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Escravidão em Machado De Assis: Uma análise da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas” Rafaela Rodrigues da Silva Carvalho Discente do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas Universidade Federal de Alfenas UNIFAL/MG, [email protected] Daniel do Val Cosentino Docente do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas Universidade Federal de Alfenas UNIFAL/MG, [email protected] Resumo O século XIX foi um período de grandes transformações para o Brasil. Entre sediar a capital do império português, proclamar-se livre e consolidar-se como nação, o debate sobre a abolição da escravatura esteve presente e atuante, contribuindo efetivamente para a construção da História nacional. Com efeito, a escravidão sustentou toda a estrutura produtiva da época, bem como configurou um elemento de contradição social. Se por um lado a elite agrária brasileira aspirava aos padrões culturais da Europa, por outro se valia de mão-de-obra essencialmente escrava, enquanto os europeus já adentravam na forma capitalista de produção. Nesse sentido, é passível de observação o fato de uma obra realista, escrita à época por Machado de Assis, apresentar-se como instrumento de análise da realidade social. Palavras chave: realismo, escravidão, Machado de Assis. Introdução Publicada em 1881, a obra magna de Joaquim Maria Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, inaugurou o realismo no Brasil. O período literário então vigente, a saber, o romantismo, primava pelo caráter heroico e pelo idealismo de suas personagens. O

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Escravidão em Machado De Assis:

Uma análise da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”

Rafaela Rodrigues da Silva Carvalho

Discente do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas – Universidade Federal de Alfenas –

UNIFAL/MG, [email protected]

Daniel do Val Cosentino

Docente do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas – Universidade Federal de Alfenas –

UNIFAL/MG, [email protected]

Resumo

O século XIX foi um período de grandes transformações para o Brasil. Entre sediar a capital

do império português, proclamar-se livre e consolidar-se como nação, o debate sobre a

abolição da escravatura esteve presente e atuante, contribuindo efetivamente para a

construção da História nacional. Com efeito, a escravidão sustentou toda a estrutura produtiva

da época, bem como configurou um elemento de contradição social. Se por um lado a elite

agrária brasileira aspirava aos padrões culturais da Europa, por outro se valia de mão-de-obra

essencialmente escrava, enquanto os europeus já adentravam na forma capitalista de

produção. Nesse sentido, é passível de observação o fato de uma obra realista, escrita à época

por Machado de Assis, apresentar-se como instrumento de análise da realidade social.

Palavras chave: realismo, escravidão, Machado de Assis.

Introdução

Publicada em 1881, a obra magna de Joaquim Maria Machado de Assis, Memórias

póstumas de Brás Cubas, inaugurou o realismo no Brasil. O período literário então vigente, a

saber, o romantismo, primava pelo caráter heroico e pelo idealismo de suas personagens. O

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autor, ao contrário, abusa de recursos gráficos e narrativos, utilizando a ironia como força

motora de seu romance, abarcando todas as fases da vida de um não-herói.

Nascido no seio da elite carioca, Brás Cubas, a personagem central do romance,

contraditória e psicologicamente complexa, reflete um homem com problemas existenciais,

sem nenhuma grande realização. Apresentando-se como um “defunto autor”, Cubas inicia a

narrativa de sua história pelo fim, ou seja, por sua morte. Tal fato rompe a linearidade do

texto, agravado por constantes digressões, que deixam a narrativa mais lenta.

Toda a estrutura de Memórias póstumas, bem como a análise psicológica das

personagens e a interação com o leitor, presente ao longo da narração, contribui para uma

reflexão a respeito da situação miserável da população. Tendo como cenário um Rio de

Janeiro oitocentista, a obra consiste em um retrato da sociedade da época, concentrada na

conjuntura ideológica do Segundo Império. O recurso utilizado por Machado com o fim de

discutir essa sociedade, bem como criticá-la, é a abordagem amiúde da individualidade e da

natureza das personagens.

Nessa discussão, travada em todo romance, percebe-se claramente as relações entre

capitalismo, classes sociais, cientificismo, positivismo e escravidão. O enredo da obra

sustenta-se na história brasileira, de modo a dar significado a ela por meio de referências

implícitas ou explícitas. Portanto, a mensagem político-social do romance configura-se como

um método, uma vez que a ousadia de Machado, expressa em sua forma literária, “onde

lucidez social, insolência e despistamento vão de par, define-se nos termos drásticos da

dominação de classe no Brasil: por estratagema artístico, o autor adota a respeito uma posição

insustentável, que entretanto é de aceitação comum” (SCHWARZ, 2000, p. 10).

Neste sentido, o presente trabalho se propõe a apresentar um levantamento de aspectos

da obra que permitem discutir a escravidão e a posição do escravo no Brasil Imperial a partir

do realismo em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nesta, Machado de Assis apresenta, com

maestria, as contradições de uma sociedade, que, por um lado, aspira à cultura, ao

conhecimento e ao modo de vida europeia, mas que, por outro, se sustenta em um modo de

produção escravista, ou seja, tipicamente colonial.

