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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
HIANNA CAMILLA GOMES DE
OLIVEIRA
ATO DE TRANSVER: PREPARAÇÃO
CORPORAL DE ATORES PARA UM
ESPETÁCULO NÃO VISUAL
NATAL/RN
2018
HIANNA CAMILLA GOMES DE OLIVEIRA
ATO DE TRANSVER: PREPARAÇÃO CORPORAL DE ATORES PARA UM
ESPETÁCULO NÃO VISUAL.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.
Orientadora: Profª. Drª. Karenine de Oliveira Porpino
NATAL/RN
2018
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART
Oliveira, Hianna Camilla Gomes de.
Ato de transver : preparação corporal de atores para um
espetáculo não visual / Hianna Camilla Gomes de Oliveira. - 2018. 93 f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2018.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino.
1. Preparação corporal. 2. Corpo. 3. Atores. I. Porpino,
Karenine de Oliveira. II. Título.
RN/UF/BS-DEART CDU 792.02
Elaborado por Hianna Camilla Gomes de Oliveira - CRB-X
A todo aquele que se dispõem a transver o mundo.
“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos
Alberto Caeiro”
AGRADECIMENTOS
A minha mãe, Maria Francisca das Chagas, que me apoio sempre e com
quem conto eternamente. Mãe, você é mar.
A Igor Barboà, por me encorajar e ter fé em mim. É uma fortuna dividir e
construir um arco íris com vista para o rio com você.
A todos e todas que participaram e participam do projeto de extensão O
que os olhos não veem. Obrigada por toda troca, aprendizagem e investigação
coletiva. Sem vocês essa pesquisa não existiria. Em especial aos atores que
aceitaram conversar após os encontros do ato de transver: Maria Flor, Ivan de Melo,
Daliana Cavalcanti, Debora Tenório, Thalles Lopez, Geraldo Rodrigues, Elisiana
Gomes. Suas vozes ecoaram em mim e por essas páginas.
A Profª Drª Karenine de Oliveira Porpino, orientadora desse trabalho que
aceitou com paciência dialogar comigo e com minhas dúvidas para construirmos
juntas essa pesquisa. Obrigada por tudo.
A Profª Drª Márcia Strazzacappa Hernandez pela leitura generosa desse
texto compondo não só a banca de qualificação, mas a defesa com contribuições para
minha escrita.
Ao Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves, coordenador do projeto de
extensão O que os olhos não veem. Obrigada por permitir que a minha participação
no projeto seja uma oportunidade de testar, falhar, ousar, aprender sobre
acessibilidade, ensino, teatro, ....sobre a vida.
Ao PPGARC UFRN pela oportunidade de desenvolver essa pesquisa de
mestrado em artes cênicas
RESUMO
A pesquisa trata de aspectos da preparação corporal de atores a partir da vivência
com o elenco do Projeto de Extensão O QUE OS OLHOS NÃO VEEM, vinculado ao
Centro de Educação e Departamento de Práticas Educacionais e Currículos da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobre a coordenação do Prof. Dr.
Jefferson Fernandes Alves. Investiga-se como a ausência do sentido da visão
influencia as práticas corporais com os atores, como essa situação reverbera em seus
corpos para a cena e na percepção de si. Toma-se como foco de investigação os
relatos dos membros do projeto de extensão, os quais são analisados por meio da
Análise Temática de conteúdo de Bardin. São tomadas como referências as
provocações do filósofo Evegen Bavcar sobre outras dimensões do olhar que estão
para além dos olhos, como também a ideia poética de Manoel de Barros acerca do
ato de transver. Elas compõem a investigação do não visual como possível ferramenta
no trabalho corporal de atores, juntamente com os estudos sobre a atenção de Virginia
Kastrup e os conceitos de corpo e Heterotopia de Michel Foucault. Como resultados
discute-se temas como: a dimensão tátil do olhar, ver como algo relacional, a reversão
do estado de atenção, a atenção a si, a preparação corporal como um não lugar, a
criação de um corpo utópico e alteridade entre atores e espectadores.
PALAVRAS CHAVES: PREPARAÇÃO CORPORAL; CORPO; ATORES; ATENÇÃO.
ABSTRACT
The research deals with aspects of body preparation of actors from the experience
with the cast of the Extension Project WHAT THE EYES DO NOT SEE, linked to the
Education Center and Department of Educational Practices and Curricula of the
Federal University of Rio Grande do Norte, about the coordination of Prof. Dr.
Jefferson Fernandes Alves. It is investigated how the absence of the sense of sight
influences the body practices with the actors, as this situation reverberates in their
bodies for the scene and in the perception of itself. As a focus of research, the reports
of extension project members are analyzed through Bardin's Thematic Content
Analysis. Reference is made to the provocations of the philosopher Evegen Bavcar on
other dimensions of the eye that are beyond the eyes, as well as the poetic idea of
Manoel de Barros on the act of transver. They compose the investigation of non-visual
as a possible tool in the bodywork of actors, along with studies on the attention of
Virginia Kastrup and the concepts of body and Heterotopia by Michel Foucault. As
results we discuss topics such as: the tactile dimension of the look, see as something
relational, the reversal of the state of attention, attention to self, body preparation as a
no place, creation of a utopian body and alterity between actors and spectators.
KEY-WORDS: BODY PREPARATION; BODY; ACTORS; ATTENTION.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1: Um convite a fechar os olhos ........................................................ 23
1.1. O que os olhos não veem o coração não sente ....................................... 23
1.2 Outra forma de ver, “é preciso transver o mundo” .................................... 29
CAPÍTULO 2: “Ver é algo para além dos olhos: Uma vivência de corpo inteiro”
................................................................................................................................................. 43
2.1. Eixo Temático I: A ação de ver como algo relacional.............................. 43
2.1.1. De olhos fechados é que me vejo e vejo o outro .......................... 48
2.2. Eixo Temático II: Percepções do corpo ..................................................... 52
2.2.1 A criação de um não lugar ................................................................. 52
2.2.2 Transvendo o corpo ............................................................................ 56
CAPÍTULO 3: Eu sou você, eu vejo você ............................................................. 63
3.1 Se colocando no lugar do outro ................................................................... 64
3.2 A totalidade do ser sensível .......................................................................... 68
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 73
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 76
ANEXO I: FICHAS DE CONTEÚDOS ................................................................... 78
ANEXO 2: TABELAS DE DESCRIÇÃO DO CONTÉUDOS DE CADA NÚCLEO
DE SIGNIFICADO................................................................................................................. 84
ANEXO 3: TABELA DE EIXOS TEMÁTICOS ...................................................... 90
ANEXO 4: TRANSCRIÇÕES .................................................................................. 91
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INTRODUÇÃO
Minha fala é de dentro.
De quem fala lá do meio, do olho do furacão
De quem está mergulhado até a cabeça em tudo isso
E por isso é tão difícil se separar
Separar a si.
Quero, nesta introdução, compartilhar algumas questões que me inquietaram
durante a iniciativa de idealização desta pesquisa de mestrado em Artes Cênicas, até
o momento intitulada “Ato de transver: preparação corporal de atores para um
espetáculo teatral não visual”, além de explicar o meu real envolvimento com a
pesquisa e o local de onde reflito sobre ela.
Minha maior preocupação, ao iniciar essa pesquisa que se encontra em
andamento, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN,
era como conseguir me distanciar, na condição de pesquisadora, do meu objeto de
pesquisa. A minha relação com a prática corporal dos atores é tão forte que extravasa
o ambiente acadêmico e inunda o meu fazer artístico. Por isso, para mim, foi
necessário substituir processo de distanciamento, por um mergulho profundo de
alguém que está submersa e compreende que, ainda assim, é preciso ir mais fundo.
Essa pesquisa parte dos questionamentos e dos pensamentos de alguém que
se vê imersa em um fazer artístico e possui necessidade de refletir sobre ele. Nesta
perspectiva, existe um caráter quase de relato de experiência, pois nasce das minhas
vivências como atriz e depois, como mediadora da preparação corporal dos atores do
Projeto de Extensão “O QUE OS OLHOS NÃO VEEM”.
O projeto está vinculado ao Centro de Educação e Departamento de Práticas
Educacionais e Currículos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a
coordenação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves. Este possui como integrantes
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discentes da UFRN dos cursos de Teatro, Artes visuais, História, Música,
Comunicação Social e alunos da Pós-Graduação em Educação e Artes Cênicas, além
de membros da comunidade como colaboradores do projeto.
Os trabalhos desenvolvidos a partir do projeto ocorrem no âmbito das
investigações sensoriais atreladas a um processo educacional e artístico da
construção de espetáculos. Inicialmente, a cegueira se encontra como temática
norteadora, compondo uma tríade junto com os temas do Corpo e da
Audiodescrição1.
Em suas propostas de espetáculos o público, sem o agenciamento da visão2,
o projeto permite ao público vivenciar uma experiência sinestésica por meio de
estímulos sensoriais de cunho olfativo, sonoro, tátil e degustativo que são
orquestrados durante o decorrer da apresentação. O objetivo não é de colocar e/ou
fazer com que os espectadores se coloquem no lugar das pessoas com deficiência
visual, mas sim, que elas possam exercitar as diferentes formas de ver o mundo.
Ver, neste caso, se encontra como algo para além dos olhos, algo semelhante
ao que propõe Evgen Bavcar (2003), fotógrafo esloveno, que perdeu a visão durante
sua infância, ao afirmar que não se pode ver somente com os próprios olhos, mas
que um conjunto de dados influencia na nossa forma de ver, isto é, que o corpo não
opera somente através de um sentido, mas em um enfoque multissensorial, no qual
percebemos que somos nutridos de várias percepções. Essas chegam através das
interações do corpo com os demais sentidos para ler uma imagem.
Por exemplo: se chegarmos na praia de olhos fechados, ao escutarmos a
arrebentação das ondas e sentirmos o cheiro da maresia, poderíamos apontar a
direção do mar e uma imagem mental deste lugar pode ser gerada em nossas mentes,
pois nós utilizamos dessas percepções para construir uma leitura. Deste mesmo
1 Audiodescrição é um recurso de acessibilidade comunicacional que se configura como uma tradução
intersemiótica (imagem para palavra), que tem como objetivo descrever os elementos imagéticos que não
seriam compreendidos na ausência desse discurso verbal. Esse recurso tem como público-alvo principalmente
as pessoas com deficiência visual, mas pode ser util izado também por pessoas com deficiência intelectual,
dislexia ou idosos.
2 O não agenciamento da visão em questão se faz por meio do uso de vendas por parte do público, seja este cego
ou não.
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modo, Bavcar ao fotografar se utiliza da voz do outro para posicionar o foco da
câmera. Ele nos convida a perceber como nosso olhar também recebe
enquadramento do olhar do outro por meio do que é externo a nós:
Eu utilizo uma espécie de telescópio para ver as estrelas. Todo mundo
utiliza o olhar do outro só que em outros planos, sem se dar conta
sempre. E como não se pode ver com os próprios olhos, somos todos
um pouco cegos. Nós nos olhamos sempre com o olhar do outro,
mesmo que seja aquele do espelho. (BAVCAR 2003, p.12).
Desse modo, o maior desafio é construir um espetáculo no qual a dramaturgia
se desdobra por meio de uma perspectiva multissensorial, através dos estímulos
olfativos, táteis, sonoros e até gustativos, que chegam como dados fornecidos ao
público, para que este construa, com base nessas informações, um outro olhar. Um
olhar que extrapola o sentido da visão e engloba o corpo todo, tomando, assim,
emprestado a forma como as pessoas cegas veem.
Para Bavcar (2003, p.143) o olhar do cego ocorre de outra maneira. A pupila
dos cegos é o seu corpo inteiro e eles podem, impunemente, voltar-se para o sol
como se tivessem aprendido o reflexo condicionado dos girassóis. O significado de
“ver”, neste caso, não está ligado ao fazer uso do sentido da visão e sim, a ideia de
enxergar como algo para além dos olhos, algo que se dá no corpo por completo, do
modo como os demais sentidos obtêm informações que permitem tomar
conhecimento do que está a sua volta.
Deste mesmo modo é que o público vivencia essa forma de ver no decorrer do
espetáculo “O que os olhos não veem”: anula-se momentaneamente a visão ocular
para que os estímulos sensoriais, juntamente com as ações corpóreo/vocais dos
atores que compõem cada cena, permitam ao público criar imagens mentais. Sendo
assim, parte da peça teatral ocorre na imaginação de cada espectador, de acordo
com as leituras que estes realizaram.
É como uma imagem refletida no espelho. O espectador tem em seu imaginário
a imagem do espetáculo refletida através do espelho, que é a relação dos estímulos
sensoriais, com a atuação dos atores em cena, porém a imagem que cada pessoa vê
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é diferente, pois cada uma dá o seu significado a essa representação. Como o
discernimento de cada cena ocorre de forma individual, podemos dizer que o
espectador assume a função de coparticipante de cada cena e a dramaturgia se
completa na sua imaginação.
A não vidência faz parte das pesquisas do projeto de extensão na busca de
provocar a criação de cenas multissensoriais, que rompam com visocentrismo na arte
do teatro, a partir de uma reflexão sobre a origem epistemológica da palavra teatro,
que do grego théatron significa “lugar de onde se vê” (PAVIS, 2011, p.409).
Esse modo de compreender a experiência teatral questiona a ideia do filósofo
e estudioso do teatro Denis Guenoun (2003) ao afirmar que, “Uma assembleia se
reúne no teatro - para fazer o quê? Para ver. - Ver e ouvir, assistir, sentir? Claro,
porém, mais essencialmente ainda: para ver. Teatro provém do verbo grego que
significa: olhar. E se, na arquitetura antiga, o termo designa o lugar do público mais
que a cena ou a orchestra, é primeiro por esta raiz: o teatro (as arquibancadas) é o
lugar de onde se vê (GUENOUN, 2003, p.43). Ou que, o teatro só germina quando
alguma coisa é proposta à visão. Nas cenas propostas pelo projeto O que os olhos
não veem não há o uso da visão, no entanto, há teatro. Este ocorre apesar da não
vidência dos espectadores no decorrer do espetáculo inteiro, sem que os atores
sejam vistos ou sequer os objetos cênicos manipulados por eles.
Sendo assim, em suas pesquisas, O que os olhos não veem procura fazer do
teatro um lugar onde não se vê, através da ruptura com a cena visual.
Se tomarmos o pensamento de Guenon sobre o lugar do público como “o lugar de
onde se vê” para refletir a cena, que não faz uso da visão para sua apreciação, logo
o lugar deste não é mais o de quem vê e sim, o de quem não vê, já que não fará
utilização do sentido da visão para acompanhar a cena, mas dos outros sentidos.
Para instaurar esse lugar onde não se vê, o grupo vem buscando formas de
construir cenas que explorem a multissensorialidade, nas quais o espectador, seja
ele vidente ou não, faça uso de vendas para anular momentaneamente o sentido da
visão, de forma que para este assistir as cenas, se faz necessário o despertar dos
demais sentidos, rompendo com a ideia de que apenas “vemos com os olhos” e
ampliando para visão com o corpo todo.
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Dentro do projeto de extensão, mantemos a mesma ideia sobre a necessidade
das práticas corporais dos atores, de modo que esta se aproxima da perspectiva de
manutenção do ofício do ator, que independe da criação de espetáculo, mas que está
diretamente ligada aos processos criativos. E é uma possibilidade de despertar o ser
sensível apontado por Peter Brook:
De fato, é muito fácil ser sensível na fala, no rosto ou nos dedos, mas o que a
natureza não nos deu, e precisa ser desenvolvido através de exercícios, é a
mesma sensibilidade no resto do corpo: nas costas, nas pernas, no traseiro.
“Ser sensível”, para um ator, significa estar permanentemente em contato com
a totalidade de seu corpo (BROOK, 2000, p.18).
Ao vivenciar práticas corporais, suprimindo o uso do sentido da visão como
parte do processo de criação de cenas não visuais, dentro do projeto de extensão “O
que os olhos não veem”, na condição de atriz e, mais a frente, como mediadora de
tais práticas, comecei a notar que as minhas noções de espacialidade, eixo de
equilíbrio, escuta, percepção da trajetória de movimento corporal e de relação com o
outro ganharam outra dimensão durante o trabalho. Mais tarde, passei a perceber
também suas inovações nos atores fazendo uso das vendas.
Isso iniciou o despertar para alguns questionamentos em mim, tais como: Qual
a importância do uso das vendas3 por parte dos atores, já que se estes não farão uso
destas durante o espetáculo e sim o público? Como a não vidência inserida nas
práticas corporais reverbera nos corpos dos atores? Essa prática pode ser um
caminho para romper com o corpo cotidiano e acessar um corpo extracotidiano para
criação cênica? Como a relação de troca e criação se dá com o outro se ambos estão
momentaneamente sem enxergar?
Tomando como referência inicial as provocações dessas indagações, foi que
comecei a desenvolver essa pesquisa, no campo das artes cênicas, voltada para
reflexões sobre a preparação de elenco para compor um espetáculo não visual. Com
3 As vendas pretas, feitas de tecido e elástico, semelhantes às usadas como tapa olhos para dormir, são
util izadas pelos atores do projeto de extensão O que os olhos não veem durantes as práticas corporais, e
também pelo público durante os espetáculos.
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o objetivo é investigar a experiência das práticas corporais realizadas a partir da não
vidência, a preparação de elenco no teatro, bem como as percepções corporais dos
atores, nesse contexto, se relacionam ao seu fazer artístico.
O desenvolvimento desta pesquisa no campo das artes cênicas é de profunda
importância por fortalecer as práticas corporais sensoriais como possibilidade de
construção de um corpo consciente e pronto para cena, sendo esta uma alternativa
para preparadores de elenco. Além de apontar um caminho para o trabalho individual
e descoberta das potencialidades do próprio corpo através da atenção em si mesmo,
isto se torna um universo de oportunidades para construção cênica e investigação de
atores.
A pesquisa também indica um meio para que pesquisadores do corpo dentro
dessa área possam fazer uso da não visão para pessoas que veem como percurso
para ampliar a percepção dos corpos nesse processo e redescobrir, desta forma, os
potenciais cênicos dos atores a partir de si, das relações que estes constroem da
consciência do corpo.
Acredito na importância desse trabalho de mestrado como algo relevante para
os artistas que compõem o projeto de extensão O que os Olhos não veem, e para
alimentar as pesquisas desenvolvidas no mesmo, pois se propõem a refletir sobre os
aspectos das práticas corporais investigadas dentro do projeto de extensão.
Para além disto, esta pesquisa auxilia na fomentação da formação artística
difundindo, através do meio acadêmico, mais uma forma de fazer artístico
desenvolvido por um grupo da própria instituição onde a pesquisa é realizada.
Assim, a pesquisa indica caminhos para pessoas ditas normais, que desejam
ampliar a sua percepção corporal através da imersão nesta prática de desenvolver
exercícios corporais, aliados à restrição do uso do sentido da visão. Portanto, este
trabalho toca na sensibilidade que diretores, preparadores corporais, professores de
teatro e qualquer profissional precisa ter ao decidir trabalhar com pessoas que
necessitam de adaptações para realizações das atividades mediadas por estes.
Listo aqui alguns grupos que se utilizam da restrição do uso da visão com seus
atores e/ou os espectadores, além da sensorialidade como ferramenta para
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desenvolver espetáculos de teatro, tais como o grupo O que os olhos não veem, de
onde partem as provocações discutidas ao longo dessa pesquisa, sendo estes:
Companhia brasileira de teatro, é um coletivo de artistas de várias regiões do
país fundado pelo dramaturgo e diretor Marcio Abreu em 2000, em Curitiba. Em seu
repertório, há um espetáculo chamado "A viagem" cuja a proposta é conduzir o
espectador vendado a uma viagem sensorial, guiado por um ator que narra sua
história por meio de estímulos que compõem a dramaturgia. A concepção deste
trabalho se aproxima do que realiza o projeto de extensão, no entanto a companhia
encerrou suas investigações sobre o tema, restringindo a elaboração da peça e
tomando outros rumos para seu fazer teatral, o oposto ao projeto da UFRN, que
continua a desenvolver suas pesquisas com suas criações cênicas.
Sensorama (México) que trabalha na concepção de seus espetáculos a 18
anos, faz uso de provocações sensoriais para treinamento de atores, ponto de
convergência com O que os olhos não veem. No entanto, o grupo mexicano tem essa
prática como ideia de imersão em uma vivência teatral como recurso de sensibilização
estética, acreditando que suas apresentações são um evento e também utiliza disto
em cursos e oficinas oferecidos a empresas.
Teatro de los sentidos (Barcelona) explora, em seus espetáculos, a
manipulação de objetos para criação de uma dramaturgia, fazendo relação com
estímulos que esses provocam aos sentidos, porém, durante as apresentações, o
público enxerga toda cena em muitos dos seus espetáculos, diferente da proposta do
grupo O que os olhos não veem. O grupo de Barcelona nomeia essa prática de
“poética dos sentidos” e compartilha suas experiências em workshops, cursos, nos
programas de formação universitária em parceria com a Universidade de Girona
Foundation no programa de Pós-Graduação e no caráter de intercâmbio universitário.
Com o intuito de um diálogo maior desta pesquisa com as atividades
desenvolvidas por esses grupos, foi realizado uma busca nos sites4 da internet dos
mesmos, com a finalidade de encontrar materiais publicados que relatassem sobre o
4 Informações retiradas dos seguintes endereços eletrônicos: http://sensorama.mx/ (site da internet do grupo
Sensorama), http://www.companhiabrasileira.art.br/ (site da Companhia brasileira de teatro) e
http://teatrodelossentidos.com/ (site do grupo Teatro de los sentidos).
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trabalho de preparação dos atores para construção dos espetáculos ou a metodologia
aplicada. No entanto, informações não foram encontradas.
No âmbito acadêmico, dois trabalhos se aproximam dessa pesquisa de
mestrado: o primeiro desenvolvido por Everson Oliveira Cruz, e orientado pela Prof.ª.
Dra. Karenine de Oliveira Porpino, dentro do Programa em Pós-
Graduação em Artes Cênicas da UFRN e intitulado “O que os olhos não veem:
O não visível como forma sensível de apreciação”, que aborda o primeiro espetáculo
do projeto de extensão O que os olhos não veem, com atenção a cena não visível,
para discutir no território da recepção teatral a respeito do olhar do espectador em
uma proposta cênica que não faz uso da visão. O objetivo da pesquisa é investigar
como isso permite a compreensão do espectador a partir relação do seu corpo com
o espaço e como isto potencializa a capacidade de apreciação. São discutidos três
temas: o espaço da cena e o espaço do corpo; a reversibilidade dos sentidos na cena:
e a emancipação do olhar. Cruz (2017) ampara seu trabalho em aspectos do campo
da recepção teatral sobre os estudos de Flávio Desgranges e vincula a cena não
visual sobre o aporte da Fenomenologia, segundo Maurice Merlau-Ponty, além de
situar o olhar do espectador como um olhar emancipado com base nos escritos de
Jacques Ranciére.
Os pontos de diálogo entre a pesquisa desenvolvida por Cruz (2017) são o
projeto de extensão O que os olhos não veem e temáticas envolvendo a
multisensorialidade, corpo e percepção, porém, o enfoque da pesquisa diverge, uma
vez que o meu interesse é nas relações que se estabelecem com os atores durante
sua preparação corporal para criação do espetáculo, e não durante o espetáculo, ou
sob a ótica do espectador, como no trabalho de Cruz (2017). Destaco ainda que os
teóricos que se configuram como interlocutores de cada pesquisa são diferentes
devido as áreas de conhecimento, pois para tratar sobre conceitos de corpo e espaço
dialogo com Michel Foucault, sobre aspectos da percepção, abordo o referencial de
atenção si, apontado por Virginia Kastrup, e para discutir aspectos sobre o olhar,
abordo Evgen Bavcar.
