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Capítulo I Espetáculo e linguagem O passado não nos deve absolutamente perturbar já que devemos somente lamentar nossos erros. Mas o futuro nos deve tocar ainda menos, já que ele não está de modo algum à nossa vista e que nós talvez não cheguemos jamais a ele. O presente é o único tempo que é verdadeiramente nosso, e o qual devemos usar segundo Deus. Pascal, Carta a Mlle. de Roannez Em A sociedade do espetáculo, há três capítulos em que Debord discute sobre o lugar e o significado históricos da emergência da modernidade: os capítulos V – “Tempo e história” e VI – “O tempo espetacular”, ambos centrados, como indicam seus títulos, na experiência histórica e social do tempo, e o capítulo VIII – “A negação e o consumo na cultura”, no qual a linguagem é diretamente tematizada. A discussão realizada nos capítulos V e VI sobre o moderno é inseparável de uma temática que esteve sempre presente em toda a obra de Debord, sendo- lhe mesmo essencial: a relação dos homens com a passagem do tempo. Já no capítulo VIII, Debord desenvolve uma discussão sobre a linguagem e a cultura, questões que são o próprio objeto de discussão no presente livro e que, como buscarei demonstrar, estão no centro da sua reflexão crítica sobre o capitalismo contemporâneo. Tempo e linguagem, considerados em seus usos

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REIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 45

Capítulo I

Espetáculo e linguagem

O passado não nos deve absolutamenteperturbar já que devemos somente lamentarnossos erros. Mas o futuro nos deve tocarainda menos, já que ele não está de modo algumà nossa vista e que nós talvez não cheguemosjamais a ele. O presente é o único tempo que éverdadeiramente nosso, e o qual devemos usarsegundo Deus.

Pascal, Carta a Mlle. de Roannez

Em A sociedade do espetáculo, há três capítulos em queDebord discute sobre o lugar e o significado históricos daemergência da modernidade: os capítulos V – “Tempo e história”e VI – “O tempo espetacular”, ambos centrados, como indicamseus títulos, na experiência histórica e social do tempo, e ocapítulo VIII – “A negação e o consumo na cultura”, no qual alinguagem é diretamente tematizada. A discussão realizada noscapítulos V e VI sobre o moderno é inseparável de uma temáticaque esteve sempre presente em toda a obra de Debord, sendo-lhe mesmo essencial: a relação dos homens com a passagem dotempo. Já no capítulo VIII, Debord desenvolve uma discussãosobre a linguagem e a cultura, questões que são o próprio objetode discussão no presente livro e que, como buscarei demonstrar,estão no centro da sua reflexão crítica sobre o capitalismocontemporâneo. Tempo e linguagem, considerados em seus usos

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históricos possíveis, são indissociáveis em sua reflexão sobre asociabilidade tardoburguesa: as atuais formas históricas de ume de outro se determinam reciprocamente, constituindo um tododa experiência presente da reificação. Nos dois primeirossubcapítulos seguintes, opto por tomar a concepção debordianada experiência moderna com base em sua discussão dos capítulosV e VI de A sociedade do espetáculo, confrontando-a, no terceirosubcapítulo, com algumas passagens dos dois primeiros capítulosdo mesmo livro, centrados no conceito de “espetáculo”.

Este procedimento se justifica por dois motivos. Primeiro,porque neste primeiro capítulo pretendo melhor determinar suaassunção crítica da modernidade, afastando-me da hipótese deuma crítica romântica do presente, crítica supostamentealimentada por determinadas valorações positivas da comunidadepré-moderna, como interpretam M. Löwy e, de certo modo,também A. Jappe. Para M. Löwy, encontra-se em Debord um“protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna emnome de valores do passado”.1 Em certa medida, esta leitura foiantecipada por A. Jappe, que estende as análises de Debordacerca da pólis grega e das repúblicas democráticas italianas –que serão apresentadas a seguir – à “aldeia, [ao] bairro, [à]corporação e mesmo [às] tabernas populares”, os quaissupostamente “constituíam formas de comunicação direta emque cada um conservava o controle sobre uma parte ao menosde sua própria atividade”.2

Ora, o capítulo VIII, ao ser tomado isoladamente, apenassuperficialmente permite que os conceitos ali presentes decomunidade e linguagem comum sejam interpretados nasperspectivas que M. Löwy aponta (com base numa leitura que

1 . M. Löwy, que tipifica nestes termos o “romantismo anticapitalista”, enquadranele tanto Breton e os surrealistas quanto Debord e os situacionistas (M.Löwy, “Consumé par le feu (Le romantisme de Guy Debord)”, em Lignes,nº 31. Paris: Harzan-Lignes, 1997, p. 163).

2 . A. Jappe, Guy Debord, p. 61.

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também aparece em Jappe). Mas não me parece casual que adiscussão sobre a linguagem e a cultura, nos termos queaparecem no capítulo VIII, seja precedida pelos capítulos V eVI, sobre o tempo, e VII, sobre o espaço (“A organização doterritório”). Se olhado mais de perto, este procedimento se revelaum método expositivo que discute antecipadamente doiselementos fundamentais da experiência moderna – a relaçãocom o tempo e o espaço sociais em suas concretudes históricas– e oferece, nesta anterioridade expositiva, o caráter “moderno”da discussão seguinte sobre a linguagem e a cultura.

O segundo motivo desta opção é que, nas consideraçõessobre a natureza arcaico-moderna do espetáculo, que seguemà discussão – baseada nos capítulos V e VI – sobre o significadohistórico da modernidade, busco articular a relação entre areificação e a linguagem, relação esta que é fundamental à críticadebordiana do capitalismo avançado e parâmetro de toda a suareflexão estética baseada na experiência social da linguagem, aser apresentada nos capítulos seguintes deste livro. Somentecom base nesta crítica do capitalismo tardio, na qual se articulamde modo substancial a experiência social da reificação e a dalinguagem, pode ser mais bem compreendida sua concepçãocomunicativa da linguagem. Neste sentido, as consideraçõessobre o conceito de espetáculo, apresentadas no último tópicodeste capítulo, delinearão já de início a perspectiva distinta dasreflexões de Debord diante da reivindicação expressiva dainterioridade subjetiva pelo surrealismo e por parte significativada experiência estética modernista.

1.1 O tempo e a existência histórica

Debord concebe uma essencial relação entre dois termos,os quais distingue para, na reflexão, melhor aproximá-los: otempo e a história. O que fundamentalmente significa a sociedademoderna, para ele, é o surgimento de novas condições materiais

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de produção social da existência, que trazem consigo a destruiçãoinseparavelmente dos antigos modos de experiências do tempoe dos antigos modos de vida, da “tradição”. “Durante todo otempo em que a produção agrária permanece o trabalho principal,o tempo cíclico, que permanece presente no fundo da sociedade,alimenta as forças coligadas da tradição, que vão conter omovimento. Mas o tempo irreversível da economia burguesaextirpa essas sobrevivências em toda a vastidão do mundo”(SdS, § 141). Sob um determinado aspecto, ele em nada difereaqui da interpretação materialista – ao contrário, a retoma – quedesde Marx compreendeu sempre a relação, no capitalismo, entreo desenvolvimento das forças produtivas e a superação dasantigas formas de relações sociais. Mas, ao formular uma reflexãosobre a experiência histórica com base na questão do tempohistórico – da experiência e da consciência social da passagemdo tempo –, Debord ajunta à interpretação materialistaestabelecida, e com base nisto a rearticula, uma temáticaespecífica. Trata-se de pensar o “histórico”, a “consciênciahistórica”, fundados na experiência real, social, dos homenscom a passagem do “tempo irreversível”, o tempo constituindo-se no “conteúdo principal do termo ‘história’”.3

O que significa a irreversibilidade do tempo, comoconteúdo possível da experiência e da consciência históricas,pode ser aproximativamente compreendido na sua apreciaçãoda narrativa de Heródoto: esta expressaria precisamente o devirde uma “história consciente” como consciência de um “tempoirreversível”. De fato, a justificativa de Heródoto para aexposição de sua “investigação” (historía) expressa bem aconsciência de uma passagem irreversível do tempo, umapassagem que é destruição e morte, e a qual a sua narrativa nãobusca evitar, mas antes acolher como condição de possibilidademesma daquilo que ela quer manter na memória e salvar do

3 . Carta a Mustapha Khayati, 08.10.65 (G. Debord, Correspondance, vol. 3.Paris: Fayard, 2003, p. 69).

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esquecimento. Por duas vezes, após o seu célebre parágrafoinicial, Heródoto expressa esta representação da existênciatemporal dos homens, que Debord recolhe positivamente comoconsciência histórica do tempo irreversível. Uma, quando seapresenta como narrador isento dos acontecimentos,“percorrendo por igual as pequenas e grandes cidades doshomens”: “Pois a maioria das que antigamente eram grandestornaram-se pequenas; e as que, em meu tempo, eram grandes,antes eram pequenas. Sabendo, portanto, que a felicidade humanajamais permanece no mesmo ponto, recordarei igualmente ambosos tipos” (I, 5). Outra, quando, fazendo Sólon dialogar comKroisos, coloca nos lábios do legislador ateniense aquelasentença que, antes, já assumira como centro de sua própriarepresentação da experiência humana sob a passagem do tempo:“todo homem é contingência, evento” (symphorê, I, 31).

Que houvesse já, na cultura grega, uma consciência daessencial mortalidade humana, em harmonia e distinção com aimortalidade dos deuses, Debord não ignora. Aquele trecho docanto VI da Ilíada, que mais classicamente a expressa, ele ocita, como epígrafe, em seu Panégyrique: “As gerações doshomens são como aquelas das folhas...” Segundo Platão, talrepresentação, não apenas da existência humana, mas de toda aexistência, seria o “fundamento” mesmo da poesia épica e todoo pensamento grego, com exceção precisamente de Parmênides.4

Contudo Heródoto expressaria, conforme Debord, uma rupturaradical precisamente por tematizar claramente – acrescento,como justificativa mesma de sua narrativa – a passagemirreversível do tempo, como lugar da atividade e da construçãohumanas. Segundo diz Debord, Heródoto rompe em sua narrativacom a representação do tempo que está presente nas antigascrônicas, nos antigos anais e listas reais , ligados ao “poderdivinizado” do despotismo oriental, pois nestes se apresentavacertamente uma representação do tempo irreversível, mas na

4 . Cf. Crátilo, 402 a-b; Teeteto, 152 e, 180 c-d.

