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    Revista Eletrnica dos Ps-Graduandos em Sociologia Poltica da UFSC

    Vol. 3 n. 2 (2), janeiro-julho/2007, p. 168-181ISSN 1806-5023

    EmTese, Vol. 3 n. 2 (2), janeiro-julho/2007, p. 168-181ISSN 1806-5023

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    Aspectos do poder e do cotidiano em Norbert Elias

    Patrcia Lins Gomes de Medeiros1

    Resumo

    O trabalho faz um levantamento de questes ligadas s relaes de poder observadas por Norbert Elias emduas de suas obras: Os estabelecidos e os outsiderse o primeiro volume de O processo civilizador. Explora-se a relao entre os estabelecidos e os civilizados, e entre os outsiders e os incivis. Dessa forma, o presentetexto estabelece alguns pontos de comparao entre os dois livros partindo dos conceitos de poder, cotidianoe excluso.

    Palavras-chave: poder, cotidiano, processo civilizador, estabelecidos, outsiders.

    Abstract

    The paper does a survey of questions about the power relations observed by Nobert Elias into two of his

    works: The established and the outsiders and the first volum ofThe civilized process. The joining betweenthe Elias established and the civilized, and the Elias outsiders and the uncivilized appear more intense thanit can look. So, the present text fixes some points of comparation between the two books, departing fromconcepts like power, quotidian and exclusion.

    Key-words: power, quotidian, civilized process, established, outsiders.

    Introduo

    Com uma popularidade tardia, o alemo Norbert Elias considerado hoje um dos

    grandes nomes nos estudos sobre as redes sociais. Ele foi tratado por um longo tempo

    como um autor marginal, mas teve sua obra redescoberta por tericos das cincias sociais

    1 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal daParaba, bolsista CAPES. Graduada em Comunicao Social Jornalismo pela UFPB.Integrante do Grupo de Pesquisa sobre o Cotidiano e o Jornalismo (GRUPECJ) Decom-

    UFPB. E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Vol. 3 n. 2 (2), janeiro-julho/2007, p. 168-181ISSN 1806-5023

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    da dcada de 1960. Desde ento, os escritos de Elias tm sido de fundamental importncia

    na compreenso das relaes entre os indivduos, e entre estes e a sociedade.

    O presente texto tem como pretenso levantar algumas questes no que diz respeito

    ao conceito de poder nas obras de Elias, como tambm a forma como ele analisa as

    relaes de poder que surgem entre os indivduos. Sero abordados aqui dois livros do

    autor: Os estabelecidos e os outsiderse o primeiro volume de O processo civilizador.

    O primeiro volume de O processo civilizadorfoi originalmente publicado em 1939

    e considerado um dos escritos mais famosos do autor, discorrendo sobre a alterao dos

    costumes ao longo da Idade Mdia e da Modernidade. Nele, Elias analisa de forma

    microscpica a gradual transformao nos padres europeus medievais de comportamento

    mesa, das funes corporais, de comportamento sexual, de violncia, na transio para a

    modernidade. No momento em que a nova aristocracia assume o poder durante os sculos

    XVI e XVII, surge a necessidade nos indivduos de se moldarem a um novo

    comportamento social, baseado na vergonha, no nojo e principalmente no autocontrole.

    Este o campo de surgimento dos manuais de etiqueta e de boas maneiras, escritos por

    Erasmo, Castiglione, Della Casa e outros autores, e que servem de base para Elias na

    anlise das mudanas comportamentais.

    J Os estabelecidos e os outiders teve sua primeira publicao em 1965. O livro

    fruto de um estudo realizado no fim da dcada de 1950 e incio da de 1960, em parceria

    com John L. Scotson, cujo objetivo inicial era estudar a delinqncia juvenil em uma

    pequena comunidade inglesa chamada Winston Parva. Porm, ao longo da pesquisa,

    questes maiores comearam a emergir, levando os autores a observarem tambm a

    maneira como um grupo de pessoas capaz de monopolizar as oportunidades de poder e

    utiliz-las para marginalizar e estigmatizar membros de outro grupo muito semelhante

    (ELIAS; SCOTSON, 2000, 13). Dessa forma, foram identificados um grupo estabelecido,

    residente no que os autores chamaram de zonas 1 e 2, e um grupo outsider, residente na

    zona 3.

    Alguns dos pontos fundamentais que pretendemos levantar aqui se referem a como

    se do as relaes de poder em diferentes sociedades e em diferentes momentos histricos;

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    ao fato de estas relaes se darem no cotidiano, nas tarefas do dia-a-dia dos indivduos; de

    que forma as estruturas sociais acabam se configurando em um grupo estabelecido e em

    um outro excludo (outsider, nas palavras do autor). Tentaremos abordar estas questes

    estabelecendo comparaes entre as duas obras citadas.

    O poder nas relaes sociais

    Antes de prosseguirmos no debate, faz-se necessrio um apanhado do que seria o

    conceito de poder para Norbert Elias. Segundo este autor, o poder um atributo das

    relaes sociais, um fruto do contato entre os indivduos e das suas aes a todo instante,

    sejam elas no campo poltico, econmico, cognitivo, etc. Dessa forma, Elias no toma o

    poder como algo que se pe na bolsa (GEBARA e LUCENA, 2005:01), ou seja, algo

    concreto que est nas mos de um grupo social relacionado principalmente ao controle de

    coisas, de objetos e de pessoas. Em Elias2, o conceito de poder deixou de ser uma

    substncia para se transformar numa relao entre duas ou mais pessoas e objetos naturais;

    assim, o poder um atributo destas relaes que se mantm num equilbrio instvel de

    foras (SALLAS, 2001: 219).

    Se o poder tem como fonte as relaes humanas mais variadas, ele tambm pode

    assumir diversas formas. Na linguagem eliasiana, isso quer dizer que h grupos ou

    indivduos que podem reter ou monopolizar aquilo que os outros necessitam, como por

    exemplo, comida, amor, segurana, conhecimento, etc. Portanto, quanto maior as

    necessidades desses ltimos, maior a proporo de poder que detm os primeiros(ELIAS, 1994 apudGEBARA: LUCENA, 2005: 01).

    Assim, o poder na teoria de Elias no se resume ao que ocorre entre senhores e

    servos, dominadores e dominados, mas pode ocorrer entre indivduos de uma mesma

    famlia, entre membros de bairros vizinhos; e pode se mostrar tambm nas mais variadas

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    Esta forma de ver as relaes de poder de Elias compartilhada, em alguns aspectos, por outros tericos como Michel Foucault e Max Weber.

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    situaes, como a maneira que os indivduos se portam mesa, a maneira de se vestir, e a

    aceitao (ou no) em atividades cotidianas de lazer.

    , pois, justamente esta forma diferente de ver as relaes de poder e

    conseqentemente de marginalizao e de excluso que pretendemos identificar nas

    obras O processo civilizadore Os estabelecidos e os outsiders.

    O processo civilizador

    A discusso sobre poder no primeiro volume de O processo civilizador pode ser

    iniciada com a anlise que Norbert Elias faz dos conceitos de courtoisie e civilit.

    Courtoisie um conceito que resumia a autoconscincia aristocrtica e o comportamento

    socialmente aceitvel na Idade Mdia (ELIAS, 1994:76). Ele se refere a um determinado

    lugar na sociedade da poca: a corte. Dessa forma, a cortesia era um cdigo especfico de

    comportamento, prprio dos crculos cortesos das grandes cortes feudais que, apesar de

    ter como objetivo inicial distinguir este grupo dos demais, acabou mais tarde sendo

    comparado s maneiras rudes dos camponeses.

    Este ltimo fato se deu porque, durante os sculos XVI e XVII, ocorreu o

    estabelecimento de uma nova aristocracia e uma transio na sociedade da poca,

    acompanhada de uma mudana comportamental de grandes propores. Aqui, a cortesia

    perde o seu status social e o que se passa a empregar so as boas maneiras dacivilit3.

    Como fruto dessa mudana, Elias aponta os inmeros tratados de boas maneiras

    que surgem nesta poca, em especial o de Erasmo de Rotterdam, De civilitate morumpuerilium ( Da civilidade em crianas). Este tratado uma das principais ferramentas de

    Elias para identificar a mudana gradativa que se deu no comportamento dos indivduos

    neste perodo histrico.