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O trabalho de Everson Oliveira Cruz é de fundamental importância por me
impulsionar a pensar sobre a preparação corporal dos atores para os espetáculos do
grupo O que os olhos não veem.
Já o segundo trabalho é da atriz/pesquisadora Lolita Goldschimidt, realizado
no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRS, como o título
“PROCURANDO PAUSAS EM TEMPOS ATUAIS - UM ESTUDO DO
YOGA PARA O TEATRO”. Seu objeto de pesquisa é refletir sobre possíveis modos
de utilização do yoga para o fazer teatral. Dentro desta pesquisa, Goldschimidt (2015)
analisa três experimentações de yoga inseridos no fazer teatral, distintas e aplicadas
por ela e cita as experimentações com o grupo de pesquisa de linguagem acessível
em artes cênicas, que possui práticas nomeadas por Goldschimidt (2015) de práticas
corporais de sensibilização, que propõe restrição do sentido da visão aos
participantes como ferramenta de diálogo com o trabalho, através de recursos de
acessibilidade para espetáculos teatrais. Essa ideia consiste em sensibilizar os
atores, diretores, pesquisadores do grupo de pesquisa, audiodescritores e interpretes
de libras sobre a percepção das pessoas com deficiência ao apreciarem espetáculos
com recurso de acessibilidade. Este não é o foco da pesquisa e sim, um relato de
uma prática dentro das experimentações que analisou em seus estudos. A relação
entre o yoga e o teatro é, de fato, seu objetivo e não as práticas sem a visão.
Para refletir sobre as práticas corporais do projeto de extensão O que os olhos
não veem, convido os coparticipantes dessas práticas, os atores que as vivenciam,
compreendendo que seus relatos da experiência revelam e influenciam na percepção
de seus corpos e no processo de criação cênica.
Ao pensar sobre a vivência dos atores dentro do projeto de extensão, me
aproximo do conceito de experiência como aquilo que vivemos, que nos passa,
semelhante ao conceito abordado por Jorge Larrosa Bondía (2011, p.07) ao dizer
que, “a experiência é isso que me passa”. A experiência supõe, como já vimos, que
algo que não sou eu, um acontecimento, passa, mas supõe, em segundo lugar, que
algo me passa. Não que passe ante mim, ou frente a mim, mas a mim, quer dizer, em
mim. A experiência supõe, como já afirmei, um acontecimento exterior a mim, mas o
lugar da experiência sou eu. É em mim (ou em minhas palavras, ou em minhas ideias,
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ou em minhas representações, ou em meus sentimentos, ou em meus projetos, ou
em minhas intenções, ou em meu saber, ou em meu poder, ou em minha vontade)
onde se dá a experiência, onde a experiência tem lugar. Não “isso que passa”, mas
“isso que me passa”. Por isso, considero que não existiria ninguém melhor do que os
atores para descrever a experiência de restrição da visão como parte da preparação
corporal.
Para dar lugar à experiência de cada ator é que trago as suas falas como traço
da experiência materializada, pois não considero justo falar sobre o trabalho que
realizamos juntos sem os apontamentos e reflexões deles. A forma que trabalhamos
nos configura como um grupo de múltiplas vozes e de origens diversas.
Há entre o elenco estudantes da licenciatura em teatro, do curso de história
(bacharelado e licenciatura), artes visuais, música, jornalismo, a professora Mayra
Montenegro, do corpo docente do Curso de Teatro e eu mestranda em artes cênica,
todos com vínculo institucional com a UFRN. Somos negros, brancos, baixos, altos,
magros, gordos, videntes, cegos... Artistas que se aventuram juntos neste fazer
teatral nosso que compreende que se vê de corpo inteiro.
Trago as falas dos meus companheiros de trabalho, pois acredito que eles e
elas são partícipes da experiência da preparação corporal, que denomino o ato de
transver. Esse ato é semelhante a um local onde comunga o treinamento do ator
imerso e o universo de criação do espetáculo teatral O que os olhos não veem. Este
processo criativo e de manutenção do ator se junta para uma mudança de
entendimento da dimensão do olhar, pois no ato de transver, ver é algo que se faz de
corpo inteiro. Por esse motivo, o olhar ganha uma condição tátil, sonora e olfativa.
As falas que estão inseridas nesta pesquisa são frutos da gravação em áudio
de rodas de conversa, estabelecidas como práticas de autoavaliação dentro do
projeto de extensão. Nas conversas, avaliamos o trabalho que realizamos juntos,
onde cada um expõe suas percepções e descobertas que teve no respectivo dia de
trabalho corporal, sejam as dificuldades, sejam os ganhos.
Os áudios foram todos gravados com a autorização por escrito do uso de seu
conteúdo, assim como os nomes reais dos sujeitos, para coleta de dados desta
pesquisa, assinado pelo elenco e pela coordenação do projeto de extensão. As
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gravações são úteis não só para as reflexões desta pesquisa, mas podem ser usadas
para as demais pesquisas desenvolvidas por membros do projeto de extensão.
O registro dos áudios foi realizado durante os encontros de trabalho do grupo
O que os olhos não veem, que ocorreram de março de 2017 a junho de
2017, nas terças-feiras no período das 14h às 17h, na sala “C” do Departamento de
Artes da UFRN.
Para análise deste material, faço uso da técnica de Análise de Conteúdo
chamada Análise de Temática, da autora Laurence Bardin, com o intuito de
tratamento dos dados visando uma pesquisa de caráter qualitativo. A autora
descreveu a seguinte análise de conteúdo:
Um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimento relativos às condições de produção/recepção destas
mensagens (MINAYO,1998, p.199 apud BARDIN, 1979, p.42)
Compreendo que este conjunto de técnicas tem como objetivo atingir os
significados notórios e encobertos no material e para esta pesquisa, a Análise
Temática é utilizada como técnica.
Após ouvir os áudios de cada gravação, dou início ao uso da Análise Temática
sobre os temas comuns nas narrativas de cada ator, contidas nas gravações de
áudios analisadas. Passo por três etapas: (i) Pré-análise, (ii) A separação e criação
dos Núcleo de Significados e (iii) A correlação das falas dos atores com referenciais
teóricos desta pesquisa. A análise dos áudios continuam em andamento atualmente,
pois a pesquisa permanece em processo de construção.
Na etapa da Pré-análise, os áudios foram transcritos e lidos com o intuito de
separar o conteúdo a ser analisado. Essa análise ocorreu segundo dois quesitos de
relevância: repetição e representatividade. Considerando o quesito da repetição, não
só aquilo que aparecia várias vezes nas falas dos atores, mas que também era
colocado por eles como algo importante a ser acentuado. E quanto ao fator
21
representatividade, estava atrelado aquilo que era dito apenas uma vez, ou não, mas
que expressava um significado importante para as questões de pesquisa.
Na segunda etapa, o material foi separado no que chamo núcleos de
significados, que são o agrupamento de partes das falas dos participantes da
pesquisa de acordo com o grau de repetição e a representatividade dos temas
tratados nas falas dos atores e que se encontram disponíveis para consulta nos
anexos.
A última etapa é a fase de leitura dos núcleos de significados, estabelecendo
um diálogo com os referenciais teóricos da pesquisa para criação de eixos temáticos,
que são compostos do agrupamento de núcleos de significados e abordam temas
semelhantes e/ou complementares. Os eixos temáticos fundamentam parte das
discussões dos capítulos dois e três desta pesquisa. Essa fase se encontra em
andamento e até o presente momento, as investigações desta pesquisa estruturaram
o primeiro capítulo e parte do segundo capítulo.
O primeiro capítulo, intitulado “Um convite a fechar os olhos”, venho descrever
sobre o meu envolvimento com o projeto de extensão O que os olhos não veem, suas
práticas corporais, que são tão minhas quanto do grupo de atores que o compõem,
além de questionar as semelhanças e cisões entre o treinamento corporal e a
preparação de atores, apresentando a ideia do ato de transver como prática
desenvolvida por mim no grupo. Uma possibilidade de trabalho com atores que
retomo mais à frente.
No capítulo dois, “Ver é algo para além dos olhos: uma vivência de corpo
inteiro”, promovo uma reflexão a partir das falas dos atores, estruturadas em eixos
temáticos, constituídos pelos núcleos de significados em interlocução com os
referenciais teóricos, que fundamentam as discussões sobre as dimensões físicas e
imagéticas do corpo dos atores durante o ato de transver. As discussões são
respaldadas pelas pesquisas sobre atenção a si, a reversão da atenção e a dimensão
tátil do sentido da visão, com base nos estudos da autora Virginia Krastrup5 sobre
5 Virginia Krastrup é psicóloga com doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1997) e pós-doutorado no CNRS, Paris (2002) e CNAM, Paris (2010). Atualmente é Professor Titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia
22
atenção e cognição de acordo com Francisco e Varella , e nas pesquisas do filósofo
francês Michel Foucault acerca do espaço heterotópico e sobre utopia corporal,
ambos termos por ele utilizado, em uma de suas rádioconferências (FOUCAULT,
2013); e relacionando com aspectos da visão e sua percepção, que estão inseridos
nos questionamentos do estudioso da fotografia, o esloveno Evgen Bavcar.
Como parte estrutural da pesquisa, exponho aqui o capítulo dois apresentando
os dois Eixos Temáticos de onde partem as discussões teóricas com o aporte já
apontado aqui, juntamente com os depoimentos dos atores do projeto de extensão O
que os olhos não veem. Nomeio os Eixo Temáticos da seguinte maneira: Eixo I: A
ação de ver como algo relacional; Eixo II: Percepções do corpo. Há ainda o Eixo III
nomeado Alteridade que deu margem para construção do terceiro capítulo.
No último capítulo intitulado “Eu sou você, eu vejo você” abordo as questões
sobre o contexto do Eixo temático III entorno da alteridade partindo da definição
significado da palavra e do sentido empregado por Michel Foucault para as relações
de alteridade, correlacionando com as falas dos atores sobre a experiência não visual
do ato de transver e sua importância para o grupo.
Cognitiva, atuando principalmente nos seguintes temas: cognição, invenção, produção da subjetividade,
aprendizagem, atenção, arte e deficiência visual.
23
CAPÍTULO 1: Um convite a fechar os olhos
“A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.”
(MANOEL DE BARROS)
Descobrir e me aventurar em novas maneiras de desenvolver o fazer teatral é
uma marca sobre o meu percurso de formação enquanto artista. Por isso, sempre fui
muito aberta a mergulhar em novas vivências, assim, não tive como dizer “não” ao
convite feito por Everson Oliveira Cruz6, na época, diretor do espetáculo O que os
olhos não veem, a participar na condição de atriz.
Neste primeiro capítulo, relato sobre o lugar de origem desta pesquisa; sua
relação com o projeto de extensão O que os olhos não veem; como este é; quais as
pesquisas desenvolvidas e sua origem. Como ocorrem as práticas corporais
realizadas dentro do projeto, mediante a necessidade de desenvolver um processo
de preparação corporal para atores, dialogando com o processo de criação do
espetáculo.
1.1. O que os olhos não veem o coração não sente
6 Ator e diretor do espetáculo O que os olhos não veem, do projeto de extensão O que os olhos não
veem o coração não sente, que no decorrer de sua trajetória dentro do projeto de extensão desenvolve
a pesquisa de mestrado no programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UFRN, O QUE OS OLHOS NÃO VEEM: O NÃO VISÍVEL COMO FORMA SENSÍVEL DE
APRECIAÇÃO, aborda questões da recepção teatral em relação a cena não visual.
24
Ao chegar à primeira reunião com o grupo, obtive contato com a história que
impulsionou a nomeação do projeto de extensão O que os olhos não veem o coração
não sente e, mais à frente, o nome do espetáculo teatral desenvolvido pelo grupo.
Trago, então, o relato que ouvi e que integra o texto da ação de extensão do projeto
junto a UFRN.
“Na hora do intervalo, Carla conversava com uma colega na sala de aula
sobre o fato dela estar “afim” de um dos meninos da mesma sala. E a grande
dúvida era se já está na hora de se aproximar mais do garoto ou se
aguardava mais um tempo. A colega informou que já vinha notado “certos
olhares” do garoto para a amiga. Isso a estimulou a ser mais explícita em
relação ao seu interesse. Dali por diante, iniciou-se um jogo de sedução,
fazendo com que Carla começasse a conversar com o garoto, a entrar na
arena das insinuações, das “deixas”. No entanto, em uma das ocasiões em
que todos retornavam do intervalo para a sala de aula, a amiga de Carla
disse-lhe que havia algo escrito no quadro que ela não iria gostar e,
imediatamente leu: “Se ‘o que os olhos não veem, o coração não sente’,
como uma cega pode amar?” Essa frase feriu a alma de Carla e explicitou
os preconceitos em relação às pessoas cegas, mesmo que por trás dessa
manifestação preconceituosa, estivessem motivações de ciúme ou de
inveja.”
O que os olhos não veem, nasce em 2014 na UFRN, a partir das provocações
sobre estigmas dessa narrativa e de outras pessoas cegas, tais como essa jovem que
foi nomeada como Carla, estudante, que cursava o Ensino Médio, na época e era
voluntária no Instituto de Educação e Reabilitação de Cegos do RN (IERC) como
professora de Braille e de soroban7, com quem entramos em contato através das
oficinas e visitas realizadas no instituto. Assim, o projeto foi criado a partir das
pesquisas sobre a relação entre arte, deficiência visual e questões de acessibilidade
cultural, tendo a coordenação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves, vinculado ao
Departamento de Práticas Educacionais e Currículo do Centro de Educação da
UFRN.
O projeto, segundo ALVES 2017 no relatório da ação de extensão no SIGAA
da UFRN, tem como objetivo desenvolver um processo educativo e estético de
7 Soroban, é um ábaco japonês utilizado para realizar operações matemáticas de soma, subtração,
multiplicação, divisão e até raiz quadrada, aperfeiçoando o cálculo mental. Por isso é adota como
ferramenta para auxiliar no ensino de matemática para cegos. 8A supressão da percepção
visual neste caso se faz por meio do uso de vendas por parte do público, seja este cego ou não.
25
criação teatral, de construir um espetáculo a partir da articulação de histórias de vida
e narrativas ficcionais em torno da cegueira, tendo como referência a supressão da
percepção visual8 em favor da exploração cênica dos outros sentidos,
compreendendo o processo artístico como um processo de formação dos artistas
envolvidos.
Assim, o projeto provoca uma reflexão acerca da etimologia da palavra teatro,
théatron no grego, que de acordo com Patrice Pavis (2011, p.409) seria
“o lugar de onde se vê”, ao transformar o teatro no lugar onde não se vê, e ampliando
o entendimento do ato de ver como algo que está para além dos olhos, algo que se
dá de corpo inteiro através da multissensorialidade, gerando um trocadilho com o
nome do próprio projeto.
As investigações do projeto culminaram no espetáculo O que os olhos não
veem, fundamentado na experimentação multissensorial sem o agenciamento da
visão, provocando o público a encontrar outras formas de olhar, que proporcione
dialogicamente o enxergar do outro e a nós mesmos através da cena teatral,
organizada por estímulos sensoriais. Todo o seu processo de criação ocorreu durante
os anos de 2014 e parte de 2015, estreando, neste mesmo ano e passando por
remontagem devido a mudanças no elenco durante o semestre de 2015.2.
De acordo com os relatórios de ações de extensão do grupo na UFRN (ALVES,
2014 e 2017), os estudos teóricos que implicam diretamente nas práticas
desenvolvidas nas ações de extensão do projeto, ocorrem a partir das iniciativas dos
próprios participantes e através da orientação do Professor Dr. Jefferson Fernandes,
em um diálogo direto com arcabouço teórico entrelaçado pelas provocações da
dimensão do olhar do filósofo esloveno Evgen Bavcar, respaldados pela dimensão
multissensorial do corpo humano, segundo as pesquisas de Amanda Torjal e José
Alfonso Ballestero-Álvarez, tencionados pelas provocações do fazer teatral e da
recepção no teatro pelo francês Denis Guénoun e pelo professor Dr. Flávio
Desgranges. Também se embasam nas questões de alteridade e formação de sujeito,
a partir da análise de discurso, segundo Jacques Rancière e Mikhail Bakhtin
respectivamente.
O espetáculo retrata as várias fases da vida de João (menino/homem) ao
misturar sonho e realidade. As “inutilezas” do poeta Manoel de Barros, se
26
transformam em estímulos para compor o espaço cênico de uma viagem em busca
da Rua Furtacor, misturando atores, personagens e espectadores junto com João,
através dos percalços da vida de uma pessoa cega.
(cartazes do espetáculo “O que os olhos não veem”)
Tencionando a dimensão de apreciação estética no teatro, o espetáculo O que
os olhos não veem questiona a ideia do estudioso francês Denis Guénoun, de que “o
teatro sem visibilidade não é teatro” (2003, p.51), construindo sua argumentação com
base na teatralidade a partir da exposição visual, por meio das ações dos atores ao
tornarem visíveis aquilo que para o autor é invisível, no caso, a palavra. O texto teatral.
Quando se centra o fazer teatral no ato de expor as coisas ao espectador, é
possível ter teatro quando a capacidade de visualizar o que ocorre em cena é vetado?
Esse questionamento dá margem à reflexão sobre a apreciação do espetáculo, onde
os espectadores são convidados a vivenciar outra forma de ver aguçando os sentidos
e, ainda assim, afirmando em cena uma apreciação teatral que está para além dos
olhos.
27
Quando o projeto de extensão começou em 2014, suas atividades eram
desenvolvidas principalmente no Departamento de Artes da UFRN, e seus
componentes eram 12 alunos do curso de licenciatura em Teatro da própria
instituição. O projeto permitia articular a formação artística e docente dos alunos do
curso de Teatro, a partir da interface entre Estágio Supervisionado de Formação de
Professores de Teatro, com a ação extensionista de constituição de um espetáculo
teatral. O projeto preocupava-se também com a formação do espectador, uma vez
que o olhar para a cena teatral, como de resto, para qualquer artefato artístico,
pressupõe um processo educacional, o qual pode ser mediado teatralmente.
(DESGRANGES, 2003; 2006). Refletindo sobre essas questões da apreciação teatral
e da participação dos espectadores dentro do contexto da proposta cênica do O que
os olhos não veem, Everson Oliveira Cruz, ator e diretor do espetáculo, passou a
desenvolver sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes
cênicas da UFRN, intitulada O que os olhos não veem: O não visível como forma
sensível de apreciação, sob a orientação da Prof.ª. Dr. Karenine de Oliveira Porpino
e co-orientação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves.
Atualmente, o projeto de extensão é composto por alunos de diversos curso s
da graduação da UFRN, tais como, Teatro, Artes Visuais, História, Música, Educação
Física, Gestão Hospitalar. Tem circulado pela capital e pelo interior do estado do Rio
Grande do Norte, apresentando o extrato cênico do espetáculo O que os olhos não
veem (que agora, está sob a direção do ator Ivan de Melo8), ministrando oficinas,
promovendo palestras e discussões sobre acessibilidade cultural, audiodescrição,
ensino de Teatro e compartilhando aspectos sobre o seu fazer teatral.
Foi nesse contexto que vivenciei na pele aquilo que mais à frente iria me levar
a desenvolver esta pesquisa, que se volta para as práticas de preparação do elenco,
com o intuito de criar e atuar em um espetáculo teatral no qual o público, seja ele
8 Ivan de Melo, estudante de bacharelado em História pela UFRN, bolsista do projeto de extensão O que os olhos não veem, ator integrante do elenco do espetáculo, que leva o mesmo nome do projeto e diretor do extrato cênico apresentado atualmente.
28
vidente ou cego, é convidado a fazer uso de vendas para restringir o uso do sentido
da visão durante toda apreciação.
As práticas de preparação de elenco eram desenvolvidas e mediadas por
Everson Oliveira, diretor do espetáculo em andamento, como um processo de
imersão no universo multissensorial e tinham o caráter de oficinas e laboratórios de
investigação dos sentidos. Tudo era novo para o grupo como um todo. Estávamos
ainda por descobrir como trabalhar e desenvolver o processo criativo.
Com o passar do tempo os atores começam a propor exercícios e a conduzir
alguns encontros, tal como a experimentação com bacias e águas para criação de
sonoridades, vivência mediada por Erhi Araújo9. Isto devido ao processo criativo
colaborativo do grupo e a intervenção como abordagem metodológica de trabalho.
Até este momento eu participava do projeto na condição de atriz e desde então,
passei à função de conduzir e mediar as práticas corporais com o elenco, apoiada na
intenção de transpor os atores para uma experiência de exploração da
multissensorialidade, através supressão do sentido da visão por intermédio do uso de
vendas pretas para que, deste modo, durante todo o processo, os envolvidos
investigassem suas percepções sensoriais. Isso ocorreu devido a necessidade de
Everson assumir para além da função de diretor a de ator, compondo parte do elenco
do espetáculo.
Inicialmente, após propor exercícios de cena em parceria com Ivan de Melo
nos ensaios, comecei a assumir a função de oficineira, propondo e mediando a
condução das oficinas ofertadas pelo projeto de extensão em suas ações de
extensão. Assim, passei a levar as práticas corporais desenvolvidas com os atores
nos ensaios para a comunidade externa e interna.
Paulatinamente, passei a auxiliar Everson na direção do espetáculo O que os
olhos não veem, como auxiliar de direção e colaborei com a condução de algumas
9 Erhi Araújo é músico, ator, professor de teatro formado pela UFRN, que durante os anos de 2014 e metade de 2015, fez parte do projeto de extensão O que os olhos não veem o coração não sente,
desenvolvendo pesquisas sobre as matrizes sonoras para criação do espetáculo e neste período, também compunha parte do elenco.
29
práticas, associadas à preparação do corporal dos atores, para criação de cenas e
antes das apresentações.
(Foto do espetáculo O que os olhos não veem o coração não sente. Arquivo do grupo O que olhos não
veem)
Estar exercendo a mediação das práticas corporais me dispôs a investigar e
questionar: Quais os seus diferenciais? De que maneiras devo realizá-las? Quais são
os resultados obtidos com elas? Essas indagações geraram o nascimento desta
pesquisa.
1.2 Outra forma de ver, “é preciso transver o mundo”
30
Na busca por uma forma de conduzir o processo com os atores dentro do
projeto de extensão, ainda sob a condução de Everson, o grupo se aproximou do
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, LUME 10 com suas
investigações sobre a técnica-em-vida e o estado de representação (BRUNIER, 2009,
p.21-26), no intuito de abordar os mesmos princípios utilizados pelo núcleo em sua
metodologia para criação dos exercícios e práticas corporais do projeto.
A técnica-em-vida compreende o fazer artístico do ator como algo que não
trabalha e trata seu corpo como um mero invólucro de músculos, mas que o entende
como a totalidade do ser, como aquilo que lhe afeta em vida e que, para isso, é
preciso construir um meio que consiga entrar em contato com ele mesmo e com o
espectador.
O termo “em-vida” empregado por Luís Otávio Burnier 11 (2009) está
relacionado com o “corpo-em-vida” que Eugenio Barba13 (1994) utiliza para intitular
um corpo em contínua interação com os refúgios mais escondidos da alma humana,
pois para Barba (1994, p. 218), “não se deve trabalhar com os extremos, mas sim
com a gama de nuanças que estão no meio. O corpo-em vida é uma questão de
nuanças”. Ou seja, os extremos mencionados por Barba são fatores externos ao ser
humano e para ele, era importante trabalhar com as questões internas: com os
sentimentos, dúvidas, angústias e afetações do ser.
Segundo as ideias do LUME, ao se aproximar dos estudos de Barba para
cultivar esse corpo-em-vida é que concretiza o treinamento cotidiano, ou seja, a
técnica-em-vida. Constitui-se um espaço para o ator trabalhar a si mesmo, não a
personagem ou a cena, muito menos o espetáculo, mas as conexões entre seu corpo
e sua alma, transformando suas emoções em ações físicas.
