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ESCOLA SUPERIOR DOM HELDER CÂMARA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CLÁUDIA FERREIRA DE SOUZA OCUPAÇÕES IRREGULARES EM ÁREAS URBANAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE À LUZ DO DIREITO E DA ÉTICA AMBIENTAL Belo Horizonte 2013

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ESCOLA SUPERIOR DOM HELDER CMARA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

CLUDIA FERREIRA DE SOUZA

OCUPAES IRREGULARES EM REAS URBANAS DE PRESERVAO

PERMANENTE LUZ DO DIREITO E DA TICA AMBIENTAL

Belo Horizonte

2013

SOUZA, Cludia Ferreira de.

S719o

Ocupaes irregulares em reas urbanas de

preservao permanente luz do direito e da tica

ambiental/ Cludia Ferreira de Souza. 2013.

148 f.

Orientador: Bruno Torquato de Oliveira

Naves.

Dissertao (mestrado) - Escola Superior Dom

Helder Cmara ESDHC.

Referncias: f.140 - 148.

1. rea de preservao permanente 2. Moradia 3. Biotica Ambiental 4. Direito Ambiental

5. tica Ambiental. I.Ttulo

CDU 349.6:17

Bibliotecria responsvel: Fernanda Loureno CRB 6/2932

CLUDIA FERREIRA DE SOUZA

OCUPAES IRREGULARES EM REAS URBANAS DE PRESERVAO

PERMANENTE LUZ DO DIREITO E DA TICA AMBIENTAL

Dissertao apresentada ao programa de Ps-graduao em

Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentvel da

Escola Superior Dom Helder Cmara, como requisito

parcial obteno do ttulo de Mestre em Direito.

Linha de Pesquisa: Direito, Sustentabilidade e Direitos

Humanos.

Orientador: Prof. Dr. Bruno Torquato de Oliveira Naves.

Belo Horizonte

2013

FOLHA DE APROVAO

Dissertao intitulada OCUPAES IRREGULARES EM REAS URBANAS DE

PRESERVAO PERMANENTE LUZ DO DIREITO E DA TICA AMBIENTAL

de autoria da mestranda CLUDIA FERREIRA DE SOUZA defendida e aprovada em

24.06.2013, pela banca examinadora constituda pelos seguintes professores:

Prof. Dr. Bruno Torquato de Oliveira Naves Orientador

Prof Gregrio Assagra de Almeida.

Prof. Beatriz Souza Costa

Nota: _____________________

Dedico este trabalho ao meu marido, Emerson, meu

maior incentivador nesta jornada.

A meus filhos, Clara e Tiago, fontes de inspirao e

aprendizado. minha me, Eni, pelo amor e apoio

incondicionais.

AGRADECIMENTOS

Escola Superior Dom Helder Cmara, por ter me oferecido o instrumental necessrio para

realizao deste projeto.

minha famlia, pelo apoio e carinho de sempre.

Ao professor Bruno Torquato, pela pacincia, ajuda e crtica positiva.

Ao professor, Gregrio Assagra, pelo incentivo e colaborao.

Aos colegas e professores do mestrado, pela acolhida e pelos momentos que partilhamos nesta

jornada.

A minha amiga Lilian Marotta, pelo companheirismo e incentivo em todas as horas.

A todos, muito obrigada.

Somos o que fazemos e, sobretudo, o que fazemos

para mudar o que somos.

Eduardo Galeano

RESUMO

O presente trabalho analisa o conflito entre o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito

moradia, naquelas situaes em que a populao de baixa renda, na busca de um local para

morar, ocupa rea de preservao permanente urbana. Pretende-se demonstrar como a

formao das cidades sofreu forte influncia do paradigma antropocntrico e, ainda, como

nesse processo de crescimento das cidades, no se teve um olhar especfico para a populao

de baixa renda, que foi direcionada para locais de menor valorizao imobiliria, coincidente,

muitas das vezes, com as reas de preservao permanente. Analisa-se a forte influncia do

elemento cultura na relao do homem com a natureza e como tem sido percebidos os riscos

criados pelas atividades humanas, com destaque para a discusso sobre como se pode avanar

no campo cientfico e tecnolgico sem comprometer o futuro da prpria natureza humana.

Cuida-se de verificar o ordenamento jurdico brasileiro em matria de proteo ambiental e

moradia e o dever fundamental atribudo a todos de preservao do meio ambiente

ecologicamente equilibrado para a gerao atual e para as futuras. No escopo do problema

apresentado, busca-se uma reflexo com base na Biotica, verificando sua origem e seus

pressupostos fundamentais, ao tratar da intrincada relao do homem com os demais seres

vivos e a natureza. Em seguida, na busca de soluo para o conflito entre os direitos

fundamentais ao meio ambiente e moradia, procura-se demonstrar a contribuio da

Biotica ambiental nessa seara e a importncia de sua aplicao para a formao do estado de

direito ambiental, por meio da informao, educao, desenvolvimento e efetivao da

autonomia da populao, no exerccio da democracia ambiental.

Palavras-Chave: relao homem-natureza; cidades; rea de preservao permanente urbana;

meio ambiente; cultura; moradia; biotica ambiental; informao; educao ambiental; dever

fundamental de proteo ao meio ambiente; democracia ambiental; estado de direito

ambiental.

ABSTRACT

The present study analyses the conflict between the balanced environment and the right do

housing, in those situations that the low income population, in the search for a place to live,

occupies permanent preservation urban area. It is intended to demonstrate how the formation

of cities has undergone strong influence of the anthropocentric paradigm and, also, how, in

this process of growth of cities, there was not a specific look to the low income population

that has been directed to less real state value places coincident, most of the times, with areas

of permanent preservation. It is analyzed the strong influence of culture element in mans

relationship with nature and how the risks created by human activities have been perceived,

with emphasis on the discussion of how it is possible to make progress in scientific and

technological field without compromising the future of their own human nature. The objective

is to verify the Brazilian legal system in the field of environment for the current of

preservation of ecologically balanced environmental protection and housing and the

fundamental duty assigned to all citizens of preservation of ecologically balanced

environment for the current and for the future generations In the scope of the problem

presented, a reflection based on Bioethics is pursued, verifying its origin and its fundamental

assumptions, when dealing with the intricate relationship of man with other living beings and

the nature. Then, in the search for a solution to the conflict between the fundamental rights to

the environmental bioethics in this area and the importance of its application to the formation

of the state of environmental law, through information, education, development and

realization of the autonomy of the population, in the exercise of environmental democracy.

Keywords: Relation between man and nature; cities; permanent preservation area; urban

environment; culture; housing; environmental Bioethics; information; environmental

education; fundamental duty of protecting the environment; environmental democracy;

environmental law state.

LISTA DE TABELAS

Grfico 1: Mdia de moradores em domiclios particulares ocupados em aglomerados

subnormais e de moradores em domiclios particulares ocupados nas reas urbanas

regulares dos municpios com aglomerados subnormais, segundo as Unidades da

Federao 2010 ................................................................................................................. 114

Grfico 2: Dcada de Formao .......................................................................................... 116

Grfico 3: Restries legais ................................................................................................. 117

SUMRIO

1 INTRODUO ............................................................................................................. 12

2 SOCIEDADE DE RISCO GLOBAL E AS CIDADES ............................................... 16

2.1 O meio ambiente e a sociedade de risco ..................................................................... 16

2.1.1 A percepo do risco .................................................................................................. 22

2.1.2 Primeira Modernidade e Segunda Modernidade ....................................................... 25

2.1.3 Desafios da Segunda Modernidade ............................................................................ 31

2.1.4 O futuro da sociedade de risco ................................................................................... 37

2.2 As cidades: Formao ................................................................................................. 41

3 BIOTICA AMBIENTAL E O ESPAO URBANO ..................................................... 47

3.1 Noes introdutrias ................................................................................................... 47

3.2 Biotica ambiental ....................................................................................................... 54

3.2.1 As Relaes Humanas nas vrias formas de se pensar a cultura .............................. 60

3.2.2 O Dever Fundamental de Proteo ao Meio ambiente ............................................. 64

3.2.3 O Estado de Direito Ambiental .................................................................................. 69

3.2.4 A Teoria da Equidade Intergeracional ...................................................................... 72

3.3 Espao urbano ............................................................................................................. 77

3.3.1 A Poltica Urbana Brasileira .................................................................................... 83

3.3.1.1 O Estatuto da Cidade ............................................................................................... 85

3.3.1.2 Diretrizes Gerais ..................................................................................................... 86

3.3.1.3 Institutos jurdicos e ambientais da Poltica Urbana .............................................. 88

3.3.1.3.1 Usucapio Urbana ................................................................................................ 89

3.3.1.3.2 Concesso de Uso Especial e a Regularizao Fundiria .................................... 90

3.3.2 A Cidade de Belo Horizonte ....................................................................................... 93

3.3.3 Direito moradia ...................................................................................................... 96

4 OCUPAES IRREGULARES EM REA DE PRESERVAO

PERMANENTE ................................................................................................................. 105

4.1 Conceito de reas de preservao permanente ......................................................... 105

4.1.1 APP criada por fora de lei ........................................................................................ 106

4.1.2 APP criada por Ato do Poder Pblico ....................................................................... 107

4.2 Interveno em rea de Preservao Permanente .................................................. 108

4.3 Ocupaes irregulares ................................................................................................ 111

4.3.1 Caractersticas ........................................................................................................... 113

4.3.2 Principais Problemas ................................................................................................. 117

4.4 Coliso entre direito moradia e ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado ........................................................................................................................ 119

4.4.1 Do direito Diferena ............................................................................................... 126

4.4.2 Dilogo entre o conhecimento cientfico e o conhecimento vulgar .......................... 127

4.4.3 Dilogo das fontes e do consenso ............................................................................. 129

4.4.4 Das disposies legais biotica ambiental ............................................................. 130

5 CONCLUSO ................................................................................................................ 137

REFERNCIAS ............................................................................................................... 141

12

1 INTRODUO

O momento atual caracteriza-se por um forte movimento de ruptura com os

paradigmas at ento vigentes, decorrente da mudana na forma como o homem se v perante

a humanidade e a natureza.

Aplacada a sensao de superioridade do homem em relao aos outros seres,

advinda da evoluo industrial e tecnolgica, emergem novos problemas, demonstrando que a

interferncia danosa ao meio ambiente natural repercute sobre o prprio ser humano e coloca

em risco o destino da humanidade.

O homem torna-se cada dia mais lcido de que, em nome da cincia, tem assumido

riscos que no so devidamente avaliados ou, para os quais, ainda no existem tcnicas

capazes de aferir, com preciso, suas consequncias, provocando uma quebra na relao

custo/benefcio.

A distncia entre povos e culturas, minimizada pelos rpidos meios de comunicao,

possibilita o conhecimento dos fatos em tempo real. Com isto, a sociedade, como um todo,

recusa-se a aceitar, passivamente, decises tomadas unilateralmente e impe uma maior

participao no processo decisrio.

O processo de evoluo industrial foi marcado por um afastamento entre cincia e

cultura, com a supremacia absoluta da primeira. Deixou-se de considerar as diversas formas

de se perceber o progresso e os perigos dele advindos, levando a um estado de desconfiana

quanto necessidade e benefcios dos avanos e a constatao de que a tcnica no consegue

controlar todos os riscos. O resultado foi uma incmoda sensao de medo que recaiu sobre a

humanidade, a partir do entendimento de que se tornou grande destruidora da natureza e, dada

a relao de interdependncia, a noo de que o futuro se encontra em risco.

Vive-se hoje em um mundo de incertezas, onde a insegurana e medo pairam sobre

todas as relaes. A sensao de que a vida humana encontra-se em risco, diante das inmeras

escolhas feitas pelo homem no passado, que interferiram direta ou indiretamente no ambiente

natural e na prpria raa humana, desconfortante.

O desenvolvimento das cidades, de forma desordenada, com intensa migrao do

homem do campo para as reas urbanas, sem que estas estivessem preparadas para receber o

enorme contingente populacional, fez com que as pessoas mais frgeis economicamente

fossem empurradas para as periferias, foradas a ocupar lugares ambientalmente sensveis,

13

como as margens dos crregos, as reas com declividade acentuada e, por isso, sujeitas a

riscos geolgicos, com vegetao nativa, dentre outras.

Os espaos vazios foram e continuam sendo ocupados mediante a passividade do

Poder Pblico, que privilegiou, ao longo dos tempos, polticas voltadas para reas mais

valorizadas, esquecendo-se de cuidar das pessoas e dos lugares de relevncia ambiental para

as cidades.

Ao se descuidar da promoo do direito fundamental moradia digna, deixou

diversos muncipes prpria sorte, que, sem alternativa, foram se concentrando nos locais

onde no perturbavam as reas mais nobres.

A preocupao com o meio ambiente surgiu nesse cenrio catico, evidenciando a

necessidade de uma mudana de postura no s do Poder Pblico, mas da sociedade como um

todo.

Significativo avano no arcabouo jurdico brasileiro foi alcanado com o advento da

Constituio da Repblica de 1988, ao erigir o meio ambiente ecologicamente equilibrado a

direito fundamental, conferindo-lhe status de direito e dever do Estado e da sociedade.

Outro passo de no menos importncia foi a incluso do direito moradia no rol dos

direitos sociais, de forma expressa, procedida pela Emenda Constitucional n 26/2000.

Embora a fundamentalidade desse direito social j possusse bases suficientes para

justific-lo como tal, a insero no texto constitucional imprimiu-lhe maior fora e visibilidade.

Nota-se, por essencial, que os direitos moradia digna e ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado esto diretamente vinculados, porque o homem torna-se agente

poluidor quando no pode usufruir de moradia digna, o que abrange no s a edificao em

condies de habitabilidade, mas o acesso ao saneamento bsico.

Privadas de assistncia pelo Poder Pblico, numerosas famlias, rapidamente,

implantam precarssimas moradias, iniciando-se com barracas de lonas, avanando para

construes em alvenaria, sem qualquer assistncia tcnica, tomando posse dos espaos

vazios, independentemente do valor ambiental que possuam.

Quando essas ocupaes ocorrem em rea de preservao permanente urbana, torna-

se flagrante o paradoxo entre o dever de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras

geraes, imposto a toda a coletividade, e o direito moradia.

No h como pensar em qualidade de vida sem se reportar necessidade de

saneamento bsico. Como o prprio nome j designa, o saneamento bsico corresponde s

condies essenciais e inegociveis que devem ser proporcionadas ao indivduo, para que ele

14

possa viver com dignidade. Essas condies esto relacionadas ao meio ambiente: qualidade

de gua, coleta e tratamento de esgoto, rede de coleta de guas pluviais, dentre outras.

Isso justifica a relevncia do tema escolhido neste trabalho, qual seja, como

compatibilizar o direito moradia digna com o direito/dever ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, nas situaes em que reas de preservao permanente urbanas

esto ocupadas por famlias de baixa condio socioeconmica.

A reflexo passa pelo necessrio questionamento se possvel exigir de quem no

tem condies de satisfazer suas necessidades bsicas, uma postura de comprometimento e

responsabilidade para com o meio ambiente.

A conscincia de que os recursos naturais so limitados e as aes do homem esto

provocando sua destruio e comprometendo a prpria existncia humana tem sido objeto de

anlise. O tema encontra-se inserido no escopo da biotica ambiental, motivo pelo qual se

busca aferir contribuies dessa rea para a soluo do conflito apresentado.

Sade e liberdade so bens valiosos para os seres humanos, mas tudo isso pode

perder importncia se no existirem condies ambientais que permitam a vida do homem na

terra. A preocupao vai alm da manuteno da vida da gerao vivente, pois importa a

adoo de medidas que assegurem o bem-estar tambm das futuras geraes, at porque, a

realizao do homem fica comprometida se no houver possibilidade de futuro, de imaginar o

que sero seus filhos e netos.

Nesse diapaso, inicia-se discorrendo sobre o meio ambiente, a formao dos

espaos urbanos, as caractersticas do momento atual, a forma de perceber os riscos e os

desafios a serem enfrentados. Cuida-se, por necessrio, de analisar de que forma a relao do

homem com a natureza, imprimida ao longo dos tempos, influenciou a construo das

cidades.

Em seguida, procura-se introduzir conceitos de biotica e justificar como, desde o

incio, a preocupao se voltou para a relao do homem com o meio ambiente, constituindo-

se, assim, o que se denomina biotica ambiental, para prosseguir destacando a importncia do

elemento cultura, tanto na construo do problema enfrentado, quanto na sua importncia para

a formulao de solues viveis que possam compatibilizar a vida humana com a dos demais

seres vivos e o meio que habitam em comum. Nessa lgica, procede-se anlise das vrias

formas de se pensar a cultura, do dever fundamental de proteo ao meio ambiente, a

necessidade de formao do Estado de Direito Ambiental, levando-se em conta a equidade

intergeracional e o consequente compromisso com as geraes futuras, preconizado na

Constituio da Repblica de 1988.

15

Ainda no terceiro captulo, passa-se anlise do espao urbano e dos diversos

instrumentos jurdicos e ambientais da poltica urbana brasileira. Na tentativa de comprovar a

significncia do tema, so apresentados dados da cidade de Belo Horizonte e dos problemas

de ocupao de reas de preservao permanente por populaes economicamente

vulnerveis. Como no poderia deixar de ser, procede-se ao estudo do direito moradia,

buscando enfocar os pontos afetos questo apresentada.

Por fim, no captulo quarto, parte-se para a conceituao de rea de preservao

permanente, as intervenes permitidas, a anlise das principais caractersticas das ocupaes

irregulares desses espaos, os principais problemas, o panorama brasileiro e da cidade de Belo

Horizonte, para discorrer, em seguida, sobre a coliso entre o direito moradia e o meio

ambiente ecologicamente equilibrado. Nesse mister, esfora-se para tratar no somente dos

aspectos legais, mas propor dilogo com o conhecimento comum e cientfico, entre as

diversas fontes, sem perder de vista a pluralidade que caracteriza a sociedade contempornea

e o direito diferena.

A questo dos direitos fundamentais tambm se liga ao contexto da moral, da

conduta adequada e formao de uma conscincia tica coletiva. Com esse enfoque,

visualiza-se um liame entre a Biotica e os direitos humanos e fundamentais, no sentido de

que aquela e estes so concebidos com o fim de resguardar a vida do homem em a harmonia

com a natureza.

Para que o homem exera sua autonomia e atinja a igualdade, de modo a poder agir

de forma livre e consciente, imprescindvel que ele possua o mnimo de dignidade social.

Isso remete s condies que devem ser proporcionadas ao indivduo para que ele possa

participar dos mecanismos de sociabilidade e defender, por si s, sua qualidade de vida.

16

2 SOCIEDADE DE RISCO GLOBAL E AS CIDADES

2.1 O meio ambiente e a sociedade de risco

A partir da conscincia de que o homem no o centro do universo e depende dos

demais seres vivos para sobreviver, a preocupao com o meio ambiente passou a fazer parte

do nosso cotidiano.

O processo de reconhecimento do meio ambiente como objeto de direito fundamental

no foi instantneo e percorreu um longo caminho na histria de transformao dos direitos

fundamentais, at atingir o atual patamar.

A evoluo dos direitos fundamentais pode ser registrada, em resumo, no primeiro

momento, pela necessidade de se proteger a esfera individual do ser humano contra as

ingerncias do Estado, forando a reduo da interveno estatal na vida das pessoas e o

aumento da autonomia individual, resultado do movimento iluminista surgido na Europa, que

culminou com a transformao da organizao do poder de Estado Absoluto para o Estado

Liberal de Direito, caracterizado pela supremacia da Constituio, com a separao dos

poderes, a superioridade da lei e a garantia dos direitos individuais (ALMEIDA, 2003, p. 48).

Consagram-se os chamados direitos de defesa e de resistncia perante o Estado, incluindo-se

nesse rol, ttulo de exemplo, a liberdade de expresso, direito de voto, de petio, ou seja,

direitos civis e polticos.

Em seguida, tornou-se imperioso enfrentar os graves problemas sociais e econmicos

oriundos da industrializao, trazidos baila pelos movimentos sociais, cobrando-se do Estado

uma postura ativa em prol dos menos favorecidos, de modo a lhes assegurar bem-estar social,

provocando o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores, tais como, direito a frias, repouso

semanal remunerado, salrio-mnimo, direito de greve. Importante observar que, embora

denominados direitos sociais, dizem respeito pessoa individual, no podendo ser confundidos

com os direitos coletivos e/ou difusos (SARLET, 2011, p. 48).

No obstante, como destaca Almeida (2003, p. 53), foi no Estado Social ou do bem-

estar que a conflituosidade social existente, decorrente das novas exigncias da sociedade de

massas, tornou premente a regulao e proteo dos interesses transindividuais (difusos e

coletivos), ampliando o campo de atuao do Estado, que passou a se preocupar com meio

ambiente, consumidor, criana e adolescente, idoso, ordem econmica, dentre outros. Com a

implantao de poltica de proteo de alguns direitos sociais no Estado Social, sem a devida

adaptao do sistema jurdico para enfrentar os conflitos transindividuais, a crise foi inevitvel:

17

A bem da verdade, o Estado Social, cuja filosofia e sistema nele implantados so,

basicamente, do Estado Liberal Individualista, vive uma crise que no s de

legitimidade, mas tambm de identidade. (ALMEIDA, 2003, p. 55).

A preocupao com o meio ambiente eclodiu na medida em que se percebeu que os

recursos naturais no so ilimitados ou inesgotveis, e a ao humana capaz de interferir de

tal forma no meio bitico que, rompendo a interligao entre homem e natureza, compromete

a prpria sobrevivncia do ser humano, tornando incerto seu futuro. Nesse contexto, se instala

uma nova dimenso dos direitos. O Estado assume novo papel, comprometendo-se,

constitucionalmente, com a problemtica social (ALMEIDA, 2003, p. 59). Surge o Estado

Democrtico de Direito:

A doutrina aponta como princpios do Estado Democrtico de Direito: a)

constitucionalidade, que se expressa pela vinculao do Estado a uma Constituio; b)

organizao democrtica da sociedade, consistente na preservao da liberdade de

participao social e poltica dos cidados e das entidades sociais emergentes; c)

sistema garantista de direitos fundamentais individuais e coletivos; d) justia social; e)

igualdade, no apenas formal, mas, necessariamente, material; f) diviso de poderes ou

de funes; g) legalidade, especialmente para a excluso do arbtrio e da prepotncia;

h) segurana e certeza jurdicas. Pode-se, ainda, ser acrescentado: i) o princpio da

mxima prioridade na proteo e efetivao dos direitos transindividuais, no sentido de

que o Estado, em todos os seus nveis, deve dar prioridade aos direitos sociais

fundamentais da sociedade, como os relacionados ao meio ambiente, ao patrimnio

pblico, cultural, cuja violao e falta de proteo, pelas consequncias sociais

produzidas, retiram o verdadeiro valor substancial da democracia e deslegitima, pela

omisso, a atuao estatal. (ALMEIDA, 2003, p. 57-58).

Essa dimenso, consagrada como terceira, destaca a responsabilidade pessoal e social

para a preservao dos bens naturais, de sorte que seus titulares no so indivduo ou

coletividade, mas o prprio gnero humano. Contemplam os denominados direitos de

fraternidade ou solidariedade que, se afastando da figura homem-indivduo como titular,

volta-se proteo de grupos humanos indefinidos e indeterminveis, como ocorre com o

direito ao meio ambiente, qualidade de vida e informtica. (SARLET, 2011, p. 48-49).

o que destaca Cechetto (2005, p. 171-195):

O trao comum que compartilham todos eles o fato de que se encontram

comprometidos intimamente com a qualidade de vida, noo que desafia a viso

simplista quantitativa dos recursos e a pretenso elementar de elevar o nvel de vida

material das comunidades. Esse compromisso se estende, ademais, com uma viso

do homem como organismo dependente dos outros homens os viventes e que esto

por vir e o resto do mundo natural solidariedade sincrnica e diacrnica,

respectivamente, assim como tambm com uma administrao frugal e responsvel

que evite danos coletivos irreversveis.1

1Traduo livre de El rasgo comn que comparten todos ellos es que se encuetran comprometidos ntimamente

con la calidad de vida, nocin que desafia a la simplista visin cuantitativa de los recursos y a la pretensin

elemental de elevar el nivel de vida material de las comunidades. Este compromiso se extiende, adems, con una

visin del hombre a la manera de organismo dependiente de los otros hombres estn ellos presentes o por venir

, y del resto del mundo natural solidaridad sincronica y diacrnica, respectivamente as como tanbien con

una administracin frugal y responsabel que evite daos colectivos irreversibles.

18

Pode-se afirmar que, a partir da dcada de 50, a preocupao com o meio ambiente

se revelou, foi se propalando e tomando fora por meio dos movimentos em seu favor, at ser

estampada em diversas constituies pelo mundo afora, propiciando mudana de paradigma,

como afirma Milar (2007, p. 734):

O despertar da conscincia ecolgica contempornea, que remonta ao final dos anos

1950, veio se alastrando, at firmar-se em nossos dias como um dos valores

universais e transcendentes. Algumas pessoas despertaram h dcadas; outras, mais

recentemente. Na atualidade, o embasamento cientfico, com suas projees para o

futuro da Terra, reforou esse despertar, de modo que as boas conscincias

individuais e grupais refletem claramente doutrinas e prticas, j consolidadