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ESFACELA-SE O CYBORG”: A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO ENTRE SOCIEDADE/NATUREZA, ESPECULAÇÃO FUNDIÁRIA, RISCOS E IMPACTOS SOCIONATURAIS Reginaldo José de SOUZA [email protected] Doutorando em Geografia Universidade Estadual Paulista UNESP Faculdade de Ciências e Tecnologia Campus de Presidente Prudente Área temática 7 - Desenvolvimento e Espaço: ações, escalas e recursos Resumo: O processo de urbanização ocorre na artificialização da natureza pela sociedade. As cidades são formas híbridas que irrompem da fusão entre dinâmicas naturais e sociais. Porém, a hibridação socionatural que caracteriza as cidades parece-nos uma disjunção insolúvel em que sociedade e natureza não chegam ao ponto de uma relação harmônica. Cientes da existência de mecanismos político- econômicos (e culturais) responsáveis por este conflito e reprodutores de iniquidades sociais que submetem significativa parte das populações urbanas aos desdobramentos negativos de usos inadequados dos recursos da natureza, apresentaremos, neste ensaio, nossas reflexões sobre questões relacionadas aos riscos e impactos socionaturais nas cidades, potenciados pela racionalidade imediatista da produção econômica - sobretudo quando esta incorpora o espaço enquanto mercadoria - e busca de lucros que subsumem a garantia dos direitos à qualidade de vida e acesso a bens e serviços à significativa parcela das populações urbanas que estão diretamente expostas a certos tipos de riscos (leiam-se enchentes, escorregamentos e desmoronamentos de encostas, soterramentos etc.). Palavras-chave: relação sociedade-natureza, urbanização, especulação fundiária, riscos ambientais, impactos socionaturais. “THE CYBORG CRUMBLES”: THE PRODUCTION OF THE URBAN SPACE AMONG SOCIETY/NATURE, LAND SPECULATION, AND SOCIO-NATURAL RISKS AND IMPACTS Abstract: The urbanization process occurs in making nature artificial by society. Cities are hybrid forms that erupt from the fusion of natural and social dynamics. However, socio-natural hybridization that characterizes cities seems to be an insoluble disjunction in which society and nature do not concretise a harmonious relationship. We are aware of the existence of political-economic (and cultural) mechanisms that are both responsible for this conflict and reproducers of social inequities that subjugate a significant part of urban populations to the negative consequences of improper use of natural resources. Then, we present in this essay our reflections concerning socio-natural risks and impacts in cities. In order to achieve this aim, we consider that two elements boost this risks and impacts by. Firstly, we mention the immediate rationality of economic production (especially when it incorporates space as merchandise). Secondly, we cite the search for profits that subsume the guarantee of rights to quality of life and access to goods and services to a significant part of urban populations that are directly exposed to certain kinds of risks (i.e. floods, landslides, burying etc.). Keywords: society-nature relationship, urbanisation, land speculation, environmental risks, socio-natural impacts.

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“ESFACELA-SE O CYBORG”: A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO ENTRE

SOCIEDADE/NATUREZA, ESPECULAÇÃO FUNDIÁRIA, RISCOS E IMPACTOS SOCIONATURAIS

Reginaldo José de SOUZA

[email protected]

Doutorando em Geografia

Universidade Estadual Paulista – UNESP

Faculdade de Ciências e Tecnologia

Campus de Presidente Prudente

Área temática 7 - Desenvolvimento e Espaço: ações, escalas e recursos

Resumo: O processo de urbanização ocorre na artificialização da natureza pela sociedade. As cidades são

formas híbridas que irrompem da fusão entre dinâmicas naturais e sociais. Porém, a hibridação

socionatural que caracteriza as cidades parece-nos uma disjunção insolúvel em que sociedade e natureza

não chegam ao ponto de uma relação harmônica. Cientes da existência de mecanismos político-

econômicos (e culturais) responsáveis por este conflito e reprodutores de iniquidades sociais que

submetem significativa parte das populações urbanas aos desdobramentos negativos de usos inadequados

dos recursos da natureza, apresentaremos, neste ensaio, nossas reflexões sobre questões relacionadas aos

riscos e impactos socionaturais nas cidades, potenciados pela racionalidade imediatista da produção

econômica - sobretudo quando esta incorpora o espaço enquanto mercadoria - e busca de lucros que

subsumem a garantia dos direitos à qualidade de vida e acesso a bens e serviços à significativa parcela das

populações urbanas que estão diretamente expostas a certos tipos de riscos (leiam-se enchentes,

escorregamentos e desmoronamentos de encostas, soterramentos etc.).

Palavras-chave: relação sociedade-natureza, urbanização, especulação fundiária, riscos ambientais,

impactos socionaturais.

“THE CYBORG CRUMBLES”: THE PRODUCTION OF THE URBAN SPACE AMONG

SOCIETY/NATURE, LAND SPECULATION, AND SOCIO-NATURAL RISKS AND IMPACTS

Abstract: The urbanization process occurs in making nature artificial by society. Cities are hybrid forms

that erupt from the fusion of natural and social dynamics. However, socio-natural hybridization that

characterizes cities seems to be an insoluble disjunction in which society and nature do not concretise a

harmonious relationship. We are aware of the existence of political-economic (and cultural) mechanisms

that are both responsible for this conflict and reproducers of social inequities that subjugate a significant

part of urban populations to the negative consequences of improper use of natural resources. Then, we

present in this essay our reflections concerning socio-natural risks and impacts in cities. In order to

achieve this aim, we consider that two elements boost this risks and impacts by. Firstly, we mention the

immediate rationality of economic production (especially when it incorporates space as merchandise).

Secondly, we cite the search for profits that subsume the guarantee of rights to quality of life and access

to goods and services to a significant part of urban populations that are directly exposed to certain kinds

of risks (i.e. floods, landslides, burying etc.).

Keywords: society-nature relationship, urbanisation, land speculation, environmental risks, socio-natural

impacts.

1)Introdução

Aqui, apresentamos um ensaio em que nos propomos a refletir e discutir certas ideias

concernentes à produção do espaço urbano. A proposta é procurar uma interpretação sobre riscos e

impactos de ordem socionatural que se manifestam nas cidades e atingem de modo marcante os grupos

sociais marginalizados por mecanismos político-econômicos concentradores de riquezas para uns e

distribuidores de uma série de problemas para muitos.

A população de baixa renda, nas periferias urbanas, é aquela que mais sofre em eventos como

enchentes, escorregamentos e desmoronamentos de encostas, soterramentos, exposição à contaminação

por doenças devido à falta de serviços de saneamento básico, entre outros. Então, neste trabalho

buscaremos relacionar tal problemática à existência de interesses econômicos que a impulsiona, como é o

caso da transmutação do solo em mercadoria no âmbito do capitalismo.

O caminho teórico percorrido tem inspiração nas abordagens de autores que trabalham

diretamente com a temática do meio ambiente na Geografia e também aqueles voltados para os estudos

do processo de urbanização. Para alcançarmos o objetivo central de analisar os desdobramentos negativos

da relação entre especulação fundiária e aumento da exposição da população de baixa renda aos riscos

socionaturais, articularemos diferentes perspectivas de análise dos processos que definem e redefinem

permanentemente o espaço urbano, mas localizando pontos de convergência entre os enfoques dados

pelos autores tomados como referências (BOTELHO, 2007; SINGER, 1979; SWYNGEDOUW, 2001;

DAVIS, 2006; GONÇALVES, 1984, 2006; SUERTEGARAY, 2001, 2002; BECK, 1998).

