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VICENTE CARLOS PEREIRA JÚNIOR ESCUTAR O TEMPO: UM ESTUDO SOBRE AQUELA VEZ DE SAMUEL BECKETT Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de mestre em teatro. Orientadora: Profª Drª Maria Helena Vicente Werneck. Rio de Janeiro 2008

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VICENTE CARLOS PEREIRA JÚNIOR

ESCUTAR O TEMPO:

UM ESTUDO SOBRE AQUELA VEZ DE SAMUEL BECKETT

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de

Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de

mestre em teatro.

Orientadora: Profª Drª Maria Helena Vicente Werneck.

Rio de Janeiro

2008

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Pereira Júnior, Vicente Carlos. P436 Escutar o tempo : um estudo sobre Aquela Vez de Samuel Beckett, 2008. 141f. Orientador: Maria Helena Vicente Werneck. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2008.

1. Beckett, Samuel, 1906-1989 – Crítica e interpretação. 2. Aquela Vez (Pe- ça de teatro). 3. Teatro irlandês – História e crítica. 4. Espaço e tempo na lite- ratura. 5. Teatro (Literatura) – História e crítica. I. Werneck, Maria Helena. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Letras e Artes. Curso de Mestrado em Teatro. III. Título. CDD – Ir822

VICENTE CARLOS PEREIRA JÚNIOR

ESCUTAR O TEMPO:

UM ESTUDO SOBRE AQUELA VEZ DE SAMUEL BECKETT

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de

Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de

mestre em teatro.

Aprovado em _____ de ____________ de 2008.

BANCA EXAMINADORA:

Profª Drª Maria Helena Werneck (UNIRIO) (Orientadora)

Prof. Dr. José da Costa (UNIRIO)

Prof. Dr. Karl Erik Scholhammer (PUC-Rio)

AGRADECIMENTOS:

Gostaria de registrar meu agradecimento a todos aqueles que, de algum modo,

contribuíram para que esta pesquisa se desenvolvesse.

Ao Programa de Pós-Graduação da UNIRIO, através de sua coordenação, professores

e funcionários, que abriu suas portas a um estudante vindo de uma distante universidade.

Ao CNPQ, agência que financiou um período importante deste estudo.

A Maria Helena Werneck, orientadora que praticou, nos nossos encontros, uma escuta

moderna, de modo a me fazer expressar além do que eu intencionava. Por todos os seus gestos

de amizade, por sua correção inteligente, pela sua atenção em todas as etapas, dialogando

comigo mesmo nos momentos em que um encontro pessoal não era possível.

A Rubens Rusche, encenador responsável por algumas das mais imp ortantes

montagens de Beckett no Brasil. Por sua cordialidade e gentileza. Por ter compartilhado

comigo, em conversas pessoais e virtuais, um pouco do seu vasto conhecimento da obra. Por

ter me cedido a sua tradução meticulosa, por me permitir vinculá-la a este estudo. Pela

oportunidade de assistir a seu trabalho e comprovar o potencial da escrita beckettiana.

Ao Prof. Dr. José da Costa, que me socorreu na busca por uma orientadora, dialogou

com meu projeto desde o início e teve uma importância capital, com sua leitura sensível do

meu texto, na etapa de qualificação e na banca final.

À Profa. Dra. Angela Materno, pela leitura de meu projeto inicial, por sua

disponibilidade para atuar em minha banca de qualificação e pelo rigor das suas observações.

Ao Prof. Dr. Karl Erik, pela disponibilidade em integrar a banca examinadora deste

estudo, pela generosidade e perspicácia de seus comentários, pelas sugestões fundamentais de

adequação relativa ao material teórico e a um aspecto importante da tradução.

À Profa. Dra. Flora Süssekind, por suas aulas sobre Beckett e por seu conselho bem

fundamentado, que alterou o objeto desta pesquisa.

Ao Prof. Dr. Walder de Sousa, presente desde a etapa de seleção, foi quem me deu as

boas-vindas no programa. Por sua inteligência, sensibilidade e carinho.

Ao Prof. Dr. Luiz Camilo Osório, por sua disponibilidade e pelas importantes

referências apresentadas.

Ao Prof. Dr. Fábio Furlanete, da Universidade Estadual de Londrina, por ter

intermediado o meu contato com a música experimental, durante a graduação. Pela

disponibilidade em dialogar comigo, durante uma etapa desta pesquisa.

À amiga mais querida, pela sua presença desde as primeiras visitas ao Rio, pela

ligação telefônica que confirmou o meu ingresso no programa, por representar, desde então e

cada dia mais, muito mais do que uma família para mim, Tatiana.

Aos meus pais, Vicente e Elza, pelo carinho de todos os dias, mesmo longe, pelo

socorro nos momentos mais aflitos.

Ao Roger, meu grande irmão, que me enviou de Londres o objeto central deste estudo.

À amiga de longa data, que me abrigou nas primeiras incursões ao Rio, Patricinha, e

também a seu namorado, que me amparou e ciceroneou na cidade, Piu.

Ao João, sem o qual o Rio jamais teria sido.

Ao grande amigo Magela, mais uma conquista deste período de pós-graduação.

A Laura, companheira expressiva (muito expressiva).

Ao meu amigo Marlon, cuja presença tornou o Rio mais agradável para mim.

Aos colegas do curso de mestrado, com quem dividi as primeiras angústia s e que

foram importantes interlocutores, na criação desta pesquisa: Cláudia Petrina, Miguel

Vellinho, Andréa Stelzer, Gabriela Saboya, Kenny Neoob. Especialmente, Andréia Elias e

Mônica, que foram mais do que colegas, e Eduardo Vaccari, que compartilhou importante

material sobre Beckett comigo.

Ao Adolescentro Paulo Freire, especialmente à sua coordenadora Dilma e a todos os

participantes do grupo de teatro. Por ter se tornado, para mim, um espaço de trabalho, de

experimentação, de amizade, mas, principalmente, um espaço de escuta.

Ao Cras Rinaldo de Lamare, a seus funcionários e a suas lindas crianças, um estímulo

importante e uma fonte de sobrevivência, ao longo de grande parte do período desta pesquisa.

A meus irmãos José Ernani, Isabel e Luís Carlos, que me propiciaram apoio logístico

fundamental, em algumas etapas de trabalho.

A Raphael Lima, que não pensou duas vezes antes de me oferecer sua casa para que eu

escrevesse importantes laudas da pesquisa.

A Alexandre Ficagna, meu sonoplasta favorito, importante interlocutor, durante o

processo desta pesquisa.

A Álvaro Okura, por sua amizade, inteligência e pelo apoio nas traduções.

Ao André de Oliveira, pelas nossas conversas musicais.

Em memória de Davi Rodrigues, cujo desaparecimento nas águas da praia de São

Conrado, despertou em mim a realidade de uma perda, aprofundando meu contato com aquilo

que constitui o frágil tempo de uma vida.

RESUMO

Análise da peça teatral Aquela vez (That Time), escrita em inglês por Samuel Beckett (1906-1989), no ano de 1975, a partir da temática do tempo e do modo como esta instância é articulada pela obra. A primeira parte deste trabalho investiga a abordagem do elemento tempo na obra deste autor, principalmente a partir de seus escritos teóricos sobre literatura e artes visuais. Este capítulo mostra, a partir da teoria de Emile Benveniste, que a análise do tempo depende da verificação do sujeito enunciador, o que faz com que o capítulo seguinte se destine a examinar o tempo e a enunciação subjetiva em alguns de seus romances e peças. São eles: a trilogia de romances Molloy, Malone morre e O inominável; as peças de longa duração Fim de Jogo e Dias Felizes e as peças de curta duração, Ato sem palavras, Peça, Respiração. As referências que fundamentaram o contato com a obra são, principalmente: Aldo Tagliaferri, Fábio de Souza Andrade, Wolfgang Iser, Theodor Adorno, Enoch Brater, James Knowlson e Paul Lawley. O terceiro capítulo abriga a análise de Aquela vez. Esta análise se inicia com um estudo sobre a escuta, sentido privilegiado na peça, em detrimento da faculdade da fala. A referência que sustenta esta etapa da pesquisa é Roland Barthes, em seu artigo sobre aquele sentido. A seguir, a peça é analisada, em sua relação com a forma sonata, estrutura musical que inspirou sua composição. O estudo se conclui tendo demonstrado um uso original da faculdade da escuta, promovido por esta peça, e suas implicações sobre a figuração do personagem, a produção da mensagem no teatro e a relação da obra de arte com o espectador. Palavras-chaves: Aquela vez – Beckett – monólogo – escuta – tempo – peças curtas.

ABSTRACT

Analysis of the play That time, written in English by Samuel Beckett (1906-1989), in the year of 1975, from de theme of time and how this instance is articulated by the work. The first part of this work investigates the approach of the time element in the works of that author, primarily from his theoretical writings on literature and visual arts. This chapter shows, from the theory of Emile Benveniste, that the analysis of time depends on the verification of the speaking subject, which makes the following chapter being intended to examine the time and subjective listing in some of his novels and plays. They are: the trilogy of novels Molloy, Malone dies and The Unamable; the plays of long duration Endgame and Happy Days and the short plays Act without words, Play , Breath . The references which allows the contact to the work are mainly: Aldo Tagliaferri, Fábio de Souza Andrade, Wolfgang Iser, Theodor Adorno, Enoch Brater, James Knowlson and Paul Lawley. The third chapter houses the analysis of That Time. This analysis begins with a study on the sense of listening, the privileged one in that play, at the expense of faculty of speech. The reference that sustains this stage of the research is Roland Barthes, in his article on that sense. Then, the piece is analyzed, in their relationship with the sonata form, structure musical that inspired its composition. The study concludes having shown an original use of the sense of listening, promoted by this piece, and their implications on the figuration of the character, the production of the message in the theater and the relationship of the work of art to the audience. Keywords: That time - Beckett - monologue - listening - time - short plays.

SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................09

1. PRIMEIRO CAPÍTULO: UM TEMPO PARA SE PENSAR AQUELA

VEZ..........................................................................................................................................16

1.1.Qual Aquela vez?................................................................................................................17

1.2.Tempo e arte.......................................................................................................................21

1.3.Tempo e imaginação...........................................................................................................33

2. SEGUNDO CAPÍTULO: SUJEITO E TEMPO, ROMANCE E

TEATRO..................................................................................................................................42

2.1.Molloy: o delínio da memória, o avanço da invenção........................................................43

2.2. Malone: o tempo como brinquedo.....................................................................................50

2.3. O inominável: no lugar de personagem,voz.......................................................................57

2.4. Peças que duram muito......................................................................................................64

2.5. Peças que passam rápido....................................................................................................78

3. TERCEIRO CAPÍTULO: ESCUTA.................................................................................94

3.1. As três escutas....................................................................................................................95

3.2. Forma sonata e Aquela vez...............................................................................................102

3.3. Escutar o tempo em Aquela vez.......................................................................................120

4. CONCLUSÃO...................................................................................................................126

REFERÊNCIAS....................................................................................................................128

ANEXO A – “AQUELA VEZ”............................................................................................134

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INTRODUÇÃO

Antes de iniciar sua leitura da obra pictórica dos irmãos van Velde, Beckett (1989, p.

24-5) adverte o leitor de que tal empreendimento consistirá num “duplo massacre”:

“assassinato verbal de emoções que só dizem respeito a mim”, “desfiguração (…) menos de

uma realidade afetiva do que de sua risível impressão cerebral”.

Meu primeiro contato com a obra de Samuel Beckett deu-se no período de minha

graduação em interpretação teatral, na Universidade Estadual de Londrina. Distingo tal

momento como a primeira leitura de Eu não (Not I), tradução feita por Rubens Rusche e Luiz

Roberto Benatti a partir do original inglês e da versão francesa. Não era a primeira leitura de

uma obra de Beckett. Já tivera contato com Esperando Godot, mas a chegada desta peça até

mim fora acompanhada das muitas leituras e comentários que ela despertara ao longo de sua

história e que se tornaram referências para “facilitar” a sua compreensão – percebo hoje que

grande parte destes comentários privam a obra da sua originalidade e da sua radicalidade,

devido à pretensão de cobrir algumas lacunas de significado que são geradoras de alguns dos

seus efeitos mais poderosos. Muitos daqueles comentários me preveniram de que a peça

abrigava uma visão de mundo resignada, niilista, absurda. Isto fez com que eu logo me

desinteressasse por Godot e me voltasse para outras peças, portadoras de “verdades” mais

estimulantes.

Quando descobri a existência da Boca e procedi a uma primeira leitura do seu discurso

caótico e fragmentado, percebi imediatamente que o seu autor não estava limitado àquelas

referências. A obra renovou a minha crença na dramaturgia, revelando-me que a escrita para o

palco ainda era capaz de configurar uma experiência sensível, que resistisse a uma metafísica

pretensiosa e decepcionante. Naquele momento, percebi claramente que Beckett era um

homem de teatro e que, em suas peças, havia alguma coisa que atestava o vigor e a atualidade

desta arte.

Aquela obra se tornou o objeto de minha monografia de conclusão de curso. Como

este trabalho estava inserido na área de interpretação, fui levado a pensar uma prática para

este texto e esta se deu no sentido de formular um processo de vivência que refletisse a

situação de instabilidade vivenciada pela Boca. Nesta ocasião, pude experimentar diretamente

a força que as palavras de Beckett adquirem quando pronunciadas em cena. Como ator que

dizia o texto, percebi como este, em alguns momentos, parecia ganhar vida própria, através da

renovada instabilidade do seu sentido. Um ator não escuta o seu texto ao pronunciá-lo – já

ensinam os manuais de interpretação. Ele o escuta no silêncio que sucede a enunciação. Ao

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precisar as indicações de pausa, portanto, Beckett determina os pontos em que o enunciador

escuta e em que percebe a constituição de uma imagem a partir de “suas” palavras. Em cada

uma destas imagens, o enunciador (agora, um ouvinte) vislumbra algum aspecto de sua

existência. Como tais imagens tendem a se diluir, dando lugar a outras imagens, o ouvinte

deste texto é levado a confrontar-se com múltiplos aspectos de sua própria consciência e

também com o sentimento de que esta consciência encontra-se em constante produção.

Em 2007, experimentei o outro lado deste processo, quando tive a oportunidade de

assistir, em São Paulo, a um espetáculo chamado Crepúsculo, composto por três peças:

Passos (Footfalls), Solo (A piece of monologue) e Improviso de Ohio (Ohio Improptu).

Tratava-se de uma encenação de Rubens Rusche, diretor e tradutor, com mais de vinte anos

dedicados ao estudo e a montagem de peças de Beckett. Rusche é uma das poucas referências

de diretores brasileiros que se aventuraram a encenar as peças curtas e que foram bem

sucedidos. Uma das primeiras impressões que Crepúsculo oferece diz respeito ao peso da

escuridão, que, na sua luta contra a luz, deforma os corpos dos atores e violenta as percepções

mais básicas. É a escuridão e a música (entendida como organização do espaço sonoro) que

unem as diferentes peças nesta montagem. E além de unir, invadem o espaço de cada cena

particular, dissolvendo as formas fixas, diluindo a aparência das palavras, surtindo um efeito

hipnótico, quase alucinatório, que escapa tão rápido, logo que busca-se apreender o sentido da

sua poesia.

O universo das peças curtas de Beckett estimulou minhas idéias sobre como o teatro

pode abrigar importantes processos de construção do sujeito. Isto me levou em busca de

embasamento teórico a respeito da formação da subjetividade. Fui apresentado, neste

momento, aos filósofos Deleuze e Guattari, que me despertaram para um novo horizonte de

pesquisa teórica, em que a metodologia se deixa conta minar pelas propostas do objeto

estético. A investigação deste tema me levou a formular um projeto de pesquisa e a ingressar

na Pós-Graduação em Teatro da UNIRIO, no início de 2006.

Meu projeto original trazia um acúmulo de informações sobre a dramaturgia e sua

evolução, no teatro moderno; bem como a insinuação de alguns conceitos que permitiriam

equiparar as realizações desta dramaturgia com as condições contemporâneas para a

enunciação subjetiva. Apoiada na obra daqueles filósofos, trazia o título: “A máquina

dramática do Not I de Beckett: produção e consumo de sujeitos”.

Iniciado o curso de mestrado, nesta instituição, o contato com diferentes fazeres e

visibilidades, revelaram-me maneiras originais de abordar objetos de estudo tão específicos

como o são as obras artísticas. Neste contexto, a disciplina “Estudos sobre o coro”, ministrada

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pela professora Flora Süssekind, tendo um dos seus módulos dedicado a peças de Beckett,

revelou a importância de um olhar mais atento sobre a obra, no sentido de perceber sua

originalidade, antes de solicitar o apoio de uma teoria.

A realização de um inventário da identidade da pesquisa com a fortuna crítica deste

programa de pós-graduação, solicitada pelo curso de metodologia, propiciou o contato com a

dissertação da pesquisadora Maria Isabel Tavares Cavalcanti, defendida em 2002. Esta

pesquisa revelou-se uma abordagem bastante completa da peça Eu não, promovendo uma

análise da construção da personagem através da temática da dissolução do sujeito.

Neste momento, um conselho da professora Flora apontou a possibilidade de explorar

a peça Aquela vez de Beckett, escrita após Eu não e considerada, pelo próprio autor, irmã

desta última. Este novo objeto pareceu, neste momento, mais excitante, uma vez que mais

obscuro, menos explorado pela crítica, ao menos no Brasil. Neste sentido, as teorias sobre a

história do drama e as teorias sobre a produção da subjetividade, tal como arranjadas no

projeto inicial, deram lugar a uma atenção mais direta sobre o objeto.

Uma determinante fundamental do rumo tomado por esta pesquisa foi a orientação de

Maria Helena Werneck. Como aluno proveniente de uma faculdade jovem e pequena, a

quantidade de referências que surgiam em cada uma das disciplinas cursadas no programa de

pós-graduação me revelava novos campos de aprofundamento, novos horizontes possíveis. Os

primeiros encontros de orientação equilibraram este processo, incentivando-me a fazer

convergir as novas idéias, conceitos e imagens para o foco inicial da pesquisa: a visibilidade

de alguns efeitos, bem como de um possível modo de funcionamento da máquina teatral de

Samuel Beckett – para retomar um dos conceitos deleuzianos que continuou a nortear o

processo. Foi num destes encontros que surgiu a referência à música eletroacústica, enquanto

linguagem articuladora do som e do espaço. Tal referência, que pareceu tão próxima ao modo

como fora construída Aquela vez, curiosamente, reanimou um antigo projeto, esboçado

durante a graduação, de utilizar esta música tão controvertida como modelo para a análise de

determinadas obras da dramaturgia contemporânea. Coincidentemente, a música experimental

aparecera como uma novidade estimulante, num momento em que a dramaturgia parecia

incapaz de me surpreender.

As leituras a respeito deste novo tema apontaram para a faculdade da escuta e o modo

como a recepção é considerada, quando se trata de produzir formas diferenciadas de perceber

e de sentir. Uma referência fundamental surgiu quando o professor Luiz Camilo Osório me

apresentou o ensaio de Robert Kudielka a respeito do paradigma da pintura moderna em

Beckett, onde o autor destaca o modo como este artista trabalha com elementos “puros”, ou

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seja, livres da função representativa e revelados em função de cada obra específica. A partir

destas novas referências, eu conseguia filtrar as leituras anteriores, através de uma maior

atenção ao texto de Aquela vez, o que me estimulou a abrir mão, temporariamente, de

conteúdos filosóficos e a considerar a qualidade da comunicação que poderia se dar entre a

peça e o espectador.

Como Aquela vez constitui uma peça predominantemente sonora, fui levado a buscar

algo de específico no modo como o espectador se relaciona com aquela através da faculdade

da escuta. Dois fatores me pareceram, desde o início, interferir sobre esta escuta: o ritmo da

fala, certamente distinto do ritmo cotidiano, dada a ausência absoluta de pontuação; e a

extensão reduzida da peça, que dá a impressão de se encerrar antes que algo de significativo

tenha sido apreendido. A consideração destes fatores me levou a pensar detidamente a

respeito do que pode ensejar o tempo de fruição desta obra. As leituras me sugeriram algumas

direções para percorrer este caminho. Devo uma preciosa indicação ao professor José da

Costa, que, em meu exame de qualificação, me aconselhou a ler o tempo em outras obras de

Samuel Beckett. Isto acabou por constituir uma etapa importante da pesquisa, que ocupou

grande parte do corpo deste trabalho.

O primeiro capítulo deste estudo busca mapear qual é a proposta temporal de Aquela

vez, visto que o próprio título já revela que a peça lida com uma questão desta natureza. A

leitura de Emile Benveniste constitui uma base forte para investigar uma instância (o tempo)

que tem uma relação fundamental com a linguagem e o estudo de Wolfgang Iser sobre a

recepção de determinadas obras de Beckett faculta pensar o espectador desta obra e ações que,

muito possivelmente, estarão implicadas em seus atos perceptivos.

A biografia produzida por Knowlson foi uma ferramenta essencial, na medida em que

ela se atém fortemente às circunstâncias que envolveram o aparecimento de cada obra. É neste

sentido que ela aparece no início do segundo subcapítulo, revelando preocupações que

adquirem forma e sentido na peça em questão. Foi uma atividade bastante reveladora, situar

vestígios desta preocupação – uma preocupação com o tempo -, no ensaios literários escritos

por Beckett na juventude e nos artigos sobre artes visuais, nos anos 40. O exercício reflexivo

em torno de diferentes manifestações artísticas é uma característica da produção beckettiana

que estimula o pensamento sobre o gesto artístico, a partir da visão expressa por seu autor.

Estas leituras nos aproximam de um ideário poético e é, deste modo, que o primeiro capítulo

se encerra, tendo preparado o campo para a leitura do tempo em algumas obras do artista.

O segundo capítulo inicia-se com uma abordagem da trilogia de romances escrita no

pós-guerra. O comentador Rubin Rabinovitz afirma que, a partir destas obras, as realidades do

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tempo e do espaço passaram a ser empregadas, de modo a iluminar aspectos de uma realidade

puramente imaginária. Neste sentido, procurei perceber particularidades no modo como o

tempo de cada uma destas obras se faz medir. Ao proceder a esta pesquisa, re-afirmava o meu

objetivo inicial de estudar a produção da subjetividade no teatro de Beckett, pois o tempo,

como uma estrutura da linguagem, só existe a partir de um sujeito que se localiza no presente

da enunciação.

Nos dois primeiros romances, os personagens desintegram-se diante da realidade mais

eminente de seus narradores. O contraste entre estes últimos e suas personas revela-se um

processo particularmente marcado pela condição temporal, que condiciona estas criaturas e a

consciência que elas têm de si. A última obra da trilogia instaura, finalmente, o problema

quanto a origem da voz que se apresenta como voz narrativa, o que se revela um dado

fundamental para se pensar a questão mais intrigante de Aquela vez: a natureza das vozes que

chegam ao Ouvinte a partir da escuridão. Deste modo, a leitura da ficção nos aproxima da

peça menos pela recorrência de temas e motivos do que pelo modo como estende os sujeitos e

suas consciências no tempo.

Estes romances são obras profundamente conscientes da expectativa que estimulam

em seus leitores, de modo que elas se tornam um importante embasamento para se pensar as

peças de teatro como obras destinadas a dialogar com o tempo que é compartilhado no teatro

e com o tempo individual de cada espectador.

Fim de Jogo é empregada como primeira referência por apresentar um contexto

particularmente significativo: uma redoma cinzenta que excluiu o tempo. Esta é uma das

formas como a peça parodia a representação dramática – paródia do tempo desta

representação. Mas o tempo que se exclui é o tempo de revelação e de desenvolvimento dos

personagens em cena, uma vez que os atores vivenciam representações esavaziadas de

significado e fadadas à repetição; paralelo a esta estagnação, o tempo dos espectadores corre,

e é a partir desta tensão que a peça gera seus processos mais singulares. Como ela, Dias

Felizes é apresentada como obra que articula o tempo do espectador entre os seus elementos

significantes. O modo como a personagem se faz representar, nesta última peça, permite

estabelecer relações com o modo como o sujeito se configura, em Aquela vez – especialmente

no que tange à progressiva degradação dos traços da sua figura pelo tempo.

Inúmeros autores foram importantes para a leitura destas obras, de ficção ou teatro.

Procurei, entretanto, retornar constantemente aos textos para evitar que a originalidade deles

ficasse suplantada por lugares comuns que tendem a ser expressos com relação a estas obras e

que comprometera, no passado, o meu contato com Esperando Godot. As referências

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aparecem nos pontos em que contribuíram para destacar um determinado aspecto das obras.

Os ensaios de Adorno e de Iser foram, neste sentido, leituras norteadoras enquanto textos que

privilegiam a novidade da obra. Eles são referendados nos momentos em que auxiliaram a

traduzir os efeitos da obra para a objetividade do discurso.

As peças curtas constituem o contexto de aparecimento de Aquela vez e são a

confirmação definitiva do uso do tempo como recurso expressivo. Por isso, elas são situadas a

partir do Ato sem palavras (Act without words), de 1956, e a análise se detém em Peça (Play),

de 1963, que instaura o uso privilegiado de outros elementos da comunicação teatral, como

voz e iluminação. Além disto, um ensaio de Paul Lawley, a respeito desta última peça,

apresenta um conceito esclarecedor sobre como se dá a presença dos sujeitos no palco destas

obras: a “paródia de presença”. Este conceito reforça a idéia de abandono da interioridade no

âmbito do discurso e possibilita a análise da escuta a partir da dispersão do sentido.

O estudo de Roland Barthes que define três modalidades da escuta torna-se um

instrumento eficaz para promover o retorno ao texto que justifica este estudo: Aquela vez. O

terceiro capítulo inicia-se, deste modo, com uma análise deste campo perceptivo que Beckett

optou por privilegiar na peça em questão. Barthes investiga as determinantes antropológicas e

psicanalíticas deste sentido, direcionando-as para o que chamou de uma escuta de “abordagem

moderna”, representada pela “atenção flutuante” de Freud e pela música de John Cage. Esta

escuta constitui uma “escuta possível”, a se constituir, e por isso permite explorar a obra de

Beckett como expressão libertadora da prisão do significado.

A “pureza” de meios praticada pela obra pode ser avaliada pelo modo como emprega a

forma tradicional da sonata - expressão fundamental da música tonal e portadora de estreita

relação com o pensamento dialético – em proveito de um modo de articular temas relativos ao

passado do sujeito, independente de seu gesto enunciador. Através da referência de José

Miguel Wisnik, sugerida pela professora Ângela Materno, em meu exame de qualificação, foi

possível analisar o modo muito específico como o discurso se constrói em Aquela vez: como

uma inter-relação de tonalidades. É evidente que não há notação musical determinada nesta

peça, mas a referência da sonata permite supor uma estrutura onde os sons dialogam, de modo

a compor uma história. Não deixa de ser curioso supor que Beckett tenha se aproximado deste

gênero, em que a música se aproxima do romance, para configurar uma obra que não se cansa

de oferecer elementos que depõem contra a constituição de uma fábula. É neste sentido que,

ao emprestar qualidades da sonata, Beckett se dirige para uma escuta muito particular, que

não é a da música convencional, nem a da decifração dos significados. A tradição musical

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permite a expressão da subjetividade como processo da linguagem e do tempo – produção

incessante do sujeito, ocupando até mesmo os instantes em que ele se cala.

A escuta é o “velho refúgio” de um personagem que, sem acreditar nos dados de sua

própria história, não pode se furtar a produzi-la. Esta revelação demanda uma nova escuta. O

foco deste estudo torna-se, portanto, avaliar como Beckett renovou nesta peça o uso daquele

sentido, afirmando a capacidade do teatro de apresentar idéias que desafiam o entendimento.

PRIMEIRO CAPÍTULO:

UM TEMPO PARA SE PENSAR AQUELA VEZ

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1.1. QUAL AQUELA VEZ?

A que se refere o título desta peça, a décima quarta escrita para o palco, segundo o

volume da obra dramática completa de Samuel Beckett? A que instância se dirige Aquela vez

e o que ela abriga?

A expressão designa o tempo específico de um fato, que o pronome demonstrativo

“aquela” se encarrega de situar distante de quem fala e distante de quem ouve. Sua descrição

já a situa entre aquelas expressões que Emile Benveniste (1976, p. 280) chamou

“indicadores”: expressões que remetem a posições definidas no tempo e no espaço, mas que,

para fazê-lo, solicitam o apoio de uma outra instância, sem a qual não poderão referir-se a um

dado objetivo. Tal instância se apresenta todas as vezes em que um locutor assume um destes

signos, propiciando uma base (o presente no qual ele fala), a partir da qual é possível indicar.

Assim, estas formas remetem a possíveis e a inesgotáveis contextos, que se atualizam e se

fixam a partir da “enunciação, cada vez única, que as contém”. Antes de se dirigir, portanto, a

um fato situado no passado, o nome desta peça obriga a lidar com o contexto no qual esta

expressão é pronunciada. Em Aquela vez, temos que lidar com três enunciações distintas, mas

ao mesmo tempo similares, visto se tratar de uma única voz, o que torna a configuração do

passado extremamente instável.

As primeiras indicações sugerem a aparição gradativa de uma figura, um rosto

focalizado pela luz, flutuando na escuridão a três metros do nível do palco, um pouco

descentrado. Trata-se de um “velho rosto branco”, com “longos cabelos brancos

esparramados, como se, vistos do alto, contra um travesseiro”. Os olhos estão abertos. O

personagem é chamado Ouvinte (Listener), na versão original inglesa, mas o autor preferiu

chamá-lo Recordador (Souvenant), na tradução francesa que empreendeu. Audição e

recordação relacionam-se aqui através do elemento que aparece a seguir, indicado pelas

rubricas: três vozes, chamadas A, B e C, que correspondem à voz deste Ouvinte,

anteriormente gravada, e emitida a partir de três diferentes fontes, situadas em pontos

diferentes do espaço - nas duas laterais e no alto. A tecnologia favorece aqui a possibilidade

de que estas vozes soem em um tempo diferente daquele em que o sujeito as emitiu. O

Ouvinte percebe, desta forma, vozes do passado, que, por sua vez, referem-se a instantes

anteriores à cena.

As vozes falam na segunda pessoa, dirigindo-se, portanto, ao único habitante da cena

como a pessoa que viveu os eventos referidos. Esta disposição, que permite, às vezes,

acreditar que há duas pessoas em cena, repete-se no romance Companhia, escrito por Beckett

18

em 1980, cinco anos após a concepção de Aquela vez. Nele, “uma voz chega a alguém deitado

no escuro”. “O uso da segunda pessoa caracteriza a voz. O da terceira, aquele outro, o intruso.

Se ele pudesse falar a quem e de quem fala a voz, então haveria uma primeira. Mas não se

pode. Não o fará. Não podes. Não o fará” (BECKETT, 1982, p. 43).

O emprego de “você”, assim como o de um timbre único, unifica as três vozes. Esta

forma pronominal supõe a “noção de pessoa”, pessoa a quem este discurso é dirigido, mas

também pessoa que enuncia. De acordo com Benveniste (1976, p. 278), o uso do pronome

“ele” abole esta noção e permite a configuração de um tempo objetivo, realidade separada do

sujeito que a descreve. A peça que antecede Aquela vez, na produção beckettiana, Eu não, de

1972, desenvolve esta possibilidade, ao conceber uma boca desgarrada que emite um longo

discurso e que o distancia, na medida em que manifesta uma “veemente recusa em abrir mão

da terceira pessoa”(BECKETT, 2007b, p. 02). Esta possibilidade é vetada, quando se trata da

primeira e da segunda pessoa. “Você”, como “eu”, são expressões que apenas adquirem

realidade na instância do discurso que as contém. A peça em questão, ao obscurecer a

produção do discurso, acentua a procura por um “eu”, sem o qual este “você” não permite ser

pensado.

O uso do indicativo no título da peça chama a atenção para a realidade do discurso,

para o instante, portanto, em que tal indicativo adquiriria sentido. Como em Companhia e em

Eu não, entretanto, a primeira pessoa está ausente. Reconhecemos, no Ouvinte, o “você” que

habitou as experiências descritas, de modo que podemos discernir alguns fatos objetivos,

situados em tempos distantes. A voz A descreve um adulto que procura um ambiente de sua

infância; a voz B evoca, principalmente, momentos da juventude, passados junto de uma

companheira; C trata de um homem mais velho, que adentra instituições públicas, abrigando-

se do frio e da chuva. As vozes têm em comum um ritmo monótono, sem acentuações, que as

reúne num fluxo contínuo. O uso da segunda pessoa e o encobrimento da fonte emissora

(suposto “eu”) pelo escuro gera uma tensão que é agravada pelo fato de que a ação de tais

vozes não se restringe a descrever o evento passado. Elas se repetem, contradizem-se,

contaminam-se umas às outras com posturas, expressões, idéias.

A: (...) quando foi estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia a ruína de uma antiga como era mesmo o nome C: estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo [grifos meus] (BECKETT, 2007a, p. 02)

19

Estes discursos são povoados por expressões que denotam incerteza (“quando foi”,

“como era mesmo o nome”), e que constituem uma realidade não do evento evocado, mas do

presente da enunciação. A repetição destas expressões e a de afirmações enfáticas, como a

que reforça a perda da mãe e a de tudo mais, solicita a atenção para a instância que produz o

discurso. Este “artifício” é desmascarado, em Companhia:

Mais uma característica é a de repetir-se. Repetidamente, com pequenas diferenças, o mesmo que já foi dito. Como se para induzi-lo, através deste artifício, a torná-la sua. A confessar. Sim, eu me lembro. Talvez até a ter uma voz. Para murmurar, Sim, eu me lembro (BECKETT, 1982, p. 54).

O silêncio do Ouvinte nega ao “você”, emitido por aquela voz que só pode ser a sua, a

oportunidade de atualizar-se em um “eu”. Mesmo esquartejadas, entretanto, as vozes traçam

indícios de sua origem. Ao dizer “alguma vez você se disse eu em sua vida ora vamos”

(BECKETT, 2007a, p. 02), a voz C evidencia a impossibilidade do sujeito se reconhecer

naquele discurso. Mas a expressão “ora vamos” é a manifestação direta deste “Eu poroso e

agonizante”, nas palavras de Blanchot (2005, p. 312), que se apresenta neste palco, ao se

recusar a ser representado. Neste sentido, o silêncio do Ouvinte é tão eloqüente quanto o

“Ela!”, enfatizado pela Boca de Eu não. É possível afirmar que esta escuta fala e o faz através

de cada expressão que retifica, ou que anula aquilo que acabou de ser dito. A capacidade de

lembrar encontra-se tão comprometida quanto a capacidade de se propor como autor deste

monólogo.

“Aquela vez”, portanto, como um evento distanciado do locutor e do alocutado, torna-

se inviável como a presença de Godot, na peça mais célebre de Beckett. Em sua análise do

riso sufocado, em algumas peças deste autor, Wolfgang Iser (1989a, p. 160) observa que o

título, enquanto estrutura de sentido, deve oferecer um background, que antepare todas

aquelas situações singulares que uma peça abriga. Trata-se de uma estrutura que permite que

um personagem que fracassou em grande parte de suas intenções possa, ao final, ainda ser

restituído em uma totalidade. Em Esperando Godot, as situações singulares são ações

fracassadas, a partir das quais os personagens nada aprendem. Quando a ação principal desta

peça, descrita no título, se mostra duplamente fracassada, a oposição entre ela e as ações

isoladas se dilui, anulando um “pré-requisito dos nossos atos de compreensão”. Igualmente, o

título Aquela vez induz a uma expectativa não cumprida quanto a esta peça.

B (...) aquela vez juntos na pedra ao sol ou aquela vez juntos à beira do rio ou aquela vez juntos nas dunas aquela vez aquela vez e cada vez melhor sempre juntos em algum lugar ao sol à beira do rio diante da foz o sol se pondo os detritos que desciam

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o rio levados pela correnteza ou detidos pelos caniços o rato morto ou algo assim boiando ao seu encontro levado pela correnteza lentamente até perder de vista (BECKETT, 2007a, p. 04)

O fragmento expressa a ansiedade com que o indicador “aquela vez” patina e

escorrega em seu objetivo de conduzir a um sítio exterior à linguagem, um recorte espaço-

temporal onde determinada experiência tenha se cumprido. Por outro lado, afirma plenamente

sua condição de elemento lingüístico, realidade virtual sempre disponível a atualizar-se na re-

presentação de um “eu”. O modo como este signo é empregado nesta peça reforça a relação

da linguagem com a fala, que oferece um tempo e uma ponte para que aquela se ligue à

realidade objetiva. A dificuldade em acessar uma realidade já ultrapassada e para sempre

perdida – que agora pode apenas existir no campo da linguagem – atualiza o tempo presente –

um tempo que não se deixa fixar, tempo de fluxo, de passagem.

Com a pouca sensibilidade que lhe resta, como se sente ele agora, em comparação com aquela época? Quando, com o pouco discernimento que lhe restava, julgara seu estado terminal. Mas vale perguntar o que sentia naquela época em relação àquela época, comparada como antes. Quando ainda se movia, ou se demorava nos restos de luz. Assim como naquela época não havia aquela época, não há nenhuma agora (BECKETT, 1982, p. 60-1).

Em artigo que examinaremos a seguir, Beckett aborda um determinado dinamismo na

pintura do holandês Geer van Velde. A respeito de tal dinamismo, Beckett (1989, p. 36)

qualifica de “modesto” o cálculo do filósofo pré-socrático Heráclito, de que um homem não

entra duas vezes no mesmo rio. A despeito da ironia, a citação potencializa a emergência de

um homem cuja mais insignificante experiência (qualquer “vez”, portanto) é, por natureza,

inapreensível.

O rio de Aquela vez é um fluxo de palavras destituído de qualquer pontuação, o que

implica na multiplicação das possibilidades semânticas. Cada expressão pode fundir -se na

produção de uma frase, de uma imagem ou de uma idéia, bem como pode isolar-se,

anunciando algo independente, contradizendo ou aprofundando o conjunto. Desta forma,

concretiza-se a percepção de um sujeito atravessado pela linguagem, a qual, como lembra

Benveniste (1976, p. 286) “só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito,

remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela

que, sendo embora exterior a ‘mim’, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu”.

Não há sujeito que diga “eu”, em Aquela vez, o que faz da voz que diz “você”, uma

realidade em busca de um segundo termo. O processo de constituição da pessoa, no presente

da enunciação, permanece incompleto e, desta forma, relativiza os indicadores (“aquela vez”,

21

“alguma vez”, “quando”, “então”, etc.). Os eventos, então, ora se situam próximos (“aquela

última vez quando você tentou e não conseguiu”), ora demasiado distantes (“talvez aquela

hospedaria junto ao mar onde você não ela estava ainda ao seu lado ao seu lado”). Mas

nenhum deles pode ser capturado, pois a alusão a eles corresponde sempre a uma aparição do

presente, tempo de fuga, percorrido, em Aquela vez, pelo silêncio de uma “inesperada e

inexplicável figura” envolvida por um “sentido de melancolia e de mistério” (BRATER,

1987, p. 39).

“Aquela vez” torna-se uma expectativa não cumprida no que diz respeito a

individualizar um fato, no fluxo do tempo. Conforme ensina a lingüística, é preciso tornar

presente (através do discurso, portanto, através de um “eu” e de um “tu”), para, em seguida,

distanciar. O contexto da encenação problematiza este presente, revelando a instabilidade de

cada momento vivido, não sendo necessário mais que uma imersão no rio para que o sujeito

se perceba incapaz de expressar aquilo que de fato se passou.

.

1.2. TEMPO E ARTE

Aquela vez, peça cujo nome evoca tão fortemente a faculdade humana de lembrar, foi

moldada por Samuel Beckett, entre os meses de junho e setembro de 1974. É especialmente

significativo saber, conforme sublinhado por seu biógrafo, que o ano anterior fora marcado,

na vida do escritor, por um confronto doloroso com o fator “tempo”, intensificado pela perda

de amigos íntimos1. A correspondência do período revela a percepção do tempo como a de

um líquido que se esvai, sendo, contraditoriamente, precioso e sem nenhum valor. Esta

ambigüidade contamina o trabalho criativo, depondo contra o ato de escrever, o “único” capaz

de garantir permanência ao “sentido de deterioração” (KNOWLSON, 1996, p. 530-1).

