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IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2009
IV Mostra de Pesquisa da
Pós-Graduação PUCRS
Estado Democrático de Direito, Proporcionalidade e Políticas Públicas de Segurança na contemporaneidade
Betina da Silva Adami
¹ Mestranda em Direito pela PUCRS e bolsista da CAPES.
Prof. Dr. Ingo Sarlet (orientador)
Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado, PUCRS.
Resumo
Essa abordagem propõe-se a refletir acerca da interação entre a configuração do
Estado Democrático de Direito e as transformações sociais, econômicas e político-
institucionais que se operam na contemporaneidade, especialmente para verificar quais são os
reflexos gerados por esse contexto pelas ações estatais no campo da segurança pública. A
partir dessa perspectiva, propõe-se que a proporcionalidade seja parâmetro de aferição da
legitimação das ações do Estado. Busca-se uma abordagem aproximada à teleologia
axiológica constitucional, situada, por um lado, no contexto do respeito à vida, à liberdade e à
dignidade da pessoa humana e, por outro, nos valores da comunidade, colocando-se entre o
afastamento de uma intolerável “tolerância zero” e uma política criminal abolicionista.
Introdução
A conformação do Estado de Direito passa por inúmeros desafios na
contemporaneidade, especialmente impulsionados pela globalização, pelos níveis crescentes
de pobreza e pelas novas demandas por segurança, geradas em grande parte pela propalada
ameaça terrorista. Em que pese a dificuldade de definições e resultados precisos da fórmula
“Estado de Direito” o seu valor, por sua vez, constitui, em linhas gerais, “la eliminación de la
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arbitrariedad en el ámbito de la actividad estatal que afecta a los ciudadanos”, enquanto que a
sua direção é “la inversión de la relación entre poder y derecho que constituía la quintaesencia
del Machtsstaat y del Polizeistaat.”1 Esse valor que constitui a essência do Estado de Direito,
serve à proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.
Conseqüentemente, a crise por que passa o Estado de Direito é também crise da realização
dos direitos fundamentais e da dignidade humana.
O Estado de Direito passa a ter nova conformação, especialmente no
constitucionalismo do pós-guerra, colocando novas demandas ao Estado. Assim, se uma
primeira mudança institucional do Estado exprimiu-se em uma imbricação entre Estado e
Direito, partindo de uma afirmação do princípio da legalidade e, portanto, da onipotência do
legislador, uma nova realização chegou, neste último meio século, “com a subordinação da
própria lei, garantida por uma específica jurisdição de legitimidade, a uma lei superior: a
constituição, hierarquicamente supra-ordenada à legislação ordinária.”2 Mais do que apenas
constituir-se em limites para os atos do executivo e do judiciário, as Constituições colocam-se
como uma forma de realizar o Estado (os deveres e limites do Estado) pelo Direito,
estabelecendo diretivas e metas para a consecução dos seus objetivos.
O Estado Democrático de Direito, formação do Estado constitucional, assenta-se numa
perspectiva global de transformação da realidade, não se restringindo, como cabia ao Estado
Social, a “uma adaptação melhorada das condições sociais de existência.”3
Há de ser referida a diferença que irá conformar a diferenciação entre o Estado de
direito e o Estado Democrático e Direito. Nesse sentido, aponta-se, na esteira das proposições
de Perez-Luño4, para uma oposição entre a noção de liberdade como autonomia de inspiração
democrática, com um conceito de liberdade como não ingerência na esfera privada, de
inequívoco sentido liberal. Os novos parâmetros substantivos que permeiam a conformação
do Estado Democrático de Direito contemporâneo reintroduzem a consideração dos fins e
valores que a sociedade e o Estado devem promover.
As transformações sociais, econômicas e político-institucionais operadas na
contemporaneidade impulsionam a transposição da análise tradicional das construções da
1 ZAGREBELSKI, Gustavo. El derecho dúctil. Torino: Giulio Einaudi Editore: 1992, p. 21. Os termos Machtsstaat e Polizeistaat referem-se ao Estado de Força de Estado de Polícia, respectivamente, nos termos da obra. 2 FERRAJOLI, Luigi. O Estado de Direito entre o passado e o futuro. In ZOLO, Danilo; COSTA, Pietro. O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 424. 3 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. (...) p. 93.
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modernidade. As ponderações daí decorrentes têm, subseqüentemente, projeções sobre o
comportamento do Estado, mormente no que toca ao Estado Democrático de Direito, objeto
precípuo desta análise.
Nesse contexto, pode-se apontar para uma alteração das relações travadas no âmbito
do espaço público. A revolução da tecnologia (também revolução da comunicação) implicou
que a mensagem adquirisse um conteúdo bastante mais importante do que o que efetivamente
se faz. O cenário político, nesse contexto, tornou-se um espetáculo, como aduz Zaffaroni, no
sentido de que os políticos poderiam promover uma alteração na linguagem, uma alteração na
forma de se comunicar, mas continuam falando como se tivessem poder para tomar decisões,
como se pudessem mudar essa realidade, perdendo a sua dimensão pedagógica. A sociedade
se afasta gradativamente e isso se torna também um grave perigo para a democracia.5 A
desconstituição de espaços públicos não forma as chances para que os valores sejam debatidos
e negociados, resultando que as decisões acabam sendo decretadas hierarquicamente.
Vale fazer referência, ainda, para o sentimento de insegurança generalizada, que é
especialmente potencializado pela pauta recorrente dos meios de comunicação – a violência.
Há uma grande demanda midiática e social – esta última impulsionada também pelos próprios
meios de comunicação – por soluções para o problema. A “perenidade” do sentimento e da
violência faz prosperar atualmente a fratura operada entre Estado e sociedade. Como resposta,
surgem “soluções” imediatizadas, que na verdade são ilusões, e não soluções. Nesse contexto,
apresenta-se tendencialmente crescente uma autonomização das polícias, um livre acesso ao
poder de tomada de decisões, reclamado pelas polícias para conseguir resultados mais
eficazes. Abre-se caminho a um autoritarismo sutil, produzido, como nos diz Zaffaroni,
“quase por inércia”.6
Vê-se, nesse contexto, o crescimento de manifestações em favor da pena de morte, de
ideologias que pregam a redução de garantias fundamentais (como o devido processo legal), o
apoio à redução da diminuição da maioridade penal e ao agravamento de penas corporais e a
expansão de modelos como o de “tolerância zero”, bem como o (re)surgimento de teorizações
4 LUÑO, Antonio Henrique Perez. Derechos humanos, estado de derecho y constitucion. Madrid/Espanha: Rigorma, 1999, p. 214. 5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalização, Sistema Penal e Ameaças do Estado Democrático de Direito. In KARAM, Maria Lúcia (org.) Globalização, Sistema Penal e Ameaças do Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumens Júris, 2005, p. 23-24. 6 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalização, Sistema Penal e Ameaças do Estado Democrático de Direito. In KARAM, Maria Lúcia (org.) Globalização, Sistema Penal e Ameaças do Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumens Júris, 2005, p. 26.
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que retomam a diferenciação schmittiana7 entre “amigo” e “inimigo”, modernamente
difundidas por Günther Jakobs.
Há mais de décadas Norberto Bobbio8 já anunciava que “o problema fundamental em
relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.
Trata-se de um problema não filosófico, mas político”. As circunstâncias sociais, econômicas
e políticas atuais podem representar ainda mais sérias violações ao Estado de Direito e à
democracia – pois violações sempre existiram, principalmente com os setores sociais mais
vulnerados. O que se propõe nesse contexto é a garantia de uma vinculação mínima dos
poderes públicos (como concepção orientada a um minimus ético).