Assim, direcionaremos o trabalho para as questões relacionadas aos riscos e impactos

socionaturais nas cidades, potenciados pela racionalidade imediatista da produção econômica e da busca

de lucros que subsumem a garantia dos direitos à qualidade de vida e acesso a bens e serviços à

significativa parcela das populações urbanas que, em áreas periféricas de extrema precariedade, estão

diretamente expostas a certos tipos de riscos.

2) As potencialidades da urbanização versus os problemas de ordem social nas cidades

Obviedade aparente, porém, nunca desnecessário reafirmar, é a dimensão sem precedentes do

processo de urbanização na atualidade. De um mundo em que maior parte da população tinha laços mais

estreitos ao campo, a sociedade capitalista passou a ter como uma de suas principais características o

modo de vida urbano e a cidade como ponto nodal cujas redes de fluxos se ampliam pelo espaço

geográfico de forma tentacular, tanto do ponto de vista material quanto imaterial.

Atribui-se as causas deste processo generalizado da urbanização ao desenvolvimento da sociedade

como expressão da produção e incorporação do conhecimento científico, elaboração de novas técnicas e o

aumento dos fluxos de informações matizado pela união dos dois elementos anteriormente mencionados

(ciência e técnica), ou seja, pela produção, uso e disseminação da tecnologia. O conhecimento científico

moderno avalizou a aceleração da urbanização, ao passo que possibilitou a sofisticação das técnicas

apropriadas no modo capitalista de produção.

A urbanização, como todo e qualquer processo que se manifesta no espaço geográfico

constantemente produzido pela sociedade, ocorreu e ocorre pleno de contradições e conflitos. À mais

espacial de suas expressões, a cidade, igualmente não poderia faltar tal caráter. Em Gonçalves (1984),

encontra-se uma reflexão interessante a respeito dos problemas urbanos oriundos de processos em que

lógicas de planejamento priorizam as relações que beneficiam o capital monopolista. Os problemas ditos

urbanos, segundo este autor, em verdade estariam relacionados ao modo como se expressam, na cidade,

as contradições da sociedade - caracterizada por grandes desigualdades socioeconômicas.

A sociedade em que vivemos está fundada na produção de mercadorias. Nela todos são

proprietários de mercadorias, inclusive os trabalhadores, que vendem a sua capacidade de

trabalho em troca de um salário. A capacidade de cada um para usar os bens disponíveis

na cidade, é claro, tem uma relação com a disponibilidade monetária. Para que isso

ocorra, torna-se necessário que o proprietário de sua força de trabalho não tenha

condições de usá-la para si próprio. Para fazê-lo teria que dispor de condições e meios de

produção (terra, instrumentos de trabalho). Como não dispõe desses meios, só lhe resta a

alternativa de vender a sua capacidade de trabalho a outrem (que dispõe desses meios),

que é quem vai determinar o seu uso. [...] Se observarmos bem, a cidade é um meio

ambiente geográfico que serve de suporte a esse tipo de sociedade. Nela não se pode

obter diretamente o necessário, mas através da moeda. Não é à toa que o mundo se

urbaniza com o advento do capitalismo. Não é à toa, também, que o próprio espaço

urbano se diferencia em função da disponibilidade monetária dos seus habitantes. A

segregação social se manifesta no espaço urbano. (GONÇALVES, 1984, p. 66)

Neste sentido, é possível dizer que, além de a cidade expressar as contradições inerentes à

sociedade, ela também determina e expressa a intensidade dos problemas que se desdobram a partir destas

contradições. Não são incomuns as expressões “caos urbano” ou “crise urbana” em alguns estudos que se

dedicam à compreensão de diferentes dimensões da urbanização, desde aquelas relacionadas às questões

de segregação socioespacial, fragmentação urbana, especulação imobiliária, o papel do Estado nas

políticas de planejamento das cidades etc., até as temáticas referentes aos problemas ambientais urbanos.

Conforme Rattner:

No limiar do século XXI, quase todas as sociedades enfrentam a desanimadora

perspectiva de uma infindável crise urbana, conseqüência de um modelo obsoleto e

irracional da ocupação do espaço. Ademais, a acumulação de riquezas sem distribuição

equitativa de benefícios sociais exacerbou contradições e conflitos, particularmente nas

grandes aglomerações urbanas. A urbanização rápida e a intensa concentração de

indústrias, serviços e, portanto, de seres humanos, têm transformado as cidades no oposto

de sua razão de ser – um lugar para se viver bem, nas palavras de Aristóteles.

(RATTNER, 2001, p.9)

Embora se tenha consciência da diversidade dos problemas de ordem socionatural que existem em

muitas cidades – guardados seus respectivos contextos – desde já advertimos a inadequação e, talvez, o

erro, de certas ideias que imponham ao fato urbano um caráter apocalíptico. O mundo se urbanizou. As

cidades assumem papéis de centralidade econômica, política e cultural como nunca. As formas urbanas

representam novos elementos das paisagens. Suas dinâmicas se manifestam apenas de modo negativo

sobre a sociedade? Não, certamente.

A urbanização é produto e processo, tanto histórico quanto atual, das dinâmicas sociais a partir de

ações que territorializam o espaço geográfico, transformando-o de acordo com os interesses de produção

e reprodução dos territórios. As cidades, tendo como uma de suas tantas particularidades a aglomeração

de pessoas, são importantes centros de embates de ideias e ideais, espaços privilegiados para a ou em

nome de uma transformação social, nelas “vemos exercerem-se relações de dominação, mas também

realizarem-se experiências de elaboração de conhecimento libertador”. (ASSIS, 2001, p.7) A diversidade

social (leia-se como pluralidade) é, efetivamente, a maior potencialidade dos espaços urbanos.

3) Das potencialidades aos problemas urbanos: a transmutação da diversidade em desigualdade e a

pobreza na cidade

A partir do instante em que nossos olhares se encarregam de ler e analisar os problemas que se

manifestam nas cidades, somos levados a considerar as questões relacionadas à desigualdade social e sua

materialização no espaço geográfico. As diferentes possibilidades para se refletir sobre esta problemática

nos permitem falar das agruras da desnutrição, do analfabetismo, da ausência de saneamento básico, do

desemprego, da criminalidade, da mortalidade infantil, das doenças de veiculação hídrica, entre outras.

Estes males sociais são evidenciados a partir do momento em que se toma a segmentação do espaço

urbano como expressão da transmutação de sua diversidade social em desigualdade. O crescimento das

áreas de favelas ocorre, em grande parte, à margem da economia e da política das cidades.

Em Davis (2006), é possível encontrar alarmantes reflexões a respeito das características atuais do

processo de urbanização no planeta, sobretudo quando trata de compreendê-lo no âmbito dos países que

apresentam sérios problemas sociais (má distribuição de renda, desemprego, miséria, analfabetismo, entre

outros) diretamente relacionados aos seus respectivos quadros político-econômicos.

Em contraponto à concepção que, no plano da abstração, coloca a cidade como “lugar para se

viver bem”, observamos atualmente um processo de profunda desintegração social ao passo que muitas

das grandes cidades (sobretudo nos países subdesenvolvidos) assistem ao crescimento populacional que

tanto se origina em áreas de favelas quanto se direciona para elas. Estas crescem espacialmente sem que

isso signifique que receberão atenções e políticas especiais para que suas populações tenham acesso a

bens e serviços consumidos por habitantes das áreas centrais ou, em menor grau, das áreas periféricas que

não se caracterizam enquanto favelas.