Desde os anos 30, é possível perceber que o tempo já se apresentava a Beckett como

um fator limitante do poder do artista. Na obra de Marcel Proust, sugestivamente chamada Em

Busca do Tempo Perdido , Beckett percebera a expressão de um indivíduo em permanente

mobilidade, ilustrada pelo fato de a satisfação de antigos desejos ser incapaz de satisfazer ao

ego atual, parecendo corresponder aos desejos de uma criatura já desaparecida. A metáfora

1 Jack MacGowran e Christine Tsingos eram atores e tinham atuado como alguns dos memoráveis personagens da dramaturgia beckettiana. Ele fora dirigido pelo próprio Beckett no papel de Clov, numa montagem londrina de Fim de Jogo e fora cogitado pelo autor para interpretar o personagem de Film, que acabou sendo vivido por Buster Keaton. Além disto, atuara como Krapp na versão de A última gravação dirigida por Alan Schneider para

22

que ilumina um sujeito, assim compreendido, tem de ser expressa em termos líquidos: “O

indivíduo é o sítio de um constante processo de decantação, decantação do recipiente

contendo o fluído do tempo futuro (..) para o recipiente contendo o fluído do tempo passado”

(BECKETT, 1986, p. 11). Desta forma, o sujeito é o correlato de um presente insubstancial,

realidade cujo reconhecimento se encontra comprometido pelo próprio sistema de percepção,

sistema em constante mudança, permanentemente adiantado em relação a seus objetos. A

consciência localiza o sujeito (ou seja, a si mesma) a partir daquilo que se fez cumprir no

tempo, de modo que, se quisermos apreender, na personalidade, alguma “realidade

permanente”, temos de procurá-la como uma “hipótese em retrospecto” (BECKETT, 1986, p.

11).

A despeito de seu silêncio, o Ouvinte de Aquela vez tem de lidar com vozes que, se

não provêm do passado, parecem lidar com este. Confusas, apáticas e contraditórias, elas

buscam estabilizar-se em torno de um argumento válido a respeito do que foi ou do que tem

sido a existência do sujeito. As palavras, através de uma dinâmica que lhes é muito particular

– uma dinâmica de fuga e de instabilidade -, apontam para diferentes momentos de uma vida,

que sabemos, em função do pronome “você”, ser a vida do Ouvinte. Estas vozes, chamadas A,

B e C, que correspondem à voz do Ouvinte, são emitidas, por auto-falantes situados,

respectivamente, nas duas laterais e no alto. Os auto-falantes pluralizam esta voz e o fato de

se encontrarem encobertos pela escuridão, grande dominadora da cena, faz com que as

“vozes” adquiram algo de imaterial, provenientes do escuro, inexplicáveis, mas

absolutamente reais, elementos do tempo e do espaço.

A transição entre as fontes constitui um dos movimentos essenciais da peça e

estabelece uma espécie de círculo sonoro ao redor do Ouvinte, que deverá transmitir uma

idéia de continuidade, “sem nenhuma interrupção, exceto nos lugares indicados” (BECKETT,

2007a, p. 02), insinuando, conforme observado pelo próprio Beckett, a passagem de uma

história a outra, sendo o fragmento B ligado à juventude, C à velhice e A à meia-idade.2 O

autor sugere, em sua nota acrescentada às rubricas, que a passagem de uma fonte à seguinte

deve ser percebida claramente, mas de uma forma suave (BECKET, 2007a, p. 07). Esta

observação tem um quê de paradoxal, inserindo, na requerida continuidade de um fluxo, uma

a tevê americana. A atriz grega interpretara a personagem Nell de Fim de Jogo e, pouco antes de sua morte, atuara como a Winnie de Dias Felizes. 2ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television – rehearsal notes for the German premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em: 12 de jun. de 2007.

23

textura de descontinuidade, produzindo um certo vazio (percebido muito rapidamente) entre

as etapas da história do Ouvinte, como se tratassem-se de materiais independentes. Este efeito

é tão necessário que o autor acrescenta uma nota às rubricas solicitando que, se o contexto da

encenação e as três diferentes fontes não forem suficientes para assegurá-lo, devem ser

empregados registros diferenciados na gravação. Deste modo, um discurso envolvendo a

busca de um esconderijo da infância

A: aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia quando foi (os olhos se fecham, ligeira queda da luz) dia cinzento com o onze até o fim da linha e dali a pé não não havia mais bondes tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia aquela última vez nenhum bonde nada só os velhos trilhos quando foi (BECKETT, 2007a, p. 02)

dá lugar à descrição da entrada no museu em um dia chuvoso

C: quando você se abrigou da chuva sempre o inverno então sempre a chuva aquela vez no museu ao abrigo do frio da chuva da rua à espera do momento de entrar sem ser visto e através das salas gelado e molhado até avistar o primeiro banco laje de mármore sentar descansar secar depois cair fora dali quando foi (BECKETT, 2007a, p. 02)

que é substituída pela referência a uma bucólica cena de amor

B: na pedra juntos ao sol na pedra na orla do pequeno bosque nada só o trigo amarelando de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio sem jamais se tocar ou algo assim você numa ponta da pedra ela na outra pedra longa e baixa como pedra de moinho sem nunca se olhar apenas ali na pedra ao sol atrás o pequeno bosque olhando o trigo ou os olhos fechados ao redor tudo imóvel nenhum sinal de vida ninguém por perto nenhum ruído (BECKETTa, 2007, p. 02).

A fragmentação permite ao espectador divisar nesta sucessão sonora a referência a três

ocasiões distintas, através da aparição de três imagens, que se estabelecem com a força dos

elementos por elas evocados. Estes são extremamente especiais, individualizados, no interior

de cada fragmento. A primeira história evoca ruína, mas também criança, evoca uma busca,

mas também a constatação de que tudo está acabado. Esta cena é temporariamente anulada

por uma nova busca de refúgio, num dia também de mau tempo, mas é a presença de um

museu e de uma laje de mármore que singularizam o fragmento C. A seguir, é o aparecimento

de uma pedra, enfatizada por repetições, que sobrepõe-se à visão do museu. O fragmento B

distingue-se por supor companhia; mas, principalmente, por estar mergulhado na imobilidade,

de onde se destacam juras de amor intermitentes e o “movimento” dos trigais amadurecendo.

Os deslocamentos da voz entre as fontes sonoras sugerem, portanto, um deslocamento

24

temporal. Cada fragmento é povoado por cenários e elementos distintos. A presença do

Ouvinte em cena a quem esta voz (a sua voz) é endereçada faz acreditar que se tratam de

diferentes episódios de uma vida. Cada etapa é colorida por diferentes objetos, em diferentes

espaços, o que oferece a sensação de que os momentos vividos podem ser identificados a

partir das coisas que circundaram o sujeito.

Além disto, é possível perceber, desde A, uma sobreposição de objetivos, afinal a

simples menção da expressão “aquela vez” deve ser justificada por alguma necessidade

presente. Busca-se o passado por alguma razão e, neste caso, a “vez” referida diz respeito a

uma outra busca, a busca de um lugar do passado. O texto apresenta, portanto, um primeiro

espelhamento – a retrospectiva do sujeito traz à tona uma outra retrospectiva. Alguém se

lembra de alguém que ia em busca de uma lembrança (o esconderijo da infância). Esta

disposição já se fazia presente, em uma peça de 1958, A última gravação de Krapp (Krapp’s

last tape). Esta, também um monólogo que faz uso da voz gravada. Neste caso, entretanto, o

gravador está presente em cena e é manipulado pelo personagem, Krapp. O aparelho é

utilizado para que ele cumpra uma espécie de ritual – uma gravação a respeito de si, efetuada

a cada novo aniversário.

Neste monólogo, acompanhamos Krapp, no momento em que completa sessenta e

nove anos, se preparar para mais uma gravação. Antes disso, ele se põe a ouvir uma fita

gravada trinta anos antes. Esta fita permite ouvir uma outra textura na voz do personagem,

que se destaca pela força e pelo ânimo de uma criatura mais jovem. Em Aquela vez, a

fragmentação do fluxo e das lembranças oferece uma experiência relativa à descontinuidade

na percepção da própria história. Em A última gravação de Krapp, a diferenciação na

qualidade na voz é um primeiro recurso a partir do qual é possível entrever as deformações a

que o tempo submete o indivíduo3.

Na gravação, curiosamente, o Krapp de trinta e nove anos menciona ter ouvido, pouco

antes de proceder àquela gravação, “passagens ao acaso” de outra gravação, feita dez ou doze

anos antes (BECKETT, 1990, p. 218). Desta forma, temos um personagem de carne e osso

que ouve um dos únicos vestígios de seu passado – uma voz gravada que, num dado momento

da maturidade, alude a um tempo ainda mais remoto, relativo aos anos de sua juventude. Por

um momento, a descrição das circunstâncias que envolvem cada um dos tempos torna-se

3 Na première desta peça, dirigida por Donald McWhinnie e interpretada por Patick Magee, em Londres, em 1958, a diferenciação entre as vozes do Krapp sexagenário e do Krapp mais jovem foi um aspecto sobre o qual Beckett trabalhou direta e intensamente com o ator (para quem o texto havia sido especialmente escrito (KNOWLSON, 1996, p. 408).

25

menos importante do que aquilo que ela revela – uma persistência que atravessa os diferentes

episódios da vida do indivíduo, a necessidade de lembrar.

Em Aquela vez, as duas primeiras aparições da voz sugerem movimento, em etapas

mais avançadas da vida (“aquela vez que você retornou”/ “quando você se abrigou da

chuva”). Em A, entretanto, a linha que poderia conduzir ao sítio da infância está interrompida.

Linguagem e lembrança retrocedem, repetindo o movimento e detendo-se ante a visão dos

velhos trilhos. Em C, a necessidade do abrigo é estimulada pela chuva, pelo frio e pelo

movimento das ruas. O fragmento é interrompido aqui no instante em que a imobilidade é

alcançada, sobre um assento de mármore. Esta imobilidade já se apresenta em B com a força

da “pedra”, que, citada seis vezes em curto espaço de tempo, ecoa a laje de mármore do

fragmento anterior e reflete a ausência de movimento que caracteriza seus personagens. É

curioso que B, conforme apontado pelo autor, corresponda à etapa da juventude. Assim, o

movimento da meia -idade, em A, procura o seu repouso na velhice, C, e encontra-se

estabelecido na juventude, onde o movimento das palavras gravita em torno da solidão e do

mutismo da pedra, que parece englobar seus acompanhantes humanos, os quais contrastam

com o movimento do tempo na natureza, expresso pelo amadurecimento do trigo.

Ao longo do texto, os três extratos de vozes, em suas recorrentes aparições, lançam

mão de uma série de expressões indicadoras de tempo. É notável que tais expressões se

organizem de modo a contrastar permanência e efemeridade. Deste modo, “aquela vez” e

“quando foi” singularizam a procura do esconderijo e o abrigo do museu como pontos

específicos do passado, enquanto “sempre o inverno então sempre a chuva” e “tudo acabado

há muito tempo” acentuam a solidão e a hostilidade das condições exteriores, que se fazem

presentes, nos momentos indicados por A e C. O “de quando em quando” das juras de amor

em B é o mesmo “de quando em quando” dos chinelos do vigia que se aproximam em C,

apontando para eventos distintos, mas semelhantes quanto ao potencial de quebra de

isolamento.

A segunda aparição do fragmento B -

ao redor tudo imóvel apenas as espigas as folhas e vocês também imóveis na pedra como entorpecidos nenhum ruído nenhuma palavra de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio única fonte de lágrimas antes de se secarem totalmente aquele pensamento sempre que surgia dentre outros fazia emergir aquela cena (BECKETT, 2007a, p. 02)

- já explode a possibilidade de que cada um dos extratos possa corresponder correta e

exclusivamente a um único momento do passado. Após a descrição de uma cena já conhecida,

26

calcada principalmente em seus elementos exteriores (imobilidade, silêncio, murmúrios,

lágrimas); ocorre a referência a um pensamento. Identificado pelo pronome “aquele”, o

pensamento é capaz de fazer “emergir aquela cena” [grifo meu]. Deste modo, o instante

referido, em sua exterioridade, abriga um pensamento, que é a própria razão de ser da

lembrança. As palavras giram em torno de circunstâncias imprecisas, mas o pensamento que

evoca a lembrança não é citado. Qualquer que seja o episódio passado, ele interessa na

medida em que transporta alguma idéia que pode ser revisitada em outros momentos e que

tem atualidade no presente.

A linguagem acompanha a trajetória da lembrança. A propósito do então work in

progress de James Joyce (futuro Finnegans Wake), Beckett afirmava, num ensaio de 1929:

“Aqui, a forma é conteúdo, e conteúdo é forma. (...) Quando o sentido é dormir, as palavras

adormecem. Quando o sentido é dança, as palavras dançam” (BECKETT, 1992, p. 331).

Longe do júbilo e da exaltação promovida por Joyce em seu artesanato com as palavras, a

poética beckettiana, comprometida com a indigência4, conduz a linguagem a uma espécie de

tatear às cegas. Ela é capaz de iluminar determinados cenários da lembrança, mas não lhe é

assegurada muita estabilidade. O fato desta linguagem ser arrastada por um fluxo monótono5,

bem como repetir-se em reviravoltas que lembram expedientes clownescos desempenhados

por alguns personagens do autor, revelam um elemento que a desequilibra, que a ridiculariza.

Ora, este elemento é o tempo, que aqui se faz medir pela velocidade incomum do discurso e

pelo movimento entre as fontes, fatores que apresentam uma força mais poderosa do que a das

imagens e a das cenas evocadas, capaz de interrompê-las, de sobrepô-las.

Fica evidente, assim, como o tempo, compreendido enquanto fluxo para a morte, é

propositadamente inserido nesta obra. A arte, neste caso, enfrenta sua própria pretensão de

furtar-se ao tempo e passa a se situar nesta tensão entre o desejo de permanência e a

inevitabilidade do fluxo. Nos escritos sobre as artes plásticas, dos anos 40, Beckett cita a

questão de “como representar a mudança” como o dilema central das artes visuais

4 Uma das mais citadas declarações de Beckett diz respeito ao seu ponto de vista sobre o papel das artes no seu tempo: “A expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar” (BECKETT, 2001, p. 175). 5 No que tange à performance teatral do texto, as anotações sobre sua montagem no Schiller-Theater Werkstatt, de Berlim, em 1976, sob direção de Beckett, revelam que o autor solicitou ao ator Klaus Herm uma pronúncia do texto mais acelerada que a velocidade natural do discurso, sem fazer qualquer pausa, exceto no final de cada fragmento. Como não foi possível evitar pausas naturalmente, estas tiveram de ser cortadas pelo engenheiro de som. In: ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television – rehearsal notes for the German premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em: 12 de jun. de 2007.

27

(BECKETT, 1989, p. 38). Diante dele, os pintores realistas ensaiariam a pretensão de fazer

parar o tempo para representar seus objetos; enquanto os modernos teriam se fixado na

impossibilidade de proceder a tal representação. Esta questão já fora explorada no ensaio

sobre Proust, onde arte e vida, como expressões que se dão no tempo, só podem alcançar seus

objetivos através de “anexações parciais”, pois: “Tudo o que é ativo, tudo que está envolvido

pelo tempo e pelo espaço, é dotado do que poderia ser descrito como uma ideal, abstrata e

absoluta impenetrabilidade” (BECKETT, 1986, p. 46).

Esta constatação implica o “impedimento-objeto” e o “impedimento -olho”

(BECKETT, 1989, p.57), revelando a realidade de um objeto que se furta à representação, em

virtude da mobilidade do sujeito. Quando, ao observado, corresponde um objeto inanimado,

este não goza de fixidez, uma vez que deve passar pelas retinas de um observador, e sua

percepção estará sempre implicada na percepção que o observador tem de si mesmo – veja-se

o episódio da escada em Watt6, romance de 1945, em que a precisão das palavras se presta a

insinuar um universo que as mesmas palavras não são capazes de explicar. No caso de inter-

relações humanas, a questão torna-se ainda mais delicada, pois temos, neste caso, “dois

dinamismos intrínsecos e separados, carentes de um sistema de sincronização” (BECKETT,

1986, p. 13). A criatura amada é, deste modo, no romance de Proust, uma “multiplicidade

plástica e moral”, cuja posse não depende de uma mudança de ângulo do observador, mas

revela-se: “uma multiplicidade profunda, um redemoinho de contradições imanentes, sobre as

quais o sujeito não terá controle algum” (BECKETT, 1986, p.37).

Os pintores Geer e Abraham van Velde, segundo Beckett (1989, p.38) teriam

abandonado uma “situação plástica sem saída” e trocado a impossível ausência do objeto pela

certeza de que há um único objeto a ser representado e de que este objeto não se presta à

representação (BECKETT, 1989, p.56). Quanto a saber de que se trata este objeto, o ensaio

sobre Proust indica que o “único mundo que tem realidade e significado” é “o mundo de

nossa consciência latente”(BECKETT, 1986, p.09), a partir do que é possível concluir que o

único objeto, o qual se furta à representação, equivale ao próprio sujeito, única realidade

conhecida pela consciência, mas em constante fuga, porque sob ação do tempo.

Em Aquela vez, menos do que configurar um evento claro e objetivo transcorrido no

passado, linguagem e lembrança se apresentam como repetição, insistência, insubordinação.

6 “(...) as escadas que nunca pareciam as mesmas escadas, de noite para noite, e ora eram íngremes, ora suaves, ora compridas, ora curtas, ora largas, ora estreitas , ora perigosas, ora seguras, e que ele subia, por entre as sombras movediças, todas as noites, pouco depois das dez” (BECKETT, 2005, p. 130).

28

A sobreposição de fragmentos acentua um movimento constante, que materializa o fluir do

tempo em um fluir de palavras, de voz e de imagens.

B: (...) antes ou depois não importa com o rato ou o trigo as espigas amarelando ou aquela vez nas dunas com o planador que passava aquela vez que você retornou pouco depois bem depois A: onze anos na ruína na pedra plana no meio das urtigas noite escura ou à luz da lua a sussurrar ora uma voz ora outra você era ainda uma criança e ali no degrau sob o pálido sol... (BECKETT, 2007a, p. 06-7)

O modo como este movimento transporta as imagens, sacudindo-as, repassando-as,

chocando-as umas com as outras, confundindo-as; parece indicar a ação de alguém que busca,

a partir destas imagens, algo que as ultrapassa. É desta maneira que a busca do esconderijo em

A ecoa na busca do abrigo em C e que a constatação de que “tudo” está acabado repete-se nos

dois fragmentos. Além disto, a descrição do esconderijo como “pedra no meio das urtigas”,

que aparece mais adiante no texto, lembra o ambiente ao ar livre que se faz presente em B.

Diferentes extratos da memória, recortes do tempo que se fazem agitar pelo tempo em que o

texto se cumpre: a consciência em movimento, diagnosticada em Proust, aparece aqui como a

coincidência entre sujeito e tempo. O indivíduo que persegue uma verdade naquilo que se

cumpriu ao longo de seus anos materializa a passagem do tempo – sendo a expressão de uma

realidade permanentemente voltada para si, contemplando suas próprias questões, à medida

que se alteram as paisagens ao seu redor.

O objeto, aquela vez privilegiada, sugerida pelo título, se apresenta então como uma

multiplicidade de impulsos, que se esfacelam enquanto reconstituição do passado (“ao diabo

os velhos lugares os velhos nomes”), mas que manifestam o ímpeto de seguir o trilho da

próxima lembrança (“nada só os velhos trilhos enferrujados estava sua mãe ah pelo amor de

Deus tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou aquela última vez”) e daí

em diante até uma possível verdade em que seja possível permanecer. Mais do que apontar

para uma possível subtração do objeto, o texto confirma antes a evidência de um novo objeto,

a “vez” presente, onde o sujeito situa a sua eterna busca, convocando etapas do passado e

buscando configurar, a partir delas, uma imagem válida de si, que possa resistir ao tempo que

arrasta. Se em Proust, sujeito e presente se furtam à experiência cotidiana; em Aquela vez, tais

entidades se apresentam como a força que liga os instantes vividos, superando-os, ignorando-

os, revelando o que há de permanente na consciência auto-centrada: “para sempre toda a sua

vida uma sucessão de reviravoltas na verdade uma única reviravolta a primeira e última

aquela vez” (BECKETT, 2007a, p. 03).

29

“Aquela vez”, ao invés de revelar um instante preciso no tempo onde o sujeito se

revelasse em sua inteireza, corresponde a uma multiplicidade de tempos e de lugares, cujos

contornos se dispersam (“aquela vez que você retornou”, “quando você se abrigou da chuva”,

“na pedra”, “na orla do pequeno bosque”, “ou conversando consigo mesmo”, “ou junto à

janela no escuro”). O modo como a peça configura suas imagens está próximo do que Beckett

admirava na pintura de Abraham van Velde: “um desvelamento sem fim, véu atrás de véu,

plano sobre plano de transparências imperfeitas, um desvelamento em direção ao irrevelável,

ao nada, à coisa a seguir” (BECKETT, 1989, p. 58)7.

A pintura dos irmãos holandeses teria se concentrado no impedimento de um objeto

que, sendo a única realidade possível, não se deixa representar porque jamais permanece igual

a si mesmo. Diante da presença e do impedimento, Geer teria se concentrado no agente que

promove a mudança, tornando-se um pintor da sucessão, sua obra sendo voltada para o

exterior e chamada de “reticente”, agitada por uma “grande velocidade de fuga”, pela certeza

de que “não há presente nem repouso” (BECKETT, 1989, p.36). Seus objetos são subtraídos à

própria condição de ser objetos, uma vez que, como visto, seus contornos são acometidos de

uma mobilidade permanente, o que os conduz à condição de processo. A aparência exterior

das coisas torna-se, na pintura de Geer van Velde, invisibilidade, a qual insinua mais do que

afirma. A única afirmação residindo na “evidência fuga z e secundária do grande positivo, do

só positivo, do tempo que transporta”8(BECKETT, 1989, p. 41).

7 Tradução minha para: “Un dévoilement sans fin, voile derriére voile, plan sur plan de transparences imparfaites, um dévoilement vers l’indévoilabre, le rien, la chose à nouveau”. 8 Tradução minha para: “(...) l’evidence fugace et acessoire du grand positif, du seul positif, du temps qui charrie”.

30

Geer van Velde. Composition, 1948, 30.5 cm x 30.5 cm, Paris, Gallery Louis Carré.

Abraham, por sua vez, é visto como um pintor da duração (BECKETT, 1989, p.35),

estando este artista concentrado sobre o agente que sofre a mudança. Isto não o aproxima dos

realistas, numa pretensa parada da imagem. A duração em suas obras é um desvio da duração

natural, o que implica num objeto idealizado, “idealmente morto”, suspenso e fixado pela

necessidade de ver. O “objeto puro”, como ele é reconhecido, afasta-se, portanto, do mundo

visível e dirige-se para a escuridão da caixa craniana, revelando um “campo interior”, espaço

de um sujeito impedido de ver, de conhecer os objetos e de conhecer a si.

31

Abraham van Velde. Zonder Titel, 1936-1941, 100 x 81 cm, Paris, collectie Samuel Beckett.

Nos diálogos com Georges Duthuit, de 1949, a expressão, na pintura de Abraham, é

vista como deslocada para uma zona de sombra (BECKETT, 2001b, p. 181). A referência ao

negro aparece, nos artigos citados, como a substância da consciência, no interior da qual é

possível ver. Este negro, ou esta sombra, asseguraria a estabilidade, uma vez que,

paradoxalmente, iluminaria o espírito. O ser, para sempre fechado em si, vê a si mesmo, a

32

partir das cores de um espectro negro (BECKETT, 1989, p. 58). Nos Diálogos, esta sombra é

tornada mais intensa às custas de um sentimento de invalidez, sentimento do qual a pintura

sempre procurou se esquivar às custas de aperfeiçoar a relação do observador com o

observado. De acordo com Beckett, Abraham desistiu deste automatismo (e foi o primeiro a

fazê-lo), admitindo que o fracasso é o universo do artista. Apesar de Robert Kudielka sugerir

um equívoco de Beckett neste ponto9, esta visão implica aqui menos em uma revisão da

história da arte do que na descrição de processos artísticos que se estabelecem a despeito do

mecanismo pernicioso do tempo.

É curioso que esta seja uma visão muito particular de Beckett, capaz de despertar o

choque em seu interlocutor, Duthuit: “Mas este é um ponto de vista extremamente pessoal e

violento” (BECKETT, 2001b, p. 175); “Você se dá conta do tamanho do absurdo que está

propondo?” (BECKETT, 2001b, p. 179). A este estranhamento, soma-se ainda a recusa do

escritor a interpretações filosóficas para suas questões: “Não posso ver vestígio de qualquer

sistema em parte alguma” (apud ANDRADE, 2001, p. 187); “Eu não teria tido nenhuma

razão para escrever meus romances se pudesse ter expressado seu assunto em termos

filosóficos” (apud ANDRADE, 2001, p. 190). Tal particularidade permite entrever uma

compreensão da realidade que não pode ser escamoteada por definições lógicas e a obra de

arte como a ocasião em que a consciência ocupa-se da própria incapacidade para sobrepôr-se

ao tempo e ao espaço. Estas entidades, governadoras do mundo exterior, segundo Rubin

Rabinovitz10, tornam-se subservientes ao mundo da imaginação, nas obras de Beckett do pós-

guerra. É o que o autor chama de “reversão da fórmula da verossimilhança”: as leis físicas

tornam-se menos importantes do que as regras de processos mentais e o mundo do tempo e do

espaço torna-se escravo da vontade do mundo imaginário. A referência, situada em Abraham

van Velde, ao crânio como o espaço onde o tempo pode adormecer aponta para a solidão, para

a imersão em si, como uma via possível para a realização de um projeto artístico, uma vez que

a “tendência artística não é uma expansão, mas uma contração”, devendo o artista esquivar-se

da “nulidade de fenômenos extracircunferenciais” e sentir-se “atraído pelo centro do

redemoinho” (BECKETT, 1986, p. 53).

9 De acordo com o crítico alemão, a pintura, já com Manet e Cèzanne, no século XIX, rompera com a busca romântica de novos universos expressivos e fizera de seu objeto o mutismo dos conteúdos. Estes pintores buscavam “sur le motif consolar-se da ausência de grande ocasião e da insuficiência da própria capacidade” (2000, p. 67). 10 RABINOVITZ, Rubin. “Time, space, and verisimilitude in Samuel Beckett’s fiction.” Publicado originalmente no Journalof Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 2, verão 1977. Disponível em: <http;//www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2RubinRabinovitz.htm> Acesso em: 31 de jan. de 2008.

33

A grande importância dada ao mundo interior, à liberdade de imaginação como

alternativa ao mundo real é vista por Knowlson (1996, p. 319) como um fator essencial para o

desenvolvimento artístico de Beckett. Segundo o biógrafo, este acontecimento deu-se a partir

do reconhecimento, pelo autor, da sua própria “estupidez”, ou seja, numa percepção muito

particular, que o distinguia do seu mestre literário James Joyce, o qual acreditava que a soma

de conhecimentos poderia resultar num domínio mais amplo da realidade. Beckett teria

rejeitado este princípio e feito sua arte lidar, para sempre, com a impotência e com a

ignorância.

O sentimento de impotência parece agravado, no período de composição de Aquela

vez, conforme indicado no início deste item: o artista tendo de lidar com o tempo, que impõe

uma contradição à sua obra, a qual se propõe a lidar com o “sentido de deterioração”. Procurei

demonstrar, com a leitura de alguns de seus ensaios, que esta preocupação permeou desde

sempre o ideário poético do autor, fazendo com que ele situasse em artistas como Proust e os

van Velde, um enfrentamento desta questão. A partir dos anos 40, o autor responderá de

forma consistente ao dilema, com suas obras narrativas e com suas peças. No segundo

capítulo deste estudo, pretende-se demonstrar como, nos romances e peças de Beckett, o fluxo

do tempo constitui uma realidade profundamente enraizada nos processos mentais dos

personagens, devendo ser medido antes em relação ao mecanismo subjetivo de percepção do

que a partir de uma realidade objetiva. A abordagem do tempo nos romances produzidos no

pós-guerra introduzirá o modo como esta instância se apresenta em peças longas e curtas. O

pós-guerra é, reconhecidamente, um dos mais produtivos períodos de Beckett, e também

aquele em que a imaginação criadora passou a desenvolver os seus próprios recursos para

posicionar-se perante o mundo, ao invés de confiar apenas nos dados fornecidos pela

observação do mundo objetivo.

1.3. TEMPO E IMAGINAÇÃO

A partir de Watt, romance escrito em 1945, a escrita beckettiana, segundo Rabinovitz,

teria submetido o mundo físico, de maneira definitiva, aos processos da imaginação. De

acordo com ele, nos romances que se seguem, os objetos e experiências do “mundo do tempo

e do espaço” são introduzidos de modo a indicar aspectos de uma realidade “puramente

mental”. Deste modo, a obra desvia-se completamente da reprodução verossímil da realidade

exterior e a presença de elementos provenientes dela apenas interessam na medida em que

34

iluminem algum aspecto da realidade interior. Diante de tais romances, o leitor conscientiza-

se de que o temp o e o espaço operam no pensamento de maneira particular e que a

imaginação obedece a leis que não têm correspondentes na realidade física.

O discurso que introduz o personagem Watt na casa de Mr. Knott, embora qualificado

como “breve”, prolonga-se por cerca de trinta páginas. Trata-se da declaração de boas-vindas

do criado Erskine, a quem Watt substituirá em suas funções. Esta casa abrigará as deduções

lógicas, com as quais Watt falhará em penetrar numa realidade que parece indiferente aos

homens que a produzem e que nela habitam. Uma passagem, no longo discurso preparatório,

chama a atenção por sugerir uma súbita dissolução das categorias do tempo e do espaço e pela

indicação de uma realidade subjetiva mais complexa: “Uma tarde de terça-feira, no mês de

Outubro, numa bela tarde de Outubro. Eu estava sentado num degrau no pátio a olhar para a

luz na parede” (BECKETT, 2005, p. 48). A menção a esta determinada ocasião ecoa na peça

Aquela vez, composta trinta anos mais tarde: “tombado num degrau sob o pálido sol da manhã

não nunca o sol naqueles degraus outro lugar” (BECKETT, 2007a, p. 04).

Nas duas referências, o recorte de tempo evocado se revelará mais instável do que

qualquer “vez” datada pode suportar. A consciência que revolve os dados daquela voz, em

Aquela vez, forja para si um degrau com sol, visto que o degrau correspondente ao passado

não obtinha o sol, não sendo, portanto, condizente à questão que visa expressar. “ao diabo os

que passam boquiabertos ao vê-lo ali tombado sob o sol agarrado ao saco de dormir”

(BECKETT, 2007a, p. 06) – o sol, desta forma, contrasta com o saco de dormir, iluminando

aos olhos dos cidadãos, a presença de alguém que não encontrou repouso e que tem

dificuldade em estabelecer um caminho. A frase de Erskine que se segue ao trecho citado

exacerba tudo o que a sua lembrança apresenta de subjetivo: “Eu era o sol, se é que tenho que

precisar, e a parede, e o degrau, e o pátio, e a época do ano, e a altura do dia, para só referir

isto”. Os dois discursos revelam mais do que um modo subjetivo de perceber o tempo e o

espaço, revelam que o “sistema pessoal” pode contar apenas consigo, devendo desenvolver

suas próprias representações para aquelas instâncias, quando se trata de registrar uma

experiência significativa. Erskine prossegue:

Era o mesmo sol e a mesma parede, ou tão pouco mais velhos, que a diferença poderia facilmente ser menosprezada, mas estavam tão mudados que senti ter sido transportado, sem reparar nisso, para um pátio completamente diferente, num país desconhecido. Ao mesmo tempo, o meu cachimbo, visto eu não estar a comer uma banana, deixou tão completamente de ser o consolo que me era tão certo, que o tirei da boca para me assegurar de que não era um termómetro ou uma mordaça de epliléptico (BECKETT, 2005, p. 50).

35

Watt é, desta forma, introduzido num mundo que, diante da incomunicabilidade que

pratica com os espíritos, conduz o indivíduo para longe da realidade das aparências e em

direção ao reduto da imaginação, onde se estabelece uma percepção de outro gênero. Como

na obra de Marcel Proust, bem conhecida por Beckett, a literatura não se contenta com o

“sumário de linhas e superfícies” que constitui a arte realista, mas torna-se a concretização de

uma outra vida, que cabe ser escavada e revelada. A “verdadeira vida”, como Proust a chama,

é a que permite a comunicação entre o “eu presente”, “o passado, do qual as coisas conservam

a essência e (...) o futuro, onde elas nos incitam a saboreá-lo de novo” (PROUST, 1995, p.

194). Este autor é capaz de admitir inclusive que uma arte verdadeira, comprometida com a

revelação daquela vida, venha a fracassar – antecipando, de certa forma, a arte da indigência

de Beckett – diante da revelação do que a “essência” do vivido apresenta de subjetivo e de

incomunicável.

A experiência descrita por Erskine dialoga ainda com a célebre passagem da

madeleine, presente no primeiro volume de Em busca do tempo perdido, obra-prima de

Proust. A passagem constitui uma espécie de experiência mística, em que a “essência” do

passado irrompe os contornos do presente e se instaura no espírito do narrador como uma

sensação estranha, poderosa e prazerosa. A sensação fora deflagrada pelo saborear de um

pedaço do bolinho conhecido como madeleine, embebido em chá. Pressentindo que o sabor

gera algo em seu íntimo, ele é levado a decifrar aquilo que o invade. Percebe que a virtude

que procura não está na bebida, mas nele mesmo.

Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro para explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? não apenas explorar; criar. Está em face de alguma coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz (PROUST, 1981, p. 45-6).

A inteligência se revela de pouco valor, neste momento, uma vez que a memória não

se mostra capaz de reconhecer na sensação uma experiência passada, e que o indivíduo se

percebe mobilizado como um todo, por algo que é mais forte do que suas faculdades. A

inteligência é análoga à chamada “memória voluntária”, na qual o sujeito busca o passado a

partir de um interesse presente. A revelação proustiana, pelo contrário, será deflagrada pela

“memória involutária”, que tem no acaso seu princípio gerador. O acaso de um encontro –

neste caso, encontro com um sabor e um aroma – é capaz de fazer ressoar dois instantes

diferentes no tempo. Independente da vontade do indivíduo, mas estimulada por sua

imaginação, a sensação traz de volta o instante vivido. E ela o faz porque, como um

36

ingrediente mais frágil e mais imaterial, concentra em torno de si elementos que a

inteligência, demasiado envolvida com seus interesses, não pôde captar. Assim, a “memória

involuntária” traz o passado em sua “essência”, ou seja, em sua inteireza, porque não filtrado

pelo utilitarismo da razão, de modo que:

Como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d’água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá (PROUST, 1981, p. 47).

A “memória involuntária” resgata o instante vivido, recuperando circunstâncias que

passaram despercebidas no momento em que foram usufruídas. Deste modo, revelam o

passado com maior integridade do que os retrocessos da memória voluntária, sempre movida

por um objetivo prático e, por isso, sempre restrita ao que a inteligência acessou naquele

tempo. A imaginação, mobilizada pela sensação, preenche o passado com sentido,

percebendo, através do encontro entre dois tempos, uma realidade mais profunda, cuja

expressão deve abandonar o desenvolvimento causal e cronológico, para revelar o que

ultrapassa as instâncias do tempo e do espaço.

Desta forma, a busca pelo esconderijo da infância, na voz A de Aquela vez, é, em

grande medida, um expediente estéril porque movido pelo desejo prático de recordar. O fato

de, conforme demonstrado, memória e linguagem repetirem inutilmente as investidas em

direção a este sítio, aliado à percepção do indivíduo de que a tal ruína “não importa”

(BECKETT, 2007a, p. 02); indicam uma tendência proustiana a desacreditar o recorte do

passado perseguido pela consciência. O instante evocado pela inteligência equivale ao degrau

e ao cachimbo de Erskine, em Watt, os quais são irrelevantes em relação à realidade percebida

pelo personagem. Em Aquela vez, os olhos do Ouvinte ainda estão abertos quando a voz A

indica: “aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína onde

criança você se escondia quando foi” (BECKETT, 2007a, p. 02). A partir daí, os olhos se

fecham e Ouvinte e leitor (ou espectador) são conduzidos pelas vozes a uma jornada em que

múltiplos extratos de tempo se enovelam, fundindo e fragmentando imagens, situações e

pensamentos. Assim, é possível afirmar que as revelações mais importantes se darão a partir

do que supera cada período datado, residindo na interação entre o conteúdo das três vozes.

Os olhos fechados do Ouvinte, que estimulam o aparecimento das vozes, como os

possíveis olhos fechados sugeridos pela voz B, revelam o pouco valor atribuído à realidade

37

visível. Ela aparece, entretanto, para constrastar com a realidade vivida num espaço interior,

durante cada etapa da vida, de modo que a voz B indica:

jamais um olhar para o seu rosto ou outra parte jamais um gesto para ela nem dela para você sempre paralelos como nas duas extremidades de um eixo sem nunca se aproximar um do outro como duas leves manchas no limiar do campo sem nunca se tocar ou algo assim sempre um espaço entre vocês por mínimo que fosse nunca juntos como carne e sangue apenas duas sombras nem mais nem menos (BECKETT, 2007a, p. 04)

Em B, a presença da companheira, longe de sugerir comunhão ou qualquer espécie

de afeto, estimula as idéias a respeito de incomunicabilidade e solidão. De maneira

semelhante, em uma emissão da voz C, o sujeito se depara com uma pintura a óleo no museu,

um retrato de alguém “famoso em seu tempo”, mas a visão deste objeto e o entretenimento a

que ele convida – “alguma celebridade homem ou mulher ou criança célebre jovem príncipe

talvez ou princesa algum jovem príncipe ou princesa” (BECKETT, 2007a, p. 03) – são

substituídos pelo reflexo da própria imagem no vidro do quadro. É o indivíduo enquanto

testemunha de si mesmo, de suas ações e do seu pensamento, que se destaca em cada

fragmento.

O preenchimento do campo da escuta por vozes que independem da vontade do

personagem em cena revela que, ao vivido, sobrepõe-se um processo de auto-exame, em que a

consciência analisa o que nela o tempo perpetrou. A velocidade desta voz, sua entonação

indiferenciada, seus volteios e sua fragmentação - elementos que turvam o entendimento -

evidenciam que uma parte considerável do vivido não é capturada pela consciência. Isto torna

a realidade percebida pouco confiável. Ao desvelar este fato, a peça de Beckett não pode mais

ser vista como reprodução de um evento objetivo. A imagem da cabeça do Ouvinte, a que os

espectadores assistem durante a performance do texto e o fato dela se manter de olhos

fechados, durante a maior parte do tempo, apontam para uma dimensão interior, o interior do

crânio, que, como na obra de Abraham van Velde (BECKETT, 1989, p. 36), é o espaço negro

em que as imagens mortas cintilam, fábrica do tempo, onde é possível parar o tempo.

A própria disposição da cena faculta um ângulo de visão usualmente impossível sobre

o palco. Ao solicitar "longos cabelos brancos esparramados, como se, vistos do alto, contra

um travesseiro" (BECKETT, 2007a, p. 02), o autor promove uma rotação na caixa cênica, de

modo que a frontalidade converte -se numa disposição que, normalmente, seria impraticável

para o espectador acomodado em seu assento. A respeito desta particularidade, Enoch Brater

(1987, p. 38) observa que Beckett introduz o espectador em um "novo mundo", onde a

38

matéria é "tão inconstante e variável como a substância de nossos sonhos - ainda que exista

um pesadelo escondido neste sonho".

Stanley Gontarski observa que, nos primeiros manuscritos da peça, o Ouvinte se

apresentava com a cabeça realmente apoiada em um travesseiro, como se estivesse na cama,

tentando dormir 11. A temática do sono, introduzida pelos olhos fechados e pela sugestão de

travesseiro, não deve, portanto, insinuar uma situação realista, pois, se as imagens construídas

pelas vozes equivalem a sonhos, a cabeça flutuante, visualizada pelo espectador, também está

imbuída deste caráter. De acordo com Proust, que inicia seu romance com uma análise de

certos processos do adormecer:

Um homem que dorme, mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os instintivamente e neles verifica num segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; essa ordenação, porém, se pode confundir e romper (PROUST, 1981, p. 12).

Sono e vigília são, para Proust e para Beckett, pretextos para uma situação em que a

percepção convencional do tempo se deixa diluir e insinuar um real que habita o interior do

crânio A contagem do tempo, no sono, se dá em termos de manter em movimento, ao redor de

si, as diferentes etapas da vida, os diferentes sujeitos e seus correspondentes mundos, num

processo bastante afim àquele experimentado em Aquela vez. Embora imiscuindo diferentes

temporalidades, imbricando-as, tornando-as mais flexíveis, o encadeamento diz respeito a

uma ordenação que garante uma certa inviolabilidade à consciência, sua auto-identidade

através dos anos vividos e a garantia de posicionar-se novamente ativo (exteriormente ativo) a

partir do instante em que despertar. Isto explica porque a abertura dos olhos do Ouvinte, em

cada um dos intervalos de silêncio, constitui o momento mais dramático da peça. Nele, seu

personagem é trazido de volta para o presente12.