As emoções do ator, neste caso, não são algo de ordem psicológica, imaterial
ou impalpável, e sim, algo concreto, físico e muscular, com capacidade de movimento,
fluidez e dinâmica interna, ou seja, é o corpo. O ato de representar surge da ação de
10 LUME é o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) com sede em Barão Geraldo, Distrito de Campinas (SP), fundado em 1985 pelo ator, diretor
e pesquisador Luís Otávio Burnier. Possui um coletivo de sete atores que se tornou referênc ia internacional para artistas e pesquisadores no redimensionamento técnico e ético do ofício de ator. 11Luiz Otávio Burnier (1956-1995), ator, diretor e fundador do LUME que centrou suas investigações
na busca de uma metodologia e sistematização de uma técnica corpórea e vocal pessoal para o ator. 13 Eugenio Barba, diretor fundador do Odin Teatret com pesquisas voltadas para Antropologia teatral, presença do ator e treinamento.
31
treinar e se caracteriza pela construção de ações físicas por parte do ator para criação
do personagem; em outras palavras, “o ator que não interpreta, mas representa, não
busca um personagem já existente, ele constrói um equivalente, por meio de suas
ações físicas.” (BURNIER, 2013, p. 23)
As ações físicas instituem o treinamento cotidiano como espaço para
desenvolver a criação, conforme descreve Renato Ferracini 12: “a maneira de se
trabalhar todo esse processo é a criação de um espaço onde o ator, assim como o
pianista, que necessita de horas de treinamento em um piano durante toda a vida,
possa trabalhar todos os componentes de sua arte.” (FERRACINI, 2003, p.126)
No que se refere ao treinamento do ator nesta pesquisa e nas atividades com
o projeto de extensão, me aproximo das ideias e princípios do treinamento adotados
pelo LUME, por meio dos escritos do Luís Otávio Burnier e Renato Ferracini, nos
aspectos do ato de treinar como uma busca por estados corpóreos para criação.
[...] treinar é uma busca de estado e não exercícios a serem executados em
um espaço-tempo exato. Na verdade, no estado do treinar, pouco importa a execução precisa e exata do exercício ou sua evolução enquanto complexidade. Importa, sim, o uso dos exercícios para se atingir um limite,
uma borda, criar fissura em sua géstica conhecida e cotidiana ou mesmo em seus clichês expressivos artísticos singulares, no caso de um ator com experiência (FERRACINI in LEMES, 2010, p.68).
Porém, na busca de um suporte metodológico para o trabalho com os atores,
passei a refletir sobre o uso do termo “treinamento” adotado pelo LUME e tantos
grupos, diretores, atores e coletivos teatrais no Brasil, embora compartilhe o
significado do treinamento esse grupo e faça uso de suas experiências para o meu
trabalho de preparação de atores. Reflito que o termo treinamento é também usado
socialmente com outras conotações, diferentemente daquelas dadas pelo LUME, ou
seja, existe uma relação do treinar com um ato de adestramento ou mesmo de busca
de resultados quantitativos relacionados somente a mecânica corporal, a exemplo de
rotinas de exercícios físicos praticados por atletas de alto rendimento. Este uso do
termo treinamento não possui a intenção de criar significados gestuais para as ações
12 Renato Ferracini. Ator-pesquisador-colaborador do LUME desde 1993, desenvolve pesquisas sobre codificação, sistematização e teatralização de técnicas corpóreas e vocais não interpretativas para o ator.
32
dos praticantes e não possuem uma dimensão estética, tão necessária ao fazer
teatral.
No volume três da História do Corpo escrito por CORBIN (2008) há a seguinte
citação, retirada de um dicionário de esporte francês de 1872, sobre o uso da palavra
treinamento: “Palavra reservada durante muito tempo a preparação dos cavalos de
corrida: a palavra ‘treinamento’. Essa prática consiste em corridas seguidas de
cuidados que têm por objetivo livrar o cavalo de seu supérfluo e ensiná-lo a correr.”
Esse sentido do termo “treinamento” como algo similar ao adestramento não interessa
para essa pesquisa.
O treinamento para preparação dos atores é o que importa como postura
adotada durante as proposições de práticas corporais com os atores do projeto de
extensão e é o que se aproxima da ideia do diretor russo Constantin Stanislávski 13
descrita por Jerzy Grotowski (2010).
Stanislavski combatia essa falta de disciplina cotidiana dos atores e
propunha alguns exercícios preparatórios que chamava de “treinamento”. Tratava-se, de um lado, de “jogos de ator” e, de outro, de exercícios para desenvolver as qualidades do corpo, da voz, das articulações. Stanislavski
acreditava que o ator devia fazer vários tipos de ginástica, esgrima, um pouco de acrobacia. Se o ator hesita antes de um salto difícil, hesitará antes do ponto culminante do seu papel.” (GROTOWSKI, 2010, p.165)
Meu intuito para com os atores do projeto O que os olhos não veem é a
construção de um processo de imersão através de práticas corporais, associadas ao
universo da multissensorialidade e das matrizes de criação do espetáculo, um lugar
onde os atores iniciam o contato com a ausência da visão. Essa ação tem como
objetivo despertar o potencial de criação cênica para uma apreciação não visual,
acionar um estado de presença nos corpos dos atores de maneira tal que
permaneçam ativos em cena.
A diferenciação maior entre o trabalho do LUME com o treinamento do ator e
o meu trabalho, junto ao projeto de extensão, está na associação direta com um
processo de criação cênica, no caso, do espetáculo O que os olhos não veem. Para
13 Constantin Stanislávski (1863-1938), Ator, diretor e professor de atores, que fundou do Teatro de
Arte de Moscou. Desenvolveu várias pesquisas sobre a interpretação do ator e sua movimentação natural no palco. Seus principais escritos são os livros: A Preparação do Ator, A Construção do Personagem e A Criação do Papel.
33
o LUME, o treinamento tem o intuito de descobrir uma técnica pessoal e não está
necessariamente associado ao trabalho com o espetáculo, o que Ferracini descreve
da seguinte maneira:
Esse treinamento deve ser sistemático, cotidiano e disciplinado. É um trabalho pré-expressivo, pois no momento do treinamento, o ator não
trabalha a personagem ou um espetáculo teatral, mas é o espaço onde o ator se trabalha, seja descobrindo sua técnica pessoal, seja adquirindo e assimilando elementos de técnicas aculturadas, já estruturadas e
codificadas (FERRACINI, 2003, p.116)
No caso do trabalho com os atores do projeto de extensão, há sempre uma
perspectiva de criação de espetáculos teatrais. O ato de treinar assume um caráter
de preparação devido a sua ligação direta com o processo criativo, ou melhor, um
está diretamente ligado ao processo de composição da cena.
Penso na natureza de treinar aproximando-me da reflexão sobre o significado
do termo preparação, que segundo o dicionário de língua portuguesa Aurélio, é o
seguinte: “processo de aprontar qualquer coisa para uso”. Levando em consideração
que estamos tratando de atores, não podemos pensar que possuem o caráter de
coisa para uso, mas quero ressaltar a ideia de processo de aprontar, que dá margem
para construção, deixar pronto, mesmo sabendo que o corpo do ator nunca estará
pronto, não pensando na ideia de finalização, e sim, que este sempre estará aberto à
criação, na busca de novos modos de ser. Associo a preparação dos atores durante
o treinamento como o processo que lhes permite estar preparados para a cena, o
lugar da construção cênica.
Assim, trato o treinamento, associado a criação de um espetáculo, na
preparação corporal dos atores. A manutenção do ofício do ator não se dissocia do
processo criativo: ambos são coabitantes do mesmo território.
Por esse motivo adoto, nesta pesquisa, a ideia de preparação dos atores a
qual nomeio como ato de transver. Isso surge da necessidade de estarmos (eu e os
atores) e impregnados pelo universo da cegueira para conseguirmos compreender o
que os olhos não veem. Os atores foram sim preparados para perceberem o mundo
de uma outra forma, já que não seria possível criarmos um espetáculo com a proposta
de apreciação sem o sentido da visão se não sentíssemos isso na pele.
Tomo emprestado da poesia do poeta mato-grossense, Manoel de Barros a
ideia de transver o mundo para nomear o trabalho corporal com os atores dentro do
34
projeto de extensão O que os olhos não veem como ato de transver, acreditando na
necessidade de mudança de perspectiva sobre o treinamento de atores, do sentido
da visão e do fazer artístico. Com o intuito de associar ao ato de transver à ampliação
dos sentidos e de mudança de perspectiva em relação ao mundo, ao outro e a si
mesmo. É neste momento de mudança que acessamos a multissensorialidade como
ferramenta, ao entender que esta acontece, como descreve José Alfonso Ballestero-
Álvarez (2003, p.13),
Na ausência de um sentido, na maioria dos casos, obtemos a informação de elementos por meio de outros sentidos de percepção sensorial, em separado
ou em conjunto, naquilo que se denomina multissensorialidade, são aquelas percepções elaboradas entre: ouvido e tato, nariz e tato, boca e tato, etc.
Acredito que se faz necessário, como alertado no poema, transver o mundo
para redimensionarmos a forma com a qual nos relacionamos com ele e refletindo
sobre a proposta de preparação dos atores, faz-se necessário essa mudança através
do ato de ver, que sai do âmbito de observação por meio dos olhos, acessando uma
dimensão tátil e sonora em um aspecto multissensorial. Para isso, é fundamental que
os sujeitos se coloquem em um estado relacional com aquilo que se propõem
transver.
Me provoco a refletir sobre o termo transver de Manoel de Barros como uma
ação que o poeta dá à manifestação de artistas no mundo, um exercício transgressor
que o fazer artístico tem através da imaginação e da busca constante de formas de
investigar o novo, de mudar a lógica, de reinventar a si e a realidade. Isso me permite
fazer uma ponte com o que ocorre na preparação corporal dos atores do projeto de
extensão O que os olhos não veem como esse lugar da reconfiguração, a partir das
provocações do projeto em fazer teatro de outra forma, sem o sentindo da visão e
que afeta a forma do grupo criar e de desenvolver suas provocações cênicas, os
conduzindo de modo a redimensionar a perspectiva de como se relacionam com o
mundo sem a visão.
Portanto, o ato de transver é o ponto inicial dentro do processo de preparação
corporal dos atores, por meio da investigação não visual no fazer teatral do grupo.
Um exercício que antecede a criação e a apreciação cênica com a ausência do
sentido da visão.
35
Tenho como respaldo o processo de imersão que proponho para os atores ao
restringir o uso do sentido da visão, através de vendas de tecido preto. Sugiro aqui
um paralelo entre a ausência momentânea da visão e a investigação dos demais
sentidos para fundamentar o ato de transver. Ora, neste caso, compreendo que é sem
ver que os atores expandem sua percepção transvendo a si e a tudo em sua volta. É
uma forma de aguçar os sentidos e ativar o estado de presença dos atores
(BARBA,1994).
Pensar na visão como algo de caráter meramente físico é reafirmar a
necessidade de distanciamento, de estado de contemplação, atribuindo aqui o
significado do olhar como a função fisiológica de funcionamento através da
observação inicial realizada pelos olhos. Dialogando com as reflexões sobre o olhar
que o filósofo esloveno Evgen Bavcar aponta em seu livro Ponto Zero, “o olhar nos
põe a distância, ausentes de tudo o que vemos e de tudo que pode ser visto; fora,
portanto, da relação corporal.” (2000, p.25). Isto é: ausente do estado relacional, algo
que foge do sentir, do que afeta, criando uma distância entre o sujeito que observa e
o objeto.
No ato de transver, tencionamos o significado da visão e por meio da
multissensorialidade, os atores se colocam em relação com o que se propõe a “olhar”.
É instaurado uma dimensão tátil do olhar, que será tratada no segundo capítulo.
Dentro do projeto de extensão, mantemos a necessidade das práticas
corporais dos atores estarem diretamente ligadas aos processos criativos, sendo essa
uma possibilidade de despertar o ser sensível, apontado por Peter Brook (2000).
O motivo pelo qual as práticas corporais com os atores adotaram o uso
frequente das vendas de tecido no decorrer de seus exercícios foi a necessidade de
encontrar um caminho para eles estarem em contato com a totalidade de seus corpos
e de estabelecerem uma relação de alteridade com os espectadores dentro da
proposta de apreciação, através da restrição do sentido da visão e de aproximação
do universo das pessoas cegas, que é a temática norteadora da criação do
espetáculo.
Tal contato com o ser sensível dentro do trabalho corporal com os atores se
assemelha à busca de acessar o corpo extracotidiano (BARBA 1994). Trata-se de um
corpo que fuja dos ditos padrões de normalidade da ação de cada indivíduo. Nesta
36
perspectiva, para os autores, se faz necessário acessar seu potencial de criação,
onde este sai do seu estado rotineiro e passa a dar margem a outros gestos, que
poderão dar lugar a formas de falar, andar e se portar de um personagem.
Poder-se-ia pensar em uma "força" do ator, adquirida por anos de experiência e de trabalho, e em um dote técnico particular. Entretanto a
técnica é uma utilização particular do corpo. O nosso corpo é utilizado de maneira substancialmente diferente na vida cotidiana e nas situações de representação. No contexto cotidiano, a técnica do corpo está condicionada
pela cultura, pelo estado social e pelo ofício. Em uma situação de representação existe uma diferente técnica do corpo. Pode-se então distinguir uma técnica cotidiana de uma técnica extracotidiana (BARBA,
1994, p.30). O corpo extracotidiano não elimina o corpo cotidiano, mas nasce deste e dá
margem à criação que este lhe impulsiona. Na verdade, o estado do corpo
extracotidiano permite que o ator se desprenda da usualidade, para que se faça
presente em seu estado de criação.
Usamos nosso corpo de maneira diferente na vida e nas situações de 'representação'. No nível cotidiano temos uma técnica do corpo
condicionada por nossa cultura, nosso estado social, nossa profissão. Mas numa situação de 'representação' existe uma técnica do corpo totalmente diferente (BARBA-SAVARESE, 2012, p. 83).
Conforme Eugenio Barba relata, o corpo em situação de representação se
encontra em outro estado: o estado de criação, que é diferente do seu estado no
cotidiano, impulsionado pela conduta social e pelos nossos hábitos. A busca pelo
corpo extracotidiano é um dos objetivos do ato de transver, com o intuito de colocar
os atores em estado de representação durante o processo de criação.
Na rotina de encontros do grupo O que os olhos não veem, todas as terças-
feiras das 14h às 17h, no período de junho de 2016 a junho de 2017, na sala “C” do
Departamento de Artes da UFRN, adotei um cronograma para sistematização das
práticas desenvolvidas no ato de transver, de acordo com a seguinte ordem das
ações: alongamento, aquecimento, laboratório de criação e/ou imersão no universo
das cenas do espetáculo.
Para encontrar os caminhos para o ato de transver tive que literalmente tatear
no escuro. Quando como grupo decidimos explorar a experiência não visual nas
práticas corporais não foi fácil, pois não sabíamos como fazer isso, ou como adaptar
37
o treinamento corporal a essa realidade. Mas era lógico que não iria ser a mesma
prática só que usando vendas.
(Atores durante o ato de transver. Foto do arquivo do grupo O que olhos não veem)
A saída foi começar a investigar quais os princípios trabalhados no treinamento
que vivenciávamos anteriormente, e que eram fundamentais para o trabalho com os
atores. A estratégia surgiu na disciplina de introdução a educação especial ofertada
na graduação, onde tive contato com a adaptação de exercícios, objetos e mobiliário
para atender necessidades especificas de alunos. E comecei a pesquisar como
adaptar exercícios para realidade não visual dos atores durante as práticas corporais.
As primeiras vivências me mostraram o quanto a condução era necessária,
quase uma ferramenta fundamental no processo de adaptação dos exercícios, que
precisava ser clara e descritiva para que os atores entendessem de fato o que estava
sendo proposto. Essa compreensão só veio a partir de experiências onde a condução
não funcionou e percebi o elenco com dificuldade de fazer o que foi proposto. Me
toquei que tinha o hábito de exemplificar o que propunha executando para que
reproduzirem, e dentro da prática não visual essa estratégia não funcionava. Gerava
uma falha na comunicação e interrompia o fluxo dos exercícios. Tive que mudar a
38
descrição dos exercícios, dando instruções com associações imagéticas para os
atores, ou em algumas situações reproduzir o movimento com a minha mão na palma
da mão daqueles que estavam com dificuldades, e até realizar junto com eles para
perceberem a trajetória da movimentação que eu estava propondo.
Antes de dar início às práticas, realizava a distribuição das vendas de tecido e
elástico preto, usadas para restringir o uso do sentido da visão por parte dos atores.
Em seguida, começava a mediar a realização dos exercícios de alongamento com
base em práticas de Yoga e em posturas para relaxar a musculatura. Para isso, eu
também executava o que propunha aos atores, enquanto os observava e descrevia
os movimentos que iríamos fazer. A necessidade de detalhar as instruções de forma
clara e objetiva comunga o artifício do recurso de acessibilidade comunicacional da
audiodescrição, que consiste na prática de tradução intersemiótica da imagem para
palavra. Em alguns momentos, quando um dos atores não compreendia a instrução
dada, adotava o recurso tátil de execução do movimento na mão do ator e/ou
conduzia seu corpo ao percurso da movimentação sugerida, para que ele possa fazer
sozinho.
Como parte do aquecimento, introduzo a ação de caminhar pela sala. A medida
que isso ocorre, peço que os atores comecem a reduzir a velocidade de sua
caminhada, com o propósito de atingir a velocidade lenta com movimentação a partir
do abdômen e que transitem entre diferentes apoios de seus corpos no chão,
transitando entre os níveis alto, médio e baixo, alternando gradativamente entre o
estado de equilíbrio e desequilíbrio, abordando aquilo que Barba (1994) chama de
equilíbrio precário, e descreve abaixo:
“Esse princípio constante se encontra em todas as formas codificadas de
representação: uma deformação da técnica cotidiana de caminhar, de
deslocar-se no espaço, de manter o corpo imóvel. Essa técnica
extracotidiana baseia-se na alteração do equilíbrio. Sua finalidade é um
equilíbrio permanentemente instável. Refutando o equilíbrio "natural" o ator
intervém no espaço com um equilíbrio de "luxo": complexo, aparentemente
supérfluo e com alto custo de energia, "Pode-se nascer com a graça ou com
o dom do ritmo, mas não com o dom do equilíbrio instável (BARBA, 1994,
p.35)”
Os exercícios de caminhada, que se fundamentam em explorar a condição de
equilíbrio precário, visam acessar a construção de corpos extracotidianos nos atores,
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para que estes rompam com suas ações rotineiras do estado cotidiano e que possam
ativar, dessa forma, o potencial de criação dentro do estado de representação em
suas ações físicas.
Assim que finalizamos o aquecimento, iniciamos o laboratório de criação,
trabalhando ações de interação entre os atores para que os participantes
desenvolvam a escuta corporal do grupo. Por isso, algumas vezes, sugiro que juntos,
todos saltem ao mesmo tempo, guiados apenas pela percepção do som da respiração
do grupo. Em outros momentos, trabalhamos com a adaptação não visual do Jogo
das Conexões, jogo teatral do diretor e estudioso do teatro Augusto Boal (1982), onde
os participantes, a partir da nomeação de uma parte do corpo humano e ao se
entreolharem, se ligam em duplas, trios ou todos, pela parte do corpo anunciada. Na
versão não-visual, quando falo a parte do corpo, os atores tentam se encontrar
através do tato ou, no caso de alguém ficar sozinho, passam a emitir um som para
guiar outra pessoa até ela. Geralmente, estimulo as duplas e trios, mesmo conectados
a se locomoveram pela sala e que encontrem juntos uma formar de caminhar com
essa nova condição corporal.
Outro exercício adaptado para o ato de transver é uma dança onde os
parceiros dançam a partir do contato de seus pulsos. A adaptação é de um exercício
aplicado pelo diretor chileno Javier Díaz Dalannais, que tomei conhecimento durante
a oficina realizada em 2014, pelo projeto de extensão Cores da UFRN14, que estive
presente na condição de participante. O ato de transver essa dança ocorre mediante
o encontro das duplas de atores que transitam pela sala e que dançam sem perder o
contato tátil que ampliamos da ligação inicial do pulso para outras partes do corpo.
Com o propósito de dialogar com a forma de mobilidade que as pessoas cegas
possuem, após a oficina de guia realizada com o projeto de extensão O que os olhos
não veem, em 2015, com a atriz e artista circense cega, Ana Luiza, que também é
professora de mobilidade para cegos, foi inserida a guia dentro das práticas com os
atores, no entanto, no lugar da pessoa ser conduzida por quem enxerga, a guia é feita
às cegas, pois ambos, condutor e conduzido, não veem.
14 Projeto de extensão da UFRN que atuava sobre a coordenação do professor Marcos Andruchak
visando à pesquisa artístico-pedagógica na perspectiva de um processo de encenação colaborativo e
interdisciplinar, permanente, baseada a priori, na vida e obra da artista plástica mexicana Frida Kahlo
e com uma releitura geometricista de suas obras .
40
A partir da necessidade do trabalho de coro com os atores, foi criado um
exercício inspirado no trabalho com a máscara teatral do diretor Jacques Lecoq
(2010), chamado Organismo vivo, que consiste na movimentação pela sala em
conjunto com todos os atores inseridos, onde estes constroem gestos que são
absorvidos por todo grupo através do toque, já que todos se encontram muito
próximos uns dos outros. A ideia é que juntos, os participantes componham um único
organismo, que se movimenta junto, semelhante a um cardume de peixes, podendo
até se dissociar, mas que se reencontram por meio de sonoridades emitidas pelos
atores.
(Exercício organismo vivo. Foto do arquivo do grupo O que olhos não veem)
Há um exercício que, dependendo da necessidade de investigação
apresentada pelo grupo, pode ocorrer no início do ato de transver, logo após do
alongamento para trabalhar a escuta do grupo e percepção do ambiente através da
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audição como recurso de localização no decorrer das práticas do encontro, ou na
finalização das práticas corporais do dia para encerrar tudo o que foi realizado,
diminuindo a euforia e exaustão física, preparando todos para o momento de
avaliação de tudo que ocorreu. Esse exercício é o de prolongamento da escuta do
professor de música Murray Schafer (1991), que consiste em um momento de
observação dos sons. Inicialmente, os que são gerados pelos corpos dos atores: sua
respiração, batimentos cardíacos, dos fluidos corporais, depois, percebe-se os sons
à sua volta e no ambiente que circulam o local onde os participantes estão inseridos,
retornando gradativamente para os sons mais pertos até voltar para si e o som da
respiração.
Durante todo ato de transver, realizo a mediação dos exercícios enquanto
executo boa parte deles juntamente com os atores, com exceção apenas do jogo das
conexões e do organismo vivo. As práticas do laboratório de criação são caminhos
adotados para inserir o grupo no universo de investigação do espetáculo, no caso, a
cegueira e a visão como algo para além dos olhos, a ação de ver de corpo inteiro. E
muitos dos exercícios culminaram na criação das cenas do espetáculo O que os olhos
não veem.
(Registro do ato de transver. Foto do arquivo do grupo O que olhos não veem)
42
Retomarei as descobertas minhas e dos atores pelas provocações do ato de
transver nos próximos capítulos dessa dissertação, onde me proponho a correlacionar
os referenciais teóricos e os pontos tratados neste capítulo com os relatos de atrizes
e atores do projeto de extensão O que os olhos não veem sobre a preparação
corporal.
43
CAPÍTULO 2: “Ver é algo para além dos olhos: Uma vivência de
corpo inteiro”
Dentro da estruturação da pesquisa, resolvi organizar as discussões com base
em três Eixos Temáticos, criados a partir dos Núcleos de Significados da análise de
depoimentos dos atores do projeto de extensão O que os olhos não veem, que foram
nomeados:
Eixo I: A ação de ver como algo relacional;
Eixo II: Percepções do corpo;
Eixo III: Alteridade.