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forma da sucessão das dinastias, o “tempo irreversível do poder”.Ora, se as crônicas expressavam uma consciência dairreversibilidade do tempo – o esforço em salvaguardar namemória, da ação destruidora do tempo, as aventuras e asguerras dos dinastas, esforço este mobilizado precisamente pelaesperança mítica na imortalidade da alma –, elas o faziam, noentanto, como forma de uma apropriação e um uso privados daexperiência e da memória históricas; e da memória porque antesda própria experiência.5

Segundo Debord, a história, uso da passagem irreversíveldo tempo em viagens, guerras e aventuras, é, no despotismooriental, um privilégio dos maîtres da sociedade; a “base” dasociedade, todos os outros indivíduos permanecem sob aexperiência de um tempo que se apresenta repetitiva, cíclica,imobi l izada e presa à terra e ao trabalho agrícola. Arepresentação da irreversibilidade da passagem do tempo, comtudo o que significa de uso livre da mortalidade, só foi possívelna experiência democrática dos senhores gregos que, ao ampliarentre seus pares (e outros mais) as decisões da vida comum,ampliou também a participação prática na história. Quando narraas viagens de Sólon, Heródoto simboliza a excelência de suaspróprias viagens, não para as guerras e os comércios, comotradicionalmente a aristocracia o fez, mas simplesmente paraconhecer e experimentar: viajar.6 Deste modo, situa sua própria

5 . Sobre as listas reais, os anais e as crônicas, ver F. Hartog, A história deHomero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, p. 16:“A história era real (somente o rei fazia a história), reservada (já queestava nas mãos de uma casta de intelectuais, mestres da escrita),monumental (fazendo-se ver também nas grandes inscrições)”. Cf. tambémJ. Le Goff, História e memória. Tr. br. Irene Ferreira et al. Campinas, SP:Editora da Unicamp, 1992, pp. 431 ss.

6 . “Hóspede ateniense, nos é conhecida tua fama, por tua sabedoria e pelastuas viagens...”, diz Kroisos a Sólon (I, 30). A partir do século VI, os homenslivres da Grécia experimentaram viagens não relacionadas com as guerrase os comércios: “Alguns, como é natural, por comércio, outros comosoldados, outros também para visitar os países...”, diz o próprio Heródoto(III, 139).

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experiência de deslocamento qualitativo e concreto no espaço– inseparável, em sua narrativa, da experiência e da consciênciada passagem destrutiva e irreparável do tempo, tornado assimtambém concreto e qualitativo – na experiência da pólis grega.

É este uso qualitativo e concreto da experiência temporalque significa, para Debord, a experiência com a passagemirreversível do tempo. Esta concepção expressa a importânciaque a atividade, a ação – no sentido clássico de práxis – ocupaem seu pensamento. A consciência histórica que Heródotoexpressa e experimenta é um produto direto da experiênciademocrática dos senhores, experiência de participação nosnegócios comuns da pólis e, na mesma medida, participação nahistória, na atividade prática comum, “comunicação prática”, talcomo Debord a entende: “Desta comunicação prática entreaqueles que se reconheceram como os possuidores de umpresente singular, que experimentaram a riqueza qualitativa dosacontecimentos como a sua atividade e o lugar onde habitavam– a sua época –, nasce a linguagem geral da comunicaçãohistórica. Aqueles para quem o tempo irreversível existiudescobrem nele, ao mesmo tempo, o memorável e a ameaça doesquecimento: ‘Heródoto de Halicarnasso apresenta aqui osresultados do seu inquérito, para que o tempo não possa aboliros trabalhos dos homens...’” (SdS, § 133).

Esta representação de Heródoto e da experiênciademocrática grega, por Debord, é contemporânea dos novosestudos que, na França dos anos 60, começam a ser feitos sobrea Grécia clássica e, especialmente, sobre sua experiênciademocrática.7 Um traço importante em tais estudos é o

7 . Entre outros, cf. P. Vidal-Naquet, Temps des dieux et temps des hommes(1960); J.-P. Vernant, Les origines de la pensée grecque (1962); F. Chatelet,La naissance de l’histoire: la formation de la pensée historienne en Grèce(1962). P. Vidal-Naquet defende que, entre os gregos, a representação dotempo nunca foi única. Em Homero e Hesíodo, há uma representação dupla,ora como tempo irreversível e linear, ora como tempo cíclico. Em Heródoto,contudo, há uma representação do tempo hegemonicamente linear, um“tempo histórico” distinto do “tempo mítico”. Nele, o “tempo dos homens”

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estabelecimento da relação da pólis democrática com suas“invenções”: a narrativa histórica, a filosofia, a tragédia... Combase em sua própria posição crítica em face do capitalismocontemporâneo e dos interesses e preocupações nascidos dasquestões postas pelo dadaísmo e o surrealismo, o específico daapreensão desses novos estudos, por Debord, é precisamente ada experiência e da consciência da passagem irreversível dotempo como formas inaugurais de experiência e consciênciahistóricas. “O homem, ‘ser negativo que é unicamente na medidaem que suprime o ser’, é idêntico ao tempo”, diz Debord,desviando o sentido do § 258 da Enciclopédia das ciênciasfilosóficas de Hegel. “A história sempre existiu, mas nem sempresob sua forma histórica. A temporalização do homem, tal comoela se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a umahumanização do tempo. O movimento inconsciente do tempo semanifesta e devém verdadeiro na consciência histórica” (SdS, §125).

Com base nesta identidade do homem e da passagem dotempo, concepção que tem profundas raízes na modernaexperiência poética francesa e que é central à sua crítica dareificação, o que primeiramente Debord recolhe e interpretaem Heródoto não é uma narrativa histórica “verdadeira” em

é o de “incerteza” e, por conseqüência, “liberdade”; mais ainda, “Heródotonão crê que uma evolução seja reversível”. Em sua obra, F. Chatelet articulaprecisamente o surgimento do “espírito historiador”, do “pensamentohistoriador” (pensée historienne) na experiência da pólis grega e naautocompreensão, naquela experiência, do homem como “ser histórico”,que experimenta suas palavras, decisões e ações como significativas eirreversíveis; manifesta-se aí exatamente uma consciência do “destinotemporal do homem” e da “irreversibilidade do curso do tempo”. Debord,no entanto, não apenas recebe as conclusões de tais estudos, mas os re-significa a partir de sua crítica da reificação do tempo no capitalismoavançado. Deste modo, toma o gesto de Heródoto não como expressão deum “pensamento historiador” – conceito que, em F. Chatelet, mantém-seno âmbito epistêmico do discurso historiográfico – mas como pensamentohistórico, como consciência histórica, conceitos que remetem maisdiretamente à própria existência social como histórica, porque situada numaatividade prática comum de intervenção e invenção históricas.

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oposição à “falsidade” do mito, mas este se tornar conscienteda passagem do tempo, enquanto irreversível e linear; passagemque, na ausência da atividade prática construtiva dos homens,se mantém inconsciente, tal como ocorre nas narrativas míticas,onde o tempo é experimentado ainda de modo “inconsciente”pois se apresenta sob a forma da reivindicação do passado –enquanto permanência organizadora de sentido – ao presente.A história – forma da passagem do tempo que submete a si e àdestruição que ele move toda a experiência humana – é, pelaprimeira vez, conscientemente vivida na democracia dossenhores gregos exatamente porque, antes de senhores deescravos, mulheres e coisas, resolveram e conseguiram sersenhores e “possuidores de um presente singular”, a “suaépoca”, e experimentarem “a riqueza qualitativa dosacontecimentos como sua atividade”. É, portanto, a assunçãopelos homens de sua “época”, tomando-a como sua própria“atividade”, que permite à passagem irreversível do tempo –móvel da destruição, mas que, por isso mesmo, é tambémcondição e lugar da criação – se tornar “consciente”, enquantopossibilidade e efetividade da “consciência histórica”.

Nesta análise, Debord manifesta a relação entre suaconcepção de “consciência histórica” e o uso prático e social dalinguagem, na forma do diálogo. Como Vidal-Naquet chama aatenção, Heródoto registra – no livro V, § 78 da Historía – que aexperiência democrática dos cidadãos gregos não se centra numaformal e abstrata isonomía, mas também na isegoría, “o direitolegal à palavra”8, ou ainda, a igualdade na agorá. Debord concebeo uso histórico da linguagem pelos senhores gregos, comolinguagem dialogal e decisória (portanto, prática), precisamentenos termos de uma “linguagem geral da comunicação histórica”.

8 . P. Vidal-Naquet, Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desvio[2000]. Tr. br. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras,2002, p. 179.

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A consciência histórica, como “história consciente” da passagemdo tempo, significa para ele – considerando a experiênciademocrática dos senhores gregos – a assunção prática de suaprópria época enquanto sua atividade, assunção que éindissociável da participação dialogal, da linguagemcompartilhada e disputada que quer, e pode, não apenas seexpressar, mas decidir e realizar. É esta linguagem dialogalque se faz “comunicação histórica” no duplo e inseparável sentidode uma possessão prática da sua própria época, enquanto jogoe gozo da passagem do tempo, uso da destruição que ele provocae da criação que ele possibilita. Possessão de sua própria épocaque necessita e pode possuir o seu próprio passado; e, por issomesmo, também comunicação histórica que se expressa naconsciência da ameaça do esquecimento e da importância domemorável.

A relação que Debord estabelece entre a democracia dossenhores gregos e a experiência histórica, mediadas pelo usoprático e dialogal da linguagem, não deve ser lida, contudo,“filosoficamente”, como uma experiência histórica cujaracionalidade é assumida como fundamento supra-histórico deum modelo racional para a vida social. Esta seria, certamente,uma leitura atraente, tanto mais por se tratar dos gregos, masque, neste caso, deve ser evitada: primeiro, porque a Debordnão interessa, nos gregos, a experiência filosófica, mas sim,num sentido bem determinado, sua experiência histórica (talcomo ele a entende); segundo, porque a questão da comunicaçãoé anterior, nos seus textos, às novas discussões sobre a Gréciaocorrida na França nos anos 60, encontrando-se neles já nofinal dos anos 50, como parte de sua reflexão sobre a experiênciaartística moderna.

