados, tendo in-troduzido lâmpadas mais eficientes de neonna iluminação pública.24

Na maioria dos casos, ainda é cedo parajulgar o impacto global desses pioneiros.Todavia, alguns sucessos de destaque apon-tam para a tremenda capacidade das aquisi-ções verdes influenciarem mercados. Porexemplo, o ICLEI atribui a ascendência do

papel reciclado sobre o suprimento padrãonos escritórios de muitos países europeusàs demandas cumulativas dos poderes pú-blicos, que têm proporcionado a esse pro-duto uma vantagem competitiva. Uma mu-dança semelhante ocorreu quando o gover-no dos Estados Unidos aumentou para 30%a norma de teor reciclado nas compras deórgãos federais, em 1998. Em 1994, apenas12% do papel de copiadoras adquirido poragências federais tinha conteúdo reciclado,e mesmo assim apenas 10% de materialreciclado. Em 2000, entretanto, 90% do papeladquirido pelos dois principais comprado-res do governo tinha conteúdo reciclado de30%. O aumento da demanda pública nãosó incrementou o padrão global do mercadopara teor reciclado como também ajudou aelevar o padrão do principal fornecer de pa-pel reciclado para o governo, Great White.25

Aquisições governamentais verdes po-dem ser particularmente eficazes em influ-enciar mercados onde o setor público pos-sui uma participação significativa da deman-da global ou onde a tecnologia esteja mu-dando rapidamente, como no caso dos equi-pamentos de computadores. O governo dosEstados Unidos, maior comprador indivi-dual de computadores, adquire mais de 1milhão anualmente – cerca de 7% dos com-putadores mundiais. Em 1993, o Presiden-te Bill Clinton assinou uma medida provi-sória (executive order) exigindo que os ór-gãos federais só adquirissem equipamen-tos de computadores que atendessem àsexigências de eficiência descritas no pro-grama Energy Star, do governo. Hoje, emgrande parte como resultado desse aumen-to de demanda, 95% de todos os monitores,80% dos computadores e 99% das impres-

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soras vendidas na América do Norte aten-dem às normas do Energy Star. Os analis-tas atribuíram um salto semelhante no de-sempenho ambiental dos produtos eletrô-nicos japoneses à predominância desse paísnas aquisições verdes desses itens.26

Pressões e Motivadores

Instituições de todos os tipos sofrem, cadavez mais, uma ampla variedade de pressõesnormativas e de consumidores para que fa-çam compras verdes. Por exemplo, muitosgovernos hoje dão rebates, isenções fiscaise outros incentivos econômicos para enco-rajar empresas, escolas, indivíduos e outrosconsumidores a investirem em tudo, desdeaparelhos eletrodomésticos eficientes emenergia até veículos bicombustível. Em2002, a Arquidiocese de Los Angeles rece-beu milhares de dólares de rebates munici-pais quando a Catedral de Nossa Senhorados Anjos tornou-se o primeiro prédio reli-gioso a instalar painéis solares no telhado,gerando energia suficiente para suprir a igrejae mais de 60 residências.27

Os governos também estão utilizandoseu poder normativo para forçar institui-ções a realizarem compras mais verdes.Novas leis ou regulamentos que obrigamos fabricantes a satisfazerem determinadospadrões de eficiência energética oureciclagem influenciam a forma como mui-tas empresas hoje projetam e fabricam seusprodutos. Montadoras, por exemplo, tive-ram que repensar tanto suas fontes quantoseu uso de materiais, a fim de atender àsdisposições de uma nova diretriz da UniãoEuropéia sobre veículos no fim de sua vidaútil, objetivando reduzir a proporção de

sucatas que acabam em aterros. Até 2007,85% (em peso) de cada veículo novo de-verá ser fabricado com componentesrecicláveis (atualmente a reciclagem deveículos está limitada a 75% de peso me-tálico). A DaimlerChrysler pretende su-perar esse padrão e atingir 95% da ca-pacidade de reciclagem até 2005, emparte através do incremento do seu usode plásticos recuperados e outros ma-teriais. Caso seja amplamente adotado,esse processo de reciclagem poderápoupar à indústria automotiva mundialUS$ 320 milhões anuais.28

Os governos não são os únicos a for-çar as instituições a comprar verde. Emtodo o mundo, consumidores individuaisestão começando a incorporar preocupa-ções pessoais sobre sua saúde, meio am-biente e justiça social e a realizar comprasmais verdes em âmbito domiciliar. Hoje,cerca de 63 milhões de adultos america-nos, ou aproximadamente 30% das famí-lias, realizam alguma forma de comprasambientais ou socialmente conscienciosas,de acordo com uma pesquisa realizada pelaLOHAS Consumer Research. No ReinoUnido, compras éticas por indivíduos –em setores que vão de alimentos orgâni-cos até energia renovável – aumentaram19% entre 1999 e 2000, seis vezes maisrápido do que os mercados globais nosvários setores.29

Esses consumidores, cada vez mais,esperam melhor desempenho ambientaldas instituições que os orientam, das em-presas que apóiam e dos produtos quecompram. Os fabricantes nos EstadosUnidos divulgam um volume crescente depedidos de informação de consumidores

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sobre seus produtos, como, por exemplo,o teor reciclado. A Pesquisa do Milêniosobre Responsabilidade Social Corpo-rativa, em 1999, constatou que cerca de60% dos consumidores em 23 países es-peram que as empresas, além de realiza-rem lucros e gerarem empregos, resolvamquestões-chaves ambientais e sociais atra-vés dos seus negócios.30

A pressão dos consumidores foi instru-mental na decisão das autoridades munici-pais em Ferrara, Itália, de introduzir alimen-tos orgânicos nos lanches escolares. Apósum grupo de pais preocupados chamaratenção à baixa qualidade da comida servi-da nos jardins de infância em 1994, a Pre-feitura formou uma comissão para estudara possibilidade de realizar mudanças nas li-citações de alimentos. Dentro de quatroanos, Ferrara havia sistematizado suas aqui-sições de alimentos orgânicos num editalespecial de licitação e, em 2000, 80% dosalimentos servidos nos jardins de infânciamunicipais eram orgânicos.31

Números crescentes de consumidores,acionistas e organizações não-governamen-tais (ONGs) também estão participando deboicotes e outras ações diretas de pressãoa empresas para mudarem suas práticas decompras. Nos últimos anos, gruposativistas, como a Rainforest ActionNetwork (RAN) e ForestEthics, organiza-ram atos públicos nos Estados Unidos eem todo o mundo para pressionar grandesvarejistas, como a Home Depot, a parar deadquirir produtos de madeira oriundos deflorestas virgens. (Vide Quadro 6-2.)Michael Marx, diretor executivo daForestEthics, observa que um fator-chavepor trás do sucesso dessas campanhas foi

seu foco no setor privado: “É importantevisar as corporações, porque têm uma ima-gem. O objetivo é aumentar o custo de fa-zer negócio de forma ambientalmente da-nosa”. Marx acredita que boicotes e outrasações de maculação pública podem sermuito mais eficazes para conseguir mudan-ças ambientais do que, por exemplo, lobbiespor ações normativas que podem levar anosou até mesmo décadas.32

Em outros casos, as ONGs estão en-trando em parcerias com as principaiscorporações para ajudá-las a redirecionaremseu grande poder aquisitivo para objetivosambientais. A Aliança para InovaçõesAmbientais, um projeto da EnvironmentalDefense, uma ONG sem fins lucrativos,está trabalhando com empresas comoCitigroup, Starbucks, Briston-MyersSquibb e Federal Express para alterarsuas compras de papel, veículos e ou-tros produtos. E o Programa Salvado-res do Clima, uma iniciativa conjunta doFundo Mundial para a Natureza e Centerfor Energy and Climate Solutions, daVirginia, trabalha com empresas globaiscomo Johnson & Johnson, IBM, Nike ePolaroid para incrementar sua eficiên-cia energética e uso de energia verde.Igualmente o World Resources Institute

Hoje, cerca de 63 milhões deadultos, ou o aproximadamente30% das famílias nos EstadosUnidos, realizam alguma formade compras ambientalmenteresponsáveis.

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QUADRO 6-2. COMPROMISSO DA HOME DEPOT COM PRODUTOS DEMADEIRA SUSTENTÁVEL

Em meados dos anos 90, a Rainforest ActionNetwork (RAN), de São Francisco, lançouuma campanha de destaque para pressionar aHome Depot, maior varejista mundial deartigos para o lar, a aprimorar suas práticascompradoras de madeira. Essa cadeiavarejista de Atlanta vende mais de US$ 5bilhões em produtos de madeira, portas,compensados e outros anualmente através desuas 1.450 lojas em todo o mundo.

RAN agiu em boicotes, demonstrações emlojas, campanhas publicitárias e ativismoacionário para chamar a atenção do público àprática da Home Depot de adquirir madeiraoriunda de florestas sob grave ameaça deextinção na Colúmbia Britânica, SudesteAsiático e Amazônia. Em agosto de 1999, emresposta a essa pressão, a empresa anunciouque iria eliminar gradativamente todas ascompras de madeira virgem até o final de2002. Em janeiro de 2003, já havia reduzidosuas compras de lauan da Indonésia (madeiranobre tropical utilizada em componentes deportas) em 70%, deslocando mais de 90% desuas compras de cedro para florestas desegunda e terceira geração nos EstadosUnidos. Hoje, a empresa informa saber asfontes originais de aproximadamente 8.900produtos de madeira.

A Home Depot também comprometeu-se adar preferência a produtos certificados comooriginários de florestas sob manejo sustentável.(Atualmente, cerca de 1% da madeira vendidamundialmente é certificada). Entre 1999 e 2002,o número de seus fornecedores que vendiammadeira aprovada pelo Forest StewardshipCouncil (FSC) – Conselho de Manejo Florestal–, um dos principais órgãos de certificaçãoflorestal, saltou de apenas 5 para 40, e o valorde suas compras certificadas disparou de US$

20 milhões para mais de US$ 200 milhões.A decisão da empresa causou um efeito

marola significativo nos mercados de produtospara o lar e de construção. Dentro de um anode sua mudança de política, varejistas querepresentavam mais de um quinto da madeiravendida para o mercado de reformasresidenciais nos Estados Unidos, inclusiveseus principais concorrentes, Lowe’s eWickes, Inc., anunciaram que eles tambémiriam eliminar gradativamente produtos deflorestas ameaçadas, substituindo-os pormadeira certificada. Duas das maioresconstrutoras do país tambémcomprometeram-se a não comprar madeiraameaçada.

Essas mudanças de política elevaram opadrão global da indústria madeireira. Commuitas empresas hoje movimentando-se paraobter aprovação do FSC, em breve será umentrave para outros produtores de madeira nãose certificarem. Michael Marx, daForestEthics, observa que “ uma declaração daHome Depot fez mais para mudar as práticasmadeireiras da Colúmbia Britânica do que 10anos de protestos ambientais”.

Porém, críticos lamentam que a Home Depotnão tenha ido longe o bastante no uso de suaforça de mercado para influenciar seusfornecedores. Um obstáculo tem sido o customais alto na compra de madeira certificada ouna produção de alternativas sintéticas, embora aHome Depot tenha concordado em absorverqualquer aumento de preço. Outro desafio foiafastar consumidores de opçõesambientalmente inseguras. De acordo com aempresa, poucos clientes pedem,especificamente, madeira certificada._______________________________________________________FONTE: vide nota final 32.

está recrutando grandes empresas paraajudá-lo a atingir seu objetivo de desen-volver mercados corporativos para 1.000

megawatts de nova energia verde até2010 – capacidade suficiente para750.000 lares americanos.33

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Superando Obstáculos

Nos últimos anos, a economista JúliaSchreiner Alves vem tentando forçar seupatrão, o governo do estado de SãoPaulo, no Brasil, a esverdear suas aqui-sições. Com uma população de 30 milhões,São Paulo é o primeiro entre todos os es-tados brasileiros em poder aquisitivo. MasAlves é uma das únicas pessoas em suarepartição a pressionar por compras maisverdes, e diz que muitos colegas, particu-larmente no Departamento de Compras,são simplesmente insensíveis ao potenci-al de as aquisições verdes gerarem mu-danças ambientais positivas.34

Em termos práticos, o sucesso de com-pras verdes freqüentemente é resultado dopapel do comprador profissional. O Depar-tamento de Licitação de uma instituiçãoexerce um poder considerável. Nos Esta-dos Unidos, os departamentos de comprasgovernamentais supervisionam 50–80% detodas as aquisições. Quando a compra éaltamente centralizada, uma única decisãotomada por apenas um ou um punhado decompradores pode causar uma tremendamarola, influenciando a comprar os pro-dutos utilizados centenas e até milharesde pessoas. Dessa forma, as aquisiçõesde compradores institucionais têmfreqüentemente maiores conseqüênciaspara o planeta do que as escolhas diáriasda maioria dos consumidores domésticos.35

Infelizmente, muitos compradores ain-da não estão explorando seu tremendopoder para alavancar mudanças. Em al-guns casos, simplesmente não têm conhe-cimento da influência que poderiam exer-cer. Mas também enfrentam graves obs-

táculos legais, políticos e institucionais emtodas as etapas de seu trabalho – desde oestabelecimento de um programa de aqui-sições verdes até a seleção dos produtosverdes. Se essas barreiras não forem su-peradas e a lacuna entre boas intenções eresultados práticos não for preenchida, asatuais iniciativas pioneiras de aquisiçõesverdes poderão ser engolidas pela cres-cente maré do consumo.

Devido ao complexo arcabouço legalem torno das licitações, a inserção de exi-gências verdes no processo de compra égeralmente mais fácil de falar do que defazer. Regras licitatórias podem variar adepender do volume, valor ou tipo de aqui-sição, criando dificuldades para o com-prador determinar se consideraçõesambientais são compatíveis com os pro-cedimentos existentes. Compras verdespodem ser particularmente desafiadoras nomundo em desenvolvimento, em que nor-mas ambientais ou de produtos sãofreqüentemente tão fracas que comprado-res realizam aquisições de má qualidadeou até perigosas. Corrupção e fiscaliza-ção fraca nas licitações dão pouco incen-tivo aos compradores para agirem commaior eficiência ou comprarem produtosambientalmente seguros.36

Quando governos em todo o mundoatualizam seus procedimentos licitatórios efecham as brechas que fomentam inefici-ência, desperdício e corrupção, isso pode:ou levar a regulamentos mais restritivos,que dificultam comprar verde, ou oferecernovas oportunidades. A Comissão Européia,por exemplo, está hoje explorando as pos-sibilidades legais de aquisições verdes nostermos das Diretrizes de Aquisições da

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União Européia, que historicamente nuncafizeram referência a questões ambientais.Um comunicado de julho de 2001 analisoucomo critérios verdes poderiam ser inte-grados em diferentes etapas das aquisiçõesda UE, desde especificação de produtos atéseleção de fornecedores.37

Além das incertezas legais correntes,as aquisições verdes enfrentam gigantes-cos desafios políticos À medida que cres-cem os mercados de produtos ambiental-mente desejáveis, as indústrias que man-têm interesse na produção convencional(como a indústria petrolífera, empresasde fertilizantes e outros fabricantes deprodutos ambientalmente inseguros) pro-vavelmente sairão perdendo. Esses inte-resses estão exercendo uma influênciasignificativa para pressionar decisões decompras institucionais, a fim de impedirque os produtos alternativos ganhem es-paço. Durante anos, Tom Ferguson, daPerdue AgriRecycle, tem comparecido afeiras comerciais e angariado apoio decompradores governamentais para seufertilizante orgânico, derivado de dejetosreciclados de aves. Mas não está pene-trando no mercado, diz este, porque oscódigos de especificações federais nãopermitem que compradores adquiramprodutos alternativos como os que ven-de. Ferguson observa que grupos indus-triais poderosos, como o Ferti l izerInstitute, protegerão os contratos quími-cos do agronegócio a qualquer custo. E“se o produto ou serviço não estiver den-tro das especificações governamentais,então as mãos do comprador governa-mental – não importa quão bem-intenci-onado seja – estão amarradas”.38

Muitas iniciativas de aquisiçõesverdes falham porque asorganizações não estabelecemmetas rígidas para a atividadee não há prestação de contas.

Mesmo quando o clima político é maisreceptivo, compradores enfrentam outrosobstáculos às compras verdes. Na maioriadas instituições, as regras os obrigam a ad-quirir o produto ou serviço que melhor atendaàs suas necessidades no menor preço, o queelimina produtos mais ambientalmente de-sejáveis, mais caros. Luz Aída MartinezMeléndez, do Ministério do Meio Ambientee Recursos Naturais do México, reclama queencontrar produtos alternativos acessíveisé uma das maiores barreiras a compras ver-des em seu departamento.39

Mas algumas instituições estão encon-trando formas inovadoras de lidar com aquestão do preço. Em 2001, a cidade deChicago e 48 subúrbios reuniram seus re-cursos jurisdicionais para adquirir um blo-co maior de eletricidade a uma taxa reduzi-da, aplicando o valor economizado no aten-dimento de pelo menos 20% das necessi-dades energéticas do grupo de fontesrenováveis até 2006. A cidade de Kansas eo condado de Jackson, no Missouri, con-cordaram em pagar um ágio de 15% paracombustíveis alternativos, produtos de lim-peza e outros considerados ambientalmenteseguros. Outras instituições permitem quecompradores comparem produtos combase no custo em função da vida útil, emvez de simplesmente no valor de aquisição– que freqüentemente demonstra que aopção verde é mais barata.40

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Também há obstáculos institucionaisinternos a aquisições verdes. Devido amuitas organizações não possuírem um his-tórico de responsabilidade ambiental, fazercom que funcionários reconheçam os be-nefícios da adoção de práticas maisambientalmente seguras pode levar tempo.Compradores, gerentes e usuários finaisestão muito acostumados ao status-quo eresistentes a novos métodos que possamcomplicar seu trabalho. Ademais, persistemuito ceticismo quanto à funcionalidade demuitos produtos verdes. Por exemplo,muitos compradores ainda evitam adquirirpapel reciclado porque acreditam que suaqualidade seja de baixo padrão, embora es-ses tipos de problemas já venham sendosuperados em grande parte.

Selecionar um foco para aquisições ver-des pode também ser uma tarefa desafia-dora. Deveria uma instituição visar produ-tos menores, como produtos de limpeza,móveis para escritórios e papel, ou itensmaiores, como prédios e transportes?Idealmente, a iniciativa enfocaria mudan-ças que pudessem fazer a maior diferençano todo em termos de benefíciosambientais e influência de mercado. Porémisso geralmente não ocorre. Stuttgart, naAlemanha, por exemplo, enfoca suas aqui-sições verdes principalmente em papel, pro-dutos de limpeza e equipamentos deinformática, embora 80% dos gastos mu-nicipais sejam em eletricidade, aquecimen-to e construção e renovação de prédios.41

No final das contas, o alvo de uma insti-tuição poderá depender de suas prioridadesambientais, limitações legais e financeiras efacilidade ou probabilidade de realizar mu-danças. Santa Mônica, na Califórnia, deu

partida às suas iniciativas de aquisições ver-des em 1994, com produtos de limpezamenos tóxicos, porque já existia um amploconhecimento sobre produtos alternativos.Sem muita pesquisa adicional, os compra-dores podiam substituir limpadores tradici-onais por opções menos tóxicas em 15 das17 categorias de produtos, economizando5% em custos anuais e evitando a compraanual de 1,5 tonelada de materiais perigo-sos. A Rede de Aquisições Verdes, do Japão,que encoraja os consumidores de todos ostipos a comprarem verde, é bem-sucedidaporque enfoca principalmente artigos de es-critório e produtos eletrônicos. (Alguns dosseus membros, que incluem prefeituras,corporações e ONGs, atingiram 100% deaquisições verdes nesses itens.)42

Uma maneira importante de institucio-nalizar as aquisições verdes é estabeleceruma política ou lei explícita, reforçando aatividade. A estratégia de Copenhague, queentrou em vigor em 1998, especificou quedentro de dois anos todos os artigos deescritório tinham que ser isentos de PVC,todas as fotocopiadoras tinham que utilizar100% de papel reciclado, todas as impres-soras tinham que imprimir nas duas facesdo papel e todos os cartuchos de toner ti-nham que ser reutilizados.43

Porém, ter uma política nem sempregarante que será aplicada. A norma avan-çada de licitações de madeira do Reino Uni-do é um exemplo. Em 2000, em resposta àcrescente preocupação mundial sobre ati-vidades madeireiras ilegais, o governo cen-tral adotou uma política exigindo que to-dos os departamentos e agências “se em-penhassem ativamente” na compra de pro-dutos de madeira certificada como origi-

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nária de florestas de manejo sustentável.Uma investigação do Greenpeace, em abrilde 2002, todavia, revelou que as autorida-des, claramente, desconsideraram essa leiquando reformaram a Sala do Gabinete doGoverno, em Londres, com sapele da Áfri-ca, uma madeira ameaçada. Investigandoo incidente, a Comissão de AuditoriaAmbiental da Câmara dos Comuns confir-mou que não tinha havido “qualquer evi-dência sistemática ou até mesmo empíricade qualquer mudança nos padrões de aqui-sições de madeira”.44

Muitas leis de aquisições verdes nos Es-tados Unidos também deixam a desejar. Nostermos da Lei de 1976 sobre Conservação eRecuperação de Recursos Naturais, e suasreedições subseqüentes, as agências fede-rais estão obrigadas a considerar o uso deprodutos reciclados, biofundamentados eoutros ambientalmente desejáveis em suaslicitações e contratações acima de um valordeterminado. Porém, dois relatórios recen-tes da Agência de Proteção Ambiental (EPA)e do Departamento Geral de Contabilidadedos Estados Unidos comprovaram que nãoapenas poucas agências federais estavamatendendo às exigências legais, mas tambémque a maioria dos compradores sequer ti-nha conhecimento das normas.45

Julian Keniry, diretora do programaEcologia no Campus, da National WildlifeFederation, diz que muitos esforços deaquisições verdes falham porque as or-ganizações não estabelecem metas rígi-das para a atividade e não há prestaçãode contas. “Só políticas não é suficien-te”, diz. “Precisam ser acompanhadas deum processo de estabelecimento de me-tas. Do contrário, são apenas palavras no

papel”. Quanto mais específicas equantificáveis forem as metas de umainstituição, maior a probabilidade de ocor-rerem aquisições verdes.46

Em alguns casos, as instituições nãoimpõem sanções por não-cumprimento,havendo pouco incentivo para os compra-dores seguirem os regulamentos. A pes-quisa da Agência de Proteção Ambientalem 2000, por exemplo, atribuiu odescumprimento da legislação americanade “comprar reciclado” à falta de aplica-ção da lei; mesmo quando os comprado-res tinham conhecimento das regras, nemsempre as consideravam obrigatórias. Afim de encorajar o cumprimento,Vorarlberg, na Áustria, realiza hoje umacompetição regional para premiar a pre-feitura mais ambientalmente amigável porsuas práticas de compras, enquanto, nosEstados Unidos, Massachusetts premia osmelhores compradores verdes do estado,município ou setor privado.47