Abordando neste capítulo o conteúdo referente aos dois primeiros eixos
temáticos e no próximo capítulo, o último eixo temático.
2.1. Eixo Temático I: A ação de ver como algo relacional
“Eu vi como todo mundo vê... com as mãos!”
Neste primeiro eixo temático quero abordar, aqui, aspectos da visão que se constitui
como outra forma de “ver”, que atribuo aos demais sentidos como a possibilidade de
enxergar. Ao discutir a ação de ver como algo que se constrói para além dos olhos e
questionar a postura visocêntrica adotada na sociedade, principalmente, no fazer
teatral, abordo os apontamentos dos atores em seus relatos sobre as experiências
vividas durante o ato de transver, juntamente com as reflexões do filósofo e fotógrafo
esloveno Evgen Bavcar.
Para dar início às questões sobre a dimensão do olhar, trago como epígrafe,
no início deste subcapítulo, uma frase do personagem João do espetáculo O que os
olhos não veem, que em sua infância, não conhecia o mar e inventava histórias sobre
ele para esconder essa realidade das outras crianças. Quando João é questionado
por outra criança se ele viu e como foi que viu as coisas que relatava sobre o mar,
sua resposta foi que “Eu vi como todo mundo vê... com as mãos”.
44
A conduta de tocar para analisar um objeto é muito comum na fase da infância,
na maioria das vezes vem acompanhada do alerta de um adulto para não tocar, só
olhar, ou até a frase de advertência “você vê com os olhos, não com as mãos”. No
entanto, o fotógrafo cego Evgen Bavcar tenciona o caráter da visão física, aquela que
ele nomeia proveniente dos olhos.
Para ele, esse ato de ver com os olhos produz “o olhar que não vê a verdade”
(2000, p.17), pois afirma que somente o toque pode confirmar a existência de um
objeto. O que contradiz a frase de advertência do adulto - a ação de tocar da criança
-, como na situação descrita anteriormente, ou seja, para o autor há uma necessidade
de exercer uma exploração tátil sobre os objetos para assegurar a veracidade de sua
existência. Deste modo, a ação de tocar que por horas é reprimida à criança, para
Bavcar, se faz necessária que ocorra, o que reforça o discurso do personagem do
espetáculo, de que “se vê com as mãos”.
Para o fotógrafo, a visão física é aquela proveniente dos olhos e está aberta
ao engano, algo semelhante à visão das sombras dentro da caverna no mito de
Platão, na obra A república, em que prisioneiros supõem um mundo a partir do que
veem no interior da caverna, onde estão há muito tempo, e tudo o que sabem é a
partir das sombras que veem e que sua percepção não condiz com a realidade fora
deste espaço. Para conseguir saber como são as coisas seriam de fato, é necessário
sair da caverna, abrindo mão da percepção que possuíam, fruto do seu campo visual
e passando agora a explorar, se relacionar com as coisas a sua volta, tocá-las, cheirá-
las, não somente as ver. Verdadeiramente livres do olhar aprisionado por aquilo que
os olhos podem avistar e expandir o ato de ver a medida que nos relacionamos com
o mundo.
Bavcar atribui outras características à ação de olhar, como o toque, ao dar a
esta uma dimensão tátil e a partir dos escritos do historiador Marc Bloch15, que afirma
que o tato seria o único sentido capaz de promover a capacidade de ver de verdade
por ser “um olhar chegado”, ou seja, um “olhar” que ocorre através da proximidade.
Essa habilidade de promover a aproximação entre sujeito e objeto, por meio da
exploração tátil, permite que essa ação seja uma forma de percepção da existência
15 Marc Bloch historiador, que influencia os estudos de Evgen Bavcar sobre mitologia.
45
concreta daquilo sobre o qual se exerce o toque, compreendendo sua forma,
densidade, volume, textura e temperatura. Este ato exploratório, por meio do tato,
transporta para si a capacidade de ver dada ao sentido da visão (portanto dos olhos)
e permite ao sujeito não só contemplar um objeto, mas lhe coloca em um estado
relacional com aquilo que toca, o que caracteriza o “olhar” como algo próximo, que
ocorre perto.
Assim, podemos afirmar que semelhante a Bloch, que nomeia ação tátil como
“um olhar chegado”, a ideia de Bavcar do tato como a visão verdade ira promove um
estado de relação entre sujeito e objeto, permitindo com que um perceba o outro.
Para isso, se faz necessário a proximidade entre ambos, onde se atenta para a
potencialidade dos sentidos.
“A separação entre o homem e os objetos é uma forma de castração moderna. Existe uma divisão entre a substância do objeto e a imagem do Objeto. Os objetos fazem parte do meu corpo, tenho muitos objetos em casa, pedras das
ruas de praga, de minhas visitas ao mundo. Também exprime a materialidade do mundo, porque quando se toca alguma coisa, se toca de verdade, enquanto o olhar imprime distância. Como disse Kant, os olhos são instrumentos da
distância (BAVCAR, Evgen. Jornal do MARGS. Setembro 2001, nº 72)”
Aquilo que Bavcar chama de castração moderna é o que presenciamos na
inibição, por parte da intervenção do adulto, à ação de toque da criança a um objeto
que esta deseja conhecer e explorar, situação essa que relatei anteriormente. E posso
dizer que a fala do personagem João do espetáculo O que os olhos não veem, ao
afirmar que “Eu vi como todo mundo vê. Com as mãos”, além de reaproximar o ato
de ver de uma ação tátil, também gera a possibilidade de “ver” com outros sentidos,
aproximando da ideia de percepção. João consegue ver porque toca, explora, está
próximo e se relaciona daquilo que vê.
O pensamento não é reduzir a ideia de ver, mas permitir a ampliação do
conceito de ver para o corpo como todo e perceber que imagens que são geradas a
partir dos estímulos sensoriais, promovendo uma relação “corpo a corpo” com o
mundo a sua volta. É permitir se tocar, cheirar, ouvir, esbarrar, viver as condições e
ações que o cercam em interação constante, onde não existe dicotomia entre ser e
estar, pensar e sentir; é o corpo/mente atuando em forma ativa e perceptível.
Essa relação “corpo a corpo” com o mundo, que nos permite enxergar de
outras formas é descrita pelo ator e diretor Ivan de Melo, ao relatar sua percepção
46
sobre as práticas corporais sem o recurso do sentindo da visão. Em seu percurso de
formação como ator, tal como durante o ato de transver, compreendeu que ver é sim
algo que se dá para além da visão física e que ocorre na esfera dos demais sentidos,
que se encontram ativos, pulsantes e comunicam tudo aquilo se vivenciam.
“Desde quando eu comecei a fazer teatro, eu sempre me senti mais à vontade
na hora de fazer, nos laboratórios, de iniciar, de propor movimentos com os olhos fechados. Eu sempre senti um campo de acesso muito maior de dentro para fora. Para mim, isso precisava começar com os olhos fechados. Porém,
esses olhos fechados nunca foi uma questão de inatividade do corpo, sabe? Eu inclusive estou lendo um artigo esses dias que fala que quando estamos de olhos fechados o nosso corpo não está em estado de repouso, a gente tem
células que quando a gente está de olho fechado, elas estão trabalhando para mostrar para a gente esse escuro estamos vendo. A gente continua vendo mesmo de olhos fechados. É um outro tipo de visão que coloca o corpo em
um outro estado de ação, um outro estado de reação aquele momento que o corpo se encontra.” (Relato do ator e diretor Ivan de Melo)
O outro tipo de visão que Ivan menciona é o mesmo que aponta Bavcar ao
falar das possibilidades de enxergar um objeto por meio do tato na visão verdadeira.
É os demais sentidos que percebem o mundo. O corpo reagindo a tudo de forma ativa
e compreendendo a vida não só por aquilo que os olhos contemplam, mas de acordo
com que reagimos e interagimos com o que percebemos. Dessa forma, podemos ver
por meio não somente da visão física dos olhos ou através do tato, e sim, com o corpo
inteiro.
Essa proposta de percepção do mundo através dos sentidos rompe com os
padrões da sociedade contemporânea, que se utiliza do campo visual para informar,
vender por meio de propagandas de marcas, entretenimento, sinalização, o que a
constitui como visocêntrica, onde boa parte das informações são expressadas para
comunicar através do sentido da visão. Este hábito se encontra tão enraizado nesta
sociedade que transborda, inclusive, para o fazer teatral, onde os atores são sempre
orientados a olharem nos olhos do outro e a estarem sempre conscientes que serão
vistos pelo expectador, como aponta Ivan ao refletir sobre outras experiências que
teve com os exercícios teatrais, onde “ver” era sempre uma ação imposta e as
possibilidades do não uso da visão física em práticas de preparação de atores, no
caso, o ato de transver, serviam como local para explorar o potencial corporal dos
atores.
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“Eu sempre fui muito repreendido “começa de olhos abertos”, o teatro é muito
um lugar de se olhar, inclusive nos laboratórios, essa coisa de olhar sempre nos olhos. Olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa quando está andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar o não
olhar e quando a gente começa a experimentar mais disso, vai adentrando algumas outras questões. O que se pode explorar a partir da descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas
estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse ser que olha, esse ser que vê, que está sempre propondo coisas a partir do olhar, principalmente, as relações entre os outros. Então, quando você começa a colocar os atores
de olhos vendados para, inclusive, interagir entre si é um outro tipo de relação que você está explorando. É uma relação que está muito mais dilatada. Ela está nos poros mesmo, na pele, na audição, no tato, no olfato, no paladar... Aí
quando você reabre os olhos desses atores, você está com uma outra capacidade, uma capacidade muito mais expandida, um corpo muito mais expandido, fenomenológico.” (Relato do ator e diretor Ivan de Melo)
Promover a ação de “respeitar o não olhar”, a qual Ivan coloca como esquecida
por algumas práticas com atores, é o que dá margem para vivência multissensorial
no ato de transver, onde o diálogo com os demais sentidos não anula a visão e vice-
versa, mas algumas abordagens seguem uma lógica sobre perspectiva
ópticocêntrica16, onde a possibilidade de trabalhar sem enxergar não deve ser levada
em consideração, como aponta a atriz Maria Flor ao refletir sobre o ato de transver:
“me faz pensar sobre essa ideia criada de que o fazer teatral se dá pelo olhar... de
que a troca só é estabelecida se eu encontrar o olhar do outro, mas... que olhar é
esse?”. Devemos refletir sobre a hegemonia do olhar no teatro, onde impera a lógica
“se atores serão vistos”, pensando ainda no olhar físico como fundamental para quem
assiste e para os atores em cena.
Dentro do ato de transver, a partir destes relatos, afirmo que se faz necessário
pensar não só na cena, mas no fazer teatral como todo, inclusive na preparação dos
atores, como um lugar da sinestesia e, portanto, multissensorial, com o intuito de
permitir que estes se relacionem dentro da sala de ensaio e que construam, a partir
da percepção de si e do outro, uma outra imagem; que desenvolvam um olhar
verdadeiro para além do tato, de corpo inteiro e que corpo a corpo, em estado
relacional, dissolvam os limites em “substâncias” que compõem o ser, que é referente
a cada ator e suas “imagens visuais” para construção de novas leituras de si e do
outro, e que todos dentro desta experiência estão conectados.
16 Ópticocêntrica, é termo utilizado para algo centrado nas informações visuais, ou no sentido da visão.
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Entendo que não posso considerar o sentido da visão como algo de cunho frio
ou distante, pois vivo dentro do próprio ato de transver a visão como um recurso ativo
do cuidado e auxílio para com os outros, que momentaneamente não enxergam.
Quem media a prática corporal não faz uso das vendas durante o processo de
condução, pois a sua percepção do que ocorre auxilia os demais para que estes não
se machuquem, sem retirar a autonomia de cada sujeito, permitindo que se
movimentem livremente, alertando-os dos possíveis choques com o outro ou com as
paredes da sala de ensaio, para que assim, os atores consigam lidar com esses
“encontros”. Eu sou, na maioria das vezes, essa pessoa sem as vendas, que está
conduzindo as práticas corporais e zelando pelos participantes dela e estou o tempo
todo consciente que eu e os atores exercitamos o olhar durante o ato de transver,
porém de formas diferentes.
(Registro do Ato de transver. Foto do arquivo do grupo O que os olhos não veem)
2.1.1. De olhos fechados é que me vejo e vejo o outro
Ainda em diálogo com Bavcar sobre como olhar e como este nos distancia, “De
todos os sentidos, o olhar é o único que tem a pretensão de julgar uma situação de
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conjunto, mais ainda, o olhar nos põe à distância, ausentes de tudo o que vemos e
de tudo que pode ser visto; fora, portanto, da relação corporal” (2000, p.25,). Ficamos
diante de algo que posicionamos os olhos para assim, ver, mas não desenvolvemos,
neste processo, um estado relacional no âmbito do contato físico. Nosso contato é
real, porém, de longe.
Daliana Cavalcanti, cantora-atriz e preparadora vocal do projeto extensão,
reflete sobre a inibição que o olhar do outro pode gerar, criando barreiras que em
determinadas situações, chegam a travar as relações sociais.
“E às vezes, o que a gente vê abre um parêntese para o julgamento: a gente
julga mais o que vê e quando a gente não enxerga, imaginamos na nossa mente essas formas, que podem corresponder ao que se vê ou não. [...] acho que esse julgamento do outro diminui por não estar vendo. Você, assim, tem
contato mais com a energia da pessoa do que com a forma da pessoa e eu percebi isso, entende? Você se conecta mais com o que a pessoa é, do que com o que ela se parece.” (Relato da cantora-atriz e preparadora vocal,
Daliana Cavalcanti) É possível romper com essas barreiras e criar conexões muito mais reais do
que a mensurada pelo o que avistamos, ultrapassando a aparência. Pensar em mudar
a perspectiva de ver, colocando-a como algo para além dos olhos, nos localiza e nos
torna imersos, vemos aquilo que por ser tão próximo passamos a nos sentir
conectados. Não estamos fora, na condição de contemplador, e sim, dentro,
interagindo uns com os outros.
“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu entrei no curso, os professores diziam para abrir o olho e é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores
sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui e eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso. Com certeza, é necessário olhar para dentro! É nesse sentido que eu estou falando. Que mesmo de olhos fechados, nessa ideia que só de olhos abertos
eu vou encontrar com o olhar do outro e encontrar com o outro, mas esse olhar pode ser tão vazio. Eu posso olhar tão superficialmente. Eu estou olhando para você, mas não estou vendo você, não estou jogando com você
e quando nós nos conhecemos e conhecemos esses corpos dentro do espaço, não precisa do olhar. Por exemplo: Lila não precisou me “enxergar” para saber que era eu, Thalles não precisou me “enxergar” para saber que
era eu. Existem outras conexões, sabe? Acaba que ficamos mais sensíveis a isso. Esses corpos já estão trabalhando há um tempo, se tocando há um tempo. Então, aguça essa sensibilidade de observação por outros meios que
não sejam a visão propriamente dita e a visão deixa de ser uma coisa. Para mim, nesse momento os olhos deixam de ser as janelas da alma. Não é mais isso, é outra coisa, é algo para além disso. É aguçar os sentidos, é se permitir sentir e estar.” (Relato da atriz Maria Flor)
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O que a atriz Maria Flor relata ao falar sobre a experiência de transver dentro
projeto de extensão O que os olhos não veem o coração não sente, aponta que não
há uma necessidade do sentido da visão manifesto pelos olhos para estar trabalhando
e/ou percebendo o outro, mas da capacidade de relação que nasce no encontro com
o outro, sem precisar vê-lo. Isto ocorre pelos atores se encontrarem nesse momento
em relação, o que os liga de tal forma que não há separação ou distinção entre eles.
É o entendimento de que existem outras possibilidades de observação “por
outros meios que não sejam a visão”, tal como apontado pela atriz; que podemos
ampliar a compreensão de visão e percebermos que o corpo recebe múltiplas
informações o tempo todo.
Para Prof.ª Dr.ª Virginia Kastrup, essa relação de possibilidade de observação
tátil ocorre pela mudança da atenção. Ao relatar uma pesquisa realizada durante uma
oficina de cerâmica do Instituto Benjamin Constant no Rio de Janeiro com pessoas
cegas, a professora apontou duas mudanças da atenção por parte das pessoas
cegas. “A primeira mudança diz respeito ao redirecionamento para o tato de uma
atenção que era, até então, investida majoritariamente da visão” (KASTRUP, 2015,
p.70). Isso ocorre em função de melhorar os procedimentos exploratórios do tato,
semelhante aos que vivenciam os atores dentro do ato de transver.
Não significa que somente na condição da ausência da visão, seja ela por
cegueira ou por inibição do sentido, como no caso dos atores, ocorra a exploração
tátil e sim, que esse é um recurso utilizado por essas pessoas para se orientarem.
Portanto, a sensibilidade e as percepções do tato são mais valorizadas e passam
fornecer sensações que eram antes somente percebidas através do sentido da visão.
A segunda mudança de atenção relatada por Kastrup é a reversão da atenção,
no qual “a atenção passa de uma atitude de busca para uma atitude de abertura ao
encontro, que se caracteriza pelo gesto de deixar vir” (2015, p.71). Essa mesma
mudança de atenção acontece com os atores do projeto quando, nos exercícios de
caminhada pela sala, sem enxergar, passam um pelo outro e percebem esse
indivíduo que encontrou e depois, deixam ir embora. Algo semelhante também ocorre
nos exercícios, cuja proposição é encontrar com alguém através do toque, que em
51
acordo alguém assuma a condução da movimentação da dupla e que, depois, ocorra
uma transição para que o outro integrante passe a conduzir, criando um acordo entre
si.
“Naquele exercício que você passou, onde tínhamos que encontrar a outra pessoa e fazer uma espécie de dança, partindo da conexão do pulso, depois
das costas, dos ombros, era muito interessante ver como a gente sabia quem era pela energia, pelo toque, pela corporeidade, mesmo não vendo a outra pessoa. Então, a gente tem essa percepção de sensações, de sentidos, eu
não sei. Mas é como se fosse uma espécie de sexto sentido, para você se conectar com a outra pessoa. Às vezes você se conectava, outras não. Às vezes, você tinha uma conexão maior com uma pessoa do que com outra.
Muito interessante observar tudo isso. Na dança, eu senti muita fluidez e conexão com a pessoa... A diferença do corpo da pessoa... Com uns, você se conectava mais, ou com outros menos. Eu acho que teve troca energética
ao ponto de um alimentar o outro pelo próprio movimento. Inclusive, eu acho que mesmo com a gente sem ter essa noção do espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a gente sentia quando troca o pulso e chegava
outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra textura, outra energia”, era outra coisa.” (Relato da cantora-atriz e preparadora vocal, Daliana Cavalcanti)
Estar aberta para percepção daquilo que lhe chega, e se colocar em um estado
relacional, foram os motivos que permitiram Daliana ter acesso às mudanças que
ocorriam consigo e com o outro com quem se relacionava. Para mim, este relato é
um exemplo que dialoga com a noção de reversão da atenção que Kastrup (2015)
descreve.
(As atrizes Elisiana Gomes a esquerda, e Daliana Cavalcanti a direita, em exercício durante o ato de
transver. Arquivo do grupo O que os olhos não veem)
52
Perceber o outro e a si, dentro da vivência, sem o agenciamento da visão,
segue o percurso da reversão da atenção, pois ao estar em estado relacional e aberto
aos estímulos sensoriais que lhe chegam, sua atenção muda de referencial. Não é
mais um objeto que se analisa distante, e sim, aquilo com que o sujeito se relaciona,
ou seja, o ponto de onde parte a atenção é de si, não do outro. Os sujeitos que
chegam são notados por chegarem, não pelo ato de contemplá-los.
2.2. Eixo Temático II: Percepções do corpo
“A pupila dos cegos é o seu corpo inteiro, e eles podem impunemente voltar-se para o sol como se tivessem aprendido o reflexo
condicionado dos girassóis.” (Evgen Bavcar)
Correlaciono os temas desse eixo com as descobertas provenientes das falas
dos atores sobre seus corpos, as mudanças da perspectiva do espaço e de como se
relacionam com a condição de equilíbrio, sem um referencial visual para nutrir as
movimentações na sala de ensaio a partir do termo “atenção a si” segundo Virginia
Kastrup (2015) e os estudos do filósofo francês Michel Foucault (2009 e sobre a utopia
corporal e os espaços heterotópicos. E para uma melhor organização, divido em dois
pontos esse subtítulo.
2.2.1 A criação de um não lugar
A percepção do espaço físico da sala de ensaio, seus limites, a localização das
paredes, janelas, porta e ar-condicionado durante o ato de transver muda; isto ocorre
devido ausência do referencial visual, e por causa disto há uma mudança da atenção,
pois antes, tudo era determinado pelo que se via e durante o ato de transver, tudo é
percebido por meio da multissensorialidade e, principalmente, pelo sentido do tato.
Semelhante ao estudo desenvolvido por Krastrup (2015), nas aulas de cerâmica com
cegos no Instituto Benjamin Constante, onde ocorre o redirecionamento para o tato
53
de uma atenção que era, até então, investida majoritariamente da visão (Kastrup
2015, p.70).
“Então, quando a gente muda essa perspectiva em relação ao ambiente e tudo mais, a gente tem outras sensações no corpo, outras sensações internas, e até externas também. Tudo parece maior quando estamos vendados, quando
a gente não está enxergando. Tudo parece ter uma amplitude muito maior, o chão, a distância de uma parede para outra (isso no caso dos exercícios na sala), a conexão com as outras pessoas.” (Relato da atriz e preparadora vocal
Daliana Cavalcanti) Como Daliana aponta, o espaço passa agora ter uma nova configuração, ele
não é mais delineado pelo o que se vê com os olhos, mas pela percepção corporal,
pelo estado relacional que a multissensorialidade vai exercer esse papel de bússola,
de referencial para localização. É como se os atores, no ato de transver,
redimensionassem o espaço onde estão localizados. Ele não é mais as paredes que
se vislumbram ou os limites arquitetônicos daquele lugar, mas é composto por aquilo
com que os atores encontram e com o que se relacionam e percebem. Passam a
constituir esse espaço pela sensação térmica, se é frio ou faz calor, se venta, pelas
sonoridades do lugar, se há barulho de carros, ou se os ruídos do ar condicionado são
mais altos ou se estão distantes. O espaço não é mais aquele que se contempla, e
sim, aquilo com que se relaciona, o que se percebe e permite uma nova construção
desse espaço, como se um quadro fosse desenhado a partir dos sentidos.
Para além disto, os atores passam por reversão da atenção, que promove a
mudança na qualidade da atenção, que passa de uma atitude de busca para uma
atitude de abertura ao encontro e que se caracteriza pelo gesto de deixar vir (Kastrup,
2015, p.71). Essa reversão impulsiona a abertura ao encontro, movimento onde o
sujeito não se encontra a procura de informações, mas aberto ao que lhe chega. Isso
ocorre em função da qualidade da atenção ser alterada de uma atenção centrada na
assimilação de fatores externos e informações no mundo e que visa responder
adequadamente a problemas pré-determinados (Kastrup, 2011), para atenção a si,
voltando a percepção a partir da auto-observação e da investigação da experiência
retornando para si.
A reversão da atenção não é algo que ocorre somente com restrição do sentido
da visão, mas há uma facilidade para que isso ocorra na experiência não visual.
A perda da visão pode ativar processos de transformação do funcionamento
atencional e de intensificação de movimentos de conversão. No entanto, vale
54
observar que a mudança da qualidade da atenção não é exclusiva de cegos,
podendo ocorrer com qualquer pessoa (KASTRUP, 2015, p.72).