Mais importante ainda, Debord considera limitada aexperiência histórica dos gregos, e limitada num aspecto bemespecífico, a saber, a da essencial permanência ali da separação:“o poder partilhado das comunidades gregas existia apenas nadépense de uma vida social cuja produção permanecia separada

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e estática na classe servil. Somente aqueles que não trabalham,vivem. Na divisão das comunidades gregas e na luta pelaexploração das cidades estrangeiras, estava exteriorizado oprincípio da separação que fundava interiormente cada umadelas” (SdS, § 134).9

A permanência da separação – determinação que, em suacrítica do capitalismo desenvolvido, é fundamental ao próprioconceito de espetáculo – indica, na análise de Debord, aimpossibilidade de uma vida histórica plena, impossibilidadedeterminada pelas próprias bases sobre as quais se erguemaquelas experiências democráticas: tanto a natureza agrícolade sua economia, submetida ao movimento cíclico das estaçõesnaturais, quanto a necessidade do domínio sobre outras cidades.A afirmação, por Debord, de uma exteriorização daquelaseparação interna às cidades gregas certamente reflete a tesedo imperialismo ateniense, formulada por Jacqueline de Romillye amplamente presente nas publicações francesas sobre a Gréciaclássica, como explicação tanto da possibilidade de criação dademocracia grega quanto de sua ruína. Mas, também neste caso,ao ser submetida ao conceito de separação, aquela tese édesviada para o horizonte teórico da crítica da reificação nomundo moderno. E, deste mesmo modo, a própria recepçãopositiva da dépense dos senhores gregos se libera de algumapossibilidade de arcaísmo, pois são identificados seus limiteshistóricos quanto às suas bases materiais.

O que lhe interessa nesta análise é o que a separaçãomesma – enquanto determinação constitutiva de uma qualquersociabilidade – significa como obstáculo e empobrecimento da

9 . O termo dépense – em itálicos no original francês – faz uso aqui de umconceito introduzido por G. Bataille na tradição crítica francesa eproveniente das pesquisas da antropologia social do início do séculopassado. Em Bataille, a dépense (dilapidação, desperdício, destruição)expressa um radical questionamento da noção utilitária da produção e daacumulação de valores de uso e da noção socialmente admitida acerca do

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vida histórica, pois obstáculo ao mesmo tempo da comunicaçãoe da livre apropriação do tempo. O dialogar requer, antes detudo, “tempo livre”, tempo da conversação que é,simultaneamente, tempo da ação; não à toa, o senhor grego senomeava a si mesmo de eleútheros, “aquele que fala ou agecomo homem livre”. Se, no capitalismo espetacular, Debordencontra uma “separação acabada”, consumada, pelo domínioda forma mercadoria sobre a totalidade das experiênciascotidianas, a separação, como o espetáculo, foi contudo sempreconstitutiva de todo Estado, enquanto “poder separado”,autonomizado da sociedade: “É a mais velha especializaçãosocial, a especialização do poder, que está na raiz do espetáculo”(SdS, § 23).

A natureza alienante de toda separação – enquantoseparação dos homens com o mundo que eles mesmos criam –se apresenta também na democracia grega, limitando-lhe aexperiência histórica, precisamente pela estreiteza e pelacoerção de suas próprias condições de possibilidade; estreitezae coerção inseparáveis da especialização do poder que, mesmodemocratizada, era-lhe essencial. É a separação essencialmenteconstitutiva da experiência democrática grega que, sendo suacondição de possibilidade, impõe também seus limites. É assimque a consciência histórica ali verificada, posta pela experiênciada democratização do poder separado, desenvolve-se, emvirtude de sua própria natureza, em “raciocínio sobre a história[que] é, inseparavelmente, raciocínio sobre o poder” (SdS, §134). É assim, sabemos, que ela estará em Tucídides e Políbios;mas também em Maquiavel, que seria expressão – como Heródoto

que é útil. Neste conceito, trata-se de afirmar o prazer, o desperdício, oesbanjamento como relacionados com uma noção senhorial, soberana devida (Cf. G. Bataille, “La notion de dépense” [La critique sociale, 1933],em Œuvres complètes , t. I. Paris: Gallimard, 1972, pp. 302-320). Estaconcepção será central à posição crítica de Debord quanto ao capitalismomoderno (incluindo o burocrático).

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– da experiência das “comunidades democráticas e das forçasque as arruínam” (SdS, § 139).

Insisto neste aspecto, primeiramente, para observar que

a referência de Debord às experiências democráticas dascomunidades gregas e italianas não se constitui em quaisquerformas de modelos a partir dos quais ele faz a crítica do presente.

Menos ainda se constituem em modelos de “comunidades”ligadas à tradição e às linguagens comuns tradicionais: bem pelocontrário, são formas de saída da tradição e de experimentaçãoda história, contudo limitadas pelas próprias condições

excepcionais e locais que as possibilitaram, condições estasmarcadas por uma essencial separação. Ora, “comunidade”,“comunidades”, como termos para se referir às cidades gregasem seu período clássico são amplamente usados pelos helenistas

franceses, nos anos 60, uso que Debord estende às cidadesitalianas da Renascença porque também estende a elas aconcepção da relação entre experiência democrática epensamento histórico.

Principalmente, busco acentuar aqui – quanto ao que háde comum, em sua representação, entre as experiências gregae italiana – o sentido da relação estabelecida por Debord entrea experiência do tempo irreversível e a consciência histórica.Debord manteve sempre com Tucídides, Políbios e Maquiaveluma privilegiada relação intelectual. Isto se deve não apenas aoco-pertencimento entre consciência histórica e raciocínio sobreo poder nestes autores, relação que ele – que se dizia um“estratego” – assumiu como essencial.10 Antes de tudo, deve-se a que, em seu recurso à experiência histórica para pensar o

10. Cf. G. Agamben, “Il cinema di Guy Debord”, em E. Ghezzi e R. Turigliato(org.), Guy Debord (contro) il cinema. Milano: Editrice Il Castoro, 2001, p.103: “Uma vez, enquanto discutíamos, vendo que eu estava tentado (eainda o estou) a considerá-lo um filósofo, Debord me disse: ‘Não sou umfilósofo, sou um estratego’”. Na continuidade, Agamben diz o que considerasignificar, em Debord, ser “estratego”: “Debord compreendeu o própriotempo como uma guerra na qual toda sua vida era estrategicamente

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poder e a guerra, esses autores partiam de uma concepçãoradicalmente antimetafísica, nucleada pelo caráter temporal ehistoricamente limitado de toda existência humana. Maquiavel,ao justificar a utilidade política do conhecimento histórico, oopõe exatamente à especulação e à abstração.11 Para Debord, aexperiência de Maquiavel e das “comunidades democráticas”da Renascença italiana expressa justamente, em termoshistóricos, uma “ruptura alegre com a eternidade”: “Na vidaexuberante das cidades italianas, na arte das festas, a vida seconhece como um gozo da passagem do tempo” (SdS, § 139).

1.2 O tempo pseudocíclico da “sociedade do espetáculo”

Com base na identidade do homem e do tempo, o quesignifica para Debord a moderna sociedade burguesa, peladestruição das antigas formas de produção social e os modosde vida nelas existentes, é a possibilidade material – nela,contudo, irrealizável – do uso do tempo histórico. Assim comopara Baudelaire, os dadaístas e os surrealistas, a experiênciaprimeira das reflexões sobre a sociedade moderna é para Deborda presença da efemeridade, da finitude e da mortalidade detodas as coisas, presença que progressivamente se defrontacom a crescente racionalização repressiva da ordem social. Aodestruir as anteriores bases materiais de produção pré-

empenhada”. Essa concepção da existência não é apenas um traçoidiossincrático da personalidade de Debord, mas uma inteira visão do mundoque explica sua relação com esses pensadores: “O mundo da guerraapresenta pelo menos essa vantagem de não deixar lugar para astagarelices idiotas do otimismo. Sabe-se bem, no fim todos vão morrer.Por mais bela que seja a defesa em todo o resto, como aproximadamentese expressa Pascal, ‘o último ato é sangrento’” (G. Debord, Panégyrique I[1989]. Paris: Gallimard, 1993, p. 77).

11. “Como é meu intento”, diz ele, retomando uma idéia tão cara a Tucídides(Guerra do Peloponeso, I, 22), “escrever coisas úteis para os que seinteressam, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade efeitual[verità effetuale] das coisas, ao invés de imaginações delas [imaginazione

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capitalistas, fundamentalmente agrícolas, ligadas às estaçõesda natureza e organizadas numa experiência cíclica do tempo, asociedade moderna cria as condições – das quais recusa o uso– para uma vida humana plenamente “histórica”, uma vida situadanum tempo que é sabido e experimentado como passageiro,irreversível e linear.12

Na experiência moderna, Debord encontra condiçõesmateriais da existência social em direta oposição à forma socialsob a qual os homens delas fazem uso. As amplas possibilidadesda vida histórica encontradas nos poderes materiais da sociedademoderna, possibilidades constituídas pela sua natureza“destrutiva” dos antigos modos não-históricos de vida,permanecem, sob as atuais relações sociais, “inconscientes”,“recalcadas” e, portanto, não trazidas à luz da práxis e daconsciência históricas. Justamente porque o desenvolvimentodas forças produtivas modernas é uma consideração fundamentalao seu projeto de uma “participação imediata em uma abundânciapassional da vida”, como experiência radical de uma “vidahistórica”, a sua crítica da sociedade produtora de mercadoriasnão se dá em nome dos “valores do passado” (como supõe Löwy)ou de uma indeterminada “sociedade de valores de uso”, comtodo o risco que uma tal concepção carrega de arcaísmo e depassadismo. Uma “construção experimental da vida cotidiana”,enquanto “liberdade no emprego do tempo”, não é possível,

di essa]”. (N. Machiavelli, “O príncipe”, em Maquiavel. Col. Os Pensadores.Tr. br. Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 61, trad. lev.modificada; “Il principe”, em Tutte le opere storiche, politiche e letterarie.A cura di Alessandro Capata. Roma: Grandi Tascabili Economici Newton,1998, p. 33).

12. Conceber que o tempo seja linear não implica, apesar das relaçõescategoriais entre o tempo e a história, que esta também o seja. A linearidadedo tempo expressa no pensamento de Debord, antes de tudo, a assunçãoda efemeridade da existência humana como fundamento metafísico desua concepção de história e de sociedade. Em termos benjaminianos, otempo linear não é, para Debord, vazio e homogêneo, bem pelo contrário.É porque o tempo é linear – como passagem de tudo que nele se cria e

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segundo diz, “sem a posse dos instrumentos modernos deconstrução da vida cotidiana”.13

Conforme as análises que Debord apresenta em Asociedade do espetáculo, a economia mercantil-capitalista fundaum “tempo profundamente histórico”, enquanto um “tempoirreversível da economia”. Por seu conteúdo técnico-industriale sua forma social burguesa, na qual a auto-expansão do capitalé essencial ao seu movimento de autovalorização, a sociedademoderna se caracteriza por um movimento contínuo de destruiçãodas antigas formas de vida ligadas às formações econômicaspré-capitalistas, bem como das suas formas históricas deexperimentação e representação do tempo. Agora, diz ele, “Tudoo que era absoluto torna-se histórico” (SdS, § 73). Se, numageneralização histórica, as sociedades pré-modernasexperimentam e representam ciclicamente o tempo, isto se deveàs próprias determinações econômico-sociais –fundamentalmente, a predominância do trabalho agrícola –,determinações que, ligadas à terra e às estações da natureza,limitam, para a grande maioria da sociedade, as possibilidadesde uma experiência com o tempo que não nas formas da repetiçãoritual e ancestral. Mas esta liberação da experiência temporaldas formas cíclicas, ao se realizar precisamente sob a forma dotempo irreversível da economia mercantil, se traduz como“tempo das coisas”, “tempo reificado”, do qual nem mesmo asatuais classes dominantes, cons tituídas pelos administradoresda economia, estão livres.

morre – que a história é lugar permanente de criação, de invenção e depossibilidades. Como indicado na introdução e mais bem discutido no 4ºcapítulo, as contradições do presente reabrem constantemente, paraDebord, o passado. A posição negativa em face do presente, posiçãofundada nas próprias contradições sociais, é também o ponto de partida dacrítica benjaminiana à concepção do “tempo homogêneo e vazio”, comopenso ter demonstrado no artigo Imagem onírica e imagem dialética emWalter Benjamin (em Kalagatos, Revista de Filosofia do MestradoAcadêmico em Filosofia da UECE, Vol. 1, nº 2, Fortaleza, Editora da UECE,2004, pp. 45-72).