Davis (2006, p.26) apresenta a ideia de “superurbanização” da sociedade e defende a tese de que

esta é “[...] impulsionada pela reprodução da pobreza, não pela oferta de empregos. Essa é apenas uma

das várias descidas inesperadas para as quais a ordem mundial neoliberal vem direcionando o futuro”.

Pelo que demonstra a realidade atual, a sociedade está diante da possibilidade muito próxima de

ter cada vez mais favelas. A partir do desenho de um quadro social como este, as cidades tendem a

apresentar crescimento acentuado dos problemas de ordem socioeconômica e ecológica.

Assim, as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por

gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente,

palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez das cidades de

luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na

miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração. Na verdade, o bilhão de

habitantes urbanos que moram nas favelas pós-modernas podem mesmo olhar com inveja

as ruínas das robustas casas de barro de Çatal Hüyük, na Anatólia, construídas no

alvorecer da vida urbana há 9 mil anos. (DAVIS, 2006, p.29)

O atual contexto de produção em massa de favelas remete ao rápido crescimento urbano na esteira

de rearranjos econômicos estruturais, desvalorização de moedas e recuo da participação do Estado na

economia dos países. Desta forma, desde a década de 1970, tem-se a receita com todos os elementos

indispensáveis ao crescimento das favelas por todo hemisfério sul. (cf. DAVIS, 2006)

Botelho (2007) apresenta elementos teóricos que relacionam a urbanização acoplada ao consumo

produtivo do espaço com o crescimento do setor imobiliário. A economia capitalista, em suas flutuações,

visualiza no espaço uma possibilidade de se direcionar e reter capitais nos momentos de crise. Quando

ocorrem retrações da produção industrial e da reprodução capitalista com base na relação imediata

produção-consumo, o setor imobiliário assume papel fundamental por sua capacidade de absorver os

impactos provenientes de quedas na produção industrial.

Perante a baixa produtividade e lucratividade da indústria, o capital recorre ao setor imobiliário

onde, em um primeiro momento, se imobiliza na compra de lotes urbanos, por exemplo. Posteriormente,

pode-se pensar no aquecimento do setor devido aos crescentes investimentos ao longo de um determinado

período. A partir destas dinâmicas, os proprietários fundiários podem se manter obtendo uma renda (por

meio de aluguéis, por exemplo) e/ou fazer com que os imóveis adquiridos se tornem bens móveis,

transformados em títulos de propriedade monetizados e passíveis de circulação enquanto tais.

Assim:

Para o entendimento da produção do espaço, sobretudo do espaço urbano, deve-se levar

em consideração, então, o monopólio de uma classe sobre o espaço – a alta burguesia, no

caso do capitalismo -, o que exclui principalmente os pobres da propriedade fundiária

(Harvey, 1980: 146). Isso porque a classe que detém a maior parte dos recursos pode,

através do dinheiro, ocupar, modelar e fragmentar o espaço da forma que melhor lhe

convém. A maximização dos valores de troca produz benefícios desproporcionais para

alguns grupos e diminui as oportunidades para outros (idem: 150). (BOTELHO, 2007,

p.22)

Seguindo a perspectiva de Botelho (2007), tem-se que a fragmentação do espaço urbano advém

justamente do fato deste, no âmbito da economia capitalista contemporânea, ser pleno em oposições,

segregações e contradições. Há uma relação dialética e complexa entre o capitalismo e o espaço.

Considera-se que o espaço é uma condição geral à existência e reprodução da sociedade. No capitalismo,

adquire a especificidade de se trasladar em meio de produção para a geração de mais-valia e propiciar a

obtenção de renda por parte dos proprietários fundiários. Ou seja, o espaço é consumido produtivamente.

O consumo produtivo sempre faz desaparecer uma realidade material ou natural – uma

energia, uma força de trabalho, um instrumento, por exemplo, para transformar-se em

valor adicionado à mercadoria. O consumo produtivo usa: é um uso e um valor de uso.

Ele também produz. (LEFEBVRE, 1991: 34). E como a privatização dos meios de

produção é uma determinação geral do capitalismo, isso implica em uma crescente

privatização do espaço na medida em que este se incorpora ao capital como meio de

produção. (BOTELHO, 2007, p. 23)

E quando não há a privatização deliberada e explícita do espaço, o Estado assume um papel

fundamental por meio das ações de rearranjos espaciais a favor do capital e com a finalidade de

aperfeiçoar a sua lógica de circulação. O espaço urbano “passa, então, a ter cada vez maior importância

para o capital, ao mesmo tempo em que é ‘influenciado’ pela dinâmica do modo de produção capitalista”.

(cf. BOTELHO, 2007, p. 23)

Dessa forma, o espaço consumido produtivamente nas estratégias de acumulação

capitalista é transformado, tem suas qualidades alteradas pelo consumo, porém, possui a

capacidade, ao ser transformado, também transformar e produzir o novo, como nos

lembra Henri Lefebvre, o consumo do espaço é duplamente produtivo, na medida em que

produz tanto mais-valia como outro espaço (Lefebvre, 1991: 374-5). No caso da

sociedade regida pelo modo de produção capitalista contemporâneo, o novo, o “outro

espaço”, seria a urbanização do planeta. E essa urbanização, comandada pelos princípios

da geração de mais-valia, estaria marcada pela crescente segregação socioeconômica e

cultural (Lefebvre, 1978: 222). (BOTELHO, 2007, p.28)

Portanto, ao seguir as ideias de Lefebvre, Botelho demonstra claramente a forma como o espaço

tem influência direta nas dinâmicas das relações socioeconômicas no âmbito do capitalismo. O espaço

urbano é representativo destas dinâmicas porque as cidades são os loci das manifestações espaciais de

uma série de contradições que têm como ponto de partida a apropriação, o parcelamento, a

comercialização e a especulação fundiária.

Sendo assim, a porção de espaço que não é capaz de gerar mais-valia em determinado momento,

ou seja, a porção que não é incorporada aos interesses do capital enquanto meio de produção, certamente

será aquela com valores baixos ou praticamente nulos. Este fator tem papel fundamental na consolidação

de áreas em que se concentram as classes dominantes, de modo que estas áreas se caracterizam -

conforme o seu nível de aparelhamento, localização, enfim, sua capacidade de fazer fluir os fluxos

econômicos - pela atração de empresas ou pela construção de moradias das camadas mais abastadas da

sociedade. Em contrapartida, os pobres se concentram ou são forçados a se concentrar nos locais em que

esta incorporação não ocorre.

A precarização das periferias urbanas, principalmente das grandes cidades do mundo

subdesenvolvido, cresce a cada ano. Tal fato está relacionado, entre outros elementos, ao processo de

apropriação capitalista do espaço direcionado aos interesses de classes específicas. Davis (2006) lembra

que a população das favelas em escala mundial cresce em ritmo de 25 milhões de pessoas a cada ano

conforme dados do UN-Habitat. Isso bem representa a manifestação dos problemas sociais que resultam

das contradições que historicamente emergem no âmbito do capitalismo e se aceleram de modo

significativo, denotando os elementos negativos das políticas neoliberais na contemporaneidade.

Tanto a renda em si quanto as potencialidades espaciais (expressas pelas melhores localizações em

termos de distribuição de redes de serviços, acessibilidade aos mesmos, enfim, uma infraestrutura urbana

de boa qualidade) que contribuem diretamente ao acúmulo da renda, não são equitativamente distribuídas

entre os diferentes segmentos das populações urbanas. Assim, as desigualdades se manifestam em termos

de renda, não inserção da população pobre no uso de determinados serviços urbanos – ou inserção muito

precária, caso ela aconteça –, verdadeiros movimentos de expulsão de grande número de pessoas para

áreas degradadas, impossibilidades da população pobre em acessar serviços básicos de educação e cultura

e maior sujeição à distribuição espacial perversa de fatores ambientais muito mais negativos do que

positivos.