Entre o abrir e fechar de olhos – que ocorre três vezes, ao longo da peça -, o Ouvinte

se mantém em completa imobilidade, o que contrasta com a movimentação dos fragmentos de

vozes, das palavras, das lembranças. Estas parecem embalar aquele, a despeito das quebras,

que devem ser suavizadas por uma sugestão de continuidade. Tal continuidade pode ser ainda

percebida por tratar da voz de um mesmo indivíduo, de modo que o recurso da voz gravada,

11 In: Gontarski, S. E. The Intent of Undoing in Samuel Beckett's Dramatic Texts. Bloomington: Indiana University Press, 1985.Apud APPEL, Aaron. A discussion of That Time. Univ. of Colorado. Disponível em: <http://www.samuel-beckett.net/thattime.html > Acesso em: 17 de jan. de 2008. 12 ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television – rehearsal notes for the German premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ.,

39

independente da sua fragmentação, permite ao personagem ouvir “de uma grande distância

(...) a voz que ele tem hoje” 13. Desta forma, a evocação de circunstâncias, correspondentes a

etapas do passado, se fazem reunir por uma mesma voz, a voz presente, mas que se destaca do

seu portador de modo a parecer exterior a ele. Também as lembranças se encontram

fragmentadas, como se correspondessem a indivíduos diferentes, mas é possível reuni-las, em

certa medida, pela recorrência de determinados motivos, o que faz perceber uma persistência

individual ultrapassando esses fragmentos e que pode ser pensada como referente a um só

sujeito – um sujeito no tempo.

O tempo das vozes é, portanto, um tempo subjetivo, que supera a ordenação

seqüencial e cronológica, permitindo que motivos dispersos, ao longo dos anos – uma ruína,

uma hospedaria junto ao mar, o museu, o velho casaco verde deixado pelo pai –, dialoguem

entre si, fornecendo vestígios de velhas disposições daquele sujeito que a cena apresenta. A

chegada do presente, enquanto tempo de espera, de impotência e de silêncio revela a

insuficiência daquele tempo, sua incapacidade de “ressuscitar os mortos” e de garantir

permanência. O indivíduo é mais do que a soma das suas vivências e mais do que a relação

entre elas. Ele é também o fluxo, que condiciona o presente a se afastar, a cada segundo,

como coisa passada, realidade que não pôde ser plenamente apreendida. Este tempo de

contemplação impotente aparece sem cessar, no conteúdo das vozes e, de forma mais

evidente, no silêncio da respiração. Ainda que instaure um tempo idealizado, tempo da obra

de arte, tempo da apreensão subjetiva, Beckett não se resigna com ele, indicando-o como uma

violação daquele outro tempo, aquele que assegura o contato mais direto com a realidade: o

tempo que sepulta, a todo instante, aquilo que constituiu uma existência e que ameaça a

realização do projeto artístico.

Em Watt, a experiência revelada por Erskine demanda uma reflexão, executada pelo

próprio, onde ele se pergunta o que de fato mudou a partir da sensação de desintegração do

tempo e do espaço. A resposta obtida indica uma divisão entre o indivíduo que percebe e o

fenômeno percebido: “O que mudou, se minhas informações estão correctas, foi o sentimento

de que houvera uma mudança, diferente de uma mudança de grau” (BECKETT, 2005, p. 50).

Deste modo, o episódio parece distinto da revelação proustiana, ao menos no que diz respeito

a suas conseqüências. No fim, importa menos o retorno iluminado do passado na

complexidade de suas cores do que o reencontro do indivíduo com seu espaço, a saber, o

n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em: 12 de jun. de 2007. 13 ASMUS, Walter D.. Idem.

40

eterno confinamento em seu “sistema pessoal”. A revelação, ou a mudança, coincide com o

nada, uma vez que depende de uma realidade que se revela inalterável, de modo que Erskine

pode afirmar: “A coisa antiga que está onde sempre esteve, outra vez” (BECKETT, 2005, p.

50).

Quando abre os olhos, portanto, o personagem de Aquela vez, do mesmo modo que

Erskine, percebe-se isolado de toda expectativa de mudança, devolvido ao mesmo corpo, no

qual viveu cada instante da vida, mas no qual o sistema de percepção esteve desde sempre

encerrado consigo próprio. Como no romance Malone morre , escrito por Beckett em 1948, os

olhos que se abrem são os mesmos olhos com que “quando pequeno, bem pequeno, eu

interrogava as novidades, e depois as antigüidades, o céu noturno” (BECKETT, 2004, p. 33).

Os diversos períodos do tempo, bem como a fluidez entre eles, não são capazes de desviar a

consciência, definitivamente, de seu estado primitivo, silencioso, apartado dos objetos da

realidade exterior. Na peça Fim de Jogo, de 1957, o personagem Clov responde a uma

pergunta sobre o presente da seguinte forma: “Alguma coisa segue seu curso” (BECKETT,

1990, p. 98). Estes personagens ensaiam exilar-se do processo de alteração que acomete os

seres, mas apenas o fazem, ao pressentir algo de permanentemente não-cumprido, que se trata,

pois, da representação.

Após agitarem as linhas e superfícies de determinadas etapas do passado, as vozes de

Aquela vez manifestam uma consciência semelhante à dos personagens de outras obras. A

quarta aparição da voz C –

jamais o mesmo depois daquilo jamais exatamente o mesmo mas isso não era nenhuma novidade se não fosse isso era aquilo depois do que você jamais pode ser o mesmo arrastando-se ao longo dos anos atolado em seu eterno lamaçal murmurando a si mesmo quem mais você jamais será o mesmo depois disto você jamais foi o mesmo depois daquilo (BECKETT, 2007a, p. 03)

- indica o acometimento de uma mudança, após o episódio do reflexo no quadro do museu:

“jamais o mesmo depois daquilo”. Anterior à mudança (que aparece como mera sugestão,

referida sem ser descrita) e posterior a ela, permanece aquele que percebe a mudança (ou

apenas a possibilidade dela): “atolado em seu eterno lamaçal (...) quem mais”. O fragmento

atualiza a realidade do tempo e da alteração, mas mesmo a alteração de si é vista como um

fenômeno de superfície, já esperado e sem afastar o sujeito de sua posição: “mas isso não era

nenhuma novidade se não fosse isso era aquilo depois do que você jamais pode ser o mesmo”.

Independente da natureza dos objetos (“se não fosse isso era aquilo”), o sujeito se

percebe arrastado pelo tempo. Como visto em Proust, a percepção de si ocorre por meio do

41

que se torna passado. Isolando-se do material depositado pelo tempo, o sujeito se percebe

destituído de realidade, como demonstra a emissão seguinte de C: “jamais o mesmo mas o

mesmo o quê quem pelo amor de Deus alguma vez você se disse eu em sua vida ora vamos”

(BECKETT, 2007a, p. 03). O que torna tão dramático o retorno do Ouvinte ao presente é,

precisamente, o silenciar das vozes. Neste instante, ele pode contar apenas com seus velhos

olhos e com sua velha respiração, que, apesar de serem velhos, são os mesmos da infância,

ante uma realidade, que independente dos seus contornos, é a mesma realidade impenetrável,

que tempo nenhum foi capaz de conhecer melhor.

O privilégio concedido à imaginação possibilita uma maior fluidez entre diferentes

etapas da vida de um sujeito, permitindo, por exemplo, que a juventude contraste com a

velhice. Esta disposição assegura a percepção de certos temas que se repetem – como o

isolamento, como a insegurança diante do olhar dos outros -, sugerindo tendências subjetivas

que se aprofundaram, ao longo dos anos. Além disto, certas relações depõem contra a idéia de

evolução seqüencial, sugerindo um indivíduo que nunca pôde se desviar de velhos hábitos e

de questões para as quais nunca pôde achar respostas. Esta nova feição do tempo, tornada

possível pela hipertrofia do mundo interior, não expressa ainda a originalidade do sujeito

percebedor. Este tempo idealizado supõe a instauração de um sujeito a partir de uma

representação que não coincide com sua existência concreta. Esta representação aproxima -se

da matéria que constitui o sujeito quando se aproxima do tempo eternamente perdido – aquele

que nega a possibilidade de toda imitação, e que pode ser percebido como fluxo para a morte.

O tempo gerado pela imaginação, nas obras de Samuel Beckett, é um tempo cuja marcação

supõe novas fronteiras, mas estas são estabelecidas sobre um terreno instável: o tempo que

apaga (ou mesmo que impede que se constituam) os contornos do sujeito e da obra de arte.

Examinaremos a seguir, como a compreensão do tempo está ancorada em um modo

específico de representar o sujeito e como a complexidade das criaturas se altera, à medida em

que as obras inscrevem nelas mesmas o tempo que a representação não pode alcançar.

SEGUNDO CAPÍTULO:

SUJEITO E TEMPO, ROMANCE E TEATRO

43

2.1. Molloy: o declínio da memória, o avanço da invenção

Entrei em casa e escrevi, É meia-noite. A chuva fustiga os vidros. Não era meia-noite. Não chovia.

(BECKETT, 1988, p. 172)

A chamada trilogia do pós-guerra, constituída pelos romances Molloy, Malone morre e

O inominável inicia-se no presente de Molloy, seu primeiro narrador, o qual afirma estar no

quarto de sua mãe e não se lembrar da maneira como chegou até ali. A narração que

desenvolve é menos fruto do seu desejo do que incumbência de outro – alguém que o visita e

o obriga a escrever a respeito das coisas que o ocuparam no passado. Este passado torna-se

então o objeto da narrativa, implicando na configuração de um tempo e de um sujeito – obra

da memória e da fantasia, que conduz a outros espaços além dos limites daquele aposento.

Como em Aquela vez, há um sujeito (Ouvinte) ocupando o presente, e um apelo ao passado

(ou à imaginação) para recuperação de significados que configurem a imagem de sua

existência. Também carente de conteúdos no presente (apenas a cabeça do Ouvinte e sua

respiração), a peça teatral ensaiará romper os limites do palco italiano para recuperar velhas

paisagens, que possam contribuir com informações acerca do sujeito que as percorreu. No

caso do romance, o presente se re-atualiza no encontro com um leitor; no teatro, cumpre-se

como “tempo da encenação”14.

O presente se deixa invadir, no primeiro parágrafo do romance, por novas formas

temporais como hipóteses destinadas a cobrir as falhas na memória. É deste modo que o

narrador se aventa a possibilidade de ter tido um filho, que lança a idéia de ter vivido um

amor verdadeiro e informa ter esquecido a ortografia e metade das palavras. “Aqui está o meu

começo”, afirma (BECKETT, 1988, p. 06). Começo da narrativa identificado, portanto, com o

princípio de um percurso, ou de uma existência. O passado não é algo ultrapassado, já o

revelava o ensaio sobre Proust, mas sempre passível de reencontro. A cada vez que ele é

retomado, ele faz entrever um novo indivíduo. Aqui este tempo e este homem se fazem

produzir pela narrativa, revelando o valor de que esta atividade está instituída nas obras de

Samuel Beckett.

Logo a seguir, Molloy vem contradizer-se, entretanto: “Era o começo, compreenda

bem. Ao passo que está quase no fim, neste momento”. Início e fim, agora, co-habitam este

14 De acordo com Lehmann (2007, p. 291): “tempo vivenciado em comum por vários sujeitos, no qual se entrelaçam inseparavelmente uma realidade corporal e sensorial e uma realidade mental.”

44

primeiro parágrafo, lembrando o princípio dos contrários coincidentes, que Beckett

emprestara de Giordano Bruno, em seu ensaio sobre James Joyce, para tratar da vida na terra

como processo purgatorial: “O máximo e o mínimo de contrários particulares são os mesmos

e indiferentes. Calor máximo iguala-se a frio mínimo. Conseqüentemente, as transmutações

são circulares” (BECKETT, 1992, p. 325).

O quarto da mãe de Molloy, como espaço onde a narrativa se inicia e no qual ela deve

se encerrar, é o espaço habitado pela consciência, a qual enredará seu próprio passado,

constituído de fantasias e de hipóteses. Ausente o passado, podendo ele confundir -se com

uma ilusão ou uma mentira, as feições do sujeito se constituem, na narrativa, apenas desta

necessidade imposta e do ímpeto com que ele elabora a sua própria história. Neste sentido, o

palco de Aquela vez é também um espaço restrito, é uma cabeça humana contornada e

recortada pela escuridão. Tudo se concentrará ali. Os diferentes lugares e os diferentes

momentos evocados nascerão e morrerão no escuro. Cada uma das vozes apontará, em

determinado momento, a atividade fabuladora, que define sua própria existência. Deste modo,

“A: inventando sem cessar a história (...) inventando a si mesmo reinventando a si mesmo

pela milionésima vez” (BECKETT, 2007a, p. 06), “B: ou sozinho nas mesmas cenas

inventando-a” (BECKETT, 2007a, p.05), “C: (...) procurando assim inventá-la inventar a si

mesmo” (BECKETT, 2007a, p. 04).

No Purgatório de Joyce, ocorre a ausência de valores absolutos, como Víc io e Virtude;

qualquer erupção em um destes pólos devendo ser purgada pela qualidade oposta

(BECKETT, 1992, p. 338). A consumação de qualquer valor é, neste caso, mera aparência.

De modo análogo, o máximo de verdade atribuído a um fato do passado de Molloy será

demolido pelo grau mínimo de falsidade que supõe. Este processo implica em movimento,

mas tal movimento é certamente circular, revelando o instante em que Molloy busca constituir

uma voz e um passado como, simultaneamente, um começo e um fim.

A atividade narrativa tende, no romance como na peça de teatro, para a auto-

consciência. Molloy confunde os planos da memória e da imaginação e, desta forma, faz ver o

que há de fictício em toda rememoração. As vozes A, B e C buscam uma localização no

passado, mas percebem o elemento fantasioso que reside em toda recuperação (representação)

de experiência. O reconhecimento, entretanto, também está enredado na narrativa, fazendo

com que o pensamento, como a lembrança, também seja percebido como uma fabulação,

como “mais uma daquelas velhas fábulas para que o vazio não viesse cobri-lo com seu

sudário” (BECKETT, 2007a, p. 03). Ao se perguntar: “Haverá mais panos de fundo, panos de

fundo mais fundos? A que panos de fundo dá acesso este pano de fundo?”; a voz narrativa do

45

último romance da trilogia responde para si mesma: “Estúpida obsessão da profundidade”

(BECKETT, 2002, p. 10). Revela-se, desta forma, que o sujeito encontra como única opção

seguir adiante, convencido de que os elementos que emprega para “aumentar” o

conhecimento de si têm atributos que implicam na ignorância da sua condição.

Ao se deslocar para um outro cenário, num tempo passado, Molloy vê duas figuras

que, como as vozes referentes à meia-idade e à juventude, em Aquela vez, chamam-se A e B.

Como duas criaturas distintas, uma pequena e outra grande, elas se deslocam, sem se ver, uma

em direção à outra, encontrando-se, finalmente, em uma depressão do terreno. O olhar do

narrador observa estes dois homens – um deles segue em direção à cidade, o outro em direção

a regiões desconhecidas. Molloy indica a possibilidade de ter seguido um destes homens, não

sabe qual. Há um princípio de identificação, o que permite concluir que estes homens

correspondem a possíveis alteridades do próprio Molloy. Tal como se encontram e se

distanciam, marcando a descontinuidade inevitável entre as etapas de um indivíduo, este

reflexo desaparecerá, assim como surgiu: “Dos objetos prestes a desaparecer afasto o olhar

antes. Não, não posso olhá-los até o derradeiro instante. É nesse sentido que ele desapareceu”

(BECKETT, 1988, p. 10).

Também em Aquela vez não há uma evolução gradativa do jovem para o adulto ou

para o velho. As fases de transição foram subtraídas e as três etapas da vida tornam-se

fragmentos, revelando símbolos e imagens recrutados de diferentes etapas do passado, a partir

da ação da memória ou da atividade fabuladora. Neste sentido, o passado surge, como em

Molloy, da insinuação de figuras paradas ou em movimento, reunidas pelo timbre vocal e pela

alusão ao Ouvinte como “você”.

Molloy antecipa, deste modo, a idéia de um sujeito que assiste aos deslocamentos

isolados dos seus antigos “eus”, sob a forma de vagas recordações, sem poder precisar a

natureza do encontro entre tais criaturas, ou seja, o modo como elas evoluíram de um estado

para outro. Molloy assume que possa ter seguido um dos sujeitos, no que se assemelha à voz

A do texto teatral, em busca de uma sombra de sua infância. É difícil precisar o instante em

que a descrição do passado é abandonada e quando ela deságua nas contradições da memória

do narrador do romance. De modo semelhante, a busca em A se deixa entremear por reflexões

que podem muito bem ser referentes ao sujeito do presente: “ou conversando consigo mesmo

quem mais conversas imaginárias você era ainda uma criança” (BECKETT, 2007a, p. 03).

No trecho acima, a voz A refere-se a um jogo que parece corresponder à própria idéia

da peça: a de ouvinte para a própria voz. A dupla perspectiva temporal reforça a presença do

Ouvinte em cena. O passado e a voz, referências fundamentais da identidade, que nesta peça

46

tendem a se dispersar do sujeito, são afuniladas pelo pronome “você”, que instala o presente,

referenciando-o a partir da atualidade de uma brincadeira infantil. Deste modo, o sujeito que

um dia conversou consigo mesmo, só pode ser o presente Ouvinte, testemunhando sua própria

voz. As figuras visualizadas por Molloy e as imagens construídas pelas vozes de Aquela vez,

adquirem consistência, à medida em que refletem uma consciência presente, lançando mão

destes recursos para preencher o instante vivido com uma idéia de continuidade e de

companhia, como naquele romance de 1980:

Uma voz que fala do passado, a alguém deitado no escuro. Com uma alusão ocasional ao presente e, o que é mais raro, ao futuro, como por exemplo, Vais acabar como estás agora. E, em outra escuridão, ou na mesma, um outro, criando tudo para ter companhia (BECKETT, 1982, p. 42).

Como a voz A de Aquela vez, a voz narrativa de Companhia ilumina o subterfúgio que

protege do vazio e da solidão. A voz construída pelo personagem do romance “deixa-o

depressa”. Na peça, a revelação do diálogo consigo antecede um dos intervalos, em que o

silêncio substitui as vozes e a escuta da respiração, assim como o aumento da luz, devolvem o

narrador à solidão de seu presente. Molloy, por sua vez, tentará preencher este instante

inevitável com palavras: “E estou de novo não diria sozinho, não, não é meu gênero, mas

como dizer, não sei, restituído a mim próprio, não, jamais me soltei” (BECKETT, 1988, p.

11). Tais palavras se anularão enquanto tentativa de apreensão do sujeito, em seu presente, e

ameaçarão a própria subsistência da narrativa: “seria melhor, ou tão bom, apagar os textos ao

invés de enegrecer as margens, raspar até que tudo fique branco e liso e que a besteira assuma

seu verdadeiro rosto” (BECKETT, 1988, p. 11).

Entre as primeiras páginas de Molloy e a conclusão de O inominável, romance de 1949

que encerra a trilogia, inúmeras criaturas passarão diante dos olhos do sujeito – Molloy, A e

B, Moran, Malone, Sapo, Macmann, Basil, Mahood -, tal como as figuras tão fortemente

insinuadas em Aquela vez, constituídas de palavras e reveladoras do mecanismo que as

produz. Diante destes seres, ao mesmo tempo fascinantes, pelo mistério que suportam, e

evanescentes, pela facilidade com que se desintegram, Molloy admite: “Tenho é necessidade

de histórias” (BECKETT, 1988, p. 11). Ao final de O inominável, o percurso, através de todos

estes seres conduzindo a um possível abandono dos mesmos, indica a esperança de um

encontro com o objeto do desejo, o qual coincidiria com a ausência do objeto, com o puro

sujeito, cujo aparecimento implicaria na extinção da obra de arte: “talvez me tenham

transportado ao limiar da minha história, muito me admiraria, se ela se abrisse, vou ser eu, vai

haver silêncio, aqui onde estou” (BECKETT, 2002, p. 189).

47

Para o estudioso Aldo Tagliaferri (1992, p. 171), mais do que identificar este processo

com a auto-anulação dos contrários, conforme o Purgatório de Joyce, a negação deve

sobressair como a “tendência fundamental”. Deste modo, o trecho citado, como esperança

iluminada de nascimento do sujeito e de extinção da narrativa, recebe o seu julgamento: “não

sei, nunca saberei, no silêncio não se sabe, tenho que continuar, não posso continuar, vou

continuar”.

Diante do silêncio, o sujeito jamais poderá saber do que se trata ele mesmo, visto que

tal certeza só se dá a partir daquilo que é recusado, daí a necessidade de “continuar”. Apenas

desenvolvendo projeções - cuja própria natureza objetiva já as fragiliza -, o sujeito pode se

tornar presente pelo “ato de recusa” - “continuação direcionada (...) da negação de todos os

valores hipostáticos, de todas as reificações acumuladas por uma milenar tradição ocidental

para encobrir a insustentabilidade da nua subjetividade humana” (TAGLIAFERRI, 1992, p.

170).

A negação, como processo levado ao extremo pela obra de Beckett, indica a

resistência em contentar-se com qualquer das figuras com as quais se insinua a menor

identificação. Daí o fato delas se proliferarem ao longo desta obra, atualizando uma dialética

de quebra e de continuidade, que a estrutura de Aquela vez materializa por meio da escuta da

fragmentação de uma voz individual. As figuras construídas por essa voz também habitam

espaços e tempos particulares, mas todas se revelam modeladas a partir de uma mesma

substância, seja ela a voz, as palavras ou a ação de uma consciência presente.

O encontro entre estas criaturas é sempre um momento em que a atmosfera se adensa.

A agonia da morte contrasta com a expectativa de uma chegada ou de um nascimento, o que

torna a aniquilação uma experiência jubilosa, como a visão de uma mula morta, em Malone

morre, segundo romance da trilogia: “O fim de uma vida é sempre estimulante” (BECKETT,

2004, p. 50). Este animal reaparece na versão original inglesa de Aquela vez, numa emissão

da voz B: “on the towpath with the ghosts of the mules”15 (BECKETT, 1990, p. 393). A

aparição comprova a peculiaridade de teimosia imputada a este animal, bem como a

observação feita em Malone sobre “a tendência dos enterrados de voltar à superfície, contra

toda a expectativa, em direção ao dia” (BECKETT, 2004, p. 51). Pensamento da morte que

assombra o vivente com a possibilidade de estar vivendo uma vida que não seja a sua e que o

ilumina ante a possibilidade de um repouso, onde não seja mais necessário fabular sobre si.

No final da primeira parte, ou seja, no final de sua retrospectiva, próximo ao seu

presente e ao seu fim, Molloy perdeu o movimento das duas pernas e move-se, floresta

48

adentro, como um réptil. Acabada a floresta, Molloy se descobre em um fosso - que, não por

acaso lembra a depressão onde as figuras A e B se encontraram antes -, de onde vislumbra os

contornos de uma cidade. Ele percebe torres que não consegue identificar ao certo. Inevitável

lembrar o sujeito referido pela voz A, de Aquela vez, este também em busca do passado, sem

se lembrar do nome da “torre ainda em pé entre cascalhos e urtigas onde você dormia”

(BECKETT, 2007a, p. 02-3). Há no romance o pressentimento de “que alguém viria em seu

socorro” e também uma “vontade de retornar à floresta”, a qual se revela uma falsa vontade.

Com a idéia de permanecer onde está, no limiar entre os dois espaços, à espera de socorro,

próximo do seu presente, mas apartado dele, a narrativa é interrompida, Molloy desaparece.

A segunda parte do romance sugere um segundo narrador, Moran, cuja primeira

distinção apresentada com relação a Molloy é uma memória coerente e afirmativa: “Era um

domingo de verão. Estava sentado no meu jardinzinho, numa poltrona de vime, um livro preto

fechado sobre os joelhos. Deviam ser cerca de onze horas” (BECKETT, 1988, p. 89). Este

narrador, como o primeiro, também parte do presente: “É meia-noite. A chuva fustiga os

vidros. Estou calmo. Tudo dorme” (BECKETT, 1988, p. 89). Deste modo, a segunda parte

constitui a redação de um relatório relativo a uma missão que fora confiada a Moran: a busca

de Molloy. O narrador é possivelmente aquele outro que Molloy esperava confiante em seu

fosso. O que poderia servir para ampliar os pontos de vista sobre o passado deste personagem,

preenchendo as lacunas deixadas pela primeira parte, revela -se, entretanto, uma esperança vã.

Moran é uma espécie de agente secreto e descreve da seguinte forma seu ofício de ir

em busca de homens:

O homem também está lá, em alguma parte, vasto bloco modelado por todos os reinos, simples e sozinho entre os outros e tão despido de imprevisto como um rochedo. E neste bloco, em alguma parte, acreditando-se um ser à parte, está sepultado o cliente. Qualquer um pode fazer o trabalho. Mas me pagam para encontrá-lo”(BECKETT, 1988, p. 107).

A descrição faz ver que a busca de Molloy, efetuada por Moran, é menos uma missão

secreta do que um novo jogo com que se ocupa a narrativa. É possível encontrar no trecho

citado uma alusão ao ofício literário, atividade embuída do propósito de encontrar o homem.

Este expediente, entretanto, pode ser desempenhado por “qualquer um”, revelando-o também

como a busca, empreendida por todo homem, de valores que configurem a sua identidade.

Ora, esta empresa – apreensão de si -, como os narradores de Beckett (e o ensaio sobre

Proust) o revelam, tem de se dirigir ao passado. Dando indícios de como a narrativa se

15“na trilha junto do rio com os fantasmas das mulas” - tradução livre.

49

constrói e de como nela está implicada a construção de um sujeito auto-referente, a obra já

revela o que será mais diretamente expresso em O inominável: que o “progress beckettiano”,

conforme Tagliaferri (1992, p. 169), “não está direcionado para um produto, o maquinismo da

arte, mas parte de um maquinismo para tornar seu retorno impossível”.

A missão de Moran perde sua sustentação, sua narrativa revela -se um delírio,

impossível de ser completada. A instabilidade toma conta deste espaço e indica a

transmutação de Moran em Molloy: perna que deixa de se dobrar, incertezas que passam a

povoar seu discurso, encontros que se parecem com os de Molloy, objetos que se repetem,

memória que dá sinais de falhar. Mais do que duas progressões diferentes, a obra revela um

“espelhamento”. Apesar de circundados por diferentes circunstâncias, as duas partes do

romance fazem ressoar questões semelhantes, revelando uma matéria permanente sob os

traços dos dois personagens:

Mas bastava que começasse a lançar um pouco de clareza, quero dizer nesta obscura agitação que tomava conta de mim, com a ajuda de uma imagem ou um julgamento, para me lançar em outras preocupações. E um pouco depois tudo devia recomeçar. E até nesta maneira de agir eu custava a me reconhecer (BECKETT, 1988, p. 145).

A obra apresenta seus personagens que, como o Ouvinte de Aquela vez, partem em

direção a um tempo passado, o qual, ao preencher a lacuna a respeito de suas identidades,

poderá preencher a narrativa com sentido. A presença de Molloy assegura uma certa

estabilidade a este processo, “uma personagem identificável, um nome seguro que nos protege

de uma ameaça mais turva” (BLANCHOT, 2005, p. 310). Com o início do percurso de

Moran, o leitor é encorajado a acreditar que aquele passado (e, com ele, um sentido mais

evidente para esta narrativa) será alcançado. Mas o que se pronuncia com relevo crescente é o

presente do narrador – tempo que o aproxima de Molloy, sem identificá-los, nos entanto -,

povoado por preocupações e hesitações. Trata-se de uma obra reveladora de personagens que

questionam sua própria subsistência no tempo da narrativa. Talvez por isso eles permaneçam

como figuras instáveis, imprecisas, mas irremediavelmente presentes, atuais, sobreviventes à

decepção das expectativas quanto ao sucesso de suas narrativas.

50

2.2. Malone: o tempo como brinquedo

As criaturas elaboradas por Malone, o narrador que vive seus últimos dias deitado em

uma cama a fabular, também servem para revelar com mais força a condição de seu criador:

Me pergunto se não é sobre mim que estou falando. Será que, até o fim, vou ser incapaz de mentir sobre algum outro assunto? Sinto a escuridão se concentrando, a solidão se preparando, onde me reconheço, e sinto que me chama essa ignorâ ncia, que poderia ser linda mas é apenas covardia (BECKETT, 2004, p. 21).

Suas histórias povoam o instante que antecede sua morte, que ele supõe próxima: a

vida como um ínterim de fabulações, as quais, conforme revelado pelas vozes de Aquela vez,

procuram se desviar de um estado de vazio insuportavelmente real. Em Malone, a narrativa

avança falsamente às custas da afirmação de que se tratam de histórias de outrém. O passo

adiante, nesta direção, retira seu movimento da própria negação da narrativa. Ir para longe do

vazio corresponde a fabular, mas apenas na medida em que o narrador não se reconheça no

seu produto.

A coisa avança. Nada parece menos comigo do que esse garoto razoável e paciente, se esforçando sozinho durante anos para lançar um pouco de luz sobre si mesmo, ávido pelo menor clarão, fechado aos atrativos da escuridão. Aqui sim está o ar que eu preciso, longe da neblina substanciosa que está acabando comigo. Só vou voltar para essa carcaça para saber qual é a sua hora (BECKETT, 2004, p. 27)

Conforme as circunstâncias que diferenciam Molloy e Moran apenas falsamente

desviam a atenção do leitor da questão fundamental que é o fracasso na representação do

sujeito; em Malone, os exercícios narrativos não entretêm o leitor da falta de sentido que o

narrador experimenta com relação a si e à sua existência. O leitor é então esse terceiro

personagem que, conforme Andrade (2001, p. 63), sobrepõe-se àqueles da obra. A narrativa

de Malone, como brinquedo, pode iludi-lo temporariamente, mas aquele que lê perceberá a

tensão entre estas formas e a urgência de um personagem em cumprir seu tempo de vida,

esquivando-se das lacunas em seu entendimento. Isto se dá como se a vida, para ser

suportavelmente cumprida, tivesse de se afastar de si mesma (“Só vou voltar para essa

carcaça para saber qual é a sua hora.”) Ele não seria capaz de apenas ver passar o seu tempo –

a vida como uma espera solitária – pois desta forma não perceberia o tempo – não havendo

51

sucessão de formas, tudo pareceria um mesmo instante e a morte como a única meta estaria

infinitamente longe.

Andrade (2001, p. 117) observa como a morte para Malone corresponde a um “des-

nascer”, “um apagar de si qualquer sinal de vida”. Desta forma, o autor afirma que a

oscilação entre a posição fabuladora e a posição observadora e não-participante de Malone

implica numa “alternância” própria, uma temporalidade que não obedece aos ciclos naturais.

Uma imagem, em Aquela vez, que expressa bem essa divisão é a apontada pela voz B, de um

ser humano que não age, paralelo a uma plantação de trigo que amadurece. Ao elaborar suas

figuras, Malone elabora sua própria percepção do tempo, baseada na idéia de que o tempo

passa e de que a vida se cumpre em experiências. A superficialidade deste estado é enfatizada

pela evidência de uma realidade subjacente e que corresponde ao tempo do fim, o qual não

cessa de fluir, mas que não se permite conhecer, como a totalidade do “eu”. As histórias

tornam-se um anteparo inseguro, uma vez que não asseguram a aderência e não protegem do

abismo de profundidade indefinível.

Sem ir tão longe, quem esperou bastante vai ficar sempre esperando, e passando um certo lapso de tempo, vem a hora em que nada mais pode acontecer e ninguém mais virá e tudo está terminado exceto a espera que se sabe em vão (BECKETT, 2004, p. 85-6).

Malone torna-se o que Andrade (2001, p. 111) chama de “narradores-narrados”, uma

vez que convida o leitor não apenas a ler suas fábulas, mas a compactuar com ele o tempo de

uma espera: aquela da morte, aquela do fim da leitura, que são coincidentes. Deste modo, o

final do romance faz coincidir, no tempo da leitura, o assassínio dos personagens por um

enfermeiro sugestivamente chamado Lemuel (que evoca o nome do autor) com a morte do

narrador agonizante, que abandona seu lápis (e com ele os personagens) no momento em que

o bastão do assassino faz mais uma vítima (e ele também encontra a morte):

nem com seu lápis nem com seu bastão nem nem luzes luzes quero dizer nunca coisa alguma mais nada nunca mais (BECKETT, 2004, p. 145)

Por mais desacreditadas que sejam as fábulas que um sujeito se conta durante a vida, a

ficção se alimenta destas vozes que depõem contra ela mesma. Assim, o ressurgimento das

vozes, após o intervalo de silêncio, iniciando a segunda parte de Aquela vez, faz com que o

Ouvinte feche os olhos, logo após as primeiras palavras. Apesar da tensão entre pensamentos

52

no presente e lembranças do passado, elas oferecem um alívio ao sujeito que parece recuperar

com as vozes um estado de repouso, alimentando sua espera com o produto de sua própria

“voz narrativa”.

O fato de Beckett solicitar que a segunda parte se iniciasse mais suave do que a

primeira enfatiza a textura musical que o texto tende a adquirir. Esta textura envolve Ouvinte

e também espectadores numa experiência quase encantatória, apresentando, através dos

elementos do teatro, a experiência de que a narrativa sobrepõe-se ao tempo real não por seu

conteúdo, mas por seu próprio processo. “Viver e inventar. Eu tentei. Acho que tentei.

Inventar. Não é bem essa a palavra. Viver também não é” (BECKETT, 2004, p. 28). O

inventar, como se fosse um processo fisológico, acompanha o indivíduo, interferindo em seu

ritmo, ninando sua espera pela morte.

Como são três as vozes de Aquela vez, são também três as histórias que Malone se

propõe a contar: “vou começar (...) com o homem e a mulher. Essa vai ser a primeira história,

não há enredo para duas. Só vai haver assim, no fim, três histórias, essa, a sobre um animal, e

a sobre uma coisa, uma pedra provavelmente” (BECKETT, 2004, p. 12). Não se percebe,

entretanto, ao longo do romance, o cumprimento desta proposta, mas o avanço da fabulação,

no sentido de representar três fases da vida do homem, como a juventude, a maturidade e a

meia-idade, em Aquela vez.

As semelhanças entre estas duas obras transparecem ainda na elaboração da história de

juventude, a primeira produzida por Malone, que situa o personagem Sapo, como o

personagem da voz B de Aquela vez, junto da natureza. Ambas as histórias apontam para a

possibilidade das criaturas se imiscuírem na tranqüilidade da vida silvestre, sendo Sapo,

caminhando, “uma grande penugem que o vento arranca do lugar onde está” (BECKETT,

2004, p. 30) e o jovem de Aquela vez, com sua companheira, “duas leves manchas no limiar

do campo” (BECKETT, 2007a, p. 04). Esta possibilidade é aniquilada porque, como constata

Malone: “Há uma escolha de imagem”. Deste modo, a pura exterioridade encontra-se

inacessível posto que ela só pode se constituir de imagens produzidas pela consciência,

apontando a “neblina substanciosa” que se adensará, em períodos posteriores, ao redor do

sujeito.

Os dois extratos de juventude já manifestam um confronto entre luz e escuridão que

opõe o mundo visível à atividade da consciência, à impossibilidade de exorcizar o vazio que a

ameaça por meio de lembranças e da narrativa. Assim, o personagem de Malone é visto

“errando pela terra, passando da sombra para a claridade, da claridade para a sombra”

(BECKETT, 2004, p. 43) e o de Aquela vez fixa-se, muitas vezes, à oposição entre exterior e

53

interior “fixando o azul ou os olhos fechados azul escuro azul escuro” (BECKETT, 2007a, p.

04). Estas criaturas são a expressão de um indivíduo que se afasta do contato com a realidade

exterior e caminha para o estado de isolamento de seu narrador ou de seu eu presente. A

situação passada, no romance, serve para contrastar com o presente do narrador, como na

descrição das paradas reflexivas daquele tempo: “essas paradas eram de curta duração, pois

ele ainda era jovem” (BECKETT, 2004, p. 43). E servem, em Aquela vez, para abrigar

pensamentos que dizem respeito ao presente do Ouvinte: “até concluir que essa é mais uma

das histórias que você costumava inventar para deter o vazio” (BECKETT, 2007, p. 03).

É bastante sugestiva a posição junto à janela que aparece em ambos os textos como o

instante que antecede uma observação totalmente desviada da realidade visível. Em Malone:

“De pé, diante da alta janela, eu me entregava a essas coisas, esperando que terminassem, que

minha alegria terminasse, tenso em direção à alegria de minha alegria finda” (BECKETT,

2004, p. 44). Em Aquela vez: “ou junto à janela no escuro a ouvir a coruja a cabeça vazia e aos

poucos difícil acreditar cada vez mais difícil acreditar que você tenha alguma vez amado a

alguém ou alguém a você” (BECKETT, 2007a, p. 03). Os eventos externos dão lugar à

percepção da realidade invisível, a atenção ao ritmo que subjaz a toda fabulação, evidente no

definhamento do narrador Malone - habitante das mesmas trevas que o jovem Sapo

atravessava com agilidade - e na respiração do Ouvinte - “audível, lenta e regular”, a qual

povoa o vazio deixado pelas vozes. As histórias são temporariamente abandonadas, tal como o

mundo visível, mas o vazio e o escuro que elas insinuam apresentam um outro universo, a

realidade da mente e o modo com ela percebe o mundo circundante. A narrativa do romance e

a narrativa da voz B alcançam esta realidade e a incluem como aquilo que ameaça a confecção

da fábula, mas que, ao mesmo tempo, justifica sua existência.

Como os olhos do narrador se deixam fechar muitas vezes, como a consciência tende a

se afastar da realidade externa, a transição entre as diferentes fases do mesmo indivíduo

ocorre segundo quebras. Estas indicam antes um tempo pessoal, de percepção e de memória,

do que um tempo empírico, de desenvolvimento e transformação. Em Malone morre, como

em Aquela vez, a passagem à idade adulta é acompanhada de uma mudança de cenário do

campo para a cidade. No primeiro, a alteração implica inclusive na mudança do nome, de

Sapo para Macmann, e seu aparecimento se dá sob a forma de um re-apoderar-se:

Levei um tempão para encontrá-lo, mas o encontrei. Como o reconheci, não faço a mais vaga idéia. (...) Agora, ele é meu. É um ser ainda vivo e, inúltil dizer, do sexo masculino, vivendo essa vida crepuscular que é como uma convalescença, se minhas lembranças são minhas, e que você saboreia perambulando depois do sol, ou sob a superfície , nos corredores do metrô (BECKETT, 2004, p. 67-8).

54

O narrador, mergulhado em suas próprias sombras, deixou escapar um período da vida

do seu personagem. Reencontrado, ele agora goza menos da claridade do que o jovem Sapo,

que era visto muitas vezes sob o sol. O homem de meia-idade vive uma “vida crepuscular”,

rodeado de sombras e de profundidade. De mesmo modo, a voz B, a da juventude, em Aquela

vez, é a única a vislumbrar um céu azul, sendo o tempo em A “dia cinzento” e em C, “sempre

o inverno”. O reconhecimento se dá por meio da correspondência entre pensamentos, pois,

como assinala Andrade (2001, p. 131), “o menino que assistia o mundo à sua volta, curioso

mas sem grande envolvimento, encarna uma visão de mundo, um desengajamento voluntário

que cabem muitíssimo bem na descrição de seu sucessor urbano”.

A troca de ambientes é que induz à percepção da passagem do tempo. Em Aquela vez,

a voz C é a correspondente urbana de B, entrando em museus, correios e bibliotecas - “uma

coisa formidável a cultura gratuita providência dos sem-teto” (BECKETT, 2007, p. 05). Num

novo sítio, entretanto, esta voz encontra-se com a de seu passado, na medida em que, como

ela, percebe a vida como um acúmulo de histórias que não puderam desviar a consciência do

encontro com a sua condição primeira: “toda a sua vida uma sucessão de reviravoltas na

verdade uma única reviravolta a primeira e última” (BECKETT, 2007, p. 03).

Antes que Malone deposite o seu personagem em um terceiro e último cenário, o de

um asilo, esse personagem encontra a chuva, que se parece com aquela que acompanha a

existência do velho, na voz C de Aquela vez. A chuva é o incidente, nas duas obras, que

surpreende o personagem e que faz ressaltar a falta de um abrigo. Em Aquela vez, o

personagem refugia-se em lugares públicos. Em Malone, ele se deita no chão, na esperança

de manter seca uma parte de si. Tudo indica que este acontecimento diz respeito a fenômenos

de outra natureza:

Era uma chuva pesada, fria e vertical, o que fazia Macmann supôr que seria breve, como se existisse alguma relação entre a violência e a duração, e que ia poder se levantar em dez, quinze minutos, a frente do corpo toda empoeirada. Esse era o tipo de história que ele vinha se contando a vida toda, sempre se dizendo, isso não deve durar muito tempo (BECKETT, 2004, p. 83).