    3 Elias emprega, neste momento, o conceito francs de civilizao que, segundo ele, pode se referir a fatospolticos ou econmicos, religiosos ou tcnicos, morais e sociais. Elias ainda diferencia civilitdo conceitoalemo de Kultur, o qual alude basicamente a fatos intelectuais, artsticos e religiosos e apresenta a

    tendncia de traar uma ntida linha divisria entre fatos deste tipo, por um lado, e fatos polticos,econmicos e sociais, por outro (ELIAS, 1994: 24)

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    Escrito por volta de 1530, o manual de Erasmo marca bem o perodo de transio

    na transformao dos costumes. Nesta obra, Erasmo ainda pode falar sobre coisas,

    funes, modos de se comportar que um ou dois sculos depois so acompanhados de

    sentimentos de vergonha e embarao cuja meno ou exibio em pblico so proscritas

    pela sociedade (ELIAS, 1994:94).

    Porm, o que pretendemos destacar aqui a quem se destinava este tipo de manual

    de etiqueta. Sobre isso, Elias (1994: 110) escreve, ao se referir ao tratado escrito por

    Antoine de Courtin:

    O pblico visado muito claro. Enfatiza-se que os conselhos so apenaspara as honntes gens [grifo do autor], isto , de modo geral, gente declasse alta. Em primeiro lugar, o livro atende necessidade da nobrezaprovinciana de se informar sobre o comportamento na corte e, almdisso, de estrangeiros ilustres. Mas pode-se supor que o sucessoaprecivel deste livro resultou, entre outras coisas, do interessedespertado nos principais estratos burgueses.

    Essa necessidade de aes e de atitudes que caracterizassem uma determinada

    classe social se explica como uma maneira de auto-afirmao da aristocracia da poca. Em

    outras palavras, o que a classe alta queria era se distinguir das demais, fosse atravs da sua

    linguagem, das suas vestimentas ou das suas boas maneiras.

    Como reforo dessa teoria, Elias aponta o fato de que conceitos como aristocracia

    e nobre refletem a forma como os membros dos grupos mais poderosos se auto-

    representam:

    O sentido literal do termo aristocracia [...] tratava-se de um nome quea classe mais alta ateniense, composta de guerreiros que eram senhoresde escravos, aplicava ao tipo de relao de poder, que permitia a seugrupo assumir a posio dominante em Atenas. Mas, significavaliteralmente dominao dos melhores. At hoje, o termo nobrepreserva o duplo sentido de categoria social elevada e de atitude humanaaltamente valorizada, como na expresso gesto nobre (ELIAS;SCOTSON; SCOTSON, 2000, 19).

    Da mesma forma, os conceitos de cortesia e de civilizao j so excludentes,

    dividindo a sociedade entre os cortesos e os camponeses, e entre os civilizados e os

    incivis.

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    Tendo como fio condutor o tratado de Erasmo, Elias identifica o padro de hbitos

    e comportamento a que a sociedade, em uma dada poca, procurou acostumar o indivduo

    (ELIAS, 1994, 95). Sim, acostumar, uma vez que o argumento para a mudana de

    comportamento, como j pudemos notar, no cientfico, no religioso, nem se d por

    questes de higiene. Ele social; a mudana se deu porque a estrutura alterada da nova

    classe expe cada indivduo [...] s presses dos demais e do controle social (ELIAS,

    1994, 91).

    Ao passo que na sociedade medieval (principalmente a anterior ao sculo XVI), os

    indivduos eram totalmente desprovidos de controle social das suas aes mais cotidianas

    como comer, assuar, cuspir, dormir ou falar, aos poucos o sentimento de vergonha foi se

    apoderando das pessoas, e se passou a exercer um controle nas aes feitas na presena de

    seus pares. Nos sculos XVIII e XIX, os indivduos j tinham incorporado um

    autocontrole, que Elias associa ao que Freud chamou de superego. por isso que Elias

    (1994: 143) aponta que o sentimento de vergonha evidentemente uma funo social

    modelada segundo uma estrutura social.

    Assim, podemos afirmar que, por meio de um longo e lento processo, uma camada

    social fez uso de sua posio social para desenvolver uma transformao nos costumes, a

    qual levou o nome de civilizao. Esta transformao no ocorreu, certo, de forma

    consciente, mas foi fruto do desejo da aristocracia em se distinguir dos demais estratos da

    sociedade tomados como inferiores. O efeito desta tranformao foi o empoderamento

    daqueles que incorporaram todos os costumes nobres (os civilizados), mas tambm de

    excluso da grande maioria que no acompanhou as mudanas e continuou suja, rude,

    sem modos, incivilizada.

    Os estabelecidos e osoutsiders

    O prprio ttulo desta obra de Norbert Elias, escrita juntamente com John Scotson,

    j nos remete a uma situao clara onde se desenvolve uma relao de poder: os

    estabelecidos so os grupos ou indivduos que ocupam posies de prestgio e de poder em

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    uma comunidade, que se auto-percebem e que so reconhecidos como uma boa

    sociedade, mais poderosa e melhor, a partir de uma combinao singular de tradio,

    autoridade e influncia; os outsiders so justamente as pessoas que se encontram

    totalmente fora deste tipo de situao. (ELIAS e SCOTSON:2000).

    Sendo assim, superioridade social e moral, autopercepo e reconhecimento,

    pertencimento e excluso so elementos dessa dimenso da vida social que o par

    estabelecidos-outsiders ilumina exemplarmente: as relaes de poder (ibdem:08).

    partindo destes dois conceitos-chave que vamos perceber a configurao social que Elias

    demonstra neste seu livro.

    Os autores dividiram a comunidade de Winston Parva em trs zonas: a zona 1,

    composta por um bairro de classe mdia; a zona 2, a parte mais antiga da cidade, conhecida

    como a aldeia, na qual viviam famlias de operrios; e a zona 3, chamada de beco dos

    ratos, composta por famlias de imigrantes que chegaram ao local durante a primeira

    guerra mundial e formaram um loteamento. As zonas 1 e 2, formavam o grupo

    estabelecido do local, enquanto que a posio de outsiders era reservada aos habitantes da

    zona 3.

    Como exemplo da excluso a que os outsiders foram submetidos, o autor cita a

    diviso dos pubs, locais tpicos de lazer dos ingleses. Na cidade, havia dois bares desse

    tipo: A guia e A lebre e os ces. Com a chegada no loteamento, os londrinos, que

    estavam acostumados a se comportarem de uma forma mais descontrada, tentaram

    freqentar os dois locais, mas foram boicotados em A guia. O resultado foi a freqncia

    exclusiva no pub A lebre e os ces das pessoas do loteamento e A guia pelos aldees.

    Esta configurao estabelecidos-outsiders foi facilmente identificada por Elias e

    Scotson, mas o que chamou a ateno foi justamente como se deu a sua formao naquela

    sociedade.

    A problemtica se desenvolveu ainda mais quando os autores observaram que no

    havia, entre os habitantes das zonas 2 e 3 nenhuma diferena em relao etnia,

    nacionalidade, religio, ao tipo de ocupao, renda ou ao nvel educacional. Ou seja,

    todos os aspectos apontados nos estudos sociais clssicos, e que pudessem conferir a

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    superioridade de poder aos membros da aldeia, eram inaplicveis no caso de Winston

    Parva. De todo modo, um grupo s pode estigmatizar outro com eficcia quando est bem

    instalado em posies de poder das quais o outro grupo excludo (ELIAS e SCOTSON,

    2000: 23). Coube, pois aos autores, identificar qual era o aspecto que diferenciava os

    membros das duas zonas.

    O nico diferencial encontrado foi o fato de que os membros da aldeia residiam

    no local h mais tempo do que os habitantes do loteamento (havia cerca de 60 anos de

    diferena).

    Os moradores da zona 2, em sua maior parte, eram membros de famliasque viviam na regio havia bastante tempo, que ali se haviamestabelecido como antigos residentes, que acreditavam fazer parte dolugar e achavam que lhes pertencia. Os moradores da zona 3 eramrecm-chegados que haviam passado a morar em Winston Parva em datarelativamente recente, e que continuavam a ser forasteiros em relaoaos habitantes mais antigos. (ibdem: 52)

    Ou seja, os habitantes da aldeia criaram um grande grau de coeso e um carisma

    grupal distintivo. Todos se conheciam e j tinham, h muito tempo, estabelecidos seus

    lugares nas relaes sociais. Justamente estas caractersticas faltavam entre os habitantes

    da zona 3: vieram de lugares diferentes, no estabeleceram laos de vizinhana e

    formavam um grupo totalmente heterogneo.

    Justamente devido a esta falta de coeso, o grupo outsider no tinha como se

    defender da situao de excluso qual eram submetidos. A eles no era permitida a

    participao nas atividades de lazer da comunidade, como os grupos religiosos, a orquestra

    de msica local, o grupo de idosos, os grupos de jovens e o grupo de teatro. Mas o

    principal elemento de estigmatizao contra a zona 3 era a fofoca.

    Por fofoca os autores entendem as informaes mais ou menos depreciativas sobre

    terceiros, transmitidas por duas ou mais pessoas umas s outras (ELIAS e SCOTSON,

    2000: 121). Porm, no caso de Winston Parva havia, na verdade, dois tipos de fofoca: uma

    elogiosa ( pride gossip), aplicada aos habitantes da aldeia, como forma de confirmar a

    sua superioridade social; e outra depreciativa (blame gossip), dirigida aos membros do

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    loteamento, como forma de propagar e confirmar as caractersticas ruins da poro pior

    (ou seja, da minoria anmica4) daquele bairro.

    Ou seja, atravs desse meio de controle social, criava-se uma imagem do

    loteamento como se ele fosse uma favela, na qual residiam pessoas com inmeros filhos,

    com maus hbitos de higiene, barulhentas e rudes. Na realidade, apenas cerca de oito

    famlias viviam nestas condies, e eram justamente nestes lares que se criaram os

    adolescentes acusados de delinqncia. No entanto, mesmo que a realidade e a imagem

    depreciativa do bairro no coincidissem, a idia de que a zona 3 era um pssimo local para

    se viver acabava sendo incorporada pelos seus moradores.

    Assim, ao mesmo tempo em que os estabelecidos transformavam um fato nico

    ocorrido no loteamento em uma caracterstica genrica (e mesmo gentica) dos outsiders,

    estes, ao fim, se auto-reconheciam como possuidores de um valor humano inferior.

    Toda esta situao contribua para o auto-reconhecimento dos estabelecidos: A

    excluso e a estigmatizao dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas

    para que este ltimo preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os

    outros firmemente em seu lugar (ELIAS e SCOTSON, 2000: 22).

    O cotidiano nas obras de Elias

    Devido ao fato de Elias identificar as manifestaes de poder nas relaes que os

    indivduos estabelecem entre si, torna-se constante a relao entre poder e cotidiano em

    suas obras.

    Por cotidiano entendemos aqui as prticas humanas realizadas pelos atores sociais

    no seu dia-a-dia - o que no quer dizer que se resuma mecanicidade da rotina. Apesar de

    serem, na maioria das vezes, vistas como algo banal ou insignificante, as aes cotidianas

    4 Ao utilizar este conceito em sua obra, Elias dialoga com a definio de anomia durkheimiana. Porm, ele

    defende a idia de que anomia no significa o caos em sentido absoluto. Para Elias, por mais desordenado oucatico que parea, nenhum agrupamento humano desprovido de estrutura (ELIAS e SCOTSON: 2000).

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    compem um campo extremamente frutfero para o desenvolvimento das relaes sociais

    e, consequentemente, de estudos sobre a sociedade. Dentre as principais caractersticas do

    cotidiano, podemos apontar a probabilidade, a espontaneidade, a sociabilidade, a

    polissemia e a heterogeneidade nas relaes humanas.

    Em O processo civilizador, Elias parte dos manuais de boas maneiras para tentar

    compreender as mudanas de comportamento que levaram civilizao. O que estes

    manuais descreviam era justamente as formas dos indivduos se portarem nas situaes

    mais cotidianas, como comer, escarrar, assuar, dormir e fazer suas funes corporais e

    sexuais. Foi, pois, nestas aes do dia-a-dia que a sociedade (que j tinha as suas

    diferenas econmicas e sociais) se repartiu entre os civilizados e os incivis, de forma que

    aqueles exerciam o seu poder e o seu prestgio de fazer parte da boa sociedade, e estes

    eram excludos por no terem boas maneiras.

    Foi tambm por meio das aes cotidianas que Elias foi identificar os desvios nos

    equilbrios de poder em Winston Parva. Nesta comunidade, a excluso estava

    constantemente associada ao cotidiano, ocorrendo de vrias formas:

    - O afastamento ou restrio dos outsiders das atividades mais cotidianas de lazer (ir

    igreja, ao cinema, participar das associaes comunitrias, freqentar o bar);

    - A participao aceita, mas sob reservas, na escola e no grupo de operrios;

    - Por meio da atividade cotidiana da fofoca. Alis, os mexericos dos estabelecidos estavam

    intrinsecamente vinculados s suas atividades cotidianas. Aps as reunies das associaes

    ou os cultos, as pessoas voltavam a se reunir apenas para colocar a roda do moinho da

    fofoca em ao.

    Fica clara a preocupao de Elias com as aes cotidianas ainda em outro trecho de

    O processo civilizador: no raro, so exatamente estes ltimos, os fenmenos triviais, que

    nos do uma noo clara e simples da estrutura e desenvolvimento da psique e suas

    relaes, que nos eram negadas pelos primeiros [os fenmenos classificados como

    importantes] (ELIAS, 1994:125).

    Os civilizados/estabelecidos e os incivis/outsiders

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    Como pudemos observar, so vrios os pontos em comum entre as relaes de

    poder que Elias identifica na sociedade europia dos sculos XVI e XVII, e aquelas que

    ocorrem na comunidade de Winston Parva. Mas tambm h alguns pontos divergentes.

    Alm da excluso e da estigmatizao por meio de atitudes cotidianas, podemos

    notar que a aristocracia medieval e os estabelecidos da aldeia constroem as suas

    respectivas imagens de superioridade atravs da depreciao das outras camadas tidas

    como inferiores. Para isso, so elaboradas crenas como a de que os outsiders e os

    camponeses so sempre pessoas sujas e rudes.

    No caso de diferenciais de poder muito grandes e de uma opressocorrespondentemente acentuada, os grupos outsiders so comumentetidos como sujos e quase inumanos (ELIAS e SCOTSON, 2000: 29).

    Durante a Idade Mdia, todos, do rei e a rainha ao campons e suamulher, comem com as mos. Na classe alta h maneiras mais refinadas

    de fazer isso. Deve-se lavar as mos antes de uma refeio (ELIAS,1994: 71). Com a mudana dos costumes para a civilit, ocomportamento nobre, corts, constantemente comparado com asmaneiras rudes, a conduta dos camponeses (ibdem: 77).

    Outro ponto em comum a existncia de um comedimento dos

    aristocratas/estabelecidos em relao aos seus pares e ao mesmo tempo a falta deste

    quando se trata dos servos/outsiders.

    Quando o diferencial de poder suficientemente grande, um membrode um grupo estabelecido pode ser indiferente ao que os outsiderspensam dele, mas raramente ou nunca indiferente opinio de seuspares [...]. A auto-imagem e a auto-estima de um indivduo esto ligadasao que os outros membros do grupo pensam dele (ELIAS; SCOTSON,2000, 40).

    Inicialmente, torna-se uma infrao repugnante mostrar-se de qualquermaneira diante de pessoas de categoria mais alta ou igual. Mas, no casode inferiores, a semi-nudez ou mesmo a nudez pode at ser sinal debenevolncia (ELIAS, 1994, 144).

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    Podemos citar ainda a elaborao de um autocontrole nos grupos que detm o

    poder. Esta caracterstica ajuda na integrao dos membros do grupo, na elaborao de

    padres, mas tambm atua como uma forma de excluso dos considerados fracos por no

    incorporarem a disciplina necessria para se tornar um estabelecido ou nobre.

    Num ambiente relativamente estvel, o cdigo de conduta maissofisticado e o maior grau de autocontrole costumam associar-se a um

    grau mais elevado de disciplina, circunspeco, previdncia e coesogrupal. Isso oferece recompensas sob a forma de status e poder (ELIASe SCOTSON, 2000: 171).

    A modelagem por esses meios [repreenso por meio do embarao,medo, vergonha, culpa] objetiva a tornar automtico o comportamentosocialmente desejvel, uma questo de autocontrole, fazendo com que omesmo parea mente do indivduo resultar de seu livre arbtrio e ser deinteresse de sua prpria sade ou dignidade humana (ELIAS, 1994:153).

    Tratando-se dos aspectos divergentes, apontamos como o principal deles o fato de

    que a relao de poder que havia entre a aristocracia e os seus servos se baseava

    principalmente nas diferenas econmicas e sociais. J no caso de Winston Parva, tal

    relao se d, basicamente, pela diferena entre os bairros quanto ao tempo de habitao no

    local.

    Concluso

    Dentre tantos aspectos de suma importncia nas duas obras de Norbert Elias

    brevemente analisadas aqui, podemos destacar a constante preocupao deste autor em

    nunca desvincular os indivduos dos grupos aos quais eles pertencem e compem. Com

    uma leitura superficial, poderamos deduzir que O processo civilizador trataria a questo

    da civilizao associada idia de evoluo, ou seja, de que as sociedades atuais fossem

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    melhores e mais civilizadas, enquanto as sociedades anteriores fossem compostas por

    homens-animais que comiam com as mos e faziam suas funes corporais nas ruas.

    Por outro lado, o prprio Elias toma o cuidado de afirmar que o que ele analisa ,

    na verdade, a forma como se deu o processo de mudana nos costumes; se estes so

    melhores ou piores do que os anteriores, no vem ao caso (ELIAS, 1994:75). Ele ainda

    acrescenta: Na verdade, nossos termos civilizado e incivil no constituem uma anttese

    daquela existente entre o bem e o mal, mas representam, sim, fases de um

    desenvolvimento que [...] ainda continua (ELIAS, 1994: 73).

    Este mesmo cuidado ele demonstra ao estudar os estabelecidos e os outsiders de

    Winston Parva. No quer dizer que tivesse um plano deliberado dos aldees de agir

    dessa maneira. Tratou-se de uma reao involuntria a uma situao especfica, conforme a

    estrutura, toda tradio e viso de mundo da comunidade alde (ELIAS; SCOTSON,

    2000, 65).

    A grande lio que Elias nos passa buscar ver o mundo sob outra tica e tentar

    identificar as relaes de poder como algo presente no dia-a-dia das pessoas. Poder no se

    resume luta entre grandes naes; e excludos no so apenas os pases e continentes

    sub-desenvolvidos, onde a populao passa fome. H estabelecidos e outsiders em todas

    as relaes humanas. E, na maioria das vezes, no so os indivduos que escolhem em qual

    lado iro ficar. Muito menos existe um lado bom e outro ruim. Tudo faz parte de um

    processo. S quando enxergarmos as relaes de poder sob esta nova tica que

    poderemos procurar solues mais plausveis para desnivelar a balana do poder.

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    Referncias

    ELIAS, Norbert. O processo civilizador. v. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

    ELIAS, Norbert e SCOTSON J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia dasrelaes de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2000.

    GEBARA, Ademir; LUCENA, Ricardo de F. O poder e cotidiano: breve discusso sobre

    o poder para Norbert Elias. In: IX SIMPSIO INTERNACIONAL PROCESSOCIVILIZADOR - TECNOLOGIA E CIVILIZAO, nov. 2005, Ponta Grossa, PR, Brasil.Disponvel em: http://www.pg.cefetpr.br/ppgep/Ebook/cd_Simpsio/artigos.html . Acessoem: 19 jan. 2007.

    SALLAS, Ana Luiza F. Resenha do livro Os estabelecidos e os outsiders. Campos: revista deantropologia social. Vol 1. UFPR, 2001. Disponvel em: Acesso em: 07 fev. 2007.

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