Parafraseando Davis (2006), o feng shui que resta para a população pobre de várias das grandes

cidades do mundo é caracterizado pela precariedade, onde:

[...] local de risco e perigoso para a saúde é a definição geográfica do típico assentamento

de invasores [...]. Os invasores trocam a segurança física e a saúde pública por alguns

metros quadrados de terra e alguma garantia contra o despejo. São os povoadores

pioneiros de pântanos, várzeas sujeitas a inundações, encostas de vulcões, morros

instáveis, montanhas de lixo, depósitos de lixo químico, beiras de estradas e orlas de

desertos. [...] Exatamente por ser tão perigoso e desagradável, o local oferece “proteção

contra o aumento do valor dos terrenos da cidade”. (SEABROOK, 1996, p.177) Esses

locais são o nicho da pobreza na ecologia da cidade, e gente paupérrima tem pouca opção

além de conviver com os desastres. (DAVIS, 2006, p.127)

Portanto, entende-se que a pobreza, do ponto de vista espacial, encontra-se às margens do espaço

das cidades pelo qual circula, em suas atividades quotidianas, parte da população que pode ser definida

enquanto cidadã porque tem seus direitos sociais, civis e políticos atendidos, participando do universo do

trabalho formal, da educação, da cultura, da política e até mesmo do consumo.

As pessoas ditas marginais, em sentido literal (sem a conotação da violência e criminalidade,

embora estas também sejam questões que permeiam o conjunto desta discussão), que subsistem em

determinados contextos urbanos nos quais suas vidas são marcadas pela resistência e/ou resignação frente

à voracidade do sistema econômico e seu quadro de injustiça social, também são obrigadas a conviver

com os riscos dados por ocupações comumente inadequadas em áreas de vulnerabilidade geoecológica.

Estamos diante de outro problema...

4) A transmutação da desigualdade em riscos e/ou impactos socionaturais: como analisar esta

questão?

Anteriormente salientamos que o processo de urbanização não deve ser encarado em termos

apocalípticos, sequer na via de um pensamento catastrofista ou algo do gênero: estamos diante da

evidência das cidades enquanto espaços vitais à sociedade atual, o retorno idílico aos campos e à vida

mais próxima de uma “natureza intocada” parecem cada vez mais distantes.

Temos consciência, igualmente, de que não é possível visualizar a cidade apenas no viés de suas

potencialidades, ou seja, quando pensamos em sua importância política como espaço no qual também são

construídos conhecimentos libertadores, capazes de promover transformações sociais para benefício

coletivo. Infelizmente existem os entraves à caracterização das cidades a partir das suas potencialidades

porque há a tendência em pensarmo-las tomando como referencial mais urgente os seus problemas – leia-

se a manifestação espacial das contradições do tipo de sociedade em que vivemos. (cf. GONÇALVES,

1984) Mas, ao que tudo indica, esta é a incontestável realidade.

Botelho (2007, p. 28), seguindo as ideias de Lefebvre (1999), apresenta um conjunto composto

por uma série de elementos que podem ser definidos enquanto contradições inerentes ao espaço e à sua

produção. Aqui, de acordo com os rumos desta reflexão, serão expostos apenas quatro dos itens, listados

pelo autor, que exemplificam as contradições do espaço:

a) Entre o espaço globalmente produzido, em escala mundial, e suas fragmentações e

pulverizações que resultam das relações de produção capitalistas (da propriedade privada

dos meios de produção e da terra, isto é, do próprio espaço). O espaço é transformado em

migalhas, trocado (vendido) aos pedaços, conhecido de forma fragmentada pelas ciências

parcelares, enquanto se forma como totalidade mundial e mesmo interplanetária.

b) A extensão do capitalismo generaliza a análise crítica, feita por Marx, de sua

constituição “trinitária” (terra, capital, trabalho). O modo de produção capitalista impõe

uma unidade repressiva a uma separação (segregação) generalizada dos grupos, das

funções, dos lugares, no espaço urbano.

c) A cidade se estende desmesuradamente, havendo a absorção do campo pela cidade,

ocorrendo simultaneamente a urbanização da sociedade e a ruralização da cidade. As

extensões urbanas (subúrbios, periferias, próximas ou longínquas) são submetidas à

propriedade da terra, às suas conseqüências: renda fundiária, especulação, rarefação

espontânea ou provocada, etc.

d) O controle da natureza, ligado às técnicas e ao crescimento das forças produtivas,

submetido unicamente às exigências do lucro conduz à destruição da natureza.

(BOTELHO, 2007, p. 28)

Esta passagem de Botelho é de extremo interesse ao pensarmos na manifestação dos processos que

geram os profundos abismos entre as classes sociais nos espaços urbanos. Na esteira dos processos como

segregação socioespacial e fragmentação do espaço urbano de acordo com os interesses dos agentes

incorporadores, especialização dos lugares em contraponto à quase total desvalorização de outros, tudo

isso nos permite compreender parte dos fatores que levam ao crescimento da pobreza urbana no ritmo do

dado demográfico apresentado por Davis (2006) e anteriormente mencionado.

Atenção especial deve ser dedicada quando se constata que a destruição da natureza no processo

de apropriação capitalista é um postulado de contradição ao próprio crescimento econômico, afinal,

natureza degradada não se converte em mercadoria...

Interessante, neste momento, frisar a observação de Milton Santos quanto à transformação das

relações entre a sociedade e a natureza no decorrer do tempo:

A história da humanidade parte de um mundo de coisas em conflito para um mundo de

ações em conflito. No início, as ações se instalavam nos interstícios das forças naturais,

enquanto hoje é o natural que ocupa tais interstícios. Antes, a sociedade se instalava sobre

lugares naturais, pouco modificados pelo homem, hoje, os eventos naturais se dão em

lugares cada vez mais artificiais, que alteram o valor, a significação dos acontecimentos

naturais. (SANTOS, 1999, p.117)

As repercussões desta alteração de valor e significação dos acontecimentos naturais, devido às

intensas transformações que a sociedade imprime sobre a dimensão natural do espaço geográfico, se

tornam cada vez mais graves na medida em que as cidades, por exemplo, extrapolam para além de certos

limites as áreas que se prestam para construção de moradias aos chamados invasores que, na realidade, se

trata de uma parcela da sociedade sem recursos e alternativas para usufruir de locais mais valorizados

pelo capital.