A partir dessa perspectiva, na contemporaneidade torna-se importante realizar uma
afirmação do Estado Democrático de Direito, especialmente nas democracias periféricas, tão
recentes e já tão fragilizadas, reafirmando a importância da realização e respeito aos direitos
do homem, especialmente, para os fins dessa análise, no que diz respeito à formulação e
implementação de políticas públicas de segurança. O princípio da proporcionalidade, nesse
contexto, atua como parâmetro para legitimação das ações estatais no campo da segurança
pública.
Metodologia Como método de abordagem, a respeito da pesquisa doutrinária, utilizamos o método
hipotético dedutivo. As leituras buscam construir conjecturas que passarão a ser analisadas
criticamente.
A importância da utilização desse método reside no fato de podermos tecer, a partir de
pesquisas já desenvolvidas e de outros dados empíricos, novas considerações sobre a
problemática exposta.
7 Os escritos do doutrinador alemão Carl Schmitt – que serviram para fundamentar posições do Nazismo alemão – passam a ser repensados hodiernamente, como nos mostra Ingo Sarlet: “O fascismo societal do qual fala Boaventura Santos, não apenas ressuscita a antiga máxima hobbesiana de que o homem é o lobo do homem (como condição legitimadora do exercício da autoridade estatal) mas reintroduz (ainda que de modo disfarçado) no discurso teórico de não poucos analistas sociais, políticos e jurídicos, a oposição amigo-inimigo cunhada por Carl Schmitt no seu conhecido e controverso ensaio sobre o conceito do político, abrindo as portas para a implementação de sistemas penais diferenciados, ao estilo de um direito penal do inimigo e da política criminal “sombria” da qual nos fala Hassemer, mediante a instauração de medidas criminais eminentemente policialescas, obedientes à lógica dos fins que justificam os meios, demonstrando o caráter regressivo dos movimentos de lei e ordem.” In SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência, p. 117.
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Resultados (ou Resultados e Discussão)
Os resultados aqui apresentados não deverão ser tomados como conclusivos, tanto no
que diz respeito com a sua extensão como no tocante ao seu conteúdo, já que são objeto de
pesquisa mais acurada que ainda está sendo desenvolvida.
• O contexto político-institucional é decisivo para o sentido que tomam as
políticas desenvolvidas no campo da segurança pública;
• Uma leitura constitucional da proporcionalidade coloca-se tanto a combater o
abolicionismo como uma política de “tolerância zero”;
• A polarização instaurada no seio da sociedade dá espaço a manipulação de toda
a sorte de medidas arbitrárias e erosivas do Estado Democrático de Direito,
muito embora apareçam sob o pretexto de serem necessárias à manutenção da
segurança social.
• A pressão exercida pela sociedade sobre o Poder Legislativo para assegurar
padrões toleráveis de segurança contra a criminalidade, acaba gerando políticas
que não têm maiores preocupações com os resultados concretos e, menos
ainda, com a legitimidade constitucional das opções tomadas.
• Hoje, como ainda um número enorme de pessoas em todo o mundo é excluída
do acesso aos direitos fundamentais prestacionais básicos (como alimentação
saudável, moradia, educação, trabalho), acaba que a repressão derivada de um
ampliado poder do Estado de punir, nega a liberdade, controla e disciplina para
manter a exclusão.
Conclusão
O principal desdobramento desta análise é a conclusão de que a aplicação do princípio
da proporcionalidade não diz respeito apenas à sua condição na esfera jurídica, mas depende
sobremaneira das condições políticas em que pode se desenvolver. Nesse contexto, as
8 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
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considerações aqui postas vêm no sentido de identificar e reforçar a vinculatividade do
princípio aos poderes encarregados de desenvolver políticas no campo da segurança pública,
justamente porque geram reflexos precisamente sobre o tipo de sociedade que pretendemos
construir – e cujas diretrizes podem e devem ser extraídas de uma abordagem
constitucionalmente adequada.
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