Ao mesmo tempo, a maioria dos siste-mas institucionais de contabilidade não fo-ram planejados para rastrear aquisições deprodutos reciclados ou verdes, dificultan-do a monitoração da atividade. Adescentralização em andamento nas opera-ções de compra de muitos governos, uni-versidades e outras atividades de comprasinstitucionais agravam o problema contábil.Os principais órgãos públicos do Canadáhoje emitem cerca de 35.000 cartões decrédito individuais, que permitem aos fun-cionários selecionar e debitar seus própri-os suprimentos até um teto prefixado, en-quanto mais da metade das compras fede-rais nos Estados Unidos são debitadas emcartões bancários governamentais.48

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Algumas instituições estão lidandocom o problema de monitoração da for-ma antiga: conferindo à mão os recibosde compras verdes. Outros, porém, es-tão desenvolvendo sistemas mais sofisti-cados. Kolding, na Dinamarca, está cri-ando uma forma eletrônica de registraraquisições verdes, e o governo dos Esta-dos Unidos avançou inserindo um siste-ma automatizado de rastreamento de pro-dutos verdes no sistema federal de aqui-sições. Outras instituições isentam-se to-talmente da responsabilidade, transferin-do o ônus para os fornecedores. A vare-jista de energia renovável americanaGreen Mountain Energy, por exemplo,exige que seu fornecedor de papel BoiseCascade apresente relatórios sumáriossobre todas as compras de papelreciclado da Green Mountain.49

IdentificandoProdutos Verdes

Um desafio adicional nas compras verdesé saber exatamente o que procurar. Relati-vamente pouco se sabe sobre as caracte-rísticas ambientais da maioria dos produ-tos e serviços no mercado hoje, dificultan-do o trabalho de comparação eficaz dosprodutos pelos compradores. Traçar asorigens de um produto por toda a cadeiaprodutiva pode ser complicado. Um com-prador pode, involuntariamente, adquirirpapel originário de florestas virgens do su-deste da Ásia (onde as florestas estão rapi-damente sendo desmatadas para agricultu-ra e outros fins) porque foi reembalado evendido sob tantas marcas diferentes quemesmo a maioria dos vendedores não pode

confirmar sua origem. Sem o tempo ouantecedentes científicos para uma pesqui-sa extensa da oferta de produtos verdes,muitos compradores simplesmente prefe-rem que alguém lhes diga o que comprar.50

A ausência de informações ambientaisseguras deixou muitos fabricantes,ambientalistas e outros confusos sobre oque exatamente constitui um produto ouserviço “verde”. Deverá um papel“ambientalmente seguro”, por exemplo,conter uma porcentagem máxima de con-teúdo reciclado? Vir de uma floresta explo-rada sustentavelmente? Ser processadosem uso de cloro? Ou uma combinaçãodessas? Para muitos produtos verdes, ain-da não existem padrões ou especificaçõesambientais amplamente reconhecidos. Emalguns casos, os produtos verdes são tãoinovadores que apenas um punhado deempresas os produzem, ou são submeti-dos a tamanha mudança tecnológica quepadrões ou especificações simplesmentenem foram desenvolvidos. Entretanto, semum acordo sobre o que seja efetivamente“verde”, muitos fabricantes relutam em in-vestir em tecnologias mais ambientalmenteseguras.51

Felizmente, estão sendo desenvolvidasferramentas sofisticadas para ajudar tantofabricantes quanto compradores a avaliaro desempenho ambiental dos produtos.Uma técnica particularmente promissora,a avaliação de ciclo de vida, oferece umametodologia para identificar e quantificaros insumos, produtos e impactosambientais potenciais de um determinadoproduto ou serviço por toda a sua vida.(Vide Quadro 6-3.) A Volvo, por exemplo,hoje aplica considerações de ciclo de vida,

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a fim de prestar informações detalhadassobre os vários impactos ambientais quesurgem durante a fabricação e uso dos ve-ículos. E o novo software BEES (sigla eminglês para Construir para a SustentabilidadeAmbiental e Econômica) do Departamentode Comércio dos Estados Unidos utilizadados de ciclo de vida para assessorar com-pradores na comparação e classificação dodesempenho ambiental e econômico demateriais de construção, com base nos seusimpactos relativos em áreas como aqueci-mento global, qualidade do ar interno,exaustão de recursos e resíduos sólidos.52

Acordos também estão surgindo, pelomenos entre alguns grupos interessados,sobre como definir certos produtos ver-des, como papel e produtos de limpeza. Emnovembro de 2002, cerca de 56 gruposambientalistas da América do Norte adota-ram um conjunto de critérios ambientaiscomuns para papel ambientalmente desejá-vel e divulgaram orientação detalhada paraassessorar compradores em suas escolhas.Naquele mesmo ano, compradores gover-namentais, representantes da indústria egrupos ambientalistas uniram-se sob umanova Iniciativa Norte-Americana de Aqui-

QUADRO 6-3. A ABORDAGEM DE CICLO DE VIDA

Uma abordagem de ciclo de vida nos permiteverificar as conseqüências involuntárias denossas ações durante toda a vida dos produtos– desde a extração da matéria-prima até adisposição final. Oferecendo informações maiscompletas sobre tudo, desde nossos sistemasde transportes até nossas fontes energéticas,pode nos ajudar a reorientar o consumo numadireção mais sustentável. “Os consumidoresestão cada vez mais interessados no mundopor trás dos produtos que adquirem”, observaKlaus Töpfer, diretor executivo do PNUMA(Programa das Nações Unidas para o MeioAmbiente). “O conceito de ciclo de vidasignifica que cada um de nós, por toda a cadeiado ciclo de vida de um produto, do berço aotúmulo, tem responsabilidade e um papel adesempenhar”.

Em 2001, em resposta a uma convocação degovernos por uma economia de ciclo de vida, oPNUMA e a Sociedade de Toxicologia eQuímica Ambiental iniciaram, conjuntamente,uma Iniciativa de Ciclo de Vida. Através deseus três programas principais – Gestão deCiclo de Vida, Inventário de Ciclo de Vida eAvaliação do Impacto do Ciclo de Vida –, a

iniciativa busca desenvolver e disseminarferramentas práticas para avaliaroportunidades, riscos e compensaçõesassociados a produtos e serviços ao longo doseu ciclo de vida. A iniciativa é regida por umPainel Internacional de Ciclo de Vida, quetambém age como o principal fórum globalpara especialistas e interessados em ciclo devida em todo o mundo.

A Iniciativa contribui também para umarcabouço de programas decenais maisamplos, que promovem as normas deconsumo e produção sustentáveis solicitadasna Cúpula Mundial sobre DesenvolvimentoSustentável de 2002, em Joanesburgo. O Planode Ação de Joanesburgo enfatizou anecessidade de “políticas que melhorem osprodutos e serviços fornecidos, reduzindo aomesmo tempo impactos ambientais e à saúde eutilizando, onde seja indicado, abordagenscientíficas, como a análise de ciclo de vida.”

– Guido Sonnemann, Divisão deTecnologia, Indústria e Economia, PNUMA

___________________________________________FONTE: vide nota final 52.

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sições Verdes, a fim de desenvolverem cri-térios e linguagem contratual uniformes paraaquisições verdes de energia, papel e pro-dutos de limpeza. Um grupo de trabalhoconquistou uma grande vitória ao concor-dar com um conjunto único de critérios paraa identificação de produtos verdes de lim-peza em contratos públicos (anteriormen-te, os compradores chegavam a utilizar até17 tipos diferentes de linguagemcontratual).53

Muitos compradores (e outros consu-midores) também procuram orientação so-bre iniciativas nacionais, regionais e globaisde ecorrotulagem. Ecorrótulos são selos deaprovação utilizados para indicar que umproduto atende a critérios específicos desegurança ambiental durante uma ou maisetapas de seu ciclo de vida. Embora a varie-dade de produtos e serviços ecorrotuladosseja relativamente pequena, esses rótulos jápodem ser encontrados em vários itens, des-de eletricidade verde até produtos de madei-ra. Os certificadores incluem órgãos gover-namentais, ONGs, grupos profissionais ouprivados e entidades de certificação interna-cional. (Vide também Capítulo 5.)54

Algumas instituições permitem que seuscompradores exijam especificamente itensecorrotulados em seus contratos. A cidadede Ferrara, na Itália, por exemplo, procuracomprar papel com o rótulo da NordicSwan. Porém muitos compradores (parti-cularmente governamentais) hesitam emendossar produtos ecorrotulados específi-cos, exigindo, em vez disso, que seus for-necedores satisfaçam os critérios básicosdos rótulos. O estado da Pensilvânia de-monstrou o desejo de adquirir apenas pro-dutos de limpeza e tintas que atendam aos

critérios estabelecidos pela Green Seal,uma organização americana sem fins lu-crativos que desenvolveu padrõesambientais rigorosos em cerca de 30 ca-tegorias de produtos. Uma das grandes pre-ocupações é que a escolha de produtos derotulagem específica poderá criar umabarreira comercial injusta, nos termos daregras da Organização Mundial do Comér-cio, discriminando pequenos fornecedo-res, que talvez não possam arcar com oscustos de qualificação às condições dosrótulos. (Vide Capítulo 7.)55

A Rede de Aquisições Verdes,do Japão, tem hoje cerca de2.730 membros, incluindo Sony,Toyota e Canon.

Tem surgido também forte oposiçãoà ecorrotulagem por parte da indústria,particularmente nos Estados Unidos. Opresidente da Green Seal, ArthurWeissman, explica que fabricantes comoProcter & Gamble, principal produtor deartigos domésticos, utilizam várias táti-cas – desde argumentos legais até fortelobby governamental – para evitar queprodutos verdes certificados entrem nomercado americano. “Na visão deles, in-terrompo o relacionamento com o con-sumidor”, diz Weissman... “terceiros in-terferindo com a marca”.56

Em alguns casos, fabricantes globaiscom múltiplas linhas de produtos têmresistido aos esforços de especificar qual-quer um dos seus produtos comoambientalmente desejável, por temerem

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que isso possa denegrir suas ofertas con-vencionais. “Assim que as empresas co-mecem a identificar alguns dos seus pro-dutos como ambientalmente desejáveis,os consumidores irão querer saber o quetem de errado com os outros produtos,explica Scot Case, diretor de Estratégiasde Aquisição do Center for a NewAmerican Dream. “Uma empresa poderásofrer ações legais caso seus clientesvenham a saber que muitos dos seus pro-dutos de limpeza, por exemplo, são po-ções tóxicas de conhecidos cancerígenose toxinas reprodutivas”.57

Hoje, várias outras ferramentas tam-bém ajudam os compradores a identifi-car com mais facilidade produtos e ser-viços ambientalmente desejáveis. Muitasorganizações divulgam diretrizes de aqui-sições verdes ou listas de produtos comoreferência para seus compradores ou for-necem manuais detalhados de treinamentopara orientar os compradores através doprocesso. A Agência de ProteçãoAmbiental dos Estados Unidos, por exem-plo, dá recomendações para a aquisiçãode cerca de 54 produtos diferentes comconteúdo reciclado, incluindo cones detrânsito, cartuchos de toner, madeira plás-tica, mangueiras de jardim e isolamentopredial. A cidade de Gotenburgo, na Sué-cia, realiza seminários de treinamento,palestras e workshops para orientar com-pradores e outros interessados sobre exi-gências legais, ferramentas específicas emelhores práticas para aquisições verdes.Em 2000, 80–90% dos funcionários mu-nicipais (tanto compradores quanto usu-ários finais) haviam sido treinados emaquisições verdes.58

Disseminando o Movimento

Durante muitos anos o esforço de divulgare promover práticas mais verdes de com-pras perdeu-se entre duplicação de traba-lho e pouca articulação de idéias. Mas issoestá mudando. Hoje, iniciativas em âmbitointernacional, regional e local buscam nãosó enfrentar os obstáculos a aquisiçõesverdes, mas também acelerar sua adoção.E à medida que mais instituições reconhe-cem os benefícios, compartilham informa-ções e aprendem com os sucessos e fra-cassos mútuos.

Várias organizações e redes, especial-mente na Europa, América do Norte e Ja-pão, publicam hoje informações sobre aqui-sições verdes, recolhem histórias de suces-so e divulgam tendências. Visam principal-mente instituições com forte poder aquisi-tivo, como governos e grandes corpora-ções, embora muitas de suas estratégiastambém sejam aplicáveis em menor esca-la. Alguns desses grupos entram em par-ceria diretamente com líderes industriais eautoridades governamentais para encora-jar aquisições mais verdes. Outros congre-gam comunidades para boicotarem ou, deoutra forma, pressionarem fabricantes ououtras instituições a mudar suas práticasde compra. Muitos também aplicam seusrecursos para promover debates públicose gerar interesse da mídia no movimentode aquisições verdes.

O Programa Ecoaquisições, do ICLEI,lançado em 1996, é líder na promoção deaquisições verdes entre governos, empresase outras instituições por toda a Europa. Maisde 50 cidades e prefeituras em 20 países per-tencem hoje à Rede Compre Verde, do gru-

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po, que ajuda seus membros na troca de in-formações e experiências, na união de esfor-ços e nas aquisições verdes conjuntas. A or-ganização também realiza conferências anu-ais e edita uma revista, distribuída para maisde 5.000 compradores na Europa. E, em umdos seus primeiros esforços, a ICLEI estátrabalhando num projeto para quantificar aeconomia ambiental associada a aquisiçõesverdes, a fim de determinar a melhor manei-ra de combinar estrategicamente o poder decompra das cidades e divulgar aquisição ver-de por toda a Europa. Por exemplo, o projetoconstatou que a substituição dos 2,8 milhõesde computadores que os governos da UEadquirem anualmente por modelos eficientesem energia poderá reduzir as emissões euro-péias em mais de 830.000 toneladas de dióxidode carbono equivalente.59

Na América do Norte, o principal pro-ponente de aquisições institucionais verdesé o programa Aquisições Ambientalmente De-sejáveis, da Agência de Proteção Ambiental(EPA), criado em 1993 por decreto presi-dencial. O programa oferece apoio e infor-mações em áreas como construção, produ-tos de escritório, serviços de conferências eimpressão, produtos de limpeza, aquisiçõespara lanchonetes e produtos eletrônicos. AEPA também lançou vários projetos-piloto,incluindo parcerias com o Departamento daDefesa (para esverdear operações e instala-ções militares) e com o Serviço Nacional deParques (para ajudar os parques tanto aesverdearem suas compras quanto educa-rem os visitantes sobre consumo). Atravésda sua base central de dados, a EPA tam-bém atua como câmara de compensação paramais de 600 produtos e serviçosambientalmente desejáveis, incluindo links

para 130 especificações de contrato emâmbito municipal, estadual e federal, para523 normas de desempenho ambiental deprodutos e para 25 listas de vendedores eprodutos que atendem a essas normas.60

O Center for a New American Dream,de Maryland, ajuda grandes compradores,particularmente governos estaduais e mu-nicipais, a incorporarem consideraçõesambientais em suas decisões de compra.Seu Programa de Estratégias Aquisitivas foium motivador por trás da Iniciativa Norte-Americana de Aquisições Verdes, em 2002,que visa gerar uma massa crítica para aqui-sições verdes no continente. O grupo tam-bém pretende agir como câmara de com-pensação para informações sobre aquisiçõesverdes para fabricantes, compradores e for-necedores.61

A Rede de Aquisições Verdes (RAV), doJapão, agrega cerca de 2.730 organizações,incluindo mais de 2.100 empresas (entreelas Panasonic, Sony, Fuji, Xerox, Toyota,Honda, Canon, Nissan e Mitsubishi); 360prefeituras em locais como Tóquio, Osaka,Yokohama, Kobe, Sapporo e Kyoto e 270grupos de consumidores, cooperativas eoutras ONGs. A RAV realiza seminários eexposições pelo país sobre aquisições ver-des, publica diretrizes de compras e livrosde dados ambientais de diferentes produ-tos e serviços e distribui prêmios a organi-zações exemplares.62

Na área de educação superior, mais de275 presidentes e chanceleres de universi-dades em mais de 40 países assinaram aDeclaração de Talloires, em 1990, um pla-no de ação de 10 pontos que, entre outrascoisas, encoraja as universidades a estabe-lecerem políticas e práticas de conserva-

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ção de recursos, reciclagem, redução delixo e operações ambientalmente seguras.No setor hoteleiro, a International HotelsEnvironment Initiative, uma rede global semfins lucrativos de mais de 8.000 hotéis em11 países, patrocina uma ferramenta daWeb para ajudar hotéis a melhorarem seudesempenho ambiental (e economizaremdinheiro) através de compras diversificadas,desde iluminação eficiente em energia atépisos, refrigeradores e frigobaresambientalmente desejáveis.63

minar histórias de sucesso e outros eventosde aquisições verdes.64

Já há esforços incipientes para disse-minar aquisições verdes no mundo em de-senvolvimento, embora ainda reste muitotrabalho a ser feito. O programa ERNIE(Aquisições Ecorresponsáveis em Países emDesenvolvimento e Economias Quase In-dustrializadas) do ICLEI, apoiado pela Glo-bal Environment Facility, está trabalhandocom autoridades locais em várias cidades– inclusive São Paulo, Brasil; Durban, Áfri-ca do Sul, e Puerto Princessa, Filipinas –para desenvolver projetos-piloto de aquisi-ções verdes. A iniciativa enfoca basicamen-te a compra de eletrodomésticos eficientesem energia e visa superar várias barreirasde mercado e, dentre outras, as licitaçõesverdes, inclusive a necessidade de capaci-tar fornecedores e fabricantes locais.65

Uma forma de as instituições ajudarem adisseminar aquisições verdes no mundo emdesenvolvimento é por meio de suas própriaslicitações, fortalecendo mercados verdes lo-cais. Por exemplo, as Nações Unidas, BancoMundial, agências doadoras e corporaçõesmultinacionais operando nesses países podemesforçar-se para adquirir uma maior parcelade seus bens e serviços de fornecedores ver-des locais, ajudando a capacitar a produçãosustentável. Desde 1992, DaimlerChryslervem explorando as florestas tropicais brasi-leiras à procura de fibra de coco e borrachanatural seguras, que hoje utiliza em assentose apoios de cabeça dos veículos. Com isso, amontadora não só elimina o uso de insumossintéticos nessas peças, como tambémincrementa mercados locais de materiaisrenováveis, gerando renda e emprego paraos produtores.66

Desde 1992, DaimlerChrysler vemexplorando as florestas tropicaisbrasileiras à procura de fibra decoco e borracha natural seguras,que utiliza hoje em assentos eapoios de cabeça dos veículos.

Há esforços também para chamar maisa atenção da mídia para aquisições verdes.Em fevereiro de 2001, a Agência de Prote-ção Ambiental da Dinamarca lançou umacampanha intensiva na televisão, em jornaise folhetos para despertar interesse em pro-dutos ecorrotulados. A Rede de AquisiçõesVerdes do Japão empenhou-se promovendoaquisições verdes na televisão, jornais e se-minários governamentais e corporativos. Or-ganizações de todos os tipos hoje tambémutilizam a Internet para informar seus com-pradores sobre aquisições verdes, dando di-cas e indicando links para produtos e servi-ços alternativos. O condado de King, no es-tado de Washington, utiliza seu websiteabrangente e boletins via e-mail para disse-

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Na maioria dos casos, todavia, já é umgrande desafio conseguir simplesmente queinstituições internacionais comprem dospaíses em desenvolvimento, quanto maiscomprar verde. Embora algumas dessasinstituições tentem efetivamente comprarlocalmente, suas aquisições geralmente fa-vorecem empresas do mundo industriali-zado. (Na realidade, a maioria das agênciasdoadoras atrelam sua ajuda a aquisições emseus próprios países.) Em 2000, apenas umterço das aquisições do sistema das NaçõesUnidas foi no mundo em desenvolvimento.Ocasionalmente, essas instituições fazemexigências socialmente responsáveis emsuas aquisições: o UNICEF, por exemplo,busca desenvolver políticas e estratégias deorigens que apóiem metas nacionais de in-cremento ao bem-estar das crianças. Mas,até agora, raramente especificam critériosambientais devido, em parte, ao risco deessas especificações contratuais alienarempequenos fornecedores que talvez não pos-sam atendê-las.67

Ao incrementar aquisições verdes nospaíses em desenvolvimento, as instituiçõesinternacionais podem não apenas estimularmercados, mas também aprimorar sua ima-gem em função das constantes críticassobre os impactos ambientais de suas ati-vidades. Há interesse crescente, por exem-plo, em inserir critérios ambientais nas lici-tações associadas a empréstimos do Ban-co Mundial, como parte de esforços maio-res para esverdear as operações do Banco.O Banco está hoje trabalhando com umacoalizão de outros bancos multilaterais dedesenvolvimento, agências da ONU eONGs para estimular aquisições verdes tan-

to dentro quanto fora das instituições mem-bros. Esse grupo interagências espera tam-bém incorporar critérios de justiça socialàs decisões licitatórias dos membros.68

Evidentemente, as instituições mundi-ais têm um poder significativo de realizarmudanças sociais e ambientais por inter-médio de suas aquisições. Mas não im-porta quão ambientalmente seguras sejamessas aquisições: elas ainda utilizam recur-sos e geram resíduos. A fim de mitigarrealmente os impactos de seu consumo,as instituições precisarão buscar meiospara atender a suas necessidades sem ad-quirirem novos produtos – por exemplo,eliminando compras desnecessárias e es-tendendo a vida útil dos produtos existen-tes. Pori, na Finlância, implementou umserviço urbano de reutilização de merca-dorias que permite aos funcionários dequalquer repartição municipal negociar oudar produtos que não precisem mais. Edesde 1994 o projeto SWAP (sigla em in-glês de Sobras com Objetivo), da Univer-sidade de Wisconsin-Madison, subseqüen-temente ampliado para todo o estado, vemajudando a redirecionar produtos usados– como mobília de escritório, computa-dores e outros – de aterros para outrosusuários no campus e em todo o estado.69

Aquisições verdes não são a única for-ma de minimizar os problemas associa-dos ao consumo excessivo. Mas é umpasso importante no caminho para ummundo mais sustentável. Como indivídu-os, precisaremos pressionar organizaçõespara as quais trabalhamos e das quais de-pendemos para que se unam a nós naconstrução deste mundo.

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Papel

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

Durante a maior parte de sua história, opapel existiu como uma mercadoriapreciosa e rara. Agora cobre oplaneta. Nos tempos atuais,dificilmente notamos aquantidade de papelpassando por nossas vidas.Do conteúdo de nossascaixas de entradas àscédulas de nossas carteirase até as embalagens denossos jantares congelados, opapel está sempre à mão.