A urbanização acelerou-se com o passar do tempo e ampliou-se espacialmente. Ao analisarmos a

forma como isto influencia as dinâmicas naturais no meio ambiente direcionamos a reflexão ao aumento

da intensidade, da alternância dos ritmos e variações na duração de certos fenômenos da natureza. As

cidades são pontos nodais de mudanças das características de elementos bióticos e abióticos em sistemas

naturais cada vez mais artificializados. Deste modo, irrompe o pensamento ecológico muito mais do que

um complemento para adentrarmos na compreensão da produção do espaço urbano. A reflexão ecológica

em sinergia com a reflexão econômica é fundamental para a visão multidimensional das dinâmicas que

permanentemente definem e redefinem os espaços das cidades, pois:

Observando mais de perto [...], a cidade e o processo urbano são uma rede de processos

entrelaçados a um só tempo humanos e naturais, reais e ficcionais, mecânicos e

orgânicos. Não há nada “puramente” social ou natural na cidade, e ainda menos anti-

social ou antinatural; a cidade é, ao mesmo tempo, natural e social, real e fictícia. Na

cidade, sociedade e natureza, representação e ser são inseparáveis, mutuamente

integradas, infinitamente ligadas e simultâneas; essa “coisa” híbrida socionatural

chamada cidade é cheia de contradições, tensões e conflitos. (SWYNGEDOUW, 2001,

p.84)

Nas reflexões de Swyngedouw a respeito do caráter híbrido das cidades, percebe-se o peso dado

pelo autor à necessidade de que seja incorporada, em análises da produção do espaço urbano, a dimensão

da ecologia política. É certo que compreender a urbanização e a cidade nesta perspectiva não excluiria o

foco, também importante, da economia política. Tomando as ideias do autor mencionado, elaboramos o

seguinte esquema:

O esquema anteriormente exposto permite uma leitura do que Swyngedouw (2001) classifica

como processos socionaturais que envolvem a produção da cidade como um híbrido entre natureza e

sociedade. Sob a perspectiva materialista de análise, em que são consideradas a historicidade e a

geograficidade dos fatos sociais e naturais, o autor nos remete à modernização no âmbito econômico

enquanto fator determinante para a transformação das dinâmicas de conjuntos ecológicos inteiros. A

partir do momento em que a sociedade impulsiona este processo, tem-se a produção da chamada

socionatureza.

Assim, o capitalismo se desenvolve e cada vez mais incorpora ou se apropria das potencialidades

naturais do espaço e produz mercadorias através da metabolização destes elementos que se trasladam em

diferentes objetos. As relações de transformação se potencializam na medida em que aos objetos

Esquema 1: Produção de cidades cyborgs. Org.: Reginaldo J. Souza. Elaborado com base

em Swyngedouw (2001).

socionaturais são agregados valores que os tornam mercadorias. O consumo da natureza artificializada

possibilita a expansão da metabolização porque lucros são reaplicados no sistema produtivo e na

sofisticação tecnológica. Neste ínterim, a produção e as mercadorias no âmbito do sistema econômico

transformam as relações entre homem e natureza e transformam as próprias relações sociais. As cidades

se tornam verdadeiros sistemas que resultam de hibridações, por meio da “urbanização-cyborg”.

Urbanidade e urbanização capturam aqueles objetos em proliferação que Donna Haraway

chama “cyborgs” (HARAWAY, 1991) ou a que Bruno Latour se refere como “quase-

objetos” (LATOUR, 1993); são eles intermediários que corporificam e mediam natureza

e sociedade e tecem uma rede de transgressões infinitas e espaços fronteiriços.

(SWYNGEDOUW, 2001, p.84-5)

E Swyngedouw (2001) nos lembra que a “urbanização-cyborg” é o resultado de uma combinação

complexa em que os processos socioecológicos são corporificados na vida urbana. O autor, em seu

trabalho intitulado “A cidade como um híbrido: natureza, sociedade e ‘urbanização-cyborg’”, exemplifica

de modo didático e aprofundado a forma como esta combinação pode ser apreendida teoricamente.

Aludindo a brincadeiras de crianças no bairro do Bronx, Nova Iorque, quando estas fazem esguichar a

água dos hidrantes sobre as calçadas enquanto dançam ao som do rap em dias quentes de verão,

Swyngedouw considera que as crianças em “sua exortação alegre da vida cotidiana da grande cidade são

um testemunho da produção socionatural da cidade e da vida urbana”. (2001, p. 85) E, assim, continua:

Se eu fosse captar um pouco daquela água em um copo, expor as redes que a trouxeram

até ali e seguir o fio de Ariadne através da água, “passaria continuamente do local para o

global, do humano ao não humano” (LATOUR, 1993: 121). Esses fluxos poderiam narrar

muitas estórias inter-relacionadas da cidade: a estória do seu povo e dos poderosos

processos socioecológicos que produzem o urbano e seus espaços de privilégio e

exclusão, de participação e marginalidade, de ratos e banqueiros, de doença de veiculação

hídrica e especulação acerca do futuro e das opções da indústria da água, de reações de

transformações químicas, físicas e biológicas, do ciclo hidrológico e do aquecimento

global, do capital, das maquinações e estratégias dos construtores de barragens, de

incorporadores do solo urbano, dos conhecimentos dos engenheiros, da passagem do rio

para os reservatórios urbanos. Em suma, meu copo d’água incorpora múltiplas estórias da

“cidade como um híbrido”. (SWINGEDOUW, 2001, p. 85)

[...] Beber água do hidrante combina a circulação do capital produtivo, mercantil e

financeiro com a produção de renda fundiária e suas correspondentes relações de classe; a

transformação ecológica de complexos hidrológicos e o processo bioquímico de

purificação com a sensação libidinosa e a necessidade fisiológica de beber líquidos; a

regulação social do acesso à água com imagens de clareza, limpeza, saúde e pureza. (p.

90)

Portanto, por meio das reflexões deste autor é possível relacionar diferentes perspectivas de

análise para alcançar interconexões de escalas e processos que são responsáveis pela urbanização de

modo geral e pela caracterização das cidades em si. Através do esquema 2, a seguir, é possível

exemplificar (não de maneira total) a rede de relações e perspectivas conceituais inerentes à realidade da

urbanização, no cerne da abordagem socionatural, pensadas a partir da observação de uma ação

corriqueira (beber água de fontes urbanas artificiais).

Por meio do esquema apresentado, o que se procurou explicitar foi a necessidade de levantar toda

a “arqueologia” de uma ação-cyborg corriqueira (beber água) com vistas à compreensão de processos

complexos que podem ser apreendidos por meio de diferentes perspectivas conceituais, mas que

conduzem o nosso olhar à hibridação. A análise socioecológica do uso da água envolve múltiplos

elementos que vão desde a relação de classes numa perspectiva econômica até as representações

simbólicas individuais e/ou coletivas numa perspectiva psicológica. Não se trata de dar foco ao objeto ou

ação-cyborg em si, mas à rede de fenômenos e processos metabólicos que os produzem e que por eles são

internalizados.

A abordagem de Swyngedouw (2001) é de interesse à reflexão que aqui se faz pelos seguintes

motivos:

- Permite recentrar a dimensão da natureza na compreensão da urbanização e entender as relações

entre sistema econômico, modernidade, convívio-transformação-destruição dos elementos naturais e

cidade;

- Em sinergia com os trabalhos de Davis (2006) e Botelho (2007), anteriormente citados, é-nos

possível concatenar elementos teóricos que ampliem o ângulo de visão sobre as questões ambientais em

espaços urbanos marcados pela precariedade das condições de sobrevivência, pois:

- A pobreza (que já é um problema em si) tem uma relação direta com certos problemas de ordem

ambiental que se manifestam nas cidades cuja organização territorial deixa a desejar em termos de

garantia da cidadania e qualidade de vida dos seus habitantes, sendo mais eficiente na garantia da

otimização dos fluxos econômicos de acordo com os interesses de grupos específicos;

Esquema 2: Exemplo de processos socioecológicos que se corporificam na vida urbana. Org.: Reginaldo J. Souza. Elaborado com base em Swyngedouw (2001).

- A incorporação, muitas vezes acoplada aos interesses de especuladores, tem enorme parcela de

responsabilidade na desintegração social de grande parte da população sem recursos, ao passo que

literalmente lança grande contingente de pessoas sobre ambientes inadequados para ocupação do ponto de

vista geoecológico;

- Além do mais, este foco no caráter socionatural da urbanização permite refletir sobre a

transmutação das desigualdades sociais em possíveis riscos que venham afligir a população pobre das

cidades ou que já tenham se realizado na forma de impactos que afetam a saúde física e mental das

pessoas ou até mesmo venham levá-las à morte (escorregamentos de encostas, enchentes, contaminações,

precariedade ou ausência de serviços que garantam boas condições sanitárias, entre outros).

5) Visão socionatural da cidade-cyborg: para uma reflexão sobre os riscos à vida nas periferias

Pensar na cidade como um sistema socionatural em que fatos econômicos, políticos e culturais se

fundem às dinâmicas do meio natural em um processo inacabado de hibridação implica em análises de

interface entre dois universos aparentemente díspares. Em verdade, para que a esfera do humano/social

exista, ela está muito mais conectada/dependente da natureza do que a natureza a ela

conectada/dependente. A natureza com seus ciclos e ritmos próprios, encarada como extensão infinita (da

escala planetária para a universal), é algo que existe independentemente de qualquer desejo ou projeto

humano/social.

A ideia da hibridação ou da interface, para tratarmos dos processos socionaturais que caracterizam

o espaço geográfico, conduz a construções conceituais que permitem ampliar horizontes de análises

científicas e reflexões filosóficas/epistemológicas. Porém, consideramos que seja preciso tomar certo

cuidado, não especificamente com este(s) tipo(s) de abordagem(ens) em si, mas com interpretações...

talvez, equivocadas.

Hibridar o social ao natural ou o natural ao social não significa passar por cima dos processos

epaço-temporais e das especificidades da própria natureza, esquecê-los. Como se a natureza sempre

tivesse sido transformada pela sociedade e como se assim permanecesse eternamente. É certo que esta

hibridação possui sentido quando compreendemos as profundas alterações das dinâmicas da natureza no

bojo das transformações socioeconômicas que passaram a transmutar de modo ainda mais profundo os

elementos naturais com o advento do capitalismo. Este é um ponto crucial inclusive: a sociedade tem esta

capacidade de transformar os elementos naturais de maneira aparentemente irreversível, mas não a

natureza enquanto totalidade. Porém, mesmo que as alterações não sejam totais, elas representam o

comprometimento da manutenção da vida humana e da reprodução da sociedade (do ponto de vista

econômico, político e cultural). Portanto, hibridar o social ao natural ou vice-versa faz todo sentido sob o

prisma humanista. Com enfoque sobre a importância de se promover uma cultura conservacionista com

preocupações direcionadas ao homem biológico e ao homem social.

Pensar na dialética entre sociedade e natureza com o enfoque para os processos contraditórios que

surgem através de embates entre dinâmicas divergentes (e a forma como uma dinâmica age sobre a outra)

não seria um percurso analítico adequado para seguir. O cerne da questão reside justamente na urgência

em superar pontos de vista setoriais em que natureza e sociedade, na conformação do espaço geográfico,

aparecem enquanto “universos” distintos e conflitantes. O espaço geográfico é natureza e sociedade.

Artificializaçao de elementos e (algumas) dinâmicas naturais. Produção de representações simbólicas

destes processos. O projeto sobre uma natureza-fonte para se chegar numa natureza-recurso. A área de

extração do recurso que de tão intensamente explorada se transforma em área de impacto. A natureza

artificializada, com suas temporalidades alteradas, adianta alguns processos e desaba sobre os artífices.

Mesmo integrantes de espaços apropriados pelo homem e sua sociedade, não escapam ao

controle do fluxo de matéria e energia que rege a existência do sistema solar, do planeta

Terra e seus componentes. É bem verdade que em muitos lugares – como as grandes

cidades e seu cotidiano, por exemplo –, tem-se a falsa impressão de que o homem é o

grande regente, que a “natureza” e suas forças ou não existem ou foram subjugadas aos

desígnios humanos. (MENDONÇA, 2002, p. 138-9)

Os homens estão na natureza e a natureza está nos homens. Este também é um dos postulados da

produção do espaço urbano. As cidades são expressões concretas desta fusão. Ao mesmo tempo em que

são grandes sistemas artificiais, resguardam uma essência natural, pois nesta reside significativa parte da

origem de sua existência material. A mata devastada para a implantação do sítio urbano é a mesma

reclamada por seus habitantes em nome da garantia de “ar puro”, sombra e frescor, pelo embelezamento

estético, pela contenção de desmoronamentos de encostas.

Suertegaray (2002) nos fala de uma transfiguração da natureza ao buscar elementos teóricos

adequados às novas discussões no âmbito de estudos geográficos das questões ambientais. Para a autora:

O termo transfiguração [...] adotado é entendido conforme apresenta MAFFESOLI (1995)

“transfiguração é a passagem de uma figura para a outra. Além disso, ela é de uma certa

maneira, mesmo que mínima, próxima da possessão”. Assim, uma natureza possuída pelo

homem transfigura-se, adquire uma outra dimensão. (SUERTEGARAY, 2002, p.115-6)

Vivenciamos um momento de nossa história em que a transfiguração da natureza é evidente por

todo espaço geográfico e... didática nos espaços urbanos. A transfiguração enfatiza a artificialização da

natureza pela sociedade sem negar a própria essência da natureza mesmo que artificializada. As cidades

elucidam este processo. Embora os elementos naturais apropriados pelo homem social estejam

descaracterizados em ambientes urbanizados, as suas dinâmicas se desdobram em certos acontecimentos

determinantes de verdadeiros impactos que assombram, sobretudo, a vida das pessoas

socioeconomicamente desfavorecidas.

Para retomarmos a reflexão sobre os problemas relacionados à questão social da pobreza e

consequente ampliação das áreas de riscos nas cidades, voltamos ao elemento explicativo baseado nas

ações de agentes incorporadores do solo urbano e sua significativa responsabilidade nos movimentos,

rumo às periferias, de grande contingente populacional que não pode pagar os preços (extorsivos para

suas possibilidades) das áreas mais valorizadas.

Nas palavras de Singer:

Em última análise, a cidade capitalista não tem lugar para os pobres. A propriedade

privada do solo urbano faz com que a posse de uma renda monetária seja requisito

indispensável à ocupação do espaço urbano. Mas o funcionamento normal da economia

capitalista não assegura um mínimo de renda a todos. Antes, pelo contrário, este

funcionamento tende a manter uma parte da força de trabalho em reserva, o que significa

que uma parte correspondente da população não tem meios para pagar pelo direito de

ocupar um pedaço do solo urbano. Esta parte da população acaba morando em lugares em

que, por alguma razão, os direitos de propriedade privada não vigoram: áreas de

propriedade pública, terrenos em inventário, glebas mantidas vazias com fins

especulativos, etc., formando as famosas invasões, favelas, mocambos, etc... Quando os

direitos da propriedade privada se fazem valer de novo, os moradores das áreas em

questão são despejados, dramatizando a contradição entre a marginalidade econômica e a

organização capitalista do uso do solo. (SINGER, 1978, p. 33-4)

A processualidade exposta por Singer pode ser aludida através da alegoria do “efeito dominó”. A

incorporação imobiliária que manipula até mesmo a distribuição perversa dos serviços urbanos pelo

Estado, favorecendo a valorização dos terrenos e aumento da renda dos incorporadores, é capaz de fazer

valer suas determinações até um limite extremo em que certamente a demanda por imóveis não será mais

rentável (quando cai o último dominó). O que ocorre após esse limite é a grave sujeição da população que

o ocupa às intempéries, inundações, aos deslizamentos, desabamentos, soterramentos, afogamentos etc.,

sem abrir mão de mencionar as contaminações por detritos orgânicos e inorgânicos que muitas vezes se

fazem presentes nestas áreas pela ausência de serviços sanitários básicos e/ou pela proximidade às fontes

poluidoras (uma indústria química ou um depósito de lixo, por exemplo).

Uma pequena, mas relevante observação deve ser feita neste instante. Embora nossas reflexões se

direcionem a explicitar um processo ocorrente, sobretudo, em cidades localizadas em países com presença

marcante de áreas urbanas caracterizadas por extrema degradação social devido à impossibilidade dos

pobres de pagarem por moradias em localidades adequadas e o modo como estas áreas são afetadas em

eventos de extrema disjunção entre dinâmicas naturais e sociais.

Obviamente não deixaríamos de considerar que não é somente na favela, no morro ou na várzea,

que ocorrem impactos socionaturais. Os jornais, a internet, os noticiários televisivos bem demonstram que

as cheias, por exemplo, afetam tanto o centro quanto a periferia. Fazem ruir tanto moradias modestas

quanto prédios históricos. Arrastam carros importados e motocicletas. Basta que haja impermeabilização

do solo associada às áreas de vulnerabilidade – a planície de inundação, o córrego canalizado, vertentes

circundantes desmatadas... O elemento crucial – e que norteia a elaboração deste texto – é justamente

procurar entender, senão todos, ao menos alguns fatores que levam grandes camadas da população a

sofrer de modo mais intenso a irascibilidade destes eventos. Pouco a pouco, por meio do encadeamento

das nossas ideias, podemos apontar alguns deles:

1) Há um quadro de injustiça que envolve esta problemática. Ele é dado pelas dinâmicas

socioeconômicas excludentes que geram (des)arranjos espaciais nas cidades que bem

expressam a distribuição desigual de riquezas e, consequentemente, de riscos. Estes

(des)arranjos estão, nos dias de hoje, diretamente relacionados às práticas de incorporação

imobiliária, especulação fundiária e certas obras de “reforma urbana” em que se associam

poder público e iniciativa privada;

2) Embora o ordenamento territorial, na perspectiva das políticas públicas, tenha a obrigação de

garantir a qualidade de vida para toda a população, na maior parte das vezes ele acaba por

favorecer um processo contrário: garante os interesses econômicos de grupos específicos

(leiam-se, detentores de capitais);

3) Os discursos ecológicos e ambientalistas estão em plena profusão, porém, em diversos

momentos, deixam a desejar em termos de apresentarem propostas que apontem soluções

(mesmo efêmeras, mas que já se estabeleçam como ponto de partida para algo mais

abrangente) para problemas reais. As ideias de preservação e contemplação da natureza ainda

pairam sobre muitas mentalidades. O desejo de preservação de uma “natureza sacralizada” é

poético, mas a beleza da iniciativa ofusca a realidade da necessidade em se utilizar dos

recursos. Não de modo predatório (como acontece atualmente), mas de acordo com uma

racionalidade permeada por princípios de equilíbrio, seja na conservação seja na distribuição

dos mesmos para a sociedade;

4) Muito se fala sobre desenvolvimento sustentável como forma de resolver problemas

econômicos, sociais e ambientais. Mas tudo permanece muito amorfo. A sustentabilidade ideal

é messiânica. No plano da realidade, em certos casos, é falaciosa. Principalmente quando seus

sustentáculos conceituais são apropriados pela propaganda capitalista e, comumente,

propiciam agregar maior valor a certos produtos vendidos no mercado. Muitas empresas são

“sustentáveis”. Muitos funcionários não sabem o que isso significa... Pouco se conhece de

transformação social efetiva no bojo destas práticas “inovadoras”;

5) O conhecimento científico ainda encontra entraves para disseminar visões plurifocais sobre a

hibridação entre sociedade e natureza e o modo como esta simples noção nos permite refletir

de maneira inquietante e construtiva sobre a nossa complexa condição de ser humano, ser

social, ser urbano, ser natural e todos seus desdobramentos. E, neste caso, nos referimos

mesmo de um ponto de vista pedagógico, de levar conhecimentos interdisciplinares às pessoas

para que se distanciem cada vez mais de posturas embebidas no pessimismo ou conformismo

com a realidade. A prática de inclusão cultural é um dos elementos através do qual se

permitirá às pessoas saírem do estado letárgico da resignação frente a suas péssimas condições

de vida e buscarem transformações sociais efetivas. Outros elementos para que se chegue a

isso é a luta, a organização coletiva, a busca pela garantia dos direitos até agora não

garantidos.

Para trazer mais elementos a esta reflexão, temos em Davis o seguinte:

Em termos abstratos, as cidades são a solução para a crise ambiental global: a densidade

urbana pode traduzir-se em maior eficiência do uso da terra, da energia e dos recursos

naturais, enquanto os espaços públicos democráticos e as instituições culturais também

oferecem padrões de diversão de qualidade superior ao do consumo individualizado e do

lazer mercadorizado. (DAVIS, 2006, p. 139)

De fato, em termos abstratos observamos mais uma das potenciais vantagens da urbanização, além

da já mencionada capacidade de aglomerar a diversidade e fazer com que o convívio (muitas vezes,

conflituoso) seja capaz de gerar conhecimentos libertadores para as pessoas buscarem, tanto do ponto de

vista individual quanto coletivo, soluções aos entraves da vida quotidiana numa sociedade marcada por

mecanismos propulsores de iniquidades e desesperanças.

A outra potencial vantagem da urbanização presente na reflexão de Davis (2006) entra na

perspectiva do meio ambiente. A cidade como solução para a crise ambiental global. A cidade

espacialmente concentrada, densa, com maior eficiência no uso da terra, energia e dos recursos da

natureza. Esta é uma visão que não deveria estar no plano da utopia. Mas as cenas e cenários

socionaturais que observamos nos espaços urbanos distanciam, (in)tensamente, a cidade desta realidade

ideal.

Os fatores apontados como responsáveis pela produção, permanência e reprodução das camadas

desfavorecidas, e sua sujeição com rigores de maior gravidade aos riscos e impactos, também explicam a

urbanização da sociedade a partir de critérios de uma racionalidade inadequada do ponto de vista da

solução dos problemas ambientais. Na cidade, o híbrido socionatural parece uma disjunção insolúvel. E,

enquanto as perspectivas de planejamento territorial, análises de impactos e incorporação destas análises

ao planejamento não dão respostas aceitáveis e promovem ações eficientes, o “cyborg enferrujado” se

esfacela1. A ironia subjacente a este processo é o fato de as engrenagens do cyborg decadente

continuarem funcionando, ainda alimentadas pelo combustível da fruição dos lucros, acentuação da

desigualdade socioeconômica e dos riscos e impactos socionaturais a ela relacionados.

O que consideramos como risco de acordo com a finalidade desta reflexão, entre outras formas de

concepção, diz respeito exatamente à possibilidade de perigo que a sociedade, de modo geral, está sujeita

em relação a eventos nos quais algumas dinâmicas da natureza, profundamente alteradas pelas ações da

sociedade, podem causar danos materiais para as pessoas. É certo que não se trata de uma visão

“naturalizante” destes processos, pois temos como princípio básico considerar as alterações como

resultados diretos de mecanismos econômicos e políticos movidos por agentes pouco ou não totalmente

preocupados com questões ambientais (entre sociedade e natureza).

Castro et al (2005, p. 12) apresentam uma interessante definição sobre o risco:

O risco pode ser tomado como uma categoria de análise associada a priori às noções de

incerteza, exposição ao perigo, perda e prejuízos materiais, econômicos e humanos em

função de processos de ordem "natural" (tais como os processos exógenos e endógenos da

Terra) e/ou daqueles associados ao trabalho e às relações humanas. O risco (lato sensu)

refere-se, portanto, à probabilidade de ocorrência de processos no tempo e no espaço, não

constantes e não-determinados, e à maneira como estes processos afetam (direta ou

indiretamente) a vida humana.

