espaço, lugar e local - ana barros - 1998

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  • 8/13/2019 Espao, lugar e local - Ana Barros - 1998

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    REVISTA USP, So Paulo, n.40, p. 32-45, dezembro/fevereiro 1998-9932

    Espao,

    lugar e local

    ANNA BARROS

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    REVISTA USP, So Paulo, n.40, p. 32-45, dezembro/fevereiro 1998-99 33

    Nos dias de hoje h uma afluncia, cada vez maior,

    dos vocbulos lugar e localnas pginas de arte. Eles pe-

    dem uma nova conceituao, invejosos da importncia

    dada ao vocbulo espao durante este sculo. como seo multiculturalismo conscientizado no ps-modernismo

    e a globalizao crescente tornassem imprescindvel uma

    redefinio desses termos.

    O nomadismo, real e virtual, do ser humano atual

    demanda um ponto definido por coordenadas pessoais,

    que ele pode transportar ou dentro do qual ele mesmo

    se transporta. Este seria o lugar que, com suas frgeis

    paredes, poderia absorver por osmose o local, um espa-

    oj humanizado e possuindo uma narrativa histrica

    prpria, com caractersticas mais amplas do que as do

    primeiro, mas que pode ainda ocasionar uma reao em

    direo contrria, invadindo o espao mais geral. A isso

    soma-se o contedo da memria que faz de um lugar

    uma multiplicidade de locais.

    Para um artista, essa noo de local se amplia para

    terras em que a imaginao potica imprime organiza-

    es, talvez ainda mais especificamente individuais, por

    serem em geral percebidas emotivamente de forma

    mais aguda e que so confrontadas constantemente

    com as do local como socioculturais, o que cria umatenso aguda.

    Desde o minimalismo, o espaotem estado em

    foco na arte como parte do mundo real e no mais da

    representao pictrica, porque a prioridade dada re-

    lao entre o objeto e o contexto onde ele se encontra

    passou a exigir uma nova participao fruidor-obra.

    A condio de se perceber percebendo, aguada

    pelas obras ambientais minimalistas em que os sentidos do

    visitante so chamados a completar a obra, aprofundou-

    ANNA BARROS

    artista plstica eprofessora do Programade Ps-Graduao emComunicao e Semiticada PUC-SP. Foi vice-

    presidente da AssociaoNacional de Pesquisadoresem Artes Plsticas, nobinio 1995-97.

    art

    eecontem

    poraneidade

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    se pelo trabalho dos artistas da costa oeste

    dos Estados Unidos, grupo que ficou co-

    nhecido como Light and Space Art.

    Esse aprofundamento da percepo le-

    vou a definies mais especficas de espa-

    o e lugar. Maria Nordman, uma das artis-

    tas desse grupo, d ao espao uma defini-

    o mais abstrata, quando ele ainda se en-

    contra vazio antes de ser humanizado, pas-

    sando a ser lugarquando lhe so atribudas

    qualidades bsicas de luz e de som em

    mudana constante, o que pra o tempo

    relgio e inicia o tempo interior (Jan

    Butterfield, 1993, p. 100).

    Em seu mais recente livro, The Lure of

    the Place(1997), Lucy Lippard aborda essa

    questo, e, definindo o que para ela serialocal, inclui as caractersticas peculiares a

    cada lugar geogrfico, numa conceituao

    semelhante a nativo, sem a significao

    usual dada a essa palavra: habitantes pri-

    mitivos de um lugar. Local, assim, seria

    mais circunscrito do que pas.

    Lippard descreve lugar como um locus

    de desejo (1997, p. 4). Segundo essa des-

    crio, na obra de arte deveria ser usada

    sempre a palavra lugar ao invs de espao.Espao poderia ser visto assim como um

    lugar ainda no tocado pela imaginao,

    matria-prima para criao. A importncia

    de localadvm da confrontao da percep-

    o cada vez mais refinada da experincia

    de diferenas de lugares e de culturas, ex-

    perincia adquirida pela facilidade de lo-

    comoo e pela acelerao da comunica-

    o e divulgao de conhecimentos.

    O local tem se insinuado na vida e na

    arte como uma conseqncia do multitudo

    do ps-moderno. Para no perder a identi-

    dade nessa euforia multi, temos visto o

    reaparecimento das etnias e de ideo-

    logismos de purismo racial contra a

    homogeneizao das raas e das culturas e,

    na arte, a incluso na chamada High Art de

    trabalhos outrora considerados como locais,

    no sentido de carregarem caractersticas

    particulares de um grupo tnico ou

    sociocultural.Sem chegar a essas caractersticas e sem

    o uso da palavra local, as obras em espao

    pblico j foram redefinidas a partir de

    caractersticas bem semelhantes por artis-

    tas como James Turrell, Mary Miss, Siah

    Armajani, Robert Irwin, que vem a obra

    de arte no como invasora de onde colo-

    cada, mas sim de onde elas se encontram,

    estabelecendo um dilogo com o local.

    Robert Irwin, em seu ensaioBeing and

    Circunstance. Notes Toward a Conditional

    Art(1985, p. 26), declara que uma obra em

    lugar pblico deve partir dessas duas coor-

    denadas primrias: o ser e a circunstncia.

    A escultura deve existir em plena relao

    com o ambiente de onde retira sua razo de

    ser. Essa forma de trabalho exige uma pes-

    quisa prvia do lugar a que ela se destina,

    para que ele seja conhecido em profundida-

    de, em vrios nveis de informao, e paraque venha a existir uma resposta escultural.

