essencialismo e necessidade modal em aristóteles: … · vol. 4, nº 1, 2011. 22 precisamente...

15
Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 21 Essencialismo e Necessidade Modal em Aristóteles: uma análise de Segundos Analíticos I 6 Breno A. Zuppolini 1 Resumo: No início do livro I dos Segundos Analíticos, a caracterização de Aristóteles do conhecimento demonstrativo envolve um certo conceito de “necessidade”. A interpretação tradicional tende a associar este conceito à noção de necessidade modal presente nos Primeiros Analíticos e no tratado Da Interpretação. O presente artigo visa mostrar em que medida o capítulo sexto do livro I dos Segundos Analíticos pressupõe um conjunto de teses essencialistas que pretendem fundamentar a necessidade do conhecimento científico em relações predicativas de caráter essencial. Reconhecer este arcabouço essencialista e simultaneamente manter uma interpretação modal da necessidade científica nos leva a atribuir sérios inconvenientes à teoria aristotélica da demonstração, obrigando-nos a reavaliar esta tendência interpretativa. Palavras-chave: Aristóteles. Necessidade. Essencialismo. Modalismo. Demonstração. Abstract: At the beginning of the first book of Posterior Analytics, Aristotle‟s feature of demonstrative knowledge involves a certain concept of “necessity”. The traditional interpretation tends to associate this concept with modal necessity, which is found in the Prior Analytics and De interpretatione. The present article aims to show in which way the sixth chapter of book A of Posterior Analytics presupposes a set of essentialist theses that claims to base the necessity of scientific knowledge on predicative relations of essential character. To acknowledge this essentialist background and simultaneously support a modal interpretation of scientific necessity urges us to attribute serious drawbacks to Aristotle‟s theory of demonstration, forcing us to reassess this interpretative tendency. Keywords: Aristotle. Necessity. Essentialism. Modalism. Demonstration. *** Nos primeiros capítulos de seus Segundos Analíticos, Aristóteles afirma que aquilo de que há conhecimento científico “não pode ser de outro modo” (I 2, 71 b 12; I 4, 73 a 21; I 6, 74 b 6), de tal maneira que o que for demonstrado cientificamente envolverá sempre algum tipo de “necessidade”. Já no capítulo 6 do livro I, Aristóteles vai além, esforçando-se em defender a tese de que não apenas aquilo de que há conhecimento científico é necessário, mas igualmente os itens ou princípios a partir dos quais tal conhecimento se constrói o são. Mas do que exatamente há conhecimento científico- demonstrativo 2 ? O que é isto que não pode ser de outro modo? E em que consiste mais 1 Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Bolsista FAPESP. Orientador: Prof. Dr. Lucas Angioni. Email: [email protected]. 2 Em Segundos Analíticos I 2, 71 b 16-19, Aristóteles nos diz que tomará o conhecimento científico como sendo aquele que se dá através de demonstração científica (apódeixis) e que deixará de lado outras formas de epistême que não a epistêmê apodeiktikê. No entanto, em Segundos Analíticos I 3, 72 b 18-20, o filósofo

Upload: vonguyet

Post on 31-Jul-2018

230 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 21

    Essencialismo e Necessidade Modal em Aristteles: uma anlise de

    Segundos Analticos I 6

    Breno A. Zuppolini

    1

    Resumo: No incio do livro I dos Segundos Analticos, a caracterizao de Aristteles do

    conhecimento demonstrativo envolve um certo conceito de necessidade. A interpretao tradicional tende a associar este conceito noo de necessidade modal presente nos Primeiros

    Analticos e no tratado Da Interpretao. O presente artigo visa mostrar em que medida o

    captulo sexto do livro I dos Segundos Analticos pressupe um conjunto de teses essencialistas

    que pretendem fundamentar a necessidade do conhecimento cientfico em relaes predicativas de carter essencial. Reconhecer este arcabouo essencialista e simultaneamente manter uma

    interpretao modal da necessidade cientfica nos leva a atribuir srios inconvenientes teoria

    aristotlica da demonstrao, obrigando-nos a reavaliar esta tendncia interpretativa.

    Palavras-chave: Aristteles. Necessidade. Essencialismo. Modalismo. Demonstrao.

    Abstract: At the beginning of the first book of Posterior Analytics, Aristotles feature of demonstrative knowledge involves a certain concept of necessity. The traditional

    interpretation tends to associate this concept with modal necessity, which is found in the Prior

    Analytics and De interpretatione. The present article aims to show in which way the sixth

    chapter of book A of Posterior Analytics presupposes a set of essentialist theses that claims to base the necessity of scientific knowledge on predicative relations of essential character. To

    acknowledge this essentialist background and simultaneously support a modal interpretation of

    scientific necessity urges us to attribute serious drawbacks to Aristotles theory of demonstration, forcing us to reassess this interpretative tendency.

    Keywords: Aristotle. Necessity. Essentialism. Modalism. Demonstration.

    ***

    Nos primeiros captulos de seus Segundos Analticos, Aristteles afirma que

    aquilo de que h conhecimento cientfico no pode ser de outro modo (I 2, 71b 12; I 4,

    73a 21; I 6, 74

    b 6), de tal maneira que o que for demonstrado cientificamente envolver

    sempre algum tipo de necessidade. J no captulo 6 do livro I, Aristteles vai alm,

    esforando-se em defender a tese de que no apenas aquilo de que h conhecimento

    cientfico necessrio, mas igualmente os itens ou princpios a partir dos quais tal

    conhecimento se constri o so. Mas do que exatamente h conhecimento cientfico-

    demonstrativo2? O que isto que no pode ser de outro modo? E em que consiste mais

    1 Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Bolsista FAPESP.