Risco, por este prisma, representa uma situação em estado de latência. Em Beck (1998)

encontramos a ideia de risco associada às consequencias da modernização que se plasmam em ameaças

irreversíveis à vida e o autor trabalha com esta perspectiva considerando que “a ganância de poder do

‘progresso’ técnico-econômico se vê eclipsada cada vez mais pela produção dos riscos”. (1998, p. 19)

A partir da perspectiva de Beck (1998), é possível refletir sobre os aspectos da (des)organização

da sociedade atual em escala planetária ao ritmo das transformações econômicas e políticas e das

1 Esta metáfora tem inspiração nas abordagens de Swyngedouw (2001) e Botelho (2007). O cyborg (a cidade cyborg) como um híbrido

socionatural que se fragmenta por meio das “forças” do capital; desta forma, o espaço urbano, representado na figura do cyborg, se torna contraditoriamente um “organismo” desarmônico, esfacelado, com seu funcionamento precário, em que as dinâmicas terão reflexos negativos sobre a população das cidades. É importante salientar que a fragmentação do espaço urbano terá impactos diferentes sobre os citadinos. No caso dos impactos e riscos socionaturais, os habitantes com rendas mais elevadas sentirão de modo menos intenso suas consequências.

características do capitalismo no período contemporâneo: a superprodução industrial, o uso ampliado de

novas tecnologias no sistema produtivo e o aumento da produção social de riquezas proporcional ao

aumento da produção social de riscos. Certamente o acúmulo de riquezas se traduz em desigualdade entre

os diferentes grupos sociais; por outro lado, os riscos gerados pela chamada ganância do poder econômico

podem se distribuir segundo uma lógica mais “democrática”: a poluição atmosférica, por exemplo, pode

causar ou potencializar doenças respiratórias desde os mais ricos aos mais pobres. Mas existem certos

tipos de riscos que, ao serem distribuídos, podem manifestar típicas situações de classe, assim como

ocorre com a distribuição de riquezas.

Conforme Beck:

El tipo, el modelo y los medios del reparto de los riesgos se diferencian sistemáticamente

de los del reparto de la riqueza. Esto no excluye que muchos riesgos estén repartidos de

una manera específica de las capas o clases. En este sentido, hay amplias zonas de

solapamiento entre la sociedad de clases y la sociedad del riesgo. La historia del reparto

de los riesgos muestra que éstos siguen, al igual que las riquezas, el esquema de clases,

pero al revés: las riquezas se acumulan arriba, los riesgos abajo. Por tanto, los riesgos

parecen fortalecer y no suprimir la sociedad de clases. A la insuficiencia de los

suministros se añade la falta de seguridad y una sobreabundancia de riesgos que habría

que evitar. Frente a ello, los ricos (en ingresos, en poder, en educación) pueden

comprarse la seguridad y la libertad respecto del riesgo. Esta “ley” de un reparto de los

riesgos específico de las clases y, por tanto, de la agudización de los contrastes de clase

mediante la concentración de los riesgos en los pobres y débiles estuvo en vigor durante

mucho tiempo y sigue estándolo hoy para algunas dimensiones centrales del riesgo […].

Son en especial las zonas residenciales baratas para grupos de población con ingresos

bajos que se encuentran cerca de los centros de producción industrial las que están

dañadas permanentemente por las diversas sustancias nocivas que hay en el aire, el agua y

el suelo. Con la amenaza de la pérdida de ingresos se puede obtener una tolerancia

superior.

Pero este efecto social de filtro o de fortalecimiento no es lo único que genera

consecuencias específicas de clase. También las posibilidades y las capacidades de

enfrentarse a las situaciones de riesgo, de evitarlas, de compensarlas, parecen estar

repartidas de manera desigual para capas de ingresos y de educación diversas. (BECK,

1998, p.40-1)

Deste modo, consideramos que os riscos socionaturais aos quais a população de baixa renda está

sujeita nas áreas periféricas das cidades, cuja existência é motivada por aquilo que estamos chamando de

mecanismos político-econômicos de reprodução de iniquidades sociais, fazem parte de um grupo

específico de riscos que representam a acentuação das desigualdades tanto pela forma como eles são

distribuídos quanto pela capacidade das pessoas para enfrentá-los e superá-los, bem como pelo nível de

tolerância através da qual se subjugam a determinadas situações de perigo e possibilidade de perdas

materiais. Ou seja, uma tolerância que nasce justamente da falta de recursos financeiros para habitar em

outras áreas da cidade, distantes de escorregamentos, desmoronamentos e enchentes, por exemplo.

Caminhando para a finalização deste trabalho, salientando que, por meio das diferentes

abordagens dos autores aqui tomados como referências (BOTELHO, 2007; SINGER, 1979;

SWYNGEDOUW, 2001; DAVIS, 2006; GONÇALVES, 1984, 2006; SUERTEGARAY, 2001, 2002;

BECK, 1998), é possível alcançar correlações quanto a alguns processos inerentes à produção do espaço

urbano que potenciam os riscos e os impactos que irrompem das relações disjuntas entre sociedade e

natureza. Estes processos estão diretamente relacionados à transmutação do solo em mercadoria no modo

capitalista de produção e os desdobramentos negativos deste fato sobre os grupos de pessoas que não têm

recursos para pagar por esta mercadoria.

6) Considerações finais

Para finalizar este ensaio, salientamos que a reflexão sobre a produção do espaço urbano, no bojo

das dinâmicas entre sociedade e natureza e das consequências perversas da apropriação capitalista do

espaço para as pessoas que não possuem recursos para consumi-lo de acordo com padrões de qualidade

de vida minimamente adequados, se constitui em tarefa permanente para todos aqueles preocupados com

questões relacionadas ao planejamento territorial das cidades.

As cidades são evidências da fusão, entre sociedade e natureza, que ocorre na esteira das

determinações da economia capitalista. São elementos cyborgs como bem demonstra Swyngedouw, já

mencionado.

O cyborg - não é difícil imaginarmos, sobretudo quando num esforço de memória nos recordamos

de algumas produções cinematográficas - não é necessariamente um robô e tampouco um ser humano.

Trata-se de um híbrido. Muitas vezes sua figura é propagada como um mix entre homem e objetos

técnicos, artificiais. O que seria a cidade senão um cyborg conforme certas obras de ficção?

Para que estes seres híbridos sobrevivam, sua constituição “humano-técnica” precisa encontrar

alguma harmonia. Caso contrário, a disjunção é o destino fatal. Não que isto signifique seu fim, sua

morte, mas um funcionamento em desacordo com seus objetivos de existência. Um funcionamento

desarmônico.

Assim como os cyborgs, as cidades híbridas também precisam encontrar um ponto de equilíbrio

para sua condição “humano-técnica” e socionatural. Suas dinâmicas não devem levar à sua disjunção, à

sua fragmentação. Porque isto, na realidade, representa a desintegração social e a reprodução de uma série

de problemas, sobretudo entre aqueles que não possuem recursos para enfrentar os riscos e impactos que

ocorrem em função de práticas que sedimentam as desigualdades sociais, limitam o acesso de

significativa parte da população a determinados bens e serviços, estabelecem preços impagáveis às

parcelas do espaço e fazem aumentar o número de moradores em áreas inadequadas à ocupação do ponto

de vista geoecológico.

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