Mundialmente, o consumo do papelaumentou mais de seis vezes na últimametade do século XX. Os Estados Unidos –com 331 kg por pessoa, anualmente, eaproximadamente 30% do uso total mundialpor ano – são o maior consumidor de papel.Numa base per capita, os japoneses vêm aseguir, com 250 kg por pessoa. Emborainventado como um meio de comunicação,cerca da metade do papel consumido pelasociedade atualmente tem outro destino:embalagem. De precioso a descartável – opapel hoje é responsável por grande partedo lixo moderno, representando 40% do lixosólido urbano que sobrecarrega muitospaíses industrializados.1

Embora o papel seja derivado do“papiro”, uma planta aquática colhida,amassada e prensada para que os antigosegípcios registrassem seus hieróglifos, o

papel fibroso como conhecemosfoi inventado na China, menos de

2.000 anos atrás. Nos doismilênios seguintes, trapos e

cânhamo eram as matérias-primasmais populares na fabricação do

papel. A Bíblia de Guttenberg, oprimeiro e segundo esboço daDeclaração de Independência

dos Estados Unidos e as obrasoriginais de Mark Twain foram

todos impressos em papéis feitos decânhamo. Só a partir de 1850 FriedrichGottlob Keller, da Alemanha, inventou ummétodo de fabricar papel a partir damadeira.Foram necessárias várias décadaspara árvores tornarem-se a matéria-primapreferida, quando outros refinaram astécnicas de Keller e descobriram novosmétodos de produção em massa de papel,baseados na madeira.2

No século XXI, dificilmente pensamos empapel derivado de outra coisa que não depapel. Realmente, 93% do papel atual vem deárvores, e a produção de papel é responsávelpela colheita de um quinto da madeira emtodo o mundo. Atualmente, 55% dosuprimento total provém do corte de novasárvores, 7% provêm de fontes não-arbóreas eos 38% restantes são provenientes dareciclagem de papel feito de madeira.3

Árvores em todo o mundo alimentam osuprimento de papel. As florestas dos

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ATRÁS DOS BASTIDORES: PAPEL

Estados Unidos são responsáveis pelamaior contribuição, com 30% do total,porém, nas últimas décadas, essa parcelaestá diminuindo à medida que a China eoutros países em desenvolvimentoaumentam a produção. A produção de papelmudou dentro dos Estados Unidos. Quandose coibiu a exploração de madeira nasflorestas antigas do noroeste, a produçãode papel transferiu-se para as florestassecundárias, biologicamente ricas, dosudeste. Essas florestas agora fornecem umquarto do papel mundial. E florestassecundárias fornecem 54% do total de papelderivado de madeira virgem em todo omundo. Plantações arbóreas (muitas vezesplantadas em terras recém-desmatadas)chegam quase a 30% e as antigas, namaioria florestas boreais, são responsáveispelos 16% restantes.4

O processo de transformar árvores empapel começa na serraria, onde uma série delâminas circulares reduz toros a pequenaslascas. As lascas são transportadas paramoagem em usinas a milhares dequilômetros de distância, onde sãocozinhadas com produtos químicos emgigantescos caldeirões de pressão etransformados em uma pasta úmida com aconsistência de um mingau. Lavada ebranqueada várias vezes, essa mistura éfinalmente prensada e secada, resultandoem rolos enormes de papel para consumo.No final, um pedaço de papel de escreverpode conter fibras de centenas de diferentesárvores trazidas coletivamente de milharesde quilômetros de distância, da floresta parao consumidor.

Fabricar papel é uma atividadeextremamente intensiva em recursos. Umatonelada de papel requer duas ou três vezesseu peso em árvores, acompanhado de uma

grande quantidade de água e energia. Nomundo todo, a indústria de papel e celuloseé o quinto maior consumidor industrial deenergia e usa mais água para produzir umatonelada do produto do que qualquer outraindústria. As fábricas de papel podem servizinhos detestáveis, emitindo odoresdesagradáveis e gerando muita poluição daágua e do ar e grande quantidade deresíduos sólidos. Embora as fábricas depapel no mundo industrializado tenhamtomado algumas providências paratornarem-se mais limpas, fábricas em outroslugares continuam a despejar na atmosfera,solo e cursos d´água quantidadesestarrecedoras de resíduos tóxicos não-tratados.5

Indivíduos e grandes instituições podemajudar a reduzir a carga de papel de váriosmodos – desde sendo mais cuidadosos noseu uso no escritório a sendo maisdiligentes na sua reciclagem. A reciclagemsalva mais do que árvores. O uso deconteúdo reciclado, em vez de fibrasvirgens, para produzir papel gera 74%menos poluição atmosférica e 35% menospoluição da água.6

Grandes instituições podem,particularmente, desempenhar um papel-chave direcionando o mercado para papéisreciclados. Em 2002, os 270 membros daRecycled Paper Coalition, com sede nosEstados Unidos – uma organização degrandes indústrias, organizações não-governamentais e órgãos oficiais, formadapara usar o poder da compra a granel paraapoiar o mercado de papel reciclado –comprou quase 150.00 toneladas de papelreciclado, com um conteúdo médio, pós-consumo, de 24%.7

A administração dos resíduos deembalagens também pode gerar bons

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Estado do Mundo 2004

ATRÁS DOS BASTIDORES: PAPEL

dividendos. A Alemanha é pioneira nessaárea, com um decreto, em 1991, exigindo queembaladores e distribuidores recebessem devolta e reutilizassem, ou reciclassem,materiais de embalagem, inclusive papel. Nostrês anos seguintes, a reciclagem de papeldescartado na Alemanha subiu para 54%,após ficar estagnada em 45% por quase 20anos. Em 2003, o Parlamento da UniãoEuropéia adotou uma lei exigindo que osgovernos membros estabelecessem metas de60% para reciclagem do papel até 2008.8

O papel também está voltando, emescala limitada, a suas origens não-madeireiras. Várias fibras alternativas estãoagora no mercado – desde o cânhamo,sempre presente, ao kenaf (um membrofolhudo da família dos hibiscos), resíduos

agrícolas (palhas de cereais, fibras dealgodão, cascas de bananas, cascos decoco e outros), e mesmo retalhos de jeans.Muitas agrofibras rendem mais polpa porhectare do que florestas ou plantaçõesarbóreas e necessitam menos de pesticidase herbicidas. Menos produtos químicos,tempo e energia são necessários para fazera polpa de fibras agrícolas porque contêmmenos lignina, uma substância semelhanteà goma que ajuda plantas e árvores amanterem-se eretas. No futuro, algumasdessas fontes não-madeireiras poderãooutra vez tornar-se matérias-primassignificativas de papel.

— Dave Tilford,Center for a New American Dream

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Estado do Mundo 2004

ARTICULANDO GLOBALIZAÇÃO, CONSUMO E GOVERNANÇA

C A P Í T U L O 7

Articulando Globalização,Consumo e Governança

Lisa Mastny

Em maio de 2003, uma delegação de líderesindígenas da Amazônia Equatoriana e Perua-na visitou Washington, DC, para expor o pe-sado ônus ambiental e social da extração depetróleo por corporações americanas em suasterras. Em seguida às reuniões em Washing-ton, a delegação seguiu para Houston, Texas,para encontros com a Burlington Resources,uma empresa que possui duas concessõesde petróleo numa área de 400.000 hectaresdentro de seu território ancestral.1

Em nome dos 100.000 Shuar, Achuare Quichua que vivem em aproximadamente1,6 milhão de hectares de florestas tropi-cais virgens, a delegação entregou umacarta ao diretor-presidente da BurlingtonResources, exigindo que a empresa ces-sasse todas as atividades na área e deixas-se o território imediatamente. Citando acontaminação tóxica e destruição flores-tal deixadas pelas operações petrolíferasanteriores em outros locais na Amazônia,o presidente da Federação Independentedos Povos Shuar declarou enfaticamenteque “os povos Shuar e Achuar da Amazô-

nia Equatoriana declaram que a posição denossas comunidades é não para a explo-ração do petróleo, não para diálogo e ne-gociações, não para desmatamento, nãopara contaminação e não para todas ativi-dades ligadas ao petróleo”.2

Esses líderes indígenas trazem vividamenteà tona o dano enorme e, quase sempre, ocul-to que o consumo dos países mais ricos domundo pode causar a povos e lugares distan-tes. A visita dessa delegação colocou uma facehumana na tendência da economia globalmoderna de isolar os consumidores dos vári-os impactos negativos de suas compras aodistanciar as diferentes fases do ciclo de vidade um produto – da extração da matéria-prima ao processamento, uso e disposiçãofinal. Quando as vendas de veículos utilitá-rios esportivos dispararam nos EstadosUnidos durante a última década, por exem-plo, será que alguns de seus novos propri-etários pararam para pensar na ligação en-tre sua aquisição e o destino de povos indí-genas cujas vidas e meios de vida foramvilipendiadas na ânsia pelo petróleo?3

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ARTICULANDO GLOBALIZAÇÃO, CONSUMO E GOVERNANÇA

Embora a visita da delegação da Ama-zônia tenha sido, de certa forma, um aler-ta, também oferece alguma esperança, poisdemonstrou como os desafios ambientaise sociais que acompanham a globalizaçãoeconômica estão incentivando formas ino-vadoras de mobilização política através defronteiras internacionais. A fim de mudar-mos para padrões de produção e consumoambientalmente sustentáveis mundialmen-te, precisaremos fortalecer essas aliançasem busca de novas regras básicas, neces-sárias para forjar uma economia global fun-damentada na proteção e não na pilhagemdas riquezas naturais do planeta.

A Disseminação do“McMundo”

Em seu livro Jihad vs. McWorld, publi-cado em 1995, Benjamin Barber foi in-crivelmente profético ao descrever nos-so mundo complicado, em que dois ce-nários aparentemente contraditórios de-senrolam-se simultaneamente: um “ondecultura é lançada contra cultura, pessoascontra pessoas, tribos contra tribos” eoutro, onde “o ímpeto de forças econô-micas, tecnológicas e ecológicas... exi-gem integração e uniformidade e... hip-notizam as pessoas em todo o planeta como universo fast de música, computador,comida..., um McMundo unido pela co-municação, informação, entretenimento ecomércio”.4

A difusão global do “McMundo” estálevando rapidamente a sociedade ociden-tal de consumo ao resto do planeta. Logoapós a queda do Muro de Berlim, em 1989,outdoors de cigarros e bebidas ocidentais

começaram a aparecer por toda a EuropaOriental e antiga União Soviética, às ve-zes nas mesmas praças onde antes esta-vam os bustos dos líderes comunistas. Evisitantes a alguns dos pontos mais remo-tos do mundo em desenvolvimentofreqüentemente deparam-se com quios-ques da Coca-Cola no fim da estrada. Aprópria McDonald’s hoje opera 30.000restaurantes em 119 países, enquanto aempresa alemã Siemens está representadaem 190 países, onde vende telefones ce-lulares, computadores, medicamentos,artigos de iluminação e sistemas de trans-portes. (Vide Tabela 7-1.)5

A rápida globalização da economia deconsumo ao longo dos anos 90 esteveintimamente ligada à expansão geral daeconomia, provocando o crescimentoacelerado na movimentação de bens, ser-viços e dinheiro através de fronteiras in-ternacionais. O valor do comércio mun-dial de bens aumentou quase 50% du-rante a década, saltando de US$ 4,22trilhões para US$ 6,25 trilhões. Expor-tações de serviços comerciais bancári-os, de consultoria e turismo ampliaram-se ainda mais rapidamente. (Vide Figura7-1.) Investimentos estrangeiros diretos(IED) também aumentaram dramatica-mente, atingindo um pico de US$ 1,4trilhão em 2000. A explosão de IED foidisparada, em parte, por um frenesi defusões corporativas, embora essa ten-dência tenha revertido-se dramaticamen-te nos últimos anos, em resposta àdesaceleração econômica global e enfra-quecimento geral da confiança empre-sarial após os ataques terroristas aosEstados Unidos, em setembro de 2001.

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ARTICULANDO GLOBALIZAÇÃO, CONSUMO E GOVERNANÇA

Tabela 7-1. A Disseminação do “McMundo”

FONTE: vide nota final 5.

Corporação

Hennes & Mauritz

Levi Strauss

Tata Group

Altria Group, Inc.

Siemens

Yum! Brands

McDonald’s Corp.

Domino’s Pizza

Coca-Cola

Presença Global

Empresa sueca de confecções que emprega 39.000 pessoas em 17 países europeus eEstados Unidos. Opera 893 estabelecimentos e pretende inaugurar mais 110, expandindo-se para o Canadá em 2003. O faturamento em 2002 foi de US$ 6,8 bilhões. H&M temfornecedores na Europa e Ásia.

Empresa americana que vende confecções em mais de 100 países, com marca registradaem 160 nações. Emprega 12.400 pessoas mundialmente. Divulgou vendas totais deUS$ 4,1 bilhões em 2002 e uma receita líquida de US$ 151 milhões em 2001.

O Tata Group opera em sete setores industriais, incluindo transportes, energia, produtosquímicos e serviços de comunicação. Desenvolvida na Índia, hoje tem parcerias em 11países em todo o mundo. Divulgou um faturamento de US$ 2,9 bilhões em 2001– 2002,mais que o dobro do ano anterior.

O Altria Group é a empresa controladora de Kraft Foods, segunda maior empresa dealimentos do mundo, e da Philip Morris, a mais lucrativa empresa internacional decigarros. O Altria Group teve uma receita líquida de US$ 80,4 bilhões em 2002,incluindo US$ 28,7 bilhões do mercado internacional de tabaco. Emprega 169.000pessoas em 150 países.

Essa empresa alemã emprega 426.000 pessoas e está representada em 190 países. Vendetelefones celulares, computadores, medicamentos, artigos de iluminação e sistemas detransporte. Em 2002, o faturamento líquido da Siemens somou US$ 96,4 bilhões, 79%dos quais internacionalmente. Um milhão de pessoas possuem ações da empresa.

Anteriormente parte da PepsiCo, essa empresa e suas seis subsidiárias – KFC, Pizza Hut,Taco Bell, A&W, All-American Food Restaurants e Long John Silvers – registraram umfaturamento global superior a US$ 24 bilhões em 2002. Opera 32.500 restaurantes emmais de 100 países e empregou 840.000 pessoas em 2002. Yum! Brands inaugurou 1.000restaurantes fora dos Estados Unidos em 2001, quase 3 por dia. A China hoje tem 800KFCs e 100 Pizza Huts.

McDonald’s serve 46 milhões de fregueses diariamente. Opera 30.000 restaurantes em119 países. Sua receita total em 2002 foi US$ 15,4 bilhões. No dia da inauguração nacidade de Kuwait, a fila do drive-thru tinha 10 quilômetros de extensão.

Domino’s inaugurou seu 7.000o estabelecimento em 2001 e opera em 60 países. As vendasem todos os países totalizaram US$ 4 bilhões em 2002. Seu serviço de entrega emdomicílio percorre mais de 14 milhões de quilômetros só nos Estados Unidos. Utiliza 67,7milhões de quilos de queijo anualmente e 12,1 milhões de quilos de pepperoni.

Coca-Cola vende mais de 300 marcas de refrigerantes em mais de 200 países. Mais de 70%da sua receita vem de fora dos Estados Unidos e, em 2002, sua receita líquida atingiuUS$ 19,6 bilhões. Coca-Cola emprega 60.000 pessoas só na África.

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ARTICULANDO GLOBALIZAÇÃO, CONSUMO E GOVERNANÇA

O crescimento do comércio e investimen-tos globais das últimas décadas contribu-íram para baixar os custos de muitos bensde consumo, como vestuário, computa-dores e brinquedos – um fenômeno queestá sendo saudado por economistas tra-dicionais e condenado por críticos da far-ra do consumo global. (Vide Capítulo 5.)6

cativo. Igualmente, o valor das exportaçõesmundiais de peixe quase triplicou entre 1976e 2001, atingindo US$ 56 bilhões em 2001.Ao mesmo tempo, o mundo testemunhouuma deterioração da saúde dos pesqueirosmundiais, com a Organização das NaçõesUnidas para Alimentos e Agricultura esti-mando que 75% dos estoques mundiais já

foram explorados além de seus li-mites sustentáveis.7

Num tipo um pouco diferentede troca global, países cujas pe-gadas ecológicas superam sua ca-pacidade ecológica disponívelfreqüentemente importam bens depaíses com superávit, levando adéficits comerciais ecológicos.(Vide Capítulo 1 para uma análisedo sistema de contabilidade da pe-gada ecológica, que mede a áreade terra produtiva que uma eco-nomia requer para produzir os re-cursos de que necessita e assimi-lar seus resíduos.) As nações va-riam muito no volume desses

déficits; países tão diversificados comoJapão, Holanda, Emirados Árabes Unidose os Estados Unidos são, todos, grandesimportadores de capital ecológico. (VideFigura 7-3.) Embora haja momentos emque esse tipo de transferência global fazsentido ecológico e econômico, ele efeti-vamente capacita os países a viverem alémde seus meios ecológicos.8

A crescente globalização da economiamundial também serve para proteger con-sumidores e produtores do lixo geradopela fabricação, uso e descarte final dainfinidade de bens e bugigangas quecaracterizam a economia do consumo.

Figura 7-1. Exportações Mundiais de Bense Serviços, 1950–2002

Um subcomponente da expansão geralmais ampla do comércio mundial foi o cres-cimento acelerado do comércio numa sé-rie de commodities ambientalmente sensí-veis, como minerais, produtos florestais,peixes e produtos agrícolas. (Vide Figura7-2.). O valor do comércio mundial de pro-dutos florestais, por exemplo, quadrupli-cou entre 1961 e 2001, atingindo um picode US$ 148 bilhões em 2000, antes de cairpara US$ 132 bilhões em 2001. Ao mesmotempo, a cobertura florestal global vemcaindo consistentemente. O comércio, deforma alguma, é o único fator responsá-vel, porém desempenhou um papel signifi-

Trilhões de Dólares

(base=2001)

Bens e Serviços

Bens

Fonte: FMI

9

8

7

6

5

4

3

2

1

01950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

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ARTICULANDO GLOBALIZAÇÃO, CONSUMO E GOVERNANÇA

Figura 7-2. Exportações Mundiais de Commodities Selecionadas,1961–2001

Figura 7-3. Pegada Ecológica por Pessoaem Nações Selecionadas, 1999

60

50

40

30

20

10

01960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005

Açúcar e Adoçantes

Soja

Carne

ArrozLegumes eVerduras

Milhões de Toneladas

Fonte: FAO

Hectares

Fonte: Redefining Progress

Capacidade Disponível Pegada Ecológica

25

20

15

10

5

0

Índi

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QUADRO 7-1. O COMÉRCIO JUSTO E O CONSUMIDOR

Como o poeta e fazendeiro Wendell Berryobservou recentemente: “Um dos resultadosprincipais – e uma das necessidades principais– do industrialismo é a separação das pessoas,locais e produtos de suas histórias”.Praticamente cada minuto na vida doconsumidor moderno contém, ocultas,interações com pessoas e porções do planetacentenas de milhares de quilômetros dedistância. A rede do comércio global permiteque consumidores, em grande parte, abdiquemda dependência do seu ambiente imediato. Aconseqüência infeliz é o isolamento dosconsumidores dos efeitos profundos que suasescolham poderão ter nas vidas das pessoasdo outro lado da linha da produção e consumo.

Enquanto os benefícios do comércio livrefluem para consumidores e intermediários, oônus flui rotineiramente para o outro lado –ospontos finais ao longo das linhas do comércio.Extraímos recursos e despejamos lixo em áreasocupadas pelos pobres e sub-representados.Embora haja sempre alguém na outraextremidade da linha para aceitar o trabalhosujo de limpar o que é deixado pelosconsumidores do mundo industrializado,aqueles freqüentemente prejudicados nãoestão entre os indenizados, ou a indenização éofuscada pelo dano aos recursos locais vitais.

O problema crescente do lixo eletrônico é umexemplo gritante. Os consumidores têm poucosmotivos para se deterem com o que se escondedentro de um computador ou telefone celularou sobre que fim levou um item eletrônicodescartado por um modelo mais novo. Para vero que acontece, teriam que viajar a locais comoa região Guiyu da Província Guangdong, naChina. Centenas de caminhões rodam por ládiariamente, carregando computadores,impressoras e televisores usados da América doNorte para lixões espalhados entre os pequenosvilarejos da região. Por um dólar ou dois ao dia,

trabalhadores migrantes desprotegidos mexemmontanhas de lixo eletrônico – queimandoplásticos, quebrando tubos de raios catódicos edespejando ácido sobre placas de circuitos paraextrair metais preciosos e outros materiaisvaliosos. A fumaça cancerígena permeia o ar emtorno dos lixões. Os mananciais da região jáficaram tão poluídos que a água potável precisaser trazida por caminhões-pipa, de 30quilômetros de distância.

Os desejos dos consumidores e o bem-estardaqueles presos ao processo de atender aesses anseios podem entrelaçar-se de formascomplexas. A população local pode dependerfinanceiramente das indústrias que produzemos bens, mesmo sofrendo os efeitos nocivoscausados por elas. O mal é visto como umefeito colateral infeliz, mas inevitável. Porém,o dano aos recursos locais e as condiçõesadversas sob as quais as pessoas labutam sãotipicamente subprodutos dos esforços demanter preços baixos para o consumidor final.Para citar um exemplo, a indústria de bananado Panamá emprega 70% da população. A fimde incrementar a produção, as bananas sãocultivadas em gigantescas monoculturas,altamente dosadas com pesticidas aplicadosdiretamente por trabalhadores sem proteção,ou através da pulverização aéreaindiscriminada. Os produtos químicos poluemos mananciais e têm sido associados à maiorincidência de câncer nas comunidadespróximas às plantações. Em suma, o bem-estardos trabalhadores e comunidades é deixado defora do preço final.

Melhores práticas dependem de osconsumidores conhecerem os problemas eapoiarem sistemas melhores. Na indústria dabanana, grupos ativistas começaram a chamaratenção para o sofrimento dos trabalhadores,levando algumas empresas a mudarem suaspráticas. Dole, por exemplo, está

A conseqüente mentalidade do “longe dosolhos, longe do coração” tem o efeito depassar adiante esses ônus para outros,

desencorajando o esforço de lidar comesses padrões de consumo nas suas pró-prias raízes (Vide Quadro 7-1.)

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incrementando seus esforços para cultivarbananas orgânicas sem pesticidas. E asplantações latino-americanas da Chiquita sãohoje 100% certificadas pelo Projeto MelhoresBananas, da Rainforest Alliance, queinspeciona plantações com o fim de verificar aaplicação de práticas sustentáveis, mais sadiaspara os consumidores e para o meio ambiente,como também benéficas para os trabalhadores.

O “comércio justo” está surgindo em relação aalgumas commodities como um instrumento queproporciona aos agricultores e produtoresindependentes maior controle sobre a venda deseus produtos e uma ligação mais íntima comconsumidores finais. Sob o sistema de comérciojusto, pequenos produtores reúnem-se e formamcooperativas, vendendo diretamente a varejistas aum preço mínimo garantido. Atualmente, o café éo exemplo mais evidente. Nos últimos anos, ospreços pagos aos agricultores despencaram aosníveis mais baixos da história, enquanto os lucrosdos grandes varejistas mantinham-se substanciais.Na América Central, mais de meio milhão detrabalhadores perderam seus empregos. Vilarejosoutrora prósperos transformaram-se em cidadesfantasmas, com seus antigos habitantes vivendoamontoados em perigosas favelas nas periferiasdos centros urbanos.

Através do comércio justo, muitosprodutores podem manter-se. Membros daCooperativa Oromiya, na Etiópia, obtêm maisque o dobro do que seus vizinhos recebemvendendo café no mercado livre. O comérciojusto também traz benefícios ambientais.

Produtores com mercados mais estáveisganham condições para adotar uma visão maisde longo prazo. Os membros da CooperativaMiraflor, na Nicarágua – como muitascooperativas de café de comércio justo –,cultivam café orgânico à sombra em áreasoutrora submetidas a altas doses de pesticidas.Embora sua participação no mercado ainda sejapequena, as vendas de café de comércio justocresceram 12% em 2001 em comparação com oaumento do consumo de café, de apenas 1,5%.

Os consumidores têm o poder de tornar osistema global de comércio mais justo esustentável. A indignação às condições injustase a demanda de mercado por produtos maissocialmente responsáveis poderão ajudar amudar a forma como as empresas fazemnegócio e criar um ambiente melhor paraaqueles nas pontas da produção e consumo.Quando os efeitos do consumo estão ocultos,os custos sociais e ambientais tendem a serdeixados de fora da contabilidade e reformassão mais difíceis de se realizar. Uma maiorconscientização por parte dos consumidores euma disposição de agir em função dessaconscientização, entretanto, poderão religar ositens de consumo a suas histórias econtrabalançar o prejuízo que freqüentementeacompanha o consumo inconsciente.

– Dave Tilford,Center for a New American Dream

___________________________________________FONTE: vide nota final 9.

QUADRO 7-1. (continuação)

A atenção do mundo despertou original-mente para o problema da exportação de lixode forma significativa em meados dos anos80, quando uma série de incidentes ampla-mente divulgados pela mídia – como oitinerante “batelão de lixo” da Filadélfia, umnavio carregado com cinza tóxica que foiproibido de descarregar em três estados e

cinco países num período de 16 meses –colocou em destaque o crescente comér-cio internacional de resíduos nocivos e só-lidos. Mais recentemente, a profusão de lixoeletrônico criada pela era da informáticalevou a um próspero comércio internacio-nal de produtos descartáveis, como com-putadores, televisores, telefones, etc.9

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Com mercados de bens de consumo jáse tornando saturados nos países industri-alizados, as estratégias corporativas cadavez mais se voltam para visões de cresci-mento acelerado nos países em desenvol-vimento, levando a aumentos na comprade qualquer tipo de mercadoria, desde car-ros e televisores até papel e fast food. Essatendência está particularmente mais pro-nunciada na região da Ásia e do Pacífi-co, que abriga hoje cerca de 684 milhõesde membros da classe global de consumi-dores – mais que na Europa Ocidental eAmérica do Norte juntas. (Vide Capítulo 1.)Embora seja eticamente problemático su-gerir que os países em desenvolvimento nãotêm direito às mesmas opções de consumode materiais que há muito vêm sendo con-sideradas como naturais pelos consumido-res ocidentais, a adoção global do padrãode consumo dos países industrializadoscriaria pressões insuportáveis sobre a saú-de dos sistemas naturais da Terra.10

Face a esse enigma, alguns analistas domundo em desenvolvimento passaram aenfatizar mais as oportunidades do que osproblemas que aguardam os países em tran-sição para economias ambientalmente sus-tentáveis. O Conselho de Cooperação Inter-nacional da China sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento, por exemplo, observounuma declaração recente que “o padrão deconsumo per capita extremamente baixo daChina é uma oportunidade para que se evi-tem os erros de muitos outros países, quedesenvolveram níveis muito altos de consu-mo de energia e materiais. O redirecio-namento para padrões mais sustentáveis deconsumo poderá resultar em empreendimen-tos domésticos mais competitivos e maioracesso aos mercados internacionais”. O de-

safio é desenvolver estratégias que permi-tam um pulo direto para uma economia naqual produtores utilizem tecnologias verdesde ponta de forma generalizada e consumi-dores adotem aquisições sustentáveis comorotina. (Vide Capítulos 5 e 6.)11

Mais de dois anos depois dos ataquesterroristas em Nova Iorque e Washing-ton, que colocou o Jihad e o McMundoem rota de direta de colisão, está se tor-nando cada vez mais claro que nenhumdos dois cenários trará um futuro estávele seguro. Logo antes do primeiro aniver-sário do 11 de setembro, dezenas de mi-lhares de pessoas em todo o mundo reu-niram-se em Joanesburgo, África do Sul,para a Cúpula Mundial sobre Desenvol-vimento Sustentável. Os participantes daconferência rejeitaram implicitamenteambos, Jihad e McMundo, enquantoabraçaram a causa da construção de umasociedade ambientalmente segura e soci-almente justa. Os proponentes do desen-volvimento sustentável, em todo o mun-do, enfrentam hoje o desafio de mantertanto a atenção pública quanto a vonta-de política focadas na necessidade ur-gente de dar vida aos muitos acordosinternacionais importantes forjados emJoanesburgo, inclusive os compromissospara a transformação dos padrões insus-tentáveis de produção e consumo.

Cooperação Global para oConsumo Sustentável

A atenção internacional concentrou-se pri-meiramente nas questões de produção econsumo uma década antes da conferên-cia de Joanesburgo, quando as Nações

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ARTICULANDO GLOBALIZAÇÃO, CONSUMO E GOVERNANÇA

Unidas realizaram a Cúpula da Terra no Riode Janeiro, em 1992. Nessa reunião histó-rica, os governos reconheceram oficial-mente que padrões subjacentes de produ-ção e consumo são importantes forçasmotrizes do desenvolvimento insustentávele enfatizaram a responsabilidade das naçõespela reversão dessa situação. Desde então,questões de produção e consumo vêm sen-do tratadas como faces de uma mesmamoeda no mundo da política internacional.Essa fusão reflete os laços inextricáveisentre dois fenômenos: é impossível utilizarprodutos sustentáveis sem que sejam pro-duzidos. Mas a relação também reflete arealidade de a maioria dos governos consi-derarem mais politicamente palatável dis-cutir o lado “produção” da equação do quequestões polêmicas de estilo de vida.12

A Agenda 21, o extenso plano de açãopara desenvolvimento sustentável que sur-giu da conferência do Rio, acentuou adisparidade entre as “demandas excessivase estilos de vida insustentáveis entre os seg-mentos mais ricos” e a incapacidade depobres atenderem suas necessidades bási-cas de alimentação, boa saúde, abrigo eeducação. Também exigiu que instituiçõesinternacionais e governos nacionais empre-endessem um número de iniciativas parareverter padrões de produção e consumoinsustentáveis, como a promoção de maioreficiência energética e de recursos,minimização da geração de lixo,encorajamento de decisões sensatas deaquisição tanto por indivíduos quanto go-vernos e mudanças em direção a sistemasde preços que incorporem custosambientais ocultos. Esses compromissosganharam destaque especial em função dos

repetidos pronunciamentos das autoridadesnorte-americanas de que o estilo de vidaamericano não era negociável no Rio.13

A responsabilidade de supervisionar oacompanhamento recaiu sobre a Comissãodas Nações Unidas sobre Desenvolvimen-to Sustentável (CDS), um órgão intergo-vernamental que se reúne anualmente paraconferir os esforços de implementação dosacordos gerados no Rio. A CDS tem sidoum fórum útil para várias discussões so-bre questões de produção e consumo entreobservadores governamentais e não-gover-namentais ao longo da última década. Po-rém, apesar de toda falação, as delibera-ções produziram muito pouco em termosde ações concretas.14

Uma exceção foi o esforço bem-sucedi-do de revisão das Diretrizes das NaçõesUnidas para Proteção ao Consumidor. Es-sas diretrizes não são obrigatórias, mas mes-mo assim proporcionam um instrumentopara os governos utilizarem no desenvolvi-mento de suas próprias políticas. As diretri-zes revistas, adotadas em 1998, encorajamgovernos a implementarem uma variedadede inovações de políticas para promover oconsumo sustentável, inclusive a realizaçãode testes ambientais imparciais de produtos,fortalecendo mecanismos normativos paraproteção dos consumidores e incorporandopráticas sustentáveis nas operações gover-namentais. Infelizmente, uma pesquisa rea-lizada em 2002 pelo Programa das NaçõesUnidas para o Meio Ambiente (PNUMA) eConsumers International concluiu que ospaíses estavam avançando muito lentamen-te na implementação das diretrizes, com 38%dos que responderam revelando que nem ti-nham conhecimento destas.15

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Várias outras organizações internaci-onais estiveram ativas nas questões deprodução e consumo durante a décadaapós a Cúpula da Terra. A Organizaçãopara Cooperação e DesenvolvimentoEconômico, com sede em Paris, umfórum de políticas econômicas e soci-ais para os principais países industriali-zados do mundo, patrocinou uma sériede reuniões e pesquisas visando enco-rajar governos a implementarem políti-cas inovadoras sobre produção e consu-mo sustentáveis, incluindo sistemas deecorrotulagem que ajudem os consumido-res a selecionar produtos ambientalmenteseguros, legislação de “devolução”, queobriga os fabricantes a recolher as emba-lagens e produtos descartados, reduçõesnos subsídios governamentais a indústriasambientalmente danosas e impostosambientais para internalizar os custosambientais nos preços dos produtos.(Vide Capítulo 5.)16

O PNUMA é outro ator ativo nos esfor-ços para promover consumo sustentável emescala global. Esse programa das NaçõesUnidas, sediado em Nairobi, lançou uma Ini-ciativa de Ciclo de Vida em 2002, reunindolíderes industriais, acadêmicos e legisladores,para encorajar o desenvolvimento e dissemi-nação de instrumentos práticos para avalia-ção dos impactos ambientais dos produtosao longo de suas vidas. O PNUMA tambémcoopera com outras agências das NaçõesUnidas e Banco Mundial para incentivar a co-laboração no esverdeamento de procedimen-tos licitatórios nessas instituições. Trabalhacom indústrias de porte na busca de um con-sumo sustentável, inclusive nos setores depublicidade, moda, finanças e varejo, paraencorajá-los a adotar medidas que promovama produção e consumo sustentáveis. E pro-cura engajar organizações não-governamen-tais (ONGs) na mudança para o consumosustentável, inclusive grupos de consumido-res e de jovens.(Vide Quadro 7-2.)17

QUADRO 7-2. UTILIZANDO O PODER DOS JOVENS PARA MUDAR O MUNDO

Há mais de 1 bilhão de jovens entre as idades de15 e 24, de acordo com o Fundo de Populaçãodas Nações Unidas, e mais de 500 milhões dejovens entrarão na força de trabalho nos paísesem desenvolvimento ao longo da próximadécada. Esses números sinalizam a imensainfluência em potencial que os jovens podem terna determinação de um futuro melhor, comoresultado de suas escolhas de estilo de vida econtribuições profissionais. Porém, os poderesde compra e tomada de decisão de 1 bilhão dejovens hoje estão longe de uma homogeneidade.Metade deles vive na pobreza. Na outra pontado espectro, jovens em sociedades afluentesrepresentam uma parcela crescente do consumototal, e estão sob pressão constante para

comprar mais. Com a globalização do cinema,televisão e publicidade, há o perigo de que atendência dessa mídia de glorificar estilos jovense materialistas de vida nos países mais afluentesdo mundo possa ter um impacto negativo nasatitudes e padrões de consumo de outros jovens.

Em resposta a essas tendências, o Programadas Nações Unidas para o Meio Ambiente eUNESCO realizaram uma pesquisa em 2000 –chamada “Será que o Futuro é Seu?” – sobreatitudes de consumo entre jovens de 18 a 25anos. Mais de 8.000 pessoas em 24 paísesresponderam à pesquisa, fornecendoinformações importantes sobre as aspirações einteresses da juventude, sua conscientizaçãosobre o consumo ambientalmente e eticamente

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responsável e sua visão quanto a seu papel namelhoria do mundo para o futuro. A pesquisaconstatou que os jovens têm conhecimento doimpacto de seu uso e descarte de produtos, mastêm menos consciência do impacto de seushábitos de compra, particularmente alimentos evestuário. Comprovou também que os jovensconsideram as questões ambientais, de direitoshumanos e saúde como de grande importânciapara o futuro, mas, para lidar com elas,priorizam a ação individual sobre a coletiva.

Embora a pesquisa tenha verificado que osjovens geralmente não relacionam seucomportamento pessoal aos problemasglobais, há, não obstante, muitos exemplos dejovens ativistas empenhados em pressionarsuas comunidades e governos a promoveremconsumo sustentável. Por exemplo, umativista peruano de 23 anos recrutou a Shellpara um projeto de instalação de painéissolares num vilarejo remoto nas montanhas;

um jovem nos Camarões viaja de vilarejo avilarejo ensinando outros jovens como utilizara água com maior segurança e eficiência; jovens“comissários de supermercados” na Suéciainiciaram um diálogo com supermercados paraassegurar que produtos sustentáveis sejamfacilmente disponibilizados aos consumidorese, nos Estados Unidos, jovens desenvolveramum guia de presentes com sugestões de artigosde comércio justo e ambientalmente amigáveis.Em resposta aos resultados da pesquisa e deum workshop subseqüente realizado paradiscuti-los, PNUMA e UNESCO lançaram oProjeto YouthXchange, para desenvolverinstrumentos que ajudem os jovens a agir napromoção do consumo sustentável.

– Isabella Marras, Programa das NaçõesUnidas para o Meio Ambiente

____________________________________________FONTE: vide nota final 17.

QUADRO 7-2. (continuação)

Os anos 90 também viram governosavançarem em direção ao fortalecimentode vários tratados internacionais sobreameaças ao meio ambiente global. Estessão mais obrigatórios do que as ativida-des cooperativas descritas acima e, assim,formam um componente-chave para es-forços mais amplos de mudança dos pa-drões insustentáveis de produção e con-sumo. Por exemplo, as nações participan-tes do acordo de 1995 sobre a gestão co-operativa de pesqueiros internacionaiscomprometeram-se a desenvolver políti-cas nacionais para restauração dos esto-ques de peixe a níveis sadios, encorajan-do dessa forma a pesca e consumo sus-tentáveis. Governos que assinaram o Pro-tocolo de Cartagena sobre Biossegurançana Convenção das Nações Unidas sobre

Biodiversidade Biológica, em 2000, con-cordaram em obedecer a um sistema deconsentimento prévio informado paratransportes internacionais de organismosgeneticamente modificados e produtos queos contenham, dando aos países importa-dores maior controle quanto à utilizaçãodoméstica desses produtos. Os países sig-natários da Convenção de Estocolmo so-bre Poluentes Orgânicos Persistentes(POPs) obrigaram-se a regulamentar aprodução e uso de 12 produtos químicosparticularmente danosos, inclusive a eli-minação completa de 9 deles. E países queconcordaram com as metas de emissõesde dióxido de carbono, nos termos do Pro-tocolo de Kyoto de 1997, na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudan-ça Climática, deverão mudar para energia

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menos intensiva em combustíveis fósseis,a fim de atendê-las.18

O número de países que já ratificaramformalmente tanto a convenção sobre pei-xes quanto a de biossegurança é suficientepara pôr esses tratados em vigor, tornandosuas disposições obrigatórias para as na-ções signatárias. Este ainda não é o casoda Convenção sobre os POPs ou o Proto-colo de Kyoto, embora muitos países sig-natários já estejam ajustando suas políticasnacionais aos termos desses acordos.19

Além das iniciativas das instituições in-ternacionais e governos, a década, desde aconferência do Rio, também testemunhouo desenvolvimento de novos instrumentosde informação, como sistemas internacio-nais de rotulagem e certificação, em res-posta ao aumento da sensibilidade dos con-sumidores aos laços que os unem atravésda cadeia produtiva global a povos e co-munidades em terras distantes. Um exem-plo é a crescente popularidade de café, ba-nana e outros produtos agrícolas que aten-dem aos critérios de rotulagem orgânica oude comércio justo, ou ambos. (Vide Capí-tulo 4.) Outro exemplo é o impacto doForest Stewardship Council (FSC) – Con-selho de Manejo Florestal –, uma entidadeindependente, formada em 1993 para esta-belecer normas para produção florestal sus-tentável, através de um processo coopera-tivo envolvendo madeireiras e varejistas,como também organizações ambientais emoradores de florestas. Uma década de-pois, o FSC já havia certificado mais de 39milhões de hectares de florestas comerci-ais em 58 países, mais de seis vezes a áreade 1998, embora ainda apenas 1% das flo-restas mundiais.20

Um Marine Stewardship Council (MSC),Conselho de Manejo Marinho, modelado noFSC, foi criado poucos anos depois. Atéhoje, sete pesqueiros foram certificadoscomo estando em conformidade com asnormas do MSC em termos de manejo esustentabilidade, inclusive o pesqueiro desalmão, do Alasca, o pesqueiro de hoki, daNova Zelândia, e o pesqueiro de lagostas-das-rochas, da Austrália Ocidental; muitosmais estão sob avaliação. Cerca de 170 fru-tos do mar, certificados pelo MSC, estãopostos à venda em 14 países. Mas, da mes-ma forma que produtos florestais, estes aindarepresentam apenas uma pequena fração daprodução total. Fazer pender a balança paraque produtos sustentáveis sejam a regra enão a exceção exigirá novos regulamentos eincentivos para realizar uma transformaçãomais ampla no mercado global. (Vide Capí-tulos 5 e 6.)21

Para esse fim, desenvolveram-se váriasiniciativas importantes para encorajarcorporações globais a adotar técnicas deprodução mais sustentáveis durante a últi-ma década. Em 2000, as Nações Unidas lan-çaram o Global Compact, exigindo que asempresas participantes incorporem novevalores essenciais relacionados a direitoshumanos, normas de trabalho e proteçãoambiental às suas operações. Mais de 1.200empresas em mais de 50 países já aderiram,embora críticos acusem o programa de exi-gir pouco em termos de ações específicas efalhar ao não proporcionar uma monitoraçãoeficaz das implementações ou cumprimen-to. Mais recentemente, 17 grandes bancosem 10 países adotaram os Princípios doEquador para gestão de riscos ambientais esociais nas operações de empréstimo. Os

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bancos participantes concordaram em exi-gir dos clientes de grandes projetos, comobarragens e usinas elétricas, aderência àsnormas ambientais e sociais do Banco Mun-dial, que estão rapidamente transformando-se em fundamentos internacionais básicospara investimentos públicos e privados.22

Apesar desses avanços, a dura realida-de é que, desde 1992, os ganhos limita-dos conquistados na mudança em direçãoa padrões mais sustentáveis de produçãoe consumo têm sido, em grande parte,superados pelo crescimento global contí-nuo da sociedade de consumo. Delegadospassaram muitas horas durante a CúpulaMundial em Joanesburgo debatendo so-bre o que fazer para reverter essa situa-ção. O poder de interesses particulares ea inércia institucional traduziram-se em

relutância por parte de muitos governosem se comprometerem a um efetivo pro-grama de ação claro nesse sentido. Nãoobstante, o Plano de Ação oficial assinadopelos governos estipula que todos os paí-ses deverão promover padrões de produ-ção e consumo sustentáveis e que gover-nos, organizações internacionais, setorprivado e ONGs, entre outros, deverãodesempenhar papéis importantes para arealização das mudanças necessárias. En-tre outras coisas, o Plano de Ação exigeinvestimentos crescentes em produçãomais limpa e ecoeficiência, aumento daresponsabilidade ambiental e social-corporativa e promoção da internalizaçãodos custos ambientais e de políticas deaquisições públicas ambientalmente segu-ras. (Vide Quadro 7-3.)23

QUADRO 7-3. DESTAQUES DO PLANO DE AÇÃO DE JOANESBURGO

O Plano de Ação de Joanesburgo é um dosdois documentos negociados na CúpulaMundial sobre Desenvolvimento Sustentável.Encoraja países a cumprirem oscompromissos assumidos na Cúpula da Terra,realizada em 1992 no Rio de Janeiro, atravésda participação numa estrutura decenal deprogramas sobre produção e consumosustentáveis. As expectativas e metas geraisdessa estrutura incluem:

• Fazer com que países industrializadosassumam a liderança na promoção daprodução e consumo sustentáveis.

• Através de responsabilidades comuns,porém diferenciadas, assegurar que todosos países beneficiem-se do processo demudança em direção à produção econsumo sustentáveis.

• Fazer da produção e consumosustentáveis questões entrelaçadas e

incluí-las nas políticas de desenvolvimentosustentável.

• Focar a juventude, especialmente nospaíses industrializados. Utilizarinstrumentos de informação aoconsumidor e campanhas publicitáriaspara comunicar aos jovens questões deprodução e consumo sustentáveis.

• Promover implementação do princípio do“produtor paga”, que internaliza custosambientais e incorpora o ônus financeiroda poluição ao preço de um produto.

• Incorporar análise de ciclo de vida àspolíticas, a fim de rastrear um produtodesde sua produção até o consumo edisposição final. Utilizar essa abordagempara aumentar a eficiência do produto.

• Apoiar políticas de licitações públicas queencorajem o desenvolvimento de bens eserviços ambientalmente seguros.

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O Plano de Ação também endossa odesenvolvimento de um arcabouço decenalde programas em âmbito internacional emapoio a iniciativas regionais e nacionais.Essas iniciativas visam acelerar a mudançaem direção a uma produção e consumosustentáveis, proporcionando inclusive umamelhor variedade de produtos e serviçosaos consumidores, prestando-lhes mais in-formações sobre saúde e segurança de vá-rios produtos e implantando programas decapacitação e transferência de tecnologiapara ajudar a compartilhar esses ganhoscom os países em desenvolvimento. Emjunho de 2003, as Nações Unidas realiza-ram uma reunião de técnicos em Marro-cos para dar início a esse processo, comotambém organizaram reuniões regionaisnesse sentido na Ásia e América Latina.24

Além do processo formal descrito acima,a Cúpula Mundial também gerou mais de 230acordos de parceria, nos quais vários inte-ressados comprometeram-se a adotar açõesconjuntas para ajudar a atingir a variedade demetas relacionadas ao desenvolvimento sus-tentável acordadas em Joanesburgo. Váriasdessas parcerias estavam ligadas especifica-mente ao desafio complexo de mudar padrões

insustentáveis de produção e consumo. (VideTabela 7-2.) Por exemplo, um projeto de re-forma de bicicletas, liderado pela ONG ho-landesa Velo Mondial e apoiado pelo fabri-cante de bicicletas Shimano, pretende reco-lher veículos desse tipo para conserto e dis-tribuição na África. Os parceiros da iniciati-va esperam recolher 12.500 bicicletas (umcontêiner) por semana no primeiro ano, au-mentando para embarques diários até 2006,conforme a demanda. E o ProgramaColaborativo de Normas de Rotulagem ede Eletrodomésticos, dos Estados Unidos,uma iniciativa envolvendo mais de 36 go-vernos e também várias organizações in-ternacionais e ONGs, empenhar-se-á emreduzir o consumo residencial e comercialde energia em 5%, através do desenvolvi-mento de normas de eficiência energética,rotulagem e assistência técnica a 35 paísesem desenvolvimento. Muitas dessas par-cerias são muito promissoras, mas seráimportante que ONGs e outros defensoresdo desenvolvimento sustentável monitoremseus esforços de implementação, para quecompromissos louváveis são sejam esque-cidos quando o ímpeto gerado porJoanesburgo começar a esmorecer.25

QUADRO 7-3. (continuação)

• Desenvolver fontes energéticas maislimpas, eficientes e acessíveis, paradiversificar o oferta. Eliminargradativamente subsídios energéticos queinibem o desenvolvimento sustentável.

• Encorajar iniciativas voluntárias daindústria que promovam a responsabilidadeambiental e social corporativa,especialmente entre instituições financeiras.Exemplos incluem códigos de conduta,

certificação com normas de ISO e Diretrizesda Global Reporting Initiative (Iniciativa deRelatórios Globais).

• Recolher exemplos de custo/benefício naprodução mais limpa e promover métodosde produção mais limpa, especialmentenos países em desenvolvimento e entrepequenas e médias empresas.

___________________________________________FONTE: vide nota final 23.

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Tabela 7-2. Parcerias Selecionadas de Produção e Consumo Ligadas à Cúpula Mundialsobre Desenvolvimento Sustentável

União Civil Árabe para Manejo de Resíduos

Líder: Sociedade Assistencial de Mães e Crianças (Bahrein ).Outros: Conselho de Ministros Árabes Responsáveis pelo Meio Ambiente; Sociedade de Proteção Ambientaldo Kuwait; Rede do Golfo para ONGs Ambientais; Grupo Jovem Ajial.

Seis governos árabes estão trabalhando com as Nações Unidas e ONGs locais para criar uma estratégia regionalque facilite o envolvimento da sociedade civil em projetos comunitários de gestão de resíduos sólidos.Envolverão ativamente mulheres e jovens e iniciarão processos relevantes de transferência de tecnologia.

Conscientização e Treinamento em Produção e Consumo Sustentáveis

Líder: Divisão de Tecnologia, Indústria e Economia do PNUMA.Outros: governos da Holanda e Suécia; Consumers International; Centros Nacionais de Produção mais Limpa.

As Nações Unidas estão trabalhando com dois governos e várias ONGs internacionais para aumentar aconscientização sobre produção e consumo sustentáveis entre governos e executivos de pequenas e médiasempresas em 30 países. Os grupos também empenham-se em aumentar a participação de governos de 20 para50%, implementando as Diretrizes das Nações Unidas de Proteção ao Consumidor ao longo de três anos.

A Iniciativa de Sustentabilidade do Cimento

Líder: Conselho Mundial do Comércio para Desenvolvimento Sustentável.Outros: governo de Portugal; Universidade UN (Japão); 12 grandes empresas de cimento; WWF International;25 outros patrocinadores em 15 países.

Iniciada em 1999, essa parceria identifica e facilita os esforços das empresas de cimento na implementação depráticas sustentáveis. Incorporando governos nacionais, empresas e ONGs, abre diálogo com as empresas decimento sobre questões como gestão da mudança climática, uso de matérias-primas, saúde funcional e processoscomerciais internos. Empresas representando um terço da capacidade mundial de cimento estão envolvidas,com três delas já implementando um protocolo de dióxido de carbono.

Introdução a Normas Sociais na Produção

Líder: Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento (Alemanha).Outros: Agência Alemã de Cooperação Técnica; Faber Castell; Sindicato dos Metalúrgicos da Alemanha;autoridades públicas da Ásia.

O governo alemão está coordenando esforços para implementar uma “carta social” nas fornecedoras indianasda Faber Castell. O Sindicato dos Metalúrgicos da Alemanha desenvolveu a carta, conforme normas daOrganização Internacional do Trabalho. Foi realizado um workshop de implementação com vários parceirosem 2002, e os parceiros empresariais submeteram-se a uma primeira inspeção.

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Tabela 7-2. (continuação)

FONTE: vide nota final 25.

Venda de Produtos Responsáveis via Grandes Redes Varejistas na Europa: Melhores Práticas eDiálogo

Líder: Reseau de Consommateurs Responsables Asbl.Outros: Comissão Européia; Rede Européia de Consumo Responsável; CSR Europe; Centro do Meio Ambiente,Ética & Sociedade de Oxford; Die Verbraucher Initiative; grupos de consumidores na Itália e Dinamarca.

Várias ONGs européias de consumidores, apoiadas pela Comissão Européia e representantes de universidades,realizaram uma conferência em junho de 2003 sobre a Distribuição de Produtos Éticos via Grandes RedesVarejistas da UE. Também compilaram um banco de dados de 20 estudos de caso de varejo na UE e empenharam-se para envolver vários interessados num diálogo sobre melhores formas de disponibilizar mais produtosambientalmente e socialmente responsáveis nos supermercados europeus.

Diálogo Jovem sobre Consumo, Estilos de Vida e Sustentabilidade

Líder: Federação Alemã de Organizações de Consumo.Outros: governos da Alemanha, México e Peru; PNUMA; UNESCO; Consumers International; grupos nacionais deconsumidores e jovens; Massachusetts Institute of Technology; Media Ecology Technology Association.

Com o apoio de três governos, várias ONGs de consumidores estão aumentando a conscientização sobre questõesde consumo entre jovens, através de troca de idéias on-line e workshops. Estão criando uma rede, baseada naEuropa e México, para educar jovens consumidores sobre o impacto do consumo no desenvolvimento sustentável.

Certificação de Turismo Sustentável

Líder: Conselho de Turismo da Costa Rica.Outros: governos de Belize, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Panamá; Comissão de Certificaçãodo Turismo Sustentável; Sistema de Integração da América Central.

O Conselho de Turismo da Costa Rica está trabalhando com cinco governos da América Central e associações deturismo para transferir um programa bem-sucedido de turismo sustentável da Costa Rica para oito países da AméricaCentral até 2006. Promoverão o uso de produtos agrícolas e artesanato local e, ao mesmo tempo, integrarãoquestões econômicas, ambientais e socioculturais a modelos comerciais.

De Joanesburgo aCancun e Além

Um ano após a Cúpula Mundial sobreDesenvolvimento Sustentável, a atençãomundial voltou a focar outra importante

reunião internacional, embora com fei-ção relativamente diferente, a reuniãoministerial da Organização Mundial doComércio (OMC) em Cancun, no Méxi-co, em setembro de 2003. A OMC temuma visão de mundo fundamentalmentediferente da filosofia de desenvolvimen-

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to sustentável que embasou os acordosdo Rio e Joanesburgo; entretanto, suasdisposições têm um grande impacto nacapacidade de ambos, consumidores egovernos, de promoverem práticas co-merciais sustentáveis mundialmente. Po-rém, as negociações da OMC em Cancunfracassaram, dando a governos e ativistasreformistas uma oportunidade de pressi-onarem por negociações futuras em me-lhor equilíbrio com as questões de de-senvolvimento sustentável.26

Quando a OMC foi criada, em 1995,especialistas comerciais argumentaramque os legisladores promulgavam leis ma-liciosas, sem razão científica, e que basi-camente buscavam manter produtos es-trangeiros fora de suas prateleiras. Mui-tos governos compartilhavam dessas pre-ocupações sobre “protecionismo verde”,particularmente governos de países emdesenvolvimento, temendo que o cresci-mento de regulamentos ambientais nomundo industrializado impusessem umabarreira expressiva a seus próprios pro-dutos. Analistas ambientais, por outro lado,não viam as leis, de forma alguma, comobarreiras comerciais disfarçadas, e simcomo medidas legítimas visando a prote-ção do meio ambiente e saúde humana.Em muitos casos, foram promulgadasapenas após obstinadas batalhas políticascontra interesses particulares locais.27

O acordo que criou a OrganizaçãoMundial do Comércio, todavia, incluiuvários dispositivos que impuseram novasrestrições à capacidade de os governospromulgarem leis de proteção à saúdehumana, animal e vegetal. As autoridadesargumentavam que as restrições visavam

eliminar barreiras disfarçadas, e não evitarque os países empreendessem políticas le-gitimamente motivadas por questõesambientais ou de saúde e segurança. Po-rém as novas restrições da OMC abriramcaminho para uma série de disputas gravesentre o comércio e as políticas ambientais,como os conflitos sobre leis norte-ameri-canas que restringem importações de atumpescado de forma danosa aos golfinhos ede camarão pescado de forma danosa àstartarugas marinhas. (Vide Tabela 7-3.)Embora o raciocínio jurídico que os painéisjulgadores de disputas da OMC têm utiliza-do em suas decisões tenha se tornado maissensível a preocupações ambientais nos úl-timos anos, continuam a existir diferençasfundamentais entre as regras do comérciointernacional e as práticas ambientais emer-gentes, que poderão impedir os esforços depromoverem-se padrões mais sustentáveisde produção e consumo.28

Algumas dessas diferenças estão mui-to bem exemplificadas na longa disputaentre União Européia (UE) e Estados Uni-dos em torno da venda de carne produzi-da com hormônios de crescimento. Umalei européia que os proíbem foi promulga-da originalmente no final dos anos 80, emresposta aos temores generalizados entreconsumidores de que a carne contendohormônios pudesse causar câncer e pro-blemas de saúde reprodutiva. Essa legis-lação foi aplicada igualmente ao gado na-cional e importado, passando assim pelocrivo rígido da OMC de não-discrimina-ção. Porém a proibição representou umaameaça ao setor pecuário dos EstadosUnidos obcecado pelos hormônios, poisbloqueava milhões de dólares de exporta-ções americanas de carne bovina.29

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Tabela 7-3. Principais Conflitos Comerciais Relacionados à Produção e ConsumoSustentáveis

Hormônio na Carne Bovina (União Européia e Estados Unidos)

A União Européia proibiu a importação de carne bovina dos Estados Unidos após ter verificado a presença dehormônios de crescimento, por considerá-los um risco à saúde. Os Estados Unidos ajuizaram uma ação decontestação no Órgão de Resolução de Disputas da OMC, argumentando que a proibição representava umabarreira comercial injusta. Em 1998, o Painel da OMC determinou que a proibição da UE contrariava as regrasda OMC. A UE recusou-se a abolir a proibição. Em 1999, em retaliação, os Estados Unidos impuseramrestrições comerciais de US$ 117 milhões anuais contra a UE. Em outubro de 2003, após a divulgação denovos estudos que demonstravam que hormônios de crescimento representam um risco à saúde humana, a UEemitiu uma nova diretiva, aprimorando suas proibições de vários hormônios de crescimento encontrados emcarnes. Alegando que essa nova diretiva segue as recomendações da OMC, a UE espera que os Estados Unidosretirem suas restrições comerciais.

Atum–Golfinho (Estados Unidos e México)

Em seguida à Lei de Proteção aos Mamíferos Marinhos, os Estados Unidos impuseram um embargo ao atummexicano pescado por meio de técnicas polêmicas conhecidas como “enredamento de golfinhos”. O Méxicoargumentou que esse embargo criou uma barreira comercial injusta, ajuizando uma ação nos termos da legislaçãodo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). Em setembro de 1991, o painel do GATT concluiu que osEstados Unidos não podiam embargar as importações de atum mexicano, uma vez que o embargo referia-se àforma como o atum era produzido, e não à qualidade ou conteúdo do produto.

Camarão–Tartaruga (Índia e Estados Unidos)

A Índia, juntamente com outros países asiáticos, ajuizou uma reclamação na OMC quando os EstadosUnidos proibiram importações de camarão e produtos específicos deste fruto do mar. Nos termos da Lei deEspécies Ameaçadas de Extinção, os Estados Unidos exigiram que barcos pesqueiros de camarão utilizassem“dispositivos excludentes de tartarugas”, a fim de evitar que tartarugas marinhas ameaçadas ficassem presasàs redes de camarão. Os Estados Unidos perderam a questão porque discriminaram os países asiáticos ao nãolhes prestar assistência técnica adequada de proteção às tartarugas. Embora o órgão de apelação da OMCtenha decidido contra os Estados Unidos, esclareceu que um país tem o direito de impor sanções comerciaispara proteger seu ambiente doméstico.

Peixe-Espada (Chile e União Européia)

Em 1991, receando a exaustão de seus estoques de peixe-espada, o Chile deixou de permitir que barcosespanhóis aportassem em seu país ou obtivessem novas licenças de pesca. A pesca predatória e proibiçõesvisando a regeneração dos pesqueiros reduziram a pesca anual de peixe-espada pela metade entre 1994 e1999. A UE alega que o veto do Chile a barcos espanhóis, prejudicando o transporte de mercadorias deembarcações-fábrica para navios de exportação, viola acordos da OMC sobre o livre movimento demercadorias. O Chile argumenta que a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar autoriza-lhea proteger seus recursos marinhos. Em novembro de 2000, a UE solicitou que o painel da OMC resolvessea disputa. O painel, todavia, foi suspenso, quando a UE e Chile chegaram a um acordo, em janeiro de 2001.Esse acordo permitiu que alguns barcos da UE atracassem em portos chilenos e forneceu monitoramentocientífico multilateral pra o pesqueiro em questão.

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Amianto (França e Canadá)

O Canadá contestou uma proibição francesa ao amianto de crisotilo, um mineral cancerígeno encontrado emmuitos produtos. O Canadá alegou que uma proibição ampla violava a exigência da OMC de utilizarem-semeios “menos restritivos ao comércio” em relação a questões de saúde. Um painel da OMC manteve aproibição da França ao amianto. Reafirmando o fato de que amianto é cancerígeno, o painel opinou, emfevereiro de 2001, que existem alternativas mais seguras. A sociedade civil saudou essa decisão como “aprimeira vez em seus cinco anos” que a OMC decidia a favor da saúde pública.

Organismos Geneticamente Modificados (Estados Unidos e União Européia)

A União Européia argumenta que podem existir riscos à saúde e ecologia associados a organismosgeneticamente modificados (transgênicos) e tem sido reticente na aprovação do uso ou importaçãodesses produtos. O governo dos Estados Unidos não considera os transgênicos perigosos à saúde e oCanadá declarou que não há base científica para a norma da UE. Nos termos da legislação dostransgênicos, adotada pelo Parlamento Europeu em julho de 2003 e que deverá entrar em vigor noinício de 2004, a UE estabelece que todos os produtos alimentícios e rações animais que contenhammais de 0,9% de organismos geneticamente modificados sejam rotulados como tal e que todos osprodutos alimentícios geneticamente modificados devem ter sua origem determinada. Em agosto, osEstados Unidos, Canadá e Argentina solicitaram à OMC a formação de um painel de arbitragem parajulgar a proibição da UE aos transgênicos.

FONTE: vide nota final 28.

Tabela 7-3. (continuação)

O setor pecuário dos Estados Unidosconvenceu o governo a defender a causaperante a OMC, tendo o governo argumen-tado que a lei não se justificava cientifica-mente nem se baseava numa avaliação ade-quada de risco. A Comissão Européia, to-davia, sustentou que a lei era consistentecom o princípio da precaução, uma normaemergente no direito internacional que pre-ceitua que, “quando houver perigo de danograve ou irreversível, a falta de uma certe-za absoluta não deverá ser utilizada parapostergar-se a adoção de medidas eficazespara prevenir a degradação ambiental”. Masum painel de apelação da OMC decidiu, emfevereiro de 1998, que a lei européia viola-va, de fato, as regras da OMC, abrindo

caminho para o governo dos Estados Uni-dos retaliar, aplicando em julho de 1999,com autorização da OMC, tarifas de 100%sobre US$ 117 milhões de importações eu-ropéias, incluindo sucos de fruta, mostar-da, carne suína, trufas e queijo Roquefort.Quatro anos depois, a lei européia aindaestava em vigor e as sanções também,embora a UE esteja reclamando sua aboli-ção, uma vez que concluiu uma avaliaçãode risco que, segundo ela, valida sua lei.30

Enquanto isso, UE, Estados Unidos eoutros países estão hoje enredados em ou-tra grande polêmica do comércio agrícola –uma com implicações importantes tanto nodireito dos consumidores de fazerem suaspróprias escolhas quanto aos possíveis im-

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pactos à saúde e ao meio ambiente de suasdecisões de compra. A questão agora é umamoratória da União Européia à concessãode aprovação para o plantio ou importaçãode muitas variedades de sementes e lavou-ras geneticamente modificadas. Após recla-mar sobre essa situação por vários anos, ogoverno dos Estados Unidos uniu-se à Ar-gentina e Canadá, em maio de 2003, eajuizou uma ação formal na OMC, protes-tando contra essa política. Alguns mesesdepois, o Parlamento Europeu aprovou umalei que abre caminho para que alimentoscontendo organismos geneticamente modi-ficados sejam vendidos na Europa, contantoque estejam claramente rotulados nesse sen-tido e que haja um sistema implantado pararastrear alimentos transgênicos do porto aosupermercado. As autoridades da UE espe-ram que a lei de rotulagem torne inócua arecente contestação comercial dos EstadosUnidos, porém as autoridades americanasestão céticas, argumentando que a lei derotulagem poderá, por si só, representar umabarreira injusta ao comércio.31

tos adversos à saúde e à ecologia. A UE e amaioria dos grupos de consumidores eambientalistas, por outro lado, vêem a ini-ciativa de rotulagem como uma soluçãorazoável para o impasse, pois permite al-gum comércio de produtos transgênicos eao mesmo tempo protege o direito dos con-sumidores de decidirem, por si mesmos,com conhecimento de causa. As iniciati-vas de rotulagem gozam de amplo apoiopúblico, tanto na Europa quanto nos Esta-dos Unidos, com mais de 90% dos consu-midores a favor desses programas.32

Nos bastidores da atual polêmica so-bre transgênicos há uma questão maior:o que deverá ser feito quando o direitocomercial internacional entrar em rota decolisão com os tratados ambientais in-ternacionais necessários para encorajarconsumidores e produtores a mudar parapráticas mais ambientalmente seguras?Embora nenhum país tenha, até agora,ajuizado ações formais na OMC contraas disposições de um tratado ambiental,freqüentemente surgem argumentos so-bre a coerência da OMC durante negoci-ações. Essas tensões estiveram muito emevidência durante as negociações do Pro-tocolo de Cartagena sobre Biossegurança,em 2000, um acordo forjado sob a égideda Convenção das Nações Unidas sobreDiversidade Biológica que endossa a ne-cessidade de governos adotarem, ocasi-onalmente, medidas acauteladoras para seevitar a possibilidade de dano ambientalirreversível em face de incertezas cientí-ficas. Na disputa atual EUA–Europa so-bre os transgênicos, poderia ser questio-nado se as regras da OMC prevaleceriamsobre as disposições do protocolo de

Negociações comerciais oferecemoportunidades para se buscaremreformas políticas necessárias àpromoção de produção e consumomais sustentáveis.

Como no caso dos hormônios da carnebovina, o governo dos Estados Unidos sus-tenta que as restrições sobre transgênicosviolam as regras da OMC porque não hácomprovação científica concreta de efei-

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biossegurança ou vice-versa. Uma coali-zão internacional de ONGs lançou recen-temente uma campanha solicitando sig-natários para uma “Objeção Cidadã”, queconclama a OMC a arquivar a queixacontra a UE e que a disputa seja resolvi-da com base nos termos do Protocolo deCartagena. Até agora, 184 organizaçõesde 48 países assinaram.33

Apesar da possibilidade de muitos cho-ques entre o direito comercial internacio-nal e as metas e prioridades ambientais,as negociações comerciais também ofe-recem oportunidades para buscarem-se re-formas políticas necessárias à promoçãode produção e consumo mais sustentáveis.Por exemplo, as regras e negociações daOMC poderiam ser utilizadas para enco-rajar os países a reduzir e reformar ossubsídios governamentais a setoresambientalmente sensíveis, como agricul-tura, combustíveis fósseis, pesca e silvi-cultura. Ou poderiam ser utilizadas paradar um tratamento de comércio preferen-cial a “bens de consumo verdes”, comolâmpadas eficientes em energia, papelreciclado, produtos orgânicos e produtospesqueiros e florestais certificados.34

Tanto o desejo de minimizar choquesentre regras comerciais e ambientais comoa possibilidade de promover sinergias le-varam os governos a concordarem emDoha, no Catar, em novembro de 2001, adar início a conversações sobre questõesambientais específicas, como parte de umMandato de Doha para uma nova rodadade conversações comerciais internacio-nais. Entre outros compromissos, os mi-nistros comerciais decidiram entrar emnegociações acerca das implicações co-merciais das exigências de rotulagem

ambiental sobre as relações entre as re-gras da OMC e medidas comerciais con-tidas em acordos ambientais multilateraise acerca do efeito de medidas ambientaissobre acesso a mercados. Também con-cordaram em se empenhar no fortaleci-mento das restrições da OMC a subsídiospesqueiros e discutir a redução de barrei-ras tarifárias e não-tarifárias ao comérciode bens e serviços ambientais.35

Muitos outros temas agendados paradiscussão nos termos do Mandato de Dohatambém poderão ter implicações importan-tes nos esforços para promoverem-se pa-drões mais sustentáveis de produção e con-sumo. Esforços para reduzir ou redirecionarsubsídios agrícolas, por exemplo, poderãodar forte impulso a sistemas alimentaresmais ambientalmente e socialmente segu-ros. As negociações sobre transparência naslicitações governamentais, por exemplo,seriam relevantes para iniciativas de aqui-sições verdes. E as conversações propos-tas sobre a redução de restrições em inves-timentos internacionais e no comércio deserviços poderão limitar o escopo dos go-vernos na implementação e aplicação de re-gulamentos ambientais.36

Todavia, o fracasso das negociações nareunião da OMC em Cancun, em setembrode 2003, suscitou perguntas fundamentaissobre a direção futura da organização e dequalquer nova rodada de conversações co-merciais. Nos preparativos para a reunião,houve pouco avanço em qualquer dos te-mas ambientais específicos. Mas foram asdisputas sobre questões como investimen-tos e licitações governamentais eafloramento de tensões sobre subsídioscomerciais agrícolas que finalmente para-ram as negociações. As reações ao impasse

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foram mistas, mesmo entre ONGs. Algunsacharam que o fracasso revelou falta devontade política no confrontamento dequestões urgentes de desenvolvimento;outros viram Cancun como um ponto crí-tico fundamental em que governos de paí-ses em desenvolvimento uniram-se numanova e poderosa coalizão, apoiados por umasociedade civil fortalecida.37

Nos meses futuros, governos e orga-nizações da sociedade civil, conjuntamente,contemplarão as grandes lições dos even-tos recentes. O caminho à frente não estátotalmente claro, com a situação compli-cada pela necessidade de se formar um

consenso entre uma grande diversidade deinteresses em todo o mundo. Mesmo as-sim, os eventos recentes sugerem que ostermos do debate estão mudando, já quepessoas em todo o mundo perceberam quenosso rumo insustentável atual ameaçatanto o bem-estar da humanidade quantoa saúde ecológica. Embora as forças po-derosas do Jihad e do McMundo continu-em a varrer o globo, a esperança para ofuturo vem do crescente número de pes-soas que rejeitam ambos os caminhos eapóiam o desenvolvimento de uma comu-nidade global baseada no respeito pelaspessoas e pela natureza.

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Camisetas de Algodão

A T R Á S D O S B A S T I D O R E S

Em 1913 a Marinha dos EstadosUnidos lançou uma roupade baixo branca dealgodão para todo oefetivo – primeiroregistro do aparecimentoda camiseta. Em 1938, agrande cadeia Searsintroduziu uma linha decamisetas para uso civil.Mas só nos anos 50 essapeça tornou-se realmentepopular, graças aos galãs rebeldesMarlon Brando, James Dean e Elvis Presley.1

Atualmente, camisetas são uma maneirarelativamente barata de consumidores emtodo o mundo exibirem a logomarca de umagrife favorita, um time ou designer. Mas,mesmo quando feitas de algodão natural, ascamisetas representam um custo alto paraos operários e o meio ambiente.

Algodão é a fibra mais vendida no mundoe fazendeiros, do Texas à Turquia, colhemmais de 19 milhões de toneladas anualmente.Todavia, o cultivo carrega no seu bojo umacarga ambiental. Os produtores aplicamquase US$ 2,6 bilhões de pesticidas noalgodão, anualmente, em todo o mundo –mais de 10% do total global, de acordo com aPesticide Action Network North América. AOrganização Mundial de Saúde classificoumuitos dos pesticidas comumente utilizadosno algodão como “extremamente perigosos”,

incluindo organofosfatoscomo parathion ediazinon, que sãoparticularmente

nocivos ao sistemanervoso de bebês e

crianças.2

Os pesticidas utilizadosno algodão contaminam etambém matam trabalhadoresrurais. Entre 1997 e 2000, oscampos de algodão foram os

locais dos 116 casos deenvenenamento agudo de agricultores porpesticidas registrados na Califórnia. E em2001 a morte de mais de 500 agricultores dealgodão no estado produtor de AndhraPradesh, na Índia, foi atribuída à exposição apesticidas. Em muitos casos, agricultoresdesconhecem ou não aplicamprocedimentos de segurança adequadosquando manuseiam e utilizam produtosquímicos: em uma pesquisa no Benin, ÁfricaOcidental, 45% dos produtores de algodãodeclararam que usam recipientes depesticidas para carregar água, enquanto 20–35% os utilizam para colocar leite ou sopa.Pessoas também foram afetadas em fábricase comunidades onde os pesticidas doalgodão são produzidos: em1984, ocriminoso vazamento de gás tóxico nasinstalações da Union Carbide, no Bhopal,Índia, matou 8.000 pessoas.3

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ATRÁS DOS BASTIDORES: CAMISETAS DE ALGODÃO

Na década passada, ecólogosregistraram danos devastadores a aves,peixes e outras vidas silvestres, causadospor produtos químicos usados no algodão.Antes da colheita, os agricultoresfreqüentemente utilizam herbicidas paradesfolhar os algodoeiros e permitir fácilcoleta das cápsulas que contêm sementes efibras – uma prática que pode destruirhabitats de vida silvestre.4

Os pesticidas do algodão podemtambém poluir corpos d’água locais,colocando em perigo a saúde humana e dosecossistemas. Aldicarb, um composto quepode causar anormalidades no sistemaimunológico, mesmo em baixos níveis deconsumo, foi encontrado na águasubterrânea de sete estados americanos,segundo a Cornell University CooperativeExtension. E em 1998 a U.S.GeologicalSurvey denunciou contaminação da águapor herbicidas e inseticidas utilizados noalgodão, no sul. Enquanto isso, em âmbitomundial, o desvio de água para irrigaralgodão – uma cultura sedenta – encolheu oMar de Aral, no Uzbequistão, a um quintodo seu tamanho original.5

Após a colheita de um campo dealgodão, as cápsulas são descaroçadaspara separar as fibras das sementes. Asfibras são então empacotadas em fardosde aproximadamente 225 quilos cada. (Aindústria têxtil americana utiliza cerca de11 milhões de fardos de algodãoanualmente) Uma fiação limpa as fibras etorce para fazer os fios, que são tecidosem teares mecânicos. O transporte dafazenda para a fábrica requer energia,caracteristicamente de combustíveisfósseis, como também a produção de fio etecidos, já que as fiações não são maismovidas a tração animal.6

Depois de pronta, a camiseta égeralmente tingida e tratada. Tinturasquímicas e, mesmo algumas tinturasnaturais, quase sempre contêm cobre, zincoe outros metais pesados, que são tóxicos epodem poluir a água através do escoamentoindustrial. Os tratamentos do tecido, comoaqueles contra manchas e enrugados, eágua, podem conter produtospetroquímicos, como o formaldeído, umcancerígeno.7

Isso não quer dizer que consumidoresconscientes devam optar por tecidossintéticos. As fibras de poliéster são feitasde petróleo, um recurso não-renovável cujaextração e cujo transporte prejudicam o meioambiente, mais evidentemente nosvazamentos de óleo. De acordo com umaestimativa, se o petróleo utilizado naprodução e transporte for incluído, umacamiseta mesclada com poliéster podeliberar, aproximadamente, um quarto de seupeso em poluição atmosférica e 10 vezes seupeso em dióxido de carbono.8

A China é o maior produtor mundial dealgodão, seguida pelos Estados Unidos eÍndia. E os Estados Unidos são osprincipais exportadores da fibra, exportandomais de 10,5 milhões de fardos por ano,principalmente para a Ásia e México.(Outros grandes exportadores são os paísesda antiga União Soviética e a Austrália.)Países mais pobres, desejosos de venderseu algodão no mercado mundial,encontram-se, freqüentemente, emdesvantagem com os subsídios e barreirascomerciais que protegem os agricultores dealgodão dos Estados Unidos.9

A China é também o principal produtormundial de camisetas, fornecendo cerca de65% do total – a maioria vendida nosEstados Unidos e Europa. (Os americanos

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ATRÁS DOS BASTIDORES: CAMISETAS DE ALGODÃO

gastaram US$ 6,2 bilhões em 478 milhõesde camisetas em 2002.) Do mesmo modoque em muitos países em desenvolvimento,os trabalhadores da indústria deconfecções na China recebem saláriosmenores e trabalham mais horas. Aindústria de confecções nos paísesindustrializados geralmente exploram amão-de-obra na América Central e sudesteda Ásia, onde a legislação trabalhista eambiental é muito menos rigorosa do quenos seus países de origem.10

O que faz o usuário de camisetas? Aescolha mais ecológica, não sendo acompra de roupa usada, é uma camisetafeita de algodão orgânico certificado,

cultivado sem pesticidas e fertilizantessintéticos. Em um projeto agrícola egípcio,o cultivo orgânico incrementou aprodução de algodão em mais de 30%,sendo a fibra transformada em tecido semnenhum produto químico sintético. Amelhor opção, em termos de bem-estar dotrabalhador, é o produto certificado pelaFair Trade Federation. Numa tendênciapositiva, o algodão orgânico e fabricantesde confecções de comércio justo estão seunindo para proteger o ambiente e, aomesmo tempo, promover a justiça social.11

— Mindy Pennybacker,The Green Guide

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COMPRANDO PARA AS PESSOAS E O PLANETA

C A P Í T U L O 8

Repensando aBoa Vida

Gary Gardner e Eric Assadourian

Bogotá, a capital da Colômbia, é comumenteassociada com guerra civil e violência. Mas,nos fins da década de 90, a reputação dacidade começou a mudar, quando o PrefeitoEnrique Peñalosa liderou uma campanhapara melhorar a qualidade de vida lá. Asmatrículas escolares aumentaram em200.000 estudantes – cerca de 34% – du-rante o mandato de Peñalosa. Sua adminis-tração construiu ou reconstruiu totalmente1.243 parques – alguns pequenos, outrosbastante grandes – agora usados por cercade 1,5 milhão de visitantes anualmente. Umsistema de transporte rápido, eficiente, aces-sível a todos, foi planejado e construído. Ea taxa de assassinatos da cidade caiu dra-maticamente: hoje, ocorrem menos assassi-natos, per capita, em Bogotá do que emWashington, DC.1

Seja qual for o padrão, o avanço da cida-de é um sucesso de desenvolvimento. Noentanto, a transformação de Bogotá foialcançada de uma maneira bastante hetero-doxa. Quando Peñalosa assumiu, consulto-res propuseram a construção de uma rodo-

via elevada ao custo de US$ 600 milhões,uma solução de transporte padrão em mui-tas cidades engarrafadas por automóveis. Emvez disso, o Prefeito criou um sistema detransporte rápido e mais barato usando aslinhas de ônibus existentes. O sistema trans-porta 780.000 passageiros diariamente– mais do que o dispendioso metrô deWashington, DC – e é tão bom que 15%dos usuários regulares são proprietários decarros. Peñalosa também investiu em cen-tenas de quilômetros de ciclovias e em cal-çadões. E incrementou a infra-estrutura cul-tural da cidade, com a construção de novasbibliotecas e escolas, ligando-as a uma redede 14.000 computadores. Juntamente coma reabilitação dos parques, as melhorias notransporte e culturais incentivaram uma metaestratégica para Bogotá: orientar a vida ur-bana em torno de pessoas e comunidades.2

Peñalosa baseia-se num parâmetroincomum para avaliar sua estratégia de de-senvolvimento. “Uma cidade é bem-suce-dida não quando é rica”, diz ele, “mas quan-do sua população é feliz”. Essa declaração

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REPENSANDO A BOA VIDA

esvazia décadas de conceituação de desen-volvimento, tanto em países pobres quan-to em ricos. Resumindo: a maioria dos go-vernos faz dos aumentos contínuos no pro-duto interno bruto (PIB) uma prioridademaior da política doméstica, assumindo queestando a riqueza garantida, o bem-estar éassegurado. No entanto, ênfase indevida nageração de riqueza, especialmente peloencorajamento do alto consumo, pode es-tar gerando retornos decrescentes. No todo,a qualidade de vida está se deteriorando emalguns dos mais ricos países do globo àmedida que as pessoas vão sofrendo maiorestresse e pressão de tempo, com menosrelacionamentos sociais satisfatórios, e àmedida que o meio ambiente vai mostran-do cada vez mais sinais de perigo. Enquan-to isso, nos países mais pobres a qualidadede vida é degradada pelo não-atendimentodas necessidades básicas das pessoas.3

Repensar o que significa “a boa vida” émais que necessário num mundo que ca-minha rapidamente numa trilha de malesauto-infligidos e danos planetários a flores-tas, oceanos, biodiversidade e outros re-cursos naturais. Ao redefinir prosperidadecom ênfase numa melhor qualidade de vida,em vez de numa mera acumulação de bens,indivíduos, comunidades e governos po-dem concentrar-se na conquista do que aspessoas mais almejam.Realmente, umanova compreensão do que seja boa vidapode ser construída não em torno da ri-queza, e sim do bem-estar: atendimento dasnecessidades básicas de sobrevivência, jun-tamente com liberdade, saúde, segurança erelações sociais gratificantes. Naturalmen-te, o consumo ainda seria importante, massomente na medida em que incremente aqualidade de vida. Realmente, uma socie-

dade de bem-estar deve empenhar-se emminimizar o consumo ao necessário parauma vida digna e gratificante.

Riqueza e Bem-estar

Riqueza e bem-estar são mais parentes dis-tantes do que antagonistas. Na verdade, apalavra wealth (riqueza, em inglês) derivada raiz weal – um sinônimo de bem-estarque tradicionalmente tem conotação co-munitária. No entanto, riqueza significaatualmente bens materiais e posses finan-ceiras, principalmente de indivíduos – umsignificado muito mais limitado do quesuas raízes teriam. A construção de umasociedade de bem-estar envolve, essenci-almente, resgatar o significado original eamplo do termo riqueza.4

A idéia de bem-estar, como um objetivopessoal e político, é cada vez mais corri-queira, aparecendo em revistas popularese até em publicações oficiais de organiza-ções multinacionais, como The Well-beingof Nation, da Organização para Coopera-ção e Desenvolvimento Econômico, em2001, e Ecosystems and Human Well-being,da Mellennium Ecosystem Assessment, de2003. Mesmo a Câmara dos Comuns ca-nadense aplicou o termo na legislação apro-vada em junho de 2003 sob o título de Leide Medição do Bem-Estar do Canadá. 5

Definições do conceito variam, mastendem a se aglutinar em torno de váriostemas:

• Base de sobrevivência, incluindo ali-mento, abrigo e segurança:

• Boa saúde, em termos pessoais e deum meio ambiente robusto;

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REPENSANDO A BOA VIDA

• Boas relações sociais, inclusive umavida de coesão social e uma estruturade apoio social;

• Segurança, tanto em termos pessoaisquanto de posses pessoais, e

• Liberdade, o que inclui a capacidadede atingir o potencial de desenvolvi-mento. 6

Em suma, o termo de-nota essencialmente umaalta qualidade de vida, naqual as atividades diáriasdesenvolvem-se de formamais planejada, com menosestresse. Sociedades cen-tradas no bem-estar envol-vem maior interação coma família, amigos e vizi-nhos, uma experiênciamais direta com a naturezae mais dedicação à procu-ra de realização e expres-são criativa do que acumu-lação de bens. Estasenfatizam estilos de vidaque evitam abuso da pró-pria saúde, do próximo oudo mundo natural. Ou seja, geram um sen-tido mais profundo de satisfação com avida do que as pessoas têm atualmente.

O que é que promove uma vida gratifi-cante? Nos últimos anos, psicólogos es-tudando parâmetros de satisfação de vidatêm, em geral, confirmado o velho adágioque diz que dinheiro não traz felicidade –pelos menos para pessoas já afluentes.Essa desconexão entre dinheiro e felici-dade nos países ricos é possivelmente maisbem ilustrada quando o crescimento darenda nos países industrializados é com-

parado com os níveis de felicidade. NosEstados Unidos, por exemplo, a rendamédia individual mais que dobrou entre1957 e 2002, embora a parcela de pesso-as descrevendo-se como “muito felizes”no mesmo período tenha permanecidoestática. (Vide Figura 8-1.)7

Figura 8-1. Renda Média e Felicidade nos Estados Unidos,1957–2002

Não é de surpreender que a relação en-tre riqueza e satisfação pessoal seja dife-rente nos países pobres. Nestes, renda ebem-estar estão bem ligados, provavelmenteporque mais do que a renda individual éusada para atender às necessidades bási-cas. (Vide Capítulo 1.) Constatações daWorld Values Survey, numa série de pes-quisas, em mais de 65 países, sobre vidagratificante, realizada entre 1990 e 2000,demonstraram que renda e felicidade ten-dem a caminhar juntas até mais ou menosUS$ 13.000 de renda anual por pessoa (na

25.000

20.000

15.000

10.000

5.000

0

100

80

60

40

20

01955 1965 1975 1985 1995 2005

Renda Média

(base=1995)

Porcentagem de Pessoa Muito Felizes

Renda Média

Pessoas Muito Felizes

Fonte: Myers

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REPENSANDO A BOA VIDA

paridade do poder aquisitivo de 1995). Alémdesse nível, renda adicional parece gerarapenas melhoria modesta na felicidadeautodeclarada.8.

Se os psicólogos estão certos sobre oslimites da riqueza na obtenção da felicidade,estão igualmente certos na descrição do quecontribui para uma vida gratificante. Repeti-damente, estudos sugerem que pessoas feli-zes tendem a ter relações solidárias fortes,senso de controle sobre suas vidas, boa saú-de e trabalho compensador. Muito rapidamen-te, esses fatores estão cada vez mais sobestresse nas sociedades industrializadas, deritmo acelerado, nas quais as pessoas muitasvezes tentam usar o consumo como umsubstituto para as fontes genuínas de felici-dade. Entretanto, há pelo menos alguns indi-víduos, comunidades e governos que, insa-tisfeitos com a qualidade da vida, estão de-senvolvendo esforços para construir vidas,vizinhanças e sociedades de bem-estar. 9

A Potência Um

Durante o verão de 2003, cerca de 50 mi-lhões de americanos inscreveram-se numCadastro Nacional Não Liguem, patrocina-do pelo governo, destinado a evitar quetelemarqueteiros os telefonassem. A enxur-rada de respostas a esse novo programa dogoverno – na essência, uma tentativa de aspessoas resgataram um pouco do seu tem-po e privacidade das táticas de marketingcada vez mais agressivas – indica a frustra-ção que muitos sentem quando forças eco-nômicas começam a dominá-los, ao invésde servi-los. Entretanto, um número peque-

no, mas crescente, de consumidores estáquestionando a forma como fazem compras,o volume de “coisas” que se amontoam ecomplicam suas vidas e o tempo que gas-tam no trabalho. Esses consumidores insa-tisfeitos ainda não criaram um movimentoconsistente porque suas ações são, basica-mente, privadas, ocorrendo em bolsões des-conexos em muitos países. Mesmo assim,a natureza espontânea dessas atividades podesinalizar um desejo profundo de muitas pes-soas construírem uma vida recompensadorapara si e suas famílias.10

Talvez a expressão mais evidente de umdesejo por uma melhor qualidade de vidaesteja no número crescente de pessoas quefazem compras de olho no bem-estar. NaEuropa, por exemplo, a demanda por ali-mentos orgânicos elevou as vendas para US$10 bilhões em 2002, 8% acima do ano ante-rior, quando um público chocado com adoença da vaca louca e outros sustos ali-mentícios buscou garantias cada vez maio-res de segurança em sua alimentação. Ana-listas de mercado estimam que 142 milhõesde europeus são consumidores de produtosorgânicos, embora um núcleo “fiel” de 20milhões tenha representado 69% dos gastosnesses produtos em 2001. E 150 milhões depessoas na Europa ou são vegetarianas oureduziram seu consumo de carne vermelha.11

Enquanto isso, o grupo de consumido-res nos Estados Unidos interessado emcompras que melhorem a saúde e o meioambiente já é bastante grande para mere-cer o reconhecimento de pesquisadores demercado como um grupo demográfico dis-tinto. Chamados de consumidores LOHAS*

* Sigla para “Lifestyles of Health and Sustainability”

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– pessoas que têm estilos de vida com saú-de e sustentabilidade – estes compram detudo, desde lâmpadas fluorescentes com-pactas e células solares a café e chocolatede comércio justo (produtos que pagamum salário justo aos produtores ou que cau-sam impacto ambiental menor que os pro-dutos comuns). Esse grupo hoje inclui qua-se um terço dos americanos adultos e, em2000, foi responsável por cerca de US$ 230bilhões em compras – aproximadamente3% dos gastos totais de consumo nos Es-tados Unidos. Embora seja uma proporçãorelativamente baixa, comparada com o nú-mero de pessoas identificadas como con-sumidores LOHAS, isso provavelmentedeve-se às poucas opções de consumo sa-dio disponíveis atualmente.12

Em muitos países, as pessoas formamcooperativas para alavancar seu poder demercado por uma melhor qualidade de vida.No Japão, por exemplo, a União de Coope-rativas de Consumidores Seikatsu Club,com 250.000 membros, estoca alimentoslivres de agrotóxicos e aditivos econservantes artificiais, juntamente comprodutos domésticos livres de toxinas. Acooperativa acondiciona seus produtos empotes reutilizáveis para reduzir o descartede embalagens, que representa 60% do lixodoméstico. Contrariamente a muitos super-mercados que estocam dezenas de milha-res de itens individuais, as cooperativasSeikatsu Club mantêm apenas 2.000 itens,principalmente produtos alimentícios. Ca-racteristicamente, estocam apenas uma ouduas variedades por item, mas para seusmembros que buscam uma vida maiscompensadora, a melhor qualidade, os ali-mentos sadios e a redução do lixo aparen-

temente compensam a menor escolha. Eos membros da Seikatsu não estão só; cer-ca de 50 milhões de pessoas pertencem acooperativas locais afiliadas à ConsumerCoop International, uma entidade interna-cional que facilita treinamento para coope-rativas locais de consumidores.13

Em alguns casos, as pessoas voltam-separa organizações em busca de ajuda paratornar seu consumo mais verde. Uma coa-lizão de organizações em 19 países, conhe-cida como Plano de Ação Global, oferecetreinamento a famílias para reduzir o lixo,aliviar o uso de energia e mudar para pro-dutos ecoamigáveis. Na Holanda, pelo me-nos 10.000 famílias trabalham noredirecionamento do seu consumo; após otreinamento, essas pessoas reduziram seulixo doméstico em 28% em média. Seis anove meses depois, já haviam alcançado39%. E em 2003 o governo francês lançouuma iniciativa semelhante, la familledurable (a família sustentável), que ofere-ce formas práticas de as pessoas viveremsustentavelmente no lar, na escola, no tra-balho e durante as férias.14

E nos Estados Unidos, o Center for aNew American Dream insta as pessoas aviverem uma vida com “mais diversão,menos tralhas”. Através do seu programaVire a Maré, o centro encoraja as pessoasa seguirem um plano de conservaçãoambiental simples, de nove etapas, envol-vendo ações como substituir torneiras poroutras de eficiência hídrica e comer me-nos carne. Os 14.000 membros dessa ini-ciativa relatam terem economizado mais de500 milhões de litros de água e evitado quemais de 4 milhões de quilos de dióxido decarbono fossem liberados na atmosfera.15

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Além da mudança nos hábitos de com-pras, muitos consumidores estão tentan-do simplificar seus estilos de vida de for-ma mais ampla – um processo chamadoàs vezes de “mudança descendente”. Aanalista Cecile Andrews descreve a mo-tivação dessas pessoas: “Muitas pessoas[estão] apressadas, nervosas eestressadas. Não têm tempo pra seusamigos; são ríspidas com a família; nãoriem muito”. Muitas, diz ela, “buscamuma maneira de simplificar suas vidas –correr menos, trabalhar menos e gastarmenos. Estão começando a ‘desacelerar’e gozar a vida novamente”.16

Estimativas sobre o número de mudan-ças descendentes são imprecisas, porém ointeresse na simplificação parece estar au-mentando. Em sete países europeus, o nú-mero de pessoas que voluntariamente re-duziram suas jornadas de trabalho aumen-tou a uma taxa de 5,3% ao ano durante osúltimos cinco anos. E a tendência em dire-ção à simplicidade deverá continuar. O nú-mero de pessoas nesses mesmos paísesque poderiam, pelo menos parcialmente,adotar voluntariamente um estilo de vidasimples deverá crescer de cerca de 7 mi-lhões em 1997 para, no mínimo, 13 mi-lhões em 2007.17

Enquanto isso, duas pesquisas de opi-nião nos Estados Unidos, realizadas emmeados dos anos 90, indicaram que apro-ximadamente um quarto da população em-penhava-se para simplificar suas vidas,embora a extensão dos esforços variassemuito de pessoa a pessoa. E a mídia de-monstrou um interesse crescente na maté-ria. Artigos em jornais norte-americanossobre a simplificação de estilos de vida

quintuplicaram entre 1996 e 1998. Em1997, o Sistema Público de Radiodifusãotransmitiu um documentário intituladoAffluenza, que tratava o consumismo comouma doença contagiosa e oferecia suges-tões de como se vacinar contra ela. O pro-grama foi muito popular, sendo posterior-mente distribuído para 17 países.18

Todavia, iniciativas individuais são ape-nas parte do que é necessário para construiruma sociedade de bem-estar. Só esforçosindividuais não ajudarão, necessariamente,a criar comunidades fortes e sadias (embo-ra possam liberar tempo para maiorenvolvimento comunitário), nem poderão li-dar com os obstáculos estruturais a umaescolha genuína de consumo – a falta deprodutos orgânicos num supermercado, porexemplo. Alguns críticos até argumentamque, isoladamente, iniciativas individuaispodem ser contraproducentes. Uma“individualização da responsabilidade”, comoobserva o cientista ambiental Michael Mani-ates, desvia a atenção do papel que institui-ções comerciais e governamentais desem-penham na perpetuação do consumo insalu-bre. Ademais, uma vez que indivíduos vêemseu poder residir basicamente em seus bol-sos, poderão negligenciar seus papéis-cha-ve como pais, educadores, membros dacomunidade e cidadãos na construção deuma sociedade de bem-estar.19

A necessidade de indivíduos agirem co-letivamente na melhoria da sua qualidade devida levou um grupo na Noruega a lançar,em 2000, uma campanha intitulada 07/06/05. Seus membros estão conclamando osnoruegueses para a contagem regressiva até7 de junho de 2005, o centenário da inde-pendência da Noruega do domínio sueco, e

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para declararem sua independência nova-mente – dessa vez, porém, da “pobreza detempo” que acompanhou a ascendência dacultura do consumo.20

Nos Estados Unidos, uma aliança chamada“Fórum da Simplicidade” busca mobilizar osmilhões de americanos às voltas com muitoa fazer e com muito pouco tempo. Instituí-ram 24 de outubro de 2003 como o Dia doResgate do Tempo, instando os americanosa deixarem o trabalho cedo, chegarem tarde,levarem mais tempo almoçando, ou até mes-mo ausentarem-se do serviço. Milhares ade-riram a eventos em casas de vizinhos, igrejaslocais, salões de conferências e universida-des para discutir a carência de tempo enfren-tada por todos os americanos. A data foi es-colhida deliberadamente – nove semanas an-tes do fim do ano – para lembrar aos ameri-canos que são um dos povos que mais traba-lham no mundo industrializado, permanecen-do 350 horas a mais em serviço (ou seja, novejornadas semanais), anualmente, do que o tra-balhador europeu.21

Os organizadores esperam utilizar aenergia da iniciativa americana para ini-ciar um movimento popular centrado noresgate do tempo para uma maior quali-dade de vida. A campanha buscaria re-formar a legislação federal de férias, jor-nadas de trabalho e outras medidas queliberariam tempo para os elementos ne-gligenciados da vida, como família, ami-gos e comunidade. Como explica o co-ordenador do Dia do Resgate do Tempoe produtor de Affluenza, John de Graaf,“o Movimento do Tempo significa olharalém do PIB como medida de uma boasociedade e entender que o objetivo realda nossa economia não é o crescimento

material infinito, e sim uma vida equili-brada, plena e sustentável para todos”.22

Os Laços que Unem

Humanos são seres sociais; portanto, não éde se estranhar que boas relações sejam umdos ingredientes mais importantes para umaalta qualidade de vida. O professor de Políti-cas Públicas de Harvard, Robert Putnam,observa que “a constatação mais comum emmeio século de pesquisa sobre os correlatosde realização de vida... é que a felicidade émelhor vaticinada pela extensão e profundi-dade das relações sociais”. Assim, os esfor-ços individuais de construção de uma vidafeliz têm mais probabilidade de sucesso seenvolverem a família, amigos ou vizinhos.Felizmente, esforços individuais e comunitá-rios freqüentemente andam de mãos dadas.A pessoa que trabalha menos horas a cadasemana tem mais tempo para a família, osamigos e a comunidade. E os laços comuni-tários, reforçados, por exemplo, quando vi-zinhos compartilham ferramentas ou respon-sabilidades no cuidado de bebês, podem re-duzir as despesas domésticas e ajudar as pes-soas a levarem vidas mais simples.23

Pessoas que mantêm relações sociaistendem a ser mais saudáveis – e,freqüentemente, de forma significativa.Mais de uma dúzia de estudos de longoprazo no Japão, Escandinávia e EstadosUnidos revelam que as chances de morrernum determinado ano, seja qual for a cau-sa, são duas a cinco vezes maiores naspessoas isoladas do que nas socialmenterelacionadas. Por exemplo, um estudoconstatou que em 1.234 pessoas que so-freram ataques cardíacos, a taxa de outro

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ataque em seis meses foi quase o dobropara aqueles que viviam sozinhos. E umestudo de saúde e desconfiança nos Esta-dos Unidos, realizado pela Universidade deHarvard, concluiu que a mudança para umestado com alto nível de relações sociais,vindo de um estado onde este nível é bai-xo, melhoraria a saúde individual quase namesma extensão que deixar de fumar.24

Um exemplo particularmente marcanteda relação entre relacionamento social esaúde vem de um estudo da cidade deRoseto, na Pensilvânia, que chamou aatenção dos pesquisadores nos anos 60 emfunção do seu índice de doenças cardía-cas ser menos da metade das cidades vi-zinhas. As causas usuais dessa anomalia– dieta, exercício, peso, fumo, predispo-sição genética, etc. – não explicavam ofenômeno de Roseto. Na realidade, a po-pulação de Roseto era até pior em muitosdesses fatores de risco que seus vizinhos.Assim, os pesquisadores investigaramoutras explicações possíveis e verificaramque a cidade tinha uma estrutura socialcoesa, que gerou clubes esportivos, igre-jas, um jornal e um grupo de escoteiros.Socialização informal ampla era a norma.Posteriormente os pesquisadores atribuí-ram os níveis mais altos de saúde aos for-tes laços sociais dos moradores – a maio-ria vinha do mesmo vilarejo da Itália etrabalhou duro para manter seu senso decomunidade nos Estados Unidos. O tristeadendo a essa história é que, a partir dofinal dos anos 60, quando os laços sociaisenfraqueceram nesta cidade e por todo opaís, o índice de doenças cardíacas au-mentou em Roseto, vindo a superar o dacidade vizinha.25

Laços sociais fortes sãoparticularmente úteis na promoçãodo consumo coletivo, o quefreqüentemente traz vantagenssociais e ambientais.

Pesquisadores oferecem várias explica-ções para o elo entre relacionamento sociale menor risco de saúde. Alguns são extre-mamente práticos: gente relacionada temalguém a quem recorrer quando acontecemproblemas de saúde, reduzindo a probabili-dade de a doença se desenvolver numa con-dição grave. Redes sociais podem reforçarcomportamentos sadios; estudos revelamque as pessoas isoladas são mais propen-sas a fumar ou beber, por exemplo. E co-munidades coesas podem ser mais efica-zes no lobby por tratamento de saúde. Masa ligação pode ser mais profunda. O conta-to social pode efetivamente estimular o sis-tema imunológico do indivíduo a resistir adoenças e estresse. Animais de laboratório,por exemplo, têm mais probabilidade dedesenvolver endurecimento das artériasquando isolados, enquanto animais e sereshumanos isolados tendem a sofrer respos-ta imunológica baixa e pressão alta.26

Profissionais de desenvolvimento inter-nacional também reconhecem que laços so-ciais fortes são grandes incentivadores dedesenvolvimento de uma nação. O BancoMundial, por exemplo, vê o relacionamentosocial como uma forma de capital – um bemque rende uma torrente de benefícios úteispara o desenvolvimento. Da mesma formaque uma conta bancária (capital financeiro)rende juros, os laços sociais tendem a criarvínculo, reciprocidade ou redes de informa-

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ção, que lubrificam as rodas da atividadeeconômica. Vínculos, por exemplo, facili-tam as transações financeiras ao criar umclima de confiança nas relações contratuaisou na segurança de investimentos. Um es-tudo de contatos sociais, realizado pelo Ban-co Mundial, entre comerciantes agrícolas deMadagáscar comprovou que aqueles quefaziam parte de uma extensa rede de co-merciantes e que podiam contar com cole-gas em épocas de dificuldades tinham rendasuperior aos comerciantes com menos con-tatos. De fato, os comerciantes bem-relaci-onados declararam que as relações são maisimportantes para seu sucesso do que mui-tos fatores econômicos, inclusive o preçode suas mercadorias ou o acesso a créditoou equipamentos.27

Falta de capital social também pareceestar ligado a um fraco crescimento econô-mico em âmbito nacional. Stephen Knack,do Banco Mundial, alerta que níveis baixosde confiança social podem prender nações auma “armadilha de pobreza”, em que o cír-culo vicioso da desconfiança, baixos inves-timentos e pobreza é difícil de romper. Knacke seus colegas testaram a relação entre con-fiança e desempenho econômico em 29 pa-íses incluídos na Pesquisa de Valores Mun-diais. Constataram que cada aumento de 12pontos na medida de confiança da pesquisaestava associado a um aumento de 1% nocrescimento da renda anual, e que cada au-mento de 7 pontos na confiança correspondiaa um aumento de 1% no índice de participa-ção de investimentos no PIB.28

O papel do “veículo” social, de facilita-ção de transações econômicas, é particular-mente evidente nas iniciativas demicrocrédito, como as do Grameen Bank,

em Bangladesh, que realiza pequenos em-préstimos a mulheres extremamente pobres,que não dispõem de garantias para emprés-timos bancários comuns. As mulheres or-ganizam-se em grupos de cinco, e cada gru-po solicita empréstimos do Banco, às ve-zes, inferiores a US$ 100. Elas contam comsua confiança nas vizinhas quando as con-vidam para se unir ao grupo. Essa funçãoda informação – algo como onde bancoscomerciais gastam dinheiro quando compi-lam um histórico de crédito de um solicitante– é um exemplo de como o capital socialpode reduzir os custos da atividade finan-ceira. Laços sociais também servem comogarantia para empréstimos. Uma vez que asmulheres são solidariamente responsáveispela amortização, e que uma inadimplênciapode desqualificar todas as cinco para em-préstimos futuros, cada mulher está sujeitaa uma forte pressão social para pagar.29

A compensação econômica desses tiposde relacionamentos sociais tornou omicrocrédito um sucesso em muitos paí-ses. O Grameen Bank declara que 98% deseus empréstimos são resgatados, um re-gistro melhor do que na maioria dos bancoscomerciais. O Grameen inspirou a dissemi-nação do microcrédito mundialmente. Umainiciativa conhecida como a Campanha daCúpula do Microcrédito estabeleceu umameta de habilitar 100 milhões de pessoas emprogramas de microcrédito até 2005. No fi-nal de 2002, já estavam a meio caminho,com 68 milhões de participantes.30

Além de melhorar a saúde e facilitar asegurança econômica, laços sociais fortessão particularmente úteis na promoção doconsumo coletivo, o que freqüentementetraz vantagens sociais e ambientais. Um

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bom exemplo disso é a co-habitação, umaforma moderna de vida comunitária em que10–40 famílias vivem num conjuntohabitacional destinado a estimular interaçãoentre vizinhos. A privacidade é valorizada erespeitada, porém os moradores comparti-lham espaços-chave, incluindo refeitório,jardins e espaços recreativos comunitári-os. Iniciadas nos anos 60, mais de 200comunidades de co-habitação estabelece-ram-se na Dinamarca. O movimento dis-seminou-se para a Holanda, Escandinávia,Austrália, Canadá e Estados Unidos, onde50 novos grupos de co-habitação são im-plantados a cada ano (embora mais da me-tade destes não sobrevivam para ver umacomunidade estabelecida, devido aos for-tes desafios envolvidos, inclusive na ob-tenção de licenças e financiamento, comotambém na construção da comunidade).31

Numa comunidade de co-habitação, asresidências freqüentemente compartilhamparedes com lares vizinhos e estão agrupa-das em torno de um pátio ou passarela. Veí-culos estão restritos ao perímetro da comu-nidade. Esse desenho significa que essas co-munidades consomem menos energia e me-nos materiais do que bairros cheios de resi-dências particulares. Um estudo de 18 co-munidades nos Estados Unidos, em meadosdos anos 90, constatou que, em comparaçãoao período anterior à mudança para co-habi-tações, seus membros possuíam 4% menosveículos, 25% menos lavadoras e secadorase 75% menos cortadores de grama. O espa-ço médio por domicílio nas 18 comunidades– incluindo a parcela de área comum de cadaunidade – foi de aproximadamente 130 m2,dois terços do domicílio médio nos EstadosUnidos em meados dos anos 90. O

compartilhamento de porões para serviçosmecânicos e entradas comuns reduzem oespaço com pouco sacrifício da comodida-de. E a construção de conjuntos agrupadospermite o compartilhamento de pátios semgrande perda de privacidade. Como conse-qüência dessas características, a comunida-de média de co-habitação no estudo utilizouapenas metade da área, por residência, queum empreendimento imobiliário suburbanoconvencional nos Estados Unidos.32

Mas talvez a maior contribuição das co-munidades de co-habitação para uma altaqualidade de vida seja os laços sociais quecriam. As comunidades são auto-adminis-tradas, encorajando interações ecompartilhamento. As crianças têm muitosadultos observando seu lazer, como há tam-bém uma abundância de colegas e pessoaspara cuidar dos bebês. A maioria das comu-nidades oferece duas ou mais refeições co-munitárias por semana, com uma média decomparecimento de 58% das famílias. Con-trastando com as refeições “rápidas” ofere-cidas por empresas de alimentação, que ca-racteristicamente servem alimentos proces-sados e embalados, como purê de batata ins-tantâneo ou pizza congelada, a abordagemdas co-habitações para as refeições comu-nitárias poupa tempo sem sacrificar a quali-dade da comida. Na Comunidade Co-Habitacional Nomad, no Colorado, porexemplo, onde há duas refeições comunitá-rias por semana, os moradores gastam 2,5–3 horas a cada 5 a 6 semanas ajudando nacozinha e na limpeza. Comparado com opreparo de uma refeição familiar por dia, essecompartilhamento ocasional de esforço li-bera até 9 horas de trabalho para cada famí-lia durante seis semanas.33

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Em muitos países em desenvolvimento,o consumo coletivo é também mais viávelem comunidades com uma forte base soci-al. (Vide Quadro 8-1.) Um estudo do BancoMundial de 64 vilarejos em Rajasthan, Ín-dia, por exemplo, comprovou que a conser-vação e o desenvolvimento de baciashidrográficas foram mais bem-sucedidos emvilarejos que possuíam fortes níveis de con-

fiança, redes informais e solidariedade do queem vilarejos com índices menores dessesbens sociais. E em Bangladesh, programasde coletas cooperativas de lixo (onde as pre-feituras não os forneciam) foram realizadoscom sucesso em áreas onde certas formasde capital social – nesse caso, normas dereciprocidade e compartilhamento – erambem desenvolvidas.34

QUADRO 8-1. A EXPERIÊNCIA DE GAVIOTAS: PRIORIZANDO O BEM-ESTAR

Gaviotas é um vilarejo com 200 habitantes nazona rural da Colômbia, com uma reputaçãomundial de desenvolvimento inovador. Suaabordagem é regida por uma fortepreocupação quanto à qualidade de vida dovilarejo e ao meio ambiente natural. Seushabitantes asseguram atendimento àsnecessidades básicas: os moradores nadapagam pelas refeições, tratamento médico,educação e habitação. Todos os adultos têmemprego, ou nos vários empreendimentoslocais que fabricam coletores solares emoinhos de vento, na agricultura orgânica ehidropônica ou em iniciativas florestais.

As necessidades sociais também sãotratadas, através do ritmo das atividadescotidianas. Os membros trabalham juntos nosnegócios do vilarejo e fazem suas refeiçõesregularmente no grande refeitório, mesmo quecada residência tenha uma cozinha. Música eoutros eventos culturais fazem parte da vidanormal do vilarejo. Com o sustento enecessidades sociais plenamente atendidas, aatmosfera é de paz: a comunidade nunca teveforça policial, cadeia ou prefeitura em todos osseus 33 anos de história. Normas comunitáriassão estabelecidas pelos membros e impostasatravés de pressão social.

Gaviotas é conhecida mundialmente porsuas muitas invenções, incluindo uma bombad’água em que as crianças do vilarejo operambrincando de gangorra, moinhos de ventoprojetados para as brisas suaves das planícies

colombianas, um aquecedor de água solarpressurizado e uma moenda de mandioca apedal. As tecnologias enfatizam a qualidade devida desses aldeões, como também de outrascomunidades interessadas. Como questão deprincípio – e em linha com seu interesseprincipal em melhorar a qualidade de vida e nãoapenas em gerar riqueza – os aldeões nãopatentearam suas invenções, que são livrementedisponibilizadas. Milhares de moinhos devento foram instalados por técnicos deGaviotas por toda a Colômbia, tendo o desenhosido copiado em toda a América Latina.

Para os aldeões, bem-estar também significapisar leve no meio ambiente. Gaviotas é hojeauto-suficiente em eletricidade, fazendo um usoamplo de energia solar e eólica e do metanoproduzido do esterco do gado. Seu antigohospital com ar-condicionado e aquecimentosolar (hoje um centro de purificação de água) foiconsiderado por uma revista de arquiteturajaponesa como um dos 40 prédios maisimportantes do mundo. Sua agricultura éorgânica. E é o centro do maior projeto dereflorestamento da Colômbia, tendo convertidodezenas de milhares de hectares de caatinga emfloresta, da qual a população extrai e vendeapenas resina, mesmo sabendo que a madeiraseria mais lucrativa. Os aldeões acreditam queuma floresta sadia que gera recursos modestos émelhor do que uma mata exaurida, queproporcione um benefício temporário._________________________________________FONTE: vide nota final 34.

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Criando Infra-Estruturasde Bem-Estar

Quando indivíduos ou comunidades bus-cam incrementar sua qualidade de vida,podem ficar presos a um conjunto de op-ções disponíveis a eles. Produtos orgâni-cos, garrafas reutilizáveis de bebida outransportes públicos obviamente não po-dem ser comprados se não estiverem àvenda. Regras e políticas que determinamo conjunto de opções disponíveis, tais comosubsídios ao petróleo, que tornam a ener-gia de combustíveis fósseis mais barata quea eólica, leis de uso do solo, que encorajamum zoneamento espaçado em loteamentosimobiliários, ou códigos de construção, quecontestam o uso de materiais reciclados,formam essencialmente a “infra-estruturado consumo”. A criação de uma melhorqualidade de vida requer que todos nós –indivíduos e comunidades – ajudemos acriar novas “infra-estruturas de bem-estar”políticas, físicas e culturais.35

Alguns governos estão começando oexercer sua autoridade ajudando a criar umambiente político conducente ao bem-es-tar. A mais básica de suas iniciativas é ava-liar adequadamente a saúde comunitária ousocial, como a cidade de Santa Mônica estáfazendo, através de um Plano Urbano Sus-tentável. Implantado em 1994, o plano visadiminuir o consumo comunitário global,especialmente o uso de materiais e recur-sos não-locais, não-renováveis, não-reciclados e não-recicláveis. Busca tambémdesenvolver uma diversidade de opções detransportes, a fim de minimizar o uso demateriais perigosos ou tóxicos, para pre-servar espaços abertos e encorajar a parti-

cipação comunitária na tomada de decisões.O plano utiliza 66 indicadores para medirseu desenvolvimento, tais como geração deresíduos sólidos, custo de vida, percentualde ruas principais com ciclovias, percentualde cobertura arbórea, comparecimento elei-toral, parcela de moradores voluntários,emissões de gases de estufa, número dedesabrigados e índice de crimes. Muitas dasmetas iniciais de Santa Mônica foram atin-gidas ou ultrapassadas, de acordo com aPrefeitura, e objetivos mais ambiciosos fo-ram estabelecidos para 2010.36

Em âmbito nacional, o instrumento pa-drão utilizado para medir a saúde social, oPIB, é muito restrito para servir comoreferencial de bem-estar, pois soma todasas transações econômicas independentemen-te de sua contribuição à qualidade de vida.Também ignora parcelas inteiras de ativida-des extramercado que contribuem para obem-estar individual e comunitário, comocuidados a crianças prestados por um dospais que ficam em casa. Durante os anos90, pesquisadores empenharam-se em de-senvolver medidas alternativas, como a Pe-gada Ecológica, o Indicador do ProgressoGenuíno, o Índice de Desenvolvimento Hu-mano e o Índice Planeta Vivo, a fim de com-plementar a perspectiva do PIB. (Vide tam-bém Capítulos 1 e 7.) Uma dessas iniciati-vas, o Índice de Bem-Estar, desenvolvidopelo consultor de sustentabilidade RobertPrescott-Allen, destaca-se por suaabrangência. (Vide Quadro 8-2.)37

Além de recalibrar a medida da saúdeecológica, os governos estão utilizando seusextensos poderes legislativos e normativospara determinar a forma como as pessoasconsomem e os valores que uma socieda-de internaliza em relação ao consumo. A

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eliminação de subsídios perversos e a ado-ção de impostos sobre poluição, por exem-plo, já se mostraram úteis na criação deum meio ambiente mais limpo e uma me-lhor qualidade de vida em muitos paíseseuropeus. (Vide também Capítulo 5.)

E muitos governos na Europa estão aju-dando os trabalhadores e suas famílias atirarem um tempo extra a cada semana.Bélgica, Dinamarca, França, Holanda eNoruega hoje têm jornadas semanais de 35a 38 horas, que, além de liberar tempo va-lioso para os trabalhadores, freqüentementeajudam a criar novos empregos. A Holandatem duas abordagens criativas na reduçãoda jornada de trabalho. Os empregadoresconcedem os mesmos benefícios e opor-tunidades de promoção tanto a trabalhado-res em meio turno quanto àqueles em tem-po integral, tornando o trabalho em meioturno atraente para muitos. E o governoencoraja pais com crianças pequenas a tra-balharem o equivalente a 1,5 emprego paraos dois, liberando mais tempo para atenderà demanda maior de tempo no cuidado decrianças pequenas. Além das reformas à jor-nada semanal de trabalho, muitos paísesconcedem férias familiares pagas para paiscom o primeiro filho. A Suécia, por exem-plo, concede 15 meses de férias por crian-ça, pagando até 80% do salário, compara-do com as 12 semanas de férias sem re-muneração que são oferecidas nos Esta-dos Unidos.38

Intervenções governamentais comoessas criam um ambiente familiar menosestressante. A Finlândia, por exemplo,possui políticas muito fortes de apoio aoemprego de mães, inclusive férias remu-neradas, isenção fiscal e recursos públi-cos para cuidados infantis e outras medi-das. (Em um estudo, a Finlândia foi a pri-meira entre 14 nações na concessão des-ses benefícios.) Um estudo em 2001 dobenefício psicológico dessas medidas paraos pais constatou que, contrariamente aos

QUADRO 8-2. MEDINDO O BEM-ESTAR

O Índice de Bem-Estar utiliza 87indicadores para medir o bem-estarhumano e ecológico – desde a expectativade vida e taxa de matrículas escolares até aextensão do desmatamento e níveis deemissões de carbono. Os 87 indicadorespodem ajudar os países a identificarem asáreas onde sua qualidade de vida estejasob impacto. Os valores da variedade deindicadores são padronizados e somadosnuma pontuação única, para facilitar acomparação em 180 países.

Os resultados são reveladores: cerca dedois terços da população mundial vivemem países com pontuação fraca ou baixapara o bem-estar humano. Apenas aNoruega, Dinamarca e Finlândia figuramcomo as melhores nos cinco níveis declassificação. Enquanto isso, países comuma pontuação ambiental fraca ou baixacobrem quase a metade da superfícieterrestre. E nenhum país recebeu uma boaclassificação ambiental.

As medidas separadas de bem-estarhumano e ambiental do Índice ajudam acristalizar um objetivo de desenvolvimentoideal: melhorar a vida das pessoas com menorimpacto possível ao meio ambiente.Realmente, o Índice revela que o atendimentoàs necessidades das pessoas pode serrealizado com uma variedade de custosambientais. A Holanda e Suécia têm,aproximadamente, a mesma pontuação debem-estar humano, porém a Holanda estámuito baixa em saúde ambiental. Isso sugereque a forma como uma nação atinge seusobjetivos de desenvolvimento é tãoimportante como se os atinge._________________________________________FONTE: vide nota final 37.

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Estados Unidos, onde a paternidade tendea ser associada a fraco bem-estar psico-lógico, devido ao estresse envolvido e fal-ta de apoio familiar, a paternidade na Fin-lândia correlacionou-se de forma neutraou positiva com o bem-estar psicológico.Para os pais, os resultados foram forte-mente positivos, mas para as mães umpouco menos, indicando que o apoio paraelas poderia ser reforçado.39

Atingir a clareza sobre a importância daprestação de serviços públicos é fundamen-tal para mudar a infra-estrutura jurídica epolítica do bem-estar. A grande priorizaçãodo consumo privado em muitos países nasúltimas décadas tem freqüentemente dadomá reputação aos serviços públicos. Porémas sociedades pagam um preço social quan-do o consumo privado é perseguido às cus-tas de investimentos públicos. Um relatóriode 2003 pela Fabian Society, no Reino Uni-do, demonstra isso. A privatização de esco-las públicas, observou o relatório, pode re-sultar no fato de as melhores escolas atraí-rem os melhores estudantes, enquanto aspiores escolas recebem uma parcela despro-porcional de casos disciplinares. Transpor-te de ônibus privatizado pode deixar rotasnão-lucrativas sem serviço e as rotas me-lhores superexploradas, forçando mais pes-soas a utilizarem seus automóveis, comoocorreu no Reino Unido, quando serviçoslocais foram privatizados.40

Naturalmente, decidir o que deve serfornecido publicamente é um delicado pro-blema político, mas um em que o públicopode e deve estar envolvido. Um exemploinspirador do envolvimento público no es-tabelecimento de prioridades para os recur-sos públicos vem de Porto Alegre, no Bra-sil. As autoridades locais aplicaram um pro-

cesso de “orçamento participativo” desde1989, envolvendo os cidadãos diretamentenas decisões de alocação do orçamentomunicipal. O processo gerou maior trans-parência e responsabilidade governamen-tal, redução da parcela da receita urbanaconsumida pela folha de pagamento e umaredução no percentual de contratos adjudi-cados de forma paternalista. Também le-vou a aumentos no volume de dinheiro gas-to em educação, serviços básicos e infra-estrutura urbana – iniciativas que melhora-ram a qualidade de vida dos seus habitan-tes. Além disso, o processo mobilizou maispessoas a cada ano, com 40.000 dos 1,3milhão de habitantes participando do pro-cesso orçamentário de 1999. A maioria en-volve-se comparecendo a reuniões de bair-ro, e assim o processo ajudou a aumentaro envolvimento comunitário, permitiu osurgimento de novos líderes e capacitoualgumas das comunidades mais pobres dePorto Alegre. O orçamento participativo jáse espalhou para 140 comunidades – 2,5%dos municípios brasileiros.41

Atenção para o projeto de infra-estru-tura física também é crucial para a melhoriada qualidade de vida. Residências suburba-nas centradas no automóvel, por exemplo,têm sido muito criticadas, por enfraquece-rem a coesão comunitária, devido, em par-te, ao tempo necessário para o deslocamen-to para o trabalho. O cientista social RobertPutnam observou que cada 10 minutosadicionais diários está associado a umdeclínio de 10% no envolvimento em ques-tões comunitárias. Com o americano adul-to comum gastando hoje 72 minutos pordia atrás do volante do carro, quase sem-pre sozinho, a coesão comunitária só pode

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sofrer. Em 2003, loteamentos suburbanosexpandidos também foram criticados porseus efeitos adversos à saúde. Um estudonos Estados Unidos, com mais de 200.000pessoas em 448 condados, constatou queaqueles que viviam em comunidades su-burbanas de baixa densidade gastavammenos tempo andando e pesavam 2,7 qui-los mais, em média, do que aqueles queresidiam em áreas densamente habitadas.Constatou-se também que os moradoressuburbanos tinham a mesma propensão àpressão alta que os fumantes.42

Enquanto isso, projetos urbanos podemrepelir – ou atrair ciclistas. Pesquisas reali-zadas nos Estados Unidos indicam que umadas razões principais dada pelos america-nos por não andarem de bicicleta é queconsideram o ciclismo inseguro. E é. Me-dido por quilômetro percorrido, o ciclismonos Estados Unidos é mais perigoso do quequalquer outro meio de transporte. Toda-via, a taxa de acidentes com ciclistas naHolanda e Alemanha é apenas um quartoda dos Estados Unidos, principalmente por-que essas nações investem em ciclovias,semáforos que priorizam ciclistas e outrosequipamentos que tornam o ciclismo se-guro. A Holanda duplicou a extensão de suamalha de ciclovias nos últimos 20 anos e aAlemanha triplicou sua malha.43

Quando são bem planejadas, as cidadespodem ser locais atraentes para as pessoaspassarem seu tempo, encorajando maiorinteração cívica. Ambos os fatores tendema incrementar a qualidade de vida. Ao con-verter ruas em calçadões, misturando habi-tações com lojas, criando praças e parquese tomando outras medidas, os centros ur-banos podem ser locais estimulantes. Em

Copenhague, por exemplo, cafés ao ar li-vre, praças públicas e atores de rua atraemo público no verão, enquanto ringues depatinação, bancos aquecidos e aquecedoresa gás nas esquinas tornam o invernoaprazível. E a cidade esforçou-se para faci-litar o ciclismo, não só oferecendo ciclovias,mas também disponibilizando bicicletas me-diante um depósito modesto, reembolsadoquando a bicicleta é devolvida.44

Essas inovações de planejamentoocorrem quando uma cidade leva a sérioa priorização da qualidade de vida. Umademonstração dessa seriedade vem deAustin, no Texas, que aplicou um pro-grama de incentivo ao conhecimentocomo Matriz de Critérios de Crescimen-to Inteligente, para controlar onde e comoo crescimento ocorre e realçar a qualida-de de vida. A cidade utilizou uma série decritérios para pontuar projetos imobiliá-rios, com projetos de pontuação alta ha-bilitando-se a isenções de impostos. Oanalista Guy Dauncey descreve os crité-rios de incentivo desta forma:

Pode-se obter maior número depontos para um local no centro epara um local a um quarteirão deum ponto de ônibus, ou dois quar-teirões de uma estação de metrô.Há pontos para recuos menores,varandas, becos, ruas estreitas eorientação comunitária. Há pon-tos para uso misto residencial, co-mercial e varejo, para unidadesresidenciais acima de pontos co-merciais e pelo encorajamento douso da rua por pedestres. A Ma-triz também concede pontos porfacilitar ciclismo, redução de trân-

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sito, vias verdes e habitação aces-sível, utilizar empreiteiras e arqui-tetos locais, eficiência hídrica eenergética, incorporar um merca-do e outros estabelecimentos devarejo, preservar o patrimôniohistórico e reutilizar prédios exis-tentes. Há pontos por paisagismo,planejamento viário, por ser con-sistente com projetos locais e porparticipação e apoio locais.45

Algumas empresas também estão co-meçando a reconhecer que podem tornarsua própria infra-estrutura física maisaprazível para o bem-estar dos funcio-nários. Na nova sede internacional daSprint, em Kansas, uma empresa de tele-comunicações, os carros devem estacio-nar em garagens na extremidade docampus corporativo, forçando os funci-onários a andarem uma certa distânciaaté o trabalho. Os prédios possuem ele-vadores lentos, o que encoraja o uso dasescadas. E a área de alimentação no com-plexo está localizada fora dos escritóri-os, em vez de estarem convenientementeno meio deles, para que os funcionáriosgastem alguma energia para almoçarem.Esse projeto inovador reflete um enten-dimento de que promoção do bem-estarnem sempre é sinônimo de maximizaçãode conforto ou conveniência.46

Novas infra-estruturas políticas e físi-cas de consumo estão sendo comple-mentadas por um novo e florescentearcabouço cultural, particularmente napromoção de uma ética de consumo parao bem-estar. Nesse sentido, as pessoasestão cada vez mais ativas na exigênciade um melhor padrão ético na publicida-

de. Na Suécia, toda a publicidade é proi-bida nas programações direcionadas a cri-anças, um grupo altamente influenciável.E nos Estados Unidos anúncios de cigar-ro foram proibidos na televisão há déca-das. A União Européia recentemente am-pliou sua proibição de propaganda de ci-garro na televisão para cobrir outra mídia,incluindo jornais, revistas, rádio e a Internet,até 2005, como também eventos esportivosaté 2006. O estabelecimento de limites napublicidade é um tema sensível, em virtudedas preocupações com a liberdade de ex-pressão, porém esses exemplos demonstramque os países podem atingir um equilíbriosadio entre garantia da liberdade de expres-são e saúde pública.47

Enquanto isso, a própria publicidade estásendo utilizada como um instrumento paracombater o alto número de mensagens deconsumo que bombardeia os consumido-res. O grupo canadense Adbusters patro-cina “descomerciais” de televisão, que en-corajam os telespectadores a reduzirem oconsumo, deixarem seus carros na gara-gem ou desligarem seus televisores. Algunsgovernos estão colocando publicidade ouanúncios de serviço público na televisão eoutros veículos para encorajar o consumomais sustentável, como fez o governo daTailândia, através de comerciais humorís-ticos na televisão pedindo aos consumido-res que gastem menos energia e água. OPrograma das Nações Unidas para o MeioAmbiente (PNUMA) adotou uma aborda-gem diferente, trabalhando com anuncian-tes no desenvolvimento de propaganda queencoraje as pessoas a utilizar produtos sus-tentáveis. (Vide Quadro 8-3.)48

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QUADRO 8-3. ENCORAJANDO ANUNCIANTES A PROMOVER A SUSTENTABILIDADE

O marketing é uma ferramenta poderosa, queestá freqüentemente implicada no estímulo aoconsumo – e, portanto, em minar os esforçosde se construir um mundo sustentável. Porémo Programa das Nações Unidas para o MeioAmbiente está tentando transformar osmarqueteiros em aliados, recrutando-os parapromoverem a sustentabilidade. Em 1999, oFórum do PNUMA sobre Publicidade eComunicações foi estabelecido para criar umaconscientização de “consumo sustentável” –um consumo que melhore a qualidade de vidaao mesmo tempo em que minimize asdesigualdades sociais e ecológicas – eencorajar anunciantes e marqueteiros apromoverem-na.

As principais associações empresariaisdentro da indústria da publicidade emarketing responderam através dodesenvolvimento de publicações pró-sustentabilidade, em colaboração com oPNUMA, e organizando sessões especiaissobre desenvolvimento sustentável nos seuscongressos internacionais. Por exemplo, aagência McCann-Ericson publicou,juntamente com o PNUMA, um folhetointitulado “Será que Sustentabilidade Vende?”

direcionado a empresas e profissionais demarketing, para convencê-los de que “longede deprimir vendas, os princípiossustentáveis poderão ser essenciais àproteção tanto da saúde da marca quanto dalucratividade futura”. Em parceria comSustentabilidade e o PNUMA, a AssociaçãoEuropéia de Agências de Comunicaçõeselaborou um guia para as agências depublicidade descrevendo o mercadointernacional crescente de consumosustentável. E a Associação Mundial deProfissionais de Pesquisa solicitou umlevantamento das reações do consumidor àsquestões de sustentabilidade.

Ademais, o PNUMA está colaborando comsetores industriais específicos – notadamenteo automotivo, turístico e varejista – paraajudar a desenvolver estratégias inovadoras demarketing que avancem na promoção deopções sustentáveis.

– Solange Montillaud-Joyel,Programa das Nações Unidas para o

Meio Ambiente_____________________________________________FONTE: vide nota final 48.

A educação também é importante nareformulação cultural para uma melhorqualidade de vida. Austrália e Canadá hojeinstituíram uma disciplina de mídia no seucurrículo escolar. Esses programas ajudama conscientizar os estudantes sobre comoa mídia e a publicidade determinam seusvalores e cultura. E os estudantes apren-dem a diferenciar entre a realidade e ahipérbole marqueteira – seja em comerci-ais ou incorporada na programação. A edu-cação do consumo, particularmente, podeser um corretivo necessário às proclama-

ções incessantes da publicidade sobre odesejo de consumo. No Brasil, o grupo não-governamental Instituto Akatu vem traba-lhando com escolas, empresas e escotei-ros para educar os participantes a “consu-mir com consciência”. A organização utili-za uma variedade de instrumentos – desdea Internet até panfletos, gibis e jogos – paraensinar as conseqüências ambientais e so-ciais do consumo e para informar as pes-soas sobre como pressionar governos pormudanças de política que ajudarão a pro-mover um consumo consciente.49

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Conquistando a Boa Vida

Escondida por trás da crescente insatisfa-ção com a sociedade de consumo está umapergunta simples: para que serve uma eco-nomia? As respostas tradicionais, incluin-do prosperidade, empregos e ampliação deoportunidades, parecem bastante lógicas –até que se tornem disfuncionais. Quando aprosperidade nos dá excesso de peso, otrabalho excessivo nos deixa exaustos e umconceito “de poder ter tudo” nos leva anegligenciar a família e os amigos, come-çamos a questionar mais profundamente adireção de nossas vidas, como também osistema que nos guia nessa direção. Os si-nais emergentes em algumas nações indus-trializadas – e também em alguns paísesem desenvolvimento – sugerem que mui-tos de nós estão querendo mais da vida doque uma casa maior e um carro novo. Aspessoas anseiam por algo mais profundo:vidas mais felizes, dignas e significativas –numa palavra, bem-estar. E esperam quesuas economias sejam um instrumento paraesse fim, e não um obstáculo.

am as pessoas de forma construtiva eprazerosa – para concertos públicos, festi-vais ou simplesmente interações informaisviabilizadas em mercados ao ar livre. Eco-nomias teriam um caráter local, para queprodutos, talentos e bens característicos deuma região fossem preferidos às importa-ções de locais distantes. Ao reforçar a teiade relações entre agricultor e cidadão ur-bano, artesão e cliente, produtor e consu-midor, as economias locais adquirem umcaráter de “escala humana” que economi-as distantes freqüentemente carecem.

Cultivar relacionamentos requer tempoe pode envolver o confisco de muitos dos“ladrões de tempo” da vida moderna, acomeçar com o trabalho. A experiência devários países europeus demonstrou que asemana de 40 horas, claramente, não é sa-crossanta e, portanto, as pessoas podemchegar em casa mais cedo ou usufruíremfins de semana mais longos para ficar comseus filhos ou amigos. E habitações que nãosejam isoladas em subúrbios espalhadospodem evitar as viagens diárias, que rou-bam muitas pessoas de quantidades impres-sionantes de tempo: um percurso de maisde uma hora por dia, usual para muitossuburbanos americanos, significa que umtrabalhador gasta o equivalente a seis se-manas de trabalho no trânsito anualmente.O foco da sociedade em instrumentos pou-padores de tempo, cuja adoção só tem le-vado a vidas ainda mais frenéticas, precisaser substituído por estilos de vida poupa-dores de tempo, mais simples.50

Uma sociedade de bem-estar poderáproporcionar aos consumidores uma vari-edade suficiente de escolhas genuínas, emvez de uma gama de produtos praticamen-

Todos precisarão tornar-seexímios em lidar com umaquestão-chave: quanto é demais?

As sociedades com alta qualidade devida são centradas nas pessoas, com aten-ção adequada à promoção de interaçõesentre seres humanos. Áreas urbanas pla-nejadas com foco em pedestres, lazer eexpressão humana, por exemplo, reuniri-

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te idênticos. Empresas seriam encorajadas,através de incentivos econômicos, a for-necer o que os consumidores realmenteprocuram – transporte confiável, não ne-cessariamente um carro; ou produtos sa-borosos, sazonais e locais, em vez de fru-tas e legumes transportados de outro país;ou relacionamentos fortes com vizinhos emlugar de uma casa grande com extenso ter-reno. Escolhas seriam redefinidas, para sig-nificarem opções que melhorem a qualida-de de vida, em vez de opções entre produ-tos ou serviços individuais.

Para os indivíduos, a escolha genuínaprovavelmente incluiria a escolha de nãoconsumir. Todos precisarão tornar-se exí-mios em lidar com uma questão-chave:quanto é demais? As respostas serão dife-rentes de pessoa a pessoa, porém uma di-retriz que vale a pena considerar é uma dofilósofo chinês Lau Tzu: “Saber quando setem o suficiente é ser rico”. Consumidoresque abraçam essa sabedoria antiga dão umgrande passo em direção à fuga da tiraniada comparação social e marketing quemove grande parte do consumo moderno.51

As pessoas numa sociedade de bem-es-tar também desenvolveriam relacionamen-tos íntimos com o meio ambiente natural.Reconheceriam as árvores em seus parquese as flores em seus jardins com a mesmafacilidade com que identificam logomarcascorporativas. Entenderiam os fundamentosambientais de sua atividade econômica: deonde vem sua água, para onde vai seu lixo ese a energia que sua usina usa para gerareletricidade é carvão, nuclear ou renovável.Provavelmente gostariam de desenvolverprojetos em casa que os ajudassem a vivermais intimamente com a natureza – uma cis-

terna coletora de água da chuva, por exem-plo, ou um vasilhame de compostagem ouhorta. Em suma, aprenderiam a amar a na-tureza e a se tornar seus defensores. Comoo finado biólogo de Harvard, Stephen JayGould, disse: “Precisamos desenvolver umlaço emocional e espiritual com a natureza,pois não podemos lutar para salvar aquiloque não amamos”.52

Finalmente, uma sociedade focada nobem-estar asseguraria que todos nela ti-vessem acesso a alimentos sadios, águalimpa e saneamento, educação, tratamen-to de saúde e segurança física. É pratica-mente impossível imaginar uma socieda-de de bem-estar que não propicie as ne-cessidades básicas de uma pessoa. E, maisdo que isso, é inconcebível que uma soci-edade de bem-estar satisfaça-se com seupróprio sucesso quando outros, além dosseus limites, sofrem em larga escala. Re-almente, aquelas sociedades que pontuamalto no Índice de Bem-Estar, especialmenteno norte da Europa, também possuem al-guns dos programas de ajuda externa maisgenerosos do mundo.53

Fazer a transição para uma sociedadede bem-estar será, sem dúvida, um desa-fio, dado o hábito das pessoas de coloca-rem o consumo no ápice dos valores soci-ais. Porém, qualquer movimento nessa di-reção começa com duas grandes vantagens.Primeiro, a família humana hoje tem umabase de conhecimento, tecnologia e espe-cialização que supera em muito tudo o quequalquer geração anterior tenha conheci-do. Ironicamente, essa base é o produto deum sistema econômico orientado para al-tos níveis de consumo. Mas nossas esco-lhas desenvolvimentistas do século XX,

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direcionadas para o consumo, independen-temente de quão mal-orientadas sejam, po-dem ser resgatadas agora, assegurando queo estoque moderno de conhecimento etecnologia seja investido no bem-estar, enão na continuação do acúmulo material.

Uma segunda vantagem é simples, po-rém poderosa: para muitas pessoas, umavida de bem-estar é preferível a uma vidade alto consumo. O ex-Primeiro-Ministroda Holanda Ruud Lubbers captou essa re-alidade fundamental quando observou que,nos seus esforços para construírem umaalta qualidade de vida, os holandeses tra-balham jornadas limitadas: “Preferimosassim. Desnecessário dizer que há maisespaço para todos aqueles aspectos im-portantes de nossas vidas que não sãoparte de nossos empregos, pelos quais nãosomos pagos e para os quais nunca há tem-po suficiente”. O desejo de uma melhor

qualidade de vida pode ser mais imperfei-to em outras sociedades industrializadas,mas os sinais estão lá: trabalhadores quedesejam mais tempo livre do que aumentode salário, compradores que escolhem ali-mentos orgânicos e outros produtos “éti-cos”, pessoas que buscam relações fami-liares mais fortes. Quando os componen-tes de uma sociedade de bem-estar sãodisponibilizados, a receptividade é, quasesempre, extraordinariamente positiva.54

Ao cultivar relacionamentos, facilitarescolhas sadias, aprender a viver em har-monia com a natureza e atender às neces-sidades básicas de todos, as sociedadespodem mudar de uma ênfase no consumopara uma ênfase no bem-estar. Isso pode-rá ser uma tamanha conquista no séculoXXI, como os tremendos avanços emoportunidade, conveniência e conforto fo-ram no século XX.