    No existe mais referncia obra e estilo de

    determinado artista. A identidade do artista

    substituda pela do lugar, aqui j transfor-

    mado em conceito de local (segundo a

    conceituao de Lippard), embora na poca

    em que Irwin escreveu esse ensaio ainda nele

    aparea a palavra site (lugar), site

    determined/conditioned(determinado/con-

    dicionado pelo lugar).Mary Miss, numa entrevista para a re-

    vistaDomus(1991), j declara que a arte

    pblica deve fazer do lugar um momento

    individualizado pelo emprego de coorde-

    nadas que lhe so peculiares, de maneira

    que possa ser compartilhada pelo pblico

    local que transforma o conhecimento ar-

    tstico em experincia, permanecendo o

    pblico responsvel pela obra: o que me

    torna diferente de um arquiteto ou de um

    paisagista? [...] o foco principal de meu

    trabalho a experincia direta do indiv-

    duo que o olha, tentando dar um contedo

    emocional ao local ( p. 20). A j surge a

    palavra local.

    OBRAS REPRESENTATIVAS

    Dentro da histria da arte atual, dois

    projetos, o daRoden Crater e o doIrish Sky

    Garden, de James Turrell, incorporam com

    a maior fora essas coordenadas de espa-

    o, lugar e local, sem criar uma dicotomia

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    entre elas. Devido ao contedo desses pro-

    jetos e sua natureza interdisciplinar, eles

    possuem caractersticas que ao mesmo tem-

    po contm e transcendem a ligao do ser

    humano com a Terra e com o Cosmo, com

    a Histria e com o presente, com o indivi-

    dual, com o grupal e com o arquetpico e

    ainda se conservam dentro da noo de

    espao vazio, a demandar uma eterna cria-

    o atravs da vivncia de cada visitante.

    esse carater arquetpico que transfor-

    ma o local em um centro mltiplo que pode

    pertencer a vrias culturas e civilizaes,

    onde a observao da natureza e de seus

    fenmenos levou a uma experincia, no

    s pr-cientfica como transcendental.

    Essas mesmas caracterstica esto pre-sentes em outro megaprojeto de Turrell, o

    Irish Sky Garden.

    RODEN CRATER

    Para encontr-la, Turrell sobrevoou, num

    pequeno avio, uma rea que se estende das

    encostas a oeste das Rochosas at o Pacfi-

    co, e do lago Louise, na fronteira com o Ca-nad, at o Chihuahua, em busca do lugar

    ideal para o projeto que tinha em mente.

    As qualidades fsicas, por ele buscadas,

    eram: ter uma altura de pelo menos 500

    ps, elevando-se a uma altitude de mais de

    5.000 ps acima do mar, a fim de preencher

    qualidades especiais de refrao do ar, es-

    tar bem longe das luzes de uma cidade e, o

    que era mais importante, ter uma cratera

    com o cone o mais circular possvel, para

    criar efeitos pticos especiais e espaciais.

    Se este projeto for concludo, ser

    indubitavelmente o mais memorvel entre

    os da arqueologia da arte deixado por nos-

    sos tempos para os prximos milnios. A

    Mona Lisatalvez possa durar, ainda, mais

    de mil anos, eRoden Crater um projeto

    semelhante (em sua concepo estrutural e

    semntica) aos trabalhos de outras culturas

    antigas, em que os materiais so os da pr-

    pria natureza e dirigidos para uma celebra-o a uni-la ao Cosmo. Tendo um vulco

    por suporte, e usando todo o material natu-

    ral de minrios encontrados nas redonde-

    zas, no acabamento de salas, em que as

    performances a serem ritualizadas tm o

    cu, a lua e as estrelas como agentes, essa

    obra permanecer como algo sem tempo

    histrico determinado, sem campo disci-

    plinar especfico, podendo, em civilizaes

    futuras, ser vista como um local de rituais,

    anterior aos de nossa era, e dificilmente

    ser enquadrada como arte do sculo XX.

    Ela um olho, algo que , em si mes-

    mo, perceptivo. uma pea que no tem

    fim (Turrell, 1993, p. 62). Esse olho olha

    para os eventos celestes, partilhando-os

    com quem visita aRoden Crater no presen-

    te, mas tambm olha para o passado, para

    a histria humana e geolgica que a est

    gravada. As implicaes so claramentecsmicas. Assim o ato do observador, o de

    se ver vendo, tambm acentuado pela vista

    de uma poro do universo, criando assim

    a conscincia de um espao infinito alm

    do pensamento (Oliver Wick, 1990, p. 90).

    Ao norte de Flagstaff, no Arizona, est

    o campo vulcnico de San Francisco, com

    mais de 400 crateras, inativas desde o fim

    do Pleistoceno, com exceo da Sunset

    Crater, que entrou em erupo pela ltimavez h uns 400 anos.

    A Roden Crater um desses cones vul-

    cnicos, e est situada na margem leste deste

    campo. Foi ela a escolhida por James Turrell

    para um projeto multidisciplinar de arte,

    envolvendo percepo, luz, astronomia.

    James Turrell, falando autora sobre o

    projeto, assim se expressa:

    Estamos tentando fazer no s uma obra,

    mas tambm criar uma situao onde as

    reservas naturais que tm estado aqui, por

    sculos, funcionem como arte na paisagem.

    Geralmente vemos arte fora do contexto,

    pois pinturas, fotos, pedras so levadas para

    serem exibidas em museus e galerias. Aqui,

    o artefato cultural, que chamamos arte,

    visto no seu cenrio natural. a luz do sol

    e da lua que fazem a arte, o pr-do-sol que

    acontece, a luz diferente que vem do cu...