O tempo é sempre ruim para a voz C (“sempre o inverno então sempre a chuva”), de

modo que ela implica em um estado constante de espera, ligado à relação recorrente com

ambientes estranhos. A chuva adia a partida, acentua o desconforto de estar “gelado e

molhado”, tendo de se esquivar dos olhares alheios e sua duração intensa revela que este

55

estado é predominante nesta fase da vida. Malone reflete sobre as primeiras manifestações

desse estado, bem como cogita a possibilidade de ter reagido diferentemente a ele:

Em lugar de se espantar que a chuva fosse tão violenta e tão longa, ele preferia se espantar por não ter compreendido, desde as primeiras gotas, que ia chover longa e violentamente, e que não era para parar e se estender no chão, mas, ao contrário, continuar reto, às cegas, apressando o passo o mais possível, já que ele era apenas humano, neto e filho de seres humanos (BECKETT, 2004, p. 85).

O movimento, tal como aparece no fragmento acima, como um atributo do “humano”,

é especialmente levado em conta na obra de Beckett. Junto do repouso exterior, forma mais

um dos pares contrários que permeiam seus romances e peças de teatro, tal como o par luz-

escuridão. Basta lembrar do conteúdo das vozes A e C, de Aquela vez – a primeira retomando

insistentemente o caminho em direção ao refúgio da infância; a segunda, fugindo do mau

tempo e do olhar alheio, adentrando espaços públicos. Na voz A, como em Molloy, o

cumprimento de um percurso confunde-se mesmo com a idéia de rememoração, uma vez que

a busca de dados referentes ao passado se dá por meio de um deslocamento tortuoso,

descontínuo, revelando antes a eminência dos obstáculos do que a obtenção do objeto

desejado. O narrador daquele romance revela ainda a dificuldade em conciliar movimento e

reflexão, esta última coincidindo com repouso: “Esqueci para onde ia. Parei para refletir. Para

mim é difícil refletir em movimento” (BECKETT, 1988, p. 24).

Apesar de Malone – que passou “a vida caminhando, exceto nos primeiros meses e

desde que estou aqui” (BECKETT, 2004, p.13) – lembrar sua qualidade de humano, seus

atributos não devem permitir supor uma alegoria da “condição” da espécie. O ensaio sobre

Proust já condenava o recurso da alegoria como manifestação de conhecimento “puramente

convencional e extrínseco”, preferindo o objeto como “um símbolo vivo, mas um símbolo de

si mesmo” (BECKETT, 1986, p. 64).

Segundo Adorno (1985, p. 55-6), autor de um ensaio sobre a peça Fim de Jogo, o

conceito de “condição humana”, proveniente dos existencialistas, consiste numa “abstração

não consciente de si”, pois seu projeto de unir uma noção a priori à concretude disfarça o que

ele implica de transcendente. Este conceito, portanto, obscurece as particularidades temporais

de uma existência em um conceito permanente. Para o filósofo, a obra de Beckett não omite o

que toda existência apresenta de temporal, extraindo desta experiência tudo que a impede de

universalizar-se, exaurindo-a em “puro auto-posicionamento”. Daí o personagem de Malone

não se reconhecer na atitude manifesta com relação à chuva nem tampouco ter sido capaz de

56

agir conforme o esperado de um humano – o sujeito não se reconhece na própria fábula e não

se reconhece perante os seus semelhantes. A ontologia subsiste, assim, segundo Adorno, em

abstrações não cumpridas concretamente e a existência se torna absurda porque passa a se

consumir enquanto “nua auto-identidade”.

A voz A alcança a quietude exterior ao descobrir -se em um sítio semelhante ao sítio da

voz B, uma voz que faz contrastar um estado de repouso e isolamento com um pensamento

em perpétuo movimento: “imóveis feito mármore lado a lado antes de imergir e sumir sem

nunca terem se movido como as duas esferas de um haltere exceto as pálpebras e de quando

em quando os lábios para jurar amor e tudo ao redor também imóvel onde quer que fosse nada

se move” (BECKETT, 2007a, p. 05). A voz A, em sua referência ao abrigo da infância,

contamina-se ainda pelo movimento da voz C, que corresponde a entrar nos lugares sem ser

visto – a lembrança infantil do homem maduro encontra assim uma atitude da velhice. C

apresenta a ação de alguém que adentra um espaço público (museu, biblioteca, correio) e se

senta. Na primeira parte, esse assento é de pedra, como o de B e o recordado por A, o que

fortalece o caráter de imobilidade que envolve esses personagens, como se eles se investissem

das qualidades do minério. O repouso físico é, entretanto, o início do deslocamento mental:

“quem estava dizendo o que você dizia de quem o crânio onde você mofava de quem as

misérias que o deixaram assim” (BECKETT, 2007a, p. 04).

Estas evidências apontam para o fato de que o sujeito de Aquela vez tende para a

posição dos narradores da trilogia. Prisioneiros de um campo interior, toda iniciativa de

projeção parece fadada ao fracasso. Isto se dá porque este campo, o único possível, de onde

partem tais projeções, não é “confiável” nem “auto-sustentável”, como assinala Andrade

(2001, p. 49). O campo interior é inseguro porque, ao contrário das representações efetuadas

pela memória e pela narrativa, não possibilita frear o tempo. Ali, cada instante é

experimentado sob a ação do desconhecido, do incognoscível, que não pode ser medido e,

portanto, não pode ser retrocedido, recuperado ou ultrapassado.

57

3.3. O inominável: no lugar de personagens, voz

O narrador da terceira obra da trilogia, se é que pode ser chamado assim, não gozará

do sítio privilegiado, onde Molloy e Malone podiam se fixar, no presente, para empreender

suas narrativas. “Agora, onde? Agora, quando? Agora, quem?” (BECKETT, 2002b, p. 07) são

as perguntas que abrem O inominável, revelando a instabilidade radical que contrasta com as

afirmativas iniciais dos dois romances anteriores. Não há lugar ou personagem, nenhum

quarto ou narrador decrépito. Não há referência ao tempo presente, mas o presente instaurado

na forma de questões, de instabilidade, de subtração. A própria ação da escrita, que se apoiava

nas referências de Molloy e Malone a papel e lápis, encontra-se aqui problematizada, como

enfatiza Dorrit Cohn (1978, p. 177). Isto se dá porque a posição em que o sujeito se descreve

inviabiliza a ação de escrever: “estive sempre sentado no mesmo sítio, mãos no joelho, a olhar

em frente” (BECKETT, 2002b, p. 10). Pouco mais à frente, não é sem ironia que a voz

narrativa anulará a possibilidade de uma instância causal, um ato que justifique a escritura da

obra realisticamente: “Eu é que escrevo, eu que não posso levantar a mão do joelho. Eu é que

penso, só o bastante para escrever, é minha cabeça que está longe” (BECKETT, 2002b, p.

22).

A ruptura do produto narrativo com a figura de seu autor antecipa a separação entre o

indivíduo e sua própria voz, em Aquela vez – o “tensionamento estratégico” entre imobilidade

física e dispersão vocal apontado por Süssekind (2002, p. 114) como a forma com que

“Beckett singulariza e afirma a instabilidade estrutural do próprio método da escrita”. Ao

anular todo vestígio de motivação realista, O inominável passa a habitar o impasse que

antecipa e impede o projeto narrativo: a impossibilidade de repouso e de posicionamento no

processo de experimentação da própria identidade. Este impasse ocupa grande parte do

tempo, nas emissões da voz C: “ quem estava dizendo o que você dizia de quem o crânio onde

você mofava de quem as misérias que o deixaram assim ou isso foi uma outra vez”

(BECKETT, 2007a, p. 04).

Não há ponto de referência para o começo. Enquanto Malone sabia-se deitado em seu

leito, O inominável aventa hipóteses para o que poderia “ter começado assim”. A busca de um

início para a narrativa coincide com a busca de um ponto onde situar o sujeito. Como a obra

se constrói a partir deste instante jamais encontrado e como o seu desejo de silenciar essa

procura não se deixa calar - “O mais simples seria não começar. Mas sou obrigado a

continuar” (BECKETT, 2002b, p. 07) -, os limites da obra se estendem para os limites de uma

existência. Deste modo, a produção da narrativa não se deixa ver como um evento cumprido

58

no tempo nem como estabelecedora de um intervalo fictício de tempo; mas como um processo

que acompanhou toda a existência do sujeito.

O pior é o fim, não, o pior é o começo, depois o meio, depois o fim, no fim o pior é o fim, esta voz que, o pior é cada instante, tudo isto se passa no tempo, os segundos passam, uns a seguir aos outros, aos solavancos, não fluem, os segundos nã o passam, chegam, zás, trás, pás, entram em nós, fazem ricochete, deixam de mexer, quando não se sabe o que se há -de dizer fala-se do tempo, dos segundos, há quem os junte uns aos outros e faça deles uma vida, eu não posso, cada segundo é o primeiro, não, o segundo, ou o terceiro, tenho três segundos, e mesmo assim, não é todos os dias (BECKETT, 2002b, p. 161).

Este sujeito se pergunta: “Por que me terei feito representar no meio dos homens, à luz

do dia?” (BECKETT, 2002b, p. 16), revelando a impossibilidade de cumprir a proposta

iluminada de dizer eu “sem pensar nisto”. Os personagens de obras anteriores são convocados

e desacreditados: “Esses Murphy, Molloy e outros Malone não me enganam. Fizeram-me

perder o meu tempo, desperdiçar as minhas forças, ao permitirem-me falar deles, quando só

devia falar de mim para me poder calar” (BECKETT, 2002b, p. 25). A obra é movida pela

expectativa de pronunciar a palavra definitiva a respeito de quem fala, mas tal não parece

possível a não ser afastando-se do ponto em que a consciência se consome.

Porque ir mais longe é sair daqui, encontrar-me, perder-me, desaparecer e recomeçar, primeiro desconhecido, depois a pouco e pouco como sempre fui, noutro lugar, onde direi a mim mesmo que sempre estive, um lugar de que nada saberei, de que nada poderei saber, por me ser impossível ver, mexer, pensar, falar, mas de que pouco e pouco, apesar desses impedimentos, saberei qualquer coisa, só o suficiente para ele se revelar o mesmo de sempre, aquele que parece ter sido feito para mim e não me quer, aquele que pareço querer e não quero, à escolha, aquele que talvez eu nunca venha a saber se me engole ou me vomita e que talvez não seja mais que o interior do meu crânio longínquo, por onde antigamente vagueava, agora estou imóvel, perdido de pequenez, ou a empurrar as paredes, com a cabeça, as mãos, os pés, as costas, o peito, murmurando sempre as minhas velhas histórias, a minha velha história, como se fosse a primeira vez (BECKETT, 2002b, p. 24).

A voz narrativa reconhece em suas “velhas histórias” o mesmo desejo de auto-

posicionamento que novamente não se quer calar. Compreende as armadilhas implicadas no

processo de construção da narrativa, que são as armadilhas do caminho de busca da própria

identidade. Percebe que a própria existência é constituída de um revolver-se na linguagem,

divisando num período perdido no tempo o momento em que assumiu para si a primeira

pessoa narrativa. Comprova, a seu modo, a tese de Benveniste (1976, p. 225) de que não pode

ser situado no homem um período de auto-suficiência em que este pudesse se encontrar

privado da linguagem. Tal estado inicial – que talvez permitiria o estabelecimento do tão

59

desejado silêncio – é uma ilusão. A linguagem é quem “ensina a própria definição do

homem”, o que leva a crer que as questões suscitadas pela narrativa nascem com a linguagem

e, embora permaneçam sem resposta, são a partir delas, e somente assim, que a voz narrativa

e a identidade do homem podem se constituir.

É deste modo que evidencia-se que não há outro caminho senão “continuar”,

aventando-se hipóteses para o início, menos pela crença que aquelas possam se confirmar do

que pela certeza de que nenhuma delas poderá restituir o sujeito a si, trazê -lo de volta à sua

casa. Impossível reconduzir aquele que só se constitui fora de seu abrigo e que, no silêncio de

seu repouso, jamais se deixou abandonar pelas vozes ouvidas no caminho. “Falaram-me dos

homens, da luz” (BECKETT, 2002b, p. 16).

Assim como se extinguem as diferenças entre interior e exterior _ “sou feito de

palavras, das palavras dos outros, que outros, e o lugar também, o ar também, as paredes, o

chão” (BECKETT, 2002b, p. 148) -, a voz narrativa é ora referida como falada; ora, como

ouvida. O relatório que outrora fora cumprido pelo narrador Moran, aqui é apresentado ao

inominável por um de seus “emissários”, Basile. Não é necessário, entretanto, que este abra a

sua boca. Apenas com seu olhar, ele é capaz de transformar o inominável naquilo que deseja,

lembrando uma fala de Malone: “Muitas são as formas em que o imutável busca alívio para

sua falta de forma” (BECKETT, 2004, p. 32).

Quando mais tarde o inominável vem a se transformar em Mahood, revela-se mais

uma criatura forjada pela narrativa, mas com a diferença de que agora o processo se inverte e

é a criatura que conta ao narrador a sua história: “Era ele quem me contava histórias sobre

mim, vivia para mim, saía de mim, voltava para mim, entrava em mim, cobria-me de

histórias” (BECKETT, 2002b, p. 34). Da mesma forma, o teatro de Beckett reúne

personagens envolvidos com a narração de sua própria história, como Hamm, de Fim de

Jogo, e personagens ouvintes desta mesma história, como Krapp e o Ouvinte. Em obras como

Passos (Footfalls) e Improviso de Ohio (Ohio Improptu ), ocorre ainda a referência a

leitores16, com indicação de pontos exatos da leitura, em que se situam determinados

episódios da vida do sujeito.

Falar e ouvir tornam-se indiferentes, uma vez que é o exercício da língua, conforme

apontado por Benveniste (1976, p. 288), que constitui o fundamento da subjetividade. Será,

portanto, o emprego das palavras mais do que a revelação de sua fonte que apontará um

caminho em direção ao sujeito. A identificação de quem fala pouco acrescenta, uma vez que

todo o fundamento sobre o sujeito tem de ser situado na atuação mesma desta fala. Esta cisão

60

entre quem fala e o que é dito se faz percorrer, entretanto, por uma outra tendência, que pode

ser chamada de “apagamento” (CAVALCANTI, 2002, p. 10), de “negação”

(TAGLIAFERRI, 1992, 171), “subtração” (ADORNO, 1985, p. 56), “contrasenso” (ISER,

1989, p. 169), e que consiste na recusa de qualquer das histórias contadas como

correspondentes ao sujeito referido – esta tendência, tematizada na peça Eu não, de 1972,

consiste na única via pela qual a linguagem aproxima-se da real posição do sujeito, quando

nega tudo aquilo que acaba de ser afirmado.

quem poderá designar esse nome se, de qualquer maneira, aquele que escreve já não é Beckett, mas a exigência que o arrastou para fora de si, o desapossou e o desalojou, entregou-o ao fora, fazendo dele um ser sem nome, o Inominável, um ser sem ser que não pode nem viver, nem morrer, nem cessar, nem começar, o lugar vazio em que fala a ociosidade de uma fala vazia e que é recoberta, bem ou mal, por um Eu poroso e agonizante (BLANCHOT, 2005, p. 312)

A narrativa manifesta, em seu espaço, uma disjunção coincidente com aquela que será

manifesta teatralmente em Aquela vez. O conteúdo narrado que se separa do seu emissor, seja

pela substituição de fala pela escuta, seja pela negação dos enunciados; prepara o terreno para

um personagem que se chamará Ouvinte e que testemunhará a própria vida como espetáculo

da linguagem. A emergência do impasse de todo aquele que busca empreender uma voz é

mais veemente no romance que encerra a trilogia. Os personagens se tornam mais

insubstanciais que nunca e a linguagem autonomiza-se, revelando-se o substrato do indivíduo.

Na peça teatral, a cabeça do Ouvinte e seus mínimos movimentos ocupam o presente sob o

signo do silêncio, resistindo ao impulso da linguagem de configurar novos tempos e espaços,

mas reforçando sua outra ação, aquela que constitui sua tendência fundamental nestes textos,

a recusa de cristalizar o tempo em uma fábula ideal.

O inominável esboça a condição de quem “não pode falar, não pode pensar, e que tem

de falar” (BECKETT, 2002b, p. 22). Não pode falar ou pensar, na medida em que não pode

se reconhecer como o emissor do discurso. É obrigado a falar porque necessita se reconhecer

e só pode fazê-lo como o caráter ausente, que se apresenta por meio da recusa incessante

daquilo que lhe é imputado pela linguagem. Esta percepção de si, somente possível no campo

da linguagem, permite que o sujeito se dirija a outros tempos e espaços, passados ou futuros,

mas apenas na medida em que reconheça: “Mas eu nunca estive noutro lugar qualquer, por

mais incerto que o futuro seja”.

16 Respectivamente: BECKETT, 1990, p. 402 e BECKETT, 1990, p. 446.

61

A busca da identidade insiste inutilmente em situar um instante anterior à formulação

do discurso, o que poderia coincidir com a verdade definitiva sobre o sujeito. O sujeito habita

este sítio impossível e a percepção de sua inconsistência permite afirmar que nunca houve

uma vida, portanto, que o tempo nunca passou e nunca houve outro espaço. “o que digo, o

que direi, se puder, se refere ao lugar onde estou, a mim, que estou neste lugar, apesar de me

ser impossível pensar nisso, falar disso, por causa da necessidade que sinto de falar disso”

(BECKETT, 2002b, p. 22-3). Existindo em uma linguagem que se fundamenta em

representação e, portanto, em ausência, o sujeito dá vazão ao seu sonho de um lugar e de um

tempo em que a percepção de si não precise mais ser intermediada por aquela estrutura. Este

desejo sobrevive, paradoxalmente, às custas desta mesma linguagem, que ora é falada, ora é

ouvida, construindo histórias e veiculando pensamentos que se voltam, perpetuamente, contra

ela mesma.

As vozes, em Aquela vez, descolam-se da solitária cabeça e indicam tempos e espaços

exteriores ao palco, buscando ampliar o contexto da cena, apontando para o cumprimento de

uma vida em ambientes campestres e urbanos, ambientes de troca e de agitação, ambientes da

cultura institucionalizada, os quais se encadeiam segundo o ritmo do desenvolvimento do

homem. O isolamento constitui uma experiência subjetiva referida nas diferentes fases,

através das vozes A, B e C. Esta é uma característica que aproxima as figuras do passado ao

Ouvinte em cena, encerrado com sua escuta e com o eco de sua voz. Assim, a voz B evoca

“olhos fechados (...) no meio de pensamentos que lhe viam [sic] à mente cenas sejam quais

forem” (BECKETT, 2007a, p. 03); a voz A percebe o sujeito “entregue às suas invenções ora

uma voz ora uma outra” (BECKETT, 2007a, p. 03); e C revela-se “sem saber quem estava

dizendo o que você dizia de quem o crânio em que você mofava” (BECKETT, 2007a, p. 04).

O estado do Ouvinte é o silêncio, pelo menos é o que se nota quando se calam as

vozes e suas ações se limitam ao abrir de olhos ou a um sorriso. Estas ações levam a perceber

a busca por um equilíbrio, no momento em que a linguagem deixa de oferecer um anteparo

para a consciência. O Ouvinte se mantém durante todo o tempo em silêncio, apenas em

alguns segundos, entretanto, a consciência é esvaziada de linguagem. Em todas as

circunstâncias apresentadas como o seu passado, este homem aparece sem fazer uso da

palavra: “nem pensar em perguntar falar com alguém nunca mais em sua vida” (BECKETT,

2007a, p. 04). Isto não impediu que ele conservasse fragmentos daqueles tempos cristalizados

como palavras. O silêncio é, portanto, uma referência para aquele que, independente de falar

ou calar, busca se situar inutilmente na linguagem, só podendo contar com ela. Talvez por

isso, em O inominável, ele assuma as vezes de um lugar: “ falar do silêncio, antes de voltar a

62

entrar no silêncio, já terei estado dentro dele, não sei, estou sempre dentro dele, estou sempre

a sair dele (...) saio dele para falar, estou nele quando falo” (BECKETT, 2002b, p. 179). O

trecho faz transparecer a linguagem que almeja o silêncio e, de certa forma, já se deixa

penetrar por ele, na medida em que jamais pronunciará a verdade desejada. Além disto,

manifesta uma dialética do fora e do dentro que parece estar fadada à irresolução, uma vez

que o sujeito não consegue se situar em nenhum destes sítios. O inominável ensaia uma

hipótese que poderia cobrir esta questão:

eles dir-me-ão quem sou, eu não compreenderei, mas será dito, eles terão dito quem sou, e eu tê -lo-ei ouvido, sem ouvido tê-lo-ei ouvido, e tê-lo-ei dito, sem boca tê -lo-ei dito, tê -lo-ei ouvido fora de mim, e logo a seguir dentro de mim, talvez seja o que sinto, que há um fora e um dentro e eu no meio, talvez eu seja a coisa que divide o mundo em dois, de um lado o fora, do outro o dentro, pode ser tão fino como uma lâmina, não estou num lado nem no outro, estou no meio, sou a divisória, tenho duas faces e não tenho espessura, talvez seja isso que sinto, sinto-me vibrar, sou o tímpano, de um lado está o crânio, do outro o mundo, eu não sou um nem outro, não é a mim que falam, não é em mim que se pensa (BECKETT, 2002b, p. 142-3)

Eis uma imagem resultante do desenvolvimento da narrativa na trilogia do pós-guerra.

É uma das últimas imagens oferecidas no sentido de configurar um personagem. Apóia-se na

certeza de que estar no mundo é fazer uso da linguagem, uma instância que não permite

discernir com certeza onde fica o fora e onde fica o dentro, mas que permite ao sujeito indicar

um plano indiferente a estas noções, um tímpano, um quase -nada, que se faz vibrar pelos

impulsos de ambos os lados, mas que não se deixa penetrar e que tende ao repouso. Nada

resta de interioridade e o passado nada significa. Esta imagem, como todas as outras, será

destruída a seguir. Apagados os personagens, resta a linguagem, que povoa impiedosa as

páginas destes romances, bem como a certeza de que é preciso continuar. Esta linguagem

também exercerá sua ação no teatro e a impossibilidade de fixá-la ou talvez de silenciá-la

implicará em personagens esmagados, fragmentados, cuja voz, nem de longe, se parecerá com

a voz de um personagem dramático, dotado de claros contornos e de interioridade, como

também não acontecia com os personagens da trilogia. As vozes, neste teatro “parecem soar a

esmo, sem rumo, sem porquê e sem destinatário definidos (...), sugerem antes uma massa

sonora, uma partitura do que uma trama” (CAVALCANTI, 2002, p. 75).

O evento teatral que Aquela vez propõe se dá em termos de manipulação da

linguagem. Um detalhe de grande importância apontado por um diretor que encenou esta peça

no Brasil revela, a meu ver, o modo como a linguagem se faz articular como um elemento do

tempo, além de revelar uma certa revisão de hierarquias nas funções teatrais. Trata -se de

63

Rubens Rusche, que num e-mail enviado no dia 03 de julho de 2007, descreve um aspecto da

montagem de Aquela vez:

Muito se exige aqui do operador de som!! Na verdade, é ele quem executa toda a performance! Precisa ser alguém que entenda o que está fazendo, e ele não pode errar! E há também o operador de luz: há vários movimentos indicados no texto, nos quais a luz cresce ou decresce de intensidade. E esses movimentos devem ser suaves, nunca bruscos. PORTANTO, ESTAMOS, SEM DÚVIDA, DIANTE DE UMA VERDADEIRA PARTITURA!

Os primeiros narradores da trilogia figuraram seus personagens para contrastar com o

vazio e, deste modo, preencher e medir o tempo de espera pela morte. No último romance, a

apropriação de uma voz contrasta com a impossibilidade do sujeito se reconhecer nela e, a

partir deste movimento permanente, elabora o seu tempo de narrativa, que permite avançar

por centenas de páginas sem que algo tenha ocorrido como fenômeno visível. Com as peças

de teatro, a experiência do tempo adquire novo sentido, torna-se coletiva. Como nos

romances, a linguagem dilacera os contornos dos personagens e reflete o tempo que é

destinado a escutá-la, tempo de silêncio, de expectativa. No teatro, arte do corpo, a presença

dos personagens constitui uma materialidade que não se desintegra com a facilidade da fala. É

por isso que a linguagem se organiza para além do discurso verbal e gestual do personagem,

converte-se em partitura, determinando a duração de cada signo, articulando presença e

ausência por meio dos recursos de luz e som, mas, fundamentalmente, dialogando com os

múltiplos tempos trazidos pelos espectadores, devolvendo sempre o reflexo de um tempo, o

irrevogável, tempo que se perde através da representação mal cumprida, mas que não pode ser

medido, ou pelo menos, reconhecido, sem que se faça uso de tal representação, fracassada

desde o início.

64

2.4. Peças que duram muito

HAMM: Você não acha que isto já foi longe o bastante? CLOV: Sim! [Pausa.] O quê? HAMM: Esta... esta... coisa.17

(BECKETT, 1990, p. 114)

“Velho fim de jogo perdido de velhos”18 (BECKETT, 1990, p. 132), é deste modo que

Hamm, o protagonista, cego e paralítico, inicia seu último solilóquio, repetindo o título da

peça escrita em francês em 1957. Seu nome coincide com a expressão inglesa para “ator

canastrão” e, de acordo com tal atributo, ele aguardara, com ansiedade, pelo momento de

efetuar seu número final. A representação não é nem um pouco dissimulada. O servo Clov,

que ameaçara abandonar Hamm, veste-se para sair, mas permanece parado junto à porta,

observando o patrão. Como este é cego, acredita estar só. Quem assiste não pode dizer se a

peça realmente vai acabar ou se ela vai recomeçar, tendo chegado a um ponto em que seus

personagens revelaram a futilidade da partida que jogam, representação de uma vida que não

pode se cumprir, em um interior cinzento, “onde a luz não varia”.

O cenário, além de propor a idéia deste refúgio, iluminado por uma “luz cinza”,

apresenta duas janelas ao fundo, de onde Clov observa a realidade exterior. Somos

informados, através deste personagem, que o mundo ao redor está despovoado e paralisado,

de que nada se move, no mar ou na terra. O presente é definido pelas palavras “zero” e

“cinza” e a pergunta sobre as horas é respondida com: “A mesma de costume” (BECKETT,

1990, p. 94).

Fábio de Sousa Andrade (2001, p. 84) menciona, em um capítulo destinado à análise

das origens deste texto, o fato de mais de um comentador ter notado, nesta disposição do

cenário, uma representação alegórica do interior de um crânio. Deste modo, as espiadas de

Clov para o mundo exterior corresponderiam às tentativas malfadadas do inválido Hamm de

se comunicar com o exterior. A estes dois personagens, somam-se os progenitores de Hamm,

Nagg e Nell, que tendo as pernas amputadas, após um acidente de bicicletas, vivem

encerrados em latões de lixo. Estes anciões seriam, no sentido alegórico, corporificações das

memórias distantes do protagonista.

Conscientes da aversão manifesta por Beckett, no ensaio sobre Proust, à técnica da

alegoria, bem como da observação de Adorno (1985, p. 56) de que esta obra manifesta o

17 Tradução minha para: “HAMM: Do you not think this hás gone on long enough? CLOV: Yes. [Pause.] What? HAMM: This... this... thing.”

65

propósito de não se elevar em suposições abstratas que busquem suplantar a temporalidade e

as particularidades de uma existência concreta; é de se julgar mais prudente uma análise

centrada em suas nuances, percebendo antes significados que ela desdobra em si mesma.

É possível, entretanto, reportar-se aos escritos do autor sobre a pintura moderna, onde

ele fala do fim da ilusão de que existe “mais do que um objeto de representação”. A idéia do

crânio como morada da mente e, portanto, locus de toda a representação (de toda a vida como

representação), ilumina a obra do autor como centrada neste único refúgio, o que poderia

fortalecer a interpretação alegórica da peça. Mas, naquele ensaio, Beckett vai além e decreta,

a partir da obra de determinados pintores, o fim da ilusão de que “este único objeto se deixa

representar” (BECKETT, 1989, p. 56). A mente é onde a realidade se constitui como

representação, mas ao convertê-la numa imagem, subordinamo-na a uma representação, a

algo que não coincide com ela mesma e, deste modo, fracassamos. Fim de Jogo, como toda a

obra de Beckett, ocupa-se, portanto, não da representação deste objeto - a “consciência

latente”, abarcando luz e sombra, em sua totalidade -, que se sabe inacessível, mas das

condições com que esta represe ntação pode ser desmantelada.

A presença dos personagens em cena, antes de elevar-se para possíveis conotações

socio-políticas ou metafísicas, é confinada nos termos da função dramática que aqueles

desempenham. Deste modo, a existência de Clov é cruamente exposta por Hamm como a de

alguém que apenas serve para lhe dar a réplica19. E aquele, de fato, cumpre este papel. A

explicitação destas divisões dramáticas, na própria peça, já institui a aleatoriedade do diálogo,

como se a troca de falas correspondesse mesmo a um jogo para fazer passar o tempo. Nas

primeiras réplicas, Clov já evidencia que o diálogo não resultará em nenhuma revelação e

que, portanto, o falar não será suficiente para alterar a situação em que estão mergulhados:

“Toda a vida, as mesmas questões, as mesmas respostas”. Esta certeza não impede os

personagens, entretanto, de continuar falando, como revela Hamm, num momento mais

adiante: “Eu adoro as velhas questões (...) Ah, as velhas questões, as velhas respostas, não há

nada como elas!”20 (BECKETT, 1990, p. 110).

18 Tradução minha para: “Old endgame lost of old”. 19 “CLOV: O que me mantém aqui?

HAMM: O diálogo. (...) Eu prossigo com minha história. (...) Eu prossigo bem com ela. [Pausa. Irritado.] Pergunte-me para onde eu prossigo. ” Tradução minha para: “CLOV: What is there to keep me here? HAMM: The dialogue. (…) I’ve got on with my story. (…) I’ve got on with it well. [Pause. Irritably .] Ask me where I’ve got to.” (BECKETT, 1990, p. 120-1)

20 “I love the old questions. (…) Ah the old questions, the old answers, there’s nothing like them!”

66

De acordo com Adorno (1985, p. 67), esta peça retém determinados pilares da forma

dramática, como as três unidades aristotélicas, mas apenas conservando-as sob a condição de

serem parodiadas. As categorias apresentam-se obsoletas, uma vez que o próprio drama

revela-se em estado de perecimento - uma forma que representou, segundo Peter Szondi

(2001, p. 29), o “lugar” onde o homem alcançava realização enquanto membro de uma

comunidade e que teve no diálogo um meio para a manifestação de sua “liberdade e

formação, vontade e decisão”.

Ao expôr o diálogo como um ritual repetitivo, exclui-se a possibilidade de uma

síntese, que poderia representar a disposição do sujeito após o cumprimento de um ato de sua

vontade. Fim de Jogo apresenta seqüências longas de diálogo, constituídas por frases curtas,

que confirmam a extinção de outras vidas na Terra, que se dirigem a um passado situado

infinitamente longe, que descartam qualquer alternativa futura que não seja o fim e, que,

portanto, não fazem mais do que enfatizar a situação presente. Estas sentenças são

entremeadas por movimentação repetitiva, como as idas de Clov à janela e à cozinha e a

condução da cadeira de Hamm pelo cômodo; além disso, há a incidência de falas mais longas,

a maioria de Hamm, mas umas poucas também de Clov e de Nagg. È interessante notar que,

ao contrário de Esperando Godot, peça de 1952, não há nas rubricas indicação de silêncio;

mas apenas a de pausas. Isto revela um ritmo acelerado entre as réplicas, revelando uma

mecanização que parodia o ritmo das trocas intersubjetivas, que como visto, davam

significância à forma dramática. Esta nova disposição manifesta pela peça de Beckett esvazia

estas trocas do conteúdo reflexivo. O silêncio, ao se insinuar nas pausas para respirar, aparece

como algo a ser suplantado e, porque o frenesi do diálogo tenta encobri-lo e porque este

mesmo diálogo não revela mais do que o processo de acabar, o silêncio aparece como o ponto

para onde convergem todas estas falas. Neste sentido, a ação do diálogo é como toda a

movimentação espacial de Clov, que se revela obcecado pela idéia de organização: “Eu adoro

a ordem. É o meu sonho. Um mundo onde tudo fosse silencioso e imóvel e cada coisa no seu

último lugar, sob a última poeira”21 (BECKETT, 1990, p. 120). Assim como não pode deixar

cada coisa no seu último lugar, inclusive a si mesmo – “Eu não posso me sentar” (BECKETT,

1990, p. 110) -, não pode se calar, pois, até o momento, nenhuma palavra foi capaz de se deter

como sendo a última palavra. Tal processo alcança a última palavra da peça - quando Hamm

refere-se ao lenço como sua única e última companhia, ele está enganado, pois Clov ainda

está ali.

21 Tradução minha para: “I love order. It’s my dream. A world where all would be silent and still and each thing in its last place, under the last dust.”

67

O tempo no drama, segundo Szondi (2001, p. 32), é sempre o presente, o que não quer

dizer que ele seja estático: “o presente passa e se torna passado, mas enquanto tal já não está

mais presente em cena. Ele passa produzindo uma mudança, nascendo um novo presente de

sua antítese”. Aparentemente, o tempo de Fim de Jogo se constitui da instauração de um

tempo próprio da literatura dramática – o cenário e o diálogo enfatizam o presente como um

instante recortado de um tempo natural. Este emprego da convenção será certamente

parodiado, uma vez que, segundo Adorno (1985, p. 67), o teatro de Beckett manifesta um

“uso de formas na época de sua impossibilidade”.

Se a caixa craniana, conforme o artigo sobre os van Velde, é o espaço onde o tempo

pode adormecer, como o medidor do relógio de energia, após apagada a última lâmpada

(BECKETT, 1989, p. 30-1); o espaço e o tempo desta peça estabelecem um intervalo de

confinamento onde as criaturas que o habitam destacam-se da “fuga das horas”. Eis uma das

réplicas que pontuam este instante suspenso:

HAMM: (Angustiado.) O que acontece? O que acontece? CLOV: Alguma coisa está seguindo seu curso. (BECKETT, 1990, p. 98)22.

Deste modo, a fixação ao tempo presente – tempo do drama - será exacerbado a ponto

de impedir que o tempo corra para os personagens em cena. Todos manifestam no corpo, sob

a forma de deformidades físicas, a presença do tempo. Este, entretanto, parece se situar

demasiado longe, quando a vida ainda se fazia possível fora do último refúgio. No presente da

representação, estas criaturas são testemunhas da extinção da natureza e da conseqüente

extinção do tempo. Este se pode cumprir apenas como expectativa pelo fim, daí as primeiras

palavras pronunciadas na peça serem as seguintes: “Acabou, está acabado, quase acabado,

deve estar quase acabado”23 (BECKETT, 1990, p. 93). A única ação possível é finalizar este

processo de destruição, que se cumpre no “agora” da cena. A coisa que, portanto, “segue o

seu curso” é o próprio tempo da representação teatral, que aqui se fará medir pelo ritmo do

diálogo, pelo tempo de entradas e saídas, pelos solilóquios de Hamm, pelo instante do humor

(como a piada contada por Nagg), pelo instante da tragédia (a revelação de que não há mais

analgésicos). Os personagens cumprem um ritual esvaziado de conotações espirituais e

ensaiam, inutilmente, a possibilidade de atingir a expressão de si, como Hamm, que retoma a

22 “HAMM[Anguished.] What’s happening, what’s happening? CLOV: Something is taking its course.” 23 “Finished, it’s finished, nearly finished, it must be nearly finished.”

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frase citada acima, tranformando-a: “Eu estou tomando o meu curso”24 (BECKETT, 1990, p.

112).

O ensaio de Adorno (1985, p. 56) define muito bem o modo como a existência se faz

presente neste palco: subtraindo tudo o que é abstrato, que busca transcender a temporalidade,

torna presente a liqüidação do sujeito, que assume o aspecto de um “aqui-agora” absurdo. O

instante da representação teatral é ressaltado e esvaziado como ritual despropositado e, neste

ponto, é semelhante à vida, que aparece com uma crueza absurda na referência ao estado de

Nagg:

HAMM: O que ele está fazendo? CLOV: Ele está chorando. HAMM: Então ele está vivendo(BECKETT, 1990, p. 122-3).25

E mais adiante:

HAMM: Ele ainda está chorando? CLOV: Não. HAMM: Os mortos vão rápido. [Pausa.] O que ele está fazendo? CLOV: Chupando seu biscoito. HAMM: A vida continua (BECKETT, 1990, p. 125).26

A vida como choro e ração, o tempo passado no teatro revelado como o tempo de

cumprimento de “técnicas dramáticas” – eis a situação que esta peça classifica como

“acabada” ou “quase acabada”. A vida e a representação se revelam, entretanto, o “impossível

monte” referido por Clov no início, uma vez que a última palavra a respeito da primeira não

pode ser dita, como prova da insuficiência da segunda. A história que Hamm vinha contando

ao longo da peça termina em seu último solilóquio, confirmando se tratar da história dele

mesmo. “Você GRITOU pela noite, ela cai; agora grite na escuridão”27 (BECKETT, 1990, p.

133). O verso de Baudelaire é ilustrado pela ação do próprio Hamm, que chama em vão pelo

pai, nos seus últimos minutos sobre a cena. Finalizada a narração, o protagonista percebe que

24 “I’m taking my course”. 25 “HAMM(…): What’s he doing? […] CLOV: He’s crying. […] HAMM: Then he’s living.” 26 “HAMM: Is he still crying? CLOV: No. HAMM: The dead go fast. [Pause.] What’s he doing? CLOV: Sucking his biscuit. HAMM: Life goes on.” 27 “You CRIED for night; it comes: now cry in darkness.”

69

ainda resta tempo – “momentos para nada”, que ele é levado a preencher com a continuação

da história. A representação é sempre atrasada com relação à vida.

Beckett nos faz defrontar com uma situação semelhante em Dias Felizes, de 1961.

Trata-se de mais uma de suas peças longas, composta em dois atos, com a diferença de que

agora a protagonista é uma mulher, Winnie. Esta personagem é submetida a uma das mais

atrozes representações do tempo. Aparece enterrada em um monte de terra até a cintura, no

primeiro ato. Deste modo, não pode se locomover pelo palco, podendo apenas gesticular com

seus braços, manipulando os objetos ao seu alcance e proceder a um longo monólogo, cara-a-

cara com a platéia. No segundo ato, Winnie está enterrada até o pescoço, de modo que pode

apenas falar e mover os seus olhos. Quando é vista, no início do primeiro ato, ela está

dormindo. Após uma longa pausa, soa uma campainha estridente que, mesmo durando 10

segundos, não é capaz de despertar a personagem. Quando volta a tocar, por 5 segundos,

ainda mais estridente, Winnie acorda. Durante os ensaios da montagem londrina de 1962,

dirigida por John Dexter, Beckett confidenciou à atriz Brenda Bruce a idéia que o levou a

escrever esta peça:

(...) eu acho que a coisa mais horrível que poderia acontecer a alguém seria não lhe ser permitido dormir, de modo que, quando você estivesse pendendo, houvesse um “Dong” e você tivesse de se manter acordado; você está atolado no chão vivo e ele está cheio de formigas; e o sol está brilhando infinitamente dia e noite e não há uma árvore... Não há nenhuma sombra, nada, e a campainha acorda você todo o tempo e tudo o que você tem é uma pequena parcela de coisas para vê-lo durante a vida (...) E eu pensei quem pode enfrentar isto e definhar cantando, só uma mulher (KNOWLSON, 1996, p. 447)28.

28 Tradução minha para: “I thought that the most dreadful thing that could happen to anybody, would be not to be allowed to sleep so that just as you’re dropping off there’d be a ‘Dong” and you’d have to keep awake; you’re sinking into the groud alive and it’s full of ants; and the sun is shining endlessly day and night and there is not a tree… There’d be no shade, nothing, and that bell wakes you up all the time and all you’ve got is a little parcel of things to see you through life. (…) And I thought who would cope with that and go down singing, only a woman.”