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Escravidão em Machado De Assis: uma análise da obra “Memórias póstumas de Brás

Cubas”

O triunfo do realismo

O realismo é uma corrente artística que ganhou vida em fins do século XVIII e se

desenvolveu a partir da razão, da ciência e da realidade, priorizando a essência em detrimento

da aparência, tão comum nas artes de então. Marcada por características como denúncia das

injustiças sociais e desprezo pela idealização romântica, o movimento buscava retratar a

realidade tal qual ela era, sem prejuízo de beleza e forma.

Diferentemente do realismo, “o romance como gênero literário é a expressão artística

mais acabada do mundo burguês” (FREDERICO, 1997, p. 41). Com efeito, a nova ordem

social que se formava conferiu à burguesia uma nova postura: ela abraçou os valores

liberalistas, transformando-se em uma elite conservadora, preocupada apenas com a

manutenção da ordem estabelecida. A sociedade então deixou de ser

o palco da história social, dos conflitos e da busca do conhecimento da verdade.

Agora, a sociedade passa a ser vista como uma segunda natureza, como algo fixo e

imutável, e o pensamento se compraz na apologia existente. A democracia é

substituída pelo liberalismo; a economia clássica transforma-se em economia vulgar; o

racionalismo abandona o ideal emancipatório e torna-se uma técnica positiva de

controle social (FREDERICO, 1997, p. 41).

Se por um lado o romantismo se prima pelo idealismo, por outro o realismo se funda

na realidade. Segundo György Lukács, um dos pensadores que mais estudou, pela ótica da

teoria marxista do conhecimento, a ciência das artes – a estética –, o realismo configura-se

como o “único método apropriado para se obter uma representação artística correta”

(FREDERICO, 1997, p. 32). Com efeito, frente ao desafio imposto à arte – “o de refletir a

realidade social, o mundo dos homens, como uma totalidade viva formada pela unidade

contraditória de essência e aparência” (FREDERICO, 1997, p. 34) – o desafio do artista é

mostrar a aparência como um disfarce da essência.

Isso Machado de Assis cumpre com primazia na obra Memórias póstumas de Brás

Cubas, que, no limite, traz uma crítica à sociedade brasileira embasada na realidade social.

Além disso, personagens como Brás Cubas, dotados de uma “ineliminável singularidade,

concentram também certas tendências universais próprias do ser humano, postas num

determinado momento histórico” (FREDERICO, 1997, p. 51).

De fato,

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se quisermos entender a problemática da arte contemporânea, é necessário buscar – por baixo

da superfície dos processos formais, estruturais ou técnicos – a visão do mundo que é

subjacente às várias tendências e, a partir daí, determinar quais as que permitem uma rica e

unilateral reprodução da realidade, a partir da qual se torna possível a criação (ou recriação) de

autênticas estruturas formais, e quais as que não se prestam – por deformarem o real – senão a

um experimentalismo técnico fundado na dissolução da forma (COUTINHO, 1967, p. 25).

Uma vez que a arte, essencialmente uma forma ideológica, compõe a superestrutura

em lugar da base econômica; em uma sociedade repartida em classes antagônicas, ela

encontra-se atrelada a determinados interesses das classes sociais ditas dominantes. Porém,

sua manifestação carece de ganhar forma, de modo que as ideias políticas, bem como morais

ou religiosas precisam se integrar a uma estrutura artística ou a uma totalidade que possui sua

legalidade própria (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011).

Ilustrando tal conceito, Machado apresenta nas Memórias as três classes existentes no

Brasil do século XIX: a dominante, a dos escravos e a dos trabalhadores livres; bem como

suas relações sociais. A primeira, a elite agrária, é representada pelo próprio Brás Cubas; a

segunda, tanto dos negros escravizados quanto dos livres, é figurada por Prudêncio; e a

terceira, referente à classe livre, embora dependente economicamente e por isso também

basilada na escravidão, encontra-se Dona Plácida, uma agregada de Brás e sua amante.1

Classificadas como atuações sociais, as categorias, para captar a realidade não devem,

portanto, “ser construções abstratas a priori [...]: elas devem, inicialmente, emanar da própria

realidade. Algo só é verdadeiro para o pensamento porque existe efetivamente na realidade”

(FREDERICO, 1997, p. 49).

De acordo com Celso Frederico (1997, p. 53), situações e personagens típicas são

atributos básicos da “grande literatura realista sensível às mutações históricas, sempre

contraposta [...] à literatura menor que só consegue criar personagens e situações médias,

fixas e estereotipadas”. Por conseguinte, a partir do pensamento marxista, qualquer gênero

artístico é realista na medida em que constitui de forma singular “a totalidade das

determinações do reflexo estético da realidade objetiva” (COUTINHO, 1967, p. 107).