    Quando voc olha, pode ver de onde vemeste tipo de arte, mas isto exige uma via-

    gem para v-la. Para isto, dirigimos voc

    at aqui, pois esta arte no envolve objetos,

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    mas sim experincia. Ela tem a ver com

    experincia preservada (1996, p. 207).

    Este trabalho coexiste com outros de

    artistas contemporneos, criados ou ainda

    em projeto, em que o espao celeste ser

    invadido por suas artes, em fenmenos a

    serem desencadeados por satlites ou fo-

    guetes, a exemplo deRoue Cleste(1970),

    do artista francs Jean-Marc Philippe, ou

    utilizados para registrar algo que o artista

    criou na Terra como o projeto dos guarda-

    sis, de Christo, The Umbrellas, Joint

    Project for Japan and U.S.A(1992). No

    primeiro, h a utilizao do crculo

    geoestacionrio da Terra com 4.200 satli-

    tes, que deveriam ficar em rbita perma-

    nente, formando assim uma coroa de luzrefletida do Sol, o que tornaria possvel

    visualizar a velocidade da luz. No trabalho

    de Christo, os satlites funcionam como

    unificadores temporais, transmitindo even-

    tos simultneos no Japo e na Califrnia,

    nos Estados Unidos: a abertura dos seus

    1.340 guarda-sis, colocados em lugares

    estratgicos na natureza.

    O projeto de Turrell retorna Terra como

    ponto de ancoradouro e de sustentao doser humano, usando a tecnologia para des-

    vendar segredos celestes sob forma de co-

    nhecimento, que tem incio no sentir e

    realizado atravs do prazer esttico.

    NaRoden Crater, o objetivo criar um

    observatrio natural de fenmenos astron-

    micos, tal como Chaco Canyon, no Novo

    Mxico, no muito distante, construdo pe-

    los ndios anasazis. Alm disso, o Sol, a Lua

    e as estrelas serviro como elementos bsi-

    cos para a arte ali presente. A obra exigir

    dos visitantes o uso da prpria percepo,

    para usufrurem as mudanas efetuadas pela

    luz, nos ambientes ali construdos. Essas

    mudanas constituem-se em fenmenos

    perceptivos inusitados e sutis, desafiando a

    percepo como normalmente utilizada. Ao

    artista cabe, auxiliado por clculos de ar-

    quitetos e astrnomos, construir espaos

    vazios para utilizar a luz que ali incide, con-

    siderando os ngulos celestes em relao Terra e o tempo csmico em referncia ao

    terrestre. Desses milhares de clculos sur-

    ge a possibilidade de tornar cativa a dana

    do Sol e a da Lua em suas coreografias

    mensais, anuais e milenares, preenchendo

    os espaos com as mais variegadas cores-

    luz e com efeitos pticos que pedem uma

    determinada percepo.

    Quando o projeto estiver pronto, a

    Roden Crater refletir nossa prpria vida,

    em peregrinaes pelo mundo, durante as

    quatro estaes, lugares cotidianos ou lon-

    gnquos e pouco vivenciados por ns,

    noite ou de dia, em cada estao do ano. A

    riqueza daRoden Crater que l estaro

    presentes todas as estaes e todos os

    momentos do dia, potencialmente unidos,

    o que faz com que uma s visita no possa

    abranger todas as possibilidades

    perceptivas presentes.A Roden Crater foi comprada com o

    dinheiro recebido por Turrell da Dia Art

    Foundation, tendo o artista se transferido

    para Flagstaff, em 1979, para iniciar o pro-

    jeto central de sua vida. Primeiramente,

    Turrell tomou posse da terra, acampando

    nela, l vivendo por um longo tempo e fa-

    zendo com que se tornasse uma extenso

    de seu prprio corpo, mais um sentido atra-

    vs do qual pudesse perceber. Tudo, abso-lutamente tudo sobre ela lhe interessava, e

    assim foi se embrenhando na histria das

    culturas que o precederam nesse local, a

    relao com a Terra e com os outros astros

    no cu e como isso ressoava na psicologia

    e no esprito dessa gente. De um profundo

    contato com os ndios que ainda habitam os

    arredores, ele se estendeu para os habitan-

    tes do universo, para as trajetrias do Sol,

    da Lua e das estrelas que encimam a regio,

    numa relao com a Terra, detectada e re-

    gistrada pela cincia, e de como isso podia

    ser percebido desse exato ponto geogrfi-

    co, ou seja, das diversas faces do vulco.

    A seguir, Turrell empreendeu um le-

    vantamento topogrfico da regio, sobre-

    voando-a, a fim de poder conhecer exata-

    mente cada detalhe geolgico, em um co-

    nhecer de outro ngulo, distinto daquele

    que se est acostumado a manter com os

    lugares onde se vive. Como artista, essasfotos transformaram-se nos primeiros tra-

    balhos do projeto.

    Atualmente, a Skystone Foundation, em

    Na outra

    pgina,Roden

    Crater, quando

    estavam sendo

    refeitas as

    bordas da

    cratera; abaixo,

    cratera e corte

    com o arco da

    fumarola, 1985

    Projeto

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    Flagstaff, dirigida por Julia Brown, unica-

    mente criada para levantar fundos e gerir o

    projeto, est tentado enquadrar a Roden

    Crater numa perspectiva cultural mais

    ampla do que arte, estando em pesquisa

    como o projeto possa ser catalogado.