13. G. Debord, “Thèses sur la révolution culturelle”, em InternationaleSituationniste”, nº 1, junho, 1958, pp. 20-21.

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No capitalismo avançado, a abstração própria à produçãodo valor econômico – cuja substância, no dizer de Marx, é otempo de trabalho social objetivado, tempo de trabalho abstrato,portanto, quantificável – dá forma à experiência social do conjuntodo “tempo vivido”. A linearidade, que a produção capitalistamoderna libera da antiga experiência cíclica do tempo, nãoassume a forma da concretude e da qualidade, a concretude e aqualidade que um tempo histórico emancipado da repetição rituale dos ciclos das estações possibilitaria. Ao contrário, a atualexperiência social do tempo assume a forma do movimento docapital, ele mesmo abstrato e “cíclico”. A sociedade modernafunda um tempo “profundamente histórico”, pois não é maisuma sociedade da tradição, da permanência, mas, nas condiçõesdo capitalismo avançado, nega-o enquanto experiência imediatade vida dos indivíduos, mantendo-o recalcado – numa perversarealização histórica da metafísica – em suas “profundezas”: “Ahistória, que está presente em toda a profundidade da sociedade,tende a se perder na superfície” (SdS, § 142). É esta experiênciaimediata, esta “superfície”, que Debord – em virtude daimportância que em seu pensamento assume a categoria de vidacotidiana – chama de temps vécu, “tempo vivido”.

O tempo linear e irreversível, agora possibilitado masobstaculizado como tempo vivido pelos indivíduos, é para Debordo inverso do tempo abstrato da produção mercantil em suaimediatidade cotidiana. Este, ao contrário, se lhe apresenta como“a abstração do tempo irreversível, do qual todos os elementosdevem provar pelo cronômetro sua mesma igualdadequantitativa” (SdS, § 147), com o que, então, a vida cotidiana ésubmetida ao domínio da abstração quantitativa e quantificável.O tempo abstrato de valorização e realização da mercadoria –tempo da produção, tempo do consumo, tempo do trabalho, tempodo lazer – se materializa, na vida cotidiana, na forma de “unidadeshomogêneas intercambiáveis” que, ao organizarem aquela mesmacotidianidade sob tal lógica abstrata e mutuamente reversível,repõem uma experiência “pseudocíclica” (pseudo-cyclique) com

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o tempo, experiência esta, contudo, que se apóia sobre as novase bem distintas formas modernas de produção social.

No tempo vivido do capitalismo avançado, há algo decíclico, pois, submetidas à lógica da produção e do consumomercantis, as unidades de tempo – este mesmo abstrato equantitativo – do trabalho são intercambiáveis, trocáveis comos usos do mesmo modo abstratos e quantitativos do tempo dolazer: abstratas e quantitativas todas, as porções de tempousadas são equivalentes entre si. Fraturado em coágulos fixos,isolados e intercambiáveis, o tempo perde a qualidade e aconcretude possíveis, e toda a experiência com ele é a de umaigualdade quantitativa que se repete ciclicamente. Mas não setrata, efetivamente, de uma experiência temporal cíclica, poissua base é a economia industrial-capitalista moderna que,formalmente cíclica como movimento do capital e imediatamentevivida como cíclica no cotidiano e no inteiro percurso das vidasdos indivíduos, é, contudo, uma economia histórica no precisosentido de que se move sobre uma forma de produção cujotempo é irreversível e linear.14

Do mesmo modo, o retorno temporal que na superfície dasociedade se move ciclicamente, consubstanciado pelasrepetitivas exigências da produção e do consumo capitalistas,se apresenta, para Debord, não como um “eterno retorno domesmo”, mas como um “retorno ampliado do mesmo” (retourélargi du même). É um retorno ampliado exatamente porque háum desenvolvimento linear da produção capitalista, manifestode modo reificado na ampliação e no aumento quantitativos das

14. Para Debord, a concepção da experiência capitalista como tempopseudocíclico, e não como “neocíclico”, era-lhe essencial comopossibilidade historicamente constituída de um projeto de superação daatual ordem social na perspectiva do que ele chamava “história total”(histoire totale). O tempo neocíclico só seria sustentável num mundocapitalista que superasse todo o desenvolvimento desigual e em que aprodução e o consumo coincidissem plenamente. O tempo neocíclico,portanto, só seria possível num mundo que realizasse a reificação total ede modo não contraditório. (Cf. especialmente carta a Mustapha Khayati,

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mercadorias, e que, na superfície do consumo, reitera o retornodo mesmo – da mesma forma-mercadoria, ainda que sobre outrosvalores de uso – cuja mesmidade é já dada na produção, nalógica cíclica do próprio salariato, dos gestos mecânicos erepetitivos do trabalho. Se o retorno do mesmo se reapresentana sociedade moderna, e precisamente sob forma ampliada, istoocorre em razão do domínio, na própria produção, do presente(“trabalho vivo”, no dizer de Marx) pelo passado (“trabalhomorto”, capital). Deste modo, algo de mítico, com todo o seuarcaísmo, é formal e efetivamente reintroduzido na experiênciamoderna e a compõe essencialmente, opondo-se ao (eobstaculizando o) “histórico” como forma imediata de vida dosindivíduos.

Para Debord, esta não é contudo uma contraposiçãológico-conceitual entre a base e a superfície da sociedademoderna, mas, antes, uma experiência cotidiana experimentadacomo contraditória pelos indivíduos. A subsunção da experiênciaimediata dos indivíduos na homogeneidade vazia – pois abstratae quantitativa – do tempo na sociedade espetacular esvazia estamesma experiência da possibilidade de constituição de sentidospróprios, de razões de viver emancipadas das exigências daracionalidade da mercadoria. No capitalismo da “abundânciamercantil”, encontra-se interditada a realização daspossibil idades da expressão concreta, inseparável dacomunicação e da atividade, possibilidades estas constituídasmodernamente pela emancipação da tradição e pelos “poderesmateriais da época”. Os gestos repetitivos do trabalho e doconsumo, o esvaziamento da comunicação tanto nas relaçõesimediatas quanto genéricas, graças à transformação da quaseinteira vida cotidiana em lugar da produção e da realização

08.10.1965, em G. Debord, Correspondance, vol. 3, p. 69). Em A sociedadedo espetáculo, ele identifica o eterno retorno do mesmo apenas nas maisantigas sociedades agrícolas, cujo cotidiano – se é que seja teoricamentelícito falar em cotidianidade nas sociedades pré-modernas – é marcadopor uma relação ritualística com o ancestral.

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abstratas da mercadoria, compõem o que Debord chama de “criseda vida cotidiana”, da mesma vida cotidiana que a destruição datradição, das antigas condições materiais de existência e daunidade casa-trabalho-culto fez surgir.

“‘A vida privada é privada de que?’”, pergunta-se ele.“Antes de tudo, da vida, que dela está cruelmente ausente. Aspessoas estão, tanto quanto é possível, privadas de comunicaçãoe de realização de si mesmas. Precisaria dizer: de fazer suaprópria história, pessoalmente”.15 Rejeitando qualquer idéia deuma reificação total, Debord registra experiências individuais –o réellement vécu – sem relação direta com o tempo irreversívelda economia e mesmo em oposição ao consumo pseudocíclicodo tempo no capitalismo espetacular. Nestes casos, constituem-se experiências que permanecem “clandestinas”, sem linguagem,sem comunicação e, portanto, sem memória e sem história. Orealmente vivido “é incompreendido e esquecido em proveitoda falsa memória espetacular do não-memorável” (SdS, § 157).A vida individual permanece assim sem história, do mesmo modoque a descoberta pelo pensamento burguês de uma “históriauniversal” já havia, nas diversas filosofias da história, sacrificadoo indivíduo; e permanecem assim porque é a história mesmaque, em sua imediatidade vivida, é socialmente recusada.

Se, nas atuais relações espetaculares, a “históriauniversal” é efetiva, consciente e oficialmente admitida em sualinearidade e irreversibilidade (e assim o é como expressãoreificada de um tempo linear e irreversível da economia), noentanto, em virtude do domínio desta mesma economia e dadosos imperativos práticos que este domínio implica, ela é negadaaos indivíduos na forma da livre efetivação e livre comunicaçãode suas experiências imediatas. O isolamento mútuo dosindivíduos enquanto portadores de mercadorias, isolamento já

15. G. Debord, “Perspectives de modifications conscientes dans la viequotidienne”, em Internationale Situationniste, nº 6, agosto, 1961, p. 24.

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identificado por Marx como uma relação entre “egoístas” e como“alienação com relação ao gênero”, é aqui retomado por Debord,com base na centralidade da atividade práxica e da linguagem,como isolamento e solidão até mesmo daquele que se furta àexperiência social do tempo reificado. Isolamento e solidão, nestecaso, na forma de uma incomunicabilidade dos usos clandestinosdo tempo irreversível no interior de uma linguagem social quedesconhece qualquer semelhante uso prático e ativo do tempovivido e como contraface de uma forma de sociabilidade cujaúnica possibilidade de “relações genéricas” reside nas relaçõesde compra e venda, relações que, nucleadas na objetividadereificada do valor, são elas mesmas resistentes a todacomunicação.

Na interdição, imposta aos indivíduos, da atividade, dalinguagem e da comunicação do “realmente vivido” e cujofundamento é a própria expropriação econômico-quantitativado tempo e da atividade autônoma no capitalismo contemporâneo,Debord compreende uma verdadeira expropriação da história eda memória. Esta é uma expropriação das possibilidades mesmasda expressão prática dos indivíduos como realização, comoprodução de sua própria história e comunicação do realmentevivido, expropriação enfim pela qual a sociedade espetacularse denuncia justamente “como organização social presente daparalisia da história e da memória” (SdS, § 158).

É porque a experiência cotidiana é aquela do movimentopseudocíclico – em que a vida inteira se subsume nos gestosrepetitivos e, em sua extensão, nos sucessivos ritos de iniciação– que ela não é existencialmente experimentada nemconsciencialmente representada como passagem de um tempoirreversível. Nela, não há o que efetivamente, qualitativamentelembrar, pois tudo parece e é reposto e retornado; e quandotudo é reposto e retornado, não há o que realizar ou o quepossa, com a realização, ter fim. Em última análise, a experiênciapseudocíclica do capitalismo espetacular, embora erguida sobrea base do tempo histórico, constitui o que Debord chama de

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“falsa consciência do tempo” (fausse conscience du temps) quedissolve a própria representação da morte; e o faz porque, antes,já dissolve a noção da vida, do tempo finito de vida, como lugarda atividade, da realização de desejos e planos. “Imobilizada nocentro falsificado do movimento do seu mundo”, diz Debord, “aconsciência espectadora já não conhece na sua vida umapassagem para sua realização e para sua morte. Quem renuncioua dépenser sua vida, não deve mais reconhecer sua morte. [...]Esta ausência social da morte é idêntica à ausência social davida” (SdS, § 160).

Fundamental a esta análise de Debord é que, segundoele, a paralisia da memória e da consciência históricas nasociedade contemporânea ocorre graças à paralisia prática dahistória. A racionalidade abstrata própria da economia mercantil,com seu tempo abstrato e quantitativo, organiza a vida cotidianade tal forma que, ao impedir a atividade do indivíduo, fazendo-o “espectador” de sua própria vida, impede-o também dedeparar-se com a ameaça do esquecimento ou com a importânciado memorável . Esquecer e lembrar são, na sociedadeespetacular-mercantil, funções das imagens produzidas epermitidas “socialmente” pela racionalidade econômica e estatal;e isto ocorre porque, antes, a experiência temporal mesma sedesenvolve apenas como “tempo de consumo das imagens” e“imagem do consumo do tempo”, mas não como uso efetivo equalitativo do tempo efetivo e qualitativo (isto é, “histórico”).Aos indivíduos – que, assim, se constituem em espectadores –não cabe a assunção de sua “época”, porque não lhes cabe a deseu “tempo”; não lhes cabe, do mesmo modo, a sua memóriacoletiva ou individual, porque, antes, não lhes cabem a realizaçãoe a comunicação.

1.3 A natureza arcaico-moderna do “espetáculo”

Nas discussões sobre o tempo e sobre o espaço, presentesnos capítulos V, VI e VII de A sociedade do espetáculo, Debord

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demonstra duas formas essenciais nas quais se produz umretesamento disciplinar e repressivo que é especificamentemoderno e, no entanto, também arcaico. Esta é, contudo, umadeterminação mais central à sua concepção crítica do capitalismoavançado como um todo: “O mais moderno é aí também o maisarcaico” (SdS, § 23). Esta determinação regressiva se devejustamente à constatação da afirmação cotidiana, imediatamentefenomênica, da lógica abstrata da forma-mercadoria. Omovimento fetichista do valor, ao estender-se à totalidade davida cotidiana, impõe-lhe uma fixidez, um sentido permanentede organização da vida social, de onde tudo provém e para ondetudo retorna, algo semelhante – mas não idêntico – ao que ocorrianas sociedades pré-capitalistas com relação aos valores arcaicostradicionais.

Se o fascismo é, para Debord, “o arcaísmo tecnicamenteequipado”, um “Ersatz decomposto do mito”, é esta mesma formamoderna do mítico-arcaico que “é retomada no contextoespetacular dos meios de condicionamento e de ilusões maismodernos” (SdS, § 109). Assim como o tempo agora socialmenteexperimentado não se constitui num “eterno retorno do mesmo”,mas num “retorno ampliado do mesmo”, não num tempo “cíclico”,mas “pseudocíclico”; e assim como a cidade não regride aocampo, mas se torna um “pseudocampo”, do mesmo modo oarcaísmo que retorna no capitalismo avançado se apresenta como“pseudovalores arcaicos” (pseudo-valeurs archaïques) e o mito,como um “Ersatz decomposto”. Segundo Debord, no capitalismoespetacular se encontra a reintrodução formal e aparente demodos de experiência tradicionais, pré-modernos na própriaexperiência social moderna; uma reintrodução que é justamenteformal e aparente, pois é determinada sobre novas baseshistóricas, mas nem por isso menos concreta e real.

Sob o conceito de espetáculo, momento da economiacapitalista em que a mercadoria teria atingido a “ocupação totalda vida cotidiana”, Debord diz buscar unificar e explicar uma

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diversidade de “fenômenos aparentes”, que são, eles mesmos,“as aparências desta aparência organizada socialmente” (SdS,§ 10). O que isto significa? Esta questão interroga sobre algofundamental ao seu conceito de espetáculo.

A primeira coisa a observar é que a ocorrência aqui doconceito de aparência não remete, num primeiro momento, àaparência visível, sensível, mas antes à categoria – deprocedência hegeliana – de aparência (Schein, Erscheinung), naqual Marx situa, nos primeiros capítulos de O capital, as trocasde equivalentes. Já nesta instância aparente, Marx vê manifestar-se uma objetividade fetichista que, nucleada na lei do valor,escapa ao controle dos homens e se lhes impõe como “umarelação entre coisas”. De modo expresso, Marx concebe estecaráter fetichista da mercadoria determinado não por sua“natureza física” ou pelas “relações materiais” presentes nointercâmbio prático entre os indivíduos durante sua produção,mas exclusivamente pela forma social deste mesmo intercâmbio,enquanto intercâmbio mercantil; portanto, concernente à“aparência objetiva das determinações sociais do trabalho”.16 Éesta “aparência objetiva” do intercâmbio mercantil que seconstitui numa “objetividade fantasmagórica”, pois se apresentaaos homens como uma relação “natural”, constitutiva daspróprias coisas, quando é somente uma determinação históricada forma de suas próprias relações sociais. Contudo, trata-sede uma “aparência” necessária, pois constitutiva da lei do valorque per se se apresenta na objetividade e necessidade de uma“lei natural”.

Segundo Debord, é esta “aparência socialmenteorganizada” que, estendendo sua lógica ao conjunto dasatividades e relações cotidianas, no capitalismo desenvolvido,produz e organiza as “aparências”, os “fenômenos aparentes”

16. K. Marx, O capital, t. I/1. Tr. br. R. Barbosa e F. R. Kothe. São Paulo: NovaCultural, 1985, p. 71.

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imediatamente presentes na experiência social dos indivíduos.A “aparência objetiva” do intercâmbio mercantil, da qual Marxafirma categoricamente a autonomia e a independência em faceda “natureza física” e das “relações materiais” da produção devalores de uso, torna-se agora, ela mesma, fisicamente aparente,sensivelmente visível; torna-se uma “aparência socialmenteorganizada” que se manifesta, no capitalismo espetacular, emfenômenos “aparentes”, “visíveis”. Graças à extensão dasrelações mercantis à totalidade da vida cotidiana, a autonomiada aparência das trocas fetichistas de valores passa a constituirsoberanamente, submetido à sua lógica abstrata, um conjuntode fenômenos aparentes que, deste modo, se tornam, elespróprios, também autônomos frente aos indivíduos.

N’O capital, Marx se refere à mercadoria como uma “coisafisicamente metafísica”; ou, como diz a tradução francesa queDebord tem sob os olhos, “coisas supra-sensíveis ainda quesensíveis”. Em sua análise do capitalismo contemporâneo,Debord observa um movimento de “volta” desta abstraçãoconstituidora do valor econômico em direção ao sensível,movimento pelo qual, contudo, este não é restituído em suaautonomia material, mas, rigorosamente ao contrário, écompletamente subsumido à abstração do valor.17 O valor detroca, tendo chegado a um tal nível de autonomia, pelosuperacúmulo de capital e pela extensão de sua lógica ao conjuntodo espaço-tempo vivido, pode apresentar-se na imediatidadeda totalidade dos valores de uso; e de tal modo que a sua lógica

17. Trata-se aqui, segundo G. Agamben, de uma compreensão da relaçãoreflexiva essencial à mercadoria entre “transparência” e “fantasmagoria”,através da qual o capital oculta seu “reino encantado”, “expondo-o àplena vista”. É precisamente ao colocar-se de modo transparente,imediatamente visível, que o caráter fetichista da mercadoria, segundoAgamben, se mantém oculto na totalidade dos fenômenos do períodoespetacular do capitalismo. (G. Agamben, “Glosse in Margini ai Commentarisulla società dello spetacollo” [1990], em Mezzi senza fine. Note sullapolitica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996, p. 61).

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abstrata não apenas se torna visível, mas é também a únicacoisa que se faz ver.

A autonomização dos fenômenos aparentes da abstraçãodo valor econômico é nomeada por Debord como “mundo daimagem autonomizado” (SdS, § 2). Contudo, não se trata – comojulga criticamente Mario Perniola – de “uma atitude iconoclastaque considera com suspeição as formas sensíveis”. 18 Oespetáculo não seria, diz Debord, “um conjunto de imagens,mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”(SdS, § 4). No seu uso do conceito de “imagem”, Debord não fazuma referência estrita à “visão” sensível, mas antes a um “modode produção”, do qual o espetáculo seria, não um “suplemento”,uma “decoração acrescentada” – ou se quisermos, uma“superestrutura” – mas “a afirmação onipresente da escolha jáfeita na produção e sua consumação corolária” (SdS, § 6). O queDebord tem em vista sob o conceito de “imagem” são justamenteas relações sociais fetichistas, fundadas na autonomização dovalor e estendidas à totalidade do uso social do tempo, do espaço,para além do trabalho assalariado, mas essencialmenteobedecendo à sua lógica disciplinar e contemplativa.

Portanto, se ele pode falar do espetáculo como constituídona produção, como “modo de produção”, é precisamente porquejulga que, “com a separação generalizada do trabalhador e deseu produto, perdem-se todo ponto de vista unitário da atividaderealizada, toda comunicação direta entre os produtores [...] aatividade e a comunicação se tornam o atributo exclusivo dadireção do sistema” (SdS, § 26). Em outras palavras, o conceitode espetáculo não diz respeito ao “simples olhar”, mas sim “é oque escapa à atividade dos homens, à reconsideração e àcorreção de sua obra. É o contrário do diálogo” (SdS, § 18).

Se se tem em vista estas duas últimas passagens citadas,compreende-se que, sob o conceito de espetáculo, Debord busca

18. M. Perniola, A estética do século XX [1997]. Tr. port. A. Cardoso. Lisboa:Editorial Estampa, 1998, p. 82.

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ess encialmente articular duas fundamentais dimensõesconstitutivas da aparência social, num momento em que a forma-mercadoria se estendeu ao conjunto do vivido: a expropriaçãoda atividade autônoma, inseparável da expropriação da linguagemcomunicativa. Neste sentido, sua reflexão sobre aparência socialno capitalismo mais desenvolvido não considera apenas avisibil idade do produto mercantil , sua “estética”, sua“aparência”.19 Tampouco a tendência – realmente existente –da produção cultural tardocapitalista em se voltar para produtos“visíveis”, centrado na “imagem” e na “visão” ocular.20 Estesfenômenos são antes determinados por (e constitutivos de) umaexperiência mais fundamental: a extensão – junto com a daforma-mercadoria – da lógica disciplinar, contemplativa e passivado trabalho assalariado à totalidade da vida cotidiana.

Estes conceitos de passividade e contemplação merecemuma melhor explicitação. Para Debord, a extensão horizontaldas trocas de equivalentes (a “aparência” do metabolismo docapital, no sentido de Marx) traz à “superfície” da vida social,impondo-se-lhe como forma determinante imediata, acontemplação essencial ao trabalho assalariado, que, de todomodo, está na base desta mesma universalização da forma-mercadoria dos produtos do trabalho. Ter em conta esta relaçãoentre o trabalho assalariado e o espetáculo é importante, poisela responde à crítica freqüente de que esta última categoriaestaria limitada à esfera da circulação de mercadorias e não

19. Esta é somente uma determinação – cf. § 15 de A sociedade do espetáculo– deste movimento mais amplo de dominação do vivido pela reificaçãofetichista do valor. Em sua unilateralidade, como crítica da sedução estéticada aparência dos produtos, esta determinação foi – cinco anos após apublicação do livro do Debord – discutida por W. Hauer, em Crítica daestética da mercadoria (1972).

20. Como salienta, de modo simpático mas unilateral, F. Jameson (A culturado dinheiro, ensaios sobre a globalização. Tr. br. M. E. Cevasco e M. C. P.Soares. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, especialmente pp. 87 ss e 114 ss).

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concerniria à produção do capital.21 Contudo, deve-se lembrarque, para Marx, “só a partir desse instante [em que a força detrabalho assume, para o próprio trabalhador, a forma de umamercadoria] se universaliza a forma mercadoria dos produtosdo trabalho”.22 Esta universalização não está separada, portanto,daquilo mesmo que caracteriza a produção capitalista enquantoprodução de mais-valor: a generalização do trabalho assalariado.

Em sua concepção crítica do espetáculo, na qual sãocentrais as transformações sofridas pela aparência social, Debordtem em conta justamente esta determinação. A extensão dastrocas mercantis funda uma transformação – ou, se se quiser,um ajuste – na aparência social, com a emergência de um conjuntototalitário de fenômenos que produzem e exigem, já naimediatidade do vivido, a passividade contemplativa própria aotrabalho assalariado. Sua consideração sobre a aparência socialnão se restringe à troca de equivalentes, mas busca pensar asexperiências sociais imediatas dos indivíduos numa situaçãohistórica na qual o intercâmbio mercantil se mostra, na totalidadeextensiva dos seus mais diversos fenômenos, tão hierárquicoquanto a própria produção mercantil fundada no salariato. Emoutras palavras: a instância das trocas iguais, quesimultaneamente viabiliza e oculta a produção da mais-valia eas contradições que se desenvolvem progressivamente com basena relação negativa entre valor de uso e valor na forma elementarda mercadoria, passa a manifestar de modo aparente acontemplação que, no trabalho assalariado industrial, é essencialà própria produção do valor.

21. Sobre esta crítica, cf. entre outros, G. Dauvé, “Kritik der SituationistischenInternationale”, em R. Ohrt (Hg.), Das grosse Spiel. Die Situationistenzwischen Politik und Kunst. Hamburg: Nautilus, 1999; D. Blanc,L’Internazionale situazionista e il suo tempo. Milano: Colibri, 1998; “ZurKraft der situationistischen Kritik und ihrer Rezeption in Deutschland”,aparecido em Wildcat-Zirkular, Nº 62, fev/2002, pp. 32-36, http://www.wildcat-www.de/zirkular/62/z62situa.htm.

22. K. Marx, O capital, I, p. 141, n. 41. Entre colchetes, uma passagem dopróprio Marx imediatamente anterior a esta que compõe a parte principalda citação.

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A “contemplação” – categoria que, na filosofia jovem-hegeliana, é compreendida como inerente ao idealismo filosóficoe à qual o jovem Marx contrapõe a atividade práxica – é tomadapor Debord como uma forma de relação social própria a estemomento extensivo da relação mercantil. Spectacle é uma palavrafrancesa que vem do spectare e do speculare latinos, verbosque remetem às noções de contemplação, observação, deacompanhamento passivo de algo exterior pela visão. Estesverbos estão também na raiz de speculatio , spéculation,Spekulation, concepção filosófica que L. Feuerbach caracterizacriticamente como uma inversão idealista entre sujeito epredicado, inversão esta que, já nas reflexões do jovem Marx,aparece como forma filosófica positivadora da alienação.23 Como“especulação” materializada, fundada na “contemplação”, “oespetáculo”, segundo Debord, “filosofica a realidade”, sendo,nisto mesmo, “o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosóficoocidental que foi uma compreensão da atividade, dominada pelascategorias do ver [...] É a vida concreta de todos que se degradouem universo especulativo” (SdS, § 19).

Trata-se de uma inversão especulativa entre o sensívele o supra-sensível que, na análise do jovem Marx retomada porDebord, ganha forma histórica concreta no domínio do valorsobre o valor de uso, domínio cuja base última é justamente ainversão entre o produtor e seu produto operada pelo trabalhoalienado. Para Debord, o capitalismo mais desenvolvidoapresenta de modo imediato, fenomênico e aparente a lógica daabstração supra-sensível do valor econômico, impondo uma

23. Cf. L. Feuerbach, Princípios da filosofia do futuro. Tr. port. Artur Morão.Lisboa: Edições 70, 2002; K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos.Tr. br. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. Pelo que indicaa epígrafe do Capítulo II de A sociedade do espetáculo, esta relação ésugerida a Debord também pelas análises de G. Lukács em História econsciência de classe, no célebre ensaio sobre a reificação. A. Jappe fazuma exaustiva aproximação entre estes dois textos no primeiro capítulode seu Guy Debord (edição citada, pp. 37-51).

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inversão entre sensível e supra-sensível que, desde sempre,fora imanente ao fetichismo da forma-mercadoria. Disto decorreque, no centro de sua crítica social, se encontra a sugestão deque a categoria do fetichismo do valor, sendo uma “abstraçãoreal”, cheia de “manhas teológicas” e “argúcias metafísicas”(como diz Marx), se apresenta como “sensível”. Não se trata,portanto, de uma denúncia do sensível em nome de uma realidadeverdadeira supra-sensível, mas, rigorosamente ao contrário, édenúncia da dominação da abstração do valor econômico sobreo “sensível”; é a compreensão crítica de que, nas condições docapitalismo avançado, a lógica supra-sensível do valor tornou-se imediata, imajada, transformando o próprio “sensível” emalgo do mesmo modo “abstrato” (tal como ocorre na quantificaçãodo tempo, na banal ização do espaço, no consumo demercadorias...). Como “imagem” que se impõe para ser “vista”e “contemplada”, o automovimento do capital se constitui emexperiência da passividade na imediatidade da totalidade dovivido.

Uma segunda dimensão inseparável desta primeira éaquela que diz respeito à linguagem, pensada como linguagemcomunicativa. Sob este ponto de vista, justamente no qual seposiciona a discussão realizada no presente livro, não se tratade separar, muito menos de opor, como faz A. Jappe, à“importância atribuída [por Debord] à ‘comunicação’”, umasuposta “grande novidade efetiva da [sua] teoria [...] [que]decorre [...] de sua referência ao papel fundamental da troca edo princípio de equivalência na sociedade contemporânea”.24

Ora, se a alienação da atividade se revela, no capitalismo tardio,como essencialmente o “contrário do diálogo” é precisamenteporque, segundo Debord, a expropriação da atividade produtiva

24. A. Jappe, Guy Debord, p. 189. Em História e consciência de classe, obra àqual Jappe relaciona com razão A sociedade do espetáculo, já está presenteeste nexo entre a contemplação prática e a expropriação da comunicação,nexo ao qual, contudo, Jappe parece não ter dado a devida importância.

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no capitalismo pressupõe a – e resulta necessariamente na –perda da comunicação direta entre os produtores. A expropriaçãoda atividade autônoma no trabalho e a expropriação da linguagemcomunicativa são duas determinações que se refletemreciprocamente. Se a contemplação filosófica, a qual Debord –seguindo Marx – toma como análoga à contemplação dapassividade mercantil, foi sempre uma compreensão da atividadehumana sob a categoria do “ver”, ela não foi menos umaconcepção da linguagem como auxiliar e instrumento dopensamento abstrato. Também este aspecto é central à“filosofação da realidade” pelo espetáculo. Como tematizadapor toda a poesia moderna francesa, de Mallarmé a Breton, aexperiência “lingüística” na sociedade moderna é – como serádiscutido nos próximos dois capítulos – a de uma instrumentação.Com base na moderna experiência poética francesa e na críticada economia política, Debord apresenta uma crítica teórica docapitalismo desenvolvido – ex professo, esta seria sua“novidade” – na qual se encontram articuladas, de modoinseparável, a passividade mercantil e a instrumentação reificadada linguagem.25

25. Este gesto é ressaltado por G. Agamben ao considerar que o fundamentalà teoria crítica do espetáculo é que, nela, “a análise marxiana vai integradano sentido de que o capitalismo [...] não era voltado só à expropriaçãoda atividade produtiva, mas também e sobretudo à alienação da próprialinguagem, da própria natureza lingüística ou comunicativa do homem”(G. Agamben, “Violenza e speranza nell’ultimo spettacolo”, em G.Agamben et al., I situazionisti.Roma: Manifestolibri, 1991, pp. 14-15).Neste mesmo horizonte de análise, P. Virno acentua que, sob a categoriade espetáculo, o que está em questão é um modo de produção, no qual “acomunicação humana tornou-se mercadoria”. Daí que, segundo aindaVirno, a interpenetração entre trabalho assalariado e expropriação dacomunicação humana expresse, no pensamento de Debord, a exigênciade que a crítica do capitalismo deva comportar a crítica da concepçãoinstrumental da linguagem, de modo que a “abolição do trabalhoassalariado” se constitui também, de modo essencial, em “liberdade dalinguagem” (P. Virno, “Cultura e produzione sul palcoscenico”, em G.Agamben et al. I situazionisti, pp. 19-26).

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Estas duas dimensões concernentes, de modo inseparável,à aparência social – a passividade contemplativa e a expropriaçãoda linguagem comunicativa – se encontram de modo essencialcom a característica “arcaica” e regressiva da sociabilidadetardocapitalista, fundada na extensão da lógica do trabalhoassalariado e da forma-mercadoria à totalidade do vivido. Aformulação deste encontro é efetuada por Debord ao trazer ateoria psicanalítica para o interior de sua reflexão social. Em Asociedade do espetáculo, Debord estabelece uma analogia –retomada em diversos momentos deste livro e em outros textos– entre a experiência social do capitalismo mais desenvolvido eo sonho do indivíduo, no qual Freud indica tanto uma regressãoda faculdade “lingüístico”-comunicativa dos homens quanto umnão-acesso à atividade, à “motilidade”, graças ao caráterimagético e alucinatório das “vivências infantis” (infantileErlebnisse) que ali retornam.26 Esta apropriação da psicanáliseé um momento fundamental da crítica social elaborada porDebord. Num dos seus primeiros textos, ele já afirma sernecessário “ter em vista um tipo de psicanálise para finssituacionistas”. Mantendo uma posição polêmica com osurrealismo, ele se propõe a uma outra relação com a psicanálisecom vistas ao “esclarecimento de desejos primitivos” e,considerando as novas condições materiais da sociedade, a“achar desejos precisos de ambientes para realizá-los, aoencontro dos objetivos perseguidos pelas correntes saídas dofreudismo”. 27 Neste momento, sua referência é ainda ofreudomarxismo (“as correntes saídas do freudismo”), mas jádemonstra a leitura da psicanálise e a inclusão de determinadas

26. S. Freud, A interpretação dos sonhos. Obras psicológicas completas deFreud, vol. V. Tr. br. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987,pp. 500; Die Traumdeutung. Sigmund Freud Studienausgabe, Band II.Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1972, pp. 521-522 ss. Trata-seaqui de todo o tópico “A regressão” (Die Regression), do capítulo VIIdesta obra.

27. “Problèmes préliminaires à la construction d’une situation”, emInternationale Situationniste nº 1, junho de 1958, p. 11.

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conclusões da pesquisa psicanalítica em sua própria reflexãoestética e na crítica do surrealismo (a qual será mais bemdiscutida no segundo capítulo).

No período em que redige A sociedade do espetáculo,Debord estabelece uma interlocução mais positiva com apsicanálise freudiana. Segundo avalia, as descobertas dapsicanálise, “como o pensava Freud”, são inaceitáveis para asociedade dominante, já que esta é fundada numa hierarquiarepressiva. No entanto, o próprio Freud teria mantido umaposição “centrista” ao afirmar – o que sem dúvida é inteiramentequestionável – uma “identificação absoluta e supratemporal entrea ‘civilização’ e a repressão por uma exploração do trabalho”.28

Com base nisso, o que há de verdadeiro na psicanálise, sua“verdade crítica parcial”, teria sido conduzida para o interiorde um “sistema global não-criticado”. Esta postura centrista econciliatória de Freud, finalmente, levou “a psicanálise a seroficialmente ‘reconhecida’ [...] contudo, sem ser aceita em suaverdade: seu uso crítico possível”.29 Qual seria, então, este “usocrítico possível”? Para Debord, “as descobertas da psicanálisesão um reforço – ainda não empregado graças a evidentesmotivos sociopolíticos – para a crítica racional do mundo: apsicanálise cerca [traque, persegue, acossa], o maisprofundamente, a inconsciência, sua miséria e suas miseráveisinstâncias repressivas, que somente extraem sua força e seuaparato mágico de uma bem vulgar repressão prática na vidacotidiana”.30 Esta última passagem aparece justamente numapolêmica com C. Castoriadis em torno do problema da “função

28. “De l’aliénation: examen de plusieurs aspects concrets”, em InternationaleSituationniste, nº 10, p. 63.

29. Idem, ibidem.30. Idem, p. 79. Esta afirmação de Debord sobre a psicanálise é, evidentemente,

insuficiente; nas páginas seguintes e, sobretudo, no capítulo II voltarei adiscutir esta concepção debordiana, interpretando-a como uma apropriaçãodesviada (détournée) de determinadas conclusões teóricas de Freud.

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da aparência social no capitalismo moderno”. É esta apropriaçãoda psicanálise para a reflexão sobre a “aparência social” que,

em A sociedade do espetáculo , Debord resume de modoprivilegiado ao dizer: “O espetáculo é o mau sonho da sociedademoderna aprisionada, que somente expressa, afinal de contas,

seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono”(SdS, § 21).

Em A interpretação do sonho, Freud observa que ossonhos – como “realização” alucinatória dos desejos – têm umacaracterística que interessa de modo particular à analogia que

Debord sugere entre a experiência onírica e a experiência socialtardoburguesa. Ao se apresentar em “imagens sensoriais”

(sinnliche Bilder), o conteúdo de representação do sonho permiteao sonhador crer vivenciar o que está sendo sonhado. Ora, odesejo que se “realiza” no sonho é, segundo Freud, um “desejo

infantil”, “inconsciente”; é precisamente por isso que a“satisfação do desejo” (Wunscherfüllung) onírica tem e precisa

ter um “caráter alucinatório” (halluzinatorische Charakter). Distoresulta que, no sonho, se encontram tanto uma regressão tópica,pois ao contrário do que ocorre em estado de vigília, os processos

psíquicos não se dirigem para a “extremidade motora”, masrecuam para a “extremidade sensorial” (é justamente por

desviar-se da motilidade e do acesso à realidade externa,permitindo que o sono continue, que esta “direção retrocedente”é responsável pela natureza alucinatória do sonho); quanto

formal, pois os conteúdos desiderativos retomam a arcaica formaimagética de que se constituíram na infância ontogenética e

filogenética, retrocedendo da linguagem articulada, comunicativapara as imagens sensoriais.31

31. Para toda esta sucinta retomada, cf. S. Freud, A interpretação dos sonhos,pp. 489-502 ss; Die Traumdeutung, pp. 510-524 ss. Mais uma vez, trata-se do subcapítulo “A regressão”, do capítulo VII.

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Se se tem em vista estes aspectos da teoria freudiana dosonho, a analogia proposta por Debord tem justo o propósito desalientar que o espetáculo se constitui numa dupla regressãosocial à passividade contemplativa e não-comunicativa doshomens, submetidos em sua experiência mais imediatamentecotidiana às “imagens”, às “aparências” socialmente organizadas.Em outras palavras, o capital ismo contemporâneo éessencialmente uma expropriação do diálogo e da atividadeautônoma.

Mas esta analogia sugere também um significado para apersistente denúncia, por Debord, de que o espetáculo é uma“falsificação”, uma “negação da vida”. O espetáculo, diz ele, é“a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana,quer dizer, social, como simples aparência. [É] a negação visívelda vida [...] uma negação da vida que se tornou visível” (SdS, §10). A subsunção de toda a vida cotidiana à “aparência dosistema”, à troca mercantil, transforma a totalidade das relaçõesgenéricas dos indivíduos em manifestação aparente da lógicado valor econômico, em modos concretos e imediatos deafirmação das trocas de equivalentes. As possibilidades outrasconstituídas pelo desenvolvimento das forças produtivasmodernas são substituídas por satisfações falsificadoras destasmesmas possibilidades – possibilidades estas que Debord nomeiaora sob a expressão marxiana da sociedade sem classes, orasob a fórmula poética da vraie vie, da qual aquela seria, paraele, sinônima. No capitalismo mais desenvolvido haveria uma“satisfação alucinatória” dos desejos, tal como no sonho doindivíduo.

Em sua denúncia da “pseudovida”, da “falsificação/negação da vida”, não há portanto uma posição “platônica” (sic),na qual “os fenômenos concretamente existentes podem sercomparados com seus modelos”, como supõe A. Jappe.32 Bem

32. A. Jappe, Guy Debord, p. 179.

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pelo contrário, há uma assunção materialista da noção poéticada vraie vie, compreendida de modo imanente com base naspossibilidades materiais do capitalismo contemporâneo,possibilidades estas que são recalcadas pela dominância daforma-valor. A determinação fixa e fixadora do metabolismo docapital, já a partir da subsunção do cotidiano à forma-mercadoria,ao impedir o uso emancipatório das modernas forças produtivas,conduz a sociedade moderna mais desenvolvida à substituiçãodos desejos possíveis por carências ou necessidades (besoins)que estão aquém das possibilidades materiais já existentes.

Num dos artigos integrantes de “Marxismo e teoriarevolucionária”, C. Castoriadis já questionava a existência de“necessidades ‘verdadeiras’” (besoins ‘vrais’) e, portanto,descartava a consistência teórica da denúncia situacionista da“pseudo-realidade” (‘pseudo-réalité’).33 Precisamente no textoacima referido acerca da importância da psicanálise para acompreensão da aparência social no capitalismo desenvolvido,Debord argumenta que, na denúncia da pseudo-realidade docapitalismo avançado, não se trata de modo algum de reivindicaruma “natureza humana” (nature humaine) , tampouco dedenunciar uma “substituição mercantil” (remplacementmarchand) das supostas “necessidades elementares” (besoinsélementaires), mas sim de compreender a possibilidade de“ultrapassar” (dépasser, em itálicos no original) estas supostas“necessidades elementares”, das quais o “imaginário” presentena sociedade mercantil mais desenvolvida não está “além”, mas“aquém”.34

33. Publicado em Socialisme ou barbarie, nº 40, 1965 (cf. C. Castoriadis,Instituição imaginária da sociedade. Tr. br. G. Reynaud. São Paulo: Paz eTerra, 1982, pp. 188-189).

34. Debord e os situacionistas se distanciam sempre da crítica sociológica da“sociedade de consumo”, do “consumismo” etc. A um pensamento votadoà dépense e ao potlatch, como o seu, nada mais estranho do que o lamentoda perda da simplicidade natural e da vida austera. Sua crítica se voltaantes à abundância mercantil, sinônimo da necessidade e não dos desejos;

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Ainda segundo Freud, no sonho do indivíduo, a forçaafetiva arcaica e inconsciente do desejo infantil fortalecerepresentações psíquicas de experiências do presente para,associando-se a estas, chegar ao pré-consciente e, deste, àconsciência sob formas de imagens, pelas quais ganham“realização”, “satisfação”. Em analogia com o sonho, a sociedadedo espetáculo é, para Debord, a afirmação contundente da forçaeconômica arcaica e inconsciente da forma-valor. Submetendoa si toda experiência humana, a forma-valor impõe-se comoarkhê, como estrutura primitiva e permanente que retesa, recalcaaquelas possibilidades do presente que se abrem para o futuro,enformando o surgimento e a satisfação das “necessidades”(besoins). Nesta perspectiva, a teoria freudiana do sonho édesviada de seu sentido imediatamente psicanalítico, pois,segundo Debord, o sonho-espetáculo satisfaz de modoalucinatório, substitutivo e falseador não os “desejos”inconscientes (“infantis”, no dizer de Freud), mas possíveisoutros “desejos conscientes” (désirs conscients); ele realizanecessidades que nunca foram, de fato, desejos conscientementeelaborados, necessidades estas já determinadas pelos próprioslimites históricos da forma-mercadoria.

De outra maneira, é o “inconsciente social” da economiamercantil que, desconhecendo as possibilidades dos poderes

materiais da época, se apresenta permanentemente “realizado”

(ou “satisfeito”) nas mais imediatas e cotidianas experiências

sociais dos indivíduos, recalcando a formulação e a efetivação

consciente do “desejo vivo” (désir vivant, termo este que Debord

usa para distinguir sua noção de desejo consciente tanto do

desejo inconsciente da psicanálise quanto de uma noção de

desejo ou necessidade “naturais”, “autênticos” dados de modo

ela é uma crítica, portanto, da forma-mercadoria em nome da liberaçãodo uso abundante das coisas, cujo sentido pode ser permanentementeinventado e reinventado e cuja condição primeira é o uso histórico, concretoe qualitativo, do tempo e da linguagem.

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supra-histórico). Não são os “desejos primitivos”, “arcaicos”

(como considerados pela psicanálise) que se encontram

recalcados, substituídos no sonho-espetáculo, mas sim os

desejos possíveis no presente, desejos cuja possibilidade se

encontra submetida à forma arcaica da mercadoria e às suas

“necessidades”. Em suma, não é a arkhê-mercadoria que é

transformada em imagens alucinatórias, mas antes é ela que

transforma em imagens aparentes as possibilidades do presente,

que deixam de ser conscientemente elaboradas e vividas em

toda a potencialidade que os poderes materiais da época

permitem.

Na denúncia da falsificação da vida, da pseudo-realidade,

da falsificação das necessidades, Debord busca afirmar não uma

suposta realidade primeira e autêntica que, por sua fixidez, seria

o critério de crítica do presente, mas antes constata criticamente

a fixidez de um presente aprisionado ao arcaísmo da forma-

valor que impede, recalca e substitui por imagens oníricas as

possibilidades historicamente constituídas de elaboração e

realização efetiva do desejo consciente. Não há para Debord –

leitor que é de Pascal, Hegel e Nietzsche – uma qualquer

realidade verdadeira fora ou a despeito da história, constituindo-

se esta justamente da reinvenção permanente do uso da vida,

mas é este uso que é recalcado, embora possibilitado, pelo

capitalismo espetacular. O que se encontra expresso no

capitalismo avançado, sob a forma do espetáculo é, segundo diz

Debord, “o que sociedade pode fazer”; porém, o “permitido”

sob a lógica do arcaísmo mercantil se opõe ao historico-

materialmente “possível”. As transformações econômico-sociais,

o desenvolvimento das forças produtivas, as imensas

possibilidades constituídas materialmente de uma outra vida se

mantêm, sob o espetáculo, conservados como “inconsciência”.

Por isto mesmo, como sonho, o espetáculo se lhe apresenta

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justamente como “o coração do irrealismo da sociedade real”(SdS, § 6). Como irrealidade que se torna efetiva, tanto quantoa “abstração” mercantil é, para Marx, “real”, Debord pensa oespetáculo como uma “substituição”, um “Ersatz”, não do mundopresente, mas sim da vraie vie, de uma outra vida já possível nopresente.35

A natureza visível e imediata da dominância da forma-valor no capitalismo contemporâneo – pela qual a aparência socialencontra-se profundamente transformada – é uma determinaçãocentral não apenas ao conceito de espetáculo, mas também àafirmação prospectiva imanente à crítica que Debord deleelabora. Como forma de existência fenomênica e aparente dofetichismo mercantil, o espetáculo é também a imediataapresentação destas mesmas possibil idades mantidasinconscientes pelo arcaísmo da forma-mercadoria. “As própriasforças que nos escaparam mostram-se a nós em toda a suapotência”, diz ele (SdS, § 31). Em outro parágrafo, Debord voltaa falar sobre esta auto-exposição da reificação: “O capital nãoé mais o centro invisível que dirige o modo de produção: suaacumulação o estende/expõe [étale] até a periferia sob formasde objetos sensíveis” (SdS, § 50). Neste caso, devem-seconservar pelo menos três dos sentidos que o verbo étalerpossui: acumulado, o capital se desenvolve, se estende e semostra (se expõe, se apresenta). Se o espetáculo é a extensãohorizontal das relações mercantis, extensão que causa profundastransformações na aparência social, não é, contudo, um fenômeno

35. Nesta mesma perspectiva de apropriação da psicanálise, pode-se entendero significado radical do termo “ilusão” (illusion), tão freqüente em Asociedade do espetáculo. A “i lusão” (Illusion), para Freud, não énecessariamente um “erro” ( Irrtum), mas o “preenchimento”, a “satisfação”ou a “realização” (Erfüllung) de desejos que não são necessariamentefalsos, irrealizáveis ou contraditórios com a realidade. Contudo, comoocorre nas crenças religiosas ou, por analogia, nos delírios, a ilusão “põeà frente” (vordrängt) o desejo com relação à “realidade” (Wirklickkeit).Quando Debord diz que o espetáculo é “a reconstrução material da ilusãoreligiosa” (SdS, § 20) ou a “ditadura efetiva da ilusão” (SdS, § 213), ele

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restrito à “superfície”; sua base é precisamente a acumulaçãode capital e a concentração capitalista das forças produtivas.

“O espetáculo”, diz Debord, “é o capital em um tal graude acumulação que se torna imagem” (SdS, § 34). Mas, cabeindagar, imagem de quê? A resposta não poderia ser outra senãoesta: de si mesmo, de sua natureza fetichista e de seu podermaterial, que é o poder material da sociedade que dela seencontra alienado sob a forma-capital. Não se trata, pois, daimagem falsificadora de alguma existência verdadeiratranscendente ou de uma natureza humana a-histórica. Sob aforma do espetáculo, é o capital acumulado e sua naturezafetichista que se mostra, de modo distorcido, certamente, mastambém em sua verdadeira natureza: como espetáculo, o capitalse mostra, se apresenta como uma força autônoma, força cujofundamento não é outro que a própria força material social, opróprio resultado do trabalho social tornado autônomo em faceda sociedade. De outro modo, é a própria contradição fundamentalde toda uma época histórica – contradição entre seus poderesmateriais, possibilitadores de uma outra vida, e a forma socialque aprisiona a realização destas mesmas possibilidades – quese apresenta numa necessária aparência invertida, inversão estaque, sendo essencial à forma-valor, se mostra como potênciahumana sobre-humana.

O que o espetáculo mostra, deixa ver é, sob forma alienadae substitutiva, as próprias possibilidades da vraie vie. Se ele éa superacumulação do capital tornada “imagem”, “fenômenoaparente”, o seu conteúdo material é o desenvolvimento das

tem em vista não apenas a inversão sujeito-predicado já assinalada porFeuerbach quanto à filosofia especulativa e à religião, mas também, emanalogia com a crítica freudiana da religião, a natureza ilusória da“realização” dos desejos-possíveis nas condições do capitalismo maisdesenvolvido. Cf. S. Freud, O futuro de uma ilusão [1927]. Obraspsicológicas completas de sigmund Freud, vol. XXI. Tr. br. J. O. AguiarAbreu. Rio de Janeiro: Imago, 1974, pp. 43 ss; Die Zukunft einer Illusion.Sigmund Freud Studienausgabe, Bd. IX. Frankfurt am Main: S. FischerVerlag, 1974, pp. 164 ss.

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forças produtivas que torna possível, pela superacumulação devalores de uso, a superação para além do besoin material e,portanto, a formulação consciente e social do désir. Éparticularmente neste aspecto que a aproximação feita porDebord entre a experiência social do capitalismo espetacular eo sonho do indivíduo ganha importância. Em analogia com asimagens oníricas, as aparências autônomas da forma-mercadoriarecalcam, distorcem e escondem, mas também – porque sãoambíguas e descontínuas (graças à separação e à ausência deunidade que são essenciais à própria alienação) – mostram,deixam ver o desenvolvimento material de possibilidades outrasque tornam desnecessária a própria economia mercantil.36

Do mostrar-se da alienação, da visibilização do capital,Debord concebe justamente que “a economia autônoma se separapara sempre da necessidade profunda na medida mesma emque ela sai do inconsciente social que dependia dela sem saber.// No momento em que a sociedade descobre que ela dependeda economia, de fato a economia depende dela. Esta potênciasubterrânea que cresceu até aparecer soberanamente tambémperdeu sua potência. Aí onde estava o isso econômico deve viro eu” (SdS, §§ 51-52). Deste modo, a aparência social, ao realizara falsificação da vida, não é, ela mesma, inteiramente falsa.Como aproximativamente propõe a psicanálise em relação aosonho e às imagens oníricas, toda a questão é traduzir em desejoconsciente, através da linguagem e da práxis comunicativas, as

36. De modo algum esta afirmação entra em contradição com a análise deAgamben, anteriormente indicada, sobre a reflexão, no espetáculo, entrea “transparência” e a “fantasmagoria” da mercadoria, mas, ao contrário, apressupõe. Ao expor-se à “plena vista”, o capital certamente “oculta seureino encantado” (Agamben), mas nisto mesmo também deixa ver a“ocultação”, o fetichismo que lhe é essencialmente constitutivo; um deixarver que expõe, na imediatidade do vivido, a completa autonomia e separaçãoda forma social da produção mercantil com relação às possibilidades deformulação e realização conscientes de desejos vivos, possibilidades estas,segundo Debord, constituídas historicamente pelo desenvolvimento dasforças produtivas.

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possibilidades que se encontram ocultadas/apresentadas nestasimagens, formulando o projeto social de liberação da história doaprisionamento mítico-arcaico da modernidade burguesa tardia.É justamente sob este projeto que Debord conclui A sociedadedo espetáculo, ao indicar as condições, que são uma única emesma, da emancipação possível em nossa época: “Aí somenteonde os indivíduos estão ‘diretamente ligados à históriauniversal’, aí somente onde o diálogo se armou para fazer vencersuas próprias condições” (SdS, § 221).