    Orientador: Prof. Dr. Lucas Angioni. Email: [email protected]. 2 Em Segundos Analticos I 2, 71b 16-19, Aristteles nos diz que tomar o conhecimento cientfico como

    sendo aquele que se d atravs de demonstrao cientfica (apdeixis) e que deixar de lado outras formas

    de epistme que no a epistm apodeiktik. No entanto, em Segundos Analticos I 3, 72b 18-20, o filsofo

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 22

    precisamente este no poder ser de outro modo caracterstico do conhecimento

    cientfico? Algumas das respostas possveis a essas questes marcam uma tendncia

    interpretativa j bastante consolidada na literatura secundria, que nos leva a interpretar

    a necessidade do conhecimento cientfico-demonstrativo como modal3. Chamemos tal

    interpretao, para fins de exposio, de modalista. A seguir, na seo I, buscarei

    mostrar de que modo tal leitura se constri apenas como uma das interpretaes

    possveis a partir da famosa definio de conhecimento cientfico em Segundos

    Analticos I 2, 71b 9-12. Na seo II, por sua vez, voltar-me-ei para o captulo 6 do livro

    I, mais precisamente para seu texto de abertura, no qual se encontra um argumento

    falacioso que, no entanto, corrigido por Aristteles atravs da seguinte tese: toda

    proposio necessria tal que o predicado se atribui kathhauto (em si mesmo ou

    per se) ao sujeito. J a seo III ilustra de que maneira tal tese pode ser interpretada

    em favor de uma leitura modalista. Na seo IV, enfim, mostrarei que, apesar do

    empenho dispensado na seo III, a fora desta tese ganha propores indesejveis caso

    a interpretao modalista seja mantida.

    I

    Como afirma Aristteles em uma clebre passagem dos Segundos Analticos (I

    2, 71b 9-12), julgamos possuir conhecimento cientfico genuno (halps, por oposio a

    sofistikn) de um estado de coisas qualquer (prgma) quando (i) apreendemos a causa

    (aita) por meio da qual este estado de coisas vem a ser o caso e (ii) no possvel que

    isso seja de outro modo4. Embora o primeiro item, tomado isoladamente, j seja objeto

    de controvrsia e por si s merecedor de tratamento detalhado, no me ocuparei dele de

    modo prioritrio, mas apenas na medida em que se relaciona com o segundo5, o qual

    utiliza o termo epistm em um sentido amplo, para alm do conhecimento por demonstrao,

    incluindo tambm o conhecimento dos primeiros princpios, imediatos e indemonstrveis. Todavia, em

    Segundos Analticos II 19, Aristteles retoma uma acepo mais restrita do termo ao op-lo a nos,

    dizendo no haver cincia dos princpios imediatos, mas inteligncia. Durante o presente texto, faremos uso do termo cincia e cognatos tendo em vista a acepo restrita de epistm, de tal modo

    que as expresses conhecimento cientfico e conhecimento demonstrativo, embora no sejam

    sinnimas, sero usadas na medida em que exprimem conceitos coextensivos. 3 Considero representantes desta interpretao Lloyd (1981), Kosman (1990), Mckirahan (1992, p. 23 e

    pp 81-84), arnes (1993, p. xiii [Introduo] e p. 110). 4 , ,

    , ,

    . Segundos Analticos I 2, 71b 9-12 . 5 Para nossos propsitos, bastar alertar para o fato de que aita no diz respeito noo moderna de

    causa. O termo grego est mais prximo dos conceitos de explicao e razo: se certo estado de coisas,

    pragm, tomado como explanandum, sua aita nada mais do que seu explanans.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 23

    nos interessar primeiramente. O que afinal isso que no pode ser de outro modo?

    Qual o referente do ambguo pronome toto em 71b 12? Uma das leituras possveis

    6

    seria interpret-lo como retomando a expresso to prgma em 71b 11. Neste caso, o

    que no pode ser de outro modo consistiria naquele estado de coisas para o qual o

    cientista busca fornecer uma explicao (aita), ou seja, Aristteles estaria atribuindo

    necessidade aos explananda da cincia.

    Do ponto de vista de sua expresso lgico-discursiva, tais explananda assumem

    uma das formas categricas, ocorrendo como concluso no silogismo demonstrativo.

    Ora, Aristteles possui um expediente para marcar as proposies que expressem, no

    um fato proposicional qualquer, mas aquele que o caso necessariamente: trata-se de

    seu operador modal de necessidade.

    Aristteles trata das proposies modais nos captulos 12 e 13 do tratado Da

    interpretao e nos captulos 3 e 13 do livro I dos Primeiros Analticos, desenvolvendo

    ainda, nos captulos 8-22 desta ltima obra, uma verso modal de sua silogstica. bem

    verdade que o filsofo no elaborou uma semntica satisfatria se que chegou a

    elaborar alguma para sua lgica modal, de tal maneira que os intrpretes tm

    encontrado dificuldades em compreender de que modo Aristteles entendia tais

    operadores. O que temos de mais certo parece ser o que se encontra no tratado Da

    interpretao 12, 21b 29 e 22

    a 8-9. Ali, os operadores modais so descritos como

    predicados atribudos cpula em sentenas do tipo S P. Uma das maneiras de se

    compreender esta descrio ser interpretando os operadores como funes cujos

    argumentos so proposies. Deste modo, quando um operador modal incide sobre uma

    proposio, gerada uma segunda proposio, com outras condies de verdade. Seja p

    uma proposio e nosso operador de necessidade. Teremos, ento, uma nova

    proposio se saturarmos a funo (_) com a letra sentencial p: p p

    necessariamente o caso. Contudo, determinar quais novas condies de verdade o

    operador modal introduz tarefa ainda mais difcil. Podemos lanar mo de critrios

    temporais, como observamos o prprio Aristteles propor em De Caelo I 11-12: p o

    caso se e somente se p o caso e no pode ter seu valor de verdade alterado ao longo do