70

Elisa Galvez. Happy Days. Madri, 1996. (Foto de Raquel Pastor)

A primeira frase dita pela personagem, em Dias Felizes, já contradiz o que é mostrado

sobre o palco: “Outro dia divino” (BECKETT, 2002a, p. 02). Deste modo, revela-se, desde o

início, a tensão entre os diferentes níveis de representação. Ao longo do primeiro ato, apesar

do otimismo que a personagem é capaz de preservar e que a aproxima do Vladimir, de

Esperando Godot, que, a despeito do naufrágio de todas as expectativas, ainda se atém ao

propósito de esperar pelo cumprimento do encontro marcado; Winnie revelará que espera pela

noite, por um toque de recolher, também emitido pela campainha, o qual lhe permitiria

descansar.

Ah, pois é, tão pouco para dizer, tão pouco para fazer, e um medo tão grande, certos dias, de nos encontrarmos ainda... com horas ainda para passar, antes da campainha de dormir, e nada mais para dizer, nada mais para fazer, e os dias passam, para sempre, a campainha soa para dormir, e pouco ou nada é dito, pouco ou nada feito (BECKETT, 2002a, p. 13).

Como outros personagens beckettianos que se aventam a possibilidade de estarem

mortos, em vida; Winnie já tem metade de seu corpo devorado pela terra. Mais do que uma

representação de uma condição, o dispositivo desenvolvido por esta peça revela um

impedimento, o qual não é meramente o impedimento desta personagem se locomover, mas o

impedimento mesmo de proceder a uma representação completa do sujeito. Ao iniciar a peça,

71

o espectador já perdeu alguma coisa. Algo se passou em sua ausência, anos e anos vividos que

atolaram a personagem em seu solo.

Falo de quando eu ainda não tinha sido agarrada – desse jeito – e tinha minhas pernas e o uso das minhas pernas, e podia procurar um lugar de sombra, como você, quando ficava cansada do sol, ou um lugar ensolarado quando ficava cansada da sombra, como você (BECKETT, 2002a, p. 15).

A campainha, que é o sinal para o início de uma performance, aqui também é um

chamado à vida. Mas que vida pode subsistir quando já não se tem mais a possibilidade de ir a

lugar algum? Winnie tem o marido, Willie, atrás de si, mas este se revela impotente para

alterar sua situação e funciona apenas como um estímulo para o monólogo acontecer, para que

ela acredite estar sendo ouvida. O trecho citado acima revela a personagem habituada ao dia

como uma imposição exterior. E, neste sentido, o intervalo entre as duas campainhas, como o

ato único de Fim de Jogo, como os dois atos de Godot, é um tempo tão duramente cumprido

que todas as ações desenvolvidas ao longo dele, revelam-se inúteis e mesmo ilusórias.

Estragon, após mais um longo diálogo com Vladimir que resultou em nada, se pergunta: “Nós

sempre encontramos alguma coisa, não é, Didi, para nos dar a impressão de que existimos?”

(BECKETT, 1990, p. 64) Ao imobilizar Winnie, Beckett a privou de mais uma ação com a

qual ela poderia se evadir do tempo. Sem cadeira de rodas e sem servo para conduzi-la a um

passeio, será com as palavras e com os acessórios de sua bolsa que ela suportará as horas que

demoram a passar; no segundo ato, não havendo mãos, apenas a voz acompanhará uma

jornada ainda mais difícil. Deste modo, toda a ação desta peça não faz mais do que invalidar-

se, auto-anular-se ante a evidência de algo mais eminente – o tempo, duramente cumprido por

aquele que reconhece a superficialidade de todos os seus esforços.

Em Fim de Jogo, Hamm espera, desde o início, por um analgésico. A hora da

medicação é sempre adiada por Clov que adverte que, se o remédio for tomado antes do

tempo, não atuará no ápice da crise. Quando anuncia a chegada deste instante esperado, Clov

declara, sadicamente, que não existem mais analgésicos. Com isto, solapa a representação do

dia, apresentada por Hamm, um pouco mais cedo: “De manhã eles o estimulam e à noite o

acalmam”29 (BECKETT, 1990, p. 104). Diferente do que ocorre no Ato sem Palavras II,

“peça curta de mímica para dois ‘jogadores’”, escrita em 1956, onde os personagens A e B

adormecem no interior de sacos, são acordados por um agulhão vindo dos bastidores, e podem

se recolher de volta para o refúgio, após o cumprimento de um ritual cotidiano; a Hamm não é

permitido descansar imediatamente, após ter representado o que ele acredita ser o seu papel.

72

A narrativa de Hamm, como representação de sua vida, fracassa por não conseguir cobrir o

tempo da representação teatral. Terminada, ainda resta tempo – “momentos para nada”. Sobre

a representação efetuada, sobrepõe-se uma outra, mais dura, que consiste em cobrir o tempo

que resta, torná-lo significativo, torná-lo suportável.

Como Hamm, Winnie aguarda o fim do período de sol – possível paródia da unidade

de tempo aristotélica -, assistindo ao cumprimento de mais um dia, insistindo inquebrantável

na idéia de que este será mais um dia feliz. “(...) que alegria saber pelo menos que você está aí

firme no seu posto, e talvez acordado, e talvez alerta, em alguns momentos, que dia feliz para

mim... esse também terá sido. (PAUSA) Até agora” (BECKETT, 2002a, p. 13). Como em

Fim de Jogo, não há indicação de silêncio nas rubricas, mas apenas pausas. Assim como a

atrocidade da situação de Winnie se acentua diante da tensão entre o seu enterramento e o seu

otimismo, a nulidade de suas palavras - incapazes de explicar o horror de que ela é vítima - é

experimentada na sua compulsão por falar. Mais de uma atriz manifestou, como Brenda

Bruce, a dificuldade para memorizar este texto (KNOWLSON, 1996, p. 447), o qual tem uma

exigência tão grande de precisão no que tange à conciliação entre o grande monólogo falado e

as ações, que sua estrutura o torna semelhante a um mosaico de falas e indicações cênicas.

Ao longo dos dois atos de Dias Felizes, Winnie procura manter-se preservada até o

momento em que lhe seja permitido descansar. Em alguns momentos, seus artifícios revelam-

na como a atriz que calcula e projeta suas ações no intervalo de tempo da representação. “Mas

no entanto sem dúvida ainda é um pouco cedo para a minha canção. (PAUSA) Cantar cedo

demais é um erro grave, eu acho” (BECKETT, 2002a, p. 12). Hamm também já revelava a

determinação de cumprir a contento o seu papel. Os solilóquios eram os momentos em que o

propósito de adquirir significância se mostrava mais intenso. Neles, é revelada a pretensão de

sobreviver ao tempo, fazendo-se representar pelo discurso: “Pode haver miséria maior do que

a minha?” (BECKETT, 1990, p. 93)30. No caso de Winnie, o seu monólogo assume a quase

totalidade da cena e o tempo se encontra materializado no monte, do qual a personagem não

pode escapar, e na campainha. Hamm seguia inspirado pelo fim de sua representação, de

modo a convencer-se de uma existência cumprida; Winnie representa, a despeito do tempo

que segue, sepultando-a e, portanto, apagando-a. O otimismo dela é semelhante à exaltação

dele pela sensação de que vai alcançar a representação de si, em seu último solilóquio. Este

solilóquio aborda o abandono e a chegada da noite, o momento em que o grito por socorro

não é respondido. Como o espectador poderá perceber, trata -se de uma realidade ilusória,

29 “In the morning they brace you up and in the evening they calm you down.” 30 Tradução minha para: “Can there be misery loftier than mine?”

73

percebida por um personagem cego – o pai não foi abandonado pelo filho, posto que Clov

ainda está ali. A impossibilidade de apreensão do instante vivido em sua totalidade, bem

como a impossibilidade de fazer parar o tempo, resultam na impossibilidade de reunir “os

grãos” em uma representação válida e definitiva. A peça de Beckett, ao minar a crença no

valor da representação, permite experimentar a existência em sua irredutibilidade, função esta

que pode ser atribuída ao tempo.

Avançada a ação, quando recolhe os objetos que a acompanharam na representação de

seu drama, Winnie permite ao espectador ouvir um reflexo da inutilidade de suas ações, bem

como uma possível indicação do futuro: “Às vezes tudo está acabado, naquele dia, tudo feito,

tudo dito, tudo pronto para a noite, e o dia não acabou, nem de longe, longe de ter acabado, a

noite ainda não está pronta, nem de longe pronta” (BECKETT, 2002a, p. 17). E de fato, como

Godot, que não vem; como a narrativa de Hamm, que não chega ao final; a campainha final

não soa. O primeiro ato se encerra com a personagem atônita, receosa de cantar sua canção e

descobrir-se a seguir desprovida de recursos. Este duelo contra o tempo, revelado aqui em sua

inteireza, tem perdurado todos os dias de Winnie, e ao abrir das cortinas, no segundo ato,

percebe-se que o tempo tem sido o vencedor. Como os “grãos” que se juntam em direção ao

“impossível monte”, em Fim de Jogo; os dias se acumulam sobre o sujeito, em Dias Felizes,

invalidando-o, mas sem destruir sua capacidade de enfrentamento.

Neste último ato, a cabeça solitária que desponta no meio do monte está mais cansada,

mas ainda assim saúda os espectadores com mais uma expressão de otimismo: “Salve, luz

divina” (BECKETT, 2002a, p. 20). Este ato é mais curto do que o primeiro, talvez porque

consista num enfrentamento ainda mais solitário do dia, uma vez que Willie deixou de intervir

e Winnie não pode mais olhar para ele, chegando a suspeitar inclusive de sua morte: “Talvez

ele tenha gritado por socorro esse tempo todo sem eu ouvir” (BECKETT, 2002a, p. 22). O

cansaço a levará a fechar os olhos algumas vezes, como para tirar um cochilo, mas, nestes

instantes, a campainha soa. Deste modo, não se trata mais de sobreviver até o sinal para

dormir, mas da dificuldade mesma de iniciar o dia. No fim, testemunhamos um último

fracasso: ela canta sua canção antes da hora e, não mais podendo, cochila. Soa a campainha,

seus olhos se abrem e seu sorriso aparece para desaparecer uma última vez. A peça se encerra

como começou – se antes, a violência da imagem suplantava um passado que antecedia o

sepultamento; o final, na verdade, não sugere um término, mas a continuação da vida, sem

alternativa de descanso, aqui mostrada no silêncio de uma longa pausa, em que o velho casal

se olha.

74

Também Fim de Jogo se encerra com uma imagem silenciosa: Hamm cobre o rosto

com um lenço e permanece imóvel, repetindo a imagem inicial, quando se fazia cobrir por um

lençol. Adorno (1985, p. 63) percebe aí, além da produção de uma imagem que caracteriza a

perda da identidade, a sugestão de que o tecido esconde o rosto de um homem morto. De

acordo com ele, o recolhimento destes personagens ao seu “ser biológico”, o corpo físico, que

pode ser medido por uma unidade, contrasta com o estilhaçamento da identidade,

experimentado em uma sucessão de situações que arrastaram o sujeito, sem que ele oferecesse

resistência. Ainda que o corpo seja um sítio mais confiável do que a mente, ele é também

manifestação do tempo, o que o torna uma entidade instável, sobre a qual não é possível

garantir a posse. Ao contrário da mente, entretanto, que necessita do evento passado para

reconhecer-se, o corpo é um espaço onde o presente se faz sentir em toda a sua intensidade,

como o revela Winnie, em uma de suas falas mais lúcidas. Emitidas no primeiro ato, elas são

capazes de decifrar a sua condição no ato seguinte:

Hoje não está mais quente do que ontem, amanhã não estará mais quente do que hoje, impossível, e assim retornando ao mais longínquo passado, e entrando pelo mais longínquo futuro. (PAUSA) E se um dia a terra tiver de cobrir meus seios, então eu nunca terei visto os meus seios, ninguém jamais terá visto os meus seios (BECKETT, 2002a, p. 15).

O corpo, enquanto reduto inalienável do sujeito, apenas pode sê-lo enquanto objeto

condicionado pelo tempo. Neste sentido, ele apenas pode abrigar uma consciência profunda

do que constitui a existência, ao se revelar uma sede de aniquilamento. A deterioração física,

somada ao apagamento da memória, oferecem uma imagem mais real do sujeito do que

aquela promovida por um suposto resgate do passado. Quando voltado para os seus próprios

restos, o personagem em cena adquire uma consciência absurda de sua condição presente.

Trata-se da percepção de si enquanto criatura temporal, num estado que antecede toda

representação. O Ouvinte de Aquela vez experimenta claramente este presente absurdo, nos

intervalos silenciosos, quando a luz é aumentada, e ouve-se apenas a sua respiração. O

Vladimir, no final de Esperando Godot, já se perguntava o que poderia existir além do

esquecimento e das alterações, que cegam e emudecem os passantes, que faz brotar folhas na

árvore que ontem era seca:

(...) Amanhã quando eu acordar, ou pensar fazê-lo, o que eu direi de hoje? Que com Estragon, meu amigo, neste lugar até o cair da noite, eu esperei por Godot? Que

75

Pozzo passou, com seu condutor, e que eu falei com ele? Provavelmente. Mas que verdade haverá nisto tudo?31 (BECKETT, 1990, p. 84)

Estes seres, habitantes da plataforma cênica, parecem então solicitar da platéia, de

forma mais direta em alguns instantes, que proceda a um ato de visão, que os auxilie no

desvelamento deles mesmos.

VLADIMIR: (...) [Ele olha de novo para ESTRAGON.] Para mim também alguém está olhando, sobre mim também alguém está dizendo, ele está dormindo, ele não sabe de nada, deixe-o dormir 32(BECKETT, 1990, p. 84-5).

Winnie também parece brincar com a presença da platéia:

Sensação estranha de que alguém me olha. Eu fico nítida, depois flu, depois desapareço, depois novamente flu, depois novamente nítida, e assim por diante, indo e vindo, passando e voltando, no olho de alguém (BECKETT, 2002a, p. 15).

Esta sensação é uma certeza que permite a Winnie persistir com otimismo, ao longo

do segundo ato:

Alguém continua a olhar para mim. (PAUSA) Alguém ainda vela por mim (PAUSA) É isso o que eu acho maravilhoso. (PAUSA) Olhos nos meus olhos (BECKETT, 2002a, p. 20).

Estes instantes revelam a subjetividade em um estado de emergência, consumida em

um presente que não se permite representar. Ao solicitar a visão e a interpretação do outro,

entretanto, ardilosamente, contaminam-no com este vazio, diluindo os conceitos que até então

se haviam organizado para apreender a totalidade da cena ou a totalidade do personagem.

Winnie demonstra este processo em toda a sua força. Em determinado momento, fabula sobre

um personagem que teria passado por ali, junto de sua mulher, e perguntado a esta sobre o

significado de Winnie, enterrada no chão. Tal pergunta certamente espelha a pergunta que

muitos espectadores se fazem, durante a representação desta peça, ante a visão de uma atriz,

soterrada em um monte de terra, ao longo de um ato inteiro. Este personagem é

sugestivamente chamado de “Shower” (aquele que mostra) e recebe da mulher a seguinte

resposta: “E você (...) que idéia é essa sua, o que é que você está querendo significar?”

31 Tradução minha para: “Tomorrow, when I wake, or think I do, what shall I say of today? That with Estragon my friend, at this place until the fall of the night, I waited for Godot? That Pozzo passed, with his carrier, and that he spoke to us? But in all that what truth will there be? 32 Tradução minha para: [He looks again at ESTRAGON.] At me too someone is looking, of me too someone is saying, he is sleeping, he knows nothing, let him sleep on.

76

(BECKETT, 2002a, p. 16). Mas Winnie é quem diz este texto e ela está sempre de frente para

o público, de modo que esta questão ressoa na direção do auditório.

É possível ver um reflexo deste jogo, quando as vozes órfãs de Aquela vez dirigem-se

ao Ouvinte, chamando-o de “você”. É praticamente inevitável, em alguns momentos (talvez

em muitos), que este discurso envolva o espectador a ponto de ele se sentir “intimado”: “sem

saber mais onde você estava aos poucos sem saber mais onde você estava nem quando nem

por quê sozinho no mundo sem conhecer ninguém”. Neste ponto, as peças jogam com as

expectativas do público.

Em sua primeira peça, Eleutheria , escrita em 1947, mas só publicada postumamente,

Beckett introduzira um Espectador como personagem, no terceiro ato. De acordo com

Knowlson (1996, p. 330), ao botar seu pé sobre o palco, aquele experimenta a “carência de

forma, fraqueza e indefinição” que, propositadamente, se fazem notar nos atos anteriores. As

peças que se seguiram, como as acima examinadas, procederam de maneira indireta, não

representativa, mas instalaram aquele personagem definitivamente no processo de

constituição do objeto estético.

De acordo com Wolfgang Iser (1989a, p. 186-7), que analisou o efeito destas peças

sobre o público; em Fim de Jogo, a linguagem encontra-se desprovida de seu duplo sentido,

uma vez que os diálogos aqui, ao invés de serem identificados por meio de um estoque de

conhecimentos e de experiências, da parte do espectador, frustram tal expectativa,

evidenciando um processo de recusa que Iser denomina “contrasenso”. Deste modo, os temas

existenciais presentes no diálogo perdem o seu caráter referencial. Como Adorno (1985, p.

68), que viu nesta peça a retirada da subjetividade, Iser verificou que o “eu”, que procura se

representar em termos de identidade e de história, aqui dá lugar à consciência de que “toda

tradução do eu em palavras é uma tradução de alguma coisa que não é o eu”.

Em determinado momento, Hamm pergunta a Clov: “Nós não estamos começando a...

a... significar alguma coisa?” E ouve do criado a seguinte resposta: “Significar alguma coisa!

Você e eu, significar alguma coisa! [Breve riso.] Ah, essa é boa!”33 (BECKETT, 1990, p.

108). Este trecho ludibria as expectativas do espectador que, até o momento, estivera

desenvolvendo possíveis significados para a situação apresentada no palco. A despeito de

configurar uma representação que rechaça seu objeto, a função referencial da linguagem não

desaparece, permanecendo, segundo Iser (1989a, p. 187) sob a forma de espaços em branco.

Ao procurar constantemente preencher tais espaços, o espectador torna-se um “ator da peça”,

33 “HAMM: We’re not beginning to … to… mean something? CLOV: Mean something? You and I, mean something! [Brief laugh .] Ah that’s a good one!”

77

desenvolvendo projeções que restauram a qualidade representativa da linguagem e facultam o

entendimento do que os personagens estão fazendo. Mas esta peça, que tem o seu foco

dramático transferido do enredo para o espectador, restaura continuamente sua característica

de requerer representações. Ao verificar a falha nos seus próprios procedimentos

interpretativos, o espectador se percebe como a própria figura cômica.

Peter Brook (1970, p. 58) constata, a respeito de Dias Felizes, que a longa duração do

monólogo da mulher enterrada incomoda a platéia que “se agita, se torce, e boceja, sai no

meio ou então inventa e imprime toda forma imaginável de reclamação como uma defesa

mecância contra a desagradável verdade”. O encenador constata, a partir daí, que aquele que

recusa a verdade revelada pelos personagens beckettianos, taxando-os de pessimistas,

encontra-se ele mesmo preso em uma cena beckettiana, torna-se uma Winnie que insiste em

classificar o seu dia como um dia feliz.

Geneviéve Serreau (1967, p. 89), que presenciou a estréia de Esperando Godot, na

Paris dos anos de 1950, revela que, a despeito do enorme sucesso de público, havia, todas as

noites, um pequeno grupo de espectadores que deixava o teatro, freqüentemente no início do

segundo ato, exasperados e inconformados com a repetição, com a constatação de que nada

havia mudado. Outras vezes, ainda piores, teriam ocorrido cenas de hostilidade e mesmo de

agressão física entre os espectadores que apresentavam visões divergentes.

Isto se dá porque tais peças atuam diretamente sobre o tempo dos espectadores.

Quando se admite que, no drama, o presente se desenvolve e se atualiza num novo presente,

que ele abriga uma ação significativa a ponto de revelar a interioridade do sujeito em ação, é

de se esperar que o tempo representado seja muito maior do que a hora passada no teatro. Isto

não acontece com as peças de Beckett. Schechner (2003, p. 21-2), em sua Performance

Theory, observa que Esperando Godot substitui a temporalidade aristotélica, no sentido de

uma representação de uma ação completa, por ritmos da vida como “comer, respirar, dormir-

acordar, noite-dia, estações, fases da lua, etc.”. Se, como observa Brater (1987, p. 50), uma

peça como Aquela vez (que dura em média 15 ou 20 minuto) dilata o tempo passado no teatro,

de modo a dar a impressão de um tempo muito maior transcorrido, as peças longas enfatizam

ainda mais a percepção do tempo destinado a assisti-las, oferecendo ao espectador o contato

com o tempo presente – e, portanto, com sua própria transitoriedade.

78

2.5. Peças que passam rápido:

A pequena peça gestual Ato sem Palavras I foi composta em 1956, momento em que

Beckett via -se diante de mais um dos seus impasses criativos, agravado principalmente pelos

longos esforços empreendidos para colocar Esperando Godot em cartaz, na capital francesa.

Sua companheira, Suzanne, teria percebido, deste modo, na solicitação de um texto por parte

do ator Derik Mendel um possível estímulo para um novo trabalho.

Mendel apresentava números de clown em um cabaré parisiense chamado Fontaine

des Quatre Saisons e Suzanne teria ficado impressionada com sua excelente técnica, quando

se encarregara de conhecer o seu trabalho pessoalmente. De acordo com Knowlson (1996, p.

378), o texto produzido não se adequou, entretanto, ao formato do cabaré porque muitas de

suas ações dependiam de recursos do edifício teatral, como coxias e urdimento, os quais

permitiriam, respectivamente, o lançamento do personagem para a cena e as entradas e saídas

de objetos flutuantes. É possível supor também que o tema deste texto - que, embora seja

construído a partir de paradigmas cômicos como o das ações fracassadas34, lida com “a

inevitável frustração e o desapontamento da vida” - não parecesse apropriado a um ambiente

de entretenimento. Deste modo, Mendel viu-se obrigado a esperar até que obtivesse um

contexto teatral adequado.

Ora, este contexto apresentou-se quando Fim de Jogo estreou em Paris – tendo sido o

pequeno texto gestual, incorporado à apresentação da peça longa em um ato. E apesar de

Stanley Gontarski 35 constatar que o “dramatículo” não foi bem recebido pela crítica que,

comparando-o principalmente com Esperando Godot, considerou-o demasiado “explícito”,

“óbvio”, até mesmo “banal”; o Ato inaugura as peças curtas de Beckett, conforme a edição de

suas obras completas, antecipando, pelo menos em termos de duração, as criações das décadas

seguintes. Esta qualidade de concisão dialoga, portanto, com o trabalho destes artistas

autônomos que apresentam números de caráter ligeiro, em espaços pouco reconhecidos pela

tradição teatral. Mas a precisão que os textos de Beckett demandam, no que tange ao emprego

dos recursos de som, luz e sua interação com a fala e os gestos, torna-os impróprios para estes

34 A respeito deste conceito, ver: ISER, Wolfgang. “The art of failure: the stifled laugh in Beckett´s theater.” In: Prospecting: from reader response to literary anthropology. Baltimore/London: The John Hopkins University Press, 1989. 35 GONTARSKI, Stanley E.. “Birth astride a grave: Samuel Beckett’s ‘Act without words I’”. In: Jornal of Beckett Studies. Edited by James Knowlson. English Department at Florida State Univ., nº 01, winter 1976. Edited by James Knowlson. Disponível em: http://www.english.fsu.edu/jobs/num01/Num1Gontarski.htm > Acesso em: 12 mar. 2008.

79

espaços alternativos. Por outro lado, para serem apresentadas como programas de teatro, as

peças curtas esbarram numa convenção temporal que se baseou na duração de peças de dois

ou de três atos, o que as classifica como demasiado breves para justificar uma montagem

exclusiva. Deste modo, as montagens destes textos geralmente acompanham a de outro texto,

como ocorreu com Fim de Jogo, ou reúnem três ou mais peças curtas para preencher um

intervalo maior de tempo.

A partir da duração, as peças curtas – e isto é mais notável nas peças dos anos 70 e 80

– distanciam-se das definições convencionais de peça teatral. Enoch Brater, em seu livro

sobre o estilo das peças mais recentes de Beckett, sugere a denominação de “performance

poema” para aquilo que ele considera inapropriado chamar de “texto” – trata-se, segundo ele,

de “uma ordem específica para uma encenação específica”, cuja duração estará limitada a

“quinze ou vinte minutos” (BRATER, 1987, p. 03-4). Gontarski, em sua palestra Re-dirigindo

Beckett, apresentada no centro cultural Oi Futuro, no Rio de Janeiro, no dia 11 de março de

2008, citou um diálogo de Beckett com a atriz Billie Whitelaw, durante os ensaios de Passos

(Footfalls), peça de 1975, em que ele teria afirmado que suas peças estariam se encaminhando

para algo cada vez mais “além do teatro”. Whitelaw teria respondido: “Perhaps I should be

pacing up and down in the Tate Gallery”36, referindo-se ao modo muito específico como sua

personagem se desloca nesta peça.

Mas como o Ato sem Palavras, elas foram pensadas para o palco italiano e suas

principais montagens aconteceram aí. Na palestra citada, em que destacou a ligação profunda

de Beckett com as artes visuais, Stanley Gontarski sugeriu, a partir da reduzida mobilidade

que caracteriza o Improviso de Ohio, de 1980, que o palco italiano, com sua moldura,

contribuiria fortemente para destacar a dimensão pictórica destas peças, revelando muitas

cenas como verdadeiros quadros.

Uma diferença aparece ressaltada entre o Ato sem palavras, visto a partir dos

comentadores referidos por Gontarski37, e os textos curtos produzidos nas décadas

subseqüentes, a partir de dois de seus comentadores. Se o primeiro é visto como algo explícito

e banal; os últimos são freqüentemente citados como produções enigmáticas, pouco comuns

ao formato teatral, capazes de induzir no espectador novos modos de percepção. A respeito de

dois destes textos - Aquela vez, tema deste estudo e Eu não, de 1975 -, Enoch Brater (1987, p.

37) comenta o seguinte: “Composições visuais refinadas com uma impressão de vida

espontânea, as duas obras exibem um máximo de intensidade emocional com um mínimo de

36 “Talvez eu devesse estar andando ritmadamente na Tate Gallery.” [Tradução minha] 37 Gontarski cita os seguintes comentadores, em seu artigo: Ruby Cohn, Ihab Hassan e John Spurling.

80

definição [grifos meus]”. Sobre uma montagem comemorativa dos setenta anos do autor, cujo

programa exibia Peça (Play), Aquela vez e Passos, Katharine Worth observa que: “O estreito

foco visual e a pressão do escuro geravam um efeito desorientador”38.

Gontarski39 admite que o Ato sem palavras contraria determinados aspectos da obra,

ao excluir as palavras, ao não exibir deformidades físicas, ao fazer seu personagem ativo e

saudável durante a maior parte do tempo, ao instituir uma seqüência linear de ações, ao

apresentar um formato “mais tradicional e didático que o de outras obras”. Entretanto, ele

contraria o argumento de John Spurling de que esta peça tenderia para o banal, demonstrando

como o seu principal elemento estruturador (a relação do personagem com uma força exterior)

dialoga com a mitologia clássica, com a Bíblia e com a arte contemporânea e como o seu final

revela-se uma resposta original e ambígua para questões que o autor explorou na totalidade de

suas obras.

Ao longo do ato, o personagem, chamado homem, comportar-se-á como cobaia “de

uma experiência behaviorista”, respondendo aos estímulos de um apito, o qual anuncia a

presença de elementos para o seu conforto, como sombra e água, bem como de instrumentos

para atingir estes objetos, como cubos, corda e tesoura. As dificuldades para alcançar os

objetivos se revelam uma constante - as folhas da árvore, que fornecem a sombra, fecham-se

como uma sombrinha; a água, que desce em um pote, recua, logo que o homem consegue se

aproximar.

O tempo curto deste ato revela, por meio da repetição, a impossibilidade de realização,

em um ambiente profundamente hostil, o que leva o protagonista a se rebelar, a permanecer

impassível diante dos novos convites para a experiência. Na visão de Gontarski, este final

indica um novo nascimento do homem, que residiria na renúncia aos mandamentos da força

exterior, na renúncia à existência como mero cumprimento de necessidades vitais. Nesta

mortificação, aqui expressa sob a forma de inatividade, ocorre o nascimento de um novo

homem, paradoxalmente mais ativo, pois não mais enganado por uma realidade ilusória.

Paradoxalmente, este nascimento ocorre no fim, e o olhar final deste homem para as próprias

mãos pontua uma expressão da impossibilidade do artista como “onipotente e onisciente”,

38 WORTH, Katharine J.. “Review article: Beckett’s fine shades: Paly, That Time e Footfalls.” In: In: Jornal of Beckett Studies. Edited by James Knowlson. English Department at Florida State Univ., nº 01, winter 1976. Edited by James Knowlson. Disponível em: <http://WWW.english.fsu.edu/Jobs/num01/Num1Worth.htm> Acesso em: 12 mar.2008. 39 GONTARSKI, Stanley E.. “Birth astride a grave: Samuel Beckett’s ‘Act without words I’”. In: Jornal of Beckett Studies. Edited by James Knowlson. English Department at Florida State Univ., nº 01, winter 1976. Edited by James Knowlson. Disponível em: http://www.english.fsu.edu/jobs/num01/Num1Gontarski.htm > Acesso em: 12 mar. 2008.

81

tendências que Beckett identificou em James Joyce e que se afirmava completamente incapaz

de realizar.

O título do artigo de Gontarski é retirado de um enunciado emitido pelo personagem

Pozzo, em Esperando Godot: “They give birth astride of a grave, the light gleams an instant,

then it’s night once more”40 (BECKETT, 1990, p. 83). A reunião entre o tempo de nascer e o

de morrer é exposta em uma frase curta e direta, como aquela pequena mímica, composta para

um ator. A frase de Pozzo representa para Brater (1987, p. 05) uma metáfora que suporta toda

a ação de Esperando Godot, oferecendo um clímax pelo qual o espectador ansiava, um

momento em que a visão poética sobrepõe-se à vitalidade das situações cômicas. Ainda de

acordo com este autor, as peças curtas das décadas de 70 e 80 consistem na extensão de tais

momentos de modo a abranger toda a extensão do drama. Se Pozzo encerra, em suas breves

palavras, o sentido das ações cumpridas por Vladimir e Estragon, ao longo dos dois atos; as

peças curtas, devido à sua própria duração, transmitem a impressão de visões poéticas, as

quais intensificam, no instante da representação, a luz sobre aspectos fundamentais da vida

dos personagens.

Apesar de curto, entretanto, o Ato sem palavras desenvolve o seu sentido a partir de

uma seqüência lógica de ações. Neste ponto, diferencia -se de peças mais recentes, como Eu

não e Aquela vez que, na visão de Brater (1987, p. 04), transformaram drama e performance

em uma coisa só, ocasião em que o autor comunica ao público uma imagem carregada de

mistério. É bem mais simples, neste sentido, proceder a uma síntese a respeito da primeira

peça, no sentido de comunicar o modo como a sucessão de ações desenvolve uma idéia, do

que fazer o mesmo com estas últimas. Há mais do que uma Boca desgarrada sendo ouvida por

um personagem indistinto e mais do que um homem ouvindo seus próprios pensamentos e

lembranças. Os recursos teatrais se prestam a adensar a situação vivida pelos personagens de

tais peças, de modo que a solidão da Boca no escuro, bem como a velocidade desenfreada de

sua fala, materializam a dificuldade que ela revela para reconhecer esta voz como sua, para

apreender o sentido das palavras e para deter este discurso estranho. Toda a disposição da

cena, em Aquela vez, confirma a percepção do Ouvinte de que toda sua vida fora

acompanhada por vozes, que nada mais eram do que a sua própria voz falando dele mesmo e

buscando preservá-lo do vazio.

Peça, escrita em 1963, cujo título brinca com o própria gênero da obra, é mais uma

destas peças que duram pouco e impossibilitam uma definição que não leve em conta a

ocasião teatral que ela demanda. Ao contrário do Ato sem palavras, é uma peça que exercita a

82

expressão verbal. É através das palavras que o espectador conhecerá o caso de adultério que

constitui o enredo – ouvindo as versões de cada uma das três partes envolvidas: o marido, a

esposa e a amante.

A fala destes personagens é acionada pelo refletor de luz, um “quarto personagem”,

um “único inquisidor”, que ora incide sobre uma das faces, ora sobre as três. Nos momentos

em que a luz ilumina os três, eles falam ao mesmo tempo, configurando o que Beckett

chamou de refrão. Deste modo, suas falas surgem com a luz e são cortadas pela mesma, o que

implica no aparecimento e no desaparecimento de enunciados breves e fragmentados, que se

reúnem para configurar o enredo. A peça não se resume neste enredo apenas. É necessário

dizer, por exemplo, que os personagens que contam aquela história encontram-se confinados

em três urnas funerárias, dispostas lado a lado, e que o espectador visualiza apenas suas

cabeças. Eles olham o tempo todo para a frente e parecem não estar conscientes da presença

uns dos outros, de modo que entre eles não se encontra estabelecida nenhuma relação que

dependa de suas próprias vontades.

Se o sujeito, segundo Szondi (2001, p. 29), apresenta-se como presença dramática

através dos seus conteúdos interiores, os quais se revelam por meio da liberdade e da decisão

manifestas em suas ações; há, nesta peça, certamente, uma presença de outra natureza.

40 “Eles dão à luz montados em um túmulo, a luz brilha um instante, e aí é noite outra vez.” [Tradução minha.]

83

Play. Maryland Stage Company, 2000.

A rubrica sugere que as faces dos atores devem “perder a idade e o aspecto a ponto de

parecerem parte das urnas” (BECKETT, 1990, p. 307). Trata-se de mais uma maneira de

eximir as personagens de traços individuais, o que já se insinua na eliminação de nomes

próprios. As criaturas aqui são chamadas W1, W2 e M (Mulher 1, Mulher 2 e Homem). Nas

primeiras peças curtas, os nomes próprios já desapareciam, dando lugar a letras. No Ato sem

palavras II, as letras denominam os dois personagens (A e B), bem como uma pilha de roupas

que eles manipulam (C), o que intensifica a percepção de seres humanos como entidades

reduzidas ao desempenho de atividades puramente mecânicas. No Rascunho para teatro II,

texto do final da década de 1950, além do emprego de letras, há um dado curioso envolvendo

o personagem C: sua face permanece um mistério para o público, durante todo o espetáculo,

uma vez que ele se situa junto a uma janela no fundo da cena, de costas. Curiosamente, este

personagem imóvel torna-se a figura mais expressiva da cena, uma vez que é o seu passado e

o significado de sua existência que emergem da discussão entre os dois outros personagens, A

e B.

84

Estas peças desenvolvem assim um recurso que será essencial para peças futuras,

como Aquela vez, permitindo, por exemplo, o desmembramento de uma individualidade por

meio da tripartição de uma única voz em A, B e C, e da designação do personagem em cena a

partir da função que ele desempenha, Ouvinte. Este último recurso se faz presente também em

Solo (A piece of monologue), de 1979, em que o personagem é meramente chamado Falante

(Speaker); e no Improviso de Ohio, onde dois personagens, “tão semelhantes quanto

possível”, são chamados Leitor e Ouvinte. Este procedimento instaura, sobre a cena, uma

complexidade que dependerá da capacidade integradora e sintética de cada espectador.

Esta forma de apresentação dos personagens, baseada na extirpação de características

como rosto e nome, manifesta uma diluição da identidade que se desenvolve desde

Eleutheria, onde o personagem Victor, de acordo com Knowlson (1996, p. 330), é “um

personagem sem face”, que não manifesta seus desejos, necessidades ou idéias, revelando-se,

portanto, apenas a partir de características que se furta a assumir. Isto o torna um “peso morto

dramaticamente”, contagiando a peça com sua falta de definição, sem que este drama

fracassado seja, segundo o autor, algo “uniforme” ou “sem interesse”.

Há evidências deste processo na ausência de Godot, realidade que ameaça a existência

de Vladimir e Estragon, revelando-a uma mera repetição de ações abortadas. Em Fim de Jogo,

são exemplares o início e o fim, em que o protagonista Hamm tem o rosto coberto,

respectivamente, por um lençol e por um lenço, repetição que Adorno (1965, p. 63-5) percebe

sobrepôr-se às “intenções” e aos “estados de expressão”, evidenciando que nenhuma

individualidade é possível, que ela consiste numa mera representação fadada a se repetir (“não

há outra vida senão a falsa”).

A limitação dos movimentos de Winnie, em Dias Felizes, certamente antecipa o

estado dos personagens em Peça, mas se aquela ainda oferecia um cenário trompe-l’oeil, em

que “um céu (...) encontra um horizonte na distância” (BECKETT, 2002a, p. 02); nesta

última, o público nada divisará no escuro que circunda as três urnas. Neste sentido, a

escrivaninha de Krapp já se mostrava envolvida pelas trevas e um certo número de ações

ocorria em uma arena inacessível aos olhos do espectador, tornando-se meros estímulos

sonoros que poderiam ser incorporados na constituição da imagem do “velho homem

fatigado”.

A grande novidade em Peça, entretanto, é o fato de a luz ser a responsável por acionar

o discurso e a representação. Aqui, o desejo de Clov de um “mundo onde tudo estivesse

quieto e imóvel” (BECKETT, 1990, p. 120) insinua-se nos momentos em que o refletor

abandona os personagens, alívio manifesto na fala de um deles: “Silêncio e escuridão foram

85

tudo por que eu implorei. Bem, eu tive um pouco dos dois. Eles sendo um”41(BECKETT,

1990, p. 316). A estrutura da peça revelará, entretanto, a impossibilidade de descanso. Como

Winnie não podia jamais descansar, dada a insistência da campainha; as criaturas de Peça

estão condenadas a aparecer, a se tornar presentes por meio da luz e a desenvolver (ou

repetir), diante do espectador, uma versão de sua história.

Knowlson (1996, p. 383) revela que Peça, assim como Dias Felizes, possui vestígios

de “claustrofobia raciniana”, uma vez que Beckett teria procedido, no período, a uma releitura

das peças de Racine e teria vislumbrado nelas “possibilidades para o teatro de hoje”.

Interessava-o particularmente o fato dos personagens destas peças habitarem um mundo

fechado, onde pouco ou nada mudava. Talvez porque o contexto destas personagens se

assemelhe ao próprio contexto envolvendo atores e espectadores em uma representação

teatral, o dramaturgo percebeu que tais peças favoreciam a concentração em “verdadeiras

essências do teatro”, a saber: tempo, espaço e discurso.

Deste modo, os personagens de Peça - como Winnie, no segundo ato de Dias Felizes -

podem olhar apenas para a frente e falar diretamente aos espectadores. Em determinado

momento, o Homem torna evidente que a situação significativa não é mais aquela do enredo,

a do adultério, mas as condições mesmas em que se dá a representação daquela história: “(...)

quando tudo isto terá sido... apenas peça?”42 A organização dos elementos contrasta com a

banalidade do enredo, de modo que alguém que fosse compelido a descrever aquilo que

assistiu no teatro, provavelmente permaneceria mais fortemente atado à disposição dos

corpos, à imobilidade dos mesmos, à velocidade das falas, à ação da luz e à repetição do que à

descrição da história.

Outros fatores realçam a dimensão teatral da peça e desviam a percepção do

espectador do enredo para a organização da cena. Um deles é a velocidade pouco comum

solicitada para a dicção dos atores, a qual fora precisada durante a montagem londrina do

texto, dirigida por George Devine e acompanhada por Beckett. De acordo com Knowlson

(1996, p. 459), a dicção foi tão acelerada que contrariou o desejo dos atores de contarem uma

história, de ouvirem e serem compreendidos por seus espectadores. A solicitação de uma voz

sem tom, “exceto onde uma expressão é indicada”, descaracteriza o discurso de nuances

psicológicas, de modo que não há espaço para que conteúdos interiores se insinuem. Um

outro fator, bastante extraordinário, aparece no final do texto, após a última fala do Homem.

41 Tradução minha para: “Silence and darkness were all I craved. Well, I get a certain amount of both. They being one.” 42 Tradução minha para: “(...) when will all this have been... just play?” (BECKETT, 1990, p. 313).

86

Trata-se de uma indicação aparentemente simples - “repetir a peça” -, mas que solapa

qualquer tentativa de compreender a ação como tendendo para um fim, onde estes

personagens se apresentarão sob uma luz estável ou definitivamente encobertos pelas trevas.

Estas criaturas estão condenadas a repetir uma mesma história, que elas identificam como

“peça”, representação que reconhecem não coincidir com a verdade: “Será que eu não digo a

verdade, será isto, e será que algum dia, de alguma forma, eu direi a verdade enfim, e então

não mais luz enfim, pela verdade?”43. (BECKETT, 1990, p. 313).

