espiritualidade-panorama histórico

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  • 8/22/2019 Espiritualidade-Panorama Histrico

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    Panorama da histria da Espiritualidade CristP. Dr. Paulo Afonso Butzke

    Definio

    O termo espiritualidade remonta ao adjetivo latino spiritualis, traduo do gregopneumatics (1Co 2. 14-3.3), designando o ser humano inspirado e determinado pelo Esprito de Deus (homospiritualis). O conceito moderno de espiritualidade tem sua origem na palavra francesaespiritualit, que desde o sculo XVII, no mbito da teologia das ordens religiosas catlicasfrancesas, termo tcnico para a relao pessoal com Deus e a vivncia da f. Para a teologiaprotestante1, o termo passou a ser mais conhecido a partir da V Assemblia do ConselhoMundial de Igrejas, ocorrido em 1975 em Nairbi, no Qunia. A frase da mensagem daAssemblia dirigida a todos os cristos - ansiamos por uma nova espiritualidade que perpasse

    nosso planejar, refletir e agir motivou o renascimento do tema em toda a ecumene,especialmente nas igrejas histricas.2Espiritualidade a expresso exterior e corporal da f interior motivada pelo Esprito Santo. Elainclui a f, o exerccio espiritual e o estilo de vida do cristo. Trata-se, portanto, da vivncia da fsob as condies da vida cotidiana, abrangendo as dimenses individual, familiar, comunitria esocial.Neste texto, a aproximao ao tema espiritualidade vai se dar atravs de um panorama histricono qual vamos tentar descrever e observar a experincia espiritual de pessoas e movimentos aolongo da histria da igreja.

    Fundamentos da Espiritualidadade Crist

    JesusOs evangelhos repetidamente falam da orao solitria de Jesus: Tendo se levantado altamadrugada, saiu para um lugar deserto e ali orava (Mc 1.35). Ele cumpre a tradio descrita nossalmos: De manh te apresento a minha orao e fico esperando (Sl 5.4). a meditao e a contemplao que o preserva de ativismo e desnimo. Existe um ritmo entre oenvolvimento com o povo e o retiro para o exerccio espiritual. Sua f carregada por esteexerccio regular. Neste particular, a espiritualidade de Jesus, provavelmente, no se distinguiada de outros judeus piedosos de sua poca que, igualmente, se baseava no relacionamentopessoal com o Deus. A espiritualidade vetero-testamentria visvel em Jesus est ligada

    memria histrica do povo e natureza e seus ciclos, culminando na doxologia.

    1No mbito do protestantismo alemo, sempre esteve em uso o termo Frmmigkeit, piedade (de pietas). O

    dicionrio teolgico Joannes Altensteig Vendelicus, Vocabularius Theologie, publicado em 1517, defineFrmmigkeit como a honra e o respeito que se deve a Deus, aos pais e ptria, referindo-se aos deveres prticosdos cristos, dos filhos e dos cidados. Alm disso pietas tambm inclua as obras de misericrdia. Trata-se,portanto, de um estilo de vida cristo. J o termo spirituell Vendelicus reserva para algumas pessoas iniciadas naascese e na mstica que adquiriram profundidade e capacidade espiritual especial (Jill Raitt. Heilige und Snder:Rmisch-katholische und protestantische Spiritualitt im 16.Jahrhundert. In: Geschichte der christlichen Spiritualitt.V.2. Wrzburg: Echter, 1995. p. 463).2

    Citao de Evangelische Spiritualitt. Gtersloh, Editora Gerd Mohn, 1979. p. 7. Naquele mesmo ano, oCongresso de Jovens em Taiz teve como tema Meditao e Engajamento, demonstrando que tratava-se de umaespiritualidade conectada com os problemas deste mundo.

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    Alm disto, os evangelhos relatam que Jesus, seguindo a tradio judaica, fazia-se presente noscultos da sinagoga onde era lida e interpretada a Escritura; relatam que ele vivia em comunhode vida com seus discpulos, que ele dava testemunho a respeito da proximidade do Reino deDeus em palavra e ao. Resumindo, os evangelhos deixam entrever que a espiritualidade deJesus compunha-se dos seguintes elementos: ouvir, orar, compartilhar, testemunhar e agir.

    Igreja NeotestamentriaDiferente do que ocorreu com figuras centrais de outras religies, a espiritualidade de Jesus nose tornou a base da f das comunidades crists. Paradoxalmente, a base de f e doutrina daigreja tornou-se sua morte, interpretada como a morte do servo sofredor de Deuteroisaas, esua ressurreio, a qual foi assimilada doxologicamente como louvor ao trino Deus. Dito isto,estamos diante do culto da comunidade primitiva, a forma fundamental e a origem de suaespiritualidade.Pr-condio para esta re-interpretao foi o ocorrido em Pentecostes, que significa: JesusCristo, o crucificado, continua ativo na histria; sua palavra, sua preocupao com os seus ecom o mundo, no cessaram, mas continuam na obra de seu Esprito. Esta certeza transforma e

    inspira os antes assustados discpulos eles se tornam cristianoi e testemunham a realidadeda ressurreio por todo mundo conhecido da poca.Fundamental para o desenvolvimento da espiritualidade crist primitiva foi, igualmente, acompreenso de que Cristo, sentado destra de Deus, intercede como sacerdote e advogadopelos seres humanos diante de Deus. Os seres humanos, porm, somente podem contar comesta intercesso se confessarem Jesus como kyrios, o crucificado como o ressurreto, o terrenocomo o glorificado. Esta confisso os inclui na comunidade que espera pela volta iminente doSenhor, que se entende como seu corpo no qual o Esprito se manifesta, que celebra a SantaCeia como Eucaristia e edificada pelos mltiplos carismas. A incluso nesta comunhoacontece pelo batismo, cuja simbologia deve ser vivida diariamente.Assim, a espiritualidade da comunidade primitiva define-se como doxolgica e eclesistica -baseada no culto e na vida em comunho. Os elementos que a compe esto arrolados em At2.42-47. Neste texto, temos diante de ns o cone da igreja primitiva. Nele vemos aespiritualidade de Jesus ouvir, orar, comungar, testemunhar e agir transformada emespiritualidade comunitria:Perseveravam na doutrina dos apstolos e na comunho, no partir do po e nas oraes. Emcada alma havia temor; e muitos prodgios e sinais eram feitos por intermdio dos apstolos.Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades ebens, distribuindo os produtos entre todos, medida que algum tinha necessidade. Diariamente

    perseveravam unnimes no templo, partiam po de casa em casa e tomavam as suas refeiescom alegria e singeleza de corao, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo.Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.Neste texto, vemos a espiritualidade de Jesus transformada em espiritualidade comunitria.Assim, espiritualidade crist no outra coisa seno viver segundo o esprito de Cristo, recriar econcretizar na prpria existncia e numa situao histrica as motivaes, as atitudesfundamentais e o comportamento de Jesus.3

    3Espeja, Jesus. Espiritualidade Crist. Petrpolis: Vozes. 1995. p. 57.

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    Formas histricas da Espiritualidade Crist

    As formas fundamentais da espiritualidade crist, apresentadas no Novo Testamento, foraminterpretadas e desenvolvidas ao longo da histria da Igreja. A tipologia histrico-sistemticaapresentada a seguir arrola apenas caractersticas elementares das diferentes espiritualidades:

    Espiritualidade asctico-monsticaOs trs primeiros sculos da igreja crist foram extremamente movimentados. As perseguies,as controvrsias teolgicas, a luta contra as heresias marcaram esta poca. Profundasmudanas advieram, porm, da sbita mudana do status da igreja: de igreja perseguida, elatornou-se igreja imperial. Ser cidado do imprio romano implicava na filiao igreja crist, fatoque trouxe as massas igreja.A secularizao da igreja, conseqncia de seu novo status, provocou o fenmeno daanacorese4, que levou muitos cristos a procurarem uma vida asctica de isolamento no deserto.Desaparecido o martrio, a ascese (de askein exerccio) tornou-se o ideal de perfeio devida crist. Para os monges5 e monjas do deserto, esta escolha tornou-se a nica possibilidadede viver a espiritualidade crist com seriedade. O movimento do monaquismo, que j haviainiciado em 285 com a ida de Antonio (ou Anto) para o deserto egpcio, toma corpo com aorganizao da vida dos monges e monjas - que viviam como anacoretas6 (eremitas) oucenobitas7 (conventuais). Fugindo da dipsiqua, a diviso da alma, eles procuram a monotropia

    a concentrao completa e permanente em apenas um: Deus. Referncia bblica a palavrade Jesus a Marta: pouco necessrio ou mesmo uma s coisa (Lc 10.42; tambm Mt 6.33).Estar concentrado em Deus (mnme8 teou), a disposio fundamental dos monges e monjas.A monotropia monstica , pois, motivada pelo desejo de alcanar a unidade entre doutrina evivncia da f no cotidiano. Para atingir a monotropia, porm, so necessrias a tranqilidade, aconcentrao, a solido e o silncio - em uma s palavra: a hesiqua9, a paz do corao. O

    4Anacoresis significa distanciar-se, ausentar-se; no caso dos monges e monjas primitivos, significava ir para oremov, o deserto do Egito ou da Sria, lugares desabitados e inspitos, distante do mundo agitado. Interessante que remon tambm pode significar silncio, traqilidade. Na igreja antiga, a palavra eremita (morador dodeserto), sinnimo de monge. Um excelente resumo da histria do monaquismo pode ser encontrado em Frairyvon Lilienfeld, Art. Mnchtum II. In: Thologische Realenzyklopdie v. XXIII. Berlim, Editora Walter de Gruyter, 1994.p. 150-193.5 O termo monge provm de monacs, o solitrio, o solteiro.6 Os anacoretas no viviam completamente isolados, mas tinham seus klioi/kliai (cela, pequena moradia)prximos uns dos outros numa colnia sob a direo de um monge experiente (o Abba, ou, no caso de monjas, aAmma). Outra alternativa anacortica era o monasticismo peregrino ou girovgico (Mt 10; Lc 10), que, ao longo dahistria da igreja, muito contribuiu para a misso crist.7 Os cenobitas ou coinobitas (de coinobion, vida comum), inspiravam-se na prpria comunidade primitiva de

    Jerusalm (At 2.42ss; At 4. 32-37). Caracterstico para esta vertente monstica, que logo vai se tornarpredominante, a moradia, a orao, o trabalho, o plano de atividades dirias comuns. Mais rigidamente que osanacoretas, os coinobitas deviam obedincia ao Abade/Abadessa. Cedo, regras como a de Pacmio, Benedito deNrsia ou Agostinho passam a organizar a vida espiritual e econmica comum (confira as principais regras em AsRegras dos Monges. So Paulo, Editora Paulinas, 1993). Ao longo do tempo, a organizao trouxe riqueza aosmonastrios, com a qual promoviam a diaconia, a cultura e a teologia. Devido sua capacidade, os monastriosforam, em grande parte, integrados nas dioceses e utilizados para atender o povo de vilas e cidades circunvizinhas.Os monastrios e as ordens ligadas a eles, vo, sempre de novo, aps perodos de decadncia, passar porreformas restauradoras dos ideais monsticos (ex.: Cluny/ordo cluniacensis, Citeaux/ordo cisterciensis).8A mnema, ou mnemats a sepultura a expresso mnme teou pode, pois, ter um significado estar sepultado

    em Deus.9 Na igreja oriental, o hesicsmo, ainda hoje, sinnimo de monaquismo. A principal obra da espiritualidade

    ortodoxa-oriental, a Filocalia, justamente uma coleo de textos msticos do hesicsmo que, basicamente,ensinam a orao incessante (1 Ts 5.17), a orao do corao de Jesus (confira: Pequena Filocalia o livroclssico da Igreja Oriental. 3.a edio. So Paulo, Editora Paulinas, 1985).

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    monge , pois, antes de tudo, um hesicsta. A hesiqua, porm, fruto de rigorosos exercciosespirituais, que podem levar o monge experincia mstica da teoria, a viso divina. Justamenteo isolamento, o jejum, o estilo de vida reduzido ao mnimo necessrio para a sobrevivncia, aabstinncia de alimentos e de atividade sexual, o rgido controle dos pensamentos10, o controledas emoes, o silncio11, a penitncia permanente, a meditao da Escritura, a orao

    incessante12 (Lc 18,1; 1 Ts 5.17), o trabalho artesanal (ora et labora13), a submisso a um guiaespiritual14, o ofcio divino (orao das horas) alm do culto eucarstico dirio, tornaram estesAbbas (pais) e Ammas (mes) referenciais de espiritualidade muito procurados pelos seuscontemporneos. Sua capacidade de discernimento espiritual e sua habilidade poimnica15podem ser conferidos no Apophtegmata Patrum16 coleo das sentenas dos pais/padres dodeserto.Na espiritualidade dos pais do deserto encontramos a sistematizao dos exerccios espirituaisda igreja antiga. Trata-se da praxis17 o conjunto da ascese crist, composto porpalavrabblica, orao, orao das horas, culto eucarstico, jejum e silncio. Esta prxis eraindiscutvel e consenso na igreja antiga. De sua prtica dependia a manuteno e o crescimentona f. Havia, porm, possibilidades diferenciadas de realizar esta prxis. A partir das

    circunstncias biogrficas de cada cristo, a espiritualidade recebia uma forma individual.Tratava-se da politia originalmente o direito da plis ou o comportamento individual do

    poltes, o cidado. Deste ltimo significado, provm o sentido eclesistico: o comportamentoindividual do cristo na vivncia de sua espiritualidade. Em outras palavras, a prxis individual, avivncia pessoal com a palavra bblica, com a orao, com o culto, com o jejum e com osilncio. Muitas sentenas do Apophtegmata Patrum iniciam com o pedido recorrente deconsolentes: Abba, diga-me uma palavra; Abba, mostra-me como posso ser salvo; Abba, o

    10 De longe, considerado o exerccio mais difcil. O deserto, na viso dos antigos, tambm lugar do confronto comos demnios a luta com os prprios pensamentos era sinnimo da luta com os demnios: Abbas Joo disse: Eusou como uma pessoa que est sentada debaixo de uma grande rvore e v como animais selvagens e cobrasperigosas se aproximam. No momento em que no consegue mais subsistir, ela sobe apressadamente na rvorepara se salvar. Assim tambm eu: estou sentado em meu klion e vejo como pensamentos ruins se aproximam.Quando j no posso mais resistir contra eles, fujo para Deus em orao e sou salvo do inimigo mau (Ap 327). 11Sobre o Abbas Agaton conta-se: durante trs anos ele levava uma pedra na boca, at que aprendeu a silenciar

    (Ap 97)12 Alm da orao do corao, tpica para o monaquismo oriental, a tradio ocidental desenvolveu a prtica deoraes breves (jaculatrias). H consenso que a orao deve possuir trs caractersticas: ser pura (sem distrao),breve (para evitar a distrao e conservar a pureza) e freqente (compensao para a brevidade). A oraogeralmente estava associada leitura bblica privada ou litrgica, tornando-se uma atividade responsorial, dialogal.13 O esprito da regula monachorum de Benedito de Nrsia (480-547), fundador da Ordem dos Beneditinos (confira:Regras dos Monges. p. 51-153).14

    Os Abbas experimentados exerciam esta funo junto aos monges mais jovens. A direo espiritual certamenteera rgida mas no destituda de carinho: Alguns monges aproximaram-se de Abbas Poimn e o perguntaram: Sedurante o culto ns vemos irmos adormecer, queres que ns lhes demos um empurro para que continuem aviglia? E ele respondeu: verdadeiramente, se vejo um irmo adormecer, deito sua cabea no meu colo e o deixodescansar (Ap 666).15 Sobre a poimnica dos pais do deserto veja: Seitz, Manfred. Wstenmnche Menschen die den Eindruckmachen, dass sie beten. In: Mller, Christian (org.). Geschichte der Seelsorge in Einzelportrts, v. I. Gttingen,Editora Vandenhoeck & Ruprecht, 1994. p. 81-111.16 A Editora Paulinas publicou, na coleo a orao dos pobres, uma seleo de ditos com o ttulo Sentenas dosPadres do Deserto. A verso completa intitula-se Apophtegmata patrum Aegyptiorum. Trier, Paulinus Verlag,1986. As sentenas citadas neste texto so traduo do autor do presente artigo. A numerao aps cada sentenacorreponde ao nmero da mesma noApophtegmata patrum Aegyptiorum.17 Confira em Seitz, Manfred. Art. Fmmigkeit II. In: Thologische Realenzyklopdie v. XI. Berlim, Editora Walter deGruyter, 1983. p. 674-683.

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    que posso fazer para agradar a Deus?. So perguntas pela vivncia concreta da f, formuladasna esperana de que o Abbas revele algo de sua politia, da prtica pessoal de sua f. Mas,nem tudo podia ser revelado. Ao lado da prxis e da politia, havia ainda o exerccio secreto, oumeditao reservada chamada krypt melte. Lado mais ntimo da espiritualidade, baseava-seem Cl 3.3 vossa vida est oculta em Cristo. A krypt melte no dependia de circunstncias

    exteriores podia ser preservada em qualquer situao existencial. Sobre ela no se falava,nem era objeto de reflexo.

    Espiritualidade bblico-meditativaO monaquismo desenvolveu especialmente dois tipos de meditao bblica: a ruminatio e a lectiodivina. A ruminatio (Sl 1.2) utiliza palavras bblicas avulsas que so exaustivamente recitadasem voz baixa e assim meditadas, isto , ruminadas no estmago da inteligncia e damemria. Conta-se com o poder da palavra divina que, agindo por si mesma, penetra nosubconsciente do orante, curando e santificando. Com fortes componentes corporais epsicolgicos, este mtodo permaneceu intacto no cristianismo oriental na tradio da orao do

    corao.No cristianismo ocidental floresceu o mtodo mais cognitivo e reflexivo, a lectio divina. A formaclssica da lectio divina foi formulada pelo monge cartuxo Guido II (1087-1137) na Escada dosMonges. Os quatro degraus so: leitura, meditao, orao e contemplao. Sobre a funo decada degrau Guido II escreve: A leitura est na casca, a meditao na substncia, a orao napetio do desejo, a contemplao no gozo da doura obtida (Lectio Divina: 1999. p. 15).A Lectio era uma leitura atenta e lenta do texto bblico18, geralmente em voz baixa, formando aspalavras com os lbios. Esta leitura podia ser repetida vrias vezes, at que o texto, suas cenas,sua mensagem estivesse presente na imaginao, dispondo o monge para a meditao. Aleitura geralmente era contnua, isto , um livro era lido do incio ao fim, uma poro cada dia.

    Assim, tinha-se o contexto e as conexes do livro, sua viso panormica. A Meditatio,meditao uma palavra cuja origem nebulosa. Provavelmente seu significado vem da raizmed, meio, e significaria, portanto, ir ao meio, ao centro, centrar-se, concentrar-se.Meditao, portanto, um exerccio de concentrao numa parte do texto que tocaespecialmente, um versculo, uma frase, uma imagem para mastigar e triturar o alimento que aleitura levou boca. A Oratio orao com e a partir do texto bblico lido e meditado. Aquiloque o texto disse, revelou e mostrou pessoalmente ao monge, agora transformado em oraoque pode ser tanto pedido, confisso, intercesso ou adorao. H um responsrio contnuoentre lectio, meditatio e oratio que pode levar atitude de admirao silenciosa dos feitos deDeus, a contemplatio. Assim, Contemplatio19 a orao do silncio que apenas permanece napresena de Deus.

    A devotio moderna, movimento leigo da Alta Idade Mdia, detalhou os passos propostos pelalectio divina e teve grande influncia sobre a espiritualidade da igreja ocidental, como porexemplo Martin Lutero (1483-1546) e Incio de Loyola (1491-1556). Loyola desenvolveu ummtodo original de exerccios espirituais20. No centro deste retiro de at 30 dias21 est a

    18 Alm do texto da Escritura, preferencialmente os Salmos, as leituras dos monges incluam a hagiografia.

    Interessante que o monaquismo conhecia a partilha da palavra antes ou aps a orao vespertina ou aps anoturna, na qual havia uma interpretao comunitria do texto da lectio.19Sobre a contemplao falaremos abaixo

    20 Santo Incio de Loyola. Exerccios Espirituais. Apresentao, traduo e notas do Centro de EspiritualidadeInaciana de Itaici. So Paulo: Loyola, 2000.21O Contedo das 4 semanas est assim distribudo: 1.a semana: Princpio e Fundamento (projeto de Deus) +converso (conscincia do pecado) via purgativa; 2.a semana: seguimento e eleio encarnao/infncia/vida

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    meditao do texto bblico com as trs potncias da alma (inteligncia, memria e vontade). Areviso das oraes e meditaes, o discernimento das moes da alma, o dilogo com oorientador e o silncio interior e exterior completam a dinmica dos exerccios inacianos.

    Espiritualidade mstico-contemplativaDesde Orgenes (185-254) a vida crist passa a ser compreendida com um caminho, dividido emvrios graus ou vias. Dionsio Aeropagita (sc V) sistematizou as vias a partir da hierarquiaceleste e da hierarquia da igreja. Estabelece a diviso da vida espiritual em trs vias: a viapurgativa, a via iluminativa e a via unitiva. As duas primeiras vias so pr-contemplativas eesto no mbito da espiritualidade cataftica (do grego kata, "conforme;phatis, palavra, fala)que atravs de contedos cognitivos e objetivos (textos, imagens, smbolos, conceitos) queraproximar o ser humano de Deus.A via contemplativa expresso da espiritualidade apoftica (do grego apo, com o sentido deafastar-se) que se distancia e se despoja de contedos cognitivos, esvaziando-se para que aluz da verdade e da presena divina possam brilhar na alma do orante. o caminho da mstica.O termo mstica tem dupla origem etimolgica: provm de myein, fechar os olhos, e demysterion, a escurido do sagrado.Para a mstica, o conhecimento de Deus e a experincia de sua presena d-se de formaindireta na contemplao. A contemplao, que etimologicamente significa "partilhar (con) omesmo lugar sagrado" (templo), o ltimo degrau das formas de orao, que evoluem daatividade passividade humana. Teresa de vila distinguia a orao discursiva, a meditao, aorao infusa e a contemplao perfeita. Esta ltima experincia de graa e leva experinciada unidade (unio) com Deus. Nas palavras de Teresa trata-se de "tamanho sentimento dapresena de Deus que eu de maneira alguma podia duvidar de que o Senhor estivesse dentro demim ou que eu estivesse toda mergulhada nele".22

    Espiritualidade e Reforma Protestante

    Perguntamos, agora, como as formas fundamentais da espiritualidade crist foramreinterpretadas pelos reformadores, especialmente por Lutero.O que ele recebeu o que lhe foi transmitido? Recebeu as formas fundamentais daespiritualidade medieval: meditatio, oratio, tentatio, sacramenta, caritas. Lutero, como mongeagostiniano-eremita23, recebeu instruo sobre mtodos de meditao de textos da escritura,sobre como lutar contra as tentaes, sobre como viver com os sete sacramentos, sobretudocom a eucaristia, sobre a vivncia do amor e da solidariedade crists. Esta foi apraxis tradicionalrecebida por Lutero. Este era o conjunto de exerccios que perfazia a espiritualidade da igreja

    ocidental no incio do sc. XVI. Cabe agora a pergunta sobre como esta praxis tradicionalinteragiu com a teologia reformatria e como ele estruturou a suapolitia, sua prtica pessoal.Lutero submeteu a tradio da praxis pietatis medieval ao centro da teologia reformatria: nssomos aceitos por Deus no por causa de mritos ou obras religiosas ou morais, masrecebemos remisso do pecado e nos tornamos justos diante de Deus pela graa, por causa deCristo, mediante a f, quando cremos que Cristo padeceu por ns e que por sua causa os

    pblica de Jesus reforma de vida via iluminativa; 3.a semana: paixo de Cristo via contemplativa; 4.a semana:ressurreio de Cristo/contemplao para alcanar amor via contemplativa.22 Obras Completas. So Paulo: Loyola. 2002. p. 7023

    Importante foi o relacionamento com o seu diretor espiritual, Johann Staupiz. Sabe-se que Lutero tambm foiinfluenciado pela Devotio Moderna, movimento espiritual leigo da alta Idade Mdia fundado por Gerhard Grote.Atravs de Garcia Jimenez de Cisneros, o movimento tambm influenciou Incio de Loyola.

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    pecados nos so perdoados e nos so dadas justia e vida eterna24 (CA IV). A partir destacompreenso teolgica, Lutero reorganiza a praxis tradicional e sua politia pessoal.Especialmente na prtica da meditatio ocorre a reorientao. A tradio havia estabelecido aseqncia lectio-meditatio-oratio-contemplatio (unio). Lutero reordena a seqncia em oratio-meditatio-tentatio. Ele inicia com a orao e inclui a lectio na prpria meditatio. Meditao

    sempre meditao da Palavra. Significativa foi a substituio da contemplatio a viso msticade Deus e a unio com Ele pela tentatio a experincia da presena de Deus mediada pelaPalavra na situao de tentao. Objetivo maior da meditao passa a ser a vivncia aprovadada f nas ambigidades do cotidiano. Lutero, evidentemente, no descarta a contemplatio. Ele,porm, no via a possibilidade de alcan-la atravs de um mtodo de meditao ela sempre presente de Deus no pode ser produzida por exerccios.Lutero arrola os cinco pilares dapraxis pietatis evanglica nos Artigos de Esmalcalda (III/4): ...Deus exuberantemente rico em sua graa. Primeiro mediante a palavra falada (mndlich Wort

    argumento anti-entusiasta!), em que pregada remisso de pecados em todo o mundo. Esse o ofcio prprio do Evangelho. Em segundo lugar pelo batismo; em terceiro pelo santosacramento do altar; em quarto mediante o poder das chaves e tambm per mutuum colloquium

    et consalationem fratrum25(atravs do mtuo colquio e consolao dos irmos). Portanto, parapoder permanecer firme na f no nterim entre batismo e morte, o cristo luterano recebe vriosexerccios espirituais que perfazem apraxis pietatis reconhecida e consensual em nossa igreja:o culto, onde a palavra pregada; os sacramentos batismo, confisso e santa ceia comomeios de graa, e a poimnicafraterna nas diversas situaes existenciais.Estapraxis no era apenas comunitria, eclesistica ela traduzia-se em cada lar luterano em

    politiafamiliar26. Uma das instituies mais slidas da igreja luterana ao longo de sculos foi oculto familiar o assim chamado Hausgottesdienst. Ao longo da histria, oHausgottesdienst transformou-se em Hausandacht, a devoo familiar, verso reduzida daprimeira. O Hausgottesdienst consistia em hino, leitura bblica, orao27 e leitura de umtrecho do Catecismo Menor. O culto familiar adicionava, portanto, mais quatro elementosimportantes praxis luterana. Temos, pois, nove elementos bsicos que perfazem a riqueza daespiritualidade evanglico-luterana: o culto, os sacramentos batismo, confisso e santaceia, a poimnicafraterna, o hino evanglico (hinrio), a leitura bblica, a orao (livros deoraes), o Catecismo Menor (doutrina elementar). A partir desta praxis, cada cristo e cadafamlia luterana tinha a tarefa de estruturar a sua politia pessoal e familiar e sua meditaoparticular (krypt melte).Permanece aberta ainda a pergunta pela politia de Lutero. Ele pouco se pronunciou sobre aforma e o exerccio de sua espiritualidade. Percebe-se que muito era simplesmentesubentendido. De forma fragmentria, porm, temos algumas indicaes interessantes,especialmente sobre sua Meditao do Catecismo (Katechismusmeditation28) No prefcio aoCatecismo Maior, Lutero escreve: ... fao como criana a que se ensina o Catecismo: demanh, e quando quer que tenha tempo, leio e profiro, palavra por palavra, o Pai Nosso, os Dez

    24 Livro de Concrdia, p. 3025 Livro de Concrdia, p. 33226 Cf. o Catecismo Maior, na Seo VII Livro de Concrdia, p. 379-384.27 No Catecismo Maior, na Seo VII oraes: Como o chege de famlia deve ensinar a sua casa a orar de manhe de noite De manh, quando te levantas, benzer-te-s, dizendo: Em nome do Pai e do Filho e do EspritoSanto. Amm, ento de joelhos ou de p, dize o Credo e o Pai-Nosso. (segue a sugesto da orao matutina) (...) noite, quando te recolhes, benzer-te-s, dizendo: Em nome do Pai e do Filho e do Esprito Santo. Amm. Seguemas mesmas sugestes acrescidas pela orao verspertina. Interessante que para Lutero um dos sinais exterioresda f interior a persignao!28 Sobre a Meditao do Catecismo confira tambm Nicol, Martin. Meditation bei Luther. 2.a edio. Gttingen,Editora Vandenhoeck & Ruprecht, 1991.

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    Mandamentos, o Credo, alguns salmos, etc. Tenho de continuar diariamente a ler e estudar, eainda assim, no me saio como quisera, e devo permanecer criana e aluno do Catecismo.Tambm me fico prazeirosamente assim. (...) ... existe multiforme proveito e fruto em ler eexercit-lo todos os dias em pensamento e recitao. que o Esprito Santo est presente comesse ler, recitar e meditar, e concede luz e devoo sempre nova e mais abundante, de tal forma

    que a coisa de dia em dia melhora em saber e recebida com apreo cada vez maior29. AMeditao do Catecismo era muito mais do que simples leitura e reflexo cognitiva. Ela estavaestruturada metodologicamente como exerccio meditativo. No escrito Como se deve orar,

    para o mestre Pedro Barbeiro30 (1535), Lutero apresenta ao amigo leigo o seu mtodo demeditao, o mtodo do vierfaches Krnzlein, a coroazinha qudrupla(ou trana de quatrocordes). Este mtodo constri a meditao em trs partes. Antes de iniciar a meditaopropriamente dita, h um momento de concentrao e pacificao interior, no qual devemsilenciar os pensamentos: ... depois de aquecido o corao ... encontrando-se assim a simesmo, ajoelhe-se ou fique parado, com as mos postas em orao e os olhos voltados para ocu. (PEC p. 319). Seguem os Dez Mandamentos e o Credo Apostlico ou palavras bblicasque se conhece de cor - esta parte tambm pode ser posposta ou omitida quando h pouco

    tempo disposio. A parte principal do exerccio espiritual tem como contedo o Pai Nosso.Cada Mandamento, cada Artigo, cada Petio recitada e depois meditada a partir das quatroperguntas da coroazinha qudrupla:

    a) O que eu aprendo? (doctrina),b) pelo que tenho a agradecer? (gratiarum actio),c) o que tenho a confessar? (confessio) ed) pelo que quero pedir? (oratio).

    Assim, Lutero elaborou um exerccio espiritual composto por concentrao, meditao e orao.

    Importante observar que esta Meditao do Catecismo era indita na histria daespiritualidade.

    Chama especial ateno que Lutero instrui um leigo, pai de famlia, em seu mtodo daMeditao do Catecismo. Na verdade, ele esperava muito dos pais como responsveis por umaeducao para a vida e para a f. Argumentando a partir do quarto mandamento, ele chama paie me de Hausbischfe (bispos familiares). No Catecismo Maior, ele escreve sobre aresponsabilidade espiritual dos mesmos: Cumpre ... [aos pais] ponderar no fato de que devemobedincia a Deus, e acima de qualquer outra coisa desempenhar-se-o, de corao efielmente, dos encargos de seu ofcio, no cuidando apenas do sustento material de filhos,empregados, sditos etc, porm sobretudo educando-os para louvor e honra a Deus. (...) Saiba,

    por conseguinte, cada qual que seu dever, sob pena de perder a graa divina, educar seus

    filhos, acima de tudo, no temor e conhecimento de Deus, e, se forem aptos, dar-lhes aoportunidade para aprender e estudar, a fim de que possam ser teis nas necessidades quehouver31. A educao para vida e para a f acontecia no seio familiar na convivncia cotidianado lar. Os pais devem zelar para que seus filhos e empregados saibam o Catecismo Menor decor, alm de versculos bblicos selecionados e das oraes previstas para o culto familiar. Dizele: Por isso dever de todo pai de famlia argir, pelo menos uma vez por semana, um por um,seus filhos e empregados domsticos, e tomar-lhes a lio, para verificar o que sabem a respeito

    29 Livro de Concrdia, p. 38830 In: Pelo Evangelho de Cristo, p. 317ss.31 Livro de Concrdia, p. 420-421

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    ou esto aprendendo...32 Os professores no substituem os pais e a escola no substitui o lar apenas complementam o ensino cristo familiar.A espiritualidade familiar vislumbrada por Lutero, porm, encontrou grandes obstculos. Asvisitaes realizadas em 1528 e 1529 revelaram grande misria espiritual entre o povo. Sobreela, Lutero escreve: o homem comum simplesmente no sabe nada da doutrina crist,

    especialmente nas aldeias. E, infelizmente, muitos pastores so de todo incompetentes eincapazes para a obra de ensino. No obstante, todos pretendem o nome de cristos, estobatizados e fazem uso dos santos sacramentos. No sabem nem o Pai Nosso, nem o Credo,nem os Dez Mandamentos. Vo vivendo como os brutos e irracionais sunos33. Portanto, nodevemos imaginar que todas as famlias evanglicas tinham condies espirituais de cumprir oplanejado pelo reformador. Lutero reclamava muito que a pregao do evangelho no trazia osfrutos na medida desejada. A frustrao muitas vezes o deixou deprimido. Paulatinamente,porm, ao longo de dcadas, a praxis pietatis elaborada por Lutero conseguiu se impor na vidafamiliar evanglica. Em grande medida, participava-se do culto comunitrio dominical erealizava-se o culto familiardirio, lia-se a Bblia, fazia-se uso da confisso individual ou daconfisso coletiva na liturgia eucarstica, recebia-se regularmente a Santa Ceia, diariamente

    procurava-se permanecer na graa e no compromisso do batismo, cantava-se os coraisevanglicos a maioria de cor, conhecia-se o hinrio, que ao lado de outros tambm era livrode oraes, sabia-se o Catecismo Menorde cor, alm de versculos bblicos selecionados. Ociclo da natureza e o ritmo do ano litrgico eram a moldura desta espiritualidade.

    Espiritualidade pietistaO Pietismo um movimento de espiritualidade surgido no protestantismo holands e alemo nosculo XVII destinado a fomentar a vivncia prtica e autntica da f. Para o Pietismo, a graabatismal deveria ser renovada pela converso pessoal, o renascimento no Esprito, passando ocrente a viver em santidade pessoal e amor ao prximo. A partir de sua espiritualidade, ospietistas diferenciavam-se dos cristos nominais, formando uma ecclesiola in ecclesia.O escrito mais importante do Pietismo a obra do telogo luterano Friedrich Jakob Spenerintitulada Pia Desideria (publicada em 1675) na qual prope uma nova reforma da igrejaevanglica subjugada por uma ortodoxia espiritualmente rida. O incio desta reforma deveria sedar com a renovao espiritual dos telogos e pastores. Tambm via como necessria reformaro estudo da teologia para que os futuros pastores, alm da cincia teolgica, recebesseminstruo na vivncia da f (mistagogia e direo espiritual).Central para o programa pietista de Spener eram os collegia pietatis. Ao lado da prdica noculto, a comunidade tambm deveria ter a possibilidade de ler e estudar a Palavra de Deus ofundamento da f viva individualmente e nos collegia pietatis, reunio de estudo da Bblia ecomunho fraterna, onde tambm leigos interpretavam a Bblia. Spener desejava que esteaprofundamento bblico-teolgico levasse os crentes vivncia do sacerdcio geral.34Grande importncia para todo o protestantismo ter a comunidade dos Irmos Moravianosacolhida em Herrnhut pelo Conde luterano e pietista Nikolaus von Zinzendorf em 1721. Suaorganizao comunitria em "coros" e "bandos" influenciou John Wesley35; sua atividade pastorale missionria fez dos moravianos precursores do movimento ecumnico moderno, alm defomentarem o surgimento dos movimentos de reavivamento no sculo XIX.

    32 Livro de Concrdia, p. 39133 Livro de Concrdia, p. 36334 Em seus collegia pietatis Spener via a realizao da terceira forma de culto preconizada por Lutero.35Wesley visitou Herrnhut em 1738. A organizao dos irmos moravianos inspirou a criao das classes

    metodistas.

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    A espiritualidade pessoal de Zinzendorf caracteriza-se pela mstica do amor a Jesus e a Deus.No se tratava, porm, de uma espiritualidade individualista ou intimista, antes, concretizava-secomo espiritualidade comunitria, litrgica, diaconal e missionria. Para Zinzendorf no se podeser cristo sem comunho. Baseando-se em Romanos 12, a comunidade era organizada emmltiplos ministrios. Todos os membros, includas as mulheres, tinham a possibilidade de

    cooperar com os seus dons pessoais na vida comunitria. A comunidade estava organizada embandos de 8 pessoas. Centro da espiritualidade comunitria eram os cultos. Zinzendorf suprimeas vestimentas litrgicas para evitar a separao entre culto e vida. O pregador era auxiliado porirmos e irms na f. Havia cultos dirios para o canto, gape e eucaristia, sendo que estapodiam ser precedidas por lava-ps, acentuando o carter diaconal da comunho. O dia iniciavacom a orao matutina na qual um irmo interpretava a senha do dia, instituio que subsiste athoje. Ao meio dia a comunidade tambm reunia-se para a orao. A reunio vespertina s 17horas encerrava o dia de trabalho. noite havia a reunio de canto um elemento importante daespiritualidade moraviana. Zinzendorf, espontaneamente, compunha versos que a comunidadecantava. Era de opinio que a verdade evanglica tinha que ser cantada para penetrar nocorao.Assim, o hinrio moraviano continha 2357 hinos a maioria composta pela comunidade.

    A conseqncia da rica espiritualidade pietista-moraviana observa-se na diaconia e na misso.Criou-se a caixa de amparo para pobres e um sistema de sade hospitalar. Na rea da misso,os moravianos foram visionrios, espalhando seus missionrios em todos os continentes.

    Espiritualidade FundamentalistaRemontando a tradies puritanas e calvinistas, o fundamentalismo protestante tem sua origemconcomitantemente na Amrica do Norte e na Inglaterra no final do sculo XIX. Na luta contra oliberalismo teolgico, membros de diversas denominaes protestantes unem-se para protegerelementos fundamentais da f crist, os fundamentals: a autoridade e a inerrncia da Escritura,a necessidade da converso e da santificao pessoal e a perdio eterna dos descrentes.Alm de movimento teolgico, o fundamentalismo tambm busca a influncia poltica, econmicae cultural, procurando defender os valores conservadores e tradicionais da sociedade. Assim, ofundamentalismo est em conflito com o conceito moderno da tolerncia e com o pluralismo dasociedade ps-moderna. Ope-se teologia acadmica e sua exegese histrico-crtica. Aautoridade da Bblia no um processo espiritual, mas est fixada objetivamente atravs dateoria da inspirao verbal e da inerrncia. A Bblia vista como manual para todos os setoresda vida pessoal e social.Como a espiritualidade fundamentalista acentua a perfeio crist e a santificao pessoal, elatende ao legalismo, intolerncia e ao autoritarismo. Sua eclesiologia marcada pela claradistino entre os salvos (os membros do prprio grupo) e os perdidos (os no pertencentes aogrupo), fato que torna o fundamentalismo anti-ecumnico36. Geralmente, os gruposfundamentalistas so liderados de forma patriarcal, masculina e hierrquica. O controle socialexercido no interior do grupo impede a liberdade de pensamento e expresso.

    Espiritualidade CarismticaO movimento de espiritualidade que mais cresce na atualidade o carismatismo. Pertencem aeste movimento global as igrejas pentecostais tradicionais resultantes do reavivamentopentecostal americano no incio do sc.XX, os movimentos carismticos nas igrejas histricas, a"terceira onda" e o difuso movimento neo-pentecostal. Apesar das diferenas entre estes grupos, possvel detectar elementos comuns que perfazem a espiritualidade carismtica: o batismocom o Esprito Santo como experincia fundamental ao lado da converso, o acento nos

    36 Existe um ecumenismo intra-protestante, cuja primeira expresso histrica a Evangelical Alliance, fundada emLondres em 1846.

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    carismas espirituais espetaculares como glossolalia, cura e profecia37 e a centralidade do louvorno culto carismtico.A nfase na pneumatologia d-se em virtude do postulado de um agir especial do Esprito emnossa poca. Segundo este postulado, vivemos no tempo histrico-salvfico no nterim entrePentecostes e volta de Cristo - destinado ao agir da terceira pessoa da Trindade. A irrupo do

    carismatismo seria parte deste agir especial do Esprito.Alguns grupos acentuam o "evangelho da prosperidade" que est intimamente ligado concepo de cura e libertao: o crente no apenas liberto da "maldio da lei" (Gl 3.13), mastambm da "maldio da pobreza". Como j postulado pelo Calvinismo, a riqueza material confirmao da prpria eleio divina.Ponto alto da espiritualidade carismtica o louvor e a adorao comunitria. O cultocarismtico envolve todos os sentidos, permite a participao, a espontaneidade, a emotividade,a corporeidade. O louvor na compreenso do movimento carismtico tem funo epicltica erevelatria (Sl 22. 3-4). O louvor oportuniza um espao da presena salvfica onde do Espritoage e se manifesta, preenchendo o crente com poder e possibilitando curas, exorcismos,descarregos38 etc. A conscincia deste poder permite o crente "determinar" (a Deus!) os efeitos

    desejados. A preponderncia praticamente exclusiva do louvor, porm, descarta a possibilidadede lamento e da confisso de culpa. O sofrimento deixa de ter qualquer funo positiva naespiritualidade crist, sendo, inclusive, interpretado como falta de f ou maldio.

    Espiritualidade da LibertaoA situao de grave desigualdade e injustia social, corrupo e ditadura, levou articulao daTeologia da Libertao na Amrica Latina no final da dcada de 60. Ela nasce como reflexo depessoas e grupos envolvidos nos movimentos populares de libertao, nos sindicatos e partidosde esquerda.A espiritualidade da libertao caracteriza-se, acima de tudo, pela opo preferencial pelospobres. A converso a Deus contm a exigncia da converso ao oprimido. Do encontro de f erealidade de opresso nasce a mstica da libertao: a experincia de Deus no pobre. Arealidade social e poltica iluminada pela Palavra de Deus, lida na perspectiva dos oprimidoscom auxlio da hermenutica histrico-materialista. A leitura popular da Bblia d-seespecialmente nas Comunidades Eclesiais de Base, o lado comunitrio e eclesistico daTeologia da Libertao.Superada a crise causada pelo desaparecimento do socialismo real e pela "restaurao catlica"promovida pelo Vaticano na Amrica Latina a partir da dcada de 80, a espiritualidade daTeologia da Libertao tem diante de si o desafio incorporar a dimenso espiritual e mstica("mstica de Deus") sem deixar de lado questo da transformao social e poltica ("mstica daluta"). Um exemplo da articulao de uma nova espiritualidade da Teologia da Libertao aobra de Leonardo Boff que propugna uma espiritualidade e tica da compaixo e do cuidado, desensibilidade para o outro (alteridade), para com a vida e a ecologia.

    37 Estes carismas so interpretados como comprovao do estar cheio do Esprito.38 O crente pentecostas e carismtico entende-se como envolvido por uma batalha espiritual na qual luta com aforas divinas contra as foras satnicas e malficas. Os exorcismos e descarregos so as armas dos crentes nestabatalha.

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    Aspectos para uma renovao da espiritualidade crist em nossos dias39

    A seguir, compartilhamos alguns pensamentos a respeito de uma renovao da espiritualidadecrist:

    Decisivo para uma maior concentrao no tema espiritualidade sua corretacompreenso teolgica. Exerccios espirituais no so obras meritrias nem pr-condio para a comunho com Deus. So, isto sim, conseqncia prtica damisericrdia de Deus e obra de seu Esprito. Na perspectiva da teologia luterana, oexerccio espiritual torna-se exerccio de liberdade, destitudo de qualquer legalismo.

    Importante dar forma atual aos fundamentos da espiritualidade pr-figurados napraxisde Jesus: o ouvir da palavra, a orao, a comunho, o testemunho e o engajamento.Fidelidade tradio no se esgota na simples repristinao. na re-interpretao queela ganha vida e veracidade.

    Deve haver liberdade para a formatao pessoal e familiar da praxis pietatis, criando,assim, espao para uma politia equilibrada e adequada situao pessoal e familiar.Como j dissemos, a espiritualidade deve ser espao da liberdade evanglica queresiste ao legalismo e uniformizao autoritria.

    As diferentes politias advindas de acentos teolgicos diversos devem se caracterizarpela aceitao e respeito mtuos e acentuar a unidade no fundamental.

    Espiritualidade realiza-se em quatro reas: na vida pessoal, na comunho familiar ougrupal, na comunho da comunidade e na vida social. As formas devem sertransparentes para a vida em sua totalidade.

    Importante a perspectiva ecumnica da espiritualidade. A tradio e os exercciosespirituais provindos de outras confisses crists podem enriquecer nossa praxis

    pietatis. Temos a aprender especialmente com a espiritualidade da Igreja Oriental, queconservou exerccios dos pais do deserto. A hesiqua pode ainda hoje ser alcanadacom o mtodo da orao do corao, tambm conhecida como orao interior, ouorao do corao de Jesus40. Podemos aprender igualmente com a espiritualidadecatlico-romana, especialmente com a vertente inaciana (exerccios espirituais).Valendo-se do discernimento espiritual, possvel, inclusive, valorizar formasprovenientes de outras religies. Especialmente nas fases de preparao meditao,relaxamento e concentrao, prticas ascticas de outras religies podem ser teis.

    preciso resgatar o valor do exerccio para a espiritualidade. Teologia na compreensoda tradio teologia asctica, teologia da vida crist sob as condies do cotidiano.

    Sem a disciplina diria do exerccio espiritual, no haver frutos a mdio e longo prazo. preciso que exerccios sejam treinados, realizados com perseverana e defendidoscontra resistncias internas e externas. Espiritualidade crist no vive da necessidadeespordica, mas da regra e do exerccio contnuo.

    As igrejas crists comprometidas com a tradio espiritual crist necessitamdisponibilizar a membros e no-membros guias espirituais capazes de treinar eacompanhar comunidades e cristos individualmente. Especialmente obreiros/as esacerdotes precisam redescobrir sua funo de ser spiritual,diretores/as espirituais de

    39 Extrado de: Butzke, Paulo. Aspectos de uma espiritualidade luterana para nossos dias. In: Estudos Teolgicosv.43, n.2. p.117-120, 2003.40 Uma excelente introduo orao do corao oferece Lafrance, Jean. Orar com o corao. So Paulo. EditoraPaulinas, 1987.

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    sua comunidades. Em linguagem monstica, eles/as so abades e abadessas41 de seurebanho. Para esta tarefa deveriam ser preparados desde o estudo de teologia42. Almdisso, deveriam ter a possibilidade regular de retirar-se para o deserto (anacoreseeremtica!) a fim de buscar renovao e aprofundamento de sua prpriaespiritualidade43.

    Projetos na rea da espiritualidade, cursos onde exerccios espirituais possam seraprendidos e aprofundados, portanto, devem surgir com urgncia. preciso ensinarcomo iniciar uma prtica espiritual pessoal e familiar. A partir de uma espiritualidade queacompanhe a biografia do cristo desde a sua mais tenra infncia, possvel surgir umaigreja cujapraxis conjugue f e vida, espiritualidade e cotidiano.

    Paulo A. ButzkeReproduo somente com autorizao do autor

    Um resumo deste texto foi publicado no Dicionrio Brasileiro de Teologia, ASTE (no prelo)

    [email protected]

    41 Vale a pena ler o que Benedito de Nrsia escreveu sobre as tarefas do bade em sua regula monachorum,captulo 2 (Regras dos Monges, p. 59-63).42 Os seminrios teolgicos catlico-romanos conservam, at hoje, a pessoa do diretor espiritual. Na conceituaoromana, o diretor espiritual algum a quem foi dado o carisma de ajudar a discernir a experincia espiritual deoutra pessoa (Mondoni, Danilo. Teologia da Espiritualidade Crist. p. 160).43 Vale ouvir a exortao doApophtegmata Patrum: O bem aventurado Antonio costumava dizer: os pais de outroraiam para o deserto e no apenas curavam a si mesmos, mas tornavam-se mdicos tambm para outros. Quando,

    porm, um de ns vai ao deserto, ento, quer curar outros antes de si prprio. E assim, nossa fraqueza retornarpara ns e as ltimas coisas se tornaro piores que as primeiras. Por isso, est dito: mdico, cura primeiro a timesmo! (Ap 1007).