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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS HIANNA CAMILLA GOMES DE OLIVEIRA ATO DE TRANSVER: PREPARAÇÃO CORPORAL DE ATORES PARA UM ESPETÁCULO NÃO VISUAL NATAL/RN 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

HIANNA CAMILLA GOMES DE

OLIVEIRA

ATO DE TRANSVER: PREPARAÇÃO

CORPORAL DE ATORES PARA UM

ESPETÁCULO NÃO VISUAL

NATAL/RN

2018

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HIANNA CAMILLA GOMES DE OLIVEIRA

ATO DE TRANSVER: PREPARAÇÃO CORPORAL DE ATORES PARA UM

ESPETÁCULO NÃO VISUAL.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Orientadora: Profª. Drª. Karenine de Oliveira Porpino

NATAL/RN

2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Oliveira, Hianna Camilla Gomes de.

Ato de transver : preparação corporal de atores para um

espetáculo não visual / Hianna Camilla Gomes de Oliveira. - 2018. 93 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de

Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2018.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino.

1. Preparação corporal. 2. Corpo. 3. Atores. I. Porpino,

Karenine de Oliveira. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792.02

Elaborado por Hianna Camilla Gomes de Oliveira - CRB-X

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A todo aquele que se dispõem a transver o mundo.

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“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos

Alberto Caeiro”

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe, Maria Francisca das Chagas, que me apoio sempre e com

quem conto eternamente. Mãe, você é mar.

A Igor Barboà, por me encorajar e ter fé em mim. É uma fortuna dividir e

construir um arco íris com vista para o rio com você.

A todos e todas que participaram e participam do projeto de extensão O

que os olhos não veem. Obrigada por toda troca, aprendizagem e investigação

coletiva. Sem vocês essa pesquisa não existiria. Em especial aos atores que

aceitaram conversar após os encontros do ato de transver: Maria Flor, Ivan de Melo,

Daliana Cavalcanti, Debora Tenório, Thalles Lopez, Geraldo Rodrigues, Elisiana

Gomes. Suas vozes ecoaram em mim e por essas páginas.

A Profª Drª Karenine de Oliveira Porpino, orientadora desse trabalho que

aceitou com paciência dialogar comigo e com minhas dúvidas para construirmos

juntas essa pesquisa. Obrigada por tudo.

A Profª Drª Márcia Strazzacappa Hernandez pela leitura generosa desse

texto compondo não só a banca de qualificação, mas a defesa com contribuições para

minha escrita.

Ao Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves, coordenador do projeto de

extensão O que os olhos não veem. Obrigada por permitir que a minha participação

no projeto seja uma oportunidade de testar, falhar, ousar, aprender sobre

acessibilidade, ensino, teatro, ....sobre a vida.

Ao PPGARC UFRN pela oportunidade de desenvolver essa pesquisa de

mestrado em artes cênicas

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RESUMO

A pesquisa trata de aspectos da preparação corporal de atores a partir da vivência

com o elenco do Projeto de Extensão O QUE OS OLHOS NÃO VEEM, vinculado ao

Centro de Educação e Departamento de Práticas Educacionais e Currículos da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobre a coordenação do Prof. Dr.

Jefferson Fernandes Alves. Investiga-se como a ausência do sentido da visão

influencia as práticas corporais com os atores, como essa situação reverbera em seus

corpos para a cena e na percepção de si. Toma-se como foco de investigação os

relatos dos membros do projeto de extensão, os quais são analisados por meio da

Análise Temática de conteúdo de Bardin. São tomadas como referências as

provocações do filósofo Evegen Bavcar sobre outras dimensões do olhar que estão

para além dos olhos, como também a ideia poética de Manoel de Barros acerca do

ato de transver. Elas compõem a investigação do não visual como possível ferramenta

no trabalho corporal de atores, juntamente com os estudos sobre a atenção de Virginia

Kastrup e os conceitos de corpo e Heterotopia de Michel Foucault. Como resultados

discute-se temas como: a dimensão tátil do olhar, ver como algo relacional, a reversão

do estado de atenção, a atenção a si, a preparação corporal como um não lugar, a

criação de um corpo utópico e alteridade entre atores e espectadores.

PALAVRAS CHAVES: PREPARAÇÃO CORPORAL; CORPO; ATORES; ATENÇÃO.

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ABSTRACT

The research deals with aspects of body preparation of actors from the experience

with the cast of the Extension Project WHAT THE EYES DO NOT SEE, linked to the

Education Center and Department of Educational Practices and Curricula of the

Federal University of Rio Grande do Norte, about the coordination of Prof. Dr.

Jefferson Fernandes Alves. It is investigated how the absence of the sense of sight

influences the body practices with the actors, as this situation reverberates in their

bodies for the scene and in the perception of itself. As a focus of research, the reports

of extension project members are analyzed through Bardin's Thematic Content

Analysis. Reference is made to the provocations of the philosopher Evegen Bavcar on

other dimensions of the eye that are beyond the eyes, as well as the poetic idea of

Manoel de Barros on the act of transver. They compose the investigation of non-visual

as a possible tool in the bodywork of actors, along with studies on the attention of

Virginia Kastrup and the concepts of body and Heterotopia by Michel Foucault. As

results we discuss topics such as: the tactile dimension of the look, see as something

relational, the reversal of the state of attention, attention to self, body preparation as a

no place, creation of a utopian body and alterity between actors and spectators.

KEY-WORDS: BODY PREPARATION; BODY; ACTORS; ATTENTION.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1: Um convite a fechar os olhos ........................................................ 23

1.1. O que os olhos não veem o coração não sente ....................................... 23

1.2 Outra forma de ver, “é preciso transver o mundo” .................................... 29

CAPÍTULO 2: “Ver é algo para além dos olhos: Uma vivência de corpo inteiro”

................................................................................................................................................. 43

2.1. Eixo Temático I: A ação de ver como algo relacional.............................. 43

2.1.1. De olhos fechados é que me vejo e vejo o outro .......................... 48

2.2. Eixo Temático II: Percepções do corpo ..................................................... 52

2.2.1 A criação de um não lugar ................................................................. 52

2.2.2 Transvendo o corpo ............................................................................ 56

CAPÍTULO 3: Eu sou você, eu vejo você ............................................................. 63

3.1 Se colocando no lugar do outro ................................................................... 64

3.2 A totalidade do ser sensível .......................................................................... 68

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 73

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 76

ANEXO I: FICHAS DE CONTEÚDOS ................................................................... 78

ANEXO 2: TABELAS DE DESCRIÇÃO DO CONTÉUDOS DE CADA NÚCLEO

DE SIGNIFICADO................................................................................................................. 84

ANEXO 3: TABELA DE EIXOS TEMÁTICOS ...................................................... 90

ANEXO 4: TRANSCRIÇÕES .................................................................................. 91

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INTRODUÇÃO

Minha fala é de dentro.

De quem fala lá do meio, do olho do furacão

De quem está mergulhado até a cabeça em tudo isso

E por isso é tão difícil se separar

Separar a si.

Quero, nesta introdução, compartilhar algumas questões que me inquietaram

durante a iniciativa de idealização desta pesquisa de mestrado em Artes Cênicas, até

o momento intitulada “Ato de transver: preparação corporal de atores para um

espetáculo teatral não visual”, além de explicar o meu real envolvimento com a

pesquisa e o local de onde reflito sobre ela.

Minha maior preocupação, ao iniciar essa pesquisa que se encontra em

andamento, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN,

era como conseguir me distanciar, na condição de pesquisadora, do meu objeto de

pesquisa. A minha relação com a prática corporal dos atores é tão forte que extravasa

o ambiente acadêmico e inunda o meu fazer artístico. Por isso, para mim, foi

necessário substituir processo de distanciamento, por um mergulho profundo de

alguém que está submersa e compreende que, ainda assim, é preciso ir mais fundo.

Essa pesquisa parte dos questionamentos e dos pensamentos de alguém que

se vê imersa em um fazer artístico e possui necessidade de refletir sobre ele. Nesta

perspectiva, existe um caráter quase de relato de experiência, pois nasce das minhas

vivências como atriz e depois, como mediadora da preparação corporal dos atores do

Projeto de Extensão “O QUE OS OLHOS NÃO VEEM”.

O projeto está vinculado ao Centro de Educação e Departamento de Práticas

Educacionais e Currículos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a

coordenação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves. Este possui como integrantes

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discentes da UFRN dos cursos de Teatro, Artes visuais, História, Música,

Comunicação Social e alunos da Pós-Graduação em Educação e Artes Cênicas, além

de membros da comunidade como colaboradores do projeto.

Os trabalhos desenvolvidos a partir do projeto ocorrem no âmbito das

investigações sensoriais atreladas a um processo educacional e artístico da

construção de espetáculos. Inicialmente, a cegueira se encontra como temática

norteadora, compondo uma tríade junto com os temas do Corpo e da

Audiodescrição1.

Em suas propostas de espetáculos o público, sem o agenciamento da visão2,

o projeto permite ao público vivenciar uma experiência sinestésica por meio de

estímulos sensoriais de cunho olfativo, sonoro, tátil e degustativo que são

orquestrados durante o decorrer da apresentação. O objetivo não é de colocar e/ou

fazer com que os espectadores se coloquem no lugar das pessoas com deficiência

visual, mas sim, que elas possam exercitar as diferentes formas de ver o mundo.

Ver, neste caso, se encontra como algo para além dos olhos, algo semelhante

ao que propõe Evgen Bavcar (2003), fotógrafo esloveno, que perdeu a visão durante

sua infância, ao afirmar que não se pode ver somente com os próprios olhos, mas

que um conjunto de dados influencia na nossa forma de ver, isto é, que o corpo não

opera somente através de um sentido, mas em um enfoque multissensorial, no qual

percebemos que somos nutridos de várias percepções. Essas chegam através das

interações do corpo com os demais sentidos para ler uma imagem.

Por exemplo: se chegarmos na praia de olhos fechados, ao escutarmos a

arrebentação das ondas e sentirmos o cheiro da maresia, poderíamos apontar a

direção do mar e uma imagem mental deste lugar pode ser gerada em nossas mentes,

pois nós utilizamos dessas percepções para construir uma leitura. Deste mesmo

1 Audiodescrição é um recurso de acessibilidade comunicacional que se configura como uma tradução

intersemiótica (imagem para palavra), que tem como objetivo descrever os elementos imagéticos que não

seriam compreendidos na ausência desse discurso verbal. Esse recurso tem como público-alvo principalmente

as pessoas com deficiência visual, mas pode ser util izado também por pessoas com deficiência intelectual,

dislexia ou idosos.

2 O não agenciamento da visão em questão se faz por meio do uso de vendas por parte do público, seja este cego

ou não.

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modo, Bavcar ao fotografar se utiliza da voz do outro para posicionar o foco da

câmera. Ele nos convida a perceber como nosso olhar também recebe

enquadramento do olhar do outro por meio do que é externo a nós:

Eu utilizo uma espécie de telescópio para ver as estrelas. Todo mundo

utiliza o olhar do outro só que em outros planos, sem se dar conta

sempre. E como não se pode ver com os próprios olhos, somos todos

um pouco cegos. Nós nos olhamos sempre com o olhar do outro,

mesmo que seja aquele do espelho. (BAVCAR 2003, p.12).

Desse modo, o maior desafio é construir um espetáculo no qual a dramaturgia

se desdobra por meio de uma perspectiva multissensorial, através dos estímulos

olfativos, táteis, sonoros e até gustativos, que chegam como dados fornecidos ao

público, para que este construa, com base nessas informações, um outro olhar. Um

olhar que extrapola o sentido da visão e engloba o corpo todo, tomando, assim,

emprestado a forma como as pessoas cegas veem.

Para Bavcar (2003, p.143) o olhar do cego ocorre de outra maneira. A pupila

dos cegos é o seu corpo inteiro e eles podem, impunemente, voltar-se para o sol

como se tivessem aprendido o reflexo condicionado dos girassóis. O significado de

“ver”, neste caso, não está ligado ao fazer uso do sentido da visão e sim, a ideia de

enxergar como algo para além dos olhos, algo que se dá no corpo por completo, do

modo como os demais sentidos obtêm informações que permitem tomar

conhecimento do que está a sua volta.

Deste mesmo modo é que o público vivencia essa forma de ver no decorrer do

espetáculo “O que os olhos não veem”: anula-se momentaneamente a visão ocular

para que os estímulos sensoriais, juntamente com as ações corpóreo/vocais dos

atores que compõem cada cena, permitam ao público criar imagens mentais. Sendo

assim, parte da peça teatral ocorre na imaginação de cada espectador, de acordo

com as leituras que estes realizaram.

É como uma imagem refletida no espelho. O espectador tem em seu imaginário

a imagem do espetáculo refletida através do espelho, que é a relação dos estímulos

sensoriais, com a atuação dos atores em cena, porém a imagem que cada pessoa vê

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é diferente, pois cada uma dá o seu significado a essa representação. Como o

discernimento de cada cena ocorre de forma individual, podemos dizer que o

espectador assume a função de coparticipante de cada cena e a dramaturgia se

completa na sua imaginação.

A não vidência faz parte das pesquisas do projeto de extensão na busca de

provocar a criação de cenas multissensoriais, que rompam com visocentrismo na arte

do teatro, a partir de uma reflexão sobre a origem epistemológica da palavra teatro,

que do grego théatron significa “lugar de onde se vê” (PAVIS, 2011, p.409).

Esse modo de compreender a experiência teatral questiona a ideia do filósofo

e estudioso do teatro Denis Guenoun (2003) ao afirmar que, “Uma assembleia se

reúne no teatro - para fazer o quê? Para ver. - Ver e ouvir, assistir, sentir? Claro,

porém, mais essencialmente ainda: para ver. Teatro provém do verbo grego que

significa: olhar. E se, na arquitetura antiga, o termo designa o lugar do público mais

que a cena ou a orchestra, é primeiro por esta raiz: o teatro (as arquibancadas) é o

lugar de onde se vê (GUENOUN, 2003, p.43). Ou que, o teatro só germina quando

alguma coisa é proposta à visão. Nas cenas propostas pelo projeto O que os olhos

não veem não há o uso da visão, no entanto, há teatro. Este ocorre apesar da não

vidência dos espectadores no decorrer do espetáculo inteiro, sem que os atores

sejam vistos ou sequer os objetos cênicos manipulados por eles.

Sendo assim, em suas pesquisas, O que os olhos não veem procura fazer do

teatro um lugar onde não se vê, através da ruptura com a cena visual.

Se tomarmos o pensamento de Guenon sobre o lugar do público como “o lugar de

onde se vê” para refletir a cena, que não faz uso da visão para sua apreciação, logo

o lugar deste não é mais o de quem vê e sim, o de quem não vê, já que não fará

utilização do sentido da visão para acompanhar a cena, mas dos outros sentidos.

Para instaurar esse lugar onde não se vê, o grupo vem buscando formas de

construir cenas que explorem a multissensorialidade, nas quais o espectador, seja

ele vidente ou não, faça uso de vendas para anular momentaneamente o sentido da

visão, de forma que para este assistir as cenas, se faz necessário o despertar dos

demais sentidos, rompendo com a ideia de que apenas “vemos com os olhos” e

ampliando para visão com o corpo todo.

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Dentro do projeto de extensão, mantemos a mesma ideia sobre a necessidade

das práticas corporais dos atores, de modo que esta se aproxima da perspectiva de

manutenção do ofício do ator, que independe da criação de espetáculo, mas que está

diretamente ligada aos processos criativos. E é uma possibilidade de despertar o ser

sensível apontado por Peter Brook:

De fato, é muito fácil ser sensível na fala, no rosto ou nos dedos, mas o que a

natureza não nos deu, e precisa ser desenvolvido através de exercícios, é a

mesma sensibilidade no resto do corpo: nas costas, nas pernas, no traseiro.

“Ser sensível”, para um ator, significa estar permanentemente em contato com

a totalidade de seu corpo (BROOK, 2000, p.18).

Ao vivenciar práticas corporais, suprimindo o uso do sentido da visão como

parte do processo de criação de cenas não visuais, dentro do projeto de extensão “O

que os olhos não veem”, na condição de atriz e, mais a frente, como mediadora de

tais práticas, comecei a notar que as minhas noções de espacialidade, eixo de

equilíbrio, escuta, percepção da trajetória de movimento corporal e de relação com o

outro ganharam outra dimensão durante o trabalho. Mais tarde, passei a perceber

também suas inovações nos atores fazendo uso das vendas.

Isso iniciou o despertar para alguns questionamentos em mim, tais como: Qual

a importância do uso das vendas3 por parte dos atores, já que se estes não farão uso

destas durante o espetáculo e sim o público? Como a não vidência inserida nas

práticas corporais reverbera nos corpos dos atores? Essa prática pode ser um

caminho para romper com o corpo cotidiano e acessar um corpo extracotidiano para

criação cênica? Como a relação de troca e criação se dá com o outro se ambos estão

momentaneamente sem enxergar?

Tomando como referência inicial as provocações dessas indagações, foi que

comecei a desenvolver essa pesquisa, no campo das artes cênicas, voltada para

reflexões sobre a preparação de elenco para compor um espetáculo não visual. Com

3 As vendas pretas, feitas de tecido e elástico, semelhantes às usadas como tapa olhos para dormir, são

util izadas pelos atores do projeto de extensão O que os olhos não veem durantes as práticas corporais, e

também pelo público durante os espetáculos.

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o objetivo é investigar a experiência das práticas corporais realizadas a partir da não

vidência, a preparação de elenco no teatro, bem como as percepções corporais dos

atores, nesse contexto, se relacionam ao seu fazer artístico.

O desenvolvimento desta pesquisa no campo das artes cênicas é de profunda

importância por fortalecer as práticas corporais sensoriais como possibilidade de

construção de um corpo consciente e pronto para cena, sendo esta uma alternativa

para preparadores de elenco. Além de apontar um caminho para o trabalho individual

e descoberta das potencialidades do próprio corpo através da atenção em si mesmo,

isto se torna um universo de oportunidades para construção cênica e investigação de

atores.

A pesquisa também indica um meio para que pesquisadores do corpo dentro

dessa área possam fazer uso da não visão para pessoas que veem como percurso

para ampliar a percepção dos corpos nesse processo e redescobrir, desta forma, os

potenciais cênicos dos atores a partir de si, das relações que estes constroem da

consciência do corpo.

Acredito na importância desse trabalho de mestrado como algo relevante para

os artistas que compõem o projeto de extensão O que os Olhos não veem, e para

alimentar as pesquisas desenvolvidas no mesmo, pois se propõem a refletir sobre os

aspectos das práticas corporais investigadas dentro do projeto de extensão.

Para além disto, esta pesquisa auxilia na fomentação da formação artística

difundindo, através do meio acadêmico, mais uma forma de fazer artístico

desenvolvido por um grupo da própria instituição onde a pesquisa é realizada.

Assim, a pesquisa indica caminhos para pessoas ditas normais, que desejam

ampliar a sua percepção corporal através da imersão nesta prática de desenvolver

exercícios corporais, aliados à restrição do uso do sentido da visão. Portanto, este

trabalho toca na sensibilidade que diretores, preparadores corporais, professores de

teatro e qualquer profissional precisa ter ao decidir trabalhar com pessoas que

necessitam de adaptações para realizações das atividades mediadas por estes.

Listo aqui alguns grupos que se utilizam da restrição do uso da visão com seus

atores e/ou os espectadores, além da sensorialidade como ferramenta para

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desenvolver espetáculos de teatro, tais como o grupo O que os olhos não veem, de

onde partem as provocações discutidas ao longo dessa pesquisa, sendo estes:

Companhia brasileira de teatro, é um coletivo de artistas de várias regiões do

país fundado pelo dramaturgo e diretor Marcio Abreu em 2000, em Curitiba. Em seu

repertório, há um espetáculo chamado "A viagem" cuja a proposta é conduzir o

espectador vendado a uma viagem sensorial, guiado por um ator que narra sua

história por meio de estímulos que compõem a dramaturgia. A concepção deste

trabalho se aproxima do que realiza o projeto de extensão, no entanto a companhia

encerrou suas investigações sobre o tema, restringindo a elaboração da peça e

tomando outros rumos para seu fazer teatral, o oposto ao projeto da UFRN, que

continua a desenvolver suas pesquisas com suas criações cênicas.

Sensorama (México) que trabalha na concepção de seus espetáculos a 18

anos, faz uso de provocações sensoriais para treinamento de atores, ponto de

convergência com O que os olhos não veem. No entanto, o grupo mexicano tem essa

prática como ideia de imersão em uma vivência teatral como recurso de sensibilização

estética, acreditando que suas apresentações são um evento e também utiliza disto

em cursos e oficinas oferecidos a empresas.

Teatro de los sentidos (Barcelona) explora, em seus espetáculos, a

manipulação de objetos para criação de uma dramaturgia, fazendo relação com

estímulos que esses provocam aos sentidos, porém, durante as apresentações, o

público enxerga toda cena em muitos dos seus espetáculos, diferente da proposta do

grupo O que os olhos não veem. O grupo de Barcelona nomeia essa prática de

“poética dos sentidos” e compartilha suas experiências em workshops, cursos, nos

programas de formação universitária em parceria com a Universidade de Girona

Foundation no programa de Pós-Graduação e no caráter de intercâmbio universitário.

Com o intuito de um diálogo maior desta pesquisa com as atividades

desenvolvidas por esses grupos, foi realizado uma busca nos sites4 da internet dos

mesmos, com a finalidade de encontrar materiais publicados que relatassem sobre o

4 Informações retiradas dos seguintes endereços eletrônicos: http://sensorama.mx/ (site da internet do grupo

Sensorama), http://www.companhiabrasileira.art.br/ (site da Companhia brasileira de teatro) e

http://teatrodelossentidos.com/ (site do grupo Teatro de los sentidos).

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trabalho de preparação dos atores para construção dos espetáculos ou a metodologia

aplicada. No entanto, informações não foram encontradas.

No âmbito acadêmico, dois trabalhos se aproximam dessa pesquisa de

mestrado: o primeiro desenvolvido por Everson Oliveira Cruz, e orientado pela Prof.ª.

Dra. Karenine de Oliveira Porpino, dentro do Programa em Pós-

Graduação em Artes Cênicas da UFRN e intitulado “O que os olhos não veem:

O não visível como forma sensível de apreciação”, que aborda o primeiro espetáculo

do projeto de extensão O que os olhos não veem, com atenção a cena não visível,

para discutir no território da recepção teatral a respeito do olhar do espectador em

uma proposta cênica que não faz uso da visão. O objetivo da pesquisa é investigar

como isso permite a compreensão do espectador a partir relação do seu corpo com

o espaço e como isto potencializa a capacidade de apreciação. São discutidos três

temas: o espaço da cena e o espaço do corpo; a reversibilidade dos sentidos na cena:

e a emancipação do olhar. Cruz (2017) ampara seu trabalho em aspectos do campo

da recepção teatral sobre os estudos de Flávio Desgranges e vincula a cena não

visual sobre o aporte da Fenomenologia, segundo Maurice Merlau-Ponty, além de

situar o olhar do espectador como um olhar emancipado com base nos escritos de

Jacques Ranciére.

Os pontos de diálogo entre a pesquisa desenvolvida por Cruz (2017) são o

projeto de extensão O que os olhos não veem e temáticas envolvendo a

multisensorialidade, corpo e percepção, porém, o enfoque da pesquisa diverge, uma

vez que o meu interesse é nas relações que se estabelecem com os atores durante

sua preparação corporal para criação do espetáculo, e não durante o espetáculo, ou

sob a ótica do espectador, como no trabalho de Cruz (2017). Destaco ainda que os

teóricos que se configuram como interlocutores de cada pesquisa são diferentes

devido as áreas de conhecimento, pois para tratar sobre conceitos de corpo e espaço

dialogo com Michel Foucault, sobre aspectos da percepção, abordo o referencial de

atenção si, apontado por Virginia Kastrup, e para discutir aspectos sobre o olhar,

abordo Evgen Bavcar.

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O trabalho de Everson Oliveira Cruz é de fundamental importância por me

impulsionar a pensar sobre a preparação corporal dos atores para os espetáculos do

grupo O que os olhos não veem.

Já o segundo trabalho é da atriz/pesquisadora Lolita Goldschimidt, realizado

no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRS, como o título

“PROCURANDO PAUSAS EM TEMPOS ATUAIS - UM ESTUDO DO

YOGA PARA O TEATRO”. Seu objeto de pesquisa é refletir sobre possíveis modos

de utilização do yoga para o fazer teatral. Dentro desta pesquisa, Goldschimidt (2015)

analisa três experimentações de yoga inseridos no fazer teatral, distintas e aplicadas

por ela e cita as experimentações com o grupo de pesquisa de linguagem acessível

em artes cênicas, que possui práticas nomeadas por Goldschimidt (2015) de práticas

corporais de sensibilização, que propõe restrição do sentido da visão aos

participantes como ferramenta de diálogo com o trabalho, através de recursos de

acessibilidade para espetáculos teatrais. Essa ideia consiste em sensibilizar os

atores, diretores, pesquisadores do grupo de pesquisa, audiodescritores e interpretes

de libras sobre a percepção das pessoas com deficiência ao apreciarem espetáculos

com recurso de acessibilidade. Este não é o foco da pesquisa e sim, um relato de

uma prática dentro das experimentações que analisou em seus estudos. A relação

entre o yoga e o teatro é, de fato, seu objetivo e não as práticas sem a visão.

Para refletir sobre as práticas corporais do projeto de extensão O que os olhos

não veem, convido os coparticipantes dessas práticas, os atores que as vivenciam,

compreendendo que seus relatos da experiência revelam e influenciam na percepção

de seus corpos e no processo de criação cênica.

Ao pensar sobre a vivência dos atores dentro do projeto de extensão, me

aproximo do conceito de experiência como aquilo que vivemos, que nos passa,

semelhante ao conceito abordado por Jorge Larrosa Bondía (2011, p.07) ao dizer

que, “a experiência é isso que me passa”. A experiência supõe, como já vimos, que

algo que não sou eu, um acontecimento, passa, mas supõe, em segundo lugar, que

algo me passa. Não que passe ante mim, ou frente a mim, mas a mim, quer dizer, em

mim. A experiência supõe, como já afirmei, um acontecimento exterior a mim, mas o

lugar da experiência sou eu. É em mim (ou em minhas palavras, ou em minhas ideias,

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ou em minhas representações, ou em meus sentimentos, ou em meus projetos, ou

em minhas intenções, ou em meu saber, ou em meu poder, ou em minha vontade)

onde se dá a experiência, onde a experiência tem lugar. Não “isso que passa”, mas

“isso que me passa”. Por isso, considero que não existiria ninguém melhor do que os

atores para descrever a experiência de restrição da visão como parte da preparação

corporal.

Para dar lugar à experiência de cada ator é que trago as suas falas como traço

da experiência materializada, pois não considero justo falar sobre o trabalho que

realizamos juntos sem os apontamentos e reflexões deles. A forma que trabalhamos

nos configura como um grupo de múltiplas vozes e de origens diversas.

Há entre o elenco estudantes da licenciatura em teatro, do curso de história

(bacharelado e licenciatura), artes visuais, música, jornalismo, a professora Mayra

Montenegro, do corpo docente do Curso de Teatro e eu mestranda em artes cênica,

todos com vínculo institucional com a UFRN. Somos negros, brancos, baixos, altos,

magros, gordos, videntes, cegos... Artistas que se aventuram juntos neste fazer

teatral nosso que compreende que se vê de corpo inteiro.

Trago as falas dos meus companheiros de trabalho, pois acredito que eles e

elas são partícipes da experiência da preparação corporal, que denomino o ato de

transver. Esse ato é semelhante a um local onde comunga o treinamento do ator

imerso e o universo de criação do espetáculo teatral O que os olhos não veem. Este

processo criativo e de manutenção do ator se junta para uma mudança de

entendimento da dimensão do olhar, pois no ato de transver, ver é algo que se faz de

corpo inteiro. Por esse motivo, o olhar ganha uma condição tátil, sonora e olfativa.

As falas que estão inseridas nesta pesquisa são frutos da gravação em áudio

de rodas de conversa, estabelecidas como práticas de autoavaliação dentro do

projeto de extensão. Nas conversas, avaliamos o trabalho que realizamos juntos,

onde cada um expõe suas percepções e descobertas que teve no respectivo dia de

trabalho corporal, sejam as dificuldades, sejam os ganhos.

Os áudios foram todos gravados com a autorização por escrito do uso de seu

conteúdo, assim como os nomes reais dos sujeitos, para coleta de dados desta

pesquisa, assinado pelo elenco e pela coordenação do projeto de extensão. As

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gravações são úteis não só para as reflexões desta pesquisa, mas podem ser usadas

para as demais pesquisas desenvolvidas por membros do projeto de extensão.

O registro dos áudios foi realizado durante os encontros de trabalho do grupo

O que os olhos não veem, que ocorreram de março de 2017 a junho de

2017, nas terças-feiras no período das 14h às 17h, na sala “C” do Departamento de

Artes da UFRN.

Para análise deste material, faço uso da técnica de Análise de Conteúdo

chamada Análise de Temática, da autora Laurence Bardin, com o intuito de

tratamento dos dados visando uma pesquisa de caráter qualitativo. A autora

descreveu a seguinte análise de conteúdo:

Um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter, por

procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das

mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de

conhecimento relativos às condições de produção/recepção destas

mensagens (MINAYO,1998, p.199 apud BARDIN, 1979, p.42)

Compreendo que este conjunto de técnicas tem como objetivo atingir os

significados notórios e encobertos no material e para esta pesquisa, a Análise

Temática é utilizada como técnica.

Após ouvir os áudios de cada gravação, dou início ao uso da Análise Temática

sobre os temas comuns nas narrativas de cada ator, contidas nas gravações de

áudios analisadas. Passo por três etapas: (i) Pré-análise, (ii) A separação e criação

dos Núcleo de Significados e (iii) A correlação das falas dos atores com referenciais

teóricos desta pesquisa. A análise dos áudios continuam em andamento atualmente,

pois a pesquisa permanece em processo de construção.

Na etapa da Pré-análise, os áudios foram transcritos e lidos com o intuito de

separar o conteúdo a ser analisado. Essa análise ocorreu segundo dois quesitos de

relevância: repetição e representatividade. Considerando o quesito da repetição, não

só aquilo que aparecia várias vezes nas falas dos atores, mas que também era

colocado por eles como algo importante a ser acentuado. E quanto ao fator

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representatividade, estava atrelado aquilo que era dito apenas uma vez, ou não, mas

que expressava um significado importante para as questões de pesquisa.

Na segunda etapa, o material foi separado no que chamo núcleos de

significados, que são o agrupamento de partes das falas dos participantes da

pesquisa de acordo com o grau de repetição e a representatividade dos temas

tratados nas falas dos atores e que se encontram disponíveis para consulta nos

anexos.

A última etapa é a fase de leitura dos núcleos de significados, estabelecendo

um diálogo com os referenciais teóricos da pesquisa para criação de eixos temáticos,

que são compostos do agrupamento de núcleos de significados e abordam temas

semelhantes e/ou complementares. Os eixos temáticos fundamentam parte das

discussões dos capítulos dois e três desta pesquisa. Essa fase se encontra em

andamento e até o presente momento, as investigações desta pesquisa estruturaram

o primeiro capítulo e parte do segundo capítulo.

O primeiro capítulo, intitulado “Um convite a fechar os olhos”, venho descrever

sobre o meu envolvimento com o projeto de extensão O que os olhos não veem, suas

práticas corporais, que são tão minhas quanto do grupo de atores que o compõem,

além de questionar as semelhanças e cisões entre o treinamento corporal e a

preparação de atores, apresentando a ideia do ato de transver como prática

desenvolvida por mim no grupo. Uma possibilidade de trabalho com atores que

retomo mais à frente.

No capítulo dois, “Ver é algo para além dos olhos: uma vivência de corpo

inteiro”, promovo uma reflexão a partir das falas dos atores, estruturadas em eixos

temáticos, constituídos pelos núcleos de significados em interlocução com os

referenciais teóricos, que fundamentam as discussões sobre as dimensões físicas e

imagéticas do corpo dos atores durante o ato de transver. As discussões são

respaldadas pelas pesquisas sobre atenção a si, a reversão da atenção e a dimensão

tátil do sentido da visão, com base nos estudos da autora Virginia Krastrup5 sobre

5 Virginia Krastrup é psicóloga com doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (1997) e pós-doutorado no CNRS, Paris (2002) e CNAM, Paris (2010). Atualmente é Professor Titular da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia

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atenção e cognição de acordo com Francisco e Varella , e nas pesquisas do filósofo

francês Michel Foucault acerca do espaço heterotópico e sobre utopia corporal,

ambos termos por ele utilizado, em uma de suas rádioconferências (FOUCAULT,

2013); e relacionando com aspectos da visão e sua percepção, que estão inseridos

nos questionamentos do estudioso da fotografia, o esloveno Evgen Bavcar.

Como parte estrutural da pesquisa, exponho aqui o capítulo dois apresentando

os dois Eixos Temáticos de onde partem as discussões teóricas com o aporte já

apontado aqui, juntamente com os depoimentos dos atores do projeto de extensão O

que os olhos não veem. Nomeio os Eixo Temáticos da seguinte maneira: Eixo I: A

ação de ver como algo relacional; Eixo II: Percepções do corpo. Há ainda o Eixo III

nomeado Alteridade que deu margem para construção do terceiro capítulo.

No último capítulo intitulado “Eu sou você, eu vejo você” abordo as questões

sobre o contexto do Eixo temático III entorno da alteridade partindo da definição

significado da palavra e do sentido empregado por Michel Foucault para as relações

de alteridade, correlacionando com as falas dos atores sobre a experiência não visual

do ato de transver e sua importância para o grupo.

Cognitiva, atuando principalmente nos seguintes temas: cognição, invenção, produção da subjetividade,

aprendizagem, atenção, arte e deficiência visual.

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CAPÍTULO 1: Um convite a fechar os olhos

“A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas.

Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.

Arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.”

(MANOEL DE BARROS)

Descobrir e me aventurar em novas maneiras de desenvolver o fazer teatral é

uma marca sobre o meu percurso de formação enquanto artista. Por isso, sempre fui

muito aberta a mergulhar em novas vivências, assim, não tive como dizer “não” ao

convite feito por Everson Oliveira Cruz6, na época, diretor do espetáculo O que os

olhos não veem, a participar na condição de atriz.

Neste primeiro capítulo, relato sobre o lugar de origem desta pesquisa; sua

relação com o projeto de extensão O que os olhos não veem; como este é; quais as

pesquisas desenvolvidas e sua origem. Como ocorrem as práticas corporais

realizadas dentro do projeto, mediante a necessidade de desenvolver um processo

de preparação corporal para atores, dialogando com o processo de criação do

espetáculo.

1.1. O que os olhos não veem o coração não sente

6 Ator e diretor do espetáculo O que os olhos não veem, do projeto de extensão O que os olhos não

veem o coração não sente, que no decorrer de sua trajetória dentro do projeto de extensão desenvolve

a pesquisa de mestrado no programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

UFRN, O QUE OS OLHOS NÃO VEEM: O NÃO VISÍVEL COMO FORMA SENSÍVEL DE

APRECIAÇÃO, aborda questões da recepção teatral em relação a cena não visual.

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Ao chegar à primeira reunião com o grupo, obtive contato com a história que

impulsionou a nomeação do projeto de extensão O que os olhos não veem o coração

não sente e, mais à frente, o nome do espetáculo teatral desenvolvido pelo grupo.

Trago, então, o relato que ouvi e que integra o texto da ação de extensão do projeto

junto a UFRN.

“Na hora do intervalo, Carla conversava com uma colega na sala de aula

sobre o fato dela estar “afim” de um dos meninos da mesma sala. E a grande

dúvida era se já está na hora de se aproximar mais do garoto ou se

aguardava mais um tempo. A colega informou que já vinha notado “certos

olhares” do garoto para a amiga. Isso a estimulou a ser mais explícita em

relação ao seu interesse. Dali por diante, iniciou-se um jogo de sedução,

fazendo com que Carla começasse a conversar com o garoto, a entrar na

arena das insinuações, das “deixas”. No entanto, em uma das ocasiões em

que todos retornavam do intervalo para a sala de aula, a amiga de Carla

disse-lhe que havia algo escrito no quadro que ela não iria gostar e,

imediatamente leu: “Se ‘o que os olhos não veem, o coração não sente’,

como uma cega pode amar?” Essa frase feriu a alma de Carla e explicitou

os preconceitos em relação às pessoas cegas, mesmo que por trás dessa

manifestação preconceituosa, estivessem motivações de ciúme ou de

inveja.”

O que os olhos não veem, nasce em 2014 na UFRN, a partir das provocações

sobre estigmas dessa narrativa e de outras pessoas cegas, tais como essa jovem que

foi nomeada como Carla, estudante, que cursava o Ensino Médio, na época e era

voluntária no Instituto de Educação e Reabilitação de Cegos do RN (IERC) como

professora de Braille e de soroban7, com quem entramos em contato através das

oficinas e visitas realizadas no instituto. Assim, o projeto foi criado a partir das

pesquisas sobre a relação entre arte, deficiência visual e questões de acessibilidade

cultural, tendo a coordenação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves, vinculado ao

Departamento de Práticas Educacionais e Currículo do Centro de Educação da

UFRN.

O projeto, segundo ALVES 2017 no relatório da ação de extensão no SIGAA

da UFRN, tem como objetivo desenvolver um processo educativo e estético de

7 Soroban, é um ábaco japonês utilizado para realizar operações matemáticas de soma, subtração,

multiplicação, divisão e até raiz quadrada, aperfeiçoando o cálculo mental. Por isso é adota como

ferramenta para auxiliar no ensino de matemática para cegos. 8A supressão da percepção

visual neste caso se faz por meio do uso de vendas por parte do público, seja este cego ou não.

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criação teatral, de construir um espetáculo a partir da articulação de histórias de vida

e narrativas ficcionais em torno da cegueira, tendo como referência a supressão da

percepção visual8 em favor da exploração cênica dos outros sentidos,

compreendendo o processo artístico como um processo de formação dos artistas

envolvidos.

Assim, o projeto provoca uma reflexão acerca da etimologia da palavra teatro,

théatron no grego, que de acordo com Patrice Pavis (2011, p.409) seria

“o lugar de onde se vê”, ao transformar o teatro no lugar onde não se vê, e ampliando

o entendimento do ato de ver como algo que está para além dos olhos, algo que se

dá de corpo inteiro através da multissensorialidade, gerando um trocadilho com o

nome do próprio projeto.

As investigações do projeto culminaram no espetáculo O que os olhos não

veem, fundamentado na experimentação multissensorial sem o agenciamento da

visão, provocando o público a encontrar outras formas de olhar, que proporcione

dialogicamente o enxergar do outro e a nós mesmos através da cena teatral,

organizada por estímulos sensoriais. Todo o seu processo de criação ocorreu durante

os anos de 2014 e parte de 2015, estreando, neste mesmo ano e passando por

remontagem devido a mudanças no elenco durante o semestre de 2015.2.

De acordo com os relatórios de ações de extensão do grupo na UFRN (ALVES,

2014 e 2017), os estudos teóricos que implicam diretamente nas práticas

desenvolvidas nas ações de extensão do projeto, ocorrem a partir das iniciativas dos

próprios participantes e através da orientação do Professor Dr. Jefferson Fernandes,

em um diálogo direto com arcabouço teórico entrelaçado pelas provocações da

dimensão do olhar do filósofo esloveno Evgen Bavcar, respaldados pela dimensão

multissensorial do corpo humano, segundo as pesquisas de Amanda Torjal e José

Alfonso Ballestero-Álvarez, tencionados pelas provocações do fazer teatral e da

recepção no teatro pelo francês Denis Guénoun e pelo professor Dr. Flávio

Desgranges. Também se embasam nas questões de alteridade e formação de sujeito,

a partir da análise de discurso, segundo Jacques Rancière e Mikhail Bakhtin

respectivamente.

O espetáculo retrata as várias fases da vida de João (menino/homem) ao

misturar sonho e realidade. As “inutilezas” do poeta Manoel de Barros, se

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transformam em estímulos para compor o espaço cênico de uma viagem em busca

da Rua Furtacor, misturando atores, personagens e espectadores junto com João,

através dos percalços da vida de uma pessoa cega.

(cartazes do espetáculo “O que os olhos não veem”)

Tencionando a dimensão de apreciação estética no teatro, o espetáculo O que

os olhos não veem questiona a ideia do estudioso francês Denis Guénoun, de que “o

teatro sem visibilidade não é teatro” (2003, p.51), construindo sua argumentação com

base na teatralidade a partir da exposição visual, por meio das ações dos atores ao

tornarem visíveis aquilo que para o autor é invisível, no caso, a palavra. O texto teatral.

Quando se centra o fazer teatral no ato de expor as coisas ao espectador, é

possível ter teatro quando a capacidade de visualizar o que ocorre em cena é vetado?

Esse questionamento dá margem à reflexão sobre a apreciação do espetáculo, onde

os espectadores são convidados a vivenciar outra forma de ver aguçando os sentidos

e, ainda assim, afirmando em cena uma apreciação teatral que está para além dos

olhos.

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Quando o projeto de extensão começou em 2014, suas atividades eram

desenvolvidas principalmente no Departamento de Artes da UFRN, e seus

componentes eram 12 alunos do curso de licenciatura em Teatro da própria

instituição. O projeto permitia articular a formação artística e docente dos alunos do

curso de Teatro, a partir da interface entre Estágio Supervisionado de Formação de

Professores de Teatro, com a ação extensionista de constituição de um espetáculo

teatral. O projeto preocupava-se também com a formação do espectador, uma vez

que o olhar para a cena teatral, como de resto, para qualquer artefato artístico,

pressupõe um processo educacional, o qual pode ser mediado teatralmente.

(DESGRANGES, 2003; 2006). Refletindo sobre essas questões da apreciação teatral

e da participação dos espectadores dentro do contexto da proposta cênica do O que

os olhos não veem, Everson Oliveira Cruz, ator e diretor do espetáculo, passou a

desenvolver sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes

cênicas da UFRN, intitulada O que os olhos não veem: O não visível como forma

sensível de apreciação, sob a orientação da Prof.ª. Dr. Karenine de Oliveira Porpino

e co-orientação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves.

Atualmente, o projeto de extensão é composto por alunos de diversos curso s

da graduação da UFRN, tais como, Teatro, Artes Visuais, História, Música, Educação

Física, Gestão Hospitalar. Tem circulado pela capital e pelo interior do estado do Rio

Grande do Norte, apresentando o extrato cênico do espetáculo O que os olhos não

veem (que agora, está sob a direção do ator Ivan de Melo8), ministrando oficinas,

promovendo palestras e discussões sobre acessibilidade cultural, audiodescrição,

ensino de Teatro e compartilhando aspectos sobre o seu fazer teatral.

Foi nesse contexto que vivenciei na pele aquilo que mais à frente iria me levar

a desenvolver esta pesquisa, que se volta para as práticas de preparação do elenco,

com o intuito de criar e atuar em um espetáculo teatral no qual o público, seja ele

8 Ivan de Melo, estudante de bacharelado em História pela UFRN, bolsista do projeto de extensão O que os olhos não veem, ator integrante do elenco do espetáculo, que leva o mesmo nome do projeto e diretor do extrato cênico apresentado atualmente.

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vidente ou cego, é convidado a fazer uso de vendas para restringir o uso do sentido

da visão durante toda apreciação.

As práticas de preparação de elenco eram desenvolvidas e mediadas por

Everson Oliveira, diretor do espetáculo em andamento, como um processo de

imersão no universo multissensorial e tinham o caráter de oficinas e laboratórios de

investigação dos sentidos. Tudo era novo para o grupo como um todo. Estávamos

ainda por descobrir como trabalhar e desenvolver o processo criativo.

Com o passar do tempo os atores começam a propor exercícios e a conduzir

alguns encontros, tal como a experimentação com bacias e águas para criação de

sonoridades, vivência mediada por Erhi Araújo9. Isto devido ao processo criativo

colaborativo do grupo e a intervenção como abordagem metodológica de trabalho.

Até este momento eu participava do projeto na condição de atriz e desde então,

passei à função de conduzir e mediar as práticas corporais com o elenco, apoiada na

intenção de transpor os atores para uma experiência de exploração da

multissensorialidade, através supressão do sentido da visão por intermédio do uso de

vendas pretas para que, deste modo, durante todo o processo, os envolvidos

investigassem suas percepções sensoriais. Isso ocorreu devido a necessidade de

Everson assumir para além da função de diretor a de ator, compondo parte do elenco

do espetáculo.

Inicialmente, após propor exercícios de cena em parceria com Ivan de Melo

nos ensaios, comecei a assumir a função de oficineira, propondo e mediando a

condução das oficinas ofertadas pelo projeto de extensão em suas ações de

extensão. Assim, passei a levar as práticas corporais desenvolvidas com os atores

nos ensaios para a comunidade externa e interna.

Paulatinamente, passei a auxiliar Everson na direção do espetáculo O que os

olhos não veem, como auxiliar de direção e colaborei com a condução de algumas

9 Erhi Araújo é músico, ator, professor de teatro formado pela UFRN, que durante os anos de 2014 e metade de 2015, fez parte do projeto de extensão O que os olhos não veem o coração não sente,

desenvolvendo pesquisas sobre as matrizes sonoras para criação do espetáculo e neste período, também compunha parte do elenco.

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práticas, associadas à preparação do corporal dos atores, para criação de cenas e

antes das apresentações.

(Foto do espetáculo O que os olhos não veem o coração não sente. Arquivo do grupo O que olhos não

veem)

Estar exercendo a mediação das práticas corporais me dispôs a investigar e

questionar: Quais os seus diferenciais? De que maneiras devo realizá-las? Quais são

os resultados obtidos com elas? Essas indagações geraram o nascimento desta

pesquisa.

1.2 Outra forma de ver, “é preciso transver o mundo”

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Na busca por uma forma de conduzir o processo com os atores dentro do

projeto de extensão, ainda sob a condução de Everson, o grupo se aproximou do

Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, LUME 10 com suas

investigações sobre a técnica-em-vida e o estado de representação (BRUNIER, 2009,

p.21-26), no intuito de abordar os mesmos princípios utilizados pelo núcleo em sua

metodologia para criação dos exercícios e práticas corporais do projeto.

A técnica-em-vida compreende o fazer artístico do ator como algo que não

trabalha e trata seu corpo como um mero invólucro de músculos, mas que o entende

como a totalidade do ser, como aquilo que lhe afeta em vida e que, para isso, é

preciso construir um meio que consiga entrar em contato com ele mesmo e com o

espectador.

O termo “em-vida” empregado por Luís Otávio Burnier 11 (2009) está

relacionado com o “corpo-em-vida” que Eugenio Barba13 (1994) utiliza para intitular

um corpo em contínua interação com os refúgios mais escondidos da alma humana,

pois para Barba (1994, p. 218), “não se deve trabalhar com os extremos, mas sim

com a gama de nuanças que estão no meio. O corpo-em vida é uma questão de

nuanças”. Ou seja, os extremos mencionados por Barba são fatores externos ao ser

humano e para ele, era importante trabalhar com as questões internas: com os

sentimentos, dúvidas, angústias e afetações do ser.

Segundo as ideias do LUME, ao se aproximar dos estudos de Barba para

cultivar esse corpo-em-vida é que concretiza o treinamento cotidiano, ou seja, a

técnica-em-vida. Constitui-se um espaço para o ator trabalhar a si mesmo, não a

personagem ou a cena, muito menos o espetáculo, mas as conexões entre seu corpo

e sua alma, transformando suas emoções em ações físicas.

As emoções do ator, neste caso, não são algo de ordem psicológica, imaterial

ou impalpável, e sim, algo concreto, físico e muscular, com capacidade de movimento,

fluidez e dinâmica interna, ou seja, é o corpo. O ato de representar surge da ação de

10 LUME é o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) com sede em Barão Geraldo, Distrito de Campinas (SP), fundado em 1985 pelo ator, diretor

e pesquisador Luís Otávio Burnier. Possui um coletivo de sete atores que se tornou referênc ia internacional para artistas e pesquisadores no redimensionamento técnico e ético do ofício de ator. 11Luiz Otávio Burnier (1956-1995), ator, diretor e fundador do LUME que centrou suas investigações

na busca de uma metodologia e sistematização de uma técnica corpórea e vocal pessoal para o ator. 13 Eugenio Barba, diretor fundador do Odin Teatret com pesquisas voltadas para Antropologia teatral, presença do ator e treinamento.

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treinar e se caracteriza pela construção de ações físicas por parte do ator para criação

do personagem; em outras palavras, “o ator que não interpreta, mas representa, não

busca um personagem já existente, ele constrói um equivalente, por meio de suas

ações físicas.” (BURNIER, 2013, p. 23)

As ações físicas instituem o treinamento cotidiano como espaço para

desenvolver a criação, conforme descreve Renato Ferracini 12: “a maneira de se

trabalhar todo esse processo é a criação de um espaço onde o ator, assim como o

pianista, que necessita de horas de treinamento em um piano durante toda a vida,

possa trabalhar todos os componentes de sua arte.” (FERRACINI, 2003, p.126)

No que se refere ao treinamento do ator nesta pesquisa e nas atividades com

o projeto de extensão, me aproximo das ideias e princípios do treinamento adotados

pelo LUME, por meio dos escritos do Luís Otávio Burnier e Renato Ferracini, nos

aspectos do ato de treinar como uma busca por estados corpóreos para criação.

[...] treinar é uma busca de estado e não exercícios a serem executados em

um espaço-tempo exato. Na verdade, no estado do treinar, pouco importa a execução precisa e exata do exercício ou sua evolução enquanto complexidade. Importa, sim, o uso dos exercícios para se atingir um limite,

uma borda, criar fissura em sua géstica conhecida e cotidiana ou mesmo em seus clichês expressivos artísticos singulares, no caso de um ator com experiência (FERRACINI in LEMES, 2010, p.68).

Porém, na busca de um suporte metodológico para o trabalho com os atores,

passei a refletir sobre o uso do termo “treinamento” adotado pelo LUME e tantos

grupos, diretores, atores e coletivos teatrais no Brasil, embora compartilhe o

significado do treinamento esse grupo e faça uso de suas experiências para o meu

trabalho de preparação de atores. Reflito que o termo treinamento é também usado

socialmente com outras conotações, diferentemente daquelas dadas pelo LUME, ou

seja, existe uma relação do treinar com um ato de adestramento ou mesmo de busca

de resultados quantitativos relacionados somente a mecânica corporal, a exemplo de

rotinas de exercícios físicos praticados por atletas de alto rendimento. Este uso do

termo treinamento não possui a intenção de criar significados gestuais para as ações

12 Renato Ferracini. Ator-pesquisador-colaborador do LUME desde 1993, desenvolve pesquisas sobre codificação, sistematização e teatralização de técnicas corpóreas e vocais não interpretativas para o ator.

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dos praticantes e não possuem uma dimensão estética, tão necessária ao fazer

teatral.

No volume três da História do Corpo escrito por CORBIN (2008) há a seguinte

citação, retirada de um dicionário de esporte francês de 1872, sobre o uso da palavra

treinamento: “Palavra reservada durante muito tempo a preparação dos cavalos de

corrida: a palavra ‘treinamento’. Essa prática consiste em corridas seguidas de

cuidados que têm por objetivo livrar o cavalo de seu supérfluo e ensiná-lo a correr.”

Esse sentido do termo “treinamento” como algo similar ao adestramento não interessa

para essa pesquisa.

O treinamento para preparação dos atores é o que importa como postura

adotada durante as proposições de práticas corporais com os atores do projeto de

extensão e é o que se aproxima da ideia do diretor russo Constantin Stanislávski 13

descrita por Jerzy Grotowski (2010).

Stanislavski combatia essa falta de disciplina cotidiana dos atores e

propunha alguns exercícios preparatórios que chamava de “treinamento”. Tratava-se, de um lado, de “jogos de ator” e, de outro, de exercícios para desenvolver as qualidades do corpo, da voz, das articulações. Stanislavski

acreditava que o ator devia fazer vários tipos de ginástica, esgrima, um pouco de acrobacia. Se o ator hesita antes de um salto difícil, hesitará antes do ponto culminante do seu papel.” (GROTOWSKI, 2010, p.165)

Meu intuito para com os atores do projeto O que os olhos não veem é a

construção de um processo de imersão através de práticas corporais, associadas ao

universo da multissensorialidade e das matrizes de criação do espetáculo, um lugar

onde os atores iniciam o contato com a ausência da visão. Essa ação tem como

objetivo despertar o potencial de criação cênica para uma apreciação não visual,

acionar um estado de presença nos corpos dos atores de maneira tal que

permaneçam ativos em cena.

A diferenciação maior entre o trabalho do LUME com o treinamento do ator e

o meu trabalho, junto ao projeto de extensão, está na associação direta com um

processo de criação cênica, no caso, do espetáculo O que os olhos não veem. Para

13 Constantin Stanislávski (1863-1938), Ator, diretor e professor de atores, que fundou do Teatro de

Arte de Moscou. Desenvolveu várias pesquisas sobre a interpretação do ator e sua movimentação natural no palco. Seus principais escritos são os livros: A Preparação do Ator, A Construção do Personagem e A Criação do Papel.

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o LUME, o treinamento tem o intuito de descobrir uma técnica pessoal e não está

necessariamente associado ao trabalho com o espetáculo, o que Ferracini descreve

da seguinte maneira:

Esse treinamento deve ser sistemático, cotidiano e disciplinado. É um trabalho pré-expressivo, pois no momento do treinamento, o ator não

trabalha a personagem ou um espetáculo teatral, mas é o espaço onde o ator se trabalha, seja descobrindo sua técnica pessoal, seja adquirindo e assimilando elementos de técnicas aculturadas, já estruturadas e

codificadas (FERRACINI, 2003, p.116)

No caso do trabalho com os atores do projeto de extensão, há sempre uma

perspectiva de criação de espetáculos teatrais. O ato de treinar assume um caráter

de preparação devido a sua ligação direta com o processo criativo, ou melhor, um

está diretamente ligado ao processo de composição da cena.

Penso na natureza de treinar aproximando-me da reflexão sobre o significado

do termo preparação, que segundo o dicionário de língua portuguesa Aurélio, é o

seguinte: “processo de aprontar qualquer coisa para uso”. Levando em consideração

que estamos tratando de atores, não podemos pensar que possuem o caráter de

coisa para uso, mas quero ressaltar a ideia de processo de aprontar, que dá margem

para construção, deixar pronto, mesmo sabendo que o corpo do ator nunca estará

pronto, não pensando na ideia de finalização, e sim, que este sempre estará aberto à

criação, na busca de novos modos de ser. Associo a preparação dos atores durante

o treinamento como o processo que lhes permite estar preparados para a cena, o

lugar da construção cênica.

Assim, trato o treinamento, associado a criação de um espetáculo, na

preparação corporal dos atores. A manutenção do ofício do ator não se dissocia do

processo criativo: ambos são coabitantes do mesmo território.

Por esse motivo adoto, nesta pesquisa, a ideia de preparação dos atores a

qual nomeio como ato de transver. Isso surge da necessidade de estarmos (eu e os

atores) e impregnados pelo universo da cegueira para conseguirmos compreender o

que os olhos não veem. Os atores foram sim preparados para perceberem o mundo

de uma outra forma, já que não seria possível criarmos um espetáculo com a proposta

de apreciação sem o sentido da visão se não sentíssemos isso na pele.

Tomo emprestado da poesia do poeta mato-grossense, Manoel de Barros a

ideia de transver o mundo para nomear o trabalho corporal com os atores dentro do

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projeto de extensão O que os olhos não veem como ato de transver, acreditando na

necessidade de mudança de perspectiva sobre o treinamento de atores, do sentido

da visão e do fazer artístico. Com o intuito de associar ao ato de transver à ampliação

dos sentidos e de mudança de perspectiva em relação ao mundo, ao outro e a si

mesmo. É neste momento de mudança que acessamos a multissensorialidade como

ferramenta, ao entender que esta acontece, como descreve José Alfonso Ballestero-

Álvarez (2003, p.13),

Na ausência de um sentido, na maioria dos casos, obtemos a informação de elementos por meio de outros sentidos de percepção sensorial, em separado

ou em conjunto, naquilo que se denomina multissensorialidade, são aquelas percepções elaboradas entre: ouvido e tato, nariz e tato, boca e tato, etc.

Acredito que se faz necessário, como alertado no poema, transver o mundo

para redimensionarmos a forma com a qual nos relacionamos com ele e refletindo

sobre a proposta de preparação dos atores, faz-se necessário essa mudança através

do ato de ver, que sai do âmbito de observação por meio dos olhos, acessando uma

dimensão tátil e sonora em um aspecto multissensorial. Para isso, é fundamental que

os sujeitos se coloquem em um estado relacional com aquilo que se propõem

transver.

Me provoco a refletir sobre o termo transver de Manoel de Barros como uma

ação que o poeta dá à manifestação de artistas no mundo, um exercício transgressor

que o fazer artístico tem através da imaginação e da busca constante de formas de

investigar o novo, de mudar a lógica, de reinventar a si e a realidade. Isso me permite

fazer uma ponte com o que ocorre na preparação corporal dos atores do projeto de

extensão O que os olhos não veem como esse lugar da reconfiguração, a partir das

provocações do projeto em fazer teatro de outra forma, sem o sentindo da visão e

que afeta a forma do grupo criar e de desenvolver suas provocações cênicas, os

conduzindo de modo a redimensionar a perspectiva de como se relacionam com o

mundo sem a visão.

Portanto, o ato de transver é o ponto inicial dentro do processo de preparação

corporal dos atores, por meio da investigação não visual no fazer teatral do grupo.

Um exercício que antecede a criação e a apreciação cênica com a ausência do

sentido da visão.

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Tenho como respaldo o processo de imersão que proponho para os atores ao

restringir o uso do sentido da visão, através de vendas de tecido preto. Sugiro aqui

um paralelo entre a ausência momentânea da visão e a investigação dos demais

sentidos para fundamentar o ato de transver. Ora, neste caso, compreendo que é sem

ver que os atores expandem sua percepção transvendo a si e a tudo em sua volta. É

uma forma de aguçar os sentidos e ativar o estado de presença dos atores

(BARBA,1994).

Pensar na visão como algo de caráter meramente físico é reafirmar a

necessidade de distanciamento, de estado de contemplação, atribuindo aqui o

significado do olhar como a função fisiológica de funcionamento através da

observação inicial realizada pelos olhos. Dialogando com as reflexões sobre o olhar

que o filósofo esloveno Evgen Bavcar aponta em seu livro Ponto Zero, “o olhar nos

põe a distância, ausentes de tudo o que vemos e de tudo que pode ser visto; fora,

portanto, da relação corporal.” (2000, p.25). Isto é: ausente do estado relacional, algo

que foge do sentir, do que afeta, criando uma distância entre o sujeito que observa e

o objeto.

No ato de transver, tencionamos o significado da visão e por meio da

multissensorialidade, os atores se colocam em relação com o que se propõe a “olhar”.

É instaurado uma dimensão tátil do olhar, que será tratada no segundo capítulo.

Dentro do projeto de extensão, mantemos a necessidade das práticas

corporais dos atores estarem diretamente ligadas aos processos criativos, sendo essa

uma possibilidade de despertar o ser sensível, apontado por Peter Brook (2000).

O motivo pelo qual as práticas corporais com os atores adotaram o uso

frequente das vendas de tecido no decorrer de seus exercícios foi a necessidade de

encontrar um caminho para eles estarem em contato com a totalidade de seus corpos

e de estabelecerem uma relação de alteridade com os espectadores dentro da

proposta de apreciação, através da restrição do sentido da visão e de aproximação

do universo das pessoas cegas, que é a temática norteadora da criação do

espetáculo.

Tal contato com o ser sensível dentro do trabalho corporal com os atores se

assemelha à busca de acessar o corpo extracotidiano (BARBA 1994). Trata-se de um

corpo que fuja dos ditos padrões de normalidade da ação de cada indivíduo. Nesta

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perspectiva, para os autores, se faz necessário acessar seu potencial de criação,

onde este sai do seu estado rotineiro e passa a dar margem a outros gestos, que

poderão dar lugar a formas de falar, andar e se portar de um personagem.

Poder-se-ia pensar em uma "força" do ator, adquirida por anos de experiência e de trabalho, e em um dote técnico particular. Entretanto a

técnica é uma utilização particular do corpo. O nosso corpo é utilizado de maneira substancialmente diferente na vida cotidiana e nas situações de representação. No contexto cotidiano, a técnica do corpo está condicionada

pela cultura, pelo estado social e pelo ofício. Em uma situação de representação existe uma diferente técnica do corpo. Pode-se então distinguir uma técnica cotidiana de uma técnica extracotidiana (BARBA,

1994, p.30). O corpo extracotidiano não elimina o corpo cotidiano, mas nasce deste e dá

margem à criação que este lhe impulsiona. Na verdade, o estado do corpo

extracotidiano permite que o ator se desprenda da usualidade, para que se faça

presente em seu estado de criação.

Usamos nosso corpo de maneira diferente na vida e nas situações de 'representação'. No nível cotidiano temos uma técnica do corpo

condicionada por nossa cultura, nosso estado social, nossa profissão. Mas numa situação de 'representação' existe uma técnica do corpo totalmente diferente (BARBA-SAVARESE, 2012, p. 83).

Conforme Eugenio Barba relata, o corpo em situação de representação se

encontra em outro estado: o estado de criação, que é diferente do seu estado no

cotidiano, impulsionado pela conduta social e pelos nossos hábitos. A busca pelo

corpo extracotidiano é um dos objetivos do ato de transver, com o intuito de colocar

os atores em estado de representação durante o processo de criação.

Na rotina de encontros do grupo O que os olhos não veem, todas as terças-

feiras das 14h às 17h, no período de junho de 2016 a junho de 2017, na sala “C” do

Departamento de Artes da UFRN, adotei um cronograma para sistematização das

práticas desenvolvidas no ato de transver, de acordo com a seguinte ordem das

ações: alongamento, aquecimento, laboratório de criação e/ou imersão no universo

das cenas do espetáculo.

Para encontrar os caminhos para o ato de transver tive que literalmente tatear

no escuro. Quando como grupo decidimos explorar a experiência não visual nas

práticas corporais não foi fácil, pois não sabíamos como fazer isso, ou como adaptar

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o treinamento corporal a essa realidade. Mas era lógico que não iria ser a mesma

prática só que usando vendas.

(Atores durante o ato de transver. Foto do arquivo do grupo O que olhos não veem)

A saída foi começar a investigar quais os princípios trabalhados no treinamento

que vivenciávamos anteriormente, e que eram fundamentais para o trabalho com os

atores. A estratégia surgiu na disciplina de introdução a educação especial ofertada

na graduação, onde tive contato com a adaptação de exercícios, objetos e mobiliário

para atender necessidades especificas de alunos. E comecei a pesquisar como

adaptar exercícios para realidade não visual dos atores durante as práticas corporais.

As primeiras vivências me mostraram o quanto a condução era necessária,

quase uma ferramenta fundamental no processo de adaptação dos exercícios, que

precisava ser clara e descritiva para que os atores entendessem de fato o que estava

sendo proposto. Essa compreensão só veio a partir de experiências onde a condução

não funcionou e percebi o elenco com dificuldade de fazer o que foi proposto. Me

toquei que tinha o hábito de exemplificar o que propunha executando para que

reproduzirem, e dentro da prática não visual essa estratégia não funcionava. Gerava

uma falha na comunicação e interrompia o fluxo dos exercícios. Tive que mudar a

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descrição dos exercícios, dando instruções com associações imagéticas para os

atores, ou em algumas situações reproduzir o movimento com a minha mão na palma

da mão daqueles que estavam com dificuldades, e até realizar junto com eles para

perceberem a trajetória da movimentação que eu estava propondo.

Antes de dar início às práticas, realizava a distribuição das vendas de tecido e

elástico preto, usadas para restringir o uso do sentido da visão por parte dos atores.

Em seguida, começava a mediar a realização dos exercícios de alongamento com

base em práticas de Yoga e em posturas para relaxar a musculatura. Para isso, eu

também executava o que propunha aos atores, enquanto os observava e descrevia

os movimentos que iríamos fazer. A necessidade de detalhar as instruções de forma

clara e objetiva comunga o artifício do recurso de acessibilidade comunicacional da

audiodescrição, que consiste na prática de tradução intersemiótica da imagem para

palavra. Em alguns momentos, quando um dos atores não compreendia a instrução

dada, adotava o recurso tátil de execução do movimento na mão do ator e/ou

conduzia seu corpo ao percurso da movimentação sugerida, para que ele possa fazer

sozinho.

Como parte do aquecimento, introduzo a ação de caminhar pela sala. A medida

que isso ocorre, peço que os atores comecem a reduzir a velocidade de sua

caminhada, com o propósito de atingir a velocidade lenta com movimentação a partir

do abdômen e que transitem entre diferentes apoios de seus corpos no chão,

transitando entre os níveis alto, médio e baixo, alternando gradativamente entre o

estado de equilíbrio e desequilíbrio, abordando aquilo que Barba (1994) chama de

equilíbrio precário, e descreve abaixo:

“Esse princípio constante se encontra em todas as formas codificadas de

representação: uma deformação da técnica cotidiana de caminhar, de

deslocar-se no espaço, de manter o corpo imóvel. Essa técnica

extracotidiana baseia-se na alteração do equilíbrio. Sua finalidade é um

equilíbrio permanentemente instável. Refutando o equilíbrio "natural" o ator

intervém no espaço com um equilíbrio de "luxo": complexo, aparentemente

supérfluo e com alto custo de energia, "Pode-se nascer com a graça ou com

o dom do ritmo, mas não com o dom do equilíbrio instável (BARBA, 1994,

p.35)”

Os exercícios de caminhada, que se fundamentam em explorar a condição de

equilíbrio precário, visam acessar a construção de corpos extracotidianos nos atores,

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para que estes rompam com suas ações rotineiras do estado cotidiano e que possam

ativar, dessa forma, o potencial de criação dentro do estado de representação em

suas ações físicas.

Assim que finalizamos o aquecimento, iniciamos o laboratório de criação,

trabalhando ações de interação entre os atores para que os participantes

desenvolvam a escuta corporal do grupo. Por isso, algumas vezes, sugiro que juntos,

todos saltem ao mesmo tempo, guiados apenas pela percepção do som da respiração

do grupo. Em outros momentos, trabalhamos com a adaptação não visual do Jogo

das Conexões, jogo teatral do diretor e estudioso do teatro Augusto Boal (1982), onde

os participantes, a partir da nomeação de uma parte do corpo humano e ao se

entreolharem, se ligam em duplas, trios ou todos, pela parte do corpo anunciada. Na

versão não-visual, quando falo a parte do corpo, os atores tentam se encontrar

através do tato ou, no caso de alguém ficar sozinho, passam a emitir um som para

guiar outra pessoa até ela. Geralmente, estimulo as duplas e trios, mesmo conectados

a se locomoveram pela sala e que encontrem juntos uma formar de caminhar com

essa nova condição corporal.

Outro exercício adaptado para o ato de transver é uma dança onde os

parceiros dançam a partir do contato de seus pulsos. A adaptação é de um exercício

aplicado pelo diretor chileno Javier Díaz Dalannais, que tomei conhecimento durante

a oficina realizada em 2014, pelo projeto de extensão Cores da UFRN14, que estive

presente na condição de participante. O ato de transver essa dança ocorre mediante

o encontro das duplas de atores que transitam pela sala e que dançam sem perder o

contato tátil que ampliamos da ligação inicial do pulso para outras partes do corpo.

Com o propósito de dialogar com a forma de mobilidade que as pessoas cegas

possuem, após a oficina de guia realizada com o projeto de extensão O que os olhos

não veem, em 2015, com a atriz e artista circense cega, Ana Luiza, que também é

professora de mobilidade para cegos, foi inserida a guia dentro das práticas com os

atores, no entanto, no lugar da pessoa ser conduzida por quem enxerga, a guia é feita

às cegas, pois ambos, condutor e conduzido, não veem.

14 Projeto de extensão da UFRN que atuava sobre a coordenação do professor Marcos Andruchak

visando à pesquisa artístico-pedagógica na perspectiva de um processo de encenação colaborativo e

interdisciplinar, permanente, baseada a priori, na vida e obra da artista plástica mexicana Frida Kahlo

e com uma releitura geometricista de suas obras .

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A partir da necessidade do trabalho de coro com os atores, foi criado um

exercício inspirado no trabalho com a máscara teatral do diretor Jacques Lecoq

(2010), chamado Organismo vivo, que consiste na movimentação pela sala em

conjunto com todos os atores inseridos, onde estes constroem gestos que são

absorvidos por todo grupo através do toque, já que todos se encontram muito

próximos uns dos outros. A ideia é que juntos, os participantes componham um único

organismo, que se movimenta junto, semelhante a um cardume de peixes, podendo

até se dissociar, mas que se reencontram por meio de sonoridades emitidas pelos

atores.

(Exercício organismo vivo. Foto do arquivo do grupo O que olhos não veem)

Há um exercício que, dependendo da necessidade de investigação

apresentada pelo grupo, pode ocorrer no início do ato de transver, logo após do

alongamento para trabalhar a escuta do grupo e percepção do ambiente através da

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audição como recurso de localização no decorrer das práticas do encontro, ou na

finalização das práticas corporais do dia para encerrar tudo o que foi realizado,

diminuindo a euforia e exaustão física, preparando todos para o momento de

avaliação de tudo que ocorreu. Esse exercício é o de prolongamento da escuta do

professor de música Murray Schafer (1991), que consiste em um momento de

observação dos sons. Inicialmente, os que são gerados pelos corpos dos atores: sua

respiração, batimentos cardíacos, dos fluidos corporais, depois, percebe-se os sons

à sua volta e no ambiente que circulam o local onde os participantes estão inseridos,

retornando gradativamente para os sons mais pertos até voltar para si e o som da

respiração.

Durante todo ato de transver, realizo a mediação dos exercícios enquanto

executo boa parte deles juntamente com os atores, com exceção apenas do jogo das

conexões e do organismo vivo. As práticas do laboratório de criação são caminhos

adotados para inserir o grupo no universo de investigação do espetáculo, no caso, a

cegueira e a visão como algo para além dos olhos, a ação de ver de corpo inteiro. E

muitos dos exercícios culminaram na criação das cenas do espetáculo O que os olhos

não veem.

(Registro do ato de transver. Foto do arquivo do grupo O que olhos não veem)

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Retomarei as descobertas minhas e dos atores pelas provocações do ato de

transver nos próximos capítulos dessa dissertação, onde me proponho a correlacionar

os referenciais teóricos e os pontos tratados neste capítulo com os relatos de atrizes

e atores do projeto de extensão O que os olhos não veem sobre a preparação

corporal.

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CAPÍTULO 2: “Ver é algo para além dos olhos: Uma vivência de

corpo inteiro”

Dentro da estruturação da pesquisa, resolvi organizar as discussões com base

em três Eixos Temáticos, criados a partir dos Núcleos de Significados da análise de

depoimentos dos atores do projeto de extensão O que os olhos não veem, que foram

nomeados:

Eixo I: A ação de ver como algo relacional;

Eixo II: Percepções do corpo;

Eixo III: Alteridade.

Abordando neste capítulo o conteúdo referente aos dois primeiros eixos

temáticos e no próximo capítulo, o último eixo temático.

2.1. Eixo Temático I: A ação de ver como algo relacional

“Eu vi como todo mundo vê... com as mãos!”

Neste primeiro eixo temático quero abordar, aqui, aspectos da visão que se constitui

como outra forma de “ver”, que atribuo aos demais sentidos como a possibilidade de

enxergar. Ao discutir a ação de ver como algo que se constrói para além dos olhos e

questionar a postura visocêntrica adotada na sociedade, principalmente, no fazer

teatral, abordo os apontamentos dos atores em seus relatos sobre as experiências

vividas durante o ato de transver, juntamente com as reflexões do filósofo e fotógrafo

esloveno Evgen Bavcar.

Para dar início às questões sobre a dimensão do olhar, trago como epígrafe,

no início deste subcapítulo, uma frase do personagem João do espetáculo O que os

olhos não veem, que em sua infância, não conhecia o mar e inventava histórias sobre

ele para esconder essa realidade das outras crianças. Quando João é questionado

por outra criança se ele viu e como foi que viu as coisas que relatava sobre o mar,

sua resposta foi que “Eu vi como todo mundo vê... com as mãos”.

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A conduta de tocar para analisar um objeto é muito comum na fase da infância,

na maioria das vezes vem acompanhada do alerta de um adulto para não tocar, só

olhar, ou até a frase de advertência “você vê com os olhos, não com as mãos”. No

entanto, o fotógrafo cego Evgen Bavcar tenciona o caráter da visão física, aquela que

ele nomeia proveniente dos olhos.

Para ele, esse ato de ver com os olhos produz “o olhar que não vê a verdade”

(2000, p.17), pois afirma que somente o toque pode confirmar a existência de um

objeto. O que contradiz a frase de advertência do adulto - a ação de tocar da criança

-, como na situação descrita anteriormente, ou seja, para o autor há uma necessidade

de exercer uma exploração tátil sobre os objetos para assegurar a veracidade de sua

existência. Deste modo, a ação de tocar que por horas é reprimida à criança, para

Bavcar, se faz necessária que ocorra, o que reforça o discurso do personagem do

espetáculo, de que “se vê com as mãos”.

Para o fotógrafo, a visão física é aquela proveniente dos olhos e está aberta

ao engano, algo semelhante à visão das sombras dentro da caverna no mito de

Platão, na obra A república, em que prisioneiros supõem um mundo a partir do que

veem no interior da caverna, onde estão há muito tempo, e tudo o que sabem é a

partir das sombras que veem e que sua percepção não condiz com a realidade fora

deste espaço. Para conseguir saber como são as coisas seriam de fato, é necessário

sair da caverna, abrindo mão da percepção que possuíam, fruto do seu campo visual

e passando agora a explorar, se relacionar com as coisas a sua volta, tocá-las, cheirá-

las, não somente as ver. Verdadeiramente livres do olhar aprisionado por aquilo que

os olhos podem avistar e expandir o ato de ver a medida que nos relacionamos com

o mundo.

Bavcar atribui outras características à ação de olhar, como o toque, ao dar a

esta uma dimensão tátil e a partir dos escritos do historiador Marc Bloch15, que afirma

que o tato seria o único sentido capaz de promover a capacidade de ver de verdade

por ser “um olhar chegado”, ou seja, um “olhar” que ocorre através da proximidade.

Essa habilidade de promover a aproximação entre sujeito e objeto, por meio da

exploração tátil, permite que essa ação seja uma forma de percepção da existência

15 Marc Bloch historiador, que influencia os estudos de Evgen Bavcar sobre mitologia.

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concreta daquilo sobre o qual se exerce o toque, compreendendo sua forma,

densidade, volume, textura e temperatura. Este ato exploratório, por meio do tato,

transporta para si a capacidade de ver dada ao sentido da visão (portanto dos olhos)

e permite ao sujeito não só contemplar um objeto, mas lhe coloca em um estado

relacional com aquilo que toca, o que caracteriza o “olhar” como algo próximo, que

ocorre perto.

Assim, podemos afirmar que semelhante a Bloch, que nomeia ação tátil como

“um olhar chegado”, a ideia de Bavcar do tato como a visão verdade ira promove um

estado de relação entre sujeito e objeto, permitindo com que um perceba o outro.

Para isso, se faz necessário a proximidade entre ambos, onde se atenta para a

potencialidade dos sentidos.

“A separação entre o homem e os objetos é uma forma de castração moderna. Existe uma divisão entre a substância do objeto e a imagem do Objeto. Os objetos fazem parte do meu corpo, tenho muitos objetos em casa, pedras das

ruas de praga, de minhas visitas ao mundo. Também exprime a materialidade do mundo, porque quando se toca alguma coisa, se toca de verdade, enquanto o olhar imprime distância. Como disse Kant, os olhos são instrumentos da

distância (BAVCAR, Evgen. Jornal do MARGS. Setembro 2001, nº 72)”

Aquilo que Bavcar chama de castração moderna é o que presenciamos na

inibição, por parte da intervenção do adulto, à ação de toque da criança a um objeto

que esta deseja conhecer e explorar, situação essa que relatei anteriormente. E posso

dizer que a fala do personagem João do espetáculo O que os olhos não veem, ao

afirmar que “Eu vi como todo mundo vê. Com as mãos”, além de reaproximar o ato

de ver de uma ação tátil, também gera a possibilidade de “ver” com outros sentidos,

aproximando da ideia de percepção. João consegue ver porque toca, explora, está

próximo e se relaciona daquilo que vê.

O pensamento não é reduzir a ideia de ver, mas permitir a ampliação do

conceito de ver para o corpo como todo e perceber que imagens que são geradas a

partir dos estímulos sensoriais, promovendo uma relação “corpo a corpo” com o

mundo a sua volta. É permitir se tocar, cheirar, ouvir, esbarrar, viver as condições e

ações que o cercam em interação constante, onde não existe dicotomia entre ser e

estar, pensar e sentir; é o corpo/mente atuando em forma ativa e perceptível.

Essa relação “corpo a corpo” com o mundo, que nos permite enxergar de

outras formas é descrita pelo ator e diretor Ivan de Melo, ao relatar sua percepção

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sobre as práticas corporais sem o recurso do sentindo da visão. Em seu percurso de

formação como ator, tal como durante o ato de transver, compreendeu que ver é sim

algo que se dá para além da visão física e que ocorre na esfera dos demais sentidos,

que se encontram ativos, pulsantes e comunicam tudo aquilo se vivenciam.

“Desde quando eu comecei a fazer teatro, eu sempre me senti mais à vontade

na hora de fazer, nos laboratórios, de iniciar, de propor movimentos com os olhos fechados. Eu sempre senti um campo de acesso muito maior de dentro para fora. Para mim, isso precisava começar com os olhos fechados. Porém,

esses olhos fechados nunca foi uma questão de inatividade do corpo, sabe? Eu inclusive estou lendo um artigo esses dias que fala que quando estamos de olhos fechados o nosso corpo não está em estado de repouso, a gente tem

células que quando a gente está de olho fechado, elas estão trabalhando para mostrar para a gente esse escuro estamos vendo. A gente continua vendo mesmo de olhos fechados. É um outro tipo de visão que coloca o corpo em

um outro estado de ação, um outro estado de reação aquele momento que o corpo se encontra.” (Relato do ator e diretor Ivan de Melo)

O outro tipo de visão que Ivan menciona é o mesmo que aponta Bavcar ao

falar das possibilidades de enxergar um objeto por meio do tato na visão verdadeira.

É os demais sentidos que percebem o mundo. O corpo reagindo a tudo de forma ativa

e compreendendo a vida não só por aquilo que os olhos contemplam, mas de acordo

com que reagimos e interagimos com o que percebemos. Dessa forma, podemos ver

por meio não somente da visão física dos olhos ou através do tato, e sim, com o corpo

inteiro.

Essa proposta de percepção do mundo através dos sentidos rompe com os

padrões da sociedade contemporânea, que se utiliza do campo visual para informar,

vender por meio de propagandas de marcas, entretenimento, sinalização, o que a

constitui como visocêntrica, onde boa parte das informações são expressadas para

comunicar através do sentido da visão. Este hábito se encontra tão enraizado nesta

sociedade que transborda, inclusive, para o fazer teatral, onde os atores são sempre

orientados a olharem nos olhos do outro e a estarem sempre conscientes que serão

vistos pelo expectador, como aponta Ivan ao refletir sobre outras experiências que

teve com os exercícios teatrais, onde “ver” era sempre uma ação imposta e as

possibilidades do não uso da visão física em práticas de preparação de atores, no

caso, o ato de transver, serviam como local para explorar o potencial corporal dos

atores.

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“Eu sempre fui muito repreendido “começa de olhos abertos”, o teatro é muito

um lugar de se olhar, inclusive nos laboratórios, essa coisa de olhar sempre nos olhos. Olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa quando está andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar o não

olhar e quando a gente começa a experimentar mais disso, vai adentrando algumas outras questões. O que se pode explorar a partir da descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas

estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse ser que olha, esse ser que vê, que está sempre propondo coisas a partir do olhar, principalmente, as relações entre os outros. Então, quando você começa a colocar os atores

de olhos vendados para, inclusive, interagir entre si é um outro tipo de relação que você está explorando. É uma relação que está muito mais dilatada. Ela está nos poros mesmo, na pele, na audição, no tato, no olfato, no paladar... Aí

quando você reabre os olhos desses atores, você está com uma outra capacidade, uma capacidade muito mais expandida, um corpo muito mais expandido, fenomenológico.” (Relato do ator e diretor Ivan de Melo)

Promover a ação de “respeitar o não olhar”, a qual Ivan coloca como esquecida

por algumas práticas com atores, é o que dá margem para vivência multissensorial

no ato de transver, onde o diálogo com os demais sentidos não anula a visão e vice-

versa, mas algumas abordagens seguem uma lógica sobre perspectiva

ópticocêntrica16, onde a possibilidade de trabalhar sem enxergar não deve ser levada

em consideração, como aponta a atriz Maria Flor ao refletir sobre o ato de transver:

“me faz pensar sobre essa ideia criada de que o fazer teatral se dá pelo olhar... de

que a troca só é estabelecida se eu encontrar o olhar do outro, mas... que olhar é

esse?”. Devemos refletir sobre a hegemonia do olhar no teatro, onde impera a lógica

“se atores serão vistos”, pensando ainda no olhar físico como fundamental para quem

assiste e para os atores em cena.

Dentro do ato de transver, a partir destes relatos, afirmo que se faz necessário

pensar não só na cena, mas no fazer teatral como todo, inclusive na preparação dos

atores, como um lugar da sinestesia e, portanto, multissensorial, com o intuito de

permitir que estes se relacionem dentro da sala de ensaio e que construam, a partir

da percepção de si e do outro, uma outra imagem; que desenvolvam um olhar

verdadeiro para além do tato, de corpo inteiro e que corpo a corpo, em estado

relacional, dissolvam os limites em “substâncias” que compõem o ser, que é referente

a cada ator e suas “imagens visuais” para construção de novas leituras de si e do

outro, e que todos dentro desta experiência estão conectados.

16 Ópticocêntrica, é termo utilizado para algo centrado nas informações visuais, ou no sentido da visão.

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Entendo que não posso considerar o sentido da visão como algo de cunho frio

ou distante, pois vivo dentro do próprio ato de transver a visão como um recurso ativo

do cuidado e auxílio para com os outros, que momentaneamente não enxergam.

Quem media a prática corporal não faz uso das vendas durante o processo de

condução, pois a sua percepção do que ocorre auxilia os demais para que estes não

se machuquem, sem retirar a autonomia de cada sujeito, permitindo que se

movimentem livremente, alertando-os dos possíveis choques com o outro ou com as

paredes da sala de ensaio, para que assim, os atores consigam lidar com esses

“encontros”. Eu sou, na maioria das vezes, essa pessoa sem as vendas, que está

conduzindo as práticas corporais e zelando pelos participantes dela e estou o tempo

todo consciente que eu e os atores exercitamos o olhar durante o ato de transver,

porém de formas diferentes.

(Registro do Ato de transver. Foto do arquivo do grupo O que os olhos não veem)

2.1.1. De olhos fechados é que me vejo e vejo o outro

Ainda em diálogo com Bavcar sobre como olhar e como este nos distancia, “De

todos os sentidos, o olhar é o único que tem a pretensão de julgar uma situação de

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conjunto, mais ainda, o olhar nos põe à distância, ausentes de tudo o que vemos e

de tudo que pode ser visto; fora, portanto, da relação corporal” (2000, p.25,). Ficamos

diante de algo que posicionamos os olhos para assim, ver, mas não desenvolvemos,

neste processo, um estado relacional no âmbito do contato físico. Nosso contato é

real, porém, de longe.

Daliana Cavalcanti, cantora-atriz e preparadora vocal do projeto extensão,

reflete sobre a inibição que o olhar do outro pode gerar, criando barreiras que em

determinadas situações, chegam a travar as relações sociais.

“E às vezes, o que a gente vê abre um parêntese para o julgamento: a gente

julga mais o que vê e quando a gente não enxerga, imaginamos na nossa mente essas formas, que podem corresponder ao que se vê ou não. [...] acho que esse julgamento do outro diminui por não estar vendo. Você, assim, tem

contato mais com a energia da pessoa do que com a forma da pessoa e eu percebi isso, entende? Você se conecta mais com o que a pessoa é, do que com o que ela se parece.” (Relato da cantora-atriz e preparadora vocal,

Daliana Cavalcanti) É possível romper com essas barreiras e criar conexões muito mais reais do

que a mensurada pelo o que avistamos, ultrapassando a aparência. Pensar em mudar

a perspectiva de ver, colocando-a como algo para além dos olhos, nos localiza e nos

torna imersos, vemos aquilo que por ser tão próximo passamos a nos sentir

conectados. Não estamos fora, na condição de contemplador, e sim, dentro,

interagindo uns com os outros.

“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu entrei no curso, os professores diziam para abrir o olho e é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores

sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui e eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso. Com certeza, é necessário olhar para dentro! É nesse sentido que eu estou falando. Que mesmo de olhos fechados, nessa ideia que só de olhos abertos

eu vou encontrar com o olhar do outro e encontrar com o outro, mas esse olhar pode ser tão vazio. Eu posso olhar tão superficialmente. Eu estou olhando para você, mas não estou vendo você, não estou jogando com você

e quando nós nos conhecemos e conhecemos esses corpos dentro do espaço, não precisa do olhar. Por exemplo: Lila não precisou me “enxergar” para saber que era eu, Thalles não precisou me “enxergar” para saber que

era eu. Existem outras conexões, sabe? Acaba que ficamos mais sensíveis a isso. Esses corpos já estão trabalhando há um tempo, se tocando há um tempo. Então, aguça essa sensibilidade de observação por outros meios que

não sejam a visão propriamente dita e a visão deixa de ser uma coisa. Para mim, nesse momento os olhos deixam de ser as janelas da alma. Não é mais isso, é outra coisa, é algo para além disso. É aguçar os sentidos, é se permitir sentir e estar.” (Relato da atriz Maria Flor)

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O que a atriz Maria Flor relata ao falar sobre a experiência de transver dentro

projeto de extensão O que os olhos não veem o coração não sente, aponta que não

há uma necessidade do sentido da visão manifesto pelos olhos para estar trabalhando

e/ou percebendo o outro, mas da capacidade de relação que nasce no encontro com

o outro, sem precisar vê-lo. Isto ocorre pelos atores se encontrarem nesse momento

em relação, o que os liga de tal forma que não há separação ou distinção entre eles.

É o entendimento de que existem outras possibilidades de observação “por

outros meios que não sejam a visão”, tal como apontado pela atriz; que podemos

ampliar a compreensão de visão e percebermos que o corpo recebe múltiplas

informações o tempo todo.

Para Prof.ª Dr.ª Virginia Kastrup, essa relação de possibilidade de observação

tátil ocorre pela mudança da atenção. Ao relatar uma pesquisa realizada durante uma

oficina de cerâmica do Instituto Benjamin Constant no Rio de Janeiro com pessoas

cegas, a professora apontou duas mudanças da atenção por parte das pessoas

cegas. “A primeira mudança diz respeito ao redirecionamento para o tato de uma

atenção que era, até então, investida majoritariamente da visão” (KASTRUP, 2015,

p.70). Isso ocorre em função de melhorar os procedimentos exploratórios do tato,

semelhante aos que vivenciam os atores dentro do ato de transver.

Não significa que somente na condição da ausência da visão, seja ela por

cegueira ou por inibição do sentido, como no caso dos atores, ocorra a exploração

tátil e sim, que esse é um recurso utilizado por essas pessoas para se orientarem.

Portanto, a sensibilidade e as percepções do tato são mais valorizadas e passam

fornecer sensações que eram antes somente percebidas através do sentido da visão.

A segunda mudança de atenção relatada por Kastrup é a reversão da atenção,

no qual “a atenção passa de uma atitude de busca para uma atitude de abertura ao

encontro, que se caracteriza pelo gesto de deixar vir” (2015, p.71). Essa mesma

mudança de atenção acontece com os atores do projeto quando, nos exercícios de

caminhada pela sala, sem enxergar, passam um pelo outro e percebem esse

indivíduo que encontrou e depois, deixam ir embora. Algo semelhante também ocorre

nos exercícios, cuja proposição é encontrar com alguém através do toque, que em

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acordo alguém assuma a condução da movimentação da dupla e que, depois, ocorra

uma transição para que o outro integrante passe a conduzir, criando um acordo entre

si.

“Naquele exercício que você passou, onde tínhamos que encontrar a outra pessoa e fazer uma espécie de dança, partindo da conexão do pulso, depois

das costas, dos ombros, era muito interessante ver como a gente sabia quem era pela energia, pelo toque, pela corporeidade, mesmo não vendo a outra pessoa. Então, a gente tem essa percepção de sensações, de sentidos, eu

não sei. Mas é como se fosse uma espécie de sexto sentido, para você se conectar com a outra pessoa. Às vezes você se conectava, outras não. Às vezes, você tinha uma conexão maior com uma pessoa do que com outra.

Muito interessante observar tudo isso. Na dança, eu senti muita fluidez e conexão com a pessoa... A diferença do corpo da pessoa... Com uns, você se conectava mais, ou com outros menos. Eu acho que teve troca energética

ao ponto de um alimentar o outro pelo próprio movimento. Inclusive, eu acho que mesmo com a gente sem ter essa noção do espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a gente sentia quando troca o pulso e chegava

outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra textura, outra energia”, era outra coisa.” (Relato da cantora-atriz e preparadora vocal, Daliana Cavalcanti)

Estar aberta para percepção daquilo que lhe chega, e se colocar em um estado

relacional, foram os motivos que permitiram Daliana ter acesso às mudanças que

ocorriam consigo e com o outro com quem se relacionava. Para mim, este relato é

um exemplo que dialoga com a noção de reversão da atenção que Kastrup (2015)

descreve.

(As atrizes Elisiana Gomes a esquerda, e Daliana Cavalcanti a direita, em exercício durante o ato de

transver. Arquivo do grupo O que os olhos não veem)

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Perceber o outro e a si, dentro da vivência, sem o agenciamento da visão,

segue o percurso da reversão da atenção, pois ao estar em estado relacional e aberto

aos estímulos sensoriais que lhe chegam, sua atenção muda de referencial. Não é

mais um objeto que se analisa distante, e sim, aquilo com que o sujeito se relaciona,

ou seja, o ponto de onde parte a atenção é de si, não do outro. Os sujeitos que

chegam são notados por chegarem, não pelo ato de contemplá-los.

2.2. Eixo Temático II: Percepções do corpo

“A pupila dos cegos é o seu corpo inteiro, e eles podem impunemente voltar-se para o sol como se tivessem aprendido o reflexo

condicionado dos girassóis.” (Evgen Bavcar)

Correlaciono os temas desse eixo com as descobertas provenientes das falas

dos atores sobre seus corpos, as mudanças da perspectiva do espaço e de como se

relacionam com a condição de equilíbrio, sem um referencial visual para nutrir as

movimentações na sala de ensaio a partir do termo “atenção a si” segundo Virginia

Kastrup (2015) e os estudos do filósofo francês Michel Foucault (2009 e sobre a utopia

corporal e os espaços heterotópicos. E para uma melhor organização, divido em dois

pontos esse subtítulo.

2.2.1 A criação de um não lugar

A percepção do espaço físico da sala de ensaio, seus limites, a localização das

paredes, janelas, porta e ar-condicionado durante o ato de transver muda; isto ocorre

devido ausência do referencial visual, e por causa disto há uma mudança da atenção,

pois antes, tudo era determinado pelo que se via e durante o ato de transver, tudo é

percebido por meio da multissensorialidade e, principalmente, pelo sentido do tato.

Semelhante ao estudo desenvolvido por Krastrup (2015), nas aulas de cerâmica com

cegos no Instituto Benjamin Constante, onde ocorre o redirecionamento para o tato

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de uma atenção que era, até então, investida majoritariamente da visão (Kastrup

2015, p.70).

“Então, quando a gente muda essa perspectiva em relação ao ambiente e tudo mais, a gente tem outras sensações no corpo, outras sensações internas, e até externas também. Tudo parece maior quando estamos vendados, quando

a gente não está enxergando. Tudo parece ter uma amplitude muito maior, o chão, a distância de uma parede para outra (isso no caso dos exercícios na sala), a conexão com as outras pessoas.” (Relato da atriz e preparadora vocal

Daliana Cavalcanti) Como Daliana aponta, o espaço passa agora ter uma nova configuração, ele

não é mais delineado pelo o que se vê com os olhos, mas pela percepção corporal,

pelo estado relacional que a multissensorialidade vai exercer esse papel de bússola,

de referencial para localização. É como se os atores, no ato de transver,

redimensionassem o espaço onde estão localizados. Ele não é mais as paredes que

se vislumbram ou os limites arquitetônicos daquele lugar, mas é composto por aquilo

com que os atores encontram e com o que se relacionam e percebem. Passam a

constituir esse espaço pela sensação térmica, se é frio ou faz calor, se venta, pelas

sonoridades do lugar, se há barulho de carros, ou se os ruídos do ar condicionado são

mais altos ou se estão distantes. O espaço não é mais aquele que se contempla, e

sim, aquilo com que se relaciona, o que se percebe e permite uma nova construção

desse espaço, como se um quadro fosse desenhado a partir dos sentidos.

Para além disto, os atores passam por reversão da atenção, que promove a

mudança na qualidade da atenção, que passa de uma atitude de busca para uma

atitude de abertura ao encontro e que se caracteriza pelo gesto de deixar vir (Kastrup,

2015, p.71). Essa reversão impulsiona a abertura ao encontro, movimento onde o

sujeito não se encontra a procura de informações, mas aberto ao que lhe chega. Isso

ocorre em função da qualidade da atenção ser alterada de uma atenção centrada na

assimilação de fatores externos e informações no mundo e que visa responder

adequadamente a problemas pré-determinados (Kastrup, 2011), para atenção a si,

voltando a percepção a partir da auto-observação e da investigação da experiência

retornando para si.

A reversão da atenção não é algo que ocorre somente com restrição do sentido

da visão, mas há uma facilidade para que isso ocorra na experiência não visual.

A perda da visão pode ativar processos de transformação do funcionamento

atencional e de intensificação de movimentos de conversão. No entanto, vale

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observar que a mudança da qualidade da atenção não é exclusiva de cegos,

podendo ocorrer com qualquer pessoa (KASTRUP, 2015, p.72).

A abertura ao encontro que a atenção a si promove, é comum em diversas

práticas, dentre as quais se encontram a meditação, as práticas artísticas e a

percepção estética (Depraz, Varela e Vermersch apud Kastrup, 2015, p.71). Durante

o ato de transver, o encontro é que vai promover o entendimento do espaço a partir

de si, através das percepções que lhe chegam. O estado de atenção a si que altera

a compreensão que os atores possuem do lugar que estão durante o ato de transver

e permite a criação de outro espaço que só existe neste momento, um espaço

heterotópico (Foucault 2013).

Compreendendo o conceito de heterotopia a partir das discussões do

filósofo Michel Foucault (2009 e 2013) como a possibilidade da criação de um não

lugar, um lugar utópico, contraespaço, da fantasia, do desejo, da criação, que se

instaura temporariamente em lugares físicos reais.

As crianças conhecem perfeitamente esses contraespaços, essas utopias localizadas. É o fundo do jardim, com certeza, é com certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda de índios erguida no meio do celeiro, ou é então – na

quinta-feira à tarde – a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta,

pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis; é, enfim, o prazer, pois no retorno dos pais, se será punido (FOUCAULT, 2013, p.20).

Aos contraespaços Foucault nomeia como heterotopia, espaços

absolutamente outros (2013, p.21), e que surgem das necessidades humanas,

principalmente da crise, não existindo, para ele, sociedade sem heterotopias. O que

não é de competência somente da criança (a criação), mas os adultos a instaura

constantemente como, por exemplo, a feira livre, que ocorre na rua

(espaço real), mas se instaura somente no momento de sua realização. Após o

encerramento da feira, esta some, e a rua volta a ser novamente o espaço de trânsito,

do dia-a-dia. Não mais a feira.

A heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar real vários espaços,

vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis. É assim que o

teatro fez alternar o retângulo da cena uma série de lugares que são estranhos

uns aos outros: é assim que o cinema é uma sala retangular muito curiosa.

fundo da qual sobre uma tela em duas dimensões. vê-se projetar um espaço

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em três dimensões: mas talvez o exemplo mais antigo dessas heterotopias ,

na forma de posicionamentos contraditórios, o exemplo mais antigo, talvez,

seja o jardim (FOUCAULT, 2009, p.418).

A mudança da percepção do espaço da sala de ensaio, durante o ato de

transver, devido à reversão da atenção, faz com que outro espaço seja constituído

através do não visual e das percepções sensoriais dos atores, que justapõem sobre

os limites físicos da sala. E ao final da preparação corporal, quando as vendas são

retiradas, a heterotopia se desfaz por só habitar durante o trabalho com o elenco.

As heterotopias estão ligadas, mais frequentemente, a recortes do tempo, ou

seja, elas dão para o que se poderia chamar, por pura simetria, de

heterocronias; a heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os

homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo

tradicional; vê-se por aí que o cemitério é um lugar altamente heterotópico, já

que o cemitério começa com essa estranha heterotopia que é, para o

indivíduo, a perda da vida, e essa quaseeternidade em que ele não cessa de

se dissolver e de se apagar (FOUCAULT, 2009, p.419).

O espaço heterotópico do ato de transver só existe enquanto ele ocorre e cria

um tempo próprio: o das percepções de cada ator. Por mais que essa hetorotopia se

manifeste no espaço físico de uma sala de ensaio, ela possui um código claro de

acesso, pois as heterotopias supõem sempre um sistema de abertura e fechamento

que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis (FOUCAULT, 2009, p.420) e

que, neste caso, é o campo da multissensorialidade através do não visual, usando a

venda para inibir o sentido da visão.

A partir deste espaço heterotopico é que o projeto de extensão O que os olhos

não veem consegue refletir sobre a sociedade visocêntrica e ter arcabolso para

fundamentar as criações cênicas com enfoque na apreciação multissensorial, que

constitui a poética do grupo, tal como Foucault aponta as heterotopias como

possibilidade de reflexão e denuncia a realidade ilusória de espaços reais.

“último traço das heterotopias é que elas têm, em relação ao espaço restante,

uma função. Esta se desenvolve entre dois pólos extremos. Ou elas têm o

papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda

qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida

humana é compartimentalizada. Talvez este seja o papel que

desempenharam durante muito tempo esses famosos bordéis dos quais agora

estamos privados. Ou, pelo contrário, criando um outro espaço, um outro

espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bemarrumado quanto o nosso é

desorganizado, maldisposto e confuso. Isso seria a heterotopia não de ilusão,

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mas de compensação, e me pergunto se não foi um pouquinho dessa maneira

que funcionaram certas colónias (FOUCAULT, 2009, p.420 e 421).

2.2.2 Transvendo o corpo

Ainda relacionando as questões da mudança de atenção dos atores durante

o ato de transver com as percepções deste estado, quero abordar a mudança da

compreensão do próprio corpo a partir de apontamentos do elenco sobre o equilíbrio

durante os exercícios na preparação corporal.

Sabendo que durante as práticas corporais, proponho que o elenco, ao longo

de um exercício, caminhe tentando perceber qual o eixo de equilíbrio do corpo, depois

que provoque momentos de desequilíbrio e volte a estabelecer outro ponto de

equilíbrio, podemos notar nas falas dos atores que estes voltam a atenção a si,

rompendo com referencial visual que possuem de si mesmos.

“A questão do equilíbrio, eu me senti mais tranquilo. Uma diferença muito

grande você estar procurando um foco, quando o foco, ele vem de dentro para

fora. E você tem uma concentração, ativa a memória e tudo muda, ele vem

assim de dentro para fora. Uma mudança que ficou muito interessante, eu

percebi isso.” (Relato do ator Thalles Lopes)

A modificação do padrão de orientação, que antes era externo e visual,

conforme aponta o ator Thalles Lopes, agora passa a ser interno e de encontro com

as nuances do próprio corpo, o que provoca um estado de concentração voltado a si

como referencial e que tal mudança é que permite que se desloque e que vivencie os

exercícios. As práticas corporais, durante o ato de transver, são pontos de acesso

para os atores voltarem a atenção a si e às novas percepções do corpo, tal como a

atriz Débora Tenório afirma sobre a experiência de conseguir mapear o impulso do

tremor da perna durante o exercício e o deslocamento do peso do próprio corpo para

se deslocar no espaço, oscilando entre um eixo de equilíbrio a outro.

“Eu acho que consegui ter atenção mais com o meu corpo, principalmente na

hora de andar e trabalhar com o equilíbrio e o desequilíbrio. A minha perna

hoje está doendo um pouco por causa dos exercícios das aulas da graduação.

Aí eu a senti tremer, sabe? Era mais perceptível realmente a troca de peso

que eu fazia para ter equilíbrio. Dava para perceber a origem do tremor na

perna, de onde partia.” (Relato da atriz Débora Tenório)

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Porém, logo no início do ato de transver o referencial visual ainda era muito

forte e retirar o sentido da visão promovia o desequilíbrio involuntário, que afetava o

deslocamento dos atores. Daliana fala da dificuldade de se equilibrar no começo das

práticas corporais, mas a partir do momento que passam por aquilo que Kastrup

(2015) chama de “tempo de espera onde se enfrenta o vazio durante o processo de

reversão da atenção”, os atores voltam para si e a compreensão que possuem sobre

seus corpos muda.

“É muito interessante observar as pessoas quando fazem as oficinas do

projeto, o quanto elas têm dificuldade de desconectar da visão. Claro, eu sei

que quando a gente começou a fazer os exercícios tinha também muita

dificuldade. E em alguns momentos nem lembrava o que era direita ou

esquerda. Perdi noção de equilíbrio, e perdi fácil.” (Relato da atriz e

preparadora vocal Daliana Cavalcanti)”

“Que desafiou muito dos nossos sentidos, dos nossos gestos, da nossa

percepção. Quando a gente estava vendado, tínhamos que fazer exercícios

simples… de virar a cabeça, ou de segurar uma perna. Nossa, é interessante

observar que a consciência corporal muda demais, porque quando a gente

enxerga a consciência em relação ao ambiente, aos outros depende do que

se vê, mas quando usamos as vendas, a nossa consciência é partir de nós

mesmos. Isso é uma mudança brusca! Imensa! E é uma preparação muito

interessante nesse sentido da gente mudar essa perspectiva.” (Relato da atriz

e preparadora vocal Daliana Cavalcanti)”

A capacidade de percepção do corpo a partir da atenção a si permite com que

os atores consigam ter controle e consciência do percurso dos movimentos que

realizam para se deslocar, ativados pela multissensorialidade.

“Nas práticas do Olhos, eu descobri um outro ponto de controle desse

movimento que emana dos olhos fechados, isso justamente pelas outras

percepções que acabaram me trazendo. Tem a ver com a questão da

espacialidade, pela falta do equilíbrio e da percepção do espaço. Isso desperta

um outro tipo de sensorialidade. Isso permite você se deslocar pelo espaço

mesmo e projete movimentos.” (Relato do ator e diretor Ivan de Melo)

Além disto, os atores passam a descobrir potenciais de criação e de projeção

de seus corpos, dando a estes, através das movimentações criadas nos exercícios,

um caráter fantástico, como a atriz Elisiane Gomes relata.

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“No ponto do desequilíbrio eu estava bem desconectada. Bem no início, eu

estava andando. Eu sabia o ponto de equilíbrio, sabia o percurso da

transferência de peso de uma perna para outra, o impacto no chão, eu tentei

firmar bem os meus pés no chão para poder sentir o chão. Como a imagem

de barbárvore, os homens árvores do senhor dos anéis. Me percebia bem

grandona andando com os pés ligados ao chão. Essa imagem é muito

recorrente nos trabalhos usando a venda.” (Relato da atriz Elisiane Gomes)

(Criação e investigação corporal da atriz Elisiane Gomes. Arquivo do grupo O que os olhos não veem)

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(Criação e investigação corporal da atriz Elisiane Gomes. Arquivo do grupo O que os olhos não veem)

Apesar da atenção voltar para si, a ruptura com o referencial visual durante o

ato de transver rompe também com a forma do corpo, abrindo caminho para a

possibilidade de delinear outros limites para os corpos, momentos percebidos

enormes e com o alcance sem limites de seus gestos.

“É por causa do rompimento com a forma é que esse corpo se torna sem

órgãos. A gente consegue mesmo retomar a originalidade desses movimentos

ao ponto que esses corpos se tornam um só, como o da Flor e da Lila. É como

um corpo sem forma. Quando a gente retira a visão retira a forma, e o corpo é

todo utopia.” (Relato do ator e direto Ivan de Melo)

Sem o referencial visual, não há um limite fechado. Os atores se abrem ao

estado relacional e recriam a forma de seus corpos a partir de como se percebem.

Esse percurso cria um corpo cuja forma só existe na heterotopia do ato de transver e

que devido ao ser caráter fantástico, como no relato de Elisiane, e utópico, como

aponta Ivan de Melo, posso aproximar do que Michel Foucault chama de corpo

utópico.

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A utopia corporal para Foucault (2013) é criada para apagar a ideia do corpo

quanto prisão, pois a utopia é um lugar fora de todos os lugares. Assim, como o ato

de transver se constitui como uma heterotopia e, portanto, é um não lugar, dá margem

para a criação de utopias. O que foi mencionado no relato de Ivan, acima, que ao

“retirar a visão, retira a forma e o corpo é todo utopia”, pois sem a forma se dissolve

os limites, portanto o caráter de prisão do corpo.

A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu teria um

corpo sem corpo, um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso,

veloz, colossal na sua potência, infinito na sua duração, solto, invisível,

protegido, sempre transfigurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais

inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um

corpo incorporal (FOUCAULT, 2013, p.8)

O filósofo aponta subterfúgios para apagar os corpos e criar as utopias

corporais, tais como as máscaras que modificam a forma do rosto e pensando

cenicamente, dão suporte para criação de outro corpo, as múmias, que eram uma

forma de burlar a mortandade e fazendo o ser eterno. O campo não visual fornece

meios para que a forma se apague e que utopias nasçam a partir disto.

“Tudo me lembrou algo que eu vi no documentário da Marina Abramovic .

Falando que o ser humano consegue ultrapassar a terceira dimensão. E que

a quarta dimensão é a mental, e a quinta dimensão que é justamente que o

corpo não possui forma. Quando eu estava vendado, eu senti basicamente

isso. Que eu não tinha uma forma exata do meu corpo, entendeu? Por isso

que eu conseguia até quando esbarrava ou batia em uma pessoa, ela ia

embora de forma suave, não era algo violento. Ou como quando anda no meio

da rua e leva uma trombada, não tinha nada a ver com isso. Quando venda

quebra a percepção, quebra ego, quebra tudo, entendeu? É tanto que no início

você fica meio assim, mas depois você se acha em todo mundo.” (Relato do

ator Geraldo Rodrigues)

A sensação que o ator Geraldo Rodrigues relata de que seu corpo não possui

forma definida, é semelhante ao que Foucault (2013, p.9) diz ao refletir sobre os

subterfúgios que fomentam a criação das utopias, afirmando “eis então que em virtude

de todas essas utopias meu corpo desapareceu”. A utopia corporal dissolve a ideia

que existe da constituição do que era o corpo. Ele desparece e reconstrói outros com outras formas.

No entanto, assim como o corpo utópico nasce, esse também pode morrer com a quebra da utopia corporal, que ocorre diante daquilo que instaura ou relembra

novamente a existência de sua forma real.

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A palavra grega para dizer corpo só aparece em Homero para designar

cadáver. É o cadáver, portanto, o cadáver e o espelho que nos ensinam

(enfim, que ensinaram aos gregos e agora ensinam às crianças) que temos

um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno,

que no contorno há uma espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa

um lugar. Espelho e cadáver é que asseguram um espaço para a experiência

profundamente e originariamente utópica do corpo; espelho e cadáver é que

silenciam e serenizam, encerrando em uma clausura - que, para nós, hoje, é

selada esta grande cólera utópica que corrói e volatiliza nosso corpo a todo

instante. Graças a eles, graças ao espelho e ao cadáver, é que nosso corpo

não é pura e simples utopia (FOUCAULT, 2013, p.15).

Durante o ato de transver há a possibilidade de dissolver a utopia corporal, o

que ocorre quando há limitação do corpo, retornando à procura de informações que

dialoguem com sua forma real. No momento em que isso ocorre, a atenção deixa de

ter a qualidade de atenção de si, pois os sujeitos não se relacionam mais com aquilo

que lhe chega. Ivan comenta como isso ocorreu quando deixou de observar a si pela

ruptura provocada por outro ator que encontrou durante o exercício, mas que não

conseguiu criar com ele. A utopia corporal foi quebrada.

“Encontrei com uma pessoa no caminho que ela quase que puxava meu pulso

com o movimento dela. Eu não entendia o que ela estava querendo fazer. A

minha utopia morreu naquele momento nos braços daquela pessoa. Eu tive

que parar e sentir aquilo. Eu não encontrei onde eu pudesse levar a pessoa

para perto de mim.” (Relato do ator e diretor Ivan de Melo)

Dentro da perspectiva da instauração de utopias corporais, imersas no ato de

transver, onde o corpo assume uma forma com caraterísticas fantásticas por

dissolverem os padrões da concepção da forma real de seus corpos, os atores, nesse

processo, conseguem se aproximar da ideia do corpo dilatado (BARBA, 1994, p.126),

onde a dilatação não pertence ao físico. O pensamento deve atravessar a matéria

tangivelmente, não apenas manifestar-se no corpo em ação, mas atravessar o óbvio,

a inércia, o que surge automaticamente na nossa frente quando imaginamos,

refletimos, agimos. Pois na preparação corporal, por meio da atenção a si, reflete-se

e age dando margem para a utopia corporal, como relata a atriz Maria Flor, “a

dilatação do corpo no espaço, permitindo abrir poros e janelas de onde jamais

imaginaríamos enxergar”.

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Ainda em diálogo com Flor, ela diz: “Acredito nesse campo de investigação

pelos sentidos, que nos permite aguçar e sentir enxergar e inclusive criar a partir de

coisas que são óbvias ao nosso cotidiano”. Afirmo que o ato de transver se configura

como espaço de criação e rupturas através do gatilho inicial, a restrição do sentindo

da visão, que dá margem para a atuação da abordagem multissensorial, permitindo

a reversão da atenção para si, arcabolso para conhecimento do corpo, promovendo

a ruptura com o padrão corporal e instaurando o corpo utópico, ou seja, um corpo

cênico.

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CAPÍTULO 3: Eu sou você, eu vejo você

“Mergulhei no mar azul No vento avoei

Eu quis ser o sol Para entrar pela janela dos olhos de quem não vê

Eu sou você

Eu vejo você”

(Adaptação da letra da música “Eu sou você” de Alceu Valença feita pelos atores do Grupo O

que os olhos não veem)

Ao me questionar sobre a importância da vivência no ato de transver com os

atores do projeto de extensão O que os olhos não veem, obtenho como resposta inicial

a proximidade com a estética multissensorial, adotada pelo grupo, para concepção

cênica de seus trabalhos, cujo ponto em comum é a experiência não visual.

Desde o início do projeto de extensão tínhamos clareza que iríamos explorar e

construir espetáculos onde as cenas não contariam com o sentido da visão para sua

apreciação. E para isso se fazia necessário explorar a percepção do elenco enquanto

passavam pela restrição do sentido da visão momentaneamente, tal como os

espectadores iriam vivenciar durante o decorrer das apresentações dos extratos

cênicos e do espetáculo.

Como o ator e atual diretor do grupo, Ivan de Melo comenta, em seu relato

sobre essa relação de proximidade entre o ato de transver e a estética de trabalho

adotada, a experiência de passar por práticas sem o recurso da visão por parte dos

atores se configura como um momento de aprendizagem e compreensão daquilo que

o projeto está se propondo a levar ao público.

“Eu acho que é muito necessário... Essencial, na verdade, que nós passemos por esse processo, porque a todo momento, a gente está treinando, nos

formando quanto ao público o que desejamos alcançar. A gente não faz simplesmente, também assiste durante os nossos ensaios, tem essa troca. Ao mesmo tempo a gente não projeta as sensações, não somos óbvios, a

gente sai da obviedade, justamente. A gente experimenta isso nos laboratórios. É necessário que haja esse deslocamento do ator na experiência de viver o mesmo estado do público. É uma formação do ator e

espectador não vidente. Então, por mais que a gente não assista o nosso espetáculo, na hora em a gente apresenta, a gente tem ali uma afinidade e após o espetáculo, quando escutamos o que público fala, a gente se sente

muito próximo do que eles estão falando. A gente já está ali. Não somos alheios àquilo. É um campo infinito. Não estamos trabalhando com adaptação para necessidades físicas de atores e quase tocamos a sinestesia.” (Relato

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do ator e diretor Ivan de Melo)

Essa formação que Ivan fala, “nos formando quanto ao público que desejamos

alcançar”, é devido a necessidade de testar como seria passar pela experiência não

visual tal como os espectadores, já que não havia ninguém para ensinar ou dizer como

devíamos fazer, ou como seria.

Experimentar as vendas tal como os espectadores farão nos espetáculos

permite aos participantes do projeto de extensão O que os Olhos não veem apropriar-

se da estética cênica que propõem enquanto grupo. Promover esse espaço de auto

formação é de extrema importância.

Esse espaço de formação se instaurou a partir do ato de transver e se estendeu

aos laboratórios de criação de cenas. Isso nos permitiu compreender que os corpos

percebem o mundo de outra com outra qualidade de atenção, a partir do deslocamento

dos atores durante o ato de transver para viver uma experiência no mesmo estado

que o público, promovendo uma relação de alteridade que se estabelece por parte do

elenco para com os espectadores durante o espetáculo.

3.1 Se colocando no lugar do outro

Compreendendo, inicialmente, alteridade a partir do significado do dicionário

Houaiss de língua portuguesa (2009), que diz se tratar da “natureza ou condição do

que é outro, do que é distinto”, pode-se considerar que a transposição dos atores para

o mesmo estado de não vidência dos espectadores, durante a apreciação cênica,

permite que o grupo acesse o lugar alheio, que não lhe pertence, mas sim ao público.

No momento do espetáculo, os atores não assistem a cena e se encontram fazendo

uso do sentido da visão, posição contrária da plateia.

Para o grupo, a concepção estética de seus espetáculos se configura através

da construção de cenas não visuais que exploram a multissensorialidade, que para

sua apreciação se faz necessário uso de vendas por parte do público, o que dar

margem para uma possível relação de alteridade, devido a apropriação do elenco da

condição do que é outro, no caso dos espectadores, durante sua preparação corporal

e que se manifesta nas apresentações cênicas, devido a percepção dos atores desse

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lugar comum e que foi vivenciado por eles em outra instância.

Há um lugar comum entre plateia e atores na experiência não visual, onde o

espectador vive, em cada cena, o processo de deslocamento da atenção, ao deixar o

sentido da visão e passar a focar nos demais sentidos, tal como o decorrer do ato de

transver. Os atores sabem disso por causa da vivência na preparação corporal e por

causa dessa relação, conseguem conduzir e dialogar com a plateia no decorrer do

espetáculo.

Eu acho que é como um laboratório de onde a gente leva para cena o que construiu e divide com as pessoas. E por viver experiências como o público vai vivenciar no espetáculo, nós sabemos o que vamos passar para eles e

como é vivenciar isso. (Relato da atriz Débora Tenório)

A palavras da atriz me levam a refletir sobre o ato de transver como

possibilidade de preparação dos atores para a realidade estética das cenas. Refiro-

me a algo que está para além da preparação corporal propriamente dita e que cria

pontes entre o elenco e a plateia. É durante a experiência com a restrição da visão

por meio das vendas que o entendimento sobre a estética de criação do grupo chega

para os novos integrantes. Sendo este, o primeiro contato inclusive, dos novos atores

que entram no projeto de extensão com a perspectiva não visual e multissensorial.

Somos um projeto de extensão de uma universidade federal, onde a

rotatividade de participantes é uma realidade constante. Portanto, integrar quem

chega ao projeto é fundamental, principalmente se essas novas pessoas em pouco

tempo vão desempenhar a função de participes da cena, assim o ato de transver

permite a compreensão da escolha estética de trabalho do grupo.

A atriz do grupo O que os olhos não veem, Daliana Cavalcanti, fala do ato de

transver como “uma preparação em relação a essa coisa da gente se colocar mais no

lugar da plateia. Se colocar mais no lugar da pessoa cega”. Assim ela descreve a

relação de alteridade dos atores para com a plateia, “se colocar no lugar do outro”. E

apontando uma aproximação para com a pessoa cega por parte do elenco, já que as

investigações do campo não visual dentro do projeto passaram a se aproximar do

universo da cegueira e através da não vidência, mas de forma ciente, e mesmo com

a restrição da visão, jamais conseguiríamos saber na totalidade o que vivencia uma

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pessoa cega, pois podemos retirar as vendas ao final das práticas e voltamos a

enxergar.

A partir das falas de Daliana e Débora posso afirmar que o ato de transver é o

ponto inicial da relação de alteridade que os atores passam, e que ocorre em duas

esferas que se entrelaçam, e só se finaliza após o contato com o expectador. Sendo

a primeira com a estética não visual e multissensorial que se aproxima do universo da

cegueira e a segunda, diretamente com os espectadores, no decorrer do espetáculo.

Porém, ambas as relações ocorrem em virtude da investigação da ausência da visão.

De acordo com estudos de Francisco Ortega sobre o posicionamento de

Foucault acerca alteridade, pode se compreender que essa se configura como “um

movimento que possibilita o encontro do outro e que tem como alvo o retorno

(transformado) para si” (ORTEGA apud MENDONÇA, 2012, p.57). Portanto, a

transposição de sua natureza “dita normal” dos atores para uma condição do não

visual, durante o ato de transver, promove o encontro de uma realidade com outra,

que afeta a percepção dos mesmos através da atenção a si e da mudança da

qualidade da atenção. Ao finalizarem essa prática, o retorno para si é impregnado pela

experiência de modo que cada ator não é mais o mesmo.

Esse movimento de retorno a si faz parte do pensamento do filósofo francês

sobre as reflexões entorno da moral grega-romano durante o período da antiguidade,

e a parti disto aborda temas como a formação da identidade do sujeito, o prazer e o

cuidado de si. Tais estudos se encontram presente nas obras da História da

sexualidade e da Hermenêutica do sujeito, que estão diretamente ligadas a reflexão

sobre o posicionamento ético grego, integrando também o entendimento que se há o

cuidado de si.

Foucault parte do significado do termo grego do período socrático-platônico,

epiméleia heautoû, traduzido como cuidar de si mesmo, e que possui como princípio

geral da conversão a si, onde o cuidado é uma ação filosófica, uma prática com

aplicação concreta ao retorno a si. “é preciso que te ocupes contigo mesmo, que não

te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidado contigo mesmo” (FOUCAULT apud

Bolsoni, 2012, p.2).

O cuidado de si diverge de narcisismo ou de egoísmo, segundo a entrevista da

Drª Margareth Rago ao programa Café Filosófico da TV Cultura exibido em 12/08/2018

e que trata da temática “Foucault: a filosofia como modo de vida”, a ideia de renúncia

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é um pensamento da tradição cristã pautado na sujeição, e o pensamento foucaultiano

vem da tradição grega antiga pauta na subjetivação, do cidadão como individuo livre,

temperante e ético. Onde, a temperança corresponde a apatheia, o domínio das

paixões. Rago também coloca o cuidado de si como uma mudança na atenção, que

faz com que o individuo se volte para si e perceba o mundo a partir de si.

O cuidar de si é uma busca, e dentro da conduta grega compõe um estado,

uma arte de si, a cultura de si (Rago, 2018). O cuidado de si precisa do encontro com

o outro, pois segundo Foucault (2010, p.43) “Viu-se que essa arte de si necessita de

uma relação com o outro. Em outras palavras: não se pode cuidar de si mesmo, se

preocupar consigo mesmo sem ter relação com outro.”. A relação com o outro é

fundamental para o cuidado de si, já que o encontro com o outro permiti a reflexão

sobre si dando a mudança e a transformação através da alteridade (Ortega 2012).

A primeira esfera da relação de alteridade, a partir do ato de transver, ocorre

no encontro com a condição aproximada da pessoa cega devido à ausência do sentido

da visão. Isso ocorre quando ao construir metodologicamente a preparação corporal

do grupo, decidimos, enquanto coletivo e eu, como preparadora corporal, a nos

voltarmos para o não visual, adotando o uso de vendas para inibir o sentido da visão

durante os encontros. Apesar de um dos atores ter baixa visão, o elenco é composto,

em sua maioria, por pessoas videntes e, portanto, lidar com o não visual se configura

como campo de pesquisa e, para além disto, é a vivência do que é distinto à realidade

dos atores, em seu cotidiano, que se materializa como campo de investigação no que

diz respeito à cegueira.

Nessa instância, o encontro com o outro, tal qual se refere Foucault em O

governo de si e do outro (2010), se dá pela ausência do sentido da visão, o que permite

transpor os atores para uma realidade outra, na qual a ação de ver acontece de corpo

inteiro através da multissensorialidade e da qualidade da atenção a si.

É nesta esfera que se promove a entrada pela “janela dos olhos de quem não

vê”, como diz a letra da música de Alceu Valença, cantada no aquecimento vocal

durante o ato de transver, para transpor para a realidade do outro, que é alheia aos

atores, mas que permitiu a ampliação do conceito de ver e observar o ser humano

como um ser multissensorial e que permite a compreensão da escolha estética do

trabalho desenvolvido pelo projeto de extensão por parte seus componentes, sendo

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assim, um lugar de investigação do fazer teatral, da preparação corporal de atores, da

apreciação da cena e das estratégias de ensino de teatro a partir do não visual.

3.2 A totalidade do ser sensível

A busca pelo ser sensível é algo já relatado anteriormente no capítulo um.

Entendendo que este se aproxima do estado de consciência corporal dos atores

através da preparação corporal dos atores com o ato de transver é o que permite uma

aproximação daquilo que Peter Brook compreende como ser sensível, do seguinte

modo:

De fato, é muito fácil ser sensível na fala, no rosto ou nos dedos, mas o que a natureza não nos deu, e precisa ser desenvolvido através de exercício, é a mesma sensibilidade no resto do corpo: nas costas, nas pernas, no traseiro.

"Ser sensível", para um ator, significa estar permanentemente em contato com a totalidade de seu corpo. Quando iniciar um movimento, ele deve saber

exatamente a posição de cada membro (BROOK, 2000, p.8).

Esse ser sensível segundo Brook se desenvolve através de exercícios e

práticas, que promove uma conexão com o corpo em sua totalidade e de forma

consciente. O que presenciamos no decorrer do ato de transver tal como foi abordado

nos eixos temáticos I e II no capítulo anterior. Esta sensibilidade que se faz necessária

desenvolver nos atores precisa abranger uma tríplice relação: consigo próprio, com o

outro e com a plateia (Brook 2000). A experiencia não visual do ato de transver

promove por meio da reversão da atenção e da mudança da qualidade da atenção a

relação dos atores consigo e com o outro com quem vivencia a preparação corporal.

Para que esse ser sensível seja completo no ator é preciso que desenvolva o

“contato com a totalidade de seu corpo” (Brook, 2000, p.8), que este esteja conectado,

é preciso está voltado para si. Conseguimos observar durante o ato de transver que

quando ocorre a mudança na qualidade da atenção, essa volta-se para si e a

percepção dos atores muda, saindo da busca de informações e percebendo aquilo

que lhe passa, de forma que estes passem a se relacionar consigo, com os outros e

com o espaço a partir de si. Há uma clareza da trajetória corporal para executar

qualquer movimentação, semelhante o relato sobre a postura do ator Yoshi Oida, “em

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qualquer movimento que execute, Oida sabe exatamente onde estão situados os pés,

as mãos, os olhos, o ângulo da cabeça... Não faz nada por acaso” (Brook, 2000, p.9).

A sensibilidade do ator também deve se dirigir aos colegas que estão em cena,

o que permitirá que este não haja de forma mecânica como aponta Brook, “o ator

mecânico fará sempre a mesma coisa, e portanto, a relação que estabelece com os

colegas em cena não pode ser sutil nem sensível. Quando parece olhar para os outros

atores ou escutá-los, está apenas fingindo.” (2000, p.10 e 11). Tal como exemplifiquei

com o relato da atriz Maria Flor no capítulo dois, uma conexão verdadeira que se

constrói no ato de transver através do estado relacional que os atores estão imersos.

Para Peter Brook o ser sensível abrange também os espectadores, “O teatro

talvez seja uma das artes mais difíceis porque requer três conexões que devem

coexistir em perfeita harmonia: os vínculos do ator com sua vida interior, com seus

colegas e com o público” (2000, p.13). Este vinculo com a plateia no ato de transver

se manifesta através do lugar comum entre os atores e o público, a não vidência, dá

margem para que se desenvolva uma relação de alteridade.

Na segunda esfera em que ocorre a relação de alteridade como fruto do ato de

transver os atores se encontram com o estado de não vidência vivenciado pelo

público, se projetam nas pessoas que assistem ao espetáculo por compartilharem da

experiência da ausência do sentido da visão. Isso permite que o elenco se encontre

conectado a tríplice relação com o todo, e instaure o ser sensível tal qual apontado

por Peter Brook.

Como se não bastassem os dois desafios dificílimos que mencionei, devemos agora examinar o terceiro requisito. Os dois atores que estão em cena devem ser simultaneamente personagens e contadores de histórias. Contadores

múltiplos, de várias cabeças, pois ao mesmo tempo que interpretam uma relação íntima entre si, estão falando diretamente aos espectadores. Lear e Cordélia não apenas contracenam do modo mais autêntico possível como rei

e filha, mas também, como bons atores, devem sentir que estão envolvendo o

público (BROOK, 2000, p.14).

Essa experiência de lidar com a anulação da visão a cada encontro da

preparação corporal, ainda que momentaneamente, fez com que nós, do elenco,

criássemos uma postura de cúmplices da vivência que aguarda cada espectador, ao

se propor a apreciar o trabalho cênico do projeto de extensão. Esse sentimento de

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cumplicidade é partilhado pela atriz Maria Flor ao relatar como se sente em relação à

vivência do ato de transver e contato com o público nas apresentações.

Como eu vivi essa experiência, eu sei o que é vivenciar ela e por isso, posso transmitir ao público e há uma cumplicidade nisso. É o meu corpo-voz que está ali, não é apenas uma experiência de uma tarde. É um compartilhamento

e uma vez atravessado a experiência, fica e vira memória; está em você. (Relato da atriz Maria Flor)

Esse local da alteridade se instaura a partir da experiência durante o ato de

transver e se estende até a apresentação do espetáculo, o que segundo o relato da

atriz acima, ocorre por meio do que os atores vivenciam na preparação. Assim os

atores se tornam sensíveis a cada espectador ao ponto de se reconhecerem como

cúmplices da experiência não visual compartilhada no decorrer do espetáculo.

Nessa perspectiva, considero o termo experiência citado ao longo dessa escrita

como aquilo que nos acontece, uma situação/momento vivido, ou as relações que

estabelecemos com o que está a nossa volta, seguindo o pensamento do estudioso e

professor Jorge Larrosa:

Porque se a experiência é o que nos acontece, o que é a vida senão o passar do que nos acontece e nossas torpes, inúteis e sempre provisórias tentativas de elaborar seu sentido, ou sua falta de sentido? A vida, como a experiência,

é relação: com o mundo, com a linguagem, com o pensamento, com os outros, com nós mesmos, com o que se diz e o que se pensa, com o que dizemos e o que pensamos, com o que somos e o que fazemos, com o que

já estamos deixando de ser. (LARROSA, 2014, p.74)

A relação que os atores fazem entre a experiencia não visual na sala de ensaio

e as reações dos espectadores durante as apresentações promove um estado de

empatia para com público. É como se cada ator, ao se deparar com as pessoas que

assistem o espetáculo lembrasse do que vivenciou na experiência da preparação

corporal, quando o elenco era impedido da visão. Sobre esse aspecto a atriz Daliana

Cavalcanti comenta:

É muito interessante também observar que mesmo que nós, os atores,

estejamos vendo durante todo o espetáculo e o público não, a gente já esteve no lugar delas. A gente tem essa relação de empatia com o espectador. A gente já esteve neste lugar, e sabe como é. Sabe também como é complicado

para quem faz as oficinas. Que a pessoa perde o equilíbrio, perde o referencial visual necessário para muita coisa. É interessante a gente ter passado por essa experiência antes de fazer o texto, o espetáculo. (Relato

da atriz e preparadora vocal Daliana Cavalcanti)

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(Espectadores durante apresentação do espetáculo O que os olhos não veem o coração sente no, na

sala C do Deart UFRN, 2016. Arquivo do grupo O que os olhos não veem)

A experiência não visual dos atores atravessa o tempo e o espaço da sala de

ensaio, chega a reverberar nas apresentações e fomenta outras experiências no

encontro da cena entre espectadores e atores. Aqui se fazem novamente propícias as

palavras de Larrosa (2015):

A experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que às vezes, algumas vezes, quando cai em mãos de alguém

capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto. E esse canto atravessa o tempo e o espaço. E ressoa em outras experiências e em outros tremores e em outros cantos (Larossa, 2015, p.10)”.

Saber o que constitui a experiência não visual que ocorre com os atores durante

o ato de transver, se faz necessário para compreender a criação da cena não visual e

sua apreciação por parte dos espectadores no espetáculo. Ter consciência desta

experiência é o que permite os atores mediarem, em cena, a possibilidade de cada

pessoa da plateia de constituir sua própria experiência, como o relato de Ivan de Melo

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citado no começo do texto aponta.

A alteridade como consequência do ato de transver gera, a partir da experiência

não visual, a capacidade de transformar e formar seres mais sensíveis à realidade do

outro; não só os atores, mas os espectadores também, refletindo outras formas de

apreciação e de criação da cena teatral. Segundo Larossa (2002, p.26), a experiência,

é aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar, nos

forma e nos transforma.

O sujeito da experiência mencionado por Larossa, sujeito que passa por ela e

por ela é formado, é que está aberto à sua própria transformação e assim passa a

estabelecer uma relação de alteridade com o outro. Portanto, a experiência não visual

vivida a partir do ato de transver se constitui uma relação de alteridade entre atores e

espectadores. Essa relação transforma a maneira de ver não só um espetáculo de

teatro, mas o mundo, ao permitir o mergulho, tanto do elenco, quanto do público, no

universo da pessoa cega e da multissensorialidade, criando uma relação em que os

sujeitos dessa experiência podem se ver no outro, como na música do início desse

subtítulo: “eu sou você, eu vejo você”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Pensar é estar doente dos olhos

(Alberto Caeiro)”

Embarcar em uma viagem desconhecida foi como começou o trabalho com os

atores do projeto de extensão O que os olhos não veem, pois nunca havia participado

da construção de um espetáculo onde o público “não vê” para conseguir assistir, muito

menos havia preparado atores para “não serem vistos” em cena. Foi uma experiência

nova não só para mim, mas para todos que embarcaram nela.

Trabalhar com os olhos fechados nunca foi uma novidade no meio artístico,

diversos artistas já experimentaram e desenvolveram trabalhos restringindo o sentido

da visão, não era o ineditismo que procurava quando comecei a pensar na preparação

corporal dos atores, e sim, aproximar o elenco da estética do grupo, por isso a

investigação do não visual como forma de apreciação de um espetáculo teatral

influenciou diretamente no trabalho corporal com os atores.

Isso abriu caminhos para começar refletir sobre o treinamento de atores do

Lume, que era uma referência forte para minha formação, e assim compreender que

o que estava fazendo junto com os demais participantes do projeto não era mais um

treinamento, e sim, a preparação do elenco para criação de cenas não visuais a partir

da experiencia sem o sentido da visão.

Assim comecei a questionar como a ausência do sentido visão durante prepara

corporal reverbera nos corpos dos atores. E a partir das falas do elenco obtive como

resposta a mudança da qualidade da atenção e a atenção a si discutido por Virginia

Kastrup. Que nos participantes da prática corporal do ato de transver, a qualidade da

atenção saiu do estado de busca e voltou atenção para si, começando a observar o

que lhe passa, onde o referencial maior não é o externo, mas si mesmo e por tanto

interno.

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Além de compreender outra forma de percepção do mundo a partir da

multissensorialidade, ampliando o conceito que de ver para uma ação de corpo inteiro.

Compreendendo a hegemonia do olhar na sociedade contemporânea, e sobre tudo

no fazer teatral, mas para além disto, entender no ato de transver uma potencialidade

ruptura com essa postura opticocentrica.

Apesar de dar início nessa pesquisa a discussão de como o ver se faz presente

nos processos teatrais, desde das práticas corporais até a sua apreciação, entendo

que não consigo abarcar a complexidade desse tema, e por tanto não aprofundo

nessas questões, sem dar soluções para além do trabalho multissensorial. Acredito

que refletir sobre isso é necessário e poderia dar margem para o desenvolvimento de

outras pesquisas, investigando as possibilidades de fazer teatro para além da visão.

O ato de transver se mostrou um caminho para conectar os atores consigo

mesmos e com os outros. Uma conexão para além do visual, que colocava os

participantes em um estado relacional com o outro. E que dava margem para criação

cênica de corpos fantásticos, instaurando com esses corpos em um espaço outro, um

espaço heterotopico, que só existe dentro do ato de transver.

Nesse espaço outro nos permitiu a dissolver as certezas de referencial corporal

visual, estabelecendo corpos utópicos que rompem com corpo cotidiano e acessa o

estado extracotidiano. Onde, os corpos não possuem limites, e se recriam na sala de

ensaio.

Foi um desafio adaptar os exercícios para trabalhar a troca energética entre os

atores, pois o recurso do sentido na visão seria retirado momentaneamente e por tanto

não iria existir a troca pelo olhar. Do mesmo modo no decorrer da pesquisa

compreender como essa relação se dava não foi fácil. Entender como essa relação

entre os participantes do ato de transver era possível, só viável devido a análise dos

áudios dos relatos dos atores.

Encontrar o processo metodológico de análise dos dados coletados foi

fundamental dentro da pesquisa, pois me garantiu durante a fase da escrita está em

dialogo constante com o elenco através dos relatos coletados.

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Partir da ausência da visão para pensar na adaptação e criação de exercícios

com os atores levou a nos aproximarmos da ideia da cena não visual que pensamos

quanto grupo para os espectadores. Pois, ocupar o lugar da não vidência

momentaneamente durante a preparação corporal acessou nos atores seres

sensíveis e promoveu uma transformação através da relação de alteridade

estabelecida entre o elenco e os espectadores.

Uso das vendas durante as práticas corporais do ato de transver foi o elo entre

o elenco e a estética teatral do projeto de extensão, e os fez ao voltasse para si,

refletindo acerca da experiencia não visual na sala de ensaio entender os

espectadores durante as apresentações. Ter esse lugar comum entre atores e público

era muito importante para garantir ao grupo o entendimento sobre como se dar a

experiencia não visual, ao ponto que estes possam propor a criação de cenas dentro

da perspectiva multissensorial.

O ato de transver dentro dessa pesquisa me permitiu pensar com os sentidos,

com o corpo todo, a partir da experiencia na sala de ensaio e em dialogo com os

teóricos, refletindo sobre possibilidades e maneiras de desenvolver um trabalho

corporal com atores através da multissensorialidade. “A arte não tem pensa” como diz

Manoel de Barros, essa pesquisa me fez perceber a possibilidade de reinventar que

o fazer artístico tem, e por tanto, transver o fazer teatro, inclusive as práticas corporais.

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REFERÊNCIAS

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desenho a cegos. Dissertação de mestrado, ECA, USP. São Paulo, 2003.

BARBA, Eugenio, SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: um dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Realizações Editora, 2012.

BARBA, Eugenio. A canoa de papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.

BAVCAR, Evgne. O ponto cego da fotografia. Rio de Janeiro: Very Special Arts do Brasil, 2000.

______________.” Tenho só uma lâmpada eslovena para iluminar o mundo”.

Jornal da Universidade UFRGS. Porto Alegre, ano V, nº44, setembro de 2001.

BOAL, Augusto. 200 exercícios e jogos para o ator e o não-ator com

vontade de dizer algo através do teatro. Rio de Janeiro: Editora Civilização

brasileira, 1982.

BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 2009.

BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de

Janeiro: Editora Civilização brasileira, 2000. CORBIN, A.; COURTINE, J.; VIGARELLO, G.; História do corpo vol. 3: As

mutações do olhar – O século XX. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008.

FERRACINI, Renato. A Arte de Não Interpretar Como Poesia Corpórea do Ator. Campinas, São Paulo: UMICAMP, 2003.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 3: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005.

________________. Coleção ditos e escritos III: Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos Manuel Barros de Motta. Rio de

Janeiro: Forence universitária, 2009.

________________. O corpo utópico/as heterotopias corporais. São Paulo: n-1 edições, 2013.

________________. O governo de si e dos outros: curso no Cullége de France (1982-1983). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

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GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro. Rio de

Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

GROTOWSKI, Jerzy & FLASZEN L. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. Textos e Materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Fleaszen com um escrito de Eugenio Barba. São Paulo: Perspectiva: Sesc; Pontedera, IT: Fondazione

Pontedera Teatro, 2010.

HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, Editora Autores Associados, Volume 1,

n.19, Jan/Fev/Mar/Abr. 2002. ________________. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2014.

LECOQ, Jacques. O corpo poético: Uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições SESC SP, 2010.

MENDONÇA, Alina Gonjito de. Cuidar de si, cuidar dos outros: A alteridade do

pensamento em Michel Foucault. Tese doutorado, PUC-Rio, 2012. KASTRUP, Virgínia. O tátil e o háptico na experiência estética: considerações sobre

arte e cegueira. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência - 3° quadrimestre de 2015 - Vol.8 - n°3.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.

STANISLÁVSKI, Constantin. Manual do ator. Tradução Jefferson Luiz Camargo; Revisão da tradução João Azenha Jr. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Programa Café Filosófico da TV Cultura exibido dia 12/08/2018, Episódio Foucault: a filosofia como modo de vida. Disponível na internet no link:

https://www.youtube.com/watch?v=jw6zuBIoclI

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ANEXO I: FICHAS DE CONTEÚDOS

As fichas de conteúdos estão separadas por ator, contendo em cada ficha todas as

unidades de significados dos depoimentos daquele ator.

FICHA DE CONTEÚDO – I

NOME DA ATRIZ: MARIA FLOR

DATA DO

DEPOIMENTO

“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu entrei no curso os professores diziam para abrir o olho. E é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores

sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra

forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso. Com certeza é necessário olhar para dentro! É nesse sentido que eu estou falando. Que

mesmo de olhos fechados nessa ideia que só de olhos abertos eu vou encontrar com o olhar do outro e encontrar com o outro. Mas esse olhar pode ser tão vazio. Eu posso olhar tão superficialmente. Eu estou olhando para

você, mas não estou vendo você, não estou jogando com você. E quando nós nos conhecemos e conhecemos esses corpos dentro do espaço não

precisa do olhar. Por exemplo, Lila não precisou me “enxergar” para saber que era eu, Thalles não precisou me “enxergar” para saber que era eu. Existem outras conexões, sabe? Acaba que ficamos mais sensíveis a isso.

Esses corpos já estão trabalhando a um tempo, se tocando a um tempo. Então aguça essa sensibilidade de observação por outros meios que não

sejam a visão propriamente dita. E a visão deixa de ser uma coisa. Para mim nesse momento os olhos deixam de ser as janelas da alma, não é mais isso, é outra coisa, é algo para além disso. É aguçar os sentidos, é se permitir

sentir e estar.” (M1)

14/03/2017

“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu entrei no curso os professores diziam para abrir o

olho. E é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores

sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra

forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso.” (M2)

14/03/2017

“Como eu vivi essa experiência, eu sei o que é vivenciar ela e por isso posso

transmitir com o público, e há uma cumplicidade nisso. É o meu corpo-voz

que está ali, não é apenas uma experiência de uma tarde. É um

compartilhamento. E uma vez atravessado a experiência fica e vira memória,

está em você”. (M3)

14/03/2017

“Acredito nesse campo de investigação pelos sentidos, que nos permite

aguçar e sentir enxergar e inclusive criar a partir de coisas que são óbvias ao

nosso cotidiano”. (M4)

26/06/2017

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“Me faz pensar sobre essa ideia criada de que o fazer teatral se dá pelo olhar....de que a troca só é estabelecida se eu encontrar o olhar do outro,

mas...que olhar é esse?” (M5)

26/06/2017

“a dilatação do corpo no espaço, permitindo abrir poros e janelas de onde jamais imaginaríamos enxergar.” (M6)

26/06/2017

“Acredito nesse espaço investigativo para o treinamento do ator”. (M7)

26/06/2017

FICHA DE CONTEÚDO – II

NOME DA ATRIZ: DALIANA MEDEIROS CAVALCANTI

DATA DO

DEPOIMENTO “Eu achei interessante porque quando a gente está com as vendas, a gente,

eu pelo menos perco toda noção do espaço, e vou me guiando porque eu sempre fico assim para não me machucar e não machucar ninguém. Eu

sempre sentia quando ia de uma parede a outra por causa disso, meus braços com o toque chegavam primeiro.” (D1)

14/03/2017

“Na dança eu senti muita fluidez e conexão com a pessoa, a diferença do

corpo da pessoa. Com uns você se conectava mais, ou com outros menos. Eu acho que teve troca energética ao ponto de um alimentar o outro pelo

próprio movimento. Inclusive eu acho que com a gente sem ter essa noção

do espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a gente sentia quando

troca o pulso e chegava outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra

textura, outra energia”, era outra coisa.” (D2)

14/03/2017

“Foi também uma preparação em relação a essa coisa da gente se colocar

mais no lugar da plateia. Se colocar mais no lugar da pessoa cega.” (D3)

26/06/2017

“Que desafiou muito dos nossos sentidos, dos nossos gestos, da nossa

percepção. Quando a gente estava vendados tínhamos que fazer exercícios

simples… de virar a cabeça, ou de segurar uma perna. Nossa, é interessante

observar que a consciência corporal muda demais, porque quando a gente

enxerga a consciência em relação ao ambiente, aos outros depende do que

se ver, mas quando usamos as vendas, a nossa consciência é partir de nós

mesmos, isso é uma mudança brusca, imensa. E é uma preparação muito

interessante nesse sentido da gente mudar essa perspectiva.” (D4)

26/06/2017

“Então, quando a gente muda essa perspectiva em relação ao ambiente e

tudo mais, a gente tem outras sensações no corpo, outras sensações internas, e até externas também. Tudo parece maior quando estamos

vendados, quando a gente não está enxergando. Tudo parece ter uma amplitude muito maior, o chão, a distância de uma parede para outra (isso

no caso dos exercícios na sala), a conexão com as outras pessoas.” (D5)

26/06/2017

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“É muito interessante também observar que mesmo que nós, os atores,

estejamos vendo durante todo o espetáculo e o público não, a gente já esteve no lugar delas. A gente tem essa relação de empatia com o

espectador. A gente já esteve neste lugar, e sabe como é. Sabe também

como é complicado para quem faz as oficinas. Que a pessoa perde o

equilíbrio, perde o referencial visual necessário para muita coisa. É interessante a gente ter passado por essa experiência antes de fazer o texto,

o espetáculo.” (D6)

26/06/2017

“É muito interessante observar as pessoas quando fazem as oficinas do

projeto, o quanto elas têm dificuldade de desconectar da visão. Claro, eu sei que quando a gente começou a fazer os exercícios tinha também muita

dificuldade. E em alguns momentos nem lembrava o que era direita ou esquerda. Perdi noção de equilíbrio, e perdi fácil.” (D7)

26/06/2017

“É importante observar que tudo tem aspectos positivos e negativos, e

pensando que quando a gente ver enxerga cores, formas, sabe por exemplo como é um caderno, um teclado de um computador, estamos vendo aquilo,

é aquilo é pronto. É uma visão positiva e pronto. E às vezes o que a gente

ver abre um parêntese para o julgamento, a gente julga mais o que ver. E quando a gente não enxerga imaginamos na nossa mente essas formas, que

pode corresponder ao que se ver ou não. [...]acho que esse julgamento do outro diminui por não está vendo. Você, assim, tem contato mais com a

energia da pessoa do que com a forma da pessoa, e eu percebi isso,

entendi? Você se conectar mais com o que a pessoa é, do que com o que ela se parece. Tanto que não é toda vez que as pessoas que enxergam que

estão usando a venda querem tocar o seu rosto para saber como você é, não é sempre.” (D8)

26/06/2017

“Naquele exercício que você passou, onde tínhamos que encontrar a outra

pessoa e fazer uma espécie de dança partindo da conexão do pulso, depois das costas, dos ombros, era muito interessante ver com a gente sabia quem

era pela energia, pelo toque, pela corporeidade, mesmo não vendo a outra

pessoa. Então, a gente tem essa percepção de sensações, de sentidos, eu não sei, mas é como se fosse uma espécie de sexto sentido, para você se

conectar com a outra pessoa. Às vezes você se conectava, outras não. Às vezes você tinha uma conexão maior com uma pessoa do que com outra.

Muito interessante observar tudo isso.” (D9)

26/06/2017

FICHA DE CONTEÚDO – III

NOME DA ATRIZ: ELISIANA GOMES

DATA DO

DEPOIMENTO

“No ponto do desequilíbrio eu estava bem desconectada. Bem no início eu

estava andando, eu sabia o ponto de equilíbrio, sabia o percurso da

transferência de peso de uma perna para outra, o impacto no chão, eu tentei

firmar bem os meus pés no chão para poder sentir o chão. Como a imagem

de barbarvari, os homens árvores do senhor dos anéis. Me percebia bem

grandona andando com os pés ligados ao chão. Essa imagem é muito

recorrente nos trabalhos usando a venda.” (E1)

14/03/2017

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“Flor é maravilhosa! A primeira conexão foi com ela. Eu não sei como, mas

tinha certeza que era ela. Senti o contato com o corpo dela, sabia que era

ela. Não precisei tocar o rosto dela para saber. Só no finalzinho que minha

mão bateu no cabelo dela aí eu tive certeza que era ela. Nós movimentos na

dança com ela senti o meu corpo como uma folha pairando pelo ar.” (E2)

14/03/2017

FICHA DE CONTEÚDO – IV

NOME DA ATRIZ: DÉBORA TENÓRIO

DATA DO

DEPOIMENTO

“eu acho que é como um laboratório de onde a gente leva para cena o que

construiu e divide com as pessoas. E por viver experiências como o público

vai vivenciar no espetáculo nós sabemos o que vamos passar para eles, e

como é vivenciar isso.” (DE1)

14/03/2017

“Eu acho que consegui ter atenção mais com o meu corpo, principalmente

na hora de andar e trabalhar com o equilíbrio e o desequilíbrio. A minha

perna hoje está doendo um pouco por causa dos exercícios das aulas da

graduação. Aí eu senti ela tremer, sabe? Era mais perceptível realmente a

troca de peso que eu fazia para ter equilíbrio. Dava para perceber a origem

do tremor na perna, de onde partia.” (DE2)

14/03/2017

FICHA DE CONTEÚDO – V

NOME DO ATOR: GERALDO RODRIGUES

DATA DO

DEPOIMENTO

“Tudo me lembrou algo que eu vi no documentário da Marina Abramovic .

Falando que o ser humano consegue ultrapassar a terceira dimensão. E que

a quarta dimensão é a mental, e a quinta dimensão que é justamente que o corpo não possui forma. Quando eu estava vendado, eu senti basicamente

isso. Que eu não tinha uma forma exata do meu corpo, entendeu? Por isso que eu conseguia até quando esbarrava ou batia em uma pessoa, ela ia

embora de forma suave, não era algo violento. Ou como quando anda no meio da rua e leva uma trombada, não tinha nada a ver com isso. Quando

venda quebra a percepção, quebra ego, quebra tudo, entendeu? É tanto que

no início você fica meio assim, mas depois você se acha em todo mundo.” (G1)

14/03/2017

“Eu achei bem libertador fazer. Teve um momento que eu não precisava

mais tomar cuidado com a parede. Eu só estava transitando na sala. Eu

comecei a perceber que quando estava próximo a parede por perceber que

ficava mais quente a temperatura.” (G2)

14/03/2017

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FICHA DE CONTEÚDO – VI

NOME DO ATOR: THALLES LOPEZ

DATA DO

DEPOIMENTO

“A questão do equilíbrio, eu me senti mais tranquilo. Uma diferença muito grande você está procurando um foco, quando o foco, ele vem de dentro

para fora. E você tem uma concentração, ativa a memória e tudo muda, ele vem assim de dentro para fora. Uma mudança de fico muito interessante, eu percebi isso.” (T1)

14/03/2017

“As sensações de estar com o outro parte muito do que a pessoa transmite

para você. Por exemplo... eu percebi que estava com ele (Allyson), e ele tem uma brutalidade. Eu falei isso porque era um gesto bruto, com força que

podia fazer com acabasse machucando. Era notável uma diferença de energias. Deu para perceber que ele é bem “vamos”, de tomar iniciativa. Mas

acho que consegui equilibrar isso um pouco. Porque na hora de um conduzir o outro tinha todo um cuidado, tinha todo um espaço pela frente, por isso

tínhamos que estar juntos, ir juntos. Vamos colocar o braço juntos e vamos

abaixar juntos. Teve todo esse cuidado. (T2)

14/03/2017

FICHA DE CONTEÚDO – VII

NOME DO ATOR: IVAN DE MELO

DATA DO

DEPOIMENTO

“É por causa do rompimento com a forma é que esse corpo se torna sem órgãos. A gente consegue mesmo retomar a originalidade desses

movimentos ao ponto que esses corpos se tornam um só, como o da Flor e da Lila. É como um corpo sem forma. Quando a gente ret ira a visão retira a

forma, e o corpo é todo utopia.” (I1)

14/03/2017

“Desde quando eu comecei a fazer teatro, eu sempre me senti mais à vontade na hora de fazer, nos laboratórios, de iniciar, de propor movimentos

com os olhos fechados. Eu sempre senti um campo de acesso muito maior de dentro para fora. Para mim isso precisava começar com os olhos

fechados. Porém, esses olhos fechados nunca foi uma questão de inatividade do corpo, sabe? Eu inclusive estou lendo um artigo esses dias que fala que quando estamos de olhos fechados o nosso corpo não está em

estado de repouso, a gente tem células que quando a gente está de olho fechado, elas estão trabalhando para mostrar para a gente esse escuro estamos vendo. A gente continua vendo mesmo de olhos fechados. É um

outro tipo de visão que coloca o corpo em um outro estado de ação, um outro estado de reação aquele momento que o corpo se encontra.” (I2)

26/06/2017

“Nas práticas do olhos eu descobri um outro ponto de controle desse

movimento que emana dos olhos fechados, isso justamente pelas outras percepções que acabaram me trazendo. Tem a ver com a questão da espacialidade pela falta do equilíbrio e da percepção do espaço, isso

despertar um outro tipo de sensorialidade. Isso permite você se desloca pelo espaço mesmo, e projete movimentos.” (I3)

26/06/2017

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“Eu sempre fui muito repreendido “começa de olhos abertos”, o teatro é muito

um lugar de se olhar, inclusive nos laboratórios essa coisa de olhar sempre nos olhos, olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa

quando está andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar o não olhar. E quando a gente começa a experimentar mais disso vai adentrando algumas outras questões. O que se pode explorar a partir da

descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse

ser que olha, esse ser que ver, que está sempre propondo coisas a partir do olhar. Principalmente as relações entre os outros. Então, quando você começa coloca os atores de olhos vendados para inclusive interagir entre si

é um outro tipo de relação que você está explorando. É uma relação que está muito mais dilatada, ela está nos poros mesmo, na pele, na audição, no

tato, no olfato, no paladar. Aí quando você reabre os olhos desses atores, você está com uma outra capacidade, uma capacidade muito mais expandida, um corpo muito mais expandido, fenomenológico.” (I4)

26/06/2017

“Eu acho que é muito necessário, essencial na verdade que nós passemos por esse processo, porque a todo momento a gente está treinando, nos

formando quanto ao público o que desejamos alcançar, a gente não faz simplesmente, também assiste durante os nossos ensaios, tem essa troca. Ao mesmo tempo a gente não projeta as sensações, não somos óbvios, a

gente sai da obviedade, justamente a gente experimenta isso nos laboratórios. É necessário que haja esse deslocamento do ator na

experiência de viver o mesmo estado do público. É uma formação do ator e espectador não vidente. Então por mais que a gente não assista o nosso

espetáculo, na hora em a gente apresenta a gente tem ali uma afinidade, e após do espetáculo quando escutamos o que público fala a gente se sente

muito próximo do que eles estão falando, a gente já este ali, não somos alheios aquilo. É um campo infinito, não estamos trabalhando com

adaptação para necessidades físicas de atores e quase tocamos a sinestesia.” (I5)

26/06/2017

“Encontrei com uma pessoa no caminho que ela quase que puxava meu

pulso com o movimento dela. Eu não entendia o que ela estava querendo

fazer. A minha utopia morreu naquele momento nos braços daquela pessoa.

Eu tive que parar e sentir aquilo. Eu não encontrei onde eu pudesse levar a

pessoa para perto de mim.” (I6)

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ANEXO 2: TABELAS DE DESCRIÇÃO DO CONTÉUDOS DE CADA NÚCLEO DE SIGNIFICADO

As tabelas contêm a organização que núcleo de significado extraído dos depoimentos

dos atores através da técnica de Análise de Conteúdo da autora Laurence Bardin,

segundo os critérios de repetição e representatividade.

NÚCLEO DE SIGNIFICADO – I: OUTRA FORMA DE VER

RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:

“Desde quando eu comecei a fazer teatro, eu sempre me senti mais à vontade na hora de fazer, nos

laboratórios, de iniciar, de propor movimentos com os olhos fechados. Eu sempre senti um campo de acesso muito maior de dentro para fora. Para mim isso precisava começar com os olhos fechados.

Porém, esses olhos fechados nunca foi uma questão de inatividade do corpo, sabe? Eu inclusive estou lendo um artigo esses dias que fala que quando estamos de olhos fechados o nosso corpo não está em estado de repouso, a gente tem células que quando a gente está de olho fechado, elas estão

trabalhando para mostrar para a gente esse escuro estamos vendo. A gente continua vendo mesmo de olhos fechados. É um outro tipo de visão que coloca o corpo em um outro estado de ação, um outro

estado de reação aquele momento que o corpo se encontra.” (I2)

NÚCLEO DE SIGNIFICADO – II: CRÍTICA AO OLHAR

RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:

“Eu sempre fui muito repreendido “começa de olhos abertos”, o teatro é muito um lugar de se olhar,

inclusive nos laboratórios essa coisa de olhar sempre nos olhos, olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa quando está andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar o não olhar. E quando a gente começa a experimentar mais disso vai adentrando algumas outras

questões. O que se pode explorar a partir da descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse ser

que olha, esse ser que ver, que está sempre propondo coisas a partir do olhar. Principalmente as relações entre os outros. Então, quando você começa coloca os atores de olhos vendados para inclusive interagir entre si é um outro tipo de relação que você está explorando. É uma relação que

está muito mais dilatada, ela está nos poros mesmo, na pele, na audição, no tato, no olfato, no paladar. Aí quando você reabre os olhos desses atores, você está com uma outra capacidade, uma capacidade

muito mais expandida, um corpo muito mais expandido, fenomenológico.” (I4)

“Me faz pensar sobre essa ideia criada de que o fazer teatral se dá pelo olhar....de que a troca só é

estabelecida se eu encontrar o olhar do outro, mas...que olhar é esse?” (M5)

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“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu

entrei no curso os professores diziam para abrir o olho. E é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário

olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso.” (M2)

NÚCLEO DE SIGNIFICADO – III: CORPO SEM FORMA

RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:

“É por causa do rompimento com a forma é que esse corpo se torna sem órgãos. A gente consegue

mesmo retomar a originalidade desses movimentos ao ponto que esses corpos se tornam um só, como o da Flor e da Lila. É como um corpo sem forma. Quando a gente ret ira a visão retira a forma, e

o corpo é todo utopia.” (I1)

“No ponto do desequilíbrio eu estava bem desconectada. Bem no início eu estava andando, eu sabia

o ponto de equilíbrio, sabia o percurso da transferência de peso de uma perna para outra, o impacto

no chão, eu tentei firmar bem os meus pés no chão para poder sentir o chão. Como a imagem de

barbarvari, os homens árvores do senhor dos anéis. Me percebia bem grandona andando com os pés

ligados ao chão. Essa imagem é muito recorrente nos trabalhos usando a venda.” (E1)

“Então, quando a gente muda essa perspectiva em relação ao ambiente e tudo mais, a gente tem

outras sensações no corpo, outras sensações internas, e até externas também. Tudo parece maior

quando estamos vendados, quando a gente não está enxergando. Tudo parece ter uma amplitude

muito maior, o chão, a distância de uma parede para outra (isso no caso dos exercícios na sala), a

conexão com as outras pessoas.” (D5)

“Tudo me lembrou algo que eu vi no documentário da Marina Abramovic. Falando que o ser humano consegue ultrapassar a terceira dimensão. E que a quarta dimensão é a mental, e a quinta dimensão

que é justamente que o corpo não possui forma. Quando eu estava vendado, eu senti basicamente isso. Que eu não tinha uma forma exata do meu corpo, entendeu? Por isso que eu conseguia até

quando esbarrava ou batia em uma pessoa, ela ia embora de forma suave, não era algo violento. Ou como quando anda no meio da rua e leva uma trombada, não tinha nada a ver com isso. Quando

venda quebra a percepção, quebra ego, quebra tudo, entendeu? É tanto que no início você fica meio assim, mas depois você se acha em todo mundo.” (G1)

“Encontrei com uma pessoa no caminho que ela quase que puxava meu pulso com o movimento dela.

Eu não entendia o que ela estava querendo fazer. A minha utopia morreu naquele momento nos braços

daquela pessoa. Eu tive que parar e sentir aquilo. Eu não encontrei onde eu pudesse levar a pessoa

para perto de mim.” (I6)

NÚCLEO DE SIGNIFICADO – IV: CÚMPLICIDADE COM O ESPECTADOR

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RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:

“Foi também uma preparação em relação a essa coisa da gente se colocar mais no lugar da plateia.

Se colocar mais no lugar da pessoa cega.” (D3)

“É muito interessante também observar que mesmo que nós, os atores, estejamos vendo durante todo o espetáculo e o público não, a gente já esteve no lugar delas. A gente tem essa relação de

empatia com o espectador. A gente já esteve neste lugar, e sabe como é. Sabe também como é

complicado para quem faz as oficinas. Que a pessoa perde o equilíbrio, perde o referencial visual

necessário para muita coisa. É interessante a gente ter passado por essa experiência antes de fazer

o texto, o espetáculo.” (D6)

“Eu acho que é como um laboratório de onde a gente leva para cena o que construiu e divide com

as pessoas. E por viver experiências como o público vai vivenciar no espetáculo nós sabemos o que

vamos passar para eles, e como é vivenciar isso.” (DE1)

“Eu acho que é muito necessário, essencial na verdade que nós passemos por esse processo, porque

a todo momento a gente está treinando, nos formando quanto ao público o que desejamos alcançar, a gente não faz simplesmente, também assiste durante os nossos ensaios, tem essa troca. Ao mesmo

tempo a gente não projeta as sensações, não somos óbvios, a gente sai da obviedade, justamente a

gente experimenta isso nos laboratórios. É necessário que haja esse deslocamento do ator na experiência de viver o mesmo estado do público. É uma formação do ator e espectador não vidente.

Então por mais que a gente não assista o nosso espetáculo, na hora em a gente apresenta a gente tem ali uma afinidade, e após do espetáculo quando escutamos o que público fala a gente se sent e

muito próximo do que eles estão falando, a gente já este ali, não somos alheios aquilo. É um campo

infinito, não estamos trabalhando com adaptação para necessidades físicas de atores e quase

tocamos a sinestesia.” (I5)

“Como eu vivi essa experiência, eu sei o que é vivenciar ela e por isso posso transmitir com o público,

e há uma cumplicidade nisso. É o meu corpo-voz que está ali, não é apenas uma experiência de

uma tarde. É um compartilhamento. E uma vez atravessado a experiência fica e vira memória, está

em você”. (M3)

NÚCLEO DE SIGNIFICADO – V: O ESPAÇO A PARTIR DE SI

RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:

“Nas práticas do olhos eu descobri um outro ponto de controle desse movimento que emana dos

olhos fechados, isso justamente pelas outras percepções que acabaram me trazendo. Tem a ver com a questão da espacialidade pela falta do equilíbrio e da percepção do espaço, isso despert ar

um outro tipo de sensorialidade. Isso permite você se desloca pelo espaço mesmo, e projete

movimentos.” (I3)

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“Eu achei interessante porque quando a gente está com as vendas, a gente, eu pelo menos perco

toda noção do espaço, e vou me guiando porque eu sempre fico assim para não me machucar e não

machucar ninguém. Eu sempre sentia quando ia de uma parede a outra por causa disso, meus

braços com o toque chegavam primeiro.” (D1)

“Na dança eu senti muita fluidez e conexão com a pessoa, a diferença do corpo da pessoa. Com uns

você se conectava mais, ou com outros menos. Eu acho que teve troca energética ao ponto de um

alimentar o outro pelo próprio movimento. Inclusive eu acho que com a gente sem ter essa noção do

espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a gente sentia quando troca o pulso e chegava

outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra textura, outra energia”, era outra coisa.” (D2)

NÚCLEO DE SIGNIFICADO – VI: QUESTÕES SOBRE O EQUILÍBRIO

RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:

“A questão do equilíbrio, eu me senti mais tranquilo. Uma diferença muito grande você está procurando um foco, quando o foco, ele vem de dentro para fora. E você tem uma concentração,

ativa a memória e tudo muda, ele vem assim de dentro para fora. Uma mudança de fico muito

interessante, eu percebi isso.” (T1)

“Eu acho que consegui ter atenção mais com o meu corpo, principalmente na hora de andar e

trabalhar com o equilíbrio e o desequilíbrio. A minha perna hoje está doendo um pouco por causa dos exercícios das aulas da graduação. Aí eu senti ela tremer, sabe? Era mais perceptível realmente

a troca de peso que eu fazia para ter equilíbrio. Dava para perceber a origem do tremor na perna, de

onde partia.” (DE2)

“É muito interessante observar as pessoas quando fazem as oficinas do projeto, o quanto elas têm dificuldade de desconectar da visão. Claro, eu sei que quando a gente começou a fazer os exercícios

tinha também muita dificuldade. E em alguns momentos nem lembrava o que era direita ou esquerda. Perdi noção de equilíbrio, e perdi fácil.” (D7)

NÚCLEO DE SIGNIFICADO – VII: A RELAÇÃO COM O OUTRO

RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:

“As sensações de estar com o outro parte muito do que a pessoa transmite para você. Por exemplo...

eu percebi que estava com ele (Allyson), e ele tem uma brutalidade. Eu falei isso porque era um

gesto bruto, com força que podia fazer com acabasse machucando. Era notável uma diferença de energias. Deu para perceber que ele é bem “vamos”, de tomar iniciativa. Mas acho que consegui

equilibrar isso um pouco. Porque na hora de um conduzir o outro tinha todo um cuidado, tinha todo um espaço pela frente, por isso tínhamos que estar juntos, ir juntos. Vamos colocar o braço juntos e

vamos abaixar juntos. Teve todo esse cuidado. (T2)

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“Na dança eu senti muita fluidez e conexão com a pessoa, a diferença do corpo da pessoa. Com uns

você se conectava mais, ou com outros menos. Eu acho que teve troca energética ao ponto de um

alimentar o outro pelo próprio movimento. Inclusive eu acho que com a gente sem ter essa noção do

espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a gente sentia quando troca o pulso e chegava

outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra textura, outra energia”, era outra coisa.” (D2)

“Naquele exercício que você passou, onde tínhamos que encontrar a outra pessoa e fazer uma espécie de dança partindo da conexão do pulso, depois das costas, dos ombros, era muito

interessante ver com a gente sabia quem era pela energia, pelo toque, pela corporeidade, mesmo

não vendo a outra pessoa. Então, a gente tem essa percepção de sensações, de sentidos, eu não sei, mas é como se fosse uma espécie de sexto sentido, para você se conectar com a outra pessoa.