O drama aqui se aproxima da música, permitindo aos espectadores a percepção de uma

tendência abstrata procurando envolver as palavras, convertê-las em puro som. A linguagem

revelará, entretanto, a impossibilidade de efetuação de tal tendência, uma vez que, conforme

destacado por Paul Lawley, a repetição da peça diminui a sensação de linguagem abstraída,

acentuando, pelo contrário o caráter fixo das palavras, blocos opacos de “artilharia aural”,

veiculando um enredo absolutamente cíclico. “O que testemunhamos não é uma busca pela

verdade, mas um esforço frenético para sobreviver ao confronto com a luz”44.

Lawley percebe, deste modo, que há, nesta peça, um contraponto entre o texto

pronunciado pelos personagens e a imagem cênica em que eles se encontram inseridos. O

primeiro aponta para um passado onde o incidente amoroso ocorreu, a segunda enfatiza o

tempo presente como o tempo da encenação. Este presente ganha maior relevo, dada a forma

incomum como os personagens se instauram em cena: dentro de urnas, reagindo ao impulso

da luz, repetindo a mesma história. Uma percepção que se detivesse sobre este aspecto seria

chamada, de acordo com aquele autor, “uma percepção sincrônica”.

Este conceito apresentado por Lawley me parece fundamental para identificar

determinados processos desenvolvidos pelas peças de Beckett. À percepção sincrônica opõe-

se a percepção diacrônica, que é a percepção linear, narrativa. As peças de Beckett não

excluem esta última. A percepção da história estará sempre atuante, ainda que para compor

uma fábula incompleta, decepcionante, desacreditada. Mas o modo muito preciso com que a

sincronia entre os elementos artísticos é trabalhada, por vezes, aprofunda a percepção em um

determinado segundo, isolando-o da totalidade da obra. Baseio esta conclusão em um

exemplo que me soa bastante claro, retirado de Trio do Fantasma (Ghost Trio) , peça

televisiva de 1975, que Beckett dirigiu pessoalmente para a tevê alemã. Tive oportunidade de

43 Tradução minha para: “Is it that I do not tell the truth, is that it, that some day somehow I may tell the truth, at last and then no more light at last, for the truth?” 44 Lawley, Paul. “Beckett’s dramatic counterpoint: a reading of Play.” In: Journal of Beckett Studies. Edited by John Pilling. English Department at Florida State Univ., nº 9, spring 1983. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num09/Num9Lawley.htm> Acesso em: 15 de mar. 2008.

87

assistir a este trabalho, durante o evento que comemorou os 100 anos do autor, no Centro

Cultural Telemar, no Rio de Janeiro, em 200645.

Trata-se de uma filmagem em preto e branco, de um único cenário: um aposento. O

roteiro estabelece três posições para a câmera (A,B e C). Em A, temos uma visão geral do

cenário. Em B, uma aproximação média do conteúdo deste espaço. C consiste, finalmente,

numa posição bastante próxima da figura masculina, que encontra-se sentada em um banco,

debruçada sobre um objeto. Em A, podemos ouvir uma música suave (um trio para piano de

Beethoven, que dá nome à peça). Quando a posição da câmera muda de A para B, a música

continua baixa. Ela aumenta quando a posição se transfere para C. A partir deste ângulo, é

possível identificar o objeto sobre o qual o personagem se debruça como um gravador, de

onde brota a música ouvida. Quando a câmera em C executa um close em direção às mãos e à

cabeça do personagem, que apóiam o gravador, este movimento é acompanhado de um

aumento suave, mas progressivo, do volume da música.

Inúmeros significados podem se desdobrar a partir deste gesto, os quais podem servir

para integrar uma história. Mas o fato é que, neste momento, instaura-se um modo

diferenciado de perceber, onde a interação entre os meios disponíveis gera no espectador uma

sensação muito forte de proximidade, que no seu ápice não revela mais do que isolamento e

mutismo.

Na televisão ou no teatro, a ênfase na percepção sincrônica acentua as qualidades do

momento destinado à apreciação da obra, estimulando as faculdades da escuta e da visão e

revelando ao espectador como a configuração de um sentido depende do modo como aquelas

faculdades operam. Em Peça, a forma des-humanizada com que são apresentados os

personagens detém a atenção do espectador de forma mais efetiva do que o enredo disperso

que sai de suas bocas. Estes personagens suspeitam estar, como os espectadores, “procurando

por sentido onde possivelmente não há nenhum”. Algumas falas destes personagens

expressam a atenção a este tempo presente, que é um tempo de encenação. Em suas últimas

falas, o Homem diz:

45 No dia 18 de jul. de 2006, o professor Luiz Fernando Ramos, da USP, proferiu a palestra Peças para TV, em que exibiu as versões de Ghost Trio, Quad, ...but the clouds... e Nacht und Traume, todas dirigidas pelo próprio Beckett para a tevê alemã.

88

E agora, o que você é... mero olho. Apenas olhando. Para minha face. Fechando e abrindo. (...) Procurando por alguma coisa. Em minha face. Alguma verdade. Nos meus olhos. Não mesmo. (...) Meros olhos. Nenhuma mente. Abrindo e fechando sobre mim. Eu sou tanto quanto...(...) Eu sou tanto quanto... sendo visto? (BECKETT, 1990, p. 317)46

Ghost Trio. Karl Herm, dirigido por Beckett. (Foto: H. Jehle)

A investida contra a significação da linguagem torna-se uma investida contra a

interioridade. Uma vez que a verdade, conforme diagnosticado antes, não pode estar nas

palavras; o pensamento e a própria história, enquanto constituídos de palavras, invalidam-se.

“Mas eu disse tudo que eu podia. Tudo que você me deixou”47 (BECKETT, 1990, p. 313) –

Lawley percebe nesta fala da Mulher 1 a idéia de que estes seres já esgotaram tudo o que

tinham para dizer, e que a única alternativa que lhes restou foi a repetição. Ganha sentido

especial as palavras citadas acima e que identificam silêncio e escuridão com verdade, uma

vez que a luz e a linguagem são geradoras do oposto da verdade – re-presentação. A peça se

encontra neste oposto, justamente porque a verdade reside em algo que a linguagem não pode

capturar.

46 Tradução minha para: “And now, that you are… mere eye. Just looking. At my face. On and off. (…)_ Looking for something. In my face. Some truth. In my eyes. Not even. (…) Mere eye. No mind. Openning and shutting on me. Am I as much- (…) Am I as much as… being seen?”

89

Iser (1989b, p. 145), em seu ensaio sobre o padrão da negatividade em Beckett, cita

Merleau-Ponty para afirmar que “a identidade só pode existir como experiência e nunca como

conhecimento”. Estar vivo, segundo ele, significa não saber o que isto significa, uma vez que,

atendo-se a determinados conceitos e conhecimentos, o indivíduo se distancia da

“experiência” e da “auto-evidência”, exilando-se, portanto, em uma outra coisa. Isto revelaria

porque muitos dos personagens de Beckett já sabem desde o início que não podem conhecer

realmente alguma coisa; mas tal certeza não os satisfaz. Como Malone, estes personagens

seguem desenvolvendo ficções e anulando-as imediatamente, pois ao fazê-lo, têm a certeza de

que não estão inventando a si mesmos, “pois qualquer concepção de si mesmo só pode ser

uma ficção”. Como contraponto a uma presença que se revela apenas “peça”, estes

personagens sonham com a escuridão e o silêncio, inatingíveis, onde podem descansar da

falsidade de sua própria representação.

Estas criaturas revelam-se, portanto, uma espécie muito particular de personagens,

cuja própria realidade é posta em dúvida. Sua presença sobre o palco é uma resultante da luz,

bem como do olhar que os espectadores lhes destinam. Neste sentido, o dispositivo de Peça,

baseado no papel ativo da luz, materializa de maneira mais impactante o temor do

personagem Hamm de que a sua presença viesse a significar alguma coisa. A presença revela-

se agora um processo, incessantemente produzido sob a forma de representação. Lawley

define este processo como “paródia de presença”.

O Dicionário de teatro define paródia como a “peça ou fragmento que transforma

ironicamente um texto preexistente”, e acrescenta, a partir dos formalistas russos que “o

elemento parodiante se opõe aos procedimentos automatizados e estereotipados” (PAVIS,

2005, p. 278). Deste modo, o emprego de elementos da tradição teatral, como o

emparedamento raciniano e o clichê do triângulo amoroso, se prestam ao desenvolvimento de

um novo modo de percepção. Se os principais elementos da literatura dramática – “exposição,

complicação, enredo, peripécia e catástrofe” - apareciam em Fim de Jogo, sob a condição de

serem parodiados (ADORNO, 1985, p. 68); Peça se deterá em um elemento fundamental da

realização teatral, a presença do ator.

Os três atores estão ali, mas se encontram des-humanizados tanto na disposição física

quanto no modo mecânico como contam e re-contam suas histórias, elementos que ironizam a

representação de um drama que já é conhecido há muitos séculos. Mas o teatro é uma partida

jogada com o espectador e Beckett incorpora aquele na execução de sua paródia, tornando-o

cúmplice da luz. Porque toda a representação é desencadeada pela luz e também para ele, para

47 Tradução minha para: “But I have said all I can. All you let me.”

90

o seu olho percebedor. Ao enfatizar este processo, Beckett instabiliza um dado fundamental e,

portanto, inquestionável do teatro, a presença48. Ele faz deste pressuposto uma questão e

torna-o mais importante do que todo o drama ou toda a comédia que podem estar contidos nos

desdobramentos do triângulo amoroso que constitui o enredo.

A paródia da presença é atribuída, deste modo, a uma ênfase na “percepção

sincrônica”, em detrimento da “percepção diacrônica”, percepção da narrativa e de seus

desdobramentos, a qual não é inteiramente anulada, mas adquire uma importância secundária.

Este processo pode ser bastante explicitado, através das peças mais recentes, como Passos, de

1975. Trata -se de uma peça para uma personagem, May, e uma voz gravada, V, a voz de sua

mãe, que emerge do escuro. A peça é div idida por blecautes em quatro partes. Na primeira

delas, May dialoga com a voz; na segunda, May permanece em silêncio e apenas a voz

aparece; na terceira, a voz se cala e May fala sozinha; finalmente, na última parte, não há

ninguém em cena. Nas três primeiras partes, May se locomove, ritmadamente, de um lado a

outro, sobre uma faixa de luz, paralela ao proscênio - fortemente iluminada “no nível do chão,

menos no corpo, menos ainda na cabeça” (BECKETT, 1990, p. 399). O resto do palco

permanece nas trevas.

Na segunda parte, a voz revela que a faixa de chão foi outrora coberta por carpete e

que um dia May teria dito que “o movimento apenas não é suficiente, eu preciso ouvir os pés,

por mais fraco que eles pisem”49(BECKETT, 1990, p. 401). O emprego da narrativa em cena,

através da voz da mãe, frustra a expectativa quanto à instauração de uma “percepção

diacrônica”, ou seja, tal narrativa não instaura um desenvolvimento temporal linear que

envolva seus personagens, mas torna-se apenas uma descrição da cena, servindo para

enfatizar o gesto que acontece aí. Os passos de May devem ser “claramente audíveis”, de

48 É possível fazer este processo dialogar com algumas passagens da prosa e da obra dramática, como a descrição pela personagem Mrs. Rooney, na peça radiofônica Todos os que caem (All That Fall), de uma conferência proferida por um psicanalista. Este cientista teria se referido a uma paciente jovem, muito estranha e infeliz, que ele não pôde curar. Durante esta conferência, o homem teria tido uma luz e revelado a seguinte descoberta: “O seu problema era que ela nunca havia realmente nascido!” [The trouble with her was she had never really been born!] (BECKETT, 1990, p. 196) Em Fim de Jogo, Hamm pede a Clov que observe a Terra, para em seguida confessar: “Eu nunca estive lá” [I was never there] (BECKETT, 1990, p. 128). E um dos pequenos textos em prosa dos anos 60, chamados foirades, se inicia assim: “Eu desisti antes de nascer, não dá pra ser de outro jeito, é preciso que se nasça, entretanto, eu estou dentro, é por aí que eu vejo a coisa, foi ele que gritou, foi ele que viu o dia, eu não gritei, eu não vi o dia, é impossível que eu tenha uma voz, é impossível que eu tenha pensamentos, e eu falo e penso, eu faço o impossível” [J’ai renoncé avant de naître, ce n’est pás possible autrement, il fallait cependant que ça naisse, ce fut lui, j’étais dedans, c’est comme ça que je vois la chose, c’est lui qui a crie, c’est lui qui a vu lê jour, moi je n’ai pás crie, je n’ai pás vu lê jour, il est impossible que j’aie des pensées, et je parle et pense, je fais l’impossible] (BECKETT, 1991, p. 27) Todos os trechos citados sugerem uma ruptura profunda entre a vida e as formas como ela se manifesta (representações). A “paródia da presença” foi o procedimento desenvolvido para que os meios teatrais expressassem esta tensão.

91

modo que narrativa, luz e som se prestam a sublinhá-los. O ritmo daqueles apodera-se

inclusive da fala das personagens, quando esta se torna a mera repetição do ritmo dos passos –

“Um dois três quatro cinco seis sete oito nove vira um dois três quatro cinco seis sete oito

nove vira” (BECKETT, 1990, p. 399).

É significativo que os passos sejam tão ressaltados em uma personagem que admite,

ainda que disfarçada sob o anagrama Amy, através do qual refere-se a si mesma: “Eu não vi

nada, nada foi ouvido, de nenhum tipo. Eu não estava aí” 50(BECKETT, 1990, p. 403). Este

enunciado, de certa forma, materializa-se na última parte, quando o fade up, atingindo seu

nível mais fraco de luz sobre a faixa, revela, durante 10 segundos, que não há “nenhum traço

de May”. Como a presença dos personagens de Peça, a presença de May é instabilizada e

todo o desenvolvimento da peça concentra-se sobre este dado paradoxal, a possibilidade da

ausência no ponto para onde verteram todos os recursos expressivos a fim de denotar

presença.

O diretor americano, Alan Schneider, responsável por inúmeras encenações das peças

de Beckett, declarou o seguinte: “Todas as peças de Mr. Beckett são completas; algumas

duram mais do que outras, isto é tudo, mas ela s são todas completas”51 (apud BRATER, 1987,

p. 51). Sua declaração esclarece que os processos engendrados pelas peças longas são de uma

mesma natureza do que aqueles engendrados por peças que duram menos.

Muitas das idéias reveladas pelas peças mais recentes já se encontravam desenvolvidas

em textos anteriores. Um exemplo pode ser extraído da comparação entre uma fala de Hamm,

em Fim de Jogo, e todo o dispositivo de Aquela vez, escrita quase vinte anos depois. Na

primeira, ouve-se um personagem falando sobre a futilidade de seu próprio discurso: “Então

balbuciar, balbuciar, palavras, como a criança solitária que se desdobra em crianças, duas,

três, de modo a estar acompanhada, e suspirar acompanhada, no escuro” (BECKETT, 1990, p.

126). Na segunda, o espectador ouve fragmentos de uma mesma voz, espacializados no

escuro, direcionados para uma solitária cabeça. Em dado momento, uma destas vozes repete o

pensamento de Hamm, o que apenas descreve e reforça a originalidade de uma cena onde as

vozes separam-se de seu dono e tornam-se protagonistas.

49 Tradução minha para: “The motion alone is not enough, I must hear the feet, however faint they fall.” 50 Tradução minha para: “I saw nothing, heard nothing, of any kind. I was not there.” 51 Tradução minha para: “All of Mr. Beckett’s plays are full-length; some of them are longer than others, that’s all, but they’re all full-length.”

92

A maior consciência das potencialidades do palco (atribuída, com freqüência, às

incursões de Beckett na área da direção teatral52) implicou na busca por um controle mais

preciso das dimensões da cena, no sentido de produzir uma experiência breve, mas intensa, de

uma natureza pouco comum às diversas manifestações da linguagem cênica. A duração – que

já era profundamente expressiva nas duas longas horas de representação da espera por Godot

– torna-se prioritariamente um elemento de sentido. Assim, Robert Kudielka (2000, p. 70)

afirma ter assistido, durante os 16 minutos que duravam a montagem de Eu não, dirigida por

Anthony Page e por Beckett, no Royal Court Theatre de Londres, em 1973, a “um dos

acontecimentos teatrais mais ‘puros’ que os palcos já viram”:

Depois de o espectador ser logo de cara fixado pelo feixe de luz e hipnotizado um bom tempo pelo palavrório que se desmente a si mesmo da boca sem corpo no canto superior direito do palco, o olho começava a vagar. O escuro iluminava-se aos poucos num cinza opaco, e tão logo no canto esquerdo do palco tornava-se reconhecível uma estrutura esquisita, monstruosa –talvez um confessionário, mas com suaves adejos -, o monólogo chegava ao fim.

A este instante impactante e polifônico passado no teatro, Kudielka contrapõe a

montagem alemã daquele mesmo ano, que estendeu a peça em 45 minutos, para “preencher a

sessão”.

O tempo constitui mais um dos elementos do teatro sobre o qual Beckett operou de

maneira original (“pura”). Sua peça mais curta chama-se Respiração (Breath), escrita em

1969, e dura cerca de 35 segundos. Não há personagens em cena, mas apenas uma miscelânea

de lixo, disposta sobre o palco de modo horizontal. Os cinco primeiros segundos apenas

revelam este material iluminado por uma luz fraca. Nos dez segundos seguintes, a luz

aumenta sem atingir o brilho e este movimento é acompanhado por um som de inspiração,

que se segue a um breve choro, um vagido, gravado. A luz se mantém por cinco segundos. A

partir daí, decresce, no que é acompanhada pela expiração e seguida pelo mesmo vagido de

antes. A fraca luz perdura mais cinco segundos. Trata-se apenas de 35 segundos, a duração de

uma respiração estendida.

Há uma tematização do tempo perceptivo do espectador, uma vez que cada segundo

tem precisamente calculada a densidade do material sonoro e visual oferecido. A luz é tênue,

o grito é fraco, os objetos, dispostos horizontalmente. Nada favorece a clara percepção. À

expectativa do observador, sobrepõe-se um ritmo que converge para um clímax onde não há

uma presença unificadora. “Eu nunca estive lá”. O palco desabitado demonstra que a presença

52 Veja-se: RAMOS. Luiz Fernando. O parto de Godot e outras encenações imaginárias: a rubrica como poética

93

humana é aí parodiada, não na cena, mas no próprio modo do espectador perceber uma

presença. Este sujeito vê o fim do espetáculo antes que o seu entendimento tenha sido capaz

de reunir os dados em uma representação segura. Dificilmente, ele poderá contar uma história

a partir do que viu sobre o palco, mas ele terá assistido às suas próprias faculdades em ação,

tendo contato com aquilo que atesta, simultaneamente, a proximidade e o isolamento dos

objetos. Ao aproximar o espectador do som de uma respiração ou de corpos des-humanizados,

através da interação da luz, a percepção sincrônica aproxima-os da pluralidade de cada

instante vivido. Os sentidos que possibilitaram, um dia, a percepção de uma fábula são os

mesmos que, solicitados de modo diverso, percebem todos aqueles fatores que a história deixa

de abarcar – um dos principais sendo a presença humana, que sentido nenhum é capaz de

suplantar.

da cena. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999.

TERCEIRO CAPÍTULO:

ESCUTA

NAGG: (...) Nossa audição não piorou. NELL: Nossa o quê?

NAGG: Nossa audição” (BECKETT, 1990, p. 99).53

53 “ NAGG: (...) Our hearing hasn’t failed. NELL: Our what? NAGG: Our hearing.”

95

3.1. As três escutas

Roland Barthes (1990, p. 217), em artigo destinado à análise da faculdade da escuta,

diferencia-a da faculdade da audição. A primeira seria uma evolução da segunda, consistindo

tal evolução na passagem de um ato fisiológico para um ato psicológico. A escuta só pode ser

definida por meio do seu objeto, ou seja, de sua intenção. Ao longo da história, este objeto

teria passado por inúmeras variações. Concentrando-se em algumas destas variações, Barthes

se permite “simplificar” o processo, de modo a definir três tipos de escuta.

A primeira escuta pode ser definida como um alerta. O autor afirma que, neste nível,

“nada distingue o animal do homem”. Trata-se de um direcionamento da faculdade da audição

para a detecção de índices: “o lobo escuta um ruído (eventual) de caça, a lebre um ruído

(possível) de agressor, a criança, o namorado escutam passos que se aproximam e que

poderão ser os passos da mãe ou do ser amado”. A citação permite entrever que esta escuta

diz respeito a um estado de atenção, um estado de espera, o qual pode vir a ser deflagrado

pelo surgimento de um objeto estranho. Um exemplo retirado de Esperando Godot pode

ilustrar bem esta escuta. Vladimir e Estragon aguardam o misterioso Godot, junto a uma

árvore despida de folhas, o que os impede de saber se trata-se da árvore correta que poderia

certificá-los do lugar exato para o encontro marcado. Como não têm meios para comprovar a

própria localização, eles passam a preencher o tempo com suposições a respeito das

expectativas que os levam a Godot e das possíveis respostas que ele trará. Em determinado

momento, Vladimir interrompe Estragon:

VLADIMIR: Escute! [Eles escutam, grotescamente rígidos.] ESTRAGON: Eu não escuto nada. VLADIMIR: Hssst! [Eles escutam. ESTRAGON desequilibra-se, quase cai. Ele se agarra ao braço de VLADIMIR, que cambaleia.eles escutam, agrupados.] Nem eu. [Suspiros de alívio. Eles relaxam e se separam.] ESTRAGON: Você me assustou. VLADIMIR: Eu pensei que fosse ele. ESTRAGON: Quem? VLADIMIR: Godot. ESTRAGON: Pah! O vento nos caniços (BECKETT, 1990, p. 20-1)54.

54 “VLADIMIR: Listen! [They listen, grotesquely rigid .] ESTRAGON: I hear nothing. VLADIMIR: Hssst! [They listen. ESTRAGON loses his balance, almost falls. He clutches the arm of VLADIMIR, who totters. They listen, huddled together .] Nor I. [Sighs of relief. They relax and separate.] ESTRAGON: You gave me a fright. VLADIMIR: I thought it was he. ESTRAGON: Who? VLADIMIR: Godot.

96

O instinto permite que o homem, como o animal, perceba a intervenção de um ruído

em um “espaço de ruídos familiares, reconhecidos”. Neste sentido, a escuta, ainda neste

primeiro nível, constitui a demarcação de um território. Vladimir e Estragon têm dificuldade

em reconhecer o lugar onde combinaram de se encontrar com Godot, mas, à medida em que

nenhuma mudança se precipita neste ambiente, eles se apropriam dele, envolvendo-o com um

diálogo que tem o caráter de passatempo. Este diálogo esvaziado de significados serve para

cobrir o silêncio – e neste sentido, as indicações de silêncio proliferam-se nas rubricas deste

texto, ao contrário do que ocorre em peças como Fim de Jogo e Dias Felizes. Este silêncio

tem o caráter de uma ameaça - a de que o encontro não vá se cumprir - e, ao ser povoado por

vozes, acaba por configurar o que Barthes (1990, p. 218) chama de “fundo auditivo”, um

espaço familiar e reconhecível. Mas a partir deste fundo, destaca-se a função da escuta,

constantemente alerta, a espera do ruído que possa constituir a definitiva ameaça ou a

satisfação da necessidade.

Isto permite afirmar que a audição é um sentido de avaliação espaço-temporal e que a

escuta desenvolve-se a partir dela, captando os “graus de distanciamento e de aproximação

regulares da estimulação sonora”. Estas informações já são suficientes para discorrer um

pouco melhor sobre os processos experimentados durante uma encenação de Aquela vez. A

dispersão do fluxo através de auto-falantes distanciados no espaço deve estimular, pelo menos

nas primeiras mudanças entre estas fontes, o sentimento de proximidade com relação ao

sujeito emissor daquela voz. Como esta é uma expectativa constantemente frustrada, a

mudança torna-se um ritmo (o próximo item deste capítulo investiga as variações deste ritmo)

e passa a solicitar a determinação de um significado. A escuta cumpre-se, deste modo, como

uma “função de inteligência” que, por meio da atividade de “seleção”, torna “distinto e

pertinente” o que se encontrava “difuso e indiferente”.

Na segunda escuta, já se encontram estabelecidos signos, o que a caracteriza como

uma atividade de decifração. Esta escuta implica no surgimento do ritmo, o que tornou

possível o desenvolvimento da linguagem, atr avés de “um ir e vir do marcado e do não-

marcado, que chamamos paradigma” (BARTHES, 1990, p. 220). Neste ponto, Barthes cita

uma fábula apresentada por Freud para o nascimento da linguagem: uma criança marca a

ausência e a presença de sua mãe através de um jogo que consiste em lançar e retomar um

carretel amarrado em um barbante. Enquanto esta criança apenas espera por sua mãe, ela

ESTRAGON: Pah! The wind in the reeds.”

97

efetua a primeira escuta, baseada em índices. A partir do momento que passa a “vigiar

diretamente o aparecimento do índice e põe-se a mimar a volta de maneira regular, transforma

o índice em signo”. Deste modo, o indivíduo passa de um estado de “pura vigilância” para um

estado de criação, uma vez que produziu um código que serve para cifrar e, ao mesmo tempo,

para decifrar a realidade.

A escuta torna-se, neste sentido, uma faculdade que coloca o indivíduo diante do

“mistério”, algo que, “escondido na realidade, só pode vir à consciência humana através de

um código”. Este fato torna a segunda escuta, além de uma decifração, uma escuta de caráter

religioso. Barthes (1990, p. 221) torna exemplar a escuta dos antigos gregos, para os quais,

conforme dedução de Hegel, a natureza fremia de sentido e permitia que se traduzissem

profecias a partir do rumor das folhagens dos carvalhos de Dodona. Desta forma, a escuta se

volta para a decifração do que é obscuro, - “o ‘lado secreto’ do sentido (aquilo que é vivido,

postulado, intencionalizado como oculto)”.

A escuta foi uma faculdade profundamente dominada pelas instituições religiosas, ao

longo de sua história no Ocidente – “escuta da palavra divina que sintetiza a fé, (...) escuta

que liga o homem a Deus”. Este processo tem profundas implicações na compreensão

moderna de indivíduo, uma vez que “a religião interioriza-se” e, com ela, a escuta, que passa

a ser uma escuta da intimidade, ou do Erro, fundamento da civilização judaico-cristã. A

instituição da confissão privada, “de boca a orelha”, no século VII, consistiu, neste sentido,

um passo fundamental para o desenvolvimento da interioridade, uma vez que favoreceu que o

objeto da escuta, aos poucos, se convertesse em consciência (BARTHES, 1990, p. 221).

Ora, tal escuta implica sempre na relação de dois sujeitos, onde um deles se cala “para

receber a mensagem de um só, que quer transmitir a singularidade da mensagem”. O aparelho

telefônico consiste assim num instrumento que potencializa a maneira como duas

individualidades se relacionam por meio da escuta, uma vez que “reúne dois parceiros em

uma subjetividade ideal, porque esse instrumento anula todos os sentidos, salvo a audição”

(BARTHES, 1990, p. 222). Beckett (1986, p. 20) cita uma passagem exemplar desta escuta,

retirada da obra de Proust. Trata-se de uma conversa telefônica entre Marcel e a avó, ocasião

em que aquele personagem consegue perceber, na voz desta última, algo que não fora possível

nas vezes em que estivera diante dela pessoalmente: “É uma voz sofrida, agora que sua

fragilidade não está mitigada e disfarçada pela máscara cuidadosamente preparada de suas

feições, e esta voz estranha e real é a medida do sofrimento de sua dona”.

Trata-se não apenas da decifração dos sentidos implícitos naquilo que é dito, mas na

própria ação de escutar, onde o silêncio do ouvinte torna-se ele também expressivo. Haja

98

vista, neste sentido, a disposição da peça Improviso de Ohio , de 1981, onde aparecem como

personagens um Leitor e um Ouvinte. De acordo com seu nome, este último personagem

permanecerá em silêncio, durante todo o tempo da peça, atento à leitura que o outro

personagem efetua em um livro. Determinados trechos desta leitura são interrompidos,

entretanto, por um gesto do Ouvinte - uma batida do seu punho sobre a mesa (BECKETT,

1990, p. 445). Tal gesto é uma ordem para que a leitura retroceda, de modo que a peça

desenvolve, através deste dispositivo, uma manifestação da escuta expressiva, que acompanha

a leitura cuidadosamente e, neste sentido, é também leitura, enquanto decifração progressiva,

através de um código, do “lado secreto” do sentido.

Esta peça, como Eu não, de 1972, e como Dias Felizes, de 1961, torna a escuta ativa e

instaura, através dela, um intenso confronto dramático, numa cena onde apenas uma

personagem é portadora da palavra. Em Dias Felizes, o personagem Willie ainda se

encontrava munido de algumas falas e ações, mas durante a maior parte da peça, sua presença

constitui um estímulo para que Winnie proceda a seu longo solilóquio, de modo que ela revela

o temor de um dia encontrar-se sem este amparo de alteridade: “se você morresse (...) ou fosse

embora e me abandonasse, então o que é que eu iria fazer, o dia inteiro, quero dizer, entre a

campainha de acordar e a campainha de dormir?”(BECKETT, 2002a, p. 08). Em Eu não,

temos, à direita da Boca desgarrada, a figura do Auditor, de sexo indeterminado, que

permanece completamente silencioso e irreconhecível, durante toda a peça, manifestando

apenas quatro atitudes de compassiva impotência. Estes gestos ocorrem nos quatro intervalos

do discurso da Boca, em que esta se renuncia a abandonar a impessoalidade da terceira

pessoa. A história contada por Boca aponta para uma mulher que passara grande parte de sua

vida calada e, um dia, sem nenhuma explicação, teria sido compelida a falar, como se sua

boca se emancipasse de seu cérebro e ela não pudesse mais controlá-la. O uso da terceira

pessoa implica em não sabermos se a história diz respeito à personagem Boca (e o Auditor,

neste caso, representaria uma testemunha de seu drama, tal como Willie); ou se o Auditor é a

própria vítima impotente, revelando em seu silêncio o estado em que “ela” se encontrava

antes de perder o controle sobre o jorro que se faz escorrer por sua boca. Ao apresentar estas

duas interpretações, ambas impossíveis de serem fechadas, Enoch Brater (1987, p. 32) revela

como a escuta torna-se expressiva, nas peças de Beckett, instaurando, com o silêncio que a

caracteriza, a expectativa de um sujeito unificador, para o qual se direcione a complexidade

de sentidos presente em cena.

Esta disposição já expressa o que Barthes chamou de terceira escuta, que seria uma

escuta de abordagem moderna (BARTHES, 1990, p. 217). Trata-se de uma escuta que se

99

aproxima da escuta dos espectadores de Eu não. Como a figura do Auditor, estes se

encontram impotentes, no que tange a assimilar o sentido do que é dito. Isto se dá,

principalmente, porque o ritmo exigido para a dicção da Boca não permite pausas, de modo

que Billie Whitelaw, atriz dirigida pelo próprio Beckett em performance deste texto, afirma

que se tratava de um ritmo tão veloz que, ao tentar empreender pequenas pausas para respirar,

ficava zonza55. A mesma atriz atuara em Peça, anos atrás, o que a preparou, segundo a

própria, com um noção da velocidade requerida para esta peça mais recente. Naquela peça,

conforme já citado, o ritmo das falas, paralelamente ao ritmo do movimento do refletor,

estabelecia uma realidade percebida de forma mais acentuada do que o próprio sentido das

palavras. Esta realidade encontra um reflexo na presença de um cortador de gramas que tanto

a Mulher 2 quanto o Homem mencionam ter percebido num dos momentos mais decisivos do

desenrolar de seu romance.

M2: Ele continuou sem parar. Eu podia ouvir um cortador de grama. Um velho cortador de grama manual. Eu o parei e disse que o que quer eu pudesse sentir, eu não teria ameaças tolas para oferecer (...) (...) H: Algum idiota estava cortando a grama. Uma pequena investida, depois outra. (...) Então eu a tomei em meus braços e disse que eu não poderia continuar vivendo sem ela56 (BECKETT, 1990, p. 311).

O ruído mecânico justapõe-se a uma linguagem que nada mais é do que a repetição de

clichês. No presente da cena, esta linguagem contamina-se com o ritmo do cortador de grama,

demandando dos espectadores uma escuta que não pode descansar sobre a comodidade das

frases feitas, nem pode se limitar à reconstituição de um frívolo caso de amor. Se o drama,

durante algum tempo, teve a pretensão de fazer com que o público escutasse a interioridade de

seus personagens, através da realização de ações; esta expectativa será frustrada no teatro de

Beckett, na medida em que a fala de seus personagens aproxima-se de um ruído

indiferenciado, que não obedece a um intervalo reconhecível entre o “marcado e o não-

marcado”. Como visto, este movimento de “ir e vir” constitui o terreno familiar do signo. Ao

poluir este terreno, introduzindo um elemento ameaçador, Beckett impede uma escuta

tradicional, que assegurava o espaço da individualidade e permitia, portanto, a revelação da

interioridade.

55 KNOWLSON, James. “Extracts from an unscripted interview with Billie Whitelaw.” In: Journal of Beckett Studies. Num. 03, summer 1978. English Department at Florida State University. Disponível em: < http://www.english.fsu.edu/jobs/num03/Num3Practicalaspectsoftheatre.htm> Acesso em: 21 mar. 2008. 56 Tradução minha para: “ W2: He went on and on. I could hear a mower. An old hand mower. I stopped him and said that whatever I might feel I had no silly threats to offer (…) / M: Some fool was cutting grass. A little rush, then another. (…) So I took her in my arms and said I could not go on living without her.”

100

Neste sentido, Beckett se situa num espaço que não é mais aquele da escuta religiosa

cristã, bem como não é o de uma escuta psicanalítica antiquada, que se basearia em detectar

um trauma original. Não há mais a crença na possibilidade de uma mensagem unívoca. Esta

esfacela-se, arrastando consigo a condição de intimidade, baseada na confidência e na

detecção do Erro. Ao invés de instaurar sobre a cena um confessionário de culpa e de

reparação, Beckett inviabiliza a escuta de um significado, seja o fato que desencadeou o

discurso incontrolável em Eu não, sejam as conseqüências do caso de adultério em Peça. O

que se comunica é antes a velocidade alucinatória da fala, bem como sua aproximação a um

maquinismo estúpido. Os signos, entretanto, não desaparecem. O que ocorre, no âmbito da

escuta, é, conforme definição de Barthes (1990, p. 228), uma produção incessante de

significantes.

A acumulação de confidência sentimental e som de cortador de grama lembra o piano

preparado do compositor americano John Cage, o qual introduzia entre as cordas daquele

instrumento objetos como pinos, parafusos, borrachas e outros. Sua técnica permitia que o

piano, “instrumento produtor de alturas, se transformasse num multiplicador de timbres e

ruídos”, de modo a permitir a escuta de “formas alteradas de pandeiros, atabaques, marimbas,

caixas de música, guizos”. De acordo com Wisnik (2006, p. 52), nas peças para piano

preparado, ouvem-se “quase-sons” igualados a “quase-ruídos”, uma vez que um instrumento

produtor de notas definidas é envolvido por elementos cujos sons por eles produzidos, não

podem ser precisados quanto à altura e a duração. Tal disposição afeta o ritmo e o “ir e vir” da

música torna-se um “tempo em que despontam pulsações e não-pulsações, como se a música

buscasse devolvê-las a um estado de indistinção entre ambas”.

Desta forma, Barthes (1990, p. 228) percebe que as composições de Cage induzem à

escuta de “cada som, um após o outro, não em sua extensão sintagmática, mas em sua

significância bruta e como que vertical”. Do mesmo modo, as peças de Beckett demandam

uma escuta que não pode se ater à identificação de um significado. E isto se torna evidente

nas peças que acrescentam ao texto falado um dado a mais – uma velocidade determinada, a

ausência de acentuações, como em Peça, Eu não e Aquela vez. Isto não faz com que o sentido

das palavras desapareça, afinal “na floresta de símbolos, que não são nenhum, os pequenos

pássaros da interpretação, que não é nenhuma, nunca silenciam” (BECKETT, 2001a, p. 169).

Este processo, entretanto, desnaturaliza a escuta, impedindo-a de se fechar na recepção da

mensagem. Para Wisnik (2006, p. 52-3), as peças para piano preparado “promovem

silenciosamente uma desativação do tempo do ego, do prazer como descarga de energia

acumulada, e uma dessacralização radical do som, que (...) se desgarra como verdadeiro

101

objeto não identificado, em sua obviedade”. Para Barthes (1990, p. 228), a escuta aqui se

desconstrói, exterioriza-se e “obriga o indivíduo a renunciar à sua ‘intimidade’”. Esta é a

terceira modalidade da escuta.

Moran, o narrador da segunda parte de Molloy, manifestava um anseio pela escuta em

que pudesse repousar da sede de perguntas e respostas e permanecer aliviado, ainda que

nenhuma resposta tivesse sido encontrada. É deste modo que revela, no final de seu percurso,

o desejo de retornar para sua casa e voltar a contemplar a dança de suas abelhas – “porque

minhas abelhas dançavam, oh! não como dançam os homens, para se divertir, mas de outra

maneira”. No movimento destes insetos, Moran teria identificado um determinado sistema de

comunicação que se revelava impossível de ser traduzido, dado a introdução de novos

elementos, que implicavam numa infinidade de variações, impossível de ser captada – “não se

tratava apenas de figura e zumbido, mas também da altura com a qual a figura se executava”.

Isto resulta na insuficiência de todos os atos interpretativos de Moran:

E apesar de todo o trabalho que consagrei ao problema, estava mais do que nunca fascinado pela complexidade daquela dança variadíssima, onde intervinham outras determinantes de que não tinha a menor idéia. E eu dizia comigo mesmo, encantado, Aí está uma coisa que podia estudar toda a vida, sem jamais compreender (BECKETT, 1988, p. 165).

A impossibilidade de instituir, a partir do movimento das abelhas, uma linguagem, não

impede que o narrador encontre aí uma profunda alegria, talvez a única a reanimá-lo no

retorno para casa, após uma missão fracassada:

para mim, sentado perto das minhas colméias banhadas de sol, seria sempre uma bela coisa para olhar e de um alcance que meus pensamentos humanos jamais poderiam conspurcar. E eu não poderia cometer contra minhas abelhas o erro que cometera contra meu Deus, a quem me ensinaram a emprestar minhas cóleras, temores e desejos, e até o meu corpo (BECKETT, 1988, p. 165-6).

Como cidadão burguês, produto da cultura judaico-cristã, Moran fora iniciado na

escuta unívoca que ritmou o mistério, e instaurou, a partir deste ritmo, a linguagem, a

divindade e a consciência. A atenção àquilo que foge ao estabelecimento de um ritmo

(“intervinham outras determinantes de que não tinha a menor idéia”) representa um alívio,

que se dá sob a forma de um alívio de si – daquilo que a cultura instaurou como sendo o

sujeito e que Moran configurou na imagem do seu Deus.

É para uma tal escuta que se voltam as peças de Samuel Beckett. Ao frustrar a

expectativa dos ouvintes, no caso, dos espectadores; Beckett obriga-os a abandonarem as

intenções previamente manifestas nesta escuta. Aproxima-se da escuta formulada por Freud e

102

denominada “atenção flutuante”, que estipula que o analista, ante o discurso do seu paciente,

deve evitar a atenção sobre um ponto escolhido em suas expectativas e tendências, pois,

agindo desta forma, corre o risco de encontrar apenas aquilo que já sabe. O analista confia em

sua “memória inconsciente”, não se preocupando com o que deve reter. Deste modo, um

inconsciente fala a outro inconsciente (BARTHES, 1990, p. 223), permitindo que este

restabeleça associações originais. A escuta, livre das pressões do condicionamento, tem de

lidar com a singularidade de seu objeto e oferece ao analista a chance de contaminar-se com

uma significação mais ampla, antes de aplicar o seu saber específico.

Isto explica a desorientação, comumente experimentada pelo espectador ante as peças

de Beckett. Trata-se de uma obra que, nas palavras de Lehmann (2002, p. 140), promove uma

“redução radical” quanto ao material empregado que oferece a impressão de que este objeto

se apresenta “pela primeira vez”. Esta originalidade também é ressaltada por Kudielka (2000,

p. 70), quando este percebe numa performance de Eu não um evento teatral “puro”. Diante

destas peças, o espectador dificilmente poderá contar com um conhecimento da linguagem, de

modo que a sua escuta será desconstruída, em nome da emergência de uma outra escuta.