Se o romance é tipicamente realista, o Machado consegue, na obra, cruzar os destinos

individuais das personagens – enquanto seres sociais – com as possibilidades concretas dadas

pelo desenvolvimento da sociedade, além de, seguindo o desenrolar de tais destinos, revelar

1 A obra apresenta também outras personagens que compõem a estrutura da sociedade brasileira, como Virgília,

a amante de Brás, e seu pai, o Conselheiro Dutra, quase uma representação do governo oitocentista; Marcela,

uma prostituta espanhola que foi o primeiro amor de Brás, amando-o “durante quinze meses e onze contos de

réis” (Cap. 17); Eugênia, a “flor da moita” coxa que só não foi desposada pelo narrador por possuir essa

deficiência; e Quincas Borba, um amigo de infância que o reencontra muitos anos depois, mendigo, e dono de

uma nova filosofia de vida: o Humanitismo. Porém, neste trabalho será apresentado apenas as personagens que

representam as classes sociais na sociedade escravista carioca, alvos de maior crítica social.

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as forças sociais que atuam em uma época determinada da história de uma sociedade

(FREDERICO, 1997, p. 52). Com efeito, por ser o primeiro a conseguir tal feito no Brasil, o

autor é quem faz triunfar o realismo no país.

A sociedade escravista brasileira

Para entender as Memórias póstumas de Brás Cubas, é necessário primeiro

compreender o contexto histórico pelo qual atravessava o Brasil, contexto esse vivido por

Machado de Assis. A obra foi publicada em 1881, porém sua personagem principal, Brás

Cubas, viveu de 1805 a 1869, de modo que presenciou episódios importantes da história do

país. Ademais, “entre a morte do ‘defunto autor’, em 1869, e o aparecimento do texto, em

18802, houve acontecimentos políticos e sociais decisivos da década de 1870, os quais

conformam, de fato, o conteúdo e o tom do relato de Brás” (CHALHOUB, 2003, p. 97).

Portanto, faz-se mister discutir e analisar os principais elementos constitutivos da sociedade

escravista brasileira ao longo do século XIX.

Em 1808, a Corte portuguesa chega ao Brasil fugida da França e com ajuda da

Inglaterra, fazendo do Rio de Janeiro a capital da Monarquia portuguesa. A partir de então, o

Príncipe Regente Dom João VI adota medidas que representaram mudanças significativas na

estrutura econômica brasileira. Em 1822, é declarada a Independência e o Rio de Janeiro

torna-se a capital do Império brasileiro.

Nem a chegada da Coroa Portuguesa, nem a declaração da Independência, porém,

foram suficientes para mudar a condição dos escravos. Apesar dos tratados de independência

elaborados com apoio da Inglaterra exigir o fim do tráfico negreiro até 1827, o governo

Imperial não tomaria ação efetiva para romper com a estrutura social do país. Desde o século

XVI, com o sistema de plantation nas lavouras de açúcar3, a economia brasileira se assentava

2 A obra apareceu primeiramente em um jornal do Rio de Janeiro, em 1880. Porém, ela só foi publicada no ano

seguinte, em 1881. 3 Inicialmente a mão-de-obra escrava utilizada nas plantações de açúcar no nordeste brasileiro era de índios

nativos. Os negros africanos chegaram “para a expansão da empresa, que já estava instalada. É quando a

rentabilidade do negócio está assegurada que entram em cena, na escala necessária, os escravos africanos: base

de um sistema de produção mais eficiente e mais densamente capitalizado.” (FURTADO, 2007, p. 77). Ver

também Prado Junior (1994).

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em uma estrutura de produção essencialmente escravista4. Três séculos depois, no século

XIX, a estrutura produtiva permanecia a mesma, com os negros agora nas lavouras de café.

De qualquer forma, a defesa progressista do tráfico de escravos implicava “problemas

ideológicos difíceis de resolver, e encarnava a parte de afetação e afronta que acompanha a

vida das ideias nas sociedades escravistas modernas”. Analogamente “a ambivalência tinha

fundamento real, e Machado de Assis, conforme se verá, soube imaginar-lhe as virtualidades

próximas e remotas” (SCHWARZ, 2000, p. 30).

Nas Memórias, Machado demonstra que a situação apresenta maiores contradições

quando a sociedade aspira a padrões culturais e intelectuais vinculados à liberdade, mas

permanece ancorada e estruturada a partir da escravidão e com uma economia com

características coloniais.5 Tal situação evidencia a contradição primeira da nossa sociedade

que, nos termos em que desenvolveu o capitalismo, de maneira incompleta, “resultou numa

economia vulnerável e dependente externamente, que se reflete até hoje em um país

subdesenvolvido com problemas sociais, em fome e miséria para grandes contingentes

humanos” (COSENTINO, 2006, p. 12).

A despeito da pressão exercida pela Inglaterra em favor do fim da escravidão, foi

apenas em 1850, aos quatro de setembro, que se instituiu a Lei Eusébio de Queiroz, abolindo

o tráfico de escravos no Brasil. Desse modo, “extinta a fonte principal de fornecimento de

mão-de-obra para o sistema escravista, este tenderia a acabar” (COSENTINO, 2006, p. 17). A

extinção do tráfico acarreta “outro efeito direto: põe termo ao longo conflito com a Inglaterra;

e das relações políticas que então se estabelecem com aquele país, resultará novo afluxo de

suas iniciativas e capitais para o Brasil” (PRADO JÚNIOR, 1994, p. 154). No entanto, as

ações realizadas contra o tráfico, consistiam apenas em medidas para adiar a abolição

definitiva, resguardando os interesses dos grandes senhores de terra.

Além da pressão dos ingleses, o sucesso da lei se deveu a fatores internos, tais como o

descontentamento dos agricultores quanto aos preços elevados dos escravos, dado às

constantes capturas dos navios negreiros pela Inglaterra; bem como a submissão destes aos

traficantes, que, porque haviam se tornado “uma potência financeira, e apesar do desprestígio

4 A grande diferença entre os trabalhos livre e escravo consiste no fato de, no primeiro, o trabalhador ser

desprovido dos meios de produção, motivo pelo qual é obrigado a vender sua força de trabalho como

mercadoria, ou seja, em troca de salário. Já no regime escravista, o escravo é ele próprio uma mercadoria, no

sentido de ser comprado, vendido, e ter todo o produto do seu trabalho apropriado por seu dono. Ver Cosentino

(2006). 5 É importante ressaltar a incoerência do pensamento liberal brasileiro que “criticava o absolutismo e o

colonialismo de um lado, pregando o rompimento dos laços coloniais, mas por outro, mantendo a escravidão

como elemento unificador da sociedade imperial que se formara com a emancipação política.” (COSENTINO,

2006, p. 14).

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social que os cercava, faziam sombra com seu dinheiro às classes de maior expressão política

e social do país” (PRADO JÚNIOR, 1994, p. 152), a saber, fazendeiros e grandes

proprietários de terras, que são devedores àqueles.

Duas semanas após a extinção do tráfico de escravos, foi promulgada a Lei de Terras,

com o fim de regulamentar o direito sobre a propriedade no Brasil. Até então, a apropriação

territorial se dava por meio da posse, na qual os grandes proprietários aumentavam seus

domínios se apossando das terras dos demais. Este período “estruturou de forma definitiva o

latifúndio, que tinha base no poder local e se valia da ausência estatal” (COSENTINO, 2006,

p. 26).

Uma vez que a questão agrária sempre esteve ligada à discussão da mão-de-obra, a Lei

de Terras nasceu como um complemento à abolição do tráfico, primeiro porque “tudo que o

escravo representava em termos de mercadoria e capital imobilizado deveria ser substituído

pela terra”, e depois porque “o fim do tráfico colocava em questão o fim do trabalho escravo

e, consequentemente, a transição para o trabalho livre” (COSENTINO, 2006, p. 28). A lei,

então, foi essencial para a inserção do trabalho assalariado no Brasil.

A todo o momento o governo tentava alterar o status quo da sociedade, atendendo,

para isso, aos críticos da escravidão, mas sem prejudicar as lavouras e os interesses dos donos

dos cativos. Com efeito, em 28 de setembro de 1871, foi criada a Lei Rio Branco, mais

conhecida como Lei do Ventre Livre. Essa medida declarava livres os filhos dos negros

nascidos após a sua vigência, contanto que, mantidos sob os “cuidados” dos senhores até os

oito anos de idade, trabalhassem até os vinte para pagarem a “educação” recebida. Os donos

poderiam optar, ainda, por receberem uma indenização do Estado (PRADO JÚNIOR, 1994;

COSTA, 2001).

Essa lei, mais uma vez, configurava uma manobra essencialmente política,

caracterizada pela astúcia do governo em alcançar seus objetivos atendendo a interesses tanto

de liberais quanto de conservadores. Nesse sentido, a medida não percutiu efeitos imediatos,

já que os escravos seriam libertos após os vinte e um anos de idade. Essa proteção ao

proprietário adiou a discussão da libertação definitiva dos cativos.

Em consequência disso, em 1879, foi criada a Lei de Locação e Serviços, como uma

forma de organização do trabalho assalariado. Essa lei regulamentava o trabalho dos

imigrantes, incentivado pelo governo, bem com o trabalho dos nacionais, por meio de

contratos que durariam, para estes, de três a seis anos, e, para aqueles, o máximo de cinco

anos, podendo ser renovados. A lei visava atrair os imigrantes, iniciando um processo de

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imigração europeia, para dar respostas mais favoráveis aos trabalhadores mas sem deixar de

ser repressivo (COSENTINO, 2006). Por outro lado, a reorganização do mercado de trabalho

tirou a atenção do fim da escravatura.

A última medida antes de tal fim, a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe,

datada de 28 de setembro de 1885, estipulava que os escravos acima de 60 anos seriam

libertos, contanto que ou trabalhassem mais três anos ou pagassem uma multa a seus donos,

podendo ser dispensados caso chegassem aos 65 anos (COSENTINO, 2006). Essa “foi uma

tentativa desesperada daqueles que se apegavam à escravidão para deter a marcha do

processo” (COSTA, 2001, p. 70). No limite, a liberdade dos sexagenários continuava

condicionada às vontades dos senhores.

A partir de 1880, o movimento abolicionista ganhou grande força frente à sociedade,

invertendo os papéis de escravos e de senhores: agora estes apresentavam-se como algozes e

aqueles como vítimas. A justiça passava a olhar com maus olhos a escravidão a despeito dos

senhores, e os próprios escravos contestavam cada vez mais a legitimidade de sua situação,

bem como reivindicavam sua liberdade. Não suportando as pressões, aos treze de maio de

1888, foi assinada pela Princesa Isabel a Lei Áurea, abolindo definitivamente a escravidão no

Brasil (COSTA, 2001; PRADO JÚNIOR, 1994).

Notas sobre escravidão em Memórias póstumas de Brás Cubas

À guisa de observação inicial, faz-se necessário entender o foco narrativo utilizado por

Machado de Assis na condução do romance. A vontade de chamar a atenção predomina desde

o título, configurando um contrassenso, uma vez que os mortos não escrevem. O “defunto

autor”, Brás Cubas, impressiona por sua ousadia e indiferença, denunciada já no prólogo –

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança

estas memórias póstumas”. Nesta passagem, a dedicatória aos vermes – um desrespeito –

deixa claro que, para o finado, não há ninguém digno de ser lembrado, declarando o

pessimismo da obra. Do mesmo modo, é quase um desrespeito a maneira íntima com que,

logo de início, é tratado o leitor caso não goste do romance: “pago-te com um piparote, e

adeus” (Schwarz, 2000; Barreiro, 2011). Analogamente, a volubilidade da personagem, usada

pelo autor como base do texto6, constitui “a fórmula narrativa de Machado consiste em certa

6 A volubilidade aqui consiste em uma “feição geral a que nada escapa, sem prejuízo de ser igualmente uma

tolice bem marcada, de efeito pitoresco, localista e atrasado. Ora funciona como substrato e verdade da conduta

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alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista

produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira” (SCHWARZ, 2000, p. 19).

Nesse sentido, fugindo de características próprias do romantismo, o autor apresenta

um anti-herói humano e contraditório, que interage e dá respostas ao ambiente no qual vive. A

exemplo disso faz-se digno de nota o emplasto criado pelo narrador, que foi, segundo ele, o

verdadeiro motivo da sua morte.

Essa ideia era nada menos que um medicamento sublime, um emplasto anti-

hipocondríaco, destinado a aliviar nossa melancólica humanidade. Na petição de

privilégio que então redigi, chamei a atenção para esse resultado, verdadeiramente

cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar

da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que

estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente

foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas

caixinhas de remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu

tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me

arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis.

Assim, minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público,

outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada.

Digamos: — amor da glória. (Cap. 2)

Apresentado como um medicamento cheio de motivos nobres, o emplasto é na

verdade um capricho do “defunto autor”, que almejava ver seu nome estampado nos jornais.

Se por um lado o emplasto assumia esse caráter particular, envolto em glórias para Brás, por

outro é também “destinado a aliviar nossa melancólica humanidade”. Com efeito, “Machado

de Assis parece desvendar, finalmente, o que parecia obscuro: suas personagens não serão

dadas ao extremo da bondade ou da vilania, mas um misto de atitudes que, aos olhos de todos,

parecem dignas e, simultaneamente, sob a observação do narrador, mesquinhas, dedicadas ao

regozijo particular” (BARREIRO, 2011, p. 4).

Nascido em uma família abastada, Brás Cubas, desde muito cedo, recebera a

qualificação de “menino diabo”, o que de fato fora. Entre traquinagens e indiscrições, o

garoto, cheio de vontades, recebera muitos mimos de seu pai. Na primeira passagem da obra

referente a escravos, o narrador conta que, com apenas seis anos, quebrara a cabeça de uma

negra porque esta lhe negou uma colher de doce. Logo em seguida, Brás descreve sua relação

com um garoto escravo:

Prudêncio, um moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no

chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com

uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, –

humana, contemporânea inclusive, que só não reconhecem os insanos, ora como exemplo de conduta ilusória,

um tanto primitiva, julgada sobre fundo de norma burguesa e utilizada como elemento de cor local e sátira. Esta

incerteza de base, longe de ser um defeito, é um resultado artístico de primeira força, que dá a objetividade da

forma a uma ambivalência ideológica inerente ao Brasil de seu tempo”. (SCHWARZ, 2000, p. 31).

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algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um –

“ai, nhônhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!” (Cap. 11)

O fato de Brás pertencer à elite agrária, somado à idolatria que seu pai nutria por ele,

não deixam dúvidas de que a personagem não poderia ser diferente. Ademais, “o defunto

autor parece ter que, por princípio, fazer observações pessimistas sobre a natureza humana —

e sobre ele mesmo — regadas de ironia que divertem e deprimem” (BARREIRO, 2011, p. 4).

Neste sentido, o fato de Brás usar um negro como cavalo e/ou brinquedo, ao ponto de bater-

lhe com uma vara, demonstra a semelhança de Prudêncio com um animal ou objeto, já que

ambos são tratados da mesma forma.

Tal fato alude ao rigor sem lacunas com que Machado de Assis submeteu a

configuração do romance realista aos “imperativos da volubilidade, rigor em que a parte da

amargura e da descrença em face da sociedade contemporânea é grande, deu margem por sua

vez ao aproveitamento de formas bonachonas e bem aceitas de espelhamento social”

(SCHWARZ, 2000, p. 34). De fato, uma vez que a sociedade brasileira do século XIX é

sustentada pela escravidão, assuntos referentes a escravos são corriqueiramente discutidos,

como em uma festa dada pelo pai do pseudo-autor que, ainda criança, ouve um sujeito dar

notícia a outro sobre o tráfico de escravos que,

segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta que o sobrinho lhe dizia ter já

negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Trazia-as justamente na

algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos

contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. (Cap. 12)

Fica evidente, assim, a condição dos negros no Brasil oitocentista. O modo como, em

uma reunião entre amigos, os escravos são mencionados não deixam dúvidas quanto a sua

dominação pelos possuidores de terras. Mais que isso, fica expressa a sua coisificação,

enquanto comparados a gado, já que diz que se havia negociado “cerca de quarenta cabeças”.

Ainda sobre a condição dos negros, pouco depois, com a morte de seu pai, Brás e sua

irmã, Sabina, casada com o Cotrim, vão fazer a partilha dos bens deixados pelo finado.

Quando de uma discussão quanto ao valor dos imóveis, Sabina pondera:

— Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos

arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, Cotrim não aceita os pretos,

quer só o boleeiro de papai e o Paulo...

— O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.

— Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.

— O Prudêncio está livre.

— Livre?

— Há dois anos.

— Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém!

Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata? (Cap. 46)

11

Vale lembrar que, a essa época, os escravos representavam o maior capital imobilizado

que existia. Isso significa que eles valiam mais que a própria terra, cuja regularização só foi

ocorrer em 1850 com a Lei de Terras. Sinônimo de status, a posse dos cativos definia a

composição social da elite carioca. Na passagem acima, cujos escravos são deixados como

parte dos bens, a discussão entre os irmãos gira em torno da prataria, que se apresentava tão

ou mais valiosa que os negros. A exemplo disso, o boleeiro, dito acima, que não é tratado nem

pelo nome, só é conveniente enquanto condutor da sege, o que expressa a frase de Brás

quando este diz que fica com a sege e não há de comprar outro boleeiro. A frase sintomática

de Cotrim, quanto à libertação de Prudêncio, a besta da infância do narrador – “creio que não

libertou a prata?” – evidencia mais uma vez a ironia da obra tanto ao escarninho frente à

libertação de Prudêncio, quanto à comparação deste novamente com um objeto: a prata.

O fato de Cotrim não abrir mão dos escravos mesmo em favor da prataria e mesmo

não gostando deles, evidencia quão importante são os cativos na estrutura da sociedade

brasileira, cuja determinação abarca também as relações sociais dos indivíduos. Com efeito, o

cunhado de Brás, típico cidadão carioca,

Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de

bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência

escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só

mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado

escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de

negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem

o que é puro efeito das relações sociais. (Cap. 123)

Neste sentido, Cotrim só era bárbaro para os seus inimigos, que o alegavam cruel no

trato com os escravos. Como um estratagema para abrandar a conduta do cunhado, Brás

afirma que este só mandava ao calabouço “os perversos e os fujões”; e apenas porque “esse

gênero de negócio requeria”. Cotrim, boa pessoa, só era impiedoso com os escravos, como se

estes não carecessem de bondade, uma vez que se apresentavam não como indivíduos, e sim

como mercadorias. Mas de modo algum se pode “atribuir à índole original de um homem o

que é puro efeito das relações sociais”.

Com efeito, “embora desrespeitoso de restrições, o espírito negador não agride as

iniquidades consagradas pela História; mas, a julgar pela conduta do memorialista, é certo que

livra a classe dominante da obrigação para com os dominados, dando-lhe latitude total à

irresponsabilidade” (SCHWARZ, 2000, p. 43). Ademais, à época em que foi publicada as

Memórias, “as ideias abolicionistas eram aventadas no Brasil já fazia tempo e, ciente de que

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havia contradição em divulgá-las num país que se dizia liberal, Brás Cubas justifica as duras

punições de Cotrim chamando-as puro efeito de relações sociais”7 (BARREIRO, 2011, p. 8).

Os paradoxos de um país em efervescência ideológica são ainda mais gritantes quando

o narrador encontra Prudêncio.

Interrempou-mas [as reflexões] um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro

na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: – “Não,

perdão, meu senhor; meu senhor, perdão”! Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada

súplica, respondia com uma vergalhada nova.

– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

– Meu senhor! gemia o outro.

– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o vergalho? Nada menos que o meu

moleque Prudêncio, – o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele

deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

– É sim, nhonhô.

– Fez-te alguma coisa?

– É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto

eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

– Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

– Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui

caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido;

aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos

alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só

exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo

gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das

pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe

um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém,

que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar,

dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um

escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as

sutilezas do maroto! (Cap. 68)

Nessa passagem, Prudêncio se apresenta como dono de outro negro, situação difícil de

ocorrer dado o alto preço dos cativos. Por outro lado, o fato de o “moleque de Brás” possuir

um escravo ao mesmo tempo em que demonstra a sua pseudo ascensão social, cuida das

relações existentes entre senhores e servos, estas em detrimento das de negro para negro.

Assim, há um considerável “elemento em comum nas políticas de domínio exercidas sobre

escravos e dependentes: em ambos os casos, e permanecendo sempre na ótica da classe dos

senhores e proprietários, as relações sociais de dominação estão assentadas no pressuposto da

inviolabilidade da vontade senhorial” (CHALHOULB, 2003, p. 51).

O momento que melhor demonstra isso é quando, a despeito de também ser negro e já

ter sofrido punições semelhantes, Prudêncio bate em seu escravo; mas quando Brás se acerca

da situação, o outro, mesmo livre, lhe pede a bênção, e, como se não bastasse, atende ao

7 Grifo do autor.

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pedido do narrador e perdoa o bêbado incontinenti, dizendo submissamente: “– Pois não,

nhonhô. Nhonhô manda, não pede”.

Na verdade, o fato de Prudêncio também ser negro e já ter sofrido punições

semelhantes é o verdadeiro motivo da coação exercida sobre seu escravo. Conclusão a que

chega o próprio narrador depois de mais uma digressão, “era um modo que o Prudêncio tinha

de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro”. E ainda Brás arremata com

um “veja as sutilezas do maroto!”, como se de fato essa fosse a melhor forma de sua besta

sentir-se como gente.

Uma vez que “a chave para se compreender a obra de Machado de Assis está na

compreensão do antagonismo de classe, bem como na intriga e no sistema de relações sociais”

(SCHWARZ, 2000, p. 41), o autor atribui ao leitor a tarefa de refletir sobre a condição do

negro no país. Nesse sentido, ao centrar suas histórias nesses antagonismos, entre senhores e

dependentes/agregados, o autor abordava, “na verdade, a lógica de dominação que era

hegemônica e organizava as relações sociais no Brasil oitocentista, incluído aí o problema do

controle de trabalhadores escravos, a ‘relação produtiva de base’” (CHALHOULB, 2003, p.

57).

No limite, “o romance não busca fixar a contradição, e muito menos a transformação,

mas o progressivo desgaste no entusiasmo com que um parasita abocanha a sua parte nas

vantagens da iniquidade social, cujo limite não está à vista” (SCHWARZ, 2000, p. 48).

Assim, “a pintura aprofundada de um tipo obriga à esquematização da correspondente

estrutura histórica. Para dar vida ao protagonista foi preciso trazer à cena um elenco de

personagens que em certo plano resumisse a sociedade nacional” (SCHWARZ, 2000, p. 47).

Das relações sociais de Brás, se Prudêncio reflete os escravos da sociedade, a

personagem que representa a classe social dita livre, mas dependente economicamente, é

Dona Plácida, uma agregada responsável por cuidar da casa dos amores de Brás com Virgília.

Porém,

Custou-lhe muito aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício; mas afinal

cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que

não levantou os olhos para mim durante os primeiros dois meses; falava-me com eles

baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me dava por

ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolência,

depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma história patética dos

meus amores com Virgília, um caso anterior ao casamento, a resistência do pai, a

dureza do marido, e não sei que outros toques de novela. Dona Plácida não rejeitou

uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciência. Ao

cabo de seis meses quem nos visse os três juntos diria que Dona Plácida era minha

sogra.

Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, - os cinco contos achados em

Botafogo, - como um pão para a velhice. Dona Plácida agradeceu-me com lágrimas

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nos olhos, e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de uma

imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo. (Cap. 70)

Como o pressuposto da inviolabilidade das pretensões senhoriais estava evidente nas

políticas de dominação de escravos bem como de dependentes e agregados, e como a

escravidão é a expressão máxima da dependência, a situação dos agregados, como Dona

Plácida, se configura a partir da condição dos escravos. (CHALHOULB, 2003). Por isso Dona

Plácida acaba aceitando pactuar com o adultério, pois ela tem ciência de que é o melhor que

pode conseguir, dada sua condição de classe.

A agregada talvez seja o alvo das críticas mais ferozes do “defunto autor”

(BARREIRO, 2011), mas ao mesmo tempo as críticas à Dona Plácida conferem censuras ao

funcionamento mesmo da sociedade brasileira. Frente à desigualdade social, qualquer

argumento universalista é “posto à prova, fazendo papel de escandalosa desconversa, tanto

mais interessante quanto o seu ânimo é esclarecido”. Desse modo, “a atividade explicativa nas

Memórias nunca é desinteressada: a satisfação que proporciona a seu sujeito é causa de uma

nota risonha, ao passo que o seu papel especioso no relacionamento entre as classes é causa

de uma nota ignóbil” (SCHWARZ, 2000, p. 45).

Portanto, refletindo sobre a existência da agregada, Brás conjetura que

‘Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia

ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas

inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça. Pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias

de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias

vadias brotou Dona Plácida. E de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando

nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: - Aqui estou. Para que me

chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: - Chamamos-te

para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer,

andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando com o fim de tornar a

adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas

sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no

hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia’. (Cap. 75)

Com efeito, Machado manifesta em Brás certo preconceito e indiferença quanto aos

pobres, dada a inutilidade de suas vidas; bem como uma ironia gritante frente à realidade

social, já que Dona Plácida foi chamada a uma vida de privações e dificuldades “num

momento de simpatia”.

Quando da morte da agregada, muitos anos depois, sozinha e doente sem ajuda de

ninguém, Brás pondera novamente sobre a vida de Dona Plácida, se de fato foi “para isto que

o sacristão da Sé e a doceira trouxeram Dona Plácida à luz, num momento de simpatia

específica.”

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Mas adverti logo que, se não fosse Dona Plácida, talvez os meus amores com Virgília

tivessem sido interrompidos, ou imediatamente quebrados, em plena efervescência; tal

foi, portanto, a utilidade da vida de Dona Plácida. Utilidade relativa, convenho; mas

que diacho há absoluto nesse mundo? (Cap. 144)

A utilidade de Dona Plácida, para Brás, se deu apenas pelo fato de ela ter ajudado em

seu relacionamento com uma mulher casada. Ou seja, para o membro da alta sociedade, a

função da agregada foi de existir unicamente para colaborar com a sua infidelidade.

“Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse mundo?”

Segundo Schwarz (2000, p. 48), a obra de Machado põe a nu “o caráter sistemático

destas afrontas, em cujas implicações o descompromisso da classe dominante brasileira para

com os seus dependentes e também para com a própria norma burguesa se teatraliza e expõe

radicalmente, até a última consequência, sem fugir a culminações abjetas.” Este fato, como

todo o romance, aclara a “correspondência entre o estilo machadiano e as particularidades da

sociedade brasileira, escravista e burguesa ao mesmo tempo” (SCHWARZ, 2000, p. 10).

Com efeito, as Memórias póstumas de Brás Cubas manifestam-se como um

instrumento de análise social na medida em que apresentam uma sociedade cheia de mazelas

e problemas sociais, regida por leis contraditórias e desumanas, em favor de uma pequena,

mas dominante, parcela da população. Machado de Assis, ao inovar no uso de recursos de

escrita e método, inaugurando o realismo, propõe uma leitura crítica e analítica da realidade

no Brasil, o que consegue, não sem brilhantismo, através de seu Brás Cubas.

Considerações finais

Uma vez que se configura sob os moldes realistas, a obra Memórias póstumas de Brás

Cubas se apresenta como explicação da realidade brasileira. Como foi dito, a elite agrária se

sustentava através da mão-de-obra escrava e, em consequência disso, toda a estrutura social

gravitava em torno dessa estrutura produtiva, essencialmente servil.

Nessa sociedade, Machado de Assis apresenta a condição de classe do escravo,

descrito na figura de Prudêncio, como mera mercadoria de composição dos modos produtivos.

Comparados a máquinas, animais e objetos – ou seja, propriedade privada –, os negros estão

submetidos às vontades de seus senhores. Tal relação de dominação é sintomática, porque se

por um lado os escravos são tratados como sub-humanos, como coisas, por outro são eles

quem produz toda a riqueza de seus senhores e, no limite, fazem a sociedade funcionar.

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Não obstante, a própria condição da classe pobre, dita livre, encontra-se indiretamente

dependente da escravidão, já que a manutenção do escravismo do Brasil dificultou o

desenvolvimento do capitalismo. O novo sistema socioeconômico, pautado pelo capital,

precisa de elementos básicos para se formar, como mercado interno e mão-de-obra livre.

Como ainda não há nenhum desses elementos no Brasil, pelo menos em intensidade

significativa, a classe dos agregados e dependentes, desprovidos dos meios de produção e sem

poder vender sua força produtiva, também fica a mercê da elite dominante, como é o caso de

Dona Plácida.

Mostrando as incoerências da sociedade escravista, explicitadas nos contrastes entre a

situação de escravos e dependentes e a justificação e defesa de seus dominadores, Machado de

Assis, usando de uma ironia gritante, e uma complexa volubilidade da personagem central,

Brás Cubas, faz ferrenhas críticas à realidade, ao mesmo tempo em que convida os leitores a

refletirem sobre tal situação. Com efeito, e não sem mérito, Machado é considerado o mestre

do realismo no Brasil.

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Referências

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