    6 Uma leitura alternativa seria tomar o pronome touto como retomando a relao de to pragma com sua

    aitia, isto , a relao do explanandum com seu explanans. Tal opo tem sustentado interpretaes no-

    modalistas da necessidade do conhecimento cientfico, como Angioni (2007) e Burnyeat (1981, pp. 108-

    109), que associam a necessidade do conhecimento cientfico a uma certa adequao explanatria. Lloyd

    (1981, p. 157), ao ler deste modo o referente de toto, mantendo, no obstante, a necessidade da epistm

    como necessidade modal, exceo.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 24

    tempo. possvel igualmente proceder por critrios extensionais: para todo x, Fx o

    caso se e somente se F atribui-se verdadeiramente a todas as instncias de x e no pode

    ser falsamente atribudo a nenhuma delas. Seja qual for a maneira pela qual a

    necessidade modal interpretada, nada parece impedir, ao menos no de sada, que a

    necessidade do conhecimento cientfico seja entendida como modal. Chamemos esta

    posio, tal como eu j anunciara, de modalista. De acordo com ela, ento, se de

    fato o explanandum que no pode ser de outro modo e se ele deve assumir uma das

    formas categricas, os problemas cientficos, apresentados nas concluses dos

    silogismos demonstrativos, so, no apenas do tipo PxS7, mas do tipo PxS

    8. Logo,

    estando correta a interpretao modalista, Aristteles estaria defendendo a seguinte tese:

    (1) ZYX((ZxX, XxY* ZxY) ZxY)9

    Todavia, j pela silogstica modal dos Primeiros Analticos possvel perceber

    que a tese (1) nos diz muito pouco acerca do estatuto das proposies cientficas. Algo a

    mais j poderia ser dito, de sada, tambm com respeito s premissas. De acordo com a

    silogstica modal aristotlica, uma proposio necessria no pode ser deduzida

    silogisticamente apenas a partir de premissas meramente assertricas, pois preciso que

    7 Seguimos a notao PxS para a frmula P se atribui (hyparchei) a S, onde x varivel para

    quantificao, podendo ser saturada por qualquer uma das quatro formas categricas, a, e, i, o, ou seja,

    universal afirmativa, universal negativa, particular afirmativa ou particular negativa respectivamente. 8 Com efeito, a anlise complica-se quando introduzimos uma linguagem quantificacional, a qual, ao

    contrrio da linguagem proposicional, tem a vantagem de dar conta das formas categricas. Qual ser o

    escopo do operador? Tomemos, por exemplo, a forma categrica universal afirmativa. Na linguagem do

    clculo quantificacional clssico, a proposio PaS traduzida da seguinte maneira: x (Sx Px). O operador pode incidir sobre a frmula inteira, fora do escopo do quantificador: teramos assim uma

    necessidade de dicto ( x (Sx Px)). Mas possvel tambm que o operador governe o predicado P e esteja sob escopo do quantificador, o que sugeriria uma necessidade de re (x (Sx Px)). Enquanto em modalidade de dicto a necessidade dependeria dos termos utilizados na sentena, em modalidade de re a necessidade independeria dos termos envolvidos, residindo antes nos objetos por eles referidos. Para usar

    um exemplo clssico, a proposio necessrio que todo solteiro no seja casado verdadeira se a

    necessidade for de dicto (pelos prprios significados dos termos solteiro e casado), e falsa se a

    necessidade for de re (uma vez que todo solteiro pode vir a se casar em algum dia). 9 As variveis maisculas, X, Y e Z, fazem s vezes dos termos mdio, menor e maior respectivamente. J

    o martelo sinttico marcado com asterisco, *, significa no apenas consequncia sinttica, mas

    demonstrao em sen *

    Sobre sua superioridade em relao s demais figuras em termos de demonstrabilidade, ver Segundos

    Analticos I 14. Sobre a superioridade especfica de Barbara, ver Segundos Analticos I 14, 79a 24-29 e II

    8, 93a 3-9.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 25

    ao menos a premissa maior tambm seja necessria10

    . Todavia, Aristteles (2004, p. I,

    4, 73a, 21-25), est interessado em defender uma tese mais forte:

    Visto ser impossvel que aquilo de que h conhecimento cientfico,

    sem mais, seja de outro modo, aquilo que pode ser conhecido por conhecimento demonstrativo necessrio. demonstrativo o

    conhecimento que possumos por possuir demonstrao. Assim, a

    demonstrao um silogismo a partir de itens necessrios11

    .

    Se aquilo de que h demonstrao cientfica deve ser necessrio, diz Aristteles,

    preciso que tambm os itens entenda-se: todos os itens a partir dos quais a

    demonstrao se d (as premissas) sejam igualmente necessrios. Seguindo a leitura

    modalista, isto , se necessrio aqui significa modalmente necessrio, Aristteles

    estaria defendo uma verso mais forte da tese (1). No apenas a concluso do silogismo

    demonstrativo deve ser necessria, mas tambm ambas as suas premissas (e no

    somente a premissa maior). Em termos formais:

    (2) ZYX((ZxX, XxY* ZxY) ( ZxX & XxY & ZxY))

    No captulo 6 do livro I dos Segundos Analticos, o filsofo volta a defender a

    tese reelaborada, segundo a leitura modalista, em (2). Todavia, em seu pargrafo de

    abertura, Aristteles no apenas reitera a necessidade das premissas demonstrativas,

    mas esclarece quais dentre as suas propriedades as fazem ser tais. Logo, para que a

    interpretao modalista se sustente, preciso que as propriedades ali apresentadas

    apontem para a necessidade modal dos princpios da demonstrao. Vamos, pois, ao

    texto.

    II

    Aristteles (2004, I, 6, 74b, 5-12), assim inicia o sexto captulo do livro I dos

    Segundos Analticos:

    10 Ver Primeiros Analticos I 9, 30a 15-b6. Convm notar que o reconhecimento, por parte de Aristteles,

    do Barbara com a maior necessria e a menor assertrica e a refutao do Barbara com a menor

    necessria e a maior assertrica so tidos como evidncias para uma interpretao de re dos operadores

    modais. Com o operador governando apenas os predicados, o silogismo em Barbara com a maior

    necessria torna-se vlido pelas mesmas razes que o Barbara assertrico vlido (apenas substitui-se o

    termo maior A, por A), enquanto o Barbara com apenas a menor necessria torna-se uma falcia de quatro termos. 11 As passagens aqui citadas do texto dos Segundos Analticos so todas de traduo de ANGIONI (2004).

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 26

    [i] Visto que o conhecimento demonstrativo provm de princpios

    necessrios (pois aquilo que se conhece cientificamente no pode ser de vrios modos), [ii] e visto que so necessrios os atributos que se

    atribuem s coisas por si mesmas (pois uns se encontram no o que ,

    ao passo que, em relao aos outros, encontram-se no o que os

    mesmos itens dos quais eles prprios se predicam, e, com relao a eles, necessrio que um dos opostos seja atribudo), [iii] manifesto

    que o silogismo demonstrativo procede a partir de itens de tal tipo;

    [iv] pois tudo se atribui ou deste modo, ou por concomitncia, e os concomitantes no so necessrios

    12.

    Se no quisermos atribuir a Aristteles nenhum malabarismo sinttico, o texto

    supracitado nos trar uma falcia na segunda figura13

    : os trechos [i] e [ii], 74b 5-10,

    introduzem premissas na forma categrica universal afirmativa, e, na segunda figura,

    nada se deduz silogisticamente de premissas desse tipo. So elas: todos os princpios

    dos quais provm o conhecimento demonstrativo so necessrios (74b 5-6), assim como

    todos os atributos que se predicam das coisas por si mesmas (per se) tambm o so (74b

    6-10). J o trecho [iii], 74b 10-11, apresenta-nos a concluso, igualmente universal e

    afirmativa: so per se (de tal tipo, toioutwn) os itens a partir dos quais a demonstrao

    se d. Temos, ento, feitas algumas alteraes com fins expositivos, o seguinte

    silogismo (invlido):

    Todos os princpios demonstrativos so necessrios

    Todas as predicaes per se so necessrias

    _______________

    Todos os princpios demonstrativos so predicaes per se

    Contudo, o trecho [iv], 74b 11-12, inicia-se com um gar explicativo, o que

    sugere alguma justificao do que foi afirmado anteriormente14

    . Mais precisamente,

    Aristteles no est justificando as afirmaes precedentes, mas sim o passo dedutivo (

    primeira vista, mal dado) das referidas premissas para a referida concluso. Nesta

    correo, o filsofo afirma que as predicaes se dividem exaustivamente em duas

    classes: ou o atributo predica-se do sujeito por si mesmo, predicaes per se, ou por

    12 Segundos Analticos I 6, 74b 5-12. 13 Tal falcia j fora constatada por MIGNUCCI [1975, p. 109]. Ver tambm PELLEGRIN [2005, p.

    353]. Nossa soluo, exposta a seguir, no difere da destes autores. 14 BARNES [1993, p. 126] acrescenta prontamente as linhas 74b 11-12 entre as premissas e considera o

    argumento vlido. No entanto, Barnes o considera tambm infeliz, uma vez que a tese iterada (toda

    proposio necessria per se) seria, segundo o comentador, falsa, pois os ditos concomitantes per se

    (ver Metafsica V 30, 1025a 30-35; Segundos Analticos I 7, 75 39-75b 1; I 10, 76b 11-16; Fsica II 2,

    193b 22-30) so necessrios mas no so per se em nenhum dos dois sentidos mencionados em 74b 7-10.

    Ver a seguir pp. 12-13 do presente artigo.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 27

    concomitncia, predicaes per accidens. Mas, acrescenta Aristteles, as predicaes

    por concomitncia nunca so necessrias. Deste modo, possvel converter, sem

    alterar a quantificao, a premissa maior do silogismo acima (extrada de 74b 6-7): no

    s toda predicao per se necessria, mas toda predicao necessria per se, pois,

    caso no fosse, seria per accidens, e predicaes deste tipo jamais so necessrias15

    .

    Logo, j que nos foi permitido, convertamos a premissa maior e teremos um novo

    silogismo em Barbara, vlido na primeira figura:

    Todos os princpios demonstrativos so itens necessrios

    Todos os itens necessrios so predicaes per se

    _______________

    Todos os princpios demonstrativos so predicaes per se

    Com tal argumento (e com os mencionados ajustes), Aristteles mostra-nos que

    devido ao fato de expressarem predicaes per se que as premissas demonstrativas so

    necessrias. Assim sendo, o conceito aristotlico de por si mesmo, bem como sua

    oposio ao conceito de por concomitncia, deve servir como critrio para

    determinarmos em que sentido os princpios da demonstrao so ditos necessrios.

    Mas a que tipo de necessidade as predicaes per se remetem? Seria esta necessidade

    per se uma modalidade? Veremos a seguir sob quais argumentos a necessidade per se

    pode ser associada necessidade modal.

    III

    Quine (1966, p. 173-174) descreve o que ele chama de essencialismo

    aristotlico como a doutrina segundo a qual alguns atributos de um objeto lhe

    pertencem essencialmente, enquanto outros lhe pertencem apenas acidentalmente, e isso

    independentemente da maneira pela qual nos referimos a tal objeto. No contexto

    relevante, pertencer essencialmente, para Quine, significa to-somente pertencer

    necessariamente (em sentido modal e de re), enquanto pertencer acidentalmente no

    outra coisa seno pertencer de modo no-necessrio, isto , contingentemente. Quine

    15Ao longo da histria da filosofia, o symbebkos tem sido compreendido luz do que Aristteles afirma

    em Tpicos I 5, 102b 5-9, sendo o termo grego associado noo filosfica de acidente. Ali, symbebkos

    definido modalmente, como um predicado que pode pertencer ou no pertencer a um certo sujeito, o que

    sugeriria uma interpretao modalista de 74b 5-13. Para uma leitura que no aproxima o symbebkos dos

    Tpicos ao symbebkos dos Segundos Analticos I 6, ver ANGIONI (2007) .

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 28

    chega a formalizar o essencialismo aristotlico na seguinte sentena, onde Fx faz as

    vezes de um predicado essencial e Gx, de um predicado acidental:

    (3) x (Fx & Gx & Gx)

    Aqui, Quine parece tomar as modalidades de necessidade e contingncia como

    prioritrias em relao s noes de essncia e acidente. Ou seja, saberemos que um

    predicado essencial a um certo sujeito se aquele for atribudo a este necessariamente.

    Nesta perspectiva, ento, a noo de essncia se fundamentaria na noo de necessidade

    modal e por ela teria de ser elucidada.

    Esta prioridade da necessidade modal sobre a essncia no foi introduzida por

    Quine, podendo ser vista j em Stuart Mill16

    . Entretanto, como alerta Kit Fine (1994,

    p.2), Aristteles representante de uma outra corrente, da qual o prprio Fine pretende

    fazer parte, que prefere elucidar o conceito de necessidade atravs do conceito de

    essncia, invertendo assim o vetor quineano de prioridade. Como exemplifica Kit Fine

    (1994, p.4), Scrates e a Torre Eiffel so necessariamente distintos um do outro e nem

    por isso diramos e, por certo, Aristteles no diria que essencial a Scrates que

    ele seja distinto da Torre Eiffel, e tampouco a essncia da Torre envolve alguma

    meno a Scrates. Em suma, Aristteles provavelmente no tomaria a frmula presente

    no artigo de Quine como descrevendo algo como seu essencialismo e devemos

    atribuir este passo antes ao prprio Quine do que ao Aristteles. , ao contrrio, a

    prioridade da essncia sobre a necessidade que observamos no argumento de Segundos

    Analticos I 6, 74b 5-13, pois ali, como vimos, o filsofo justifica a necessidade das

    premissas demonstrativas por meio da constatao de seu carter per se.

    A noo de por si mesmo analisada no captulo 4 do livro I da mesma obra,

    no qual o filsofo enumera quatro sentidos de kathhauto. Destes, apenas dois figuram

    no argumento de 74b 5-13 e parecem ser relevantes para a necessidade do conhecimento

    cientfico17

    . O primeiro deles assim esclarecido:

    16 Ver FINE (1994, p. 3). 17 H controvrsias acerca deste ponto. A maioria dos comentadores restringe a relevncia cientfica a

    estes dois dos quatro sentidos de per se apresentados em Segundos Analticos I 4 (ROSS (1949, p.519);

    SORABJI (1981, p. 210-211); BARNES (1993, p.110 -112); PORCHAT (2001, p.142-143) e (2004)),

    pois apenas eles seriam recorrentes no restante da obra. Para outra leitura, ver ANGIONI (2004b). No

    entanto, e isso o que nos importa presentemente, apenas duas acepes de per se so mobilizadas em

    Segundos Analticos I 6.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 29

    Atribuem-se a algo por si mesmo todos os itens que se encontram no

    o que , por exemplo, ao tringulo se atribui a linha, e, linha, o ponto (pois a essncia deles a partir de tais itens, os quais esto

    contidos na definio que define o que eles so)18

    .

    Nesta primeira acepo, um predicado F se atribui kathhauto a um sujeito x na medida

    em que F faz parte da definio de x, compondo, portanto, o que poderamos chamar de

    sua quididade ou essncia (to ti esti): chamemos tais predicaes de per se1. A

    linha constitui a essncia do tringulo e, sem ela, este no existiria enquanto objeto

    geomtrico, tampouco teria as propriedades que tem, de tal modo que no possvel

    definir tringulo sem mencionar linha. Deste modo, linha atribui-se per se ao

    tringulo no presente sentido.

    Mas por que razo predicados per se1 se atribuem necessariamente aos

    respectivos sujeitos? A justificao de Aristteles: tais predicados encontram-se no o

    que (74b 7-8), ou seja, so predicados que integram a essncia do sujeito ao qual se

    atribuem. Ora, predicados essenciais de um dado sujeito so tais que este no pode ser

    sem aqueles19

    . Ou seja, como o prprio Aristteles defende nos Tpicos (I 5, 101b 38-18

    juntamente com 102b 4-10), predicados essenciais de um dado sujeito se lhe atribuem

    necessariamente em sentido modal:

    (4) se F uma propriedade essencial de x, ento Fx.

    Mas todo predicado per se1 de um certo sujeito lhe tambm predicado essencial. Logo,

    por transitividade, deduzimos:

    (5) se F uma predicado per se1 de x, ento, Fx

    Esclarecido o primeiro sentido de per se e em que medida ele pode ser associado

    necessidade modal, vejamos agora o outro sentido de kathhauto relevante para o

    estabelecimento da necessidade das premissas demonstrativas.

    Tambm atribuem-se a algo por si mesmo todos os itens que so atribudos a algo que est contido ele mesmo na definio que mostra

    18 Segundos Analticos I 4, 73a 34-37. 19 Ver Categorias 4a, 10-22; Tpicos, VI 6 145a 6-12; Gerao e Corrupo I 4; Metafsica VII 15, 1040a

    31.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 30

    o que eles so, como, por exemplo, o reto e o curvo se atribuem

    linha, o par e o mpar, ao nmero, assim como o primo, o composto, e

    tambm o eqiltero e o oblongo; em todos estes exemplos, esto contidos na definio que define o o que , num caso, a linha, noutro

    caso, o nmero20

    .

    Neste tipo de predicao, que chamaremos per se2, mais uma vez observamos a

    necessidade supostamente modal fundamentar-se em uma relao essencial entre

    sujeito e predicado. Mas agora, o sujeito x que se encontra na definio do atributo F.

    Os predicados par e mpar so tais que todas as suas instncias possveis so nmeros,

    de tal maneira que nmero, sujeito ao qual se atribui, deve estar presente em suas

    definies. E.g.: par df. um nmero que, quando dividido por dois, resulta em um

    nmero inteiro. No entanto, convm indagar: como se apresentam os predicados per se2

    nas proposies cientficas? Teramos apenas par, ou apenas mpar, atribudos

    separadamente a nmero, tendo este termo referentes distintos em predicaes distintas

    (afinal, um mesmo nmero no pode ser simultaneamente par e mpar)? Ou Aristteles

    teria em mente a ocorrncia de um predicado disjunto, do tipo par ou mpar,

    atribuindo-se ao mesmo sujeito nmero, este termo se referindo agora classe de

    todos os nmeros (inteiros21

    ), em uma forma categrica universal (forma requisitada por

    Aristteles em Segundos Analticos I 4, 73a 28-34)? Esta pergunta tem consequncias

    para a discusso acerca da necessidade de per se2, sobretudo se a necessidade do

    conhecimento cientfico deve ser entendida como modal. E isto porque, no nosso texto

    de abertura de Segundos Analticos I 6, mais exatamente 74b 8-10, e j no prprio

    captulo 4, 73b 16-25, Aristteles, ao caracterizar a necessidade das proposies

    cientficas, parece tomar partido desta ltima opo. Seno vejamos:

    Com respeito quilo que pode ser conhecido sem mais, os itens que se

    afirmam por si mesmos de tal modo que [sc. os sujeitos] esto imanentes nos predicados, ou vice-versa, so em virtude da prpria

    coisa e so por necessidade. Pois no possvel que no sejam

    atribudos, ou sem mais, ou os opostos; por exemplo: linha, no possvel no atribuir o reto ou o curvo; ao nmero, o mpar ou o par.

    Pois um dos contrrios privao ou contradio no mesmo gnero,

    por exemplo, par o no-mpar nos nmeros, do qual se segue. Por

    conseguinte, visto ser necessrio ou afirmar ou negar, necessariamente so o caso os itens que se atribuem por si mesmos.

    20 Segundos Analticos I 4, 73a 37 - b3. 21 Doravante, para fins de exposio, esta restrio estar pressuposta.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 31

    O par o no-mpar dos nmeros, isto , par e mpar exaurem toda a classe dos

    nmeros, de tal modo que todo e qualquer nmero no pode deixar de ser ou par ou

    mpar. justamente este no poder deixar de ser que constituiria, para a leitura

    modalista, a necessidade das predicaes per se2, isto , uma necessidade modal22

    . A

    proposio todo nmero par ou mpar verdadeira e no pode deixar de s-lo.

    Sendo assim, par e mpar constituem o que poderamos chamar de um par per se2, par

    esse que, por conter predicados que exaurem a extenso de um dado sujeito, torna

    necessria qualquer proposio que os tome disjuntivamente como atributos desse

    mesmo sujeito. Logo, a necessidade modal do per se2 parece estar corretamente

    apreendida na seguinte sentena:

    (6) se F e G formam um par per se2 de x, ento, (Fx Gx)

    A interpretao modalista, ento, nos oferece um quadro aparentemente

    consistente de Segundos Analticos I 6, 74b 5-13. Aristteles baseia a necessidade das

    premissas cientficas em relaes essenciais entre sujeito e predicado e, como tais

    relaes de fato implicam uma necessidade modal, como vemos em (5) e (6), o leitor

    parece ter boas razes para interpretar em termos modais o no poder ser de outro

    modo do conhecimento cientfico.

    III

    Esta leitura possui, todavia, srios inconvenientes. Alguns deles dizem respeito

    relao dos Analticos com o restante do corpus: a aparente inaplicabilidade do modelo

    cientfico ali delineado aos tratados de cincias da natureza23

    . Esta inaplicabilidade

    resultaria do fato dos eventos naturais do mundo sublunar ocorrerem somente no mais

    das vezes (hs epi to poly)24

    , ou seja, em outro tipo de modalidade explicitamente

    reconhecida por Aristteles como oposta necessidade modal25

    . E, entretanto, o filsofo

    22 Ver BARNES [1993, p. 117]. Cf. McKIRAHAN [1992, pp. 89-90]. 23 Tal problema foi amplamente abordado na literatura secundria. Destacam-se os trabalhos coligidos em

    GOTTHELF & LENNOX (1987), assim como LeBLOND (1939, pp. 190-194), MANSION (1976, pp.

    62-93 e 119-124), MIGNUCCI (1981) e, em nossa lngua, PORCHAT (2001, pp. 178-189) e ANGIONI

    (2002). 24 Ver Primeiros Analticos I 3, 25b 14-19; I 13 32b 7-8; Fsica II 8, 198b 34-36; Gerao e Corrupo II

    6, 333b 4-6; Retrica I 10, 1369a 35 - b2; Parte dos Animais III 2, 663b 28-29; Gerao dos Animais I 19,

    727b 29-30; IV 4, 770b 9ss.; Metafsica VI 2, 1026b 1ss.; tica a Eudemo VIII 2, 1247a 31-32. 25 Primeiros Analticos I 13, 32b 5-10; Da interpretao 9, 19a 18-22.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 32

    admite, nos prprios Segundos Analticos (I 30, 87b 19-28), a cientificidade dos eventos

    que ocorrem apenas no mais das vezes26

    . Logo, se a necessidade do conhecimento

    cientfico deve de fato ser entendida como modal, no haver cincia dos eventos que

    ocorrem somente no mais das vezes e Aristteles, ao conceber desta maneira a

    necessidade da cincia e simultaneamente admitir a cientificidade do hs epi to poly,

    ter incorrido em contradio. O mesmo problema ocorre com respeito a eventos como

    o eclipse lunar (ver Segundos Analticos I 8, 75b 33-36). Tais eventos no se do sempre

    (ae), mas somente muitas vezes (pollakis). Consequentemente, a proposio Eclipse

    se atribui Lua no necessria em sentido modal, ou seja, no verdadeira em todos

    os instantes do tempo ou em todos os mundos possveis. Todavia, eventos como eclipse

    e trovo so recorrentemente oferecidos, no livro II dos Segundos Analticos, como

    exemplos paradigmticos de demonstranda, o que resulta, assumida a interpretao

    modal da noo de necessidade, em um certo conflito entre os dois livros do tratado.

    No obstante a gravidade destes inconvenientes mencionados, no me deterei

    neles aqui. Ser um terceiro inconveniente, presente no prprio captulo 6 do livro I dos

    Segundos Analticos, mais precisamente no seu j citado texto de abertura, que nos

    ocupar em primeiro lugar. No citado texto de Segundos Analticos I 6, 74b 5-12, mais

    precisamente no passo 74b

    11-12, Aristteles introduz uma tese bastante forte, sem a

    qual, como vimos, seu argumento torna-se invlido: toda proposio necessria tem de

    ser per se. Se considerarmos o texto entre parnteses, nas linhas 74b 6-10, o em si

    mesmo de que fala Aristteles estaria limitado ao per se1 e per se2, e teramos talvez

    uma tese ainda mais forte: toda proposio necessria se enquadra ou em per se1 ou em

    per se2. Mas a fora desta tese ganha propores indesejveis se a necessidade ali

    relevante for dada em termos modais, como vnhamos fazendo e como faz a tradio.

    Em primeiro lugar, ser ou no per se uma propriedade de proposies

    predicativas, o que limitaria o domnio da necessidade modal a proposies do tipo

    PxS. Mas Aristteles reconheceu tautologias da lgica proposicional clssica, as quais

    so verdadeiras para qualquer valorao (consequentemente para qualquer mundo

    possvel ou qualquer instante do tempo, seja qual for a interpretao dada ao operador

    modal) independentemente de qualquer estrutura predicativa que suas sentenas

    elementares contenham. Encontramos no corpus, por exemplo, leis como a da

    transitividade (Segundos Analticos I 3, 72b 37-39), da contraposio (Primeiros

    26 Segundos Analticos I 30, 87b 19-28.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 33

    Analticos II 2, 53b 12-13) e do terceiro excludo (Segundos Analticos I 1, 71

    a 13-14),

    formuladas ao menos assim ocorre nas passagens citadas - maneira de uma lgica

    estritamente proposicional, sem referncia a qualquer contedo predicativo que

    contenham. Mas, alm disso, mesmo entre as proposies (modalmente) necessrias

    efetivamente predicativas, poucas poderiam ser consideradas per se1 ou per se2, os

    nicos dois tipos de per se explicitados no argumento de 74b 5-12. Enquanto as

    predicaes per se so formadas a partir de termos que possuem uma peculiar relao

    essencial entre si seja o predicado como um item da essncia do sujeito (per se1), seja

    o prprio sujeito um item da essncia do predicado (per se2) -, muitas outras no o so

    e, no obstante, subsistem como modalmente necessrias. Algumas so necessrias

    meramente devido sua forma lgica, como em (Fa Fa) e (Fa Fa),

    independentemente do contedo dos termos envolvidos e, portanto, de quaisquer

    relaes ontolgicas que eles expressem. Se quisermos, no entanto, estender a

    necessidade modal para alm das verdades lgicas, perfeitamente possvel, e

    Aristteles de fato o faz em De Caelo I 11-12, valer-se de critrios estritamente

    temporais: quando um predicado se atribui de modo incorruptvel a um sujeito tambm

    incorruptvel, tal atribuio o caso necessariamente, parte qualquer relao essencial

    entre sujeito e predicado. o caso do movimento, quando atribudo ao sol27

    . Mas o que

    dizer ainda das proposies em que se atribui ao sujeito um predicado que lhe prprio

    (idion), no sentido tcnico de Tpicos I 5? Aristteles explicitamente reconhece que

    predicados deste tipo no possuem relao definicional/essencial com os sujeitos aos

    quais se atribuem e, no obstante, pertencem-lhes necessariamente. Poderamos dizer

    que a capacidade de apreender gramtica atribui-se aos homens maneira de um per se1

    ou per se228

    ?

    Logo, podemos concluir que, se a necessidade do conhecimento cientfico deve

    de fato ser entendida como necessidade modal, Aristteles, ao defender a tese de que

    toda proposio necessria expressa uma predicao kathhauto, parece ir longe demais.

    bem verdade que, para uma interpretao modalista dos captulos iniciais dos

    27 De Caelo, I 12 281b 13-25. Ver SORABJI (1981, p. 211) 28 Tpicos I 5, 102a 12-30. Algum talvez pudesse dizer que se trata de um concomitante per se, tal como

    possuir a soma de seus ngulos internos iguais a dois retos um concomitante per se do tringulo (ver

    Metafsica V 30, 1025a 30-34; Segundos Analticos I 7, 75a 39- 75b1; I 10, 76b 11-16). Neste caso, os

    predicados prprios de fato se atribuiriam necessariamente e per se aos sujeitos. Entretanto, a equao

    entre predicado idion e symbebkos kathhauto no parece to evidente. A nica propriedade que os

    aproximam a coexteno entre sujeito e predicado. De qualquer modo, tambm os concomitantes per se

    dificilmente podem ser enquadrados entre os per se1 ou per se2. Ver TILES (1983).

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 34

    Segundos Analticos desde que seja minimamente fiel ao texto aristotlico , os

    captulos 4 e 6 do livro I dos Segundos Analticos estariam introduzindo uma

    interessante prioridade do conceito de essncia em relao ao conceito de necessidade

    modal; interessante a ponto de voltar a ganhar fora na filosofia contempornea, como

    observamos no trabalho de Kit Fine. Todavia, para manter-se coerente, tal leitura tem de

    atribuir a Aristteles a pretenso de estender para toda proposio modalmente

    necessria uma certa subordinao da necessidade modal a certas relaes predicativas

    de carter essencial, a saber, per se1 e per se2. O prprio Kit Fine (1994, p.2) viu-se

    obrigado a restringir a necessidade modal de fundamentao essencialista a

    determinados tipos de atribuio de re, e justamente a existncia de predicaes

    necessrias no-essenciais por ele tida como evidncia de que modalidades no

    servem, no apenas de fundamento em sentido forte, mas tampouco de critrio

    suficiente para determinar se propriedades pertencem essencialmente ou no aos

    respectivos sujeitos29

    . Com efeito, um essencialista sensato como Fine no admitiria a

    tese, supostamente defendida por Aristteles em 74b 12-13, de que toda proposio

    modalmente necessria baseia-se em predicaes essenciais. Resta saber se tomaremos

    Aristteles como um essencialista sensato. Se for o caso, talvez seja preciso reavaliar a

    j consolidada interpretao da necessidade do conhecimento cientfico como modal, ou

    ao menos impor-lhe srias ressalvas. Caso contrrio, ser melhor abandonar os

    Analticos, se no desejarmos, como diz Quine (1966, p. 174, traduo nossa), voltar

    selva metafsica do essencialismo aristotlico.

    Referncias

    ANGIONI, L. O Problema da Compatibilidade entre a Teoria da Cincia e as Cincias Naturais

    em Aristteles, Primeira Verso, n.112, IFCH/ Unicamp, Outubro, 2002. ______. Relaes causais entre eventos na cincia aristotlica: uma discusso crtica de Cincia

    e Dialtica em Aristteles, de Oswaldo Porchat, Analytica .Rio de Janeiro: UFRJ. Seminrio de

    Filosofia da Linguagem, v. 8, n. 1, 2004.

    ____. Conhecimento Cientfico no Livro I dos Segundos Analticos de Aristteles. Journal of Ancient Philosophy, v. 1, 2007.

    ARISTTELES. Segundos Analticos, livro I. Campinas: Instituto de Filosofia e Cincias

    Humanas da Unicamp, col. Clssicos da Filosofia: Cadernos de Traduo n.7, 2004. BARNES, J. Aristotle: Posterior Analytics. Translated with a commentary. 2ed. Oxford:

    Clarendon Press, 1993.

    BURNYEAT, M. Aristotle on Understanding Knowledge. In: Berti (ed.). Aristotle on Science. Padova: Antenore, p. 97-140, 1981.

    29 Vide exemplo de Scrates e da Torre Eiffel.

  • Vol. 4, n 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 35

    FINE, K. Essence and Modality, Philosophical Perspectives, v. 8, Logic and Language, p. 1-16,

    1994.

    GOTTHELF, A.; LENNOX, J. G. (ed.). Philosophical Issues in Aristotles Biology. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

    KOSMAN, A. Necessity and explanation in Aristotles Analytics. In: DEVEREUX, D.;

    PeELLEGRIN, P. (ed.). Biologie, logique et mtaphysique chez Aristotle. Paris: CNRS, p. 349-

    364, 1990.

    LeBLOND, J.M. Logique et Mthode chez Aristote. Paris: J. Vrin, 1939. LLOYD, A.C. Necessity and Essence in the Posterior Analytics. In: Berti (ed.). Aristotle on

    Science. Padova: Antenore, p.157-172, 1981.

    MANSION, S. Le jugement dxistence chez Aristote. Louvain: Inst. Superieur de Philosophie, 1976.

    MIGNUCCI, M. L'Argomentazione dimostrativa in Aristotele. Commento age Analitici Secondi.

    Volume I. Padova: Editrice Antenore, 1975. _____. Hs epi to polu et ncessaire dans la conception aristotlicienne de la science, in Berti

    (ed.) Aristotle on Science Padova: Antenore. p. 173-203, 1981.

    McKIRAHAN, R. Principles and Proofs. Princeton University Press, 1992. PELLEGRIN, P. Seconds Analytiques. Paris: Flammarion, 2005.

    PORCHAT, O. Cincia e dialtica em Aristteles. So Paulo: Editora Unesp, 2001.

    ____. Sobre a degola do boi, segundo Aristteles. In: Analytica. Rio de Janeiro: UFRJ.

    Seminrio de Filosofia da Linguagem, v. 8, n. 1, p.89-142, 2004. QUINE, W.V.O. Three Grades of Modal Involvement. In: The Ways of Paradox. New York:

    Random House, 1966.

    ROSS, W.D. Aristotle: Prior and Posterior Analytics: A Revised Text with Introduction and Commentary. Oxford: Clarendon Press, 1949.

    SORABJI, R. Definitions: Why Necessary and in What Way. In: Berti, E.(ed.). Aristotle on

    Science, Padova: Antenore. p. 205-44, 1981. TILES, J.E. Why the triangle has two right angles kathhauto. Phronesis, v.28, p.1-16, 1983.