Como em Cage, trata-se da busca por uma “escuta possível”, sempre a se constituir, de modo

que José Miguel Wisnik (2006, p. 52), parafraseando Daniel Charles, fala de “‘abandono ao

tempo, ao puro movimento do tempo’, tempo que jamais se repete”.

3.2.Forma-sonata e Aquela vez:

A disposição de Aquela vez - sua divisão em três partes, divididas por silêncio, bem

como a divisão de uma voz em três extratos denominados A, B e C –, permitindo a “permuta

de diferentes textos e temas”, levou James Knowlson (1996, p. 531-2) a compará-la à forma

musical da sonata.

De acordo com o Dicionário Oxford de Música , a sonata é uma composição para

piano, ou outros instrumentos acompanhados de piano, em vários andamentos. A maioria

delas é escrita em uma forma sonata, ou em uma versão desta. O mesmo dicionário informa

que tal forma implica três secções: 1. exposição – contendo o primeiro tema, expresso em

uma nota tônica, e o segundo tema, na nota dominante, e, algumas vezes, outros temas; 2.

desenvolvimento – onde o material da exposição é elaborado em uma fantasia livre; e 3.

recapitulação – na qual é repetida a exposição, muitas vezes modificada, e com o segundo

103

tema, agora, na tônica. “A base da forma sonata é o jogo de inter-relacionamento das

tonalidades” (KENNEDY, 1994, p. 263).

Deste modo, um primeiro aspecto que aproxima a peça em questão da forma sonata

reside no que Knowlson chamou uma disposição “tríptica”. Como esboçado no início deste

estudo, Aquela vez constitui-se de três movimentos em que as vozes A, B e C encadeiam-se

em seqüências variadas. Na primeira parte, a seqüência A-C-B repete-se por três vezes,

quando se converte em C-A-B. Na segunda parte, C-B-A prevalece por mais três vezes até

que se altere para B-C-A. E, finalmente, na terceira e última parte, a seqüência B-A-C se

mantém até o fim.

Curiosamente, Wisnik (2006, p. 114-5) observa que a sonata constituiu uma das

principais formas do sistema tonal, que vigorou na música erudita ocidental desde fins da

Idade Média até meados do século XIX. Eis a descrição feita pelo autor do universo tonal:

O tonal é o mundo onde se prepara, se constitui, se magnífica, se problematiza e se dissolve a grande diacronia: o tempo concebido em seu caráter antes de mais nada evolutivo. É o mundo da dialética, da história, do romance. Olhando internamente, o discurso tonal é também o discurso progressivo, “narrativo”, subordinante, baseado na expansão do movimento cadencial, no desdobramento seqüencial, no princípio do desenvolvimento.

Não deixa de espantar que esta forma, assim concebida, se faça presente em Aquela

vez, peça que, como grande parte da obra de Beckett, enfatiza a percepção “sincrônica”, a

escuta “vertical”, em detrimento da percepção diacrônica, causal, evolutiva. Deve-se levar

em conta, portanto, uma vez que Wisnik aproxima a sonata à forma do romance, a relação que

a narrativa beckettiana – explorada no segundo capítulo deste estudo – estabelece com aquele

gênero narrativo, consolidado no século XIX. Se a sonata representa “a constituição de uma

linguagem capaz de representar o mundo através da profundidade e do movimento, da

perspectiva e da trama dialética” (WISNIK, 2006, p. 115); Andrade (2001, p. 20) demonstra

como esta tendência se e ncontra descartada e inviabilizada no universo beckettiano:

A problematização da consciência, do porto seguro a partir do qual se espraia a razão humana, assume o caráter de dissecção crítica dos fundamentos que sustentam a voz em primeira pessoa na ficção ocidental. Perceber e ser percebido, atributos com os quais o eu se define, são postos em xeque. Conhecer o mundo, circunscrevê-lo por imagens e palavras, é uma aventura cujo imperialismo, por mais modesto que se queira, passa a ser classificado de risco no universo beckettiano, não pagando o esforço.

A narrativa, enquanto movimento diacrônico, encontra-se problematizada, em

romances como Molloy e O inominável, porque os seus próprios fundamentos já não mais se

104

sustentam: consciência, linguagem, conhecimento. Também o tempo, compreendido como

progressão, constitui uma noção que tais obras põem em xeque, como procurou-se demonstrar

no segundo capítulo deste estudo. Lehmann (2007, p. 298), em sua análise do que chama um

teatro pós-dramático, utilizou Aquela vez como uma peça exemplar da “crise do tempo” –

entendida como “cisão específica e radical” entre o tempo da vivência subjetiva e o tempo

social. Para ele, há, nesta peça, uma “desagregação da vivência do tempo”, como se o “fio da

continuidade interna” fosse rompido. Se autores como Adorno (1985, p. 67) e Lehmann

(2007, p. 298) percebem que, em peças como Fim de Jogo e Aquela vez, as unidades de

tempo, ação e espaço mantêm-se sob a condição de serem parodiadas; e um autor como

Lawley57 percebe em Play a própria “paródia da presença”; é possível suspeitar que o

movimento dialético, que se faz presente na forma sonata, seja também parodiado.

A primeira parte de Aquela vez se inicia com a voz A, que se refere a um momento

específico do tempo, em que o sujeito partia em direção ao próprio passado. A ausência de

pontuação no texto, bem como a solicitação de uma dicção sem acentuações, implicam numa

leitura fluída, embalada por um ritmo constante que, independente de suplantar a demarcação

de frases e períodos, estabelece – conforme requerido pelo autor – uma impressão de

continuidade. O fragmento, entretanto, já apresenta elementos que problematizam este fluxo.

Um destes elementos é a expressão “quando foi”, que insere um grau de indeterminação no

evento evocado. Além disto, a repetição já se faz presente, como uma espécie de força que

contraria a continuidade do fluxo. Uma vez que esta voz não é puro som, mas também

linguagem e significado, estes elementos instauram uma espécie de textura neste fluxo, de

modo que a escuta deste único fragmento já permite perceber que a progressão do tempo,

materializada como fluxo sonoro, está povoada de sinais que depõem contra esta mesma

progressão.

Logo em seguida, ocorre um deslocamento, provocado pela mudança de auto-falantes.

Beckett solicita que esta mudança seja percebida “claramente”, mas de modo suave. Desta

forma, o fluxo é atravessado, de maneira concreta, espacial, por uma nova textura, uma

ranhura breve, instantânea, que parece interromper a continuidade, mas que logo a re-

estabelece – mas o faz, em um ponto diferente do espaço. Apesar da ranhura, a percepção

volta a se concentrar sobre o fluxo, novamente contínuo. Trata-se agora da voz C, que

também se refere a uma ocasião do passado, mas que denota agora uma outra atividade, a

57 Lawley, Paul. “Beckett’s dramatic counterpoint: a reading of Play.” In: Journal of Beckett Studies. Edited by John Pilling. English Department at Florida State Univ., nº 9, spring 1983. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num09/Num9Lawley.htm> Acesso em: 15 de mar. 2008.

105

procura por um abrigo que não é mais um abrigo da infância, mas um abrigo em um dia de

chuva.

A peça fundamenta, portanto, uma analogia com a referida forma musical, que serviu

de modelo para Hegel diferenciar a música das artes visuais. De acordo com este filósofo, na

música, “um tema, à medida que se desenvolve, faz nascer um outro, e assim ambos se

sucedem, se encadeiam, se possuem mutuamente, se transformam, desaparecendo e

aparecendo alternativamente vencidos e vitoriosos” (apud WISNIK, 2006, p. 152). A e C são,

num primeiro momento, fragmentos comprometidos com o resgate de um passado, e ambos o

evocam a partir do movimento – A busca um veículo de transporte, C busca escapar das ruas.

Uma característica logo apreensível nesta última é a quantidade de verbos que ela abriga

(“sentar descansar secar”, “se aquecer se secar e cair fora dali”), ressaltando uma busca não

satisfeita, comum às duas vozes. Esta disposição da linguagem fortalece a impressão de

resgate do instante vivido, uma vez que focaliza o cumprimento de uma seqüência de ações.

Lembrar é, neste sentido, descrever e esta descrição se organiza de tal modo que aquele que

ouve é levado a repetir, mentalmente, o percurso efetuado no passado. Isto não ocorre com a

voz B, tal como ela aparece neste início. Ao contrário de A e C, B expressa imobilidade e o

que ela revela aparece sob a forma de contemplação. Se A e C se referem a determinados

momentos como “aquela vez”, B evoca “aquela cena”, a qual parece ser vista à distância. É

notável ainda que A insinua um obstáculo - “nenhum bonde nada só os velhos trilhos” -, que o

sujeito trata de transpor – “e dali a pé”. Ao passo que a estaticidade que caracteriza B é

reforçada por ações que têm um caráter definitivo – “sem jamais se tocar”, “sem nunca se

olhar”, “nada”. Libera58 percebe como esta última voz se diferencia das duas outras, na

medida em que ela não se refere ao tempo em que a dada situação ocorreu. A voz B se situa

num outro tempo, que é o tempo de onde o protagonista observa: “aquele pensamento sempre

que surgia dentre os outros fazia emergir aquela cena”.

A predominância de verbos que expressam ação, tanto em A quanto em C, ocupa o

espaço do elemento reflexivo, tal como aparece em B. Naquelas duas vozes, algumas

expressões já sugerem relação com outros tempos – como “tudo acabado há muito tempo”,

em A; e “sempre o inverno então sempre a chuva”, em C -, o que antecipa o caráter

contemplativo de B. Mas estes dados - mais significativos porque expressam uma realidade

mais abrangente - são obscurecidos pela fixação ao presente da ação. Isto acontece, por

58 LIBERA, Antoni. “Structure and pattern in ‘That Time’”. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 6. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num06/Num6Libera.htm> Acesso em: 12. jun. 2007

106

exemplo, quando a lembrança da mãe é contida pela voz A, que é obrigada a reforçar: “ah

pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo”. Logo em seguida, o mesmo ocorre com C:

“estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo tudo poeira todos eles só

restou você”.

A imagem evocada por B é a de um casal junto de um pequeno bosque. As juras

trocadas entre os dois não significam nada, assim como a superfície desta cena, sua disposição

externa, pois os olhos podem estar fechados, sem nada fixar. As únicas realidades são o que

Lehmann (2007, p. 300) chamou de “tempo da natureza”, manifesto nos trigos que

amadurecem – e este tempo não é acompanhado pelos indivíduos, visto que o amor não se

cumpre – e a realidade do pensamento, isolada do mundo visível. Trata-se de um quadro

instaurado por um pensamento que surge dentre outros. Tais pensamentos são citados, na

terceira aparição da voz B: “infância distante ou do ventre materno a pior de todas ou daquele

velho chinês muito antes de Jesus Cristo que já nasceu com longos cabelos brancos”. A partir

do pensamento, o sujeito que recorda observa o tempo vivido como do alto, a uma grande

distância, capaz de turvar seus próprios traços individuais: “como duas leves manchas no

limiar do campo”. B apresenta, nesta primeira parte, a consciência de que tais instantes se

perderam, a uma distância remota, e que subsistem apenas como realidade mental. Esta

característica permite, entretanto, que este instante dialogue com muitos outros, situando algo

de permanente nesta realidade mental, algum processo que possibilite reunir os múltiplos

sujeitos, personagens das cenas fragmentadas. Um aspecto da consciência é iluminado, na

aparição de B que finaliza a primeira parte – junto de uma janela, no escuro, o sujeito conclui

que suas divagações sobre a impossibilidade do amor, que constituem a matéria desta voz, na

primeira parte, são meras histórias para afugentar o vazio.

A sonata, ao desenvolver seu primeiro tema, a partir de uma nota chamada tônica,

instaura uma tensão ao apresentar o segundo tema, em uma tonalidade diferente, a dominante,

que contrasta com a primeira e institui um “movimento progressivo, de um caminhar que vai

evoluindo para novas regiões, onde cada tensão (continuamente reposta) se constrói buscando

o horizonte de sua resolução” (WISNIK, 2006, p. 113-4). Beckett expressou, durante

encenação desta peça, que a mudança entre as fontes A, C e B é semelhante a uma mudança

entre tons (“de u m A menor para um C maior”59). Deste modo, uma tensão se instaura e ntre A

59 ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television – rehearsal notes for the German premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em: 12 de jun. de 2007.

107

e C, como a revelação de diferentes etapas de um sujeito em busca de um objetivo. As

referidas características que aproximam estes dois tempos fazem com que os dois corram

paralelos, como tempo recordado, como tempo novamente percorrido (ao menos, no campo

da linguagem); de modo que a tensão encontra uma resolução provisória. Mas o aparecimento

de B institui um conflito mais urgente, que pode caracterizar mais fortemente o duelo entre

tonalidades distintas que corre em busca de uma solução. Este conflito se expressa através do

choque entre ação e repouso, que se revela o conflito entre tempo de ação e tempo de

contemplação. Esta constitui a polarização central, nesta primeira parte, que determinará o seu

desenvolvimento na direção do silêncio.

Se o aparecimento do segundo tema faz com que a sonata encerre a sua exposição

sobre uma nova tonalidade, os temas das vozes A e C, elaborados a partir da descrição de

movimentos – a qual sublinha o movimento do fluxo sonoro, que progride e se transfere de

uma fonte a outra -, são contaminados pelo “tom” de imobilidade denotado pela voz B.

Em sua penúltima aparição, a voz A revela finalmente em que consistia o referido

refúgio da infância: “à espera do momento de entrar sem ser visto corria e ali se escondia o

dia todo numa pedra no meio das urtigas com seu livro de gravuras”. A voz revelou o sujeito

em uma posição muito semelhante àquela descrita pela voz B, sentado sobre uma pedra. Em

C, o desejo de continuar em movimento, manifesto no final da primeira aparição - “depois

cair fora dali” -, é contido pelo curioso incidente de ter vislumbrado o próprio rosto sobre o

vidro de uma pintura. A “tonalidade” de B, aqui identificada como estaticidade, prevaleceu

sobre a tendência manifesta pelas outras vozes - perpetuar um caminho, abrigar-se. Também o

caráter contemplativo torna-se mais flagrante, uma vez que A vai revelar, através da descrição

de um passatempo daquela época - “conversando consigo mesmo quem mais conversas

imaginárias (...) ora uma voz ora outra” – um atributo fundamental do presente da encenação

– “até ficar rouco e todas elas soarem iguais noite adentro”. Estas vozes que o menino

constrói sobre a pedra são como as vozes que falam ao Ouvinte sobre o palco. Elas se

desgarram umas das outras, dando uma impressão de pluralidade, enriquecendo o perfil do

sujeito, revelando-o como alguém que sobreviveu a diferentes experiências e que se constituiu

através delas. Constituem na verdade uma única voz, que acompanha o sujeito, desde a

infância, protegendo-o do contato com a solidão e o vazio, que também estiveram presentes,

desde sempre, como ameaças potenciais.

A voz C, mais fortemente que a voz A, se deixa envolver pelo elemento reflexivo, no

final desta primeira parte. Após o incidente, em que observou o próprio reflexo sobre o vidro

de uma pintura, o sujeito é levado a admitir que nunca mais foi o mesmo. Esta afirmação

108

será, entretanto, esmiuçada a ponto de desconstruir-se ante a evidência de que este sujeito

nunca pôde ter sofrido uma mudança real, posto que toda a movimentação de sua vida

constituiu -se de um eterno arrastar-se na lama, estando a voz sempre presente, sob a forma de

murmúrios: “quem mais você jamais será o mesmo depois disto você jamais foi o mesmo

depois daquilo”. Eis uma ótima explicitação de como a percepção diacrônica e a sincrônica se

relacionam, no sentido de reforçar a percepção daquilo que é vivenciado como uma

performance teatral. Ouvindo o desenvolvimento das vozes, somos levados a atentar para

estas vozes, para o modo como preenchem o espaço sonoro e para o tempo que destinamos a

escutá-las. A partir daí, podemos deduzir qual o papel destas vozes no presente da cena e ao

longo da vida de um indivíduo.

Isto se dá, a partir do momento em que a “tonalidade” de B prevalece sobre a

“tonalidade” de A e C. Esta dominância estabelece-se no instante em que o percurso do fluxo

altera-se de A-C-B para C-A-B. A vitória de B é declarada pelo fato de ela ser a única a não

ter a ordem de sua aparição alterada, permanecendo, ao longo de toda a primeira parte, como

a última voz de cada seqüência. O repouso que ela descreve é o repouso de alguém que

observa sua própria situação, a partir de pensamentos e cenas que lhe surgem à mente. A e C,

neste momento, abandonam a descrição dos percursos do sujeito e revelam atividades ou

pensamentos que evidenciam, respectivamente, a solidão e a impossibilidade de mudança. O

passado serve apenas para refletir uma situação presente, de modo que o presente se instaura,

com a interrupção das vozes, o aumento da luz, a abertura dos olhos.

A segunda parte constitui um novo mergulho no passado: os olhos voltam a se fechar e

a iluminação decresce, assim que as vozes voltam a atuar. Se o desenvolvimento é a parte

intermediária da forma sonata, onde a relação entre as tonalidades é amplamente explorada; o

desenvolvimento de Aquela vez inicia-se com as vozes já transformadas, a partir das relações

estabelecidas na seqüência anterior. Deste modo, a voz C inicia esta parte, continuando seu

raciocínio sobre a possibilidade de uma mudança ter ocorrido na vida de alguém que, em

certo momento, se viu impedido de dizer “eu” para se referir a si mesmo. O discurso desta

voz tende a afirmar que toda a existência daquele indivíduo se resume a “uma única

reviravolta a primeira e última”, depois da qual ele “nunca mais olhou para trás”. A referência

é ao instante no museu, em que a impressão produzida pela visão do próprio reflexo no vidro

da pintura obriga o sujeito a se virar para ver se há alguém ao seu lado. Este evento

aparentemente banal constitui um evento irreversível, na medida em que ele serve de pretexto

para que o sujeito seja invadido por questões acerca da substância de sua própria identidade.

109

Lehmann (2007, p. 300) identificou nesta voz a busca por continuidade em um

“suprapessoal tempo da cultura”. O museu é deste modo um sítio apropriado para que este

personagem se faça perguntas acerca da identidade e da existência (“sozinho com os retratos

dos mortos enegrecidos pelo tempo empoeirados as datas nas molduras para que você não se

enganasse de século”). Este ambiente que deveria facultar imortalidade a determinadas

criaturas ilustres em seu tempo, é também um espaço de desintegração e esquecimento, uma

vez que os vestígios das tais existências são aos poucos consumidos pelo tempo e pela poeira.

Tal como eles, o sujeito, ainda vivo, não pode gozar de uma residência segura, ao abrigo do

tempo, nem pode confiar na voz que fala dele mesmo, tampouco nas lembranças que o

invadem: “quem estava dizendo o que você dizia de quem o crânio onde você mofava de

quem as misérias que o deixaram assim”. Este sujeito só volta a ter certeza de que ele é ele

mesmo quando o expulsam do museu, dada a hora de fechar. Se em B, a idéia de passagem do

tempo se manifesta pelas condições da natureza; em C, ela se faz presente pelos horários

regulares das instituições públicas. A sensação de irrealidade para a própria existência

prevalece no ambiente externo. Acompanhado pelo inverno, pela chuva e pela “eterna

andança”, ele admite que a existência e a consciência não passam de invenção, hipóteses a

respeito das quais ele se pergunta aonde podem levar.

Todos estes atributos corroboram a afirmação de Beckett de que C constitui a voz mais

cínica, no que contrasta com B, que seria a mais emocional60. Curiosamente, a voz B, nesta

segunda parte, denota maior mobilidade, no que tange à busca de diferentes contextos

(“aquela vez juntos na pedra ao sol ou aquela vez juntos à beira do rio ou aquela vez juntos

nas dunas”), sempre situados juntos de uma natureza em transformação (“sempre juntos em

algum lugar ao sol à beira do rio diante da foz o sol se pondo os detritos que desciam o rio

levados pela correnteza”), mas sempre revelados como sítios de um amor que não aconteceu

(“jamais um olhar para o seu rosto ou outra parte jamais um gesto para ela nem dela para

você”). A fixação às circunstâncias em que se deram os encontros entre os dois sujeitos revela

a intensidade afetiva destes momentos, ainda que eles abriguem um projeto fracassado. A voz

B, ainda que revele estes instantes como miragens condenadas a aparecer e a desaparecer,

dota-os de beleza, de força e de nostalgia. Estas cenas já despertam, meramente a partir de sua

descrição, idéias a respeito da frustração e do isolamento, ao passo que em C, as cenas

60 ASMUS, Walte r D.. “Practical aspects of theatre, radio and television – rehearsal notes for the German premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em: 12 de jun. de 2007.

110

evocadas, nesta segunda parte, tendem a se desintegrar pela natureza das questões que elas

abrigam. De um lado, uma tendência figurativa, ameaçada pelo fluxo incessante do

pensamento; de outro, uma perspectiva analítica, solapada pela instabilidade dos principais

fundamentos de uma tal perspectiva, tais como consciência, experiência e conhecimento.

Estas vozes se aproximam no que tange à auto-consciência – ambas se destacam da

descrição de ações e se instalam na experiência mental que circunscreve e que traz à tona o

evento ocorrido no passado, como revelam as seguintes passagens: “a chuva e a eterna

andança procurando assim inventá-la inventar assim a si mesmo enquanto avançava tentar ver

a que isso levaria não ter existido poderia muito bem levar a isso não ter nunca sido” e

“imóveis feito mármore lado a lado a cena emergia e lá estavam vocês de novo onde quer que

fosse”. Na primeira passagem, C revela que as ações práticas, a relação com seu meio, ou

mesmo a lembrança destes perscursos, têm um caráter de invenção, como construto destinado

a substituir o vazio instaurado na consciência. Na segunda, a voz B descobre a autonomia

destas imagens, que surgem a partir de pensamentos, e servem para aprofundar um

determinado tema – o da imobilidade e do isolamento. Ambas manifestam a consciência de

que estas vozes gravitam em torno de um possível objeto, a identidade do sujeito, o

significado de sua existência.

A voz A, pelo contrário, é a voz menos auto-consciente, na medida em que, desde o

início, é a mais comprometida com a descrição minuciosa do instante vivido, repetindo todos

os incidentes de um determinado percurso: “aquela vez que você retornou ver se estava ainda

ali a ruína onde criança você se escondia aquela última vez subiu em frente do cais até a rua

principal pegar o onze nem à direita nem à esquerda”. Esta persistência se mantém na segunda

parte, ainda que as dificuldades se mostrem mais e mais eminentes (“que fazer então nem

pensar em perguntar falar com alguém nunca mais em sua vida”, “ali tudo fechado e trancado

o terminal neodórico da ferrovia a colunata em ruínas que fazer então”). Por seu caráter, a voz

A torna-se a voz mais discordante no conjunto das três vozes, nesta segunda parte. Ao

contrário do que ocorreu na primeira parte, quando a voz discordante projetou a sua influência

sobre as outras; agora a voz A, como expressão prolongada da “tonalidade” inicial da peça, é

contaminada pelo tom de impasse e de incerteza com o qual a voz C encabeça esta seqüência.

Em sua penúltima emissão, dá vazão ao seu esgotamento, “senão desistir daquilo (...) sair

daquele inferno”. A nova perspectiva apresentada por esta voz induz a uma nova alteração da

seqüência, de C-B-A para B-C-A.

No seu último movimento, B contrasta a mobilidade das imagens, como se fossem

dotadas de vida própria, com a imobilidade que caracteriza todos os instantes revelados por

111

tais imagens: “imóveis feito mármore lado a lado antes de imergir e sumir (...) tudo ao redor

imóvel onde quer que fosse nada se move”. A realidade do pensamento solitário é mais vívida

do que as tentativas de contato entre o indivíduo e o mundo ao seu redor. Esta certeza, neste

momento, abandona a voz C, que finaliza a segunda parte, repetindo o seu movimento de

“entrar sem ser visto”, manifestando uma satisfação com “os lugares gratuitos a biblioteca

municipal uma coisa formidável a cultura gratuita providência dos sem-teto”. A voz A, que

permanece até o fim em sua posição de última voz da seqüência, é a sede da transformação

mais intensa, de modo que a sua determinação é substituída pelas seguintes palavras: “sem

saber mais onde você estava aos poucos sem saber mais onde você estava nem quando nem

por quê sozinho no mundo sem conhecer ninguém como aquela vez na pedra a criança na

pedra onde ninguém nunca vinha”.

Esta voz finaliza a segunda parte, o chamado “desenvolvimento” da forma sonata,

representando uma alteração. A voz A era, desde o início, a representante máxima da

disposição para resgatar o passado, ainda que as vias de acesso se revelassem obstruídas. Se o

fundamento da forma sonata é “o inter-relacionamento das tonalidades”, pode-se dizer que o

diálogo entre movimento e repouso, entre ação e contemplação, interferiu em cada uma das

vozes, de modo a comprometer o seu caráter inicial. Ainda que estas vozes, de acordo com o

autor, correspondam a fases determinadas de uma vida; a relação entre elas, no presente da

encenação, implica na alteração das imagens evocadas e interfere no significado da

recordação.

A voz C, correspondente à maturidade, desenvolve as questões que a acompanham,

durante grande parte da peça, influenciada pela imobilidade de B, voz proveniente da

juventude. A visão dos dois jovens estagnados, à medida que o tempo flui, solicita questões

divisadas numa idade posterior, as quais depõem contra toda ação (“toda a sua vida uma

sucessão de reviravoltas na verdade uma única reviravolta a primeira e última”). Por outro

lado, em determinados momentos (“alguma vez você conseguiu se dizer eu nessa reviravolta

que foi a sua vida essa era uma palavra que você sempre carregava na boca antes que ela se

calasse para sempre”), estas questões iluminam o momento em que a voz B não pôde mais

formular histórias para preencher o vazio de sua identidade (“quando você tentou tentou e não

conseguiu mais nenhuma palavra para conter o vazio e nada lhe restou a não ser desistir”).

De acordo com Wisnik (2006, p. 152), a estrutura da sonata permitiu à música

instrumental oferecer “pela primeira vez a impressão de estar ‘falando’, mesmo sem palavras,

e de estar ‘contando uma história’ cujos personagens não seriam senão células sonoras em

transformação”. A interpretação de Schopenhauer para a música agradava particularmente a

112

Beckett e uma das coisas que tal interpretação revela é que esta linguagem é “insensível à

hipótese teleológica” (BECKETT, 1986, p. 74).

Aquela vez gira exclusivamente em torno da vida de um indivíduo – as outras criaturas

citadas aparecem apenas na medida em que reforçam algum estado mental daquele sujeito ou

estimulam nele alguma percepção. O que ouvimos, durante quase todo o tempo, é a sua voz,

mas uma voz que não provém mais de seu corpo. Em determinado momento, somos

informados de que este sujeito um dia não pôde mais dizer “eu” para se referir a ele mesmo e

não pôde, portanto, contar mais nenhuma história como sendo a sua história. Por isso, ao

analisar este texto, ao descreve-lo, somos levados a tratar as três vozes como personagens, o

que as aproximam das “células sonoras” da sonata. Estas vozes não se constituem puramente

de som, elas veiculam expressões de significado fixo, mas o fazem a partir de um ritmo

constante e de uma voz sem acentuações, o que destitui o discurso de ênfases e intenções,

despersonalizando-o, portanto. Além disto, o surgimento destas vozes do escuro, o modo

como elas se encadeiam e se influenciam fornecem a impressão de que elas são auto-geradas.

Ao usar a sonata como uma forma que ‘fala’, Beckett, possivelmente, atém-se mais

fortemente ao fato de que esta fala é posta em movimento de modo diverso daquele que se dá

quando um indivíduo toma a palavra. Trata-se de empregar aqui a “natureza íntima e inefável

de uma arte que é perfeitamente inteligível e perfeitamente inexplicável” (BECKETT, 1986,

p. 75).

Wisnik (2006, p. 170) afirma que a sonata é uma expressão fortemente ligada ao

pensamento ocidental e que ela pode ser comparada à “luta amorosa”, podendo os dois temas

serem apresentados como antagonistas ou complementares. Ora, Aquela vez dá vazão, num

breve momento, a uma referência oriental “velho chinês muito antes de Jesus Cristo que já

nasceu com longos cabelos brancos”. Brater (1987, p. 47) informa-nos que se trata de Lao-

Tze, figura emblemática da filosofia oriental, fundador da religião Taoísta, que teria vivido no

século VI antes de Cristo e em torno do qual gira a lenda de que teria nascido com os cabelos

brancos de um velho. Ainda que suas idéias possam acrescentar muitos contrastes à

disposição ocidental e dialética que subjaz à forma sonata; a simples menção desta lenda, no

interior da peça, já sugere um tempo entrincheirado, que não é aquele do desenvolvimento

progressivo.

Além disto, Wisnik (2006, p. 169) acrescenta que “essa luta, ou esse amor”, que

caracterizam o movimento da sonata, permitem pensá-la “em suas afirmações e negações,

como um processo interno ao espírito, sua biografia sinfonizada, paralela ao romance mas

também à filosofia”. Esta metáfora não se aplica a Aquela vez, uma vez que conforme visto, a

113

forma musical é empregada na medida em que alivia a perspectiva causal e se apresenta como

a resultante da incapacidade do sujeito para propor-se como sujeito da própria história. Na

terceira parte, ou na re-exposição, quando, de acordo com os pressupostos desta forma, os

temas devem repousar sobre a tonalidade inicial, afirmando-a; as três vozes se harmonizam

sobre a idéia da desaparição do sujeito.

B, como voz que instaurara o segundo tema, o da imobilidade e da contemplação, na

primeira parte, inicia a seqüência final com uma variante: ela agora situa o sujeito sozinho,

nas mesmas cenas, nos instantes, portanto, que antecedem e que sucedem a chegada e a

partida da criatura amada. A solidão implica na ausência de “juras para quebrar a paz”, mas

também na certeza de que este é um estado permanente – “na mesma cena onde quer que

fosse a mesma velha cena antes ou depois não importa”. O fluxo do tempo, que faz com que

estas imagens de estagnação surjam e desapareçam, atravessa as cenas e leva com ele os

elementos que compõem a identidade do sujeito: “o que quer que aquilo fosse na correnteza

se afastando no fogo do crepúsculo lentamente até se perder de vista nada se move apenas a

água o sol morrendo até morrer desaparecer e você com ele e tudo o mais”.

Se a perspectiva dialética se faz presente na inter-relação das tonalidades, a imagem do

sol se pondo – representação conhecida do hemisfério ocidental -, conduz a um apagamento

dos traços do sujeito, único sítio possível do pensamento. Muitos aspectos desta peça podem

sugerir um movimento interno ao espírito. O diálogo entre as vozes pode mesmo ser

considerado uma representação do pensamento, como em Brater (1987, p. 37): “Beckett cria

nestas obras peças de câmara intimistas onde o cenário revela o interior da consciência”61.

Mas o modo como Aquela vez estrutura-se conduz à percepção de uma consciência que não

pode mais suportar a si mesma enquanto imagem, representação. O sujeito ainda está vivo,

como atesta sua respiração amplificada, em cada um dos intervalos, mas ele contempla a sua

biografia como uma sonata à distância. A verdade revelada pela música nasce da

desintegração da fábula – que caracteriza toda construção lingüística, como lembranças,

pensamentos e consciência. O último movimento das vozes expressa muito bem este

momento final, quando o sujeito se deu conta de que o pensamento, como linguagem, não

contém a verdade a respeito de si. Esta verdade pode ser experimentada na música, mas

apenas na medida em que esta arte permite veicular palavras, destacando-as de um sujeito

61 Tradução minha para: “Beckett creates in these works intimate chamber plays in which stage décor unveils interior consciousness”.

114

enunciador. Isto pode ser um indício da misteriosa inscrição que o autor efetuou em um dos

primeiros manuscritos desta peça: “something out of Beckett”62 (BRATER, 1987, p. 38).

O rio do tempo corre, na voz B, em direção a uma “última vez”, junto de uma janela,

quando o escuro já se instaurou, havendo apenas a possibilidade da luz da lua. Esta é

exatamente a mesma iluminação, apresentada pela voz A, para a criança solitária que cria

vozes para ter companhia, “noite escura ou à luz da lua”. É impossível saber o momento exato

de cada experiência, mas torna-se significativo que as condições para uma experiência

fundamental, caracterizada como “última vez”, possa, de algum modo se relacionar com um

período da infância. Como tempo de resgate da infância, a voz A também se descreve como

“última vez”. Estas circunstâncias se referem, respectivamente, à capitulação ao vazio e à

frustração definitiva do impulso para recuperar o passado. Quando B repete o bordão de A

(“aquela vez que você retornou”), situa-o “pouco depois bem depois” das evocadas cenas de

solidão. Estas temporalidades, portanto, se intercalam, se aproximam e se repelem, na medida

em que se localizam a partir de outras experiências, situadas em outros tempos, que revelaram

verdades fundamentais. Um destes momentos é, sem dúvidas, a chegada do escuro, que apaga

os traços do sujeito e instaura o vazio, momento que B encena junto de uma janela, mas que já

se encontrava inserido em todas as cenas descritas, ritmando-as – “azul escuro azul escuro”. O

jovem sozinho sobre a pedra repete o objetivo do seu sucessor, junto à janela, inventando

cenas e situações para conter o vazio. Mas o que ocorre é que, no final, as palavras, como a

luz, estão em vias de se acabar, e não há outro recurso senão permitir que o vazio entre.

Como B, a voz A emparelha experiências distantes no tempo: “ninguém nunca vinha

só a criança na pedra no meio das urtigas gigantes a luz coando por uma fresta do muro” e “ali

no degrau sob o pálido sol lá está você de novo ao diabo os que passam boquiabertos ao vê-lo

ali tombado sob o sol”. A expressão “lá está você de novo” permite considerar que há uma

repetição da experiência – como a criança, o homem senta-se solitário e fala consigo mesmo,

“aos brados com suas tolices”. A solidão, bem como a atividade destinada a suplantá-la,

indicam uma realidade extratemporal que aproxima aquelas criaturas apartadas pelos anos.

Em seu ensaio sobre Proust, Beckett (1986, p. 60) parafraseia o autor:

A identificação entre as experiências imediata e passada, a reaparição de uma ação passada, ou sua reação no presente consiste numa colaboração entre o ideal e o real, entre a imaginação e a apreensão direta, entre símbolo e substância. Tal colaboração libera a realidade essencial, negada tanto à vida ativa como à contemplativa. O que é comum ao passado e ao presente é mais essencial do que cada um deles visto separadamente.

62 “alguma coisa fora de Beckett” (tradução minha).

115

Esta constitui a revelação central da obra proustiana e ela possibilita uma apreensão

daquilo que o autor denominou “a realidade essencial” – trata-se de algo que não foi

percebido, no momento em que o instante foi vivido, e que, portanto, não pôde ser resgatado

pela ação da inteligência, mas dependeu de um acidente, que fizesse ressoar dois instantes

separados pelo tempo.

Na peça de Beckett, esta experiência encontra-se inviabilizada porque o sujeito que

poderia se reconhecer como sede deste processo, ausentou-se, temporariamente, da voz A.

Uma vez que a construção da identidade é revelada em sua superficialidade -“inventando sem

cessar a história (...) inventando a si mesmo reinventando a si mesmo pela milionésima vez” -,

uma conseqüência direta vem a ser o esquecimento – “esquecendo-se de tudo e por que”. Ora,

esta era uma condição central, já postulada, a partir de Proust, para que o passado fosse

resgatado em sua totalidade: “O homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque

nunca se esquece de nada” (BECKETT, 1986, p. 23). No passado buscado pelo sujeito, a

criança era absorvida pelo próprio passatempo de modo a esquecer a vida lá fora, com as

pessoas se movimentando e procurando por ela. Este sujeito, no tempo referido pela voz A, já

tem cabelos brancos, mas parece ter se esquecido do cumprimento de uma vida prática, de

modo a se sentar sob o sol, agarrado a um saco de dormir, deixando “boquiabertos” os

passantes.

Diferente da criança, que era capaz de entreter-se noite adentro com suas conversas

imaginárias (apesar de o vazio se insinuar na rouquidão que explicita sua voz solitária e o

propósito de sua atividade), o adulto preocupa-se com o tempo: “à espera da noite e da hora

de partir à espera da hora de partir”, “à espera da hora de descer”. Tal preocupação dialoga

com a constante referência ao tempo da natureza, em B, e aos horários das instituições

públicas, em C. Apesar de ter experimentado novamente a solidão, o esquecimento e o vazio,

ocorre a recusa em reconhecer que a experiência passada volta a se repetir. As últimas

palavras da voz A – “nunca houve uma outra vez apenas aquela vez sair daquele inferno e

nunca mais retornar” – afirmam a eminência do tempo e a impossibilidade de reconstituir o

vivido.

A “realidade essencial” entre estes momentos é de tal natureza que impede a

afirmação de uma personalidade, distendida no tempo. O que as duas experiências revelam é

que a identidade se constitui e se desintegra enquanto resposta à solidão e ao vazio. Se a

solução proustiana era capaz de “catalisar” a permanência da personalidade; o diálogo entre as

criaturas que compõem a biografia do sujeito, em Beckett, dispersa a identidade e permite que

116

o vazio se precipite. Diante desta realidade, um só fator é capaz de se impor. Este fator é o

tempo e ele se torna perceptível, assim como o vazio, através da música.

O volume que encerra a obra de Proust é denominado O tempo redescoberto. Beckett

julgava este título inapropriado: “a solução proustiana consiste, até onde já analisamos, na

negação da Morte e do Tempo, na negação da Morte porque negação do Tempo. (...) O

Tempo não é redescoberto, é obliterado” (BECKETT, 1986, p. 60-1). A revelação que este

romance abriga diz respeito à interpretação do já citado acidente com a madeleine, em que o

narrador sente repetir-se uma impressão passada:

Essa causa, contudo, eu a adivinhava ao comparar essas várias impressões que me proporcionaram bem-estar e que, entre elas, tinham em comum a faculdade de serem sentidas, ao mesmo tempo, no momento atual e num momento passado (...), até fazerem o passado permear o presente a ponto de me tornar hesitante, sem saber em qual dos dois me encontrava; na verdade, a criatura que então saboreava em mim essa impressão, saboreava-a naquilo que ela possuía em comum entre um dia antigo e um atual, no que possuía de extratemporal, era uma criatura que só aparecia quando, por uma dessas identidades, entre o presente e o passado, podia achar-se no único ambiente em que conseguiria viver, desfrutar da essência das coisas, isto é, fora do tempo (PROUST, 1995, p. 180).

Esta revelação final, como um êxtase, permite conceber uma subjetividade mais plena,

uma vez que libera o narrador das contingências do presente e lhe permite a visão de algo que

não fora percebido, durante uma experiência passada. Este insight ocorre ao narrador de

Proust, quando ele se encontra solitário, na biblioteca dos Guermantes. Não por acaso,

Beckett situou a voz C, voz que encerra a última parte de Aquela vez também em uma

biblioteca. Assim como no museu e no correio, ele entrara neste ambiente “sem ser visto para

se abrigar da rua do frio da chuva”. Como as vozes A e B, que revelam, nesta última parte,

experiências de caráter definitivo, que já eram insinuadas em outros momentos, C menciona

algo depois do que, como na visita ao museu, o sujeito jamais pôde ser o mesmo. Trata-se de

alguma coisa que a poeira lhe disse, quando ele se sentou à mesa, junto de velhos curvados

sobre livros. Em determinado momento, quando se ouvia “apenas as velhas respirações o

virar das páginas”, os olhos se abrem e percebem que todo o ambiente, do chão ao teto, está

repleto de poeira. Foi neste momento que a poeira lhe revelou: “veio partiu foi isso algo assim

veio partiu veio partiu ninguém veio ninguém partiu apenas veio partiu apenas veio partiu”.

A versão inglesa torna evidente a negação do tempo, que dialoga abertamente com

Proust: “come and gone come and gone no one come and gone no one come and gone in no

time gone in no time” [grifos meus] (BECKETT, 1990, p. 395). A negação do sujeito,

entretanto, expressa por “ninguém”, contradiz frontalmente a revelação proustiana. Desde o

117

início, C fora a voz comprometida com o que Lehmann (2007, p. 300) chamou de “busca pela

continuidade em um suprapessoal tempo da cultura”. O sujeito referido adentra os ambientes

da cultura institucionalizada, sempre em busca de conforto e proteção. No interior de tais

lugares, as velhas questões se insinuam - questões que versam sobre a existência e a

identidade e que acompanham o sujeito como o inverno e a chuva. Ao buscar alívio nas

pinturas de gente famosa em seu tempo, ou nas páginas de livros, este indivíduo percebe o

que foi a existência de seus antepassados, registradas em tais obras, mas o percebe através da

poeira. Esta se acumula sobre a pintura e dentro dos livros e é a resultante direta do passado.