A abertura ao encontro que a atenção a si promove, é comum em diversas
práticas, dentre as quais se encontram a meditação, as práticas artísticas e a
percepção estética (Depraz, Varela e Vermersch apud Kastrup, 2015, p.71). Durante
o ato de transver, o encontro é que vai promover o entendimento do espaço a partir
de si, através das percepções que lhe chegam. O estado de atenção a si que altera
a compreensão que os atores possuem do lugar que estão durante o ato de transver
e permite a criação de outro espaço que só existe neste momento, um espaço
heterotópico (Foucault 2013).
Compreendendo o conceito de heterotopia a partir das discussões do
filósofo Michel Foucault (2009 e 2013) como a possibilidade da criação de um não
lugar, um lugar utópico, contraespaço, da fantasia, do desejo, da criação, que se
instaura temporariamente em lugares físicos reais.
As crianças conhecem perfeitamente esses contraespaços, essas utopias localizadas. É o fundo do jardim, com certeza, é com certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda de índios erguida no meio do celeiro, ou é então – na
quinta-feira à tarde – a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta,
pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis; é, enfim, o prazer, pois no retorno dos pais, se será punido (FOUCAULT, 2013, p.20).
Aos contraespaços Foucault nomeia como heterotopia, espaços
absolutamente outros (2013, p.21), e que surgem das necessidades humanas,
principalmente da crise, não existindo, para ele, sociedade sem heterotopias. O que
não é de competência somente da criança (a criação), mas os adultos a instaura
constantemente como, por exemplo, a feira livre, que ocorre na rua
(espaço real), mas se instaura somente no momento de sua realização. Após o
encerramento da feira, esta some, e a rua volta a ser novamente o espaço de trânsito,
do dia-a-dia. Não mais a feira.
A heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar real vários espaços,
vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis. É assim que o
teatro fez alternar o retângulo da cena uma série de lugares que são estranhos
uns aos outros: é assim que o cinema é uma sala retangular muito curiosa.
fundo da qual sobre uma tela em duas dimensões. vê-se projetar um espaço
55
em três dimensões: mas talvez o exemplo mais antigo dessas heterotopias ,
na forma de posicionamentos contraditórios, o exemplo mais antigo, talvez,
seja o jardim (FOUCAULT, 2009, p.418).
A mudança da percepção do espaço da sala de ensaio, durante o ato de
transver, devido à reversão da atenção, faz com que outro espaço seja constituído
através do não visual e das percepções sensoriais dos atores, que justapõem sobre
os limites físicos da sala. E ao final da preparação corporal, quando as vendas são
retiradas, a heterotopia se desfaz por só habitar durante o trabalho com o elenco.
As heterotopias estão ligadas, mais frequentemente, a recortes do tempo, ou
seja, elas dão para o que se poderia chamar, por pura simetria, de
heterocronias; a heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os
homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo
tradicional; vê-se por aí que o cemitério é um lugar altamente heterotópico, já
que o cemitério começa com essa estranha heterotopia que é, para o
indivíduo, a perda da vida, e essa quaseeternidade em que ele não cessa de
se dissolver e de se apagar (FOUCAULT, 2009, p.419).
O espaço heterotópico do ato de transver só existe enquanto ele ocorre e cria
um tempo próprio: o das percepções de cada ator. Por mais que essa hetorotopia se
manifeste no espaço físico de uma sala de ensaio, ela possui um código claro de
acesso, pois as heterotopias supõem sempre um sistema de abertura e fechamento
que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis (FOUCAULT, 2009, p.420) e
que, neste caso, é o campo da multissensorialidade através do não visual, usando a
venda para inibir o sentido da visão.
A partir deste espaço heterotopico é que o projeto de extensão O que os olhos
não veem consegue refletir sobre a sociedade visocêntrica e ter arcabolso para
fundamentar as criações cênicas com enfoque na apreciação multissensorial, que
constitui a poética do grupo, tal como Foucault aponta as heterotopias como
possibilidade de reflexão e denuncia a realidade ilusória de espaços reais.
“último traço das heterotopias é que elas têm, em relação ao espaço restante,
uma função. Esta se desenvolve entre dois pólos extremos. Ou elas têm o
papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda
qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida
humana é compartimentalizada. Talvez este seja o papel que
desempenharam durante muito tempo esses famosos bordéis dos quais agora
estamos privados. Ou, pelo contrário, criando um outro espaço, um outro
espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bemarrumado quanto o nosso é
desorganizado, maldisposto e confuso. Isso seria a heterotopia não de ilusão,
56
mas de compensação, e me pergunto se não foi um pouquinho dessa maneira
que funcionaram certas colónias (FOUCAULT, 2009, p.420 e 421).
2.2.2 Transvendo o corpo
Ainda relacionando as questões da mudança de atenção dos atores durante
o ato de transver com as percepções deste estado, quero abordar a mudança da
compreensão do próprio corpo a partir de apontamentos do elenco sobre o equilíbrio
durante os exercícios na preparação corporal.
Sabendo que durante as práticas corporais, proponho que o elenco, ao longo
de um exercício, caminhe tentando perceber qual o eixo de equilíbrio do corpo, depois
que provoque momentos de desequilíbrio e volte a estabelecer outro ponto de
equilíbrio, podemos notar nas falas dos atores que estes voltam a atenção a si,
rompendo com referencial visual que possuem de si mesmos.
“A questão do equilíbrio, eu me senti mais tranquilo. Uma diferença muito
grande você estar procurando um foco, quando o foco, ele vem de dentro para
fora. E você tem uma concentração, ativa a memória e tudo muda, ele vem
assim de dentro para fora. Uma mudança que ficou muito interessante, eu
percebi isso.” (Relato do ator Thalles Lopes)
A modificação do padrão de orientação, que antes era externo e visual,
conforme aponta o ator Thalles Lopes, agora passa a ser interno e de encontro com
as nuances do próprio corpo, o que provoca um estado de concentração voltado a si
como referencial e que tal mudança é que permite que se desloque e que vivencie os
exercícios. As práticas corporais, durante o ato de transver, são pontos de acesso
para os atores voltarem a atenção a si e às novas percepções do corpo, tal como a
atriz Débora Tenório afirma sobre a experiência de conseguir mapear o impulso do
tremor da perna durante o exercício e o deslocamento do peso do próprio corpo para
se deslocar no espaço, oscilando entre um eixo de equilíbrio a outro.
“Eu acho que consegui ter atenção mais com o meu corpo, principalmente na
hora de andar e trabalhar com o equilíbrio e o desequilíbrio. A minha perna
hoje está doendo um pouco por causa dos exercícios das aulas da graduação.
Aí eu a senti tremer, sabe? Era mais perceptível realmente a troca de peso
que eu fazia para ter equilíbrio. Dava para perceber a origem do tremor na
perna, de onde partia.” (Relato da atriz Débora Tenório)
57
Porém, logo no início do ato de transver o referencial visual ainda era muito
forte e retirar o sentido da visão promovia o desequilíbrio involuntário, que afetava o
deslocamento dos atores. Daliana fala da dificuldade de se equilibrar no começo das
práticas corporais, mas a partir do momento que passam por aquilo que Kastrup
(2015) chama de “tempo de espera onde se enfrenta o vazio durante o processo de
reversão da atenção”, os atores voltam para si e a compreensão que possuem sobre
seus corpos muda.
“É muito interessante observar as pessoas quando fazem as oficinas do
projeto, o quanto elas têm dificuldade de desconectar da visão. Claro, eu sei
que quando a gente começou a fazer os exercícios tinha também muita
dificuldade. E em alguns momentos nem lembrava o que era direita ou
esquerda. Perdi noção de equilíbrio, e perdi fácil.” (Relato da atriz e
preparadora vocal Daliana Cavalcanti)”
“Que desafiou muito dos nossos sentidos, dos nossos gestos, da nossa
percepção. Quando a gente estava vendado, tínhamos que fazer exercícios
simples… de virar a cabeça, ou de segurar uma perna. Nossa, é interessante
observar que a consciência corporal muda demais, porque quando a gente
enxerga a consciência em relação ao ambiente, aos outros depende do que
se vê, mas quando usamos as vendas, a nossa consciência é partir de nós
mesmos. Isso é uma mudança brusca! Imensa! E é uma preparação muito
interessante nesse sentido da gente mudar essa perspectiva.” (Relato da atriz
e preparadora vocal Daliana Cavalcanti)”
A capacidade de percepção do corpo a partir da atenção a si permite com que
os atores consigam ter controle e consciência do percurso dos movimentos que
realizam para se deslocar, ativados pela multissensorialidade.
“Nas práticas do Olhos, eu descobri um outro ponto de controle desse
movimento que emana dos olhos fechados, isso justamente pelas outras
percepções que acabaram me trazendo. Tem a ver com a questão da
espacialidade, pela falta do equilíbrio e da percepção do espaço. Isso desperta
um outro tipo de sensorialidade. Isso permite você se deslocar pelo espaço
mesmo e projete movimentos.” (Relato do ator e diretor Ivan de Melo)
Além disto, os atores passam a descobrir potenciais de criação e de projeção
de seus corpos, dando a estes, através das movimentações criadas nos exercícios,
um caráter fantástico, como a atriz Elisiane Gomes relata.
58
“No ponto do desequilíbrio eu estava bem desconectada. Bem no início, eu
estava andando. Eu sabia o ponto de equilíbrio, sabia o percurso da
transferência de peso de uma perna para outra, o impacto no chão, eu tentei
firmar bem os meus pés no chão para poder sentir o chão. Como a imagem
de barbárvore, os homens árvores do senhor dos anéis. Me percebia bem
grandona andando com os pés ligados ao chão. Essa imagem é muito
recorrente nos trabalhos usando a venda.” (Relato da atriz Elisiane Gomes)
(Criação e investigação corporal da atriz Elisiane Gomes. Arquivo do grupo O que os olhos não veem)
59
(Criação e investigação corporal da atriz Elisiane Gomes. Arquivo do grupo O que os olhos não veem)
Apesar da atenção voltar para si, a ruptura com o referencial visual durante o
ato de transver rompe também com a forma do corpo, abrindo caminho para a
possibilidade de delinear outros limites para os corpos, momentos percebidos
enormes e com o alcance sem limites de seus gestos.
“É por causa do rompimento com a forma é que esse corpo se torna sem
órgãos. A gente consegue mesmo retomar a originalidade desses movimentos
ao ponto que esses corpos se tornam um só, como o da Flor e da Lila. É como
um corpo sem forma. Quando a gente retira a visão retira a forma, e o corpo é
todo utopia.” (Relato do ator e direto Ivan de Melo)
Sem o referencial visual, não há um limite fechado. Os atores se abrem ao
estado relacional e recriam a forma de seus corpos a partir de como se percebem.
Esse percurso cria um corpo cuja forma só existe na heterotopia do ato de transver e
que devido ao ser caráter fantástico, como no relato de Elisiane, e utópico, como
aponta Ivan de Melo, posso aproximar do que Michel Foucault chama de corpo
utópico.
60
A utopia corporal para Foucault (2013) é criada para apagar a ideia do corpo
quanto prisão, pois a utopia é um lugar fora de todos os lugares. Assim, como o ato
de transver se constitui como uma heterotopia e, portanto, é um não lugar, dá margem
para a criação de utopias. O que foi mencionado no relato de Ivan, acima, que ao
“retirar a visão, retira a forma e o corpo é todo utopia”, pois sem a forma se dissolve
os limites, portanto o caráter de prisão do corpo.
A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu teria um
corpo sem corpo, um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso,
veloz, colossal na sua potência, infinito na sua duração, solto, invisível,
protegido, sempre transfigurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais
inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um
corpo incorporal (FOUCAULT, 2013, p.8)
O filósofo aponta subterfúgios para apagar os corpos e criar as utopias
corporais, tais como as máscaras que modificam a forma do rosto e pensando
cenicamente, dão suporte para criação de outro corpo, as múmias, que eram uma
forma de burlar a mortandade e fazendo o ser eterno. O campo não visual fornece
meios para que a forma se apague e que utopias nasçam a partir disto.
“Tudo me lembrou algo que eu vi no documentário da Marina Abramovic .
Falando que o ser humano consegue ultrapassar a terceira dimensão. E que
a quarta dimensão é a mental, e a quinta dimensão que é justamente que o
corpo não possui forma. Quando eu estava vendado, eu senti basicamente
isso. Que eu não tinha uma forma exata do meu corpo, entendeu? Por isso
que eu conseguia até quando esbarrava ou batia em uma pessoa, ela ia
embora de forma suave, não era algo violento. Ou como quando anda no meio
da rua e leva uma trombada, não tinha nada a ver com isso. Quando venda
quebra a percepção, quebra ego, quebra tudo, entendeu? É tanto que no início
você fica meio assim, mas depois você se acha em todo mundo.” (Relato do
ator Geraldo Rodrigues)
A sensação que o ator Geraldo Rodrigues relata de que seu corpo não possui
forma definida, é semelhante ao que Foucault (2013, p.9) diz ao refletir sobre os
subterfúgios que fomentam a criação das utopias, afirmando “eis então que em virtude
de todas essas utopias meu corpo desapareceu”. A utopia corporal dissolve a ideia
que existe da constituição do que era o corpo. Ele desparece e reconstrói outros com outras formas.
No entanto, assim como o corpo utópico nasce, esse também pode morrer com a quebra da utopia corporal, que ocorre diante daquilo que instaura ou relembra
novamente a existência de sua forma real.
61
A palavra grega para dizer corpo só aparece em Homero para designar
cadáver. É o cadáver, portanto, o cadáver e o espelho que nos ensinam
(enfim, que ensinaram aos gregos e agora ensinam às crianças) que temos
um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno,
que no contorno há uma espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa
um lugar. Espelho e cadáver é que asseguram um espaço para a experiência
profundamente e originariamente utópica do corpo; espelho e cadáver é que
silenciam e serenizam, encerrando em uma clausura - que, para nós, hoje, é
selada esta grande cólera utópica que corrói e volatiliza nosso corpo a todo
instante. Graças a eles, graças ao espelho e ao cadáver, é que nosso corpo
não é pura e simples utopia (FOUCAULT, 2013, p.15).
Durante o ato de transver há a possibilidade de dissolver a utopia corporal, o
que ocorre quando há limitação do corpo, retornando à procura de informações que
dialoguem com sua forma real. No momento em que isso ocorre, a atenção deixa de
ter a qualidade de atenção de si, pois os sujeitos não se relacionam mais com aquilo
que lhe chega. Ivan comenta como isso ocorreu quando deixou de observar a si pela
ruptura provocada por outro ator que encontrou durante o exercício, mas que não
conseguiu criar com ele. A utopia corporal foi quebrada.
“Encontrei com uma pessoa no caminho que ela quase que puxava meu pulso
com o movimento dela. Eu não entendia o que ela estava querendo fazer. A
minha utopia morreu naquele momento nos braços daquela pessoa. Eu tive
que parar e sentir aquilo. Eu não encontrei onde eu pudesse levar a pessoa
para perto de mim.” (Relato do ator e diretor Ivan de Melo)
Dentro da perspectiva da instauração de utopias corporais, imersas no ato de
transver, onde o corpo assume uma forma com caraterísticas fantásticas por
dissolverem os padrões da concepção da forma real de seus corpos, os atores, nesse
processo, conseguem se aproximar da ideia do corpo dilatado (BARBA, 1994, p.126),
onde a dilatação não pertence ao físico. O pensamento deve atravessar a matéria
tangivelmente, não apenas manifestar-se no corpo em ação, mas atravessar o óbvio,
a inércia, o que surge automaticamente na nossa frente quando imaginamos,
refletimos, agimos. Pois na preparação corporal, por meio da atenção a si, reflete-se
e age dando margem para a utopia corporal, como relata a atriz Maria Flor, “a
dilatação do corpo no espaço, permitindo abrir poros e janelas de onde jamais
imaginaríamos enxergar”.
62
Ainda em diálogo com Flor, ela diz: “Acredito nesse campo de investigação
pelos sentidos, que nos permite aguçar e sentir enxergar e inclusive criar a partir de
coisas que são óbvias ao nosso cotidiano”. Afirmo que o ato de transver se configura
como espaço de criação e rupturas através do gatilho inicial, a restrição do sentindo
da visão, que dá margem para a atuação da abordagem multissensorial, permitindo
a reversão da atenção para si, arcabolso para conhecimento do corpo, promovendo
a ruptura com o padrão corporal e instaurando o corpo utópico, ou seja, um corpo
cênico.
63
CAPÍTULO 3: Eu sou você, eu vejo você
“Mergulhei no mar azul No vento avoei
Eu quis ser o sol Para entrar pela janela dos olhos de quem não vê
Eu sou você
Eu vejo você”
(Adaptação da letra da música “Eu sou você” de Alceu Valença feita pelos atores do Grupo O
que os olhos não veem)
Ao me questionar sobre a importância da vivência no ato de transver com os
atores do projeto de extensão O que os olhos não veem, obtenho como resposta inicial
a proximidade com a estética multissensorial, adotada pelo grupo, para concepção
cênica de seus trabalhos, cujo ponto em comum é a experiência não visual.
Desde o início do projeto de extensão tínhamos clareza que iríamos explorar e
construir espetáculos onde as cenas não contariam com o sentido da visão para sua
apreciação. E para isso se fazia necessário explorar a percepção do elenco enquanto
passavam pela restrição do sentido da visão momentaneamente, tal como os
espectadores iriam vivenciar durante o decorrer das apresentações dos extratos
cênicos e do espetáculo.
Como o ator e atual diretor do grupo, Ivan de Melo comenta, em seu relato
sobre essa relação de proximidade entre o ato de transver e a estética de trabalho
adotada, a experiência de passar por práticas sem o recurso da visão por parte dos
atores se configura como um momento de aprendizagem e compreensão daquilo que
o projeto está se propondo a levar ao público.
“Eu acho que é muito necessário... Essencial, na verdade, que nós passemos por esse processo, porque a todo momento, a gente está treinando, nos
formando quanto ao público o que desejamos alcançar. A gente não faz simplesmente, também assiste durante os nossos ensaios, tem essa troca. Ao mesmo tempo a gente não projeta as sensações, não somos óbvios, a
gente sai da obviedade, justamente. A gente experimenta isso nos laboratórios. É necessário que haja esse deslocamento do ator na experiência de viver o mesmo estado do público. É uma formação do ator e
espectador não vidente. Então, por mais que a gente não assista o nosso espetáculo, na hora em a gente apresenta, a gente tem ali uma afinidade e após o espetáculo, quando escutamos o que público fala, a gente se sente
muito próximo do que eles estão falando. A gente já está ali. Não somos alheios àquilo. É um campo infinito. Não estamos trabalhando com adaptação para necessidades físicas de atores e quase tocamos a sinestesia.” (Relato
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do ator e diretor Ivan de Melo)
Essa formação que Ivan fala, “nos formando quanto ao público que desejamos
alcançar”, é devido a necessidade de testar como seria passar pela experiência não
visual tal como os espectadores, já que não havia ninguém para ensinar ou dizer como
devíamos fazer, ou como seria.
Experimentar as vendas tal como os espectadores farão nos espetáculos
permite aos participantes do projeto de extensão O que os Olhos não veem apropriar-
se da estética cênica que propõem enquanto grupo. Promover esse espaço de auto
formação é de extrema importância.
Esse espaço de formação se instaurou a partir do ato de transver e se estendeu
aos laboratórios de criação de cenas. Isso nos permitiu compreender que os corpos
percebem o mundo de outra com outra qualidade de atenção, a partir do deslocamento
dos atores durante o ato de transver para viver uma experiência no mesmo estado
que o público, promovendo uma relação de alteridade que se estabelece por parte do
elenco para com os espectadores durante o espetáculo.
3.1 Se colocando no lugar do outro
Compreendendo, inicialmente, alteridade a partir do significado do dicionário
Houaiss de língua portuguesa (2009), que diz se tratar da “natureza ou condição do
que é outro, do que é distinto”, pode-se considerar que a transposição dos atores para
o mesmo estado de não vidência dos espectadores, durante a apreciação cênica,
permite que o grupo acesse o lugar alheio, que não lhe pertence, mas sim ao público.
No momento do espetáculo, os atores não assistem a cena e se encontram fazendo
uso do sentido da visão, posição contrária da plateia.
Para o grupo, a concepção estética de seus espetáculos se configura através
da construção de cenas não visuais que exploram a multissensorialidade, que para
sua apreciação se faz necessário uso de vendas por parte do público, o que dar
margem para uma possível relação de alteridade, devido a apropriação do elenco da
condição do que é outro, no caso dos espectadores, durante sua preparação corporal
e que se manifesta nas apresentações cênicas, devido a percepção dos atores desse
65
lugar comum e que foi vivenciado por eles em outra instância.
Há um lugar comum entre plateia e atores na experiência não visual, onde o
espectador vive, em cada cena, o processo de deslocamento da atenção, ao deixar o
sentido da visão e passar a focar nos demais sentidos, tal como o decorrer do ato de
transver. Os atores sabem disso por causa da vivência na preparação corporal e por
causa dessa relação, conseguem conduzir e dialogar com a plateia no decorrer do
espetáculo.
Eu acho que é como um laboratório de onde a gente leva para cena o que construiu e divide com as pessoas. E por viver experiências como o público vai vivenciar no espetáculo, nós sabemos o que vamos passar para eles e
como é vivenciar isso. (Relato da atriz Débora Tenório)
A palavras da atriz me levam a refletir sobre o ato de transver como
possibilidade de preparação dos atores para a realidade estética das cenas. Refiro-
me a algo que está para além da preparação corporal propriamente dita e que cria
pontes entre o elenco e a plateia. É durante a experiência com a restrição da visão
por meio das vendas que o entendimento sobre a estética de criação do grupo chega
para os novos integrantes. Sendo este, o primeiro contato inclusive, dos novos atores
que entram no projeto de extensão com a perspectiva não visual e multissensorial.
Somos um projeto de extensão de uma universidade federal, onde a
rotatividade de participantes é uma realidade constante. Portanto, integrar quem
chega ao projeto é fundamental, principalmente se essas novas pessoas em pouco
tempo vão desempenhar a função de participes da cena, assim o ato de transver
permite a compreensão da escolha estética de trabalho do grupo.
A atriz do grupo O que os olhos não veem, Daliana Cavalcanti, fala do ato de
transver como “uma preparação em relação a essa coisa da gente se colocar mais no
lugar da plateia. Se colocar mais no lugar da pessoa cega”. Assim ela descreve a
relação de alteridade dos atores para com a plateia, “se colocar no lugar do outro”. E
apontando uma aproximação para com a pessoa cega por parte do elenco, já que as
investigações do campo não visual dentro do projeto passaram a se aproximar do
universo da cegueira e através da não vidência, mas de forma ciente, e mesmo com
a restrição da visão, jamais conseguiríamos saber na totalidade o que vivencia uma
66
pessoa cega, pois podemos retirar as vendas ao final das práticas e voltamos a
enxergar.
A partir das falas de Daliana e Débora posso afirmar que o ato de transver é o
ponto inicial da relação de alteridade que os atores passam, e que ocorre em duas
esferas que se entrelaçam, e só se finaliza após o contato com o expectador. Sendo
a primeira com a estética não visual e multissensorial que se aproxima do universo da
cegueira e a segunda, diretamente com os espectadores, no decorrer do espetáculo.
Porém, ambas as relações ocorrem em virtude da investigação da ausência da visão.
De acordo com estudos de Francisco Ortega sobre o posicionamento de
Foucault acerca alteridade, pode se compreender que essa se configura como “um
movimento que possibilita o encontro do outro e que tem como alvo o retorno
(transformado) para si” (ORTEGA apud MENDONÇA, 2012, p.57). Portanto, a
transposição de sua natureza “dita normal” dos atores para uma condição do não
visual, durante o ato de transver, promove o encontro de uma realidade com outra,
que afeta a percepção dos mesmos através da atenção a si e da mudança da
qualidade da atenção. Ao finalizarem essa prática, o retorno para si é impregnado pela
experiência de modo que cada ator não é mais o mesmo.
Esse movimento de retorno a si faz parte do pensamento do filósofo francês
sobre as reflexões entorno da moral grega-romano durante o período da antiguidade,
e a parti disto aborda temas como a formação da identidade do sujeito, o prazer e o
cuidado de si. Tais estudos se encontram presente nas obras da História da
sexualidade e da Hermenêutica do sujeito, que estão diretamente ligadas a reflexão
sobre o posicionamento ético grego, integrando também o entendimento que se há o
cuidado de si.
Foucault parte do significado do termo grego do período socrático-platônico,
epiméleia heautoû, traduzido como cuidar de si mesmo, e que possui como princípio
geral da conversão a si, onde o cuidado é uma ação filosófica, uma prática com
aplicação concreta ao retorno a si. “é preciso que te ocupes contigo mesmo, que não
te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidado contigo mesmo” (FOUCAULT apud
Bolsoni, 2012, p.2).
O cuidado de si diverge de narcisismo ou de egoísmo, segundo a entrevista da
Drª Margareth Rago ao programa Café Filosófico da TV Cultura exibido em 12/08/2018
e que trata da temática “Foucault: a filosofia como modo de vida”, a ideia de renúncia
67
é um pensamento da tradição cristã pautado na sujeição, e o pensamento foucaultiano
vem da tradição grega antiga pauta na subjetivação, do cidadão como individuo livre,
temperante e ético. Onde, a temperança corresponde a apatheia, o domínio das
paixões. Rago também coloca o cuidado de si como uma mudança na atenção, que
faz com que o individuo se volte para si e perceba o mundo a partir de si.
O cuidar de si é uma busca, e dentro da conduta grega compõe um estado,
uma arte de si, a cultura de si (Rago, 2018). O cuidado de si precisa do encontro com
o outro, pois segundo Foucault (2010, p.43) “Viu-se que essa arte de si necessita de
uma relação com o outro. Em outras palavras: não se pode cuidar de si mesmo, se
preocupar consigo mesmo sem ter relação com outro.”. A relação com o outro é
fundamental para o cuidado de si, já que o encontro com o outro permiti a reflexão
sobre si dando a mudança e a transformação através da alteridade (Ortega 2012).
A primeira esfera da relação de alteridade, a partir do ato de transver, ocorre
no encontro com a condição aproximada da pessoa cega devido à ausência do sentido
da visão. Isso ocorre quando ao construir metodologicamente a preparação corporal
do grupo, decidimos, enquanto coletivo e eu, como preparadora corporal, a nos
voltarmos para o não visual, adotando o uso de vendas para inibir o sentido da visão
durante os encontros. Apesar de um dos atores ter baixa visão, o elenco é composto,
em sua maioria, por pessoas videntes e, portanto, lidar com o não visual se configura
como campo de pesquisa e, para além disto, é a vivência do que é distinto à realidade
dos atores, em seu cotidiano, que se materializa como campo de investigação no que
diz respeito à cegueira.
Nessa instância, o encontro com o outro, tal qual se refere Foucault em O
governo de si e do outro (2010), se dá pela ausência do sentido da visão, o que permite
transpor os atores para uma realidade outra, na qual a ação de ver acontece de corpo
inteiro através da multissensorialidade e da qualidade da atenção a si.
É nesta esfera que se promove a entrada pela “janela dos olhos de quem não
vê”, como diz a letra da música de Alceu Valença, cantada no aquecimento vocal
durante o ato de transver, para transpor para a realidade do outro, que é alheia aos
atores, mas que permitiu a ampliação do conceito de ver e observar o ser humano
como um ser multissensorial e que permite a compreensão da escolha estética do
trabalho desenvolvido pelo projeto de extensão por parte seus componentes, sendo
68
assim, um lugar de investigação do fazer teatral, da preparação corporal de atores, da
apreciação da cena e das estratégias de ensino de teatro a partir do não visual.
3.2 A totalidade do ser sensível
A busca pelo ser sensível é algo já relatado anteriormente no capítulo um.
Entendendo que este se aproxima do estado de consciência corporal dos atores
através da preparação corporal dos atores com o ato de transver é o que permite uma
aproximação daquilo que Peter Brook compreende como ser sensível, do seguinte
modo:
De fato, é muito fácil ser sensível na fala, no rosto ou nos dedos, mas o que a natureza não nos deu, e precisa ser desenvolvido através de exercício, é a mesma sensibilidade no resto do corpo: nas costas, nas pernas, no traseiro.
"Ser sensível", para um ator, significa estar permanentemente em contato com a totalidade de seu corpo. Quando iniciar um movimento, ele deve saber
exatamente a posição de cada membro (BROOK, 2000, p.8).
Esse ser sensível segundo Brook se desenvolve através de exercícios e
práticas, que promove uma conexão com o corpo em sua totalidade e de forma
consciente. O que presenciamos no decorrer do ato de transver tal como foi abordado
nos eixos temáticos I e II no capítulo anterior. Esta sensibilidade que se faz necessária
desenvolver nos atores precisa abranger uma tríplice relação: consigo próprio, com o
outro e com a plateia (Brook 2000). A experiencia não visual do ato de transver
promove por meio da reversão da atenção e da mudança da qualidade da atenção a
relação dos atores consigo e com o outro com quem vivencia a preparação corporal.
Para que esse ser sensível seja completo no ator é preciso que desenvolva o
“contato com a totalidade de seu corpo” (Brook, 2000, p.8), que este esteja conectado,
é preciso está voltado para si. Conseguimos observar durante o ato de transver que
quando ocorre a mudança na qualidade da atenção, essa volta-se para si e a
percepção dos atores muda, saindo da busca de informações e percebendo aquilo
que lhe passa, de forma que estes passem a se relacionar consigo, com os outros e
com o espaço a partir de si. Há uma clareza da trajetória corporal para executar
qualquer movimentação, semelhante o relato sobre a postura do ator Yoshi Oida, “em
69
qualquer movimento que execute, Oida sabe exatamente onde estão situados os pés,
as mãos, os olhos, o ângulo da cabeça... Não faz nada por acaso” (Brook, 2000, p.9).
A sensibilidade do ator também deve se dirigir aos colegas que estão em cena,
o que permitirá que este não haja de forma mecânica como aponta Brook, “o ator
mecânico fará sempre a mesma coisa, e portanto, a relação que estabelece com os
colegas em cena não pode ser sutil nem sensível. Quando parece olhar para os outros
atores ou escutá-los, está apenas fingindo.” (2000, p.10 e 11). Tal como exemplifiquei
com o relato da atriz Maria Flor no capítulo dois, uma conexão verdadeira que se
constrói no ato de transver através do estado relacional que os atores estão imersos.
Para Peter Brook o ser sensível abrange também os espectadores, “O teatro
talvez seja uma das artes mais difíceis porque requer três conexões que devem
coexistir em perfeita harmonia: os vínculos do ator com sua vida interior, com seus
colegas e com o público” (2000, p.13). Este vinculo com a plateia no ato de transver
se manifesta através do lugar comum entre os atores e o público, a não vidência, dá
margem para que se desenvolva uma relação de alteridade.
Na segunda esfera em que ocorre a relação de alteridade como fruto do ato de
transver os atores se encontram com o estado de não vidência vivenciado pelo
público, se projetam nas pessoas que assistem ao espetáculo por compartilharem da
experiência da ausência do sentido da visão. Isso permite que o elenco se encontre
conectado a tríplice relação com o todo, e instaure o ser sensível tal qual apontado
por Peter Brook.
Como se não bastassem os dois desafios dificílimos que mencionei, devemos agora examinar o terceiro requisito. Os dois atores que estão em cena devem ser simultaneamente personagens e contadores de histórias. Contadores
múltiplos, de várias cabeças, pois ao mesmo tempo que interpretam uma relação íntima entre si, estão falando diretamente aos espectadores. Lear e Cordélia não apenas contracenam do modo mais autêntico possível como rei
e filha, mas também, como bons atores, devem sentir que estão envolvendo o
público (BROOK, 2000, p.14).
Essa experiência de lidar com a anulação da visão a cada encontro da
preparação corporal, ainda que momentaneamente, fez com que nós, do elenco,
criássemos uma postura de cúmplices da vivência que aguarda cada espectador, ao
se propor a apreciar o trabalho cênico do projeto de extensão. Esse sentimento de
70
cumplicidade é partilhado pela atriz Maria Flor ao relatar como se sente em relação à
vivência do ato de transver e contato com o público nas apresentações.
Como eu vivi essa experiência, eu sei o que é vivenciar ela e por isso, posso transmitir ao público e há uma cumplicidade nisso. É o meu corpo-voz que está ali, não é apenas uma experiência de uma tarde. É um compartilhamento
e uma vez atravessado a experiência, fica e vira memória; está em você. (Relato da atriz Maria Flor)
Esse local da alteridade se instaura a partir da experiência durante o ato de
transver e se estende até a apresentação do espetáculo, o que segundo o relato da
atriz acima, ocorre por meio do que os atores vivenciam na preparação. Assim os
atores se tornam sensíveis a cada espectador ao ponto de se reconhecerem como
cúmplices da experiência não visual compartilhada no decorrer do espetáculo.
Nessa perspectiva, considero o termo experiência citado ao longo dessa escrita
como aquilo que nos acontece, uma situação/momento vivido, ou as relações que
estabelecemos com o que está a nossa volta, seguindo o pensamento do estudioso e
professor Jorge Larrosa:
Porque se a experiência é o que nos acontece, o que é a vida senão o passar do que nos acontece e nossas torpes, inúteis e sempre provisórias tentativas de elaborar seu sentido, ou sua falta de sentido? A vida, como a experiência,
é relação: com o mundo, com a linguagem, com o pensamento, com os outros, com nós mesmos, com o que se diz e o que se pensa, com o que dizemos e o que pensamos, com o que somos e o que fazemos, com o que
já estamos deixando de ser. (LARROSA, 2014, p.74)
A relação que os atores fazem entre a experiencia não visual na sala de ensaio
e as reações dos espectadores durante as apresentações promove um estado de
empatia para com público. É como se cada ator, ao se deparar com as pessoas que
assistem o espetáculo lembrasse do que vivenciou na experiência da preparação
corporal, quando o elenco era impedido da visão. Sobre esse aspecto a atriz Daliana
Cavalcanti comenta:
É muito interessante também observar que mesmo que nós, os atores,
estejamos vendo durante todo o espetáculo e o público não, a gente já esteve no lugar delas. A gente tem essa relação de empatia com o espectador. A gente já esteve neste lugar, e sabe como é. Sabe também como é complicado
para quem faz as oficinas. Que a pessoa perde o equilíbrio, perde o referencial visual necessário para muita coisa. É interessante a gente ter passado por essa experiência antes de fazer o texto, o espetáculo. (Relato
da atriz e preparadora vocal Daliana Cavalcanti)
71
(Espectadores durante apresentação do espetáculo O que os olhos não veem o coração sente no, na
sala C do Deart UFRN, 2016. Arquivo do grupo O que os olhos não veem)
A experiência não visual dos atores atravessa o tempo e o espaço da sala de
ensaio, chega a reverberar nas apresentações e fomenta outras experiências no
encontro da cena entre espectadores e atores. Aqui se fazem novamente propícias as
palavras de Larrosa (2015):
A experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que às vezes, algumas vezes, quando cai em mãos de alguém
capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto. E esse canto atravessa o tempo e o espaço. E ressoa em outras experiências e em outros tremores e em outros cantos (Larossa, 2015, p.10)”.
Saber o que constitui a experiência não visual que ocorre com os atores durante
o ato de transver, se faz necessário para compreender a criação da cena não visual e
sua apreciação por parte dos espectadores no espetáculo. Ter consciência desta
experiência é o que permite os atores mediarem, em cena, a possibilidade de cada
pessoa da plateia de constituir sua própria experiência, como o relato de Ivan de Melo
72
citado no começo do texto aponta.
A alteridade como consequência do ato de transver gera, a partir da experiência
não visual, a capacidade de transformar e formar seres mais sensíveis à realidade do
outro; não só os atores, mas os espectadores também, refletindo outras formas de
apreciação e de criação da cena teatral. Segundo Larossa (2002, p.26), a experiência,
é aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar, nos
forma e nos transforma.
O sujeito da experiência mencionado por Larossa, sujeito que passa por ela e
por ela é formado, é que está aberto à sua própria transformação e assim passa a
estabelecer uma relação de alteridade com o outro. Portanto, a experiência não visual
vivida a partir do ato de transver se constitui uma relação de alteridade entre atores e
espectadores. Essa relação transforma a maneira de ver não só um espetáculo de
teatro, mas o mundo, ao permitir o mergulho, tanto do elenco, quanto do público, no
universo da pessoa cega e da multissensorialidade, criando uma relação em que os
sujeitos dessa experiência podem se ver no outro, como na música do início desse
subtítulo: “eu sou você, eu vejo você”.
73
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Pensar é estar doente dos olhos
(Alberto Caeiro)”
Embarcar em uma viagem desconhecida foi como começou o trabalho com os
atores do projeto de extensão O que os olhos não veem, pois nunca havia participado
da construção de um espetáculo onde o público “não vê” para conseguir assistir, muito
menos havia preparado atores para “não serem vistos” em cena. Foi uma experiência
nova não só para mim, mas para todos que embarcaram nela.
Trabalhar com os olhos fechados nunca foi uma novidade no meio artístico,
diversos artistas já experimentaram e desenvolveram trabalhos restringindo o sentido
da visão, não era o ineditismo que procurava quando comecei a pensar na preparação
corporal dos atores, e sim, aproximar o elenco da estética do grupo, por isso a
investigação do não visual como forma de apreciação de um espetáculo teatral
influenciou diretamente no trabalho corporal com os atores.
Isso abriu caminhos para começar refletir sobre o treinamento de atores do
Lume, que era uma referência forte para minha formação, e assim compreender que
o que estava fazendo junto com os demais participantes do projeto não era mais um
treinamento, e sim, a preparação do elenco para criação de cenas não visuais a partir
da experiencia sem o sentido da visão.
Assim comecei a questionar como a ausência do sentido visão durante prepara
corporal reverbera nos corpos dos atores. E a partir das falas do elenco obtive como
resposta a mudança da qualidade da atenção e a atenção a si discutido por Virginia
Kastrup. Que nos participantes da prática corporal do ato de transver, a qualidade da
atenção saiu do estado de busca e voltou atenção para si, começando a observar o
que lhe passa, onde o referencial maior não é o externo, mas si mesmo e por tanto
interno.
74
Além de compreender outra forma de percepção do mundo a partir da
multissensorialidade, ampliando o conceito que de ver para uma ação de corpo inteiro.
Compreendendo a hegemonia do olhar na sociedade contemporânea, e sobre tudo
no fazer teatral, mas para além disto, entender no ato de transver uma potencialidade
ruptura com essa postura opticocentrica.
Apesar de dar início nessa pesquisa a discussão de como o ver se faz presente
nos processos teatrais, desde das práticas corporais até a sua apreciação, entendo
que não consigo abarcar a complexidade desse tema, e por tanto não aprofundo
nessas questões, sem dar soluções para além do trabalho multissensorial. Acredito
que refletir sobre isso é necessário e poderia dar margem para o desenvolvimento de
outras pesquisas, investigando as possibilidades de fazer teatro para além da visão.
O ato de transver se mostrou um caminho para conectar os atores consigo
mesmos e com os outros. Uma conexão para além do visual, que colocava os
participantes em um estado relacional com o outro. E que dava margem para criação
cênica de corpos fantásticos, instaurando com esses corpos em um espaço outro, um
espaço heterotopico, que só existe dentro do ato de transver.
Nesse espaço outro nos permitiu a dissolver as certezas de referencial corporal
visual, estabelecendo corpos utópicos que rompem com corpo cotidiano e acessa o
estado extracotidiano. Onde, os corpos não possuem limites, e se recriam na sala de
ensaio.
Foi um desafio adaptar os exercícios para trabalhar a troca energética entre os
atores, pois o recurso do sentido na visão seria retirado momentaneamente e por tanto
não iria existir a troca pelo olhar. Do mesmo modo no decorrer da pesquisa
compreender como essa relação se dava não foi fácil. Entender como essa relação
entre os participantes do ato de transver era possível, só viável devido a análise dos
áudios dos relatos dos atores.
Encontrar o processo metodológico de análise dos dados coletados foi
fundamental dentro da pesquisa, pois me garantiu durante a fase da escrita está em
dialogo constante com o elenco através dos relatos coletados.
75
Partir da ausência da visão para pensar na adaptação e criação de exercícios
com os atores levou a nos aproximarmos da ideia da cena não visual que pensamos
quanto grupo para os espectadores. Pois, ocupar o lugar da não vidência
momentaneamente durante a preparação corporal acessou nos atores seres
sensíveis e promoveu uma transformação através da relação de alteridade
estabelecida entre o elenco e os espectadores.
Uso das vendas durante as práticas corporais do ato de transver foi o elo entre
o elenco e a estética teatral do projeto de extensão, e os fez ao voltasse para si,
refletindo acerca da experiencia não visual na sala de ensaio entender os
espectadores durante as apresentações. Ter esse lugar comum entre atores e público
era muito importante para garantir ao grupo o entendimento sobre como se dar a
experiencia não visual, ao ponto que estes possam propor a criação de cenas dentro
da perspectiva multissensorial.
O ato de transver dentro dessa pesquisa me permitiu pensar com os sentidos,
com o corpo todo, a partir da experiencia na sala de ensaio e em dialogo com os
teóricos, refletindo sobre possibilidades e maneiras de desenvolver um trabalho
corporal com atores através da multissensorialidade. “A arte não tem pensa” como diz
Manoel de Barros, essa pesquisa me fez perceber a possibilidade de reinventar que
o fazer artístico tem, e por tanto, transver o fazer teatro, inclusive as práticas corporais.
76
REFERÊNCIAS
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desenho a cegos. Dissertação de mestrado, ECA, USP. São Paulo, 2003.
BARBA, Eugenio, SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: um dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Realizações Editora, 2012.
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BAVCAR, Evgne. O ponto cego da fotografia. Rio de Janeiro: Very Special Arts do Brasil, 2000.
______________.” Tenho só uma lâmpada eslovena para iluminar o mundo”.
Jornal da Universidade UFRGS. Porto Alegre, ano V, nº44, setembro de 2001.
BOAL, Augusto. 200 exercícios e jogos para o ator e o não-ator com
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Janeiro: Editora Civilização brasileira, 2000. CORBIN, A.; COURTINE, J.; VIGARELLO, G.; História do corpo vol. 3: As
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FERRACINI, Renato. A Arte de Não Interpretar Como Poesia Corpórea do Ator. Campinas, São Paulo: UMICAMP, 2003.
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 3: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005.
________________. Coleção ditos e escritos III: Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos Manuel Barros de Motta. Rio de
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________________. O corpo utópico/as heterotopias corporais. São Paulo: n-1 edições, 2013.
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77
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GROTOWSKI, Jerzy & FLASZEN L. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. Textos e Materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Fleaszen com um escrito de Eugenio Barba. São Paulo: Perspectiva: Sesc; Pontedera, IT: Fondazione
Pontedera Teatro, 2010.
HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, Editora Autores Associados, Volume 1,
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MENDONÇA, Alina Gonjito de. Cuidar de si, cuidar dos outros: A alteridade do
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PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
STANISLÁVSKI, Constantin. Manual do ator. Tradução Jefferson Luiz Camargo; Revisão da tradução João Azenha Jr. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Programa Café Filosófico da TV Cultura exibido dia 12/08/2018, Episódio Foucault: a filosofia como modo de vida. Disponível na internet no link:
https://www.youtube.com/watch?v=jw6zuBIoclI
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ANEXO I: FICHAS DE CONTEÚDOS
As fichas de conteúdos estão separadas por ator, contendo em cada ficha todas as
unidades de significados dos depoimentos daquele ator.
FICHA DE CONTEÚDO – I
NOME DA ATRIZ: MARIA FLOR
DATA DO
DEPOIMENTO
“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu entrei no curso os professores diziam para abrir o olho. E é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores
sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra
forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso. Com certeza é necessário olhar para dentro! É nesse sentido que eu estou falando. Que
mesmo de olhos fechados nessa ideia que só de olhos abertos eu vou encontrar com o olhar do outro e encontrar com o outro. Mas esse olhar pode ser tão vazio. Eu posso olhar tão superficialmente. Eu estou olhando para
você, mas não estou vendo você, não estou jogando com você. E quando nós nos conhecemos e conhecemos esses corpos dentro do espaço não
precisa do olhar. Por exemplo, Lila não precisou me “enxergar” para saber que era eu, Thalles não precisou me “enxergar” para saber que era eu. Existem outras conexões, sabe? Acaba que ficamos mais sensíveis a isso.
Esses corpos já estão trabalhando a um tempo, se tocando a um tempo. Então aguça essa sensibilidade de observação por outros meios que não
sejam a visão propriamente dita. E a visão deixa de ser uma coisa. Para mim nesse momento os olhos deixam de ser as janelas da alma, não é mais isso, é outra coisa, é algo para além disso. É aguçar os sentidos, é se permitir
sentir e estar.” (M1)
14/03/2017
“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu entrei no curso os professores diziam para abrir o
olho. E é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores
sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra
forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso.” (M2)
14/03/2017
“Como eu vivi essa experiência, eu sei o que é vivenciar ela e por isso posso
transmitir com o público, e há uma cumplicidade nisso. É o meu corpo-voz
que está ali, não é apenas uma experiência de uma tarde. É um
compartilhamento. E uma vez atravessado a experiência fica e vira memória,
está em você”. (M3)
14/03/2017
“Acredito nesse campo de investigação pelos sentidos, que nos permite
aguçar e sentir enxergar e inclusive criar a partir de coisas que são óbvias ao
nosso cotidiano”. (M4)
26/06/2017
79
“Me faz pensar sobre essa ideia criada de que o fazer teatral se dá pelo olhar....de que a troca só é estabelecida se eu encontrar o olhar do outro,
mas...que olhar é esse?” (M5)
26/06/2017
“a dilatação do corpo no espaço, permitindo abrir poros e janelas de onde jamais imaginaríamos enxergar.” (M6)
26/06/2017
“Acredito nesse espaço investigativo para o treinamento do ator”. (M7)
26/06/2017
FICHA DE CONTEÚDO – II
NOME DA ATRIZ: DALIANA MEDEIROS CAVALCANTI
DATA DO
DEPOIMENTO “Eu achei interessante porque quando a gente está com as vendas, a gente,
eu pelo menos perco toda noção do espaço, e vou me guiando porque eu sempre fico assim para não me machucar e não machucar ninguém. Eu
sempre sentia quando ia de uma parede a outra por causa disso, meus braços com o toque chegavam primeiro.” (D1)
14/03/2017
“Na dança eu senti muita fluidez e conexão com a pessoa, a diferença do
corpo da pessoa. Com uns você se conectava mais, ou com outros menos. Eu acho que teve troca energética ao ponto de um alimentar o outro pelo
próprio movimento. Inclusive eu acho que com a gente sem ter essa noção
do espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a gente sentia quando
troca o pulso e chegava outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra
textura, outra energia”, era outra coisa.” (D2)
14/03/2017
“Foi também uma preparação em relação a essa coisa da gente se colocar
mais no lugar da plateia. Se colocar mais no lugar da pessoa cega.” (D3)
26/06/2017
“Que desafiou muito dos nossos sentidos, dos nossos gestos, da nossa
percepção. Quando a gente estava vendados tínhamos que fazer exercícios
simples… de virar a cabeça, ou de segurar uma perna. Nossa, é interessante
observar que a consciência corporal muda demais, porque quando a gente
enxerga a consciência em relação ao ambiente, aos outros depende do que
se ver, mas quando usamos as vendas, a nossa consciência é partir de nós
mesmos, isso é uma mudança brusca, imensa. E é uma preparação muito
interessante nesse sentido da gente mudar essa perspectiva.” (D4)
26/06/2017
“Então, quando a gente muda essa perspectiva em relação ao ambiente e
tudo mais, a gente tem outras sensações no corpo, outras sensações internas, e até externas também. Tudo parece maior quando estamos
vendados, quando a gente não está enxergando. Tudo parece ter uma amplitude muito maior, o chão, a distância de uma parede para outra (isso
no caso dos exercícios na sala), a conexão com as outras pessoas.” (D5)
26/06/2017
80
“É muito interessante também observar que mesmo que nós, os atores,
estejamos vendo durante todo o espetáculo e o público não, a gente já esteve no lugar delas. A gente tem essa relação de empatia com o
espectador. A gente já esteve neste lugar, e sabe como é. Sabe também
como é complicado para quem faz as oficinas. Que a pessoa perde o
equilíbrio, perde o referencial visual necessário para muita coisa. É interessante a gente ter passado por essa experiência antes de fazer o texto,
o espetáculo.” (D6)
26/06/2017
“É muito interessante observar as pessoas quando fazem as oficinas do
projeto, o quanto elas têm dificuldade de desconectar da visão. Claro, eu sei que quando a gente começou a fazer os exercícios tinha também muita
dificuldade. E em alguns momentos nem lembrava o que era direita ou esquerda. Perdi noção de equilíbrio, e perdi fácil.” (D7)
26/06/2017
“É importante observar que tudo tem aspectos positivos e negativos, e
pensando que quando a gente ver enxerga cores, formas, sabe por exemplo como é um caderno, um teclado de um computador, estamos vendo aquilo,
é aquilo é pronto. É uma visão positiva e pronto. E às vezes o que a gente
ver abre um parêntese para o julgamento, a gente julga mais o que ver. E quando a gente não enxerga imaginamos na nossa mente essas formas, que
pode corresponder ao que se ver ou não. [...]acho que esse julgamento do outro diminui por não está vendo. Você, assim, tem contato mais com a
energia da pessoa do que com a forma da pessoa, e eu percebi isso,
entendi? Você se conectar mais com o que a pessoa é, do que com o que ela se parece. Tanto que não é toda vez que as pessoas que enxergam que
estão usando a venda querem tocar o seu rosto para saber como você é, não é sempre.” (D8)
26/06/2017
“Naquele exercício que você passou, onde tínhamos que encontrar a outra
pessoa e fazer uma espécie de dança partindo da conexão do pulso, depois das costas, dos ombros, era muito interessante ver com a gente sabia quem
era pela energia, pelo toque, pela corporeidade, mesmo não vendo a outra
pessoa. Então, a gente tem essa percepção de sensações, de sentidos, eu não sei, mas é como se fosse uma espécie de sexto sentido, para você se
conectar com a outra pessoa. Às vezes você se conectava, outras não. Às vezes você tinha uma conexão maior com uma pessoa do que com outra.
Muito interessante observar tudo isso.” (D9)
26/06/2017
FICHA DE CONTEÚDO – III
NOME DA ATRIZ: ELISIANA GOMES
DATA DO
DEPOIMENTO
“No ponto do desequilíbrio eu estava bem desconectada. Bem no início eu
estava andando, eu sabia o ponto de equilíbrio, sabia o percurso da
transferência de peso de uma perna para outra, o impacto no chão, eu tentei
firmar bem os meus pés no chão para poder sentir o chão. Como a imagem
de barbarvari, os homens árvores do senhor dos anéis. Me percebia bem
grandona andando com os pés ligados ao chão. Essa imagem é muito
recorrente nos trabalhos usando a venda.” (E1)
14/03/2017
81
“Flor é maravilhosa! A primeira conexão foi com ela. Eu não sei como, mas
tinha certeza que era ela. Senti o contato com o corpo dela, sabia que era
ela. Não precisei tocar o rosto dela para saber. Só no finalzinho que minha
mão bateu no cabelo dela aí eu tive certeza que era ela. Nós movimentos na
dança com ela senti o meu corpo como uma folha pairando pelo ar.” (E2)
14/03/2017
FICHA DE CONTEÚDO – IV
NOME DA ATRIZ: DÉBORA TENÓRIO
DATA DO
DEPOIMENTO
“eu acho que é como um laboratório de onde a gente leva para cena o que
construiu e divide com as pessoas. E por viver experiências como o público
vai vivenciar no espetáculo nós sabemos o que vamos passar para eles, e
como é vivenciar isso.” (DE1)
14/03/2017
“Eu acho que consegui ter atenção mais com o meu corpo, principalmente
na hora de andar e trabalhar com o equilíbrio e o desequilíbrio. A minha
perna hoje está doendo um pouco por causa dos exercícios das aulas da
graduação. Aí eu senti ela tremer, sabe? Era mais perceptível realmente a
troca de peso que eu fazia para ter equilíbrio. Dava para perceber a origem
do tremor na perna, de onde partia.” (DE2)
14/03/2017
FICHA DE CONTEÚDO – V
NOME DO ATOR: GERALDO RODRIGUES
DATA DO
DEPOIMENTO
“Tudo me lembrou algo que eu vi no documentário da Marina Abramovic .
Falando que o ser humano consegue ultrapassar a terceira dimensão. E que
a quarta dimensão é a mental, e a quinta dimensão que é justamente que o corpo não possui forma. Quando eu estava vendado, eu senti basicamente
isso. Que eu não tinha uma forma exata do meu corpo, entendeu? Por isso que eu conseguia até quando esbarrava ou batia em uma pessoa, ela ia
embora de forma suave, não era algo violento. Ou como quando anda no meio da rua e leva uma trombada, não tinha nada a ver com isso. Quando
venda quebra a percepção, quebra ego, quebra tudo, entendeu? É tanto que
no início você fica meio assim, mas depois você se acha em todo mundo.” (G1)
14/03/2017
“Eu achei bem libertador fazer. Teve um momento que eu não precisava
mais tomar cuidado com a parede. Eu só estava transitando na sala. Eu
comecei a perceber que quando estava próximo a parede por perceber que
ficava mais quente a temperatura.” (G2)
14/03/2017
82
FICHA DE CONTEÚDO – VI
NOME DO ATOR: THALLES LOPEZ
DATA DO
DEPOIMENTO
“A questão do equilíbrio, eu me senti mais tranquilo. Uma diferença muito grande você está procurando um foco, quando o foco, ele vem de dentro
para fora. E você tem uma concentração, ativa a memória e tudo muda, ele vem assim de dentro para fora. Uma mudança de fico muito interessante, eu percebi isso.” (T1)
14/03/2017
“As sensações de estar com o outro parte muito do que a pessoa transmite
para você. Por exemplo... eu percebi que estava com ele (Allyson), e ele tem uma brutalidade. Eu falei isso porque era um gesto bruto, com força que
podia fazer com acabasse machucando. Era notável uma diferença de energias. Deu para perceber que ele é bem “vamos”, de tomar iniciativa. Mas
acho que consegui equilibrar isso um pouco. Porque na hora de um conduzir o outro tinha todo um cuidado, tinha todo um espaço pela frente, por isso
tínhamos que estar juntos, ir juntos. Vamos colocar o braço juntos e vamos
abaixar juntos. Teve todo esse cuidado. (T2)
14/03/2017
FICHA DE CONTEÚDO – VII
NOME DO ATOR: IVAN DE MELO
DATA DO
DEPOIMENTO
“É por causa do rompimento com a forma é que esse corpo se torna sem órgãos. A gente consegue mesmo retomar a originalidade desses
movimentos ao ponto que esses corpos se tornam um só, como o da Flor e da Lila. É como um corpo sem forma. Quando a gente ret ira a visão retira a
forma, e o corpo é todo utopia.” (I1)
14/03/2017
“Desde quando eu comecei a fazer teatro, eu sempre me senti mais à vontade na hora de fazer, nos laboratórios, de iniciar, de propor movimentos
com os olhos fechados. Eu sempre senti um campo de acesso muito maior de dentro para fora. Para mim isso precisava começar com os olhos
fechados. Porém, esses olhos fechados nunca foi uma questão de inatividade do corpo, sabe? Eu inclusive estou lendo um artigo esses dias que fala que quando estamos de olhos fechados o nosso corpo não está em
estado de repouso, a gente tem células que quando a gente está de olho fechado, elas estão trabalhando para mostrar para a gente esse escuro estamos vendo. A gente continua vendo mesmo de olhos fechados. É um
outro tipo de visão que coloca o corpo em um outro estado de ação, um outro estado de reação aquele momento que o corpo se encontra.” (I2)
26/06/2017
“Nas práticas do olhos eu descobri um outro ponto de controle desse
movimento que emana dos olhos fechados, isso justamente pelas outras percepções que acabaram me trazendo. Tem a ver com a questão da espacialidade pela falta do equilíbrio e da percepção do espaço, isso
despertar um outro tipo de sensorialidade. Isso permite você se desloca pelo espaço mesmo, e projete movimentos.” (I3)
26/06/2017
83
“Eu sempre fui muito repreendido “começa de olhos abertos”, o teatro é muito
um lugar de se olhar, inclusive nos laboratórios essa coisa de olhar sempre nos olhos, olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa
quando está andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar o não olhar. E quando a gente começa a experimentar mais disso vai adentrando algumas outras questões. O que se pode explorar a partir da
descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse
ser que olha, esse ser que ver, que está sempre propondo coisas a partir do olhar. Principalmente as relações entre os outros. Então, quando você começa coloca os atores de olhos vendados para inclusive interagir entre si
é um outro tipo de relação que você está explorando. É uma relação que está muito mais dilatada, ela está nos poros mesmo, na pele, na audição, no
tato, no olfato, no paladar. Aí quando você reabre os olhos desses atores, você está com uma outra capacidade, uma capacidade muito mais expandida, um corpo muito mais expandido, fenomenológico.” (I4)
26/06/2017
“Eu acho que é muito necessário, essencial na verdade que nós passemos por esse processo, porque a todo momento a gente está treinando, nos
formando quanto ao público o que desejamos alcançar, a gente não faz simplesmente, também assiste durante os nossos ensaios, tem essa troca. Ao mesmo tempo a gente não projeta as sensações, não somos óbvios, a
gente sai da obviedade, justamente a gente experimenta isso nos laboratórios. É necessário que haja esse deslocamento do ator na
experiência de viver o mesmo estado do público. É uma formação do ator e espectador não vidente. Então por mais que a gente não assista o nosso
espetáculo, na hora em a gente apresenta a gente tem ali uma afinidade, e após do espetáculo quando escutamos o que público fala a gente se sente
muito próximo do que eles estão falando, a gente já este ali, não somos alheios aquilo. É um campo infinito, não estamos trabalhando com
adaptação para necessidades físicas de atores e quase tocamos a sinestesia.” (I5)
26/06/2017
“Encontrei com uma pessoa no caminho que ela quase que puxava meu
pulso com o movimento dela. Eu não entendia o que ela estava querendo
fazer. A minha utopia morreu naquele momento nos braços daquela pessoa.
Eu tive que parar e sentir aquilo. Eu não encontrei onde eu pudesse levar a
pessoa para perto de mim.” (I6)
84
ANEXO 2: TABELAS DE DESCRIÇÃO DO CONTÉUDOS DE CADA NÚCLEO DE SIGNIFICADO
As tabelas contêm a organização que núcleo de significado extraído dos depoimentos
dos atores através da técnica de Análise de Conteúdo da autora Laurence Bardin,
segundo os critérios de repetição e representatividade.
NÚCLEO DE SIGNIFICADO – I: OUTRA FORMA DE VER
RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:
“Desde quando eu comecei a fazer teatro, eu sempre me senti mais à vontade na hora de fazer, nos
laboratórios, de iniciar, de propor movimentos com os olhos fechados. Eu sempre senti um campo de acesso muito maior de dentro para fora. Para mim isso precisava começar com os olhos fechados.
Porém, esses olhos fechados nunca foi uma questão de inatividade do corpo, sabe? Eu inclusive estou lendo um artigo esses dias que fala que quando estamos de olhos fechados o nosso corpo não está em estado de repouso, a gente tem células que quando a gente está de olho fechado, elas estão
trabalhando para mostrar para a gente esse escuro estamos vendo. A gente continua vendo mesmo de olhos fechados. É um outro tipo de visão que coloca o corpo em um outro estado de ação, um outro
estado de reação aquele momento que o corpo se encontra.” (I2)
NÚCLEO DE SIGNIFICADO – II: CRÍTICA AO OLHAR
RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:
“Eu sempre fui muito repreendido “começa de olhos abertos”, o teatro é muito um lugar de se olhar,
inclusive nos laboratórios essa coisa de olhar sempre nos olhos, olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa quando está andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar o não olhar. E quando a gente começa a experimentar mais disso vai adentrando algumas outras
questões. O que se pode explorar a partir da descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse ser
que olha, esse ser que ver, que está sempre propondo coisas a partir do olhar. Principalmente as relações entre os outros. Então, quando você começa coloca os atores de olhos vendados para inclusive interagir entre si é um outro tipo de relação que você está explorando. É uma relação que
está muito mais dilatada, ela está nos poros mesmo, na pele, na audição, no tato, no olfato, no paladar. Aí quando você reabre os olhos desses atores, você está com uma outra capacidade, uma capacidade
muito mais expandida, um corpo muito mais expandido, fenomenológico.” (I4)
“Me faz pensar sobre essa ideia criada de que o fazer teatral se dá pelo olhar....de que a troca só é
estabelecida se eu encontrar o olhar do outro, mas...que olhar é esse?” (M5)
85
“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu
entrei no curso os professores diziam para abrir o olho. E é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário
olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso.” (M2)
NÚCLEO DE SIGNIFICADO – III: CORPO SEM FORMA
RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:
“É por causa do rompimento com a forma é que esse corpo se torna sem órgãos. A gente consegue
mesmo retomar a originalidade desses movimentos ao ponto que esses corpos se tornam um só, como o da Flor e da Lila. É como um corpo sem forma. Quando a gente ret ira a visão retira a forma, e
o corpo é todo utopia.” (I1)
“No ponto do desequilíbrio eu estava bem desconectada. Bem no início eu estava andando, eu sabia
o ponto de equilíbrio, sabia o percurso da transferência de peso de uma perna para outra, o impacto
no chão, eu tentei firmar bem os meus pés no chão para poder sentir o chão. Como a imagem de
barbarvari, os homens árvores do senhor dos anéis. Me percebia bem grandona andando com os pés
ligados ao chão. Essa imagem é muito recorrente nos trabalhos usando a venda.” (E1)
“Então, quando a gente muda essa perspectiva em relação ao ambiente e tudo mais, a gente tem
outras sensações no corpo, outras sensações internas, e até externas também. Tudo parece maior
quando estamos vendados, quando a gente não está enxergando. Tudo parece ter uma amplitude
muito maior, o chão, a distância de uma parede para outra (isso no caso dos exercícios na sala), a
conexão com as outras pessoas.” (D5)
“Tudo me lembrou algo que eu vi no documentário da Marina Abramovic. Falando que o ser humano consegue ultrapassar a terceira dimensão. E que a quarta dimensão é a mental, e a quinta dimensão
que é justamente que o corpo não possui forma. Quando eu estava vendado, eu senti basicamente isso. Que eu não tinha uma forma exata do meu corpo, entendeu? Por isso que eu conseguia até
quando esbarrava ou batia em uma pessoa, ela ia embora de forma suave, não era algo violento. Ou como quando anda no meio da rua e leva uma trombada, não tinha nada a ver com isso. Quando
venda quebra a percepção, quebra ego, quebra tudo, entendeu? É tanto que no início você fica meio assim, mas depois você se acha em todo mundo.” (G1)
“Encontrei com uma pessoa no caminho que ela quase que puxava meu pulso com o movimento dela.
Eu não entendia o que ela estava querendo fazer. A minha utopia morreu naquele momento nos braços
daquela pessoa. Eu tive que parar e sentir aquilo. Eu não encontrei onde eu pudesse levar a pessoa
para perto de mim.” (I6)
NÚCLEO DE SIGNIFICADO – IV: CÚMPLICIDADE COM O ESPECTADOR
86
RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:
“Foi também uma preparação em relação a essa coisa da gente se colocar mais no lugar da plateia.
Se colocar mais no lugar da pessoa cega.” (D3)
“É muito interessante também observar que mesmo que nós, os atores, estejamos vendo durante todo o espetáculo e o público não, a gente já esteve no lugar delas. A gente tem essa relação de
empatia com o espectador. A gente já esteve neste lugar, e sabe como é. Sabe também como é
complicado para quem faz as oficinas. Que a pessoa perde o equilíbrio, perde o referencial visual
necessário para muita coisa. É interessante a gente ter passado por essa experiência antes de fazer
o texto, o espetáculo.” (D6)
“Eu acho que é como um laboratório de onde a gente leva para cena o que construiu e divide com
as pessoas. E por viver experiências como o público vai vivenciar no espetáculo nós sabemos o que
vamos passar para eles, e como é vivenciar isso.” (DE1)
“Eu acho que é muito necessário, essencial na verdade que nós passemos por esse processo, porque
a todo momento a gente está treinando, nos formando quanto ao público o que desejamos alcançar, a gente não faz simplesmente, também assiste durante os nossos ensaios, tem essa troca. Ao mesmo
tempo a gente não projeta as sensações, não somos óbvios, a gente sai da obviedade, justamente a
gente experimenta isso nos laboratórios. É necessário que haja esse deslocamento do ator na experiência de viver o mesmo estado do público. É uma formação do ator e espectador não vidente.
Então por mais que a gente não assista o nosso espetáculo, na hora em a gente apresenta a gente tem ali uma afinidade, e após do espetáculo quando escutamos o que público fala a gente se sent e
muito próximo do que eles estão falando, a gente já este ali, não somos alheios aquilo. É um campo
infinito, não estamos trabalhando com adaptação para necessidades físicas de atores e quase
tocamos a sinestesia.” (I5)
“Como eu vivi essa experiência, eu sei o que é vivenciar ela e por isso posso transmitir com o público,
e há uma cumplicidade nisso. É o meu corpo-voz que está ali, não é apenas uma experiência de
uma tarde. É um compartilhamento. E uma vez atravessado a experiência fica e vira memória, está
em você”. (M3)
NÚCLEO DE SIGNIFICADO – V: O ESPAÇO A PARTIR DE SI
RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:
“Nas práticas do olhos eu descobri um outro ponto de controle desse movimento que emana dos
olhos fechados, isso justamente pelas outras percepções que acabaram me trazendo. Tem a ver com a questão da espacialidade pela falta do equilíbrio e da percepção do espaço, isso despert ar
um outro tipo de sensorialidade. Isso permite você se desloca pelo espaço mesmo, e projete
movimentos.” (I3)
87
“Eu achei interessante porque quando a gente está com as vendas, a gente, eu pelo menos perco
toda noção do espaço, e vou me guiando porque eu sempre fico assim para não me machucar e não
machucar ninguém. Eu sempre sentia quando ia de uma parede a outra por causa disso, meus
braços com o toque chegavam primeiro.” (D1)
“Na dança eu senti muita fluidez e conexão com a pessoa, a diferença do corpo da pessoa. Com uns
você se conectava mais, ou com outros menos. Eu acho que teve troca energética ao ponto de um
alimentar o outro pelo próprio movimento. Inclusive eu acho que com a gente sem ter essa noção do
espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a gente sentia quando troca o pulso e chegava
outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra textura, outra energia”, era outra coisa.” (D2)
NÚCLEO DE SIGNIFICADO – VI: QUESTÕES SOBRE O EQUILÍBRIO
RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:
“A questão do equilíbrio, eu me senti mais tranquilo. Uma diferença muito grande você está procurando um foco, quando o foco, ele vem de dentro para fora. E você tem uma concentração,
ativa a memória e tudo muda, ele vem assim de dentro para fora. Uma mudança de fico muito
interessante, eu percebi isso.” (T1)
“Eu acho que consegui ter atenção mais com o meu corpo, principalmente na hora de andar e
trabalhar com o equilíbrio e o desequilíbrio. A minha perna hoje está doendo um pouco por causa dos exercícios das aulas da graduação. Aí eu senti ela tremer, sabe? Era mais perceptível realmente
a troca de peso que eu fazia para ter equilíbrio. Dava para perceber a origem do tremor na perna, de
onde partia.” (DE2)
“É muito interessante observar as pessoas quando fazem as oficinas do projeto, o quanto elas têm dificuldade de desconectar da visão. Claro, eu sei que quando a gente começou a fazer os exercícios
tinha também muita dificuldade. E em alguns momentos nem lembrava o que era direita ou esquerda. Perdi noção de equilíbrio, e perdi fácil.” (D7)
NÚCLEO DE SIGNIFICADO – VII: A RELAÇÃO COM O OUTRO
RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:
“As sensações de estar com o outro parte muito do que a pessoa transmite para você. Por exemplo...
eu percebi que estava com ele (Allyson), e ele tem uma brutalidade. Eu falei isso porque era um
gesto bruto, com força que podia fazer com acabasse machucando. Era notável uma diferença de energias. Deu para perceber que ele é bem “vamos”, de tomar iniciativa. Mas acho que consegui
equilibrar isso um pouco. Porque na hora de um conduzir o outro tinha todo um cuidado, tinha todo um espaço pela frente, por isso tínhamos que estar juntos, ir juntos. Vamos colocar o braço juntos e
vamos abaixar juntos. Teve todo esse cuidado. (T2)
88
“Na dança eu senti muita fluidez e conexão com a pessoa, a diferença do corpo da pessoa. Com uns
você se conectava mais, ou com outros menos. Eu acho que teve troca energética ao ponto de um
alimentar o outro pelo próprio movimento. Inclusive eu acho que com a gente sem ter essa noção do
espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a gente sentia quando troca o pulso e chegava
outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra textura, outra energia”, era outra coisa.” (D2)
“Naquele exercício que você passou, onde tínhamos que encontrar a outra pessoa e fazer uma espécie de dança partindo da conexão do pulso, depois das costas, dos ombros, era muito
interessante ver com a gente sabia quem era pela energia, pelo toque, pela corporeidade, mesmo
não vendo a outra pessoa. Então, a gente tem essa percepção de sensações, de sentidos, eu não sei, mas é como se fosse uma espécie de sexto sentido, para você se conectar com a outra pessoa.
Às vezes você se conectava, outras não. Às vezes você tinha uma conexão maior com uma pessoa do que com outra. Muito interessante observar tudo isso.” (D9)
“Eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos abertos. Desde que eu entrei no curso os professores diziam para abrir o olho. E é uma coisa que eu comecei a perguntar a mim. Os professores sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas será que é necessário
olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra forma de observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferência nenhuma nisso. Com certeza é necessário olhar para dentro! É nesse sentido que eu estou falando. Que mesmo de
olhos fechados nessa ideia que só de olhos abertos eu vou encontrar com o olhar do outro e encontrar com o outro. Mas esse olhar pode ser tão vazio. Eu posso olhar tão superficialmente. Eu estou olhando para você, mas não estou vendo você, não estou jogando com você. E quando nós
nos conhecemos e conhecemos esses corpos dentro do espaço não precisa do olhar. Por exemplo, Lila não precisou me “enxergar” para saber que era eu, Thalles não precisou me “enxergar” para saber que era eu. Existem outras conexões, sabe? Acaba que ficamos mais sensíveis a isso. Esses
corpos já estão trabalhando a um tempo, se tocando a um tempo. Então aguça essa sensibilidade de observação por outros meios que não sejam a visão propriamente dita. E a visão deixa de ser uma coisa. Para mim nesse momento os olhos deixam de ser as janelas da alma, não é mais isso,
é outra coisa, é algo para além disso. É aguçar os sentidos, é se permitir sentir e estar.” (M1)
“É importante observar que tudo tem aspectos positivos e negativos, e pensando que quando a gente ver enxerga cores, formas, sabe por exemplo como é um caderno, um teclado de um computador,
estamos vendo aquilo, é aquilo é pronto. É uma visão positiva e pronto. E às vezes o que a gente ver abre um parêntese para o julgamento, a gente julga mais o que ver. E quando a gente não
enxerga imaginamos na nossa mente essas formas, que pode corresponder ao que se ver ou não. [...]acho que esse julgamento do outro diminui por não está vendo. Você, assim, tem contato mais
com a energia da pessoa do que com a forma da pessoa, e eu percebi isso, entendi? Você se
conectar mais com o que a pessoa é, do que com o que ela se parece. Tanto que não é toda vez que as pessoas que enxergam que estão usando a venda querem tocar o seu rosto para saber como
você é, não é sempre.” (D8)
NÚCLEO DE SIGNIFICADO – VIII: CORPO DILATADO
RELATOS QUE COMPÕEM O NÚCLEO DE SIGNIFICADO:
“Acredito nesse campo de investigação pelos sentidos, que nos permite aguçar e sentir enxergar e inclusive criar a partir de coisas que são óbvias ao nosso cotidiano”. (M4)
89
“a dilatação do corpo no espaço, permitindo abrir poros e janelas de onde jamais imaginaríamos enxergar.” (M6)
“Que desafiou muito dos nossos sentidos, dos nossos gestos, da nossa percepção. Quando a gente
estava vendados tínhamos que fazer exercícios simples… de virar a cabeça, ou de segurar uma
perna. Nossa, é interessante observar que a consciência corporal muda demais, porque quando a
gente enxerga a consciência em relação ao ambiente, aos outros depende do que se ver, mas quando usamos as vendas, a nossa consciência é partir de nós mesmos, isso é uma mudança
brusca, imensa. E é uma preparação muito interessante nesse sentido da gente mudar essa
perspectiva.” (D4)
“Eu sempre fui muito repreendido “começa de olhos abertos”, o teatro é muito um lugar de se olhar,
inclusive nos laboratórios essa coisa de olhar sempre nos olhos, olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa quando está andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar
o não olhar. E quando a gente começa a experimentar mais disso vai adentrando algumas outras questões. O que se pode explorar a partir da descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse
ser que olha, esse ser que ver, que está sempre propondo coisas a partir do olhar. Principalmente as relações entre os outros. Então, quando você começa coloca os atores de olhos vendados para
inclusive interagir entre si é um outro tipo de relação que você está explorando. É uma relação que está muito mais dilatada, ela está nos poros mesmo, na pele, na audição, no tato, no olfato, no paladar. Aí quando você reabre os olhos desses atores, você está com uma outra capacidade, uma
capacidade muito mais expandida, um corpo muito mais expandido, fenomenológico.” (I4)
90
ANEXO 3: TABELA DE EIXOS TEMÁTICOS
A tabela seguinte contém os Eixos Temáticos criados a partir do agrupamento de
Núcleos de Significado.
EIXOS TEMÁTICOS
NOME DO EIXO TEMÁTICO: NÚCLEOS DE SIGNIFICADO QUE COMPÕEM O EIXO TEMÁTICO:
EIXO – I: A AÇÃO DE VER COMO
ALGO RELACIONAL
- NÚCLEO DE SIGNIFICADO I:
OUTRA FORMA DE VER;
- NÚCLEO DE SIGNIFICADO II:
CRÍTICA DO OLHAR;
- NÚCLEO DE SIGNIFICADO VII: A RELAÇÃO COM O OUTRO.
EIXO – II: PERCEPÇÕES
CORPO
DO - NÚCLEO DE SIGNIFICADO III:
CORPO SEM FORMA;
- NÚCLEO DE SIGNIFICADO V:O
ESPAÇO A PARTIR DE SI;
- NÚCLEO DE SIGNIFICADO VI:
QUESTÕES SOBRE O EQUILÍBRIO;
- NÚCLEO DE SIGNIFICADO VIII:
CORPO DILATADO.
EIXO – III: ALTERIDADE - NÚCLEO DE SIGNIFICADO IV: CÚMPLICIDADE COM O ESPECTADOR.
91
ANEXO 4: TRANSCRIÇÕES
Estão inseridos aqui as transcrições dos áudios gravados durantes as reuniões do
projeto de extensão O que os olhos não veem, no período de março de 2017 a junho
de 2017, na sala “C” do Departamento de Artes da UFRN.
TRANSCRIÇÃO DO DIA 14/03/2017
Estão presentes a Vice-Coordenadora do projeto de extensão O que os olhos não
veem, Prª. Ms. Mayra Montenegro, professora do curso de Teatro da UFRN, os atores
do grupo: Maria Flor, Ivan de Melo, Thalles Lopez, Geraldo Rodrigues, Daliana
Medeiros Cavalcante, Débora Tenório, Elisiana Gomes, Thalia Varela, Nilton Santos,
Hianna Camilla.
-(Geraldo): “ Eu achei bem libertador fazer. Teve um momento que eu não precisava mais tomar
cuidado com a parede. Eu só estava transitando na sala. Eu comecei a perceber que quando estava
próximo a parede por perceber que ficava mais quente a temperatura. E também teve uma hora que
eu estava com ela (Daliana), na hora da dança. Nós não batemos em nada. Por que quando sentia
que tinha alguém mudava de posição logo. E foi libertador inclusive.”
-(Débora): “Eu acho que consegui ter atenção mais com o meu corpo, principalmente na hora de andar
e trabalhar com o equilíbrio e o desequilíbrio. A minha perna hoje está doendo um pouco por causa
dos exercícios das aulas da graduação. Aí eu senti ela tremer, sabe? Era mais perceptível realmente
a troca de peso que eu fazia para ter equilíbrio. Dava para perceber a origem do tremor na perna, de
onde partia.”
-(Thalia):”Para mim hoje foi mais complicado, porque eu estou com o tornozelo inchado. Por isso que
estou mancando. E na hora em tinham que transitar do equilíbrio para o desequilíbrio eu não estava
conseguindo muito bem, só conseguia com uma perna, com a outra não dava, doía. Então hoje
especialmente por isso foi mais complicado para mim por ficar doendo. Às vezes você até quer fazer
o movimento, mas corpo, ele ...por causa da dor trava. Porém, isso permitiu que entender a origem da
dor, da onde ela vinha e que partes do corpo faziam com que ela se manifestar.”
-(Nilton):”Eu acho que a questão da exaustão do dia a dia. Eu percebi que o meu corpo teve mais
dificuldade, os músculos mesmo, e tudo, do que nos outros encontros que eu estava mais relaxado. E
a questão da dança, você ver totalmente o ritmo da outra pessoa com é diferente, e como isso muda
de uma pessoa para outra. Você ver que o balanço dela é diferente. E eu tive uma pessoa que ela
estava me guiando, depois eu guiei ela, e teve uma hora que percebi que ela estava abaixada, mas
eu não sabia se ela estava realmente abaixada ou não. E teve uma hora que você falou como se
estivesse no balanço do mar, e eu senti que a pessoa encolheu os braços como se estivesse com frio,
eu tentei encolher também, mas depois não percebi se ela realmente abriu os braços. A referência do
corpo do outro chegava a mim, só neste momento que eu não pude perceber. Eu conseguia perceber
pelo contato com o corpo, notava os movimentos dela, eu prestava atenção nesses movimentos que
ela fazia. Tudo pelo tato. E também a questão que ele falou também que as partes da sala onde ficam
as janelas, quando eu me aproximava era mais quente realmente o chão e as paredes eram mais
quentes. E a parte de mármore era mais fria devido a chuva né. Então eu percebia que eu estava perto
das paredes.”
92
-(Daliana):”Eu achei interessante porque quando a gente está com as vendas, a gente, eu pelo menos
perco toda noção do espaço, e vou me guiando porque eu sempre fico assim para não me machucar
e não machucar ninguém. Eu sempre sentia quando ia de uma parede a outra por causa disso, meus
braços com o toque chegavam primeiro. É engraçado que o aquecimento e alguns movimentos da
dança eu senti realmente tanta liberdade, achei tão forte e fluido que até parece que eu me acostumei.
“Ok, eu já não enxergo então vamos embora”. Na dança eu senti muita fluidez e conexão com a
pessoa, a diferença do corpo da pessoa. Com uns você se conectava mais, ou com outros menos. Eu
acho que teve troca energética ao ponto de um alimentar o outro pelo próprio movimento. Inclusive eu
acho que com a gente sem ter essa noção do espaço e sem saber exatamente quem é a pessoa, a
gente sentia quando troca o pulso e chegava outra pessoa. Eu pensava “nossa é outra pele, outra
textura, outra energia”, era outra coisa.”
-(Elisiana):”No ponto do desequilíbrio eu estava bem desconectada. Bem no início eu estava andando,
eu sabia o ponto de equilíbrio, sabia o percurso da transferência de peso de uma perna para outra, o
impacto no chão, eu tentei firmar bem os meus pés no chão para poder sentir o chão. Como a imagem
de barbarvari, os homens árvores do senhor dos anéis. Me percebia bem grandona andando com os
pés ligados ao chão. Essa imagem é muito recorrente nos trabalhos usando a venda. [...] Flor é
maravilhosa! A primeira conexão foi com ela. Eu não sei como, mas tinha certeza que era ela. Senti o
contato com o corpo dela, sabia que era ela. Não precisei tocar o rosto dela para saber. Só no finalzinho
que minha mão bateu no cabelo dela aí eu tive certeza que era ela. Nós movimentos na dança com
ela senti o meu corpo como uma folha pairando pelo ar.”
-(Thalles):”A questão do equilíbrio, eu me senti mais tranquilo. Uma diferença muito grande você está
procurando um foco, quando o foco, ele vem de dentro para fora. E você tem uma concentração, ativa
a memória e tudo muda, ele vem assim de dentro para fora. Uma mudança de fico muito interessante,
eu percebi isso. As sensações de está com o outro parte muito do que a pessoa transmite para você.
Por exemplo... eu percebi que estava com ele (Allyson), e ele tem uma brutalidade. Eu falei isso porque
era um gesto bruto, com força que podia fazer com acabasse machucando. Era notável uma diferença
de energias. Deu para perceber que ele é bem “vamos”, de tomar iniciativa. Mas acho que consegui
equilibrar isso um pouco. Porque na hora de um conduzir o outro tinha todo um cuidado, tinha todo um
espaço pela frente, por isso tínhamos que estar juntos, ir juntos. Vamos colocar o braço juntos e vamos
abaixar juntos. Teve todo esse cuidado. Eu senti que depois peguei Flor, e que foi bem mais fluido.
Que um transmitia confiança um para o outro, bem bacana. Um comprava a ideia do outro. Era mais
“vamos juntos”. A questão das folhas também foi bem bacana. Foi uma viagem. O frio, eu senti o frio,
senti o calor. Eu senti que Flor também transmitia isso para mim. E na hora do barco existiu o
movimento do barco, isso existiu. E eu achei muito bonito. Se o barco fosse afundar nós íamos afundar
juntos.”
-(Maria Flor):”Pois é, eu sempre achei mais confortável viajar de olhos fechados do que de olhos
abertos. Desde que eu entrei no curso os professores diziam para abrir o olho. E é uma coisa que eu
comecei a perguntar a mim. Os professores sempre diziam “olha para o outro”, “olha para fora”. Mas
será que é necessário olhar para fora? Sabe? Porque eu estou falando de uma outra forma de
observação, porque a gente não está usando a “visão” aqui. E eu percebo que não tem interferênc ia
nenhuma nisso.
-Hianna: “você acha que esse não olhar para fora lhe faz olhar para dentro?”
- Maria Flor:” com certeza.
-Hianna: “ E esse olhar para dentro lhe faz enxergar o outro?”
-Maria Flor: “Com certeza! É nesse sentido que eu estou falando. Que tipo mesmo de olhos fechados
nessa ideia que só de olhos abertos eu vou encontrar com o olhar do outro e encontrar com o outro.
Mas esse olhar pode ser tão vazio. Eu posso olhar tão superficialmente. Eu estou olhando para você,
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mas não estou vendo você, não estou jogando com você. E quando nós nos conhecemos e
conhecemos esses corpos dentro do espaço não precisa. Por exemplo, Lila não precisou me
“enxergar” para saber que era eu, Thalles não precisou me “enxergar” para saber que era eu. Existem
outras conexões, sabe? ... Energéticas. Acaba que ficamos mais sensíveis a isso. Esses corpos já
estão trabalhando a um tempo, se tocando a um tempo. Então aguça essa sensibilidade de observação
por outros meios que não sejam a visão propriamente dita. E a visão deixa de ser uma coisa, para mim
nesse momento os olhos deixam de ser as janelas da alma, não é mais isso, é outra coisa, é algo para
além disso. É aguçar os sentidos, é se permitir sentir e estar.” -(Ivan): “Quando você priva a nossa visão, e você foi muito feliz na ordem dos exercícios. Trabalhar
primeiro uma contenção para depois trabalhar um exercício de expansão a partir da dança. Mais um
pouquinho e está todo mundo emanando e mandando energia, porque esse corpo se expande mesmo.
É por causa do rompimento com a forma é que esse corpo se torna sem órgãos. A gente consegue
mesmo retomar a originalidade desses movimentos ao ponto que esses corpos se tornam um só, como
o da Flor e da Lila. É como um corpo sem forma. Quando a gente retira a visão retira a forma, e o
corpo é todo utopia. Durante a prática da dança eu encontrei pessoas que eu não consegui trocar. Eu
não sei. Eram pessoas que eu tocava. Eu estava em uma onda, e a pessoa estava em outra. Encontrei
com uma pessoa no caminho que ela quase que puxava meu pulso com o movimento dela. Eu não
entendia o que ela estava querendo fazer. A minha utopia morreu naquele momento nos braços
daquela pessoa. Eu tive que parar e sentir aquilo. Eu não encontrei onde eu pudesse levar a pessoa
para perto de mim. Mas depois encontramos um ritmo depois que paramos.”
-(Geraldo):” Isso tudo me lembrou algo que eu vi no documentário da Marina Abramovic. Falando que
o ser humano consegue ultrapassar a terceira dimensão. E que a quarta dimensão é a mental, e a
quinta dimensão que é justamente que o corpo não possui forma. Quando eu estava vendado, eu senti
basicamente isso. Que eu não tinha uma forma exata do meu corpo, entendeu? Por isso que eu
conseguia até quando esbarrava ou batia em uma pessoa, ela ia embora de forma suave, não era algo
violento. Ou como quando anda no meio da rua e leva uma trombada, não tinha nada haver com isso.
Quando venda quebra a percepção, quebra ego, quebra tudo, entendeu? É tanto que no início você
fica meio assim, mas depois você se acha em todo mundo.”
-(Débora):”eu acho que é como um laboratório de onde a gente leva para cena o que construiu e divide
com as pessoas. E por viver experiências como o público vai vivenciar no espetáculo nós sabemos o
que vamos passar para eles, e como é vivenciar isso.”
-(Maria Flor): “Como eu vivi essa experiência, eu sei o que é vivenciar ela e por isso posso transmitir
com o público, e há uma cumplicidade nisso. É o meu corpo-voz que está ali, não é apenas uma
experiência de uma tarde. É um compartilhamento. E uma vez atravessado a experiência fica e vira
memória, está em você.”
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TRANSCRIÇÃO DO DIA 26/06/2017
Estão presentes a Vice-Coordenadora do projeto de extensão O que os olhos não
veem, Prª. Ms. Mayra Montenegro, professora do curso de Teatro da UFRN, os atores
do grupo: Maria Flor, Ivan de Melo, Thalles Lopez, Daliana Medeiros Cavalcante,
Débora Tenório, Elisiana Gomes, Thalia Varela, Hianna Camilla.
- (Ivan): “Desde quando eu comecei a fazer teatro, eu sempre me senti mais à vontade na hora de
fazer, nos laboratórios, de iniciar, de propôr movimentos com os olhos fechados. Eu sempre senti um
campo de acesso muito maior de dentro para fora. Para mim isso prec isava começar com os olhos
fechados. Porém, esses olhos fechados nunca foi uma questão de inatividade do corpo, sabe? Eu
inclusive estou lendo um artigo esses dias que fala que quando estamos de olhos fechados o nosso
corpo não está em estado de repouso, a gente tem células que quando a gente está de olho fechado,
elas estão trabalhando para mostrar para a gente esse escuro estamos vendo. A gente continua
vendo mesmo de olhos fechados. É um outro tipo de visão que coloca o corpo em um outro estado
de ação, um outro estado de reação aquele momento que o corpo se encontra. Nas práticas do olhos
eu descobri um outro ponto de controle desse movimento que emana dos olhos fechados, isso
justamente pelas outras percepções que acabaram me trazendo. Tem haver com a questão da
espacialidade pela falta do equilíbrio e da percepção do espaço, isso despertar um outro tipo de
sensorialidade. Isso permite você se desloca pelo espaço mesmo, e projete movimentos. Isso me
deixou muito mais à vontade depois abrir os olhos quando eu não estou nesse tipo de experimento.
Em começar uma outra experimentação de olhos abertos, porque com o olhos eu percebi de uma
outra forma, que eu tenho que acessar outras coisas. Eu sempre fui muito repreendido “começa de
olhos abertos”, o teatro é muito um lugar de se olhar, inclusive nos laboratórios essa coisa de olhar
sempre nos olhos, olhar, olhar, olhar sempre para as pessoas por quem você passa quando está
andando. Aí a gente acaba esquecendo que de respeitar o não olhar. E quando a gente começa a
experimentar mais disso vai adentrando algumas outras questões. O que se pode explorar a partir
da descentralização dessas certezas, que não estão só no teatro, que a gente vai e assiste, elas
estão desde da preparação básica do ator. O ator é esse ser que olha, esse ser que ver, que está
sempre propondo coisas a partir do olhar. Principalmente as relações entre os outros. Então, quando
você começa coloca os atores de olhos vendados para inclusive interagir entre si é um outro tipo de
relação que você está explorando. É uma relação que está muito mais dilatada, ela está nos poros
mesmo, na pele, na audição, no tato, no olfato, no paladar. Aí quando você reabre os olhos desses
atores, você está com uma outra capacidade, uma capacidade muito mais expandida, um corpo muito
mais expandido, fenomenológico. Eu acho que é muito necessário, essencial na verdade que nós
passemos por esse processo, porque a todo momento a gente está treinando, nos formando quanto
ao público o que desejamos alcançar, a gente não faz simplesmente, também assiste durante os
nossos ensaios, tem essa troca. Ao mesmo tempo a gente não projeta as sensações, não somos
óbvios/, a gente sai da obviedade, justamente a gente experimenta isso nos laboratórios. É
necessário que haja esse deslocamento do ator na experiência de viver o mesmo estado do público.
É uma formação do ator e espectador não vidente. Então por mais que a gente não assista o nosso
espetáculo, na hora em a gente apresenta a gente tem ali uma afinidade, e após do espetáculo
quando escutamos o que público fala a gente se sente muito próximo do que eles estão falando, a
gente já este ali, não somos alheios aquilo. É um campo infinito, não estamos trabalhando com
adaptação para necessidades físicas de atores e quase tocamos a sinestesia.”
-(Daliana): “Foi também uma preparação em relação a essa coisa da gente se colocar mais no lugar
da plateia. Se colocar mais no lugar da pessoa cega. [...] Que desafiou muito dos nossos sentidos, dos nossos gestos, da nossa percepção. Quando a gente
estava vendados tínhamos que fazer exercícios simples… de virar a cabeça, ou de segurar uma perna.
Nossa, é interessante observar que a consciência corporal muda demais, porque quando a gente
enxerga a consciência em relação ao ambiente, aos outros depende do que se ver, mas quando
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usamos as vendas, a nossa consciência é partir de nós mesmos, isso é uma mudança brusca, imensa.
E é uma preparação muito interessante nesse sentido da gente mudar essa perspectiva.”
- (Daliana):“ Então, quando a gente muda essa perspectiva em relação ao ambiente e tudo mais, a
gente tem outras sensações no corpo, outras sensações internas, e até externas também. Tudo
parece maior quando estamos vendados, quando a gente não está enxergando. Tudo parece ter uma
amplitude muito maior, o chão, a distância de uma parede para outra (isso no caso dos exercícios na
sala), a conexão com as outras pessoas. Naquele exercício que você passou, onde tínhamos que
encontrar a outra pessoa e fazer uma espécie de dança partindo da conexão do pulso, depois das
costas, dos ombros, era muito interessante ver com a gente sabia quem era pela energia, pelo toque,
pela corporeidade, mesmo não vendo a outra pessoa. Então, a gente tem essa percepção de
sensações, de sentidos, eu não sei, mas é como se fosse uma espécie de sexto sentido, para você
se conectar com a outra pessoa. Às vezes você se conectava, outras não. Às vezes você tinha uma
conexão maior com uma pessoa do que com outra. Muito interessante observar tudo isso.”
-( Daliana): “ É importante observar que tudo tem aspectos positivos e negativos, e pensando que
quando a gente ver enxerga cores, formas, sabe por exemplo como é um caderno, um teclado de um
computador, estamos vendo aquilo, é aquilo é pronto. É uma visão positiva e pronto. E às vezes o que
a gente ver abre um parêntese para o julgamento, a gente julga mais o que ver. E quando a gente não
enxerga imaginamos na nossa mente essas formas, que pode corresponder ao que se ver ou não. [...]
Acho que esse julgamento do outro diminui por não está vendo. Você, assim, tem contato mais com a
energia da pessoa do que com a forma da pessoa, e eu percebi isso, entendi? Você se conectar mais
com o que a pessoa é, do que com o que ela se parece. Tanto que não é toda vez que as pessoas
que enxergam que estão usando a venda querem tocar o seu rosto para saber como você é, não é
sempre.”
- (Daliana): “É muito interessante observar as pessoas quando fazem as oficinas do projeto, o quanto
elas têm dificuldade de desconectar da visão. Claro, eu sei que quando a gente começou a fazer os
exercícios tinha também muita dificuldade. E em alguns momentos nem lembrava o que era direita
ou esquerda. Perdi noção de equilíbrio, e perdi fácil. Tem coisa que é bem complicado. Tem exercício
que você ouve por exemplo : “a baixa e rebola girando o quadril.”ao ouvir isso não consegui fazer,
não consegui criar a imagem na cabeça e senti falta de uma referência visual.”
-(Daliana): “É muito interessante também observar que mesmo que nós, os atores, estejamos vendo
durante todo o espetáculo e o público não, a gente já esteve no lugar delas. A gente tem essa relação
de empatia com o espectador. A gente já esteve neste lugar, e sabe como é. Sabe também como é
complicado para quem faz as oficinas. Que a pessoa perde o equilíbrio, perde o referencial visual
necessário para muita coisa. É interessante a gente ter passado por essa experiência antes de fazer
o texto, o espetáculo.”
-(Daliana): “Eu acho que essa preparação também é um despertar inclusão da pessoa cega no
espetáculo
- (Maria Flor): Bem....Acredito nesse campo de investigação pelos sentidos, que nos permite aguçar e
sentir enxergar e inclusive criar a partir de coisas que são óbvias ao nosso cotidiano
- (Maria Flor): Me faz pensar sobre essa ideia criada de que o fazer teatral se dá pelo olhar....de que
a troca só é estabelecida se eu encontrar o olhar do outro, mas...que olhar é esse?
- (Maria Flor): É a dilatação do corpo no espaço, permitindo abrir poros e janelas de onde jamais
imaginaríamos enxergar.
- (Maria Flor): Coisas que surgem nas imagens mentais e se materializam na carne
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- (Maria Flor): Acredito nesse espaço investigativo para o treinamento do ator.