Às vezes você se conectava, outras não. Às vezes você tinha uma conexão maior com uma pessoa do que com outra. Muito interessante observar tudo isso.” (D9)

“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu entrei no curso os professores diziam para abrir o olho. E é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário

olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso. Com certeza é necessário olhar para dentro! É nesse sentido que eu estou falando. Que mesmo de

olhos fechados nessa ideia que só de olhos abertos eu vou encontrar com o olhar do outro e encontrar com o outro. Mas esse olhar pode ser tão vazio. Eu posso olhar tão superficialmente. Eu estou olhando para você, mas não estou vendo você, não estou jogando com você. E quando nós

nos conhecemos e conhecemos esses corpos dentro do espaço não precisa do olhar. Por exemplo, Lila não precisou me “enxergar” para saber que era eu, Thalles não precisou me “enxergar” para saber que era eu. Existem outras conexões, sabe? Acaba que ficamos mais sensíveis a isso. Esses

corpos já estão trabalhando a um tempo, se tocando a um tempo. Então aguça essa sensibilidade de observação por outros meios que não sejam a visão propriamente dita. E a visão deixa de ser uma coisa. Para mim nesse momento os olhos deixam de ser as janelas da alma, não é mais isso,

é outra coisa, é algo para além disso. É aguçar os sentidos, é se permitir sentir e estar.” (M1)

“É importante observar que tudo tem aspectos positivos e negativos, e pensando que quando a gente ver enxerga cores, formas, sabe por exemplo como é um caderno, um teclado de um computador,

estamos vendo aquilo, é aquilo é pronto. É uma visão positiva e pronto. E às vezes o que a gente ver abre um parêntese para o julgamento, a gente julga mais o que ver. E quando a gente não

enxerga imaginamos na nossa mente essas formas, que pode corresponder ao que se ver ou não. [...]acho que esse julgamento do outro diminui por não está vendo. Você, assim, tem contato mais

com a energia da pessoa do que com a forma da pessoa, e eu percebi isso, entendi? Você se

conectar mais com o que a pessoa é, do que com o que ela se parece. Tanto que não é toda vez que as pessoas que enxergam que estão usando a venda querem tocar o seu rosto para saber como

você é, não é sempre.” (D8)

NÚCLEO DE SIGNIFICADO – VIII: CORPO DILATADO

RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:

“Acredito nesse campo de investigação pelos sentidos, que nos permite aguçar e sentir enxergar e inclusive criar a partir de coisas que são óbvias ao nosso cotidiano”. (M4)

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“a dilatação do corpo no espaço, permitindo abrir poros e janelas de onde jamais imaginaríamos enxergar.” (M6)

“Que desafiou muito dos nossos sentidos, dos nossos gestos, da nossa percepção. Quando a gente

estava vendados tínhamos que fazer exercícios simples… de virar a cabeça, ou de segurar uma

perna. Nossa, é interessante observar que a consciência corporal muda demais, porque quando a

gente enxerga a consciência em relação ao ambiente, aos outros depende do que se ver, mas quando usamos as vendas, a nossa consciência é partir de nós mesmos, isso é uma mudança

brusca, imensa. E é uma preparação muito interessante nesse sentido da gente mudar essa

perspectiva.” (D4)

“Eu sempre fui muito repreendido “começa de olhos abertos”, o teatro é muito um lugar de se olhar,

inclusive nos laboratórios essa coisa de olhar sempre nos olhos, olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa quando está andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar

o não olhar. E quando a gente começa a experimentar mais disso vai adentrando algumas outras questões. O que se pode explorar a partir da descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse

ser que olha, esse ser que ver, que está sempre propondo coisas a partir do olhar. Principalmente as relações entre os outros. Então, quando você começa coloca os atores de olhos vendados para

inclusive interagir entre si é um outro tipo de relação que você está explorando. É uma relação que está muito mais dilatada, ela está nos poros mesmo, na pele, na audição, no tato, no olfato, no paladar. Aí quando você reabre os olhos desses atores, você está com uma outra capacidade, uma

capacidade muito mais expandida, um corpo muito mais expandido, fenomenológico.” (I4)

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ANEXO 3: TABELA DE EIXOS TEMÁTICOS

A tabela seguinte contém os Eixos Temáticos criados a partir do agrupamento de

Núcleos de Significado.

EIXOS TEMÁTICOS

NOME DO EIXO TEMÁTICO: NÚCLEOS DE SIGNIFICADO QUE COMPÕEM O EIXO TEMÁTICO:

EIXO – I: A AÇÃO DE VER COMO

ALGO RELACIONAL

- NÚCLEO DE SIGNIFICADO I:

OUTRA FORMA DE VER;

- NÚCLEO DE SIGNIFICADO II:

CRÍTICA DO OLHAR;

- NÚCLEO DE SIGNIFICADO VII: A RELAÇÃO COM O OUTRO.

EIXO – II: PERCEPÇÕES

CORPO

DO - NÚCLEO DE SIGNIFICADO III:

CORPO SEM FORMA;

- NÚCLEO DE SIGNIFICADO V:O

ESPAÇO A PARTIR DE SI;

- NÚCLEO DE SIGNIFICADO VI:

QUESTÕES SOBRE O EQUILÍBRIO;

- NÚCLEO DE SIGNIFICADO VIII:

CORPO DILATADO.

EIXO – III: ALTERIDADE - NÚCLEO DE SIGNIFICADO IV: CÚMPLICIDADE COM O ESPECTADOR.

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ANEXO 4: TRANSCRIÇÕES

Estão inseridos aqui as transcrições dos áudios gravados durantes as reuniões do

projeto de extensão O que os olhos não veem, no período de março de 2017 a junho

de 2017, na sala “C” do Departamento de Artes da UFRN.

TRANSCRIÇÃO DO DIA 14/03/2017

Estão presentes a Vice-Coordenadora do projeto de extensão O que os olhos não

veem, Prª. Ms. Mayra Montenegro, professora do curso de Teatro da UFRN, os atores

do grupo: Maria Flor, Ivan de Melo, Thalles Lopez, Geraldo Rodrigues, Daliana

Medeiros Cavalcante, Débora Tenório, Elisiana Gomes, Thalia Varela, Nilton Santos,

Hianna Camilla.

-(Geraldo): “ Eu achei bem libertador fazer. Teve um momento que eu não precisava mais tomar

cuidado com a parede. Eu só estava transitando na sala. Eu comecei a perceber que quando estava

próximo a parede por perceber que ficava mais quente a temperatura. E também teve uma hora que

eu estava com ela (Daliana), na hora da dança. Nós não batemos em nada. Por que quando sentia

que tinha alguém mudava de posição logo. E foi libertador inclusive.”

-(Débora): “Eu acho que consegui ter atenção mais com o meu corpo, principalmente na hora de andar

e trabalhar com o equilíbrio e o desequilíbrio. A minha perna hoje está doendo um pouco por causa

dos exercícios das aulas da graduação. Aí eu senti ela tremer, sabe? Era mais perceptível realmente

a troca de peso que eu fazia para ter equilíbrio. Dava para perceber a origem do tremor na perna, de

onde partia.”

-(Thalia):”Para mim hoje foi mais complicado, porque eu estou com o tornozelo inchado. Por isso que

estou mancando. E na hora em tinham que transitar do equilíbrio para o desequilíbrio eu não estava

conseguindo muito bem, só conseguia com uma perna, com a outra não dava, doía. Então hoje

especialmente por isso foi mais complicado para mim por ficar doendo. Às vezes você até quer fazer

o movimento, mas corpo, ele ...por causa da dor trava. Porém, isso permitiu que entender a origem da

dor, da onde ela vinha e que partes do corpo faziam com que ela se manifestar.”

-(Nilton):”Eu acho que a questão da exaustão do dia a dia. Eu percebi que o meu corpo teve mais

dificuldade, os músculos mesmo, e tudo, do que nos outros encontros que eu estava mais relaxado. E

a questão da dança, você ver totalmente o ritmo da outra pessoa com é diferente, e como isso muda

de uma pessoa para outra. Você ver que o balanço dela é diferente. E eu tive uma pessoa que ela

estava me guiando, depois eu guiei ela, e teve uma hora que percebi que ela estava abaixada, mas

eu não sabia se ela estava realmente abaixada ou não. E teve uma hora que você falou como se

estivesse no balanço do mar, e eu senti que a pessoa encolheu os braços como se estivesse com frio,

eu tentei encolher também, mas depois não percebi se ela realmente abriu os braços. A referência do

corpo do outro chegava a mim, só neste momento que eu não pude perceber. Eu conseguia perceber

pelo contato com o corpo, notava os movimentos dela, eu prestava atenção nesses movimentos que

ela fazia. Tudo pelo tato. E também a questão que ele falou também que as partes da sala onde ficam

as janelas, quando eu me aproximava era mais quente realmente o chão e as paredes eram mais

quentes. E a parte de mármore era mais fria devido a chuva né. Então eu percebia que eu estava perto

das paredes.”

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-(Daliana):”Eu achei interessante porque quando a gente está com as vendas, a gente, eu pelo menos

perco toda noção do espaço, e vou me guiando porque eu sempre fico assim para não me machucar

e não machucar ninguém. Eu sempre sentia quando ia de uma parede a outra por causa disso, meus

braços com o toque chegavam primeiro. É engraçado que o aquecimento e alguns movimentos da

dança eu senti realmente tanta liberdade, achei tão forte e fluido que até parece que eu me acostumei.

“Ok, eu já não enxergo então vamos embora”. Na dança eu senti muita fluidez e conexão com a

pessoa, a diferença do corpo da pessoa. Com uns você se conectava mais, ou com outros menos. Eu

acho que teve troca energética ao ponto de um alimentar o outro pelo próprio movimento. Inclusive eu

acho que com a gente sem ter essa noção do espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a

gente sentia quando troca o pulso e chegava outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra

textura, outra energia”, era outra coisa.”

-(Elisiana):”No ponto do desequilíbrio eu estava bem desconectada. Bem no início eu estava andando,

eu sabia o ponto de equilíbrio, sabia o percurso da transferência de peso de uma perna para outra, o

impacto no chão, eu tentei firmar bem os meus pés no chão para poder sentir o chão. Como a imagem

de barbarvari, os homens árvores do senhor dos anéis. Me percebia bem grandona andando com os

pés ligados ao chão. Essa imagem é muito recorrente nos trabalhos usando a venda. [...] Flor é

maravilhosa! A primeira conexão foi com ela. Eu não sei como, mas tinha certeza que era ela. Senti o

contato com o corpo dela, sabia que era ela. Não precisei tocar o rosto dela para saber. Só no finalzinho

que minha mão bateu no cabelo dela aí eu tive certeza que era ela. Nós movimentos na dança com

ela senti o meu corpo como uma folha pairando pelo ar.”

-(Thalles):”A questão do equilíbrio, eu me senti mais tranquilo. Uma diferença muito grande você está

procurando um foco, quando o foco, ele vem de dentro para fora. E você tem uma concentração, ativa

a memória e tudo muda, ele vem assim de dentro para fora. Uma mudança de fico muito interessante,

eu percebi isso. As sensações de está com o outro parte muito do que a pessoa transmite para você.

Por exemplo... eu percebi que estava com ele (Allyson), e ele tem uma brutalidade. Eu falei isso porque

era um gesto bruto, com força que podia fazer com acabasse machucando. Era notável uma diferença

de energias. Deu para perceber que ele é bem “vamos”, de tomar iniciativa. Mas acho que consegui

equilibrar isso um pouco. Porque na hora de um conduzir o outro tinha todo um cuidado, tinha todo um

espaço pela frente, por isso tínhamos que estar juntos, ir juntos. Vamos colocar o braço juntos e vamos

abaixar juntos. Teve todo esse cuidado. Eu senti que depois peguei Flor, e que foi bem mais fluido.

Que um transmitia confiança um para o outro, bem bacana. Um comprava a ideia do outro. Era mais

“vamos juntos”. A questão das folhas também foi bem bacana. Foi uma viagem. O frio, eu senti o frio,

senti o calor. Eu senti que Flor também transmitia isso para mim. E na hora do barco existiu o

movimento do barco, isso existiu. E eu achei muito bonito. Se o barco fosse afundar nós íamos afundar

juntos.”

-(Maria Flor):”Pois é, eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos

abertos. Desde que eu entrei no curso os professores diziam para abrir o olho. E é uma coisa que eu

comecei a perguntar a mim. Os professores sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas

será que é necessário olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra forma de

observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferênc ia

nenhuma nisso.

-Hianna: “você acha que esse não olhar para fora lhe faz olhar para dentro?”

- Maria Flor:” com certeza.

-Hianna: “ E esse olhar para dentro lhe faz enxergar o outro?”

-Maria Flor: “Com certeza! É nesse sentido que eu estou falando. Que tipo mesmo de olhos fechados

nessa ideia que só de olhos abertos eu vou encontrar com o olhar do outro e encontrar com o outro.

Mas esse olhar pode ser tão vazio. Eu posso olhar tão superficialmente. Eu estou olhando para você,

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mas não estou vendo você, não estou jogando com você. E quando nós nos conhecemos e

conhecemos esses corpos dentro do espaço não precisa. Por exemplo, Lila não precisou me

“enxergar” para saber que era eu, Thalles não precisou me “enxergar” para saber que era eu. Existem

outras conexões, sabe? ... Energéticas. Acaba que ficamos mais sensíveis a isso. Esses corpos já

estão trabalhando a um tempo, se tocando a um tempo. Então aguça essa sensibilidade de observação

por outros meios que não sejam a visão propriamente dita. E a visão deixa de ser uma coisa, para mim

nesse momento os olhos deixam de ser as janelas da alma, não é mais isso, é outra coisa, é algo para

além disso. É aguçar os sentidos, é se permitir sentir e estar.” -(Ivan): “Quando você priva a nossa visão, e você foi muito feliz na ordem dos exercícios. Trabalhar

primeiro uma contenção para depois trabalhar um exercício de expansão a partir da dança. Mais um

pouquinho e está todo mundo emanando e mandando energia, porque esse corpo se expande mesmo.

É por causa do rompimento com a forma é que esse corpo se torna sem órgãos. A gente consegue

mesmo retomar a originalidade desses movimentos ao ponto que esses corpos se tornam um só, como

o da Flor e da Lila. É como um corpo sem forma. Quando a gente retira a visão retira a forma, e o

corpo é todo utopia. Durante a prática da dança eu encontrei pessoas que eu não consegui trocar. Eu

não sei. Eram pessoas que eu tocava. Eu estava em uma onda, e a pessoa estava em outra. Encontrei

com uma pessoa no caminho que ela quase que puxava meu pulso com o movimento dela. Eu não

entendia o que ela estava querendo fazer. A minha utopia morreu naquele momento nos braços

daquela pessoa. Eu tive que parar e sentir aquilo. Eu não encontrei onde eu pudesse levar a pessoa

para perto de mim. Mas depois encontramos um ritmo depois que paramos.”

-(Geraldo):” Isso tudo me lembrou algo que eu vi no documentário da Marina Abramovic. Falando que

o ser humano consegue ultrapassar a terceira dimensão. E que a quarta dimensão é a mental, e a

quinta dimensão que é justamente que o corpo não possui forma. Quando eu estava vendado, eu senti

basicamente isso. Que eu não tinha uma forma exata do meu corpo, entendeu? Por isso que eu

conseguia até quando esbarrava ou batia em uma pessoa, ela ia embora de forma suave, não era algo

violento. Ou como quando anda no meio da rua e leva uma trombada, não tinha nada haver com isso.

Quando venda quebra a percepção, quebra ego, quebra tudo, entendeu? É tanto que no início você

fica meio assim, mas depois você se acha em todo mundo.”

-(Débora):”eu acho que é como um laboratório de onde a gente leva para cena o que construiu e divide

com as pessoas. E por viver experiências como o público vai vivenciar no espetáculo nós sabemos o

que vamos passar para eles, e como é vivenciar isso.”

-(Maria Flor): “Como eu vivi essa experiência, eu sei o que é vivenciar ela e por isso posso transmitir

com o público, e há uma cumplicidade nisso. É o meu corpo-voz que está ali, não é apenas uma

experiência de uma tarde. É um compartilhamento. E uma vez atravessado a experiência fica e vira

memória, está em você.”

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TRANSCRIÇÃO DO DIA 26/06/2017

Estão presentes a Vice-Coordenadora do projeto de extensão O que os olhos não

veem, Prª. Ms. Mayra Montenegro, professora do curso de Teatro da UFRN, os atores

do grupo: Maria Flor, Ivan de Melo, Thalles Lopez, Daliana Medeiros Cavalcante,

Débora Tenório, Elisiana Gomes, Thalia Varela, Hianna Camilla.

- (Ivan): “Desde quando eu comecei a fazer teatro, eu sempre me senti mais à vontade na hora de

fazer, nos laboratórios, de iniciar, de propôr movimentos com os olhos fechados. Eu sempre senti um

campo de acesso muito maior de dentro para fora. Para mim isso prec isava começar com os olhos

fechados. Porém, esses olhos fechados nunca foi uma questão de inatividade do corpo, sabe? Eu

inclusive estou lendo um artigo esses dias que fala que quando estamos de olhos fechados o nosso

corpo não está em estado de repouso, a gente tem células que quando a gente está de olho fechado,

elas estão trabalhando para mostrar para a gente esse escuro estamos vendo. A gente continua

vendo mesmo de olhos fechados. É um outro tipo de visão que coloca o corpo em um outro estado

de ação, um outro estado de reação aquele momento que o corpo se encontra. Nas práticas do olhos

eu descobri um outro ponto de controle desse movimento que emana dos olhos fechados, isso

justamente pelas outras percepções que acabaram me trazendo. Tem haver com a questão da

espacialidade pela falta do equilíbrio e da percepção do espaço, isso despertar um outro tipo de

sensorialidade. Isso permite você se desloca pelo espaço mesmo, e projete movimentos. Isso me

deixou muito mais à vontade depois abrir os olhos quando eu não estou nesse tipo de experimento.

Em começar uma outra experimentação de olhos abertos, porque com o olhos eu percebi de uma

outra forma, que eu tenho que acessar outras coisas. Eu sempre fui muito repreendido “começa de

olhos abertos”, o teatro é muito um lugar de se olhar, inclusive nos laboratórios essa coisa de olhar

sempre nos olhos, olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa quando está

andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar o não olhar. E quando a gente começa a

experimentar mais disso vai adentrando algumas outras questões. O que se pode explorar a partir

da descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas

estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse ser que olha, esse ser que ver, que está

sempre propondo coisas a partir do olhar. Principalmente as relações entre os outros. Então, quando

você começa coloca os atores de olhos vendados para inclusive interagir entre si é um outro tipo de

relação que você está explorando. É uma relação que está muito mais dilatada, ela está nos poros

mesmo, na pele, na audição, no tato, no olfato, no paladar. Aí quando você reabre os olhos desses

atores, você está com uma outra capacidade, uma capacidade muito mais expandida, um corpo muito

mais expandido, fenomenológico. Eu acho que é muito necessário, essencial na verdade que nós

passemos por esse processo, porque a todo momento a gente está treinando, nos formando quanto

ao público o que desejamos alcançar, a gente não faz simplesmente, também assiste durante os

nossos ensaios, tem essa troca. Ao mesmo tempo a gente não projeta as sensações, não somos

óbvios/, a gente sai da obviedade, justamente a gente experimenta isso nos laboratórios. É

necessário que haja esse deslocamento do ator na experiência de viver o mesmo estado do público.

É uma formação do ator e espectador não vidente. Então por mais que a gente não assista o nosso

espetáculo, na hora em a gente apresenta a gente tem ali uma afinidade, e após do espetáculo

quando escutamos o que público fala a gente se sente muito próximo do que eles estão falando, a

gente já este ali, não somos alheios aquilo. É um campo infinito, não estamos trabalhando com

adaptação para necessidades físicas de atores e quase tocamos a sinestesia.”

-(Daliana): “Foi também uma preparação em relação a essa coisa da gente se colocar mais no lugar

da plateia. Se colocar mais no lugar da pessoa cega. [...] Que desafiou muito dos nossos sentidos, dos nossos gestos, da nossa percepção. Quando a gente

estava vendados tínhamos que fazer exercícios simples… de virar a cabeça, ou de segurar uma perna.

Nossa, é interessante observar que a consciência corporal muda demais, porque quando a gente

enxerga a consciência em relação ao ambiente, aos outros depende do que se ver, mas quando

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usamos as vendas, a nossa consciência é partir de nós mesmos, isso é uma mudança brusca, imensa.

E é uma preparação muito interessante nesse sentido da gente mudar essa perspectiva.”

- (Daliana):“ Então, quando a gente muda essa perspectiva em relação ao ambiente e tudo mais, a

gente tem outras sensações no corpo, outras sensações internas, e até externas também. Tudo

parece maior quando estamos vendados, quando a gente não está enxergando. Tudo parece ter uma

amplitude muito maior, o chão, a distância de uma parede para outra (isso no caso dos exercícios na

sala), a conexão com as outras pessoas. Naquele exercício que você passou, onde tínhamos que

encontrar a outra pessoa e fazer uma espécie de dança partindo da conexão do pulso, depois das

costas, dos ombros, era muito interessante ver com a gente sabia quem era pela energia, pelo toque,

pela corporeidade, mesmo não vendo a outra pessoa. Então, a gente tem essa percepção de

sensações, de sentidos, eu não sei, mas é como se fosse uma espécie de sexto sentido, para você

se conectar com a outra pessoa. Às vezes você se conectava, outras não. Às vezes você tinha uma

conexão maior com uma pessoa do que com outra. Muito interessante observar tudo isso.”

-( Daliana): “ É importante observar que tudo tem aspectos positivos e negativos, e pensando que

quando a gente ver enxerga cores, formas, sabe por exemplo como é um caderno, um teclado de um

computador, estamos vendo aquilo, é aquilo é pronto. É uma visão positiva e pronto. E às vezes o que

a gente ver abre um parêntese para o julgamento, a gente julga mais o que ver. E quando a gente não

enxerga imaginamos na nossa mente essas formas, que pode corresponder ao que se ver ou não. [...]

Acho que esse julgamento do outro diminui por não está vendo. Você, assim, tem contato mais com a

energia da pessoa do que com a forma da pessoa, e eu percebi isso, entendi? Você se conectar mais

com o que a pessoa é, do que com o que ela se parece. Tanto que não é toda vez que as pessoas

que enxergam que estão usando a venda querem tocar o seu rosto para saber como você é, não é

sempre.”

- (Daliana): “É muito interessante observar as pessoas quando fazem as oficinas do projeto, o quanto

elas têm dificuldade de desconectar da visão. Claro, eu sei que quando a gente começou a fazer os

exercícios tinha também muita dificuldade. E em alguns momentos nem lembrava o que era direita

ou esquerda. Perdi noção de equilíbrio, e perdi fácil. Tem coisa que é bem complicado. Tem exercício

que você ouve por exemplo : “a baixa e rebola girando o quadril.”ao ouvir isso não consegui fazer,

não consegui criar a imagem na cabeça e senti falta de uma referência visual.”

-(Daliana): “É muito interessante também observar que mesmo que nós, os atores, estejamos vendo

durante todo o espetáculo e o público não, a gente já esteve no lugar delas. A gente tem essa relação

de empatia com o espectador. A gente já esteve neste lugar, e sabe como é. Sabe também como é

complicado para quem faz as oficinas. Que a pessoa perde o equilíbrio, perde o referencial visual

necessário para muita coisa. É interessante a gente ter passado por essa experiência antes de fazer

o texto, o espetáculo.”

-(Daliana): “Eu acho que essa preparação também é um despertar inclusão da pessoa cega no

espetáculo

- (Maria Flor): Bem....Acredito nesse campo de investigação pelos sentidos, que nos permite aguçar e

sentir enxergar e inclusive criar a partir de coisas que são óbvias ao nosso cotidiano

- (Maria Flor): Me faz pensar sobre essa ideia criada de que o fazer teatral se dá pelo olhar....de que

a troca só é estabelecida se eu encontrar o olhar do outro, mas...que olhar é esse?

- (Maria Flor): É a dilatação do corpo no espaço, permitindo abrir poros e janelas de onde jamais

imaginaríamos enxergar.

- (Maria Flor): Coisas que surgem nas imagens mentais e se materializam na carne

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- (Maria Flor): Acredito nesse espaço investigativo para o treinamento do ator.