A poeira é o único vestígio real daquelas existências, de modo que ela diz apenas duas

palavras ao sujeito – “veio partiu”.

A ocultação do sujeito na sentença revelada pela poeira indica o que é a vida, depois

de cumprida: semelhante ao que ela foi, nos momentos em que, tomado pelo vazio, o sujeito

foi incapaz de dizer “eu” com relação a si mesmo. A maldição lançada por Hamm sobre Clov,

em Fim de Jogo, dizia o seguinte: “Um vazio infinito te circundará, todos os mortos de todos

os tempos ressuscitados não o preencheriam” (BECKETT, 1990, p. 109)63. O tempo é negado,

na medida em que a poeira do passado equivale ao vazio do presente. A real existência, para

Proust, podia ser apreendida pelo indivíduo que se emancipava do tempo e imortalizava tal

consciência sob a forma de literatura: “A vida verdadeira, a vida afinal descoberta e tornada

clara, por conseguinte a única vida plenamente vivida, é a literatura” (PROUST, 1995, p.

204). A literatura, como o sujeito, estão convertidos em poeira, ao fim de Aquela vez.

A voz da poeira revela um movimento que sempre acompanhou este sujeito, seja no

vaivém, sob o inverno e a chuva, pelos locais da cultura; seja na persistência em resgatar o

passado, que se percebe impossível; seja na oscilação entre azul e escuro, entre história e

vazio. A peça cumpre, deste modo, o pressuposto da forma sonata de que o segundo tema tem

de finalizar repousando sobre a tonalidade inicial. A suposição, entretanto, de que esta forma

permite entrever uma “biografia sinfonizada” cai por terra. Como não se sabe quem entrou e

quem foi expulso do museu, não se sabe quem habitou aquele intervalo de tempo inscrito na

moldura dos quadros. Não há sujeito capaz de dizer a própria história, dada a certeza de que o

vazio e o pó são mais reais do que a voz e do que a fábula. Além disto, todo indivíduo que se

sentisse inclinado a interpretar esta história, perceberia outra coisa aí, como o sujeito, referido

por C, que distingue apenas um reflexo de si, na pintura “enegrecida pelo tempo”. Esta voz

indica ainda, em outro momento, que houve “uma única reviravolta a primeira e última aquela

vez pequeno verme enrolado na lama de onde eles o arrancaram limparam desenroscaram”. C

118

expressa, neste trecho, a chegada; A encerra suas aparições, abordando a partida (“sair

daquele inferno e nunca mais retornar”); B enfatiza o vazio, com suas ramificações, entre os

anos vividos. “ninguém veio ninguém partiu” – uma vez que nada é capaz de denotar

permanência e nenhum vestígio subsiste do que se ja ou do que tenha sido uma identidade, a

história do sujeito é destituída de realidade. O indivíduo no presente é silêncio, como o atesta

o presente do Ouvinte.

Inúmeras lendas circundam a escrita do Tao-te Ching, escrito mais antigo da religião

taoísta, atribuído ao citado Lao-tze, mas que, de acordo com a Enciclopédia Britânica (1993,

p. 154), foi escrito por diferentes pessoas, em diversos períodos. Uma dessas lendas afirma

que Lao-tze viajava para o ocidente, por ter constatado o declínio da dinastia Chou, que

governava sua província. Na travessia da passagem para outra província, o guardião desta

passagem teria solicitado a Lao-tze a escritura de um livro. Ele teria então escrito o Tao-te

Ching (onde tao significa caminho e te virtude), composto de duas secções de 5.000

caracteres. As virtudes do tao indiciam os motivos para que as informações sobre a vida de

Lao-tze sejam tão obscuras: “ele era um homem recluso cuja doutrina consistia em não-ação,

cultivação do estado de calma interior, e pureza da mente”64. Os princípios desta doutrina

obrigam a pensar um autor que não estivesse preocupado em deixar traços da própria

existência.

A voz C finaliza uma seqüência que difere das outras por obedecer a um mesmo

encadeamento até o fim, B-A-C. Ao se recusar a promover mais uma “reviravolta”, a última

seqüência deixa de ser “mais uma daquelas velhas fábulas para que o vazio não viesse cobri-

lo com seu sudário” e encerra-se, para sempre, deixando o Ouvinte entregue ao silêncio e ao

vazio. O sorriso final desta criatura expressa sua resignação a este fim. Esta resignação revela

sua afinação com a percepção musical.

A música, conforme lembrado por Beckett, a partir de Schopenhauer, implica em

supressão do elemento teleológico. O Ouvinte compreende, enfim, que a vida não pode ter

com meta reconhecer-se, representar-se – os produtos destas atividades estarão sempre

condenados ao vazio. A música é, neste sentido, uma forma de organização mais adequada,

uma vez que articula o próprio elemento que a ameaça. Por isso, esta arte aparece, nos escritos

de Beckett, como a indicação de um caminho a ser trilhado na formulação de uma obra que

não venha a se limitar à “natureza viciosa da palavra”:

63 “Infinite emptiness will be around you, all the resurrected dead of all the ages wouldn’t fill it”.

119

Há alguma razão pela qual a terrível e arbitrária materialidade da superfície da palavra não seria capaz de ser dissolvida, como pode, por exemplo, a superfície do som, rasgada pelas enormes pausas, da Sétima Sinfonia de Beethoven, de forma que, por páginas a fio, nós não podemos perceber nada a não ser um caminho de sons suspensos nas alturas vertiginosas, ligando insondáveis abismos de silêncio? (BECKETT, 2001a, p. 169)

O silêncio que ameaça a música não deve ser entendido como ausência de som, mas o

silêncio como indiferenciação caótica. John Cage (1961, p. 08) descreve uma experiência

fundamental neste sentido, quando revela ter entrado em uma câmara, desenvolvida por

engenheiros da Universidade de Harvard, na qual nenhum eco se faz possível, e na qual,

teoricamente, seria possível ouvir o silêncio. Ali, entretanto, o compositor afirma ter ouvido

dois diferentes sons, um grave e um agudo. De acordo com os engenheiros, o ruído agudo

corresponde ao som do sistema nervoso, enquanto o som grave diz respeito ao sistema

circulatório. Conclui-se deste modo que um ouvinte, ainda que em um espaço ideal, se fará

acompanhar por sons, de modo que o silêncio absoluto não existe. As notações de “silêncio”

que aparecem nas partituras musicais significam, deste modo, “abrir as portas da música aos

sons que ocorrem no ambiente”.

Beckett se mostra consciente deste fato observado por Cage à medida que justapõe à

indicação de “silêncio”, nos intervalos da emissão das vozes em Aquela vez, a indicação de

que a respiração do Ouvinte deve ser audível. De acordo com o compositor Pierre Schaeffer

(1966, p. 105), o rumor contínuo que acompanha nossa existência, como um fundo sonoro,

confunde-se com o sentimento de nossa própria duração. O silêncio é, portanto, nesta peça, o

momento em que o sujeito se mostra vivo, a despeito de estar coberto pelo vazio, separado de

seu passado, soterrado pelo pó. O silêncio final dá vazão a um sorriso desdentado, revelando

despojamento físico progressivo, paralelo à degradação de sua própria figura. Mas trata-se de

um sorriso também que infantiliza o velho, acentuando a proximidade entre a chegada e a

partida, sugeridas neste e em outros textos, como as únicas realidades.

64 Tradução minha para: “he was a gentleman recluse whose doctrine consisted in nonaction, the cultivation of a state of inner calm, and purity of mind”.

120

3.3. Escutar o tempo em Aquela vez

Quem vê pouco, vê sempre menos; quem ouve mal, ouve

sempre algo mais

(NIETZSCHE, 2000, p. 276).

A forma sonata, por se basear num diálogo entre tonalidades, que instaura uma tensão

e busca um repouso, permitiu, em Aquela vez, que temas relativos ao passado se

relacionassem entre si, sem que fosse necessária a intermediação prática de um sujeito. Mas o

silêncio do Ouvinte, como já foi visto, constitui um ato de resistência, próximo à atitude do

homem, ao fim do Ato sem Palavra I, que se recusa a atender ao chamado da vida,

convidando para a possibilidade ilusória de satisfação das necessidades imediatas. O discurso

das vozes revela que este sujeito, em determinado momento, recusou-se a acreditar nas

fábulas que se contava para encobrir o vazio; de modo que é possível ver, no seu silêncio e no

seu sorriso, a força de sua decisão.

Seria ingênuo ainda atribuir um caráter ativo a estas vozes, que não podem existir

independentes do sujeito que as proferiu. Se elas são, conforme expresso pelo autor65,

provenientes do passado, elas apenas podem ser percebidas, ao encontrar ressonância no

presente. Deste modo, o passado apenas pode ecoar porque há um sujeito atual, respirando,

esperando, ouvindo. O uso do pronome você torna inquestionável este processo. De acordo

com Benveniste (1976, p. 278-9), a primeira e a segunda pessoas são realidades mutuamente

implicadas, de modo que: “eu [e, conseqüentemente, tu] só pode ser identificado pela

instância de discurso que o contém e somente aí. (...) a forma eu [ como tu] só tem existência

lingüística no ato de palavras que a profere.”

Ao “purificar” estas vozes da ação fisiológica e mecânica que as produz,

estabelecendo o uso de gravação e a anulação dos auto -falantes no escuro, Beckett apresenta a

linguagem como processo transcendente ao ato de falar, processo que organiza o vivido,

sobrepondo-se a ele, mediando a relação da consciência com o tempo66. No romance

65 ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television – rehearsal notes for the German premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em: 12 de jun. de 2007. 66 Mais uma vez, a obra de Proust oferece-nos uma situação exemplar. Em seu ensaio sobre o autor, Beckett (1986, p. 12) verifica que o futuro permanece algo indistinto e sem realidade para o sujeito, até que algum evento específico seja fixado, hipótese dependente da ação da linguagem: “O evento futuro não pode ser focalizado, nem apreendidas suas implicações, até que se encontre definitivamente situado e designado por uma data. (...)

121

Companhia , fica bastante evidente o modo como a linguagem organiza a percepção do tempo:

“Uma voz que fala do passado, a alguém deitado no escuro. Com uma alusão ocasional ao

presente, e, o que é mais raro, ao futuro, como, por exemplo, Vais acabar como estás agora”

(BECKETT, 1982, p. 42). Apesar de situar como “ocasional” a menção do presente, os outros

tempos jamais poderiam ser refletidos, se não houvesse o que Benveniste (1976, p. 289)

chama de uma “linha de participação”, a qual corresponde a uma “referência ao presente”. De

acordo com o autor, esta demarcação “só pode ser interior ao discurso” porque “não há outro

critério nem outra expressão para indicar ‘o tempo em que se está’ senão tomá-lo como

‘o tempo em que se fala’”. Neste sentido, o tempo apresenta-se em Aquela vez não porque os

verbos apareçam flexionados no pretérito, tampouco pela presença de advérbios. Ele aparece

porque o emprego do pronome você demarca uma entidade presente que recebe aquele

discurso.

Além do pronome, outras expressões se deslocam pelos fragmentos de voz, indicando

a ação do sujeito que estabelece o tempo presente: “nada só os velhos trilhos quando foi”, “a

ruína de não importa”, “estava sua mãe ah pelo amor de Deus”, “ou conversando consigo

mesmo quem mais” [grifos meus]. Estas expressões parecem destinadas a corrigir ou a

enfatizar um fato lembrado. Depõem contra esta tendência, o fato de que o Ouvinte não está

emitindo tais expressões e o fato de que elas não se distinguem de outras expressões, uma vez

que estão inseridas num fluxo sonoro sem acentuações. Este fluxo é assegurado por uma

unidade de timbre, visto que se trata sempre da mesma voz. O fato de a voz se desmembrar

em fragmentos é aliviado pelo estabelecimento de um movimento seqüencial, que abarca o

espaço, através da disposição dos auto-falantes. O pronome você, como as referidas

expressões, destacam-se a partir da recorrência com que aparecem. Se na forma sonata, “a

sucessão não está a serviço da simultaneidade (polifônica), mas a simultaneidade (harmônica)

é que está a serviço da sucessão” (WISNIK, 2006, p. 169); as repetições, fundamentais na

estrutura de Aquela vez, afinam-se na definição do tempo presente – tempo da consciência,

tempo de escuta -, impedindo a dispersão definitiva do sentido. Os temas, como visto,

também correm para aí, para o tempo do silêncio e da escuta e, deste modo, instalam a idéia

de sucessão.

A descrição do processo de ensaios desta peça, quando dirigida por Beckett, em

Berlim, informa que a voz requerida, apesar de desprovida de acentos, não é uma voz

puramente maquinal. Em cada uma das partes, os fragmentos se encerram com maior

Seja qual for a opinião que nos ocorra entreter a respeito do assunto morte, podemos ter certeza de que não terá qualquer sentido ou valor. A morte não nos pede um dia livre.”

122

suavidade e o décimo segundo, que constitui o último fragmento de cada parte, deve ser o

mais suave de todos67. A atenção ao timbre da voz e a suas nuances é uma das características

que aproxima, à peça em questão, A última gravação de Krapp, de 1958, na qual um homem

de sessenta e nove anos ouve uma gravação da sua própria voz, efetuada trinta anos antes.

De acordo com James Knowlson68, que tem um artigo sobre a evolução desta peça,

através das encenações em que Beckett participou, o seu surgimento foi estimulado por um

motivo explicitamente musical. Segundo ele, a peça foi composta para o ator Patrick Magee,

cuja voz “rachada” havia sido ouvida por Beckett, numa leitura de fragmentos de Molloy,

transmitida pela rádio BBC em 1957. Beckett impressionara-se pelo fato desta voz “capturar

um sentido de profundo cansaço com o mundo, tristeza, ruína e pesar”. Esta percepção

concentrada na qualidade do som determinou inúmeros procedimentos “musicais”, quando

Beckett dirigiu o texto. Estes se evidenciam principalmente na abordagem da voz do Krapp

mais jovem - uma voz, como a de Aquela vez, sem corpo, fortemente desmaterializada.

Knowlson revela que Beckett exigiu desta voz um tom maior de “auto-confiança” que a

distinguisse da voz do Krapp presente em cena. A aparição dos principais temas – solidão, luz

e trevas, e mulher – no discurso desta voz é destacada com uma mudança de tonalidade, como

em música, quando se passa de “um tom maior para um tom menor”.

De maneira semelhante, ao dirigir Aquela vez69, Beckett sugere a Klaus Herm que

inicie a leitura da segunda parte do texto com uma voz maquinal, como o motor de um carro

afogando. Mas, ao ensaiar a leitura da terceira parte, percebe que o ator se encontra muito

preocupado com a técnica, com evitar a respiração. Solicita deste modo, um pouco mais de

sentimento naquilo que é dito. A referência informa sobre o grau de sutileza que requerem tais

peças, principalmente no que tange àquilo que Schaeffer (1966, p. 107) chamou de “natureza

sonora”. Segundo este autor, quando se ouve um ruído estranho no motor do carro, a escuta

trata de obter algum dado sobre seu funcionamento. Uma vez que as causas para este ruído

são, a princípio, desconhecidas, o ouvinte é levado a perceber, progressivamente, seus efeitos

– o modo como esta sonoridade afeta a própria percepção. Esta escuta antecede, portanto, o

“entender”, que é como Schaeffer denomina a fase da escuta em que o som é identificado com

67 ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and te levision – rehearsal notes for the German premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em: 12 de jun. de 2007. 68 KNOWLSON, James. “Krapp’s last tape: the evolution of a play, 1958-75.” Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 1, inverno 1976. Disponível em: http://www.english.fsu.edu/jobs/num01/Num1Knowlson2.htm Acesso em: 12 de ago. 2006. 69ASMUS, Walter D.. Idem.

123

um signo. Nas peças de Beckett, as palavras não estão destituídas de sentido, mas o modo

como elas são veiculadas, a partir de sua “natureza sonora”, obriga os ouvintes a lidarem com

um dado que antecede a constituição do significado.

O presente da escuta torna-se, por tudo isso, tempo priorizado em Aquela vez. Ao

empregar a forma sonata, Beckett fez uso de uma arte que é “a Idéia em si, inconsciente do

mundo dos fenômenos, existindo idealmente fora do universo, apreendida não no Espaço, mas

no Tempo” (BECKETT, 1986, p. 74). Esta virtude peculiar da música é, entretanto,

corrompida pelo segundo termo da comunicação artística: o “ouvinte que, como sujeito

impuro, insiste em atribuir uma imagem ao que é ideal e invisível, insiste em encarnar a Idéia

no que lhe parece um paradigma adequado” (BECKETT, 1986, p. 74).

O estabelecimento de uma escuta musical para um fluxo de palavras inverte esse

mecanismo e revela-se uma operação direta sobre o tempo do ouvinte. A música é, em Aquela

vez, menos a busca por um grau de pureza e de abstração, do que um deslocamento do uso

habitual dos signos lingüísticos. Partindo de elementos que não podem se separar da sua carga

referencial, como são as palavras, o autor submete-as a um tempo próprio da música,

inserindo-as num outro nível de significância70. De modo semelhante, Pierre Schaeffer (1966,

p. 390), fundador da chamada “música concreta”, precursora da “música eletroacústica”, nos

anos de 1950, observa como a sua arte emergente nasceu de uma percepção diferenciada da

arte já existente. Ele se refere à audição da trilha fechada, ou seja, da execução repetitiva, pela

agulha do gramofone, de uma única fissura em uma determinada gravação. De acordo com o

músico, este fragmento, “que devia sua existência apenas ao instante fortuito em que a agulha

era baixada”, carregava-se de sentidos e apontava para a identificação de possíveis temas, os

quais não mais se relacionavam com o tema da obra original. “Arrancados do contexto, a um

só tempo desprovidos e ainda mais plenos de sentido, eles nos prendiam em seu universo

fechado, atraente e absurdo. É provável que toda quebra de condicionamento passe por aí:

violação, destruição, sem-sentido.”

A tradição imputou à sonata um tempo de progresso e de transformação. Mas como o

sentido da música depende, principalmente, das faculdades do seu ouvinte, a escuta de um

compositor como Beethoven, ligado à geração romântica (e, portanto, a um período que fez

largo uso da forma sonata), é descrita por Beckett71, privilegiando menos a percepção

diacrônica, sucessiva, do que se espera naquela forma. A evolução dos sons é percebida como

70 A expressão “significância” é empregada por Barthes (1990, p. 228), em sentido diferente de “significação”. Esta última supõe a referência a um código e demanda um ato de reconhecimento ou de decifração; ao passo que a primeira diz respeito ao “espelhamento” de significantes e estabelece um movimento de dispersão. 71 Vide o final do último sub-capítulo.

124

progresso, mas apenas na medida em que este progresso deixa ver o silê ncio, como elemento

do qual os sons se destacam e como indiferenciação que os ameaça. Assim, as imagens

verbais que se constroem, em Aquela vez, aparecem como figuras do passado, acessíveis,

próximas ou devidamente distanciadas. Ao se repetirem, se confundirem, se dissolverem,

estas imagens presentificam a consciência que elas integram. Esta última não corresponde a

um sítio seguro ou a uma totalidade, mas se faz atravessar pelo fluxo do tempo, de modo que

todo recorte que ela promova, apresente, ou encontre, deve ser contrastado com o que ela não

foi capaz de reter desta determinada vez.

nenhum ruído apenas as folhas suavemente no pequeno bosque atrás as espigas ou os bambus ou os caniços conforme o caso de homem nenhum sinal de homem ou animal nenhum sinal nenhum som

De modo semelhante, a escuta do espectador, nesta peça, deve lidar, o tempo todo,

com elementos que lhe escapam. Este fato impossibilita que a maior parte daquilo que é

ouvido, e compreendido como signo, seja articulada em uma estrutura de sentido mais ampla.

O fluxo musical das palavras converte-as numa matéria que solicita um novo estado de

atenção. Na verdade, trata-se menos de atenção do que de desatenção, conforme a escuta

psicanalítica, referida anteriormente. Isto torna tal escuta muito próxima da escuta vertical,

percebida por Barthes, na obra de John Cage, onde o que ocorre é a percepção bruta de cada

som, singularizado a ponto de comprometer a cadência, a identificação de uma narrativa

sonora, a idéia de progresso.

Esta escuta proposta é uma escuta mais livre, mas ao mesmo tempo mais arriscada,

uma vez que, conforme Barthes (1990, p. 228), “obriga o indivíduo a renunciar à sua

‘intimidade’”. Os resultados são imprevisíveis. A escuta como decifração das palavras não

sendo aqui suficiente, o indivíduo é levado a escutar-se.O espectador pode sair do teatro

irritado por ter perdido o seu tempo, prestando-se a ouvir um texto que compreendeu mal.

Assim como ter atenuadas, temporariamente, algumas de suas inclinações particulares, ao se

deixar conduzir pelo fluxo monótono, pelo ritmo lento da respiração ampliada. Isto explica

porque a duração da peça costuma parecer maior do que de fato é. Aquele que se aborrece,

contempla, a cada minuto, a própria insuficiência dos seus atos interpretativos. Este processo

será tanto mais intenso quanto maiores as expectativas de compreensão ou de entretenimento

este espectador trouxer para o teatro. Ao passo que aquele cuja escuta se harmonizar com o

fluxo surpreender-se-á, como o Ouvinte, com o silêncio, em cada um dos intervalos, e com o

silêncio final. Infinitas podem ser as posturas, as escutas, as reações, todas baseadas numa

125

forma subjetiva de perceber o tempo. E é justamente isto que impede de saber quando, onde,

o que foi Aquela vez.

126

CONCLUSÃO

Finalizando este estudo, é possível perceber a dificuldade em retomar a primeira

impressão obtida a partir da obra enquanto resgate da experiência sensível que estimulou a

pesquisa. Procurei orientar todo este trabalho para aquele instante privilegiado, em que a peça

surpreende o espectador ou o leitor, alterando o ritmo de sua respiração. A obra de Beckett é

auto-explicativa, na medida em que cada peça, ensaio ou romance retoma e enfatiza os temas

e motivos já apresentados em outras obras. Aquela vez pode ser vista, neste sentido, como um

aprofundamento na matéria que gerou Fim de Jogo ou A última gravação de Krapp. É por

isto que a interpretação alegórica constitui um risco. Imputar um sentido à obra significa

aniquilá-la. As circunstâncias de cada uma destas peças individualizam-nas, principalmente,

porque supõem um modo específico de comunicação, um modo específico de dialogar com o

tempo trazido pelo espectador.

Acreditava poder chegar a algum resultado expressivo quanto à relação entre o teatro e

a produção da subjetividade, no contexto das peças curtas de Beckett. O próprio autor oferece

as informações mais significativas a respeito do que constitui a subjetividade – veja-se a idéia

de personalidade como algo apreendido no passado, em seu ensaio Proust; e a Boca que não

consegue dizer “eu”, no palco de Eu não, para citar apenas dois exemplos. Mas há outras

coisas além destes conteúdos nestas peças enigmáticas que se adeqüam mal às definições

convencionais de dramaturgia. Acredito ter me aproximado de umas destas coisas ao me

aproximar do tempo em que estas peças se desenvolvem (e que é desenvolvido por estas

peças): o tempo seqüencial que, em Aquela vez parodia a estrutura da sonata; e o tempo

sincrônico, que justapõe, em cada instante da peça, intensidades determinadas de material

significante de natureza diversa. O organizador desta obra (que é certamente uma partitura)

não detém seu sentido mais profundo, mas depende do tempo de participação do espectador

para que a obra se cumpra como dispersão dos possíveis sentidos. É deste modo que ela faz

perceber o sujeito como uma função do tempo, sendo tanto mais complexo quanto mais

entregue ao fluxo, quanto menos reificado num caráter que se sabe vazio. A peça indica a

desconstrução do sujeito representado, mas isto só é possível porque a escuta do espectador

foi desconstruída.

As vozes de Aquela vez são a expressão de um sujeito que se constituiu na linguagem,

mas que, em determinado momento, percebeu que aquela não representa mais do que um

movimento condicionado para suplantar o vazio que ameaça a consciência. Ao abrir mão da

fala, este indivíduo não pôde deixar, entretanto, de ritmar o indiferenciado, o mistério, de

127

configurar o tempo em presente, passado e futuro, de delimitar o espaço, reconhecê-lo no

escuro que o circunscreve. Este é o modo como a escuta procura re-estabelecer um espaço

seguro para o sujeito. A escuta do espectador tratará de desenvolver suas próprias reações

para suplantar a novidade, mas esta peça está estruturada de modo a impedir a fixação do

sentido. Ao libertar a escuta da decifração da mensagem, ao contagiar esta faculdade com o

vazio, a peça afrouxa a marcação do tempo. Ao instituir um ritmo, estabelecer deslocamentos,

seqüências, busca restaurar esta noção, mas institui um movimento que se dirige para o

silêncio, e que repousa na insinuação do desaparecimento do sujeito, bem como da cultura

que ensejou a sua aparição. A obra pode ser constantemente reencontrada aí, no espaço em

que faz co-existir a sua necessidade e a sua insuficiência. Em Aquela vez, este é um espaço de

escuta, que, sendo o sentido organizador da noção de tempo, permite relativizar esta noção,

exceto em seu único aspecto essencial: o tempo vivido que se perde em direção à morte.

128

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134

ANEXO A

135

AQUELA VEZ

De Samuel Beckett

Tradução Rubens Rusche

(a partir dos originais em

inglês. That time , e

francês, Cette fois)

Cortina. Palco na escuridão. Ir subindo com a luz até iluminar o rosto do Ouvinte, a uns três metros acima do nível do palco e um pouco descentrado.

Velho rosto branco, ligeiramente inclinado para trás, longos cabelos brancos esparramados, como se, vistos do alto, contra um travesseiro.

As vozes A, B e C são uma única e mesma voz, a dele, que lhe chegam vindas das duas laterais e de cima. Elas se encadeiam sem nenhuma interrupção, exceto nos lugares indicados. Ver nota.

Silêncio. 7 segundos. Os olhos do Ouvinte estão abertos. Respiração audível, lenta e regular.

A aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia quando foi (os olhos se fecham, ligeira queda da luz) dia cinzento com o onze até o fim da linha e dali a pé não não havia mais bondes tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia aquela última vez nenhum bonde nada só os velhos trilhos quando foi

C quando você se abrigou da chuva sempre o inverno então sempre a chuva aquela vez no museu ao abrigo do frio da chuva da rua à espera do momento de entrar sem ser visto e através das salas gelado e molhado até avistar o primeiro banco laje de mármore sentar descansar secar depois cair fora dali quando foi

B na pedra juntos ao sol na pedra na orla do pequeno bosque nada só o trigo amarelando de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio sem jamais se tocar ou algo assim você numa ponta da pedra ela na outra pedra longa e baixa como pedra de moinho sem nunca se olhar apenas ali na pedra ao sol atrás o pequeno bosque olhando o trigo ou os olhos fechados ao redor tudo imóvel nenhum sinal de vida ninguém por perto nenhum ruído

136

A subiu em frente do cais até a rua principal o saco de dormir na mão direita em frente nem à direita nem à esquerda ao diabo os velhos lugares os velhos nomes subiu em frente do cais até a rua principal e ali nenhum fio nada só os velhos trilhos enferrujados quando foi estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia a ruína de uma antiga como era mesmo o nome

C estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo tudo poeira todos eles só restou você tombado sobre a laje com seu velho casaco verde a se abraçar quem mais se aquecer se secar e cair fora dali tombar em outro lugar ninguém por perto você sozinho e de quando em quando um vigia sonolento arrastando os chinelos de feltro nenhum ruído somente de quando em quando o arrastar do feltro aproximando-se depois se afastando

B ao redor tudo imóvel apenas as espigas as folhas e vocês também imóveis na pedra como entorpecidos nenhum ruído nenhuma palavra de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio única fonte de lágrimas antes de se secarem totalmente aquele pensamento sempre que surgia dentre os outros fazia emergir aquela cena

A a ruína de não importa pedaço de torre ainda em pé entre cascalhos e urtigas onde você dormia nenhum amigo nenhum teto talvez aquela hospedaria junto ao mar onde você não ela estava ainda ao seu lado ao seu lado aquela única noite seja como for desembarcou de manhã tornou a embarcar na manhã seguinte ver se estava ainda ali a ruína onde ninguém nunca vinha onde criança você se escondia à espera do momento de entrar sem ser visto corria e ali se escondia o dia todo numa pedra no meio das urtigas com seu livro de gravuras

C e ali de repente tendo erguido a cabeça aberto os olhos uma enorme pintura a óleo enegrecida pelo tempo empoeirada alguma celebridade homem ou mulher ou criança célebre jovem príncipe talvez ou princesa algum jovem príncipe ou princesa enegrecida pelo tempo atrás do vidro onde aos poucos diante de seus olhos míopes procurando ver mais claro aos poucos emergiu um rosto que lhe fez se voltar sobre a laje ver quem estava ali ao seu lado

B na pedra ao sol olhando o trigo ou o céu ou os olhos fechados nada só o trigo amarelando o céu azul de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio e então as lágrimas antes de secarem totalmente ali de repente no meio dos pensamentos que lhe viam à mente cenas sejam quais forem talvez da infância distante ou do ventre materno a pior de todas ou daquele velho chinês muito antes de Jesus Cristo que já nasceu com longos cabelos brancos

137

C jamais o mesmo depois daquilo jamais exatamente o mesmo mas isso não era nenhuma novidade se não fosse isso era aquilo depois do que você jamais pode ser o mesmo arrastando-se ao longo dos anos atolado em seu eterno lamaçal murmurando a si mesmo quem mais você jamais será o mesmo depois disto você jamais foi o mesmo depois daquilo

A ou conversando consigo mesmo quem mais conversas imaginárias você era ainda uma criança dez onze anos numa pedra no meio das urtigas gigantes entregue às suas invenções ora uma voz ora uma outra até ficar rouco e elas todas soarem iguais noite adentro quando você se esquecia noite escura ou à luz da lua e todos lá fora à sua procura

B ou junto à janela no escuro a ouvir a coruja a cabeça vazia e aos poucos difícil acreditar cada vez mais difícil acreditar que você tenha alguma vez amado alguém ou alguém a você até concluir que essa é mais uma daquelas histórias que você costumava inventar para deter o vazio mais uma daquelas velhas fábulas para que o vazio não viesse cobri-lo com seu sudário

Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração audível. 7 segundos.

C jamais o mesmo mas o mesmo o quê quem pelo amor de Deus alguma vez você se disse eu em sua vida ora vamos (os olhos se fecham, ligeira queda da luz) alguma vez você conseguiu se dizer eu nessa reviravolta que foi a sua vida essa era uma palavra que você sempre carregava na boca antes que ela se calasse para sempre toda a sua vida uma sucessão de reviravoltas na verdade uma única reviravolta a primeira e última aquela vez pequeno verme enrolado na lama de onde eles o arrancaram limparam desenroscaram nenhuma outra reviravolta depois dessa você nunca mais olhou para trás depois disso ou isso foi uma outra vez tudo isso uma outra vez

B recontando suas fábulas a si mesmo aquela vez juntos na pedra ao sol ou aquela vez juntos à beira do rio ou aquela vez juntos nas dunas aquela vez aquela vez e cada vez melhor sempre juntos em algum lugar ao sol à beira do rio diante da foz o sol se pondo os detritos que desciam o rio levados pela correnteza ou detidos pelos caniços o rato morto ou algo assim boiando ao seu encontro levado pela correnteza lentamente até se perder de vista

A aquela vez que você retornou ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia aquela última vez subiu em frente do cais até a rua principal pegar o onze nem à direita nem à esquerda uma única idéia em sua cabeça ao diabo os velhos lugares os velhos nomes cabeça baixa em frente até o alto para se plantar ali o saco de dormir na mão até se dar conta enfim

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C quando você começou a não mais saber quem você era só para ver a que isso levaria não mais saber quem você era sem saber quem estava dizendo o que você dizia de quem o crânio onde você mofava de quem as misérias que o deixaram assim ou isso foi uma outra vez aquela vez sozinho com os retratos dos mortos enegrecidos pelo tempo empoeirados as datas nas molduras para que você não se enganasse de século não podendo acreditar que era você até que o expulsaram dali para debaixo da chuva hora de fechar

B jamais um olhar para o seu rosto ou outra parte jamais um gesto para ela nem dela para você sempre paralelos como nas duas extremidades de um eixo sem nunca se aproximar um do outro como duas leves manchas no limiar do campo sem nunca se tocar ou algo assim sempre um espaço entre vocês por mínimo que fosse nunca juntos como carne e sangue apenas duas sombras nem mais nem menos não fossem as juras

A não havia mais bondes que fazer então nem pensar em perguntar falar com alguém nunca mais em sua vida a pé então curvado até a estação enfim pegar o trem mas ali tudo fechado e trancado o terminal neodórico da ferrovia a colunata em ruínas que fazer então

C a chuva e a eterna andança procurando assim inventá-la inventar assim a si mesmo enquanto avançava tentar ver a que isso levaria não ter existido poderia muito bem levar a isso não ter nunca sido a eterna andança todos os truques possíveis cambaleando murmurando por toda a parte até que a boca se exaurisse a cabeça se exaurisse as pernas se exaurissem de quem quer que elas fossem ou que aquilo desistisse o que quer que aquilo fosse

B imóveis feito mármore sempre imóveis como aquela vez na pedra ou aquela vez nas dunas estendidos paralelos na areia fixando o azul ou os olhos fechados azul escuro azul escuro imóveis feito mármore lado a lado a cena emergia e lá estavam vocês de novo onde quer que fosse

A senão desistir daquilo desistir tombado num degrau sob o pálido sol da manhã não nunca o sol naqueles degraus outro lugar então ir tombar em outro lugar sob o pálido sol um degrau de uma porta o degrau da porta de alguém à espera da noite e da hora de embarcar sair daquele inferno sem precisar dormir em algum lugar ao diabo os velhos lugares os velhos nomes as pessoas boquiabertas ao vê-lo ali até retomarem seu caminho do outro lado da rua

B imóveis feito mármore lado a lado antes de imergir e sumir sem nunca terem se movido como as duas esferas de um haltere exceto as pálpebras e de quando em quando os lábios para jurar amor e tudo ao redor também imóvel onde quer que fosse nada se move nenhum ruído apenas as folhas suavemente no pequeno

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bosque atrás ou as espigas ou os bambus ou os caniços conforme o caso de homem nenhum sinal de homem ou animal nenhum sinal nenhum som

C sempre o inverno então sempre a chuva sempre à espera do momento de entrar sem ser visto para se abrigar da rua do frio da chuva com seu velho casaco verde herança de seu pai nada como os lugares gratuitos a biblioteca municipal uma coisa formidável a cultura gratuita providência dos sem-teto ou o correio esse era um outro um outro lugar uma outra vez

A tombado no degrau da porta com seu velho casaco verde sob o pálido sol o inútil saco de dormir sobre os joelhos sem saber mais onde você estava aos poucos sem saber mais onde você estava nem quando nem por quê sozinho no mundo sem conhecer ninguém como aquela vez na pedra a criança na pedra onde ninguém nunca vinha

Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração audível. 7 segundos.

B ou sozinho nas mesmas cenas inventando-a assim deter conter o vazio na pedra (os olhos se fecham, ligeira queda da luz) sozinho na ponta da pedra com o trigo o azul ou à beira do rio sozinho à beira do rio com os seus fantasmas o rato afogado ou o pássaro ou o que quer que aquilo fosse na correnteza se afastando no fogo do crepúsculo lentamente até se perder de vista nada se move apenas a água o sol morrendo até morrer desaparecer e você com ele e tudo o mais

A ninguém nunca vinha só a criança na pedra no meio das urtigas gigantes a luz coando por uma fresta do muro curvada sobre seu livro noite adentro absorta noite escura ou à luz da lua e todos lá fora à sua procura ou conversando sozinha dividindo-se em muitas para ter uma companhia ali onde ninguém nunca vinha

C sempre o inverno então inverno sem fim o ano todo como se não pudesse acabar o ano agonizante como se o tempo não pudesse avançar aquela vez no correio aquele alvoroço fim de ano tendo esperado o momento de entrar sem ser visto para se abrigar da rua do frio da chuva abriu a porta como outro qualquer seguiu em frente nem à direita nem à esquerda até a mesa com seus formulários e canetas sentar-se no primeiro banco vazio e como sempre uma olhada ao redor antes de tirar um cochilo

B ou aquela vez sozinho deitado nas dunas sem juras para quebrar a paz quando foi antes ou depois antes de ela chegar depois de sua partida ou os dois antes de ela chegar depois de ela ter partido e você de novo na mesma cena onde quer que fosse a mesma velha cena antes ou depois não importa com o rato ou o trigo as espigas amarelando ou aquela vez nas dunas com o planador que passava aquela vez que você retornou pouco depois bem depois

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A onze doze anos na ruína na pedra plana no meio das urtigas noite escura ou à luz da lua a sussurrar ora uma voz ora outra você era ainda uma criança e ali no degrau sob o pálido sol lá está você de novo ao diabo os que passam boquiabertos ao vê-lo ali tombado sob o sol agarrado ao saco de dormir aos brados com suas tolices olhos fechados cabelos brancos que o chapéu não escondia e assim permaneceu sob o pálido sol esquecendo-se de tudo

C medo de ser expulso por não ter motivo para ficar ali sem falar de seu aspecto repugnante olhou por isso de novo ao redor para seus asquerosos semelhantes agradecendo de novo a Deus que apesar de seu péssimo estado você não era como eles até se dar conta aos poucos que por causar repugnância você não deveria ter entrado ali e se exposto àqueles olhares àquelas pessoas que passavam por você como se você não existisse ou isso foi uma outra vez um outro lugar uma outra vez

B o planador que passava nenhuma mudança os mesmos céus sempre nunca nada mudava a não ser ela ali ou não com você à sua mão direita sempre mão direita no limiar do campo e de quando em quando na grande paz bem baixo apenas um murmúrio como ela o amava difícil acreditar que você mesmo você tenha alguma vez conseguido divagar a esse ponto até aquela última vez enfim

A inventando sem cessar a história tombado no degrau da porta inventando a si mesmo reinventando a si mesmo pela milionésima vez esquecendo-se de tudo onde você estava e por que a ruína a ruína de sua infância que lhe fez retornar ver se ela estava ainda ali e de novo nela se esconder à espera da noite e da hora de partir à espera da hora de partir

C a biblioteca essa era uma outra um outro lugar uma outra vez aquela vez à espera do momento de entrar sem ser visto para se abrigar da rua do frio da chuva alguma coisa ali você jamais pode ser o mesmo depois daquilo jamais o mesmo algo a ver com a poeira algo que a poeira lhe disse sentado à grande mesa redonda ao lado de alguns velhos curvados sobre a página e nenhum ruído

B aquela última vez quando você tentou e não conseguiu à janela no escuro a coruja levantou vôo foi piar para algum outro ou voltou à sua árvore oca com alguma cobra no bico e nenhum ruído hora após hora hora após hora nem um único ruído quando você tentou tentou e não conseguiu mais nenhuma palavra para conter o vazio e nada lhe restou a não ser desistir desistir ali à janela no escuro noite escura ou à luz da lua desistir de tudo e deixá-lo vir não foi tão ruim assim o vasto sudário a cobri-lo não foi tão ruim assim não foi o pior de tudo ou quase

A descer de novo até o cais o saco de dormir na mão o velho casaco verde herança de seu pai a arrastar-se pelo chão os cabelos brancos que o chapéu não

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escondia à espera da hora de descer em frente nem à direita nem à esquerda ao diabo os velhos lugares os velhos nomes uma única idéia na cabeça subir a bordo sair daquele inferno e nunca mais retornar ou isso foi uma outra vez tudo isso uma outra vez nunca houve uma outra vez apenas aquela vez sair daquele inferno e nunca mais retornar

C nenhum ruído apenas as velhas respirações o virar das páginas quando de repente aquela poeira o lugar todo repleto de poeira ao abrir os olhos do chão ao teto havia só poeira e nenhum ruído somente o que foi que ela lhe disse veio partiu foi isso algo assim veio partiu veio partiu ninguém veio ninguém partiu apenas veio partiu apenas veio partiu

Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração audível. Sorriso, de preferência desdentado. 7 segundos. A luz se extingue lentamente. Cortina.

NOTA

ABC se sucedem sem nenhuma interrupção, exceto durante 10 segundos nos dois locais indicados. Contudo, a passagem de uma voz à outra deve ser claramente perceptível, ainda que de uma forma suave. Caso as três fontes de origem e o contexto não se mostrarem suficientes para se obter esse efeito, o mesmo deverá ser realizado mecanicamente, amplificando-se, por exemplo, três vezes o som.

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