    A maior parte do projeto s existe ainda

    em desenhos, em centenas de fotos, em fotos

    estereoscpicas e na srie de gravuras em

    metalDeep Sky, 1984, que sugere qualidades

    perceptivas a serem vivenciadas na Roden

    Crater e na Mapping Spaces, 1987. Um

    modelo de todo o vulco e o projeto para ele,

    em trs dimenses, foram exibidos em 1985,

    no Musem of Contemporary Art (Moca), em

    Los Angeles, junto a vrios desenhos.

    A nica parte terminada a reestru-turao das bordas da cratera principal, de

    maneira a nivelar a altura e ter uma forma,

    ligeiramente elptica, que devem criar um

    efeito: a percepo do cu como uma ab-

    bada, como um domo apoiado nas bordas.

    Isso exigiu um trabalho enorme de movi-

    mentao de terra, de difcil execuo, de-

    vido altura em que se encontra e ao cui-

    dado com o terreno ao seu redor, de onde

    teria que ser apagada qualquer marca, serreposta a terra de superfcie e ser replantada

    a vegetao original.

    A aproximao do vulco j parte dos

    planos de Turrell. semelhana de outros

    trabalhos seus, essa aproximao a pre-

    parao para a entrada no esprito da obra.

    Para isso, planejou a estrada que conduz ao

    vulco, de maneira que, serpenteando pe-

    los acidentes do caminho, mostre, ora uma

    vista quase area, ora a da montanha, sur-

    gindo da terra plana do deserto e impondo

    ao visitante sua imponncia.

    OS ESPAOS-LUGARES

    Craig Adcock a melhor fonte de in-

    formao sobre aRoden Crater, pois nela

    permaneceu acampado por muito tempo,

    em vrias pocas do ano, alm de ter aces-

    so a todos os projetos e a conversas comTurrell, durante o tempo em que escreveu

    sua tese de PhD sobre o assunto. Ele, por-

    tanto, estar presente na maior parte das

    descries aqui feitas. Sua viso e sua ima-

    ginao vo alimentar as dos leitores, ten-

    do em mente que a complexidade dos pla-

    nos envolve um modelo intrincado de or-

    dem e seqncia (Adcock, 1990, p. 162),

    e que, entretanto, o planejamento do

    vivenciar essa seqncia fica entregue ao

    visitante.

    Turrell (1993, p. 58) explica que o pro-

    jeto isola a experincia da luz, separando-

    a dos eventos para os quais no se est olhan-

    do no momento, a fim de identific-la.

    Existem muitos espaos, para que cada um

    deles possa receber somente um pequeno

    nmero de eventos por vez, enfatizando

    uma determinada parte do cu.

    A organizao de todo o projeto remete de lugares antigos como o santurio de

    Newgrange [Irlanda], a Sala Alta do Sol, em

    Karnak e o solo sagrado dentro de um tem-

    plo Kogi [] sempre girando ao redor de

    uma exibio dramtica da luz do Sol, como

    lembra E. C. Krupp, diretor do Griffith

    Observatory, em Los Angeles (1987, p. 37).

    Entranhado na idia bsica, de ser um obser-

    vatrio natural de fenmenos celestes, o sim-

    bolismo presente, para Turrell, de nature-za genrica, sem estar necessariamente as-

    sociado a qualquer religio, e gerado pelas

    interconexes entre luz, espao e tempo

    (Adcock, 1990, p. 159).

    Essas conexes podem chegar a ser

    bem intrincadas, apesar de receberem uma

    forma final que parece simples. Uma sala

    vazia, resultante de complicados clculos

    arquitetnicos, possibilitar a ocorrncia

    de fenmenos celestes pesquisados por

    astrofsicos, os quais sem o rigoroso pla-

    nejar da inclinao das paredes ou do lo-

    cal e tamanho da abertura, nas paredes e

    tetos, no se fariam perceptveis aos visi-

    tantes. As paredes necessitam um arremate

    rigoroso, j bem conhecido nos trabalhos

    de luz de Turrell, mas que, agora, ainda

    recebem um acabamento com areias e la-

    va, de cada local onde a sala est situada,

    o que pode variar muito, pois a riqueza de

    suas cores, no deserto, imensa. Contudo,isso no aleatrio, pois cada elemento

    mineral usado est a realar o fenmeno

    que a sala ir receber.

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    A percepo aqui construda s pela luz

    natural sempre oriunda de matria-

    imaterial. O intercmbio entre interno-ex-

    terno encontra-se em diferentes situaes,

    seja abrindo a viso aos acidentes da paisa-

    gem circunvizinha, seja isolando o vedor,

    para melhor usufruir o fenmeno especfi-

    co que lhe dado a perceber naquele mo-

    mento. Turrell enfatiza que a percepo

    que modela todo o espao, medida que se

    percorre o projeto em sua totalidade: Como

    sempre, o mais importante no a forma

    arquitetnica de cada espao, mas as foras

    que eles contm (Adcock, 1985, p. 104).

    Durante anos de planejamento, do per-

    ceber cada lugar, em cada momento do dia

    e da noite, em cada estao do ano e nas

    diferenas de ano a ano, surgiu o projeto

    que, ao estar terminado, no ter a assina-

    tura de um artista, mas se apresentar como

    um momento raro de doao sensibilida-

    de perceptiva do homem, deste e dos scu-

    los futuros. A tecnologia est presente nos

    clculos prvios dos fenmenos, ausentan-do-se depois, para dar lugar natureza e

    sua sabedoria. O nico indcio da data e da

    civilizao que construiu tal monumento

    estar presente nas placas de ao inoxid-

    vel colocadas em lugares estratgicos, para

    informar sobre astros, estrelas e demais

    eventos csmicos, podendo ser avistados

    do lugar.

    O tempo humano, limitado a alguns

    poucos anos, reveste-se, ao mesmo tem-

    po, de importncia crucial, por sua pr-

    pria exigidade, e de pouca importncia,

    quando relacionado ao tempo csmico

    presente na Roden Crater, abarcando,

    desde sua formao geolgica at os fe-

    nmenos celestes, que podero ser ob-

    servados aps sculos da extino das

    raas e culturas, que hodiernamente ha-

    bitam as cercanias.

    Sculos atrs, na ndia do sculo XVIII,

    em Jaipur, o Maharajah Jai Singh construiu

    um observatrio para estudar os eventos

    celestes, de uma maneira extremamente

    precisa, conseguida atravs da arquitetu-

    ra monumental de seus instrumentos, diz

    Krupp (1987, p. 37) e ressalta que algo

    semelhante ao que Turrell est relizandono espao subterrneo e central da cratera,

    ao usar a arquitetura para interagir com a

    luz dos astros.

    Roden Crater

    vista do plano

    de lava, face

    nordeste

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    OS ESPAOS QUE BRINCAM COM

    OS ASTROS

    As salas subterrneas, na base do vul-

    co, criam uma entrada para o mundo

    ctnico, de sombras, dotado de energia ter-

    rvel, que est aliada ao fato de esta no ser

    uma montanha comum, mas originalmente

    ter tido conexo com o magma terrestre. O

    visitante que percorrer todo o projeto ir

    passar por diversos banhos de luz e ser

    submetido a vrias experincias de luz, que

    acentuam o sublime originado na natureza,

    sutilmente orquestrado por Turrell. Expe-

    rincias essas organizadas dentro da mes-ma gama de imagens de luz, presentes em

    suas obras, desde Ganzfelds s projees

    de luz nas paredes. Mas, mais importante

    ainda, a ligao luz-sombra que d ao

    projeto um desenvolvimento harmnico,

    dos dois lados da psique, consciente/incons-

    ciente, revisitando circunstncias: o eterno

    morrer e renascer.

    Salas subseqentes fazem uso do

    Ganzfeld, modelando a nvoa luminosa detonalidades levemente diferentes em cada

    uma delas, provenientes do reflexo da luz

    solar em diversos materiais externos. Esse

    efeito de Ganzfeld perturbado, em alguns

    momentos e em determinados espaos, pela

    competio de outro fenmeno que quer se

    impor. So imagens do Sol e da Lua que se

    projetam no seu interior.

    Essa apario pode ser esperada du-

    rante um longo prazo, como no caso da

    Lua, cuja imagem, na sua fase quase cheia,

    ir se projetar na parede central com

    bastante clareza de detalhes passando

    por uma abertura circular, na cmara

    construda na fumarola. O nico inconve-

    niente, porm, que esse fenmeno s

    visvel a cada 18 anos e 61 dias, quando

    a Lua est na sua declinao mais ao sul

    (Adcock, 1990, p. 184), e a prxima vez

    esperada, se o projeto j estiver completa-

    do, ser em 2006. O set criado porTurrell, para este evento, compreende um

    revestimento na parede, em forma circu-

    lar, em areia branca circundada por preta,

    o que realar a imagem branca da Lua.

    Para ver essa, o visitante ter que esperar

    a noite toda, at de madrugada, e assim

    ter tempo suficiente para acostumar sua

    vista escurido e receber o evento lunar

    com maior encantamento.

    O clima constante do deserto torna es-

    ses acontecimentos mais plausveis de se-

    rem vistos, por ser difcil a ocorrncia de

    chuvas fora da estao prpria. Em outras

    condies climticas poderia haver um

    desapontamento para quem viajasse quil-

    metros para presenci-los. Outras situaes,

    tendo o Sol ou a Lua porperformer, so

    mais freqentes, mas a que bate o recorde

    em espera a mudana da Estrela do Norte,

    que se avista todas as noites do topo daescadaria, no Espao Norte, um dos quatro

    espaos dirigidos aos pontos cardeais, situa-

    do ao nvel da esplanada, recortados na

    rocha na base do vulco.

    Essa estrela muda a cada 25.800 anos,

    pela inclinao do eixo terrestre. Agora a

    vez da Polaris. Quando as pirmides do

    Egito foram construdas, era Draco. Daqui

    a 12.000 anos ser a vez de Vega, da cons-

    telao de Lira (Adcock, 1990, p. 163).Entre outros fenmenos, previstos

    para serem presenciados de outros espa-

    os, no projeto, est a sombra da Terra

    avanando sobre ela mesma, ao

    pr-do-sol, enquanto acima ainda so

    avistados seus ltimos raios.

    Os espaos na base do vulco, a serem

    escavados na rocha de constituio vulc-

    nica, so em nmero de quatro, direcionados

    para os quatro pontos cardeais.

    No Espao Sul haver um Skyspace, di-

    rigido para mostrar o Sol em seu znite. O

    espetculo das nuvens correndo pelo cu ser

    grandioso, no s a, mas tambm em quase

    todas as salas do projeto. Elas so importan-

    tes, por darem a distncia relativa dos aci-

    dentes geogrficos avistados no deserto,

    desde o Painted Desert ao Grand Canyon.

    Adcock (1990, p. 172) tambm liga a expe-

    rincia com as nuvens s de Turrell, quando

    voando, e salienta o significado que cadatipo delas tem para um piloto.

    Esse Espao Sul foi ainda projetado para

    abrigar um alinhamento especial do Sol, da

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    Terra e da Lua, que acontece a cada dezoito

    anos e onze dias, o qual ajudava os antigos

    a determinarem os eclipses, e que recebeu

    o nome de Saros.

    Cada um dos trs espaos restantes abri-

    ga eventos diversos e igualmente interes-

    santes, sempre tendo a luz de um dos astros

    para desencadear o fenmeno perceptivo.

    O plano geral para aRoden Cratersegue a

    forma de uma pirmide escalonada e

    truncada, desenhada hipoteticamente den-

    tro da montanha.

    Depois de fazer uma verdadeira pere-

    grinao por todos os corredores, escadas e

    cmaras existentes, j se passou por expe-

    rincias do cu (como as de uma pelcula

    esticada sobre aberturas emolduradas emcanto vivo, iguais s j descritas nos

    Meetings e em outros tipos de Skyspaces),

    mas sempre percebendo o cu como um

    recorte plano, de cor.

    Quando finalmente atinge a cmara cria-

    da no centro da cratera, o visitante se en-

    contra em um espao de forma cncava, a

    funcionar como um observatrio a olho nu.

    ele que Adcock (1990, p. 183) coloca

    como semelhante, em estrutura, ao obser-vatrio construdo por Jai Singh, em Jaipur,

    onde foi criada uma arquitetura para se

    ver, e cita Turrell, para explicar que esses

    espaos, usados pelos astrnomos antigos

    para observao a olho nu, so desenha-

    dos de dentro para fora.

    Essa cmara, com todas suas aberturas

    drasticamente localizadas para se olhar para

    fora, repousa sobre um tanque de gua da

    chuva, que se infiltra pelas paredes porosas

    do vulco e serve para refletir luz e amplifi-

    car os sons vindos do deserto e do espao

    sideral. Nesse tanque, as pessoas podero se

    banhar e, mergulhando, ouvir esses sons. As

    paredes e o fundo sero revestidos de p de

    obsidiana negra, a intensificar os reflexos

    de luz, acentuando sensaes corpreas de

    quem a se banha, para tocar a msica das

    esferas, em luz. assim que Turrell (apud

    Adcock, 1990, p. 183) qualifica sua inten-

    o ao criar os espaos daRoden Crater.Na cratera foi desenhado um local mui-

    to especial, especfico para se perceber o

    fenmeno que o objetivo do projeto.

    Um pavimento plano, ao redor do perme-

    tro externo da cmera, est destinado a ter

    um apoio de pedra para a cabea, para aju-

    dar os vedores a encontrarem a melhor

    posio para deitarem e observarem o cu.

    Repousando suas cabeas nesse apoio, eles

    podero ver, sobre a beirada da cratera, de

    um ngulo visual que essencialmente de

    cabea para baixo, mudanas adicionais no

    tamanho e na forma da abbada celeste

    acima da cratera (Adcock, 1990, p. 183).

    Seja qual for o percurso escolhido pelo

    visitante, aps andar por corredores escu-

    ros, vivenciar os espetculos de luz e do

    cu, visto como um quadro plano quando

    atinge a cratera, ter sempre algo inesque-cvel para participar. No somente o efei-

    to abbada, mas tambm a possibilidade de

    Fumarola com

    alinhamentos,

    1992 Projeto

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    viver essa riqueza dos sentidos, absoluta-

    mente unidos s camadas profundas da psi-

    que, prpria condio de ser humano e

    de ter a vida ligada deste planeta, neste

    partilhar da unio do cu e da Terra, aqui-

    lo que ecoa na nossa sensualidade mais

    bsica. Tudo isso ainda reforado por es-

    ses acontecimentos se sucederem num

    local de formao geolgica das mais pri-

    mitivas do planeta.

    Lembre-se que era o maior sonho de

    Turrell, desde muitos anos, criar esse efei-

    to de abbada celeste, em um lugar onde

    fosse possvel a percepo de grandes

    quantidades de espao e movimentar o

    mnimo possvel de material para conse-

    gui-lo (apud Adcock ,1990, p. 180).As descries ficam pobres e sugerem

    o que s ser possvel perceber in loco.

    Como j foi realado, os trabalhos de

    Turrell, que se originaram no Mendota

    Stoppages, esto todos direcionados ex-

    perincia mxima, que aRoden Crater.

    Quando a obra estiver completa, vai ser

    importante prosseguir, do nvel do deserto

    atravs de tneis at se chegar na crate-

    ra, o que dar uma percepo muito maisaguda de sua imensido abobadando o

    cu. Haver um choque intenso entre o

    dentro e o fora, maior do que o atual, quan-

    do ainda se escala a montanha para adentrar

    a cratera, e sempre a cu aberto.

    IRISH SKY GARDEN

    OIrish Sky Garden, de Turrell, outro

    megaprojeto na natureza, no qual ele

    retorna s idias bsicas desenvolvidas na

    Roden Crater. O cu aprisionado ,

    novamente, o elemento a despertar o ato

    perceptivo. Aqui, o ajardinar o cu atra-

    vs de um projeto paisagstico , para

    Turrell, uma alegoria ao pensamento. H

    uma alterao essencial no paisagismo

    clssico, pois em lugar de ser um jardim

    para se olhar, um jardim de onde se olha

    para fora. O fora o cu tornado elementode arte, paradoxalmente constituindo-se

    parte de dentro do jardim.

    Mas, na viso de Jost Krippendorf

    (1990, p. 141), esse dentro/fora significa

    tambm construir pontes entre nossa na-

    tureza interna e externa, embora acrescente

    a ressalva de que a deciso de atravess-

    las somente nossa.

    Tanto quanto a metfora da janela, na

    pintura, os Skyspaces fazem o encontro

    (Meeting) entre o cu e a Terra, auxiliados

    pelas molduras chanfradas em ponta viva.

    Wick (1992, p.123) refere-se s bordas das

    aberturas como sendo onde o observador

    e o observado se encontram.

    Os dois trabalhos juntam dois aspectos

    antagnicos da paisagem terrestre: aRoden

    Crater traz cena uma vasta extenso

    desrtica do continente americano, enquan-

    to noIrish Sky Garden focada uma reser-va natural de um verde luxuriante, numa

    ilha da costa sul da Irlanda e um cu sempre

    mutante, carregado de qualidades dramti-

    cas. A diferena l [na Roden Crater]

    que eu estou mais envolvido com eventos

    celestes e no com o cu, com suas inme-

    ras diferenas atmosfricas (apud Oliver

    Wick, 1992, p. 115).

    Pode-se sentir o cu e a Terra como dois

    casais diferentes, unindo-se pelas qualida-des geolgicas, geogrficas e climticas que

    lhes emprestam distintos perfis. As seme-

    lhanas entre os dois projetos magnos de

    Turrell estruturam-se em diferenas, tanto

    na parte arquitetnica, como na forma de

    englobar o projeto artstico ao todo

    ambiental. No Irish Sky Garden, Turrell

    acrescenta formas externas, construdas ou

    reestruturadas, complementando as internas

    para conseguir provocar diferentes percep-

    es dos Skyspaces. A ateno direciona-se

    de um espao a outro, no por locais subter-

    rneos, mas por um caminhar entre vegeta-

    es de um verde suculento, fontes, cascatas

    e restos arqueolgicos. A luz do sol interfere

    espontaneamente nesses elementos naturais,

    e deixada como tal, sendo estruturada so-

    mente no interior das quatro formas

    arquitetnicas que constituem o projeto.

    Entretanto, Turrell tem perfeita conscincia

    disso e usa esse efeito a seu favor.Pensando de maneira semelhante a

    Robert Irwin (quanto a trabalhos em luga-

    res pblicos deverem ser determinados

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    pelas circunstncias locais), Turrell cria

    uma harmonia total entre o seu projeto es-

    ttico e o parque de reserva natural, o Liss

    Ard. A inteno do proprietrio do local,

    Veith Turske, que tem uma galeria de arte

    na Sua, de estruturar todo o parque,

    restabelecendo vegetaes originais ora em

    extino, assim como a fauna, e dentro

    desse mesmo esprito de respeito pelo local

    que o projeto de Turrell se insere.

    O Irish Sky Gardendever criar uma

    fuso esttica entre os acidentes naturais e

    histricos a existentes. NaRoden Crater,

    Turrell faz o visitante ter conscincia das

    camadas culturais que se sobrepem,

    enfatizando o fato de a Roden Craterser

    um observatrio astronmico com inten-es semelhantes dos ndios americanos,

    que viveram e vivem nas proximidades.

    NoIrish Sky Garden, ele tambm ressal-

    ta os restos de culturas pr-histricas pre-

    sentes no lugar. Cria formas arquetpicas para

    conter os Skyspaces, lugares de perceber o

    cu, que respondem s vizinhas pedras e

    menires, em desenhos circulares e em linha

    reta, alguns monolticos, datando da Idade

    do Bronze e do incio da Idade do Ferro.

    Outrora, estes tinham a funo de marcar

    fenmenos celestes, trazendo-os para a Ter-

    ra. Ainda vagam por a as crenas no genius

    loci, uma concepo antiga, que data do

    remoto passado pr-histrico e de origem

    celta (Wick, 1992, p. 115), a qual prov um

    gnio para cada acidente na natureza.

    O solo irlands est juncado de remanes-

    centes histricos, como o da Inglaterra, que

    um outro artista ingls, na dcada de 70,

    ligou ao seu trabalho, fazendo, do seu cami-

    nhar por esses stios, a sua arte: Richard Long.

    Ele tambm percebeu e se apoderou de pe-

    dras pr-histricas, colocadas em formaessemelhantes s encontradas no stio doIrish

    Sky Garden, comoready made art, e criou

    outras semelhantes. Dentre os artistas dos

    earthworks, ele se coloca mais perto da sen-

    sibilidade de Turrell, quando diz: Meu tra-

    balho sobre meus sentidos, meu instinto,

    minha prpria escala e meu prprio com-

    Irish Sky

    Garden

    Projeto

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    promisso fsico (apud Lucy Lippard, 1983,

    p. 129), alm de abordar tambm a

    superposio de momentos histricos.

    Nesta reserva, tambm est situada a

    Carrig Fada, uma montanha considerada

    sagrada, que serve de ponto de referncia

    para todos os Liss da regio, sendo o mais

    importante o Liss Ard, um mound tendo

    uma abertura na parte traseira que conduz

    a uma rede de passagens subterrneas, as

    quais podem ter sido usadas para defesa ou

    para o armazenamento de suprimentos

    (Gnter Metken, 1992, p. 95). Ningum

    jamais provou sua real utilidade, e existem

    abundantes lendas na Irlanda, que conce-

    dem poderes mgicos a esses locais.

    Turrell, com seus dois projetos, unemomentos igualmente significantes para as

    antigas culturas dos dois locais. Delimita o

    espao para o grande acontecimento solar

    anual do solstcio de inverno, momento em

    que a luz solar diminui na Terra, ao se au-

    sentar para o mundo subterrneo. As mon-

    tanhas compem a marca desse momento,

    tanto para os hopis, no Arizona, como para

    as antigas culturas, na Irlanda, que o regis-

    traram sob a forma de pedras e de aberturasnas rochas.

    Turrell tem um grande interesse por

    vulces e por ilhas, considerados como

    lugares de poder. O parque natural, onde

    est situado oIrish Sky Garden, fica numa

    ilha, tendo o mar refletindo o cu, e assim

    trazendo-o para se unir Terra de forma

    distinta da de Turrell.

    OS TRS ESPAOSO projeto total do Irish Sky Garden

    constitudo de trs construes principais,

    que se tornaro parte da natureza, a ela se

    mesclando, e, ao mesmo tempo, trazendo

    uma percepo especial de pontos de vista

    dos elementos naturais da paisagem. Arte

    e natureza esto resolvidos em uma unida-

    de que se declara no momento da percep-

    o, o que diz Oliver Wick (1992, p. 38).Uma cratera criada num monte exis-

    tente, umMound, e por ltimo uma pirmi-

    de escalonada e truncada so as formas

    externas que recebem, em seus interiores,

    os espaos para se perceber o cu

    (Skyspaces). Cada qual a sua maneira, eles

    repetem as formas externas: um, em ligeira

    elipse, outro, de forma circular e o outro, de

    forma quadrada.

    A diferena marcante com o todo da

    Roden Crater que, noIrish Sky Garden,

    o visitante estar mais relacionado com o

    fora, pela proximidade da natureza, no seu

    caminhar por ela, e na integrao que Turrell

    consegue programar perceptivamente, en-

    quanto na Roden Crater so os eventos

    csmicos que predominam.

    Todos esses espaos so dedicados

    percepo do cu. No da cratera, encontra-

    se repetida, em escala mais modesta, a visoda abbada celeste como percebida naRoden

    Crater. No Mound, o cu oferecer uma

    experincia prxima s vivenciadas nos

    Meetings I e II do P S I, em Nova York e em

    Los Angeles, mas ainda conservando uma

    ligeira concavidade. Na pirmide experi-

    mentar-se- a mesma pelcula colorida pre-

    sa ao teto, fechando o espao, como nesses

    Skyspaces acima. Na pirmide, a viso do

    cu noite totalmente destituda de estre-las, contra a viso do universo vista dos dois

    outros espaos. O cu noturno apresenta-se

    sob a forma de um denso veludo negro. A

    forma interna, cbica, repete a organizao

    da existente nos doisMeetings, com exce-

    o do material de construo dos bancos,

    sendo aqui de pedra do local.

    O Mound repete a forma dos antigos

    locais funerrios da regio e tem no seu

    centro um trono escavado em pedra, colo-

    cado a uma altura que permite a viso da

    montanha Carrig Fada, para quem a se

    senta. Esta viso une os dois pontos e as

    duas pocas, na histria da humanidade.

    DoMound, caminha-se at uma espcie de

    ptio, com um muro frente bloqueando a

    vista. No seu centro, um correr de degraus

    leva ao topo, de onde se avista, no s o

    cu, como at ento, mas pela primeira vez,

    toda a paisagem para a Carrig Fada. Esse

    ptio o espao central anterior Pirmi-de, quando do percurso do circuito.

    O terceiro espao, ou pirmide, tem

    dois lances de escadas simetricamente co-

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    locados, na entrada e na sada. O da sada

    leva para perto das margens do lago

    Lough Abisdealy onde termina o proje-

    to de Turrell, em um pequeno grotto, co-

    berto de vegetao local prpria dos luga-

    res midos. Da, um caminho serpenteia

    at o topo do Liss Ard.

    OIrish Sky Garden, ocupando fisica-

    mente 10 dos 185 acres totais do parque

    Liss Ard, altera toda a sua percepo, pela

    interao das construes que emolduram

    ou realam pontos importantes na paisa-

    gem, seja por seu contedo histrico, seja

    por suas razes estticas.

    LOCAL, LUGAR, ESPAOOs projetos daRoden Cratere doIrish

    Sky Gardenquando terminados, passando

    categoria de obra realizada, sero um

    exemplo vivo de transculturao, no senti-

    do dado a essa palavra por Octavio Ianni

    (em palestra realizada no IX Encontro

    Anual da ANPAP, 1997): um processo

    no qual ambas as partes da equao resul-

    tam modificadas. Um processo do qual

    resulta uma nova realidade, composta e

    complexa [] Quando entram em inter-

    cmbio e composio, naturalmente desen-

    volvem outras pluralidades e hetero-

    geneidades.

    Nessas obras o local (representado

    pelas culturas pr-americanas e pr-irlan-

    desas) se integra ao lugar (as coordenadas

    heursticas de Turrell) e ao espao (o vul-

    co e o parque antes de serem a Roden

    Cratere oIrish Sky Garden), transforman-

    do-os num locusde desejo, agora no s

    do artista mas tambm de todos seus visi-tantes, numa cadeia sgnica a enriquecer a

    percepo e a vivncia.

    Assim, tantoRoden Crater comoIrish

    Sky Garden preenchem os requisitos de se

    coadunarem ao local sem impedir uma vi-

    so mais ampla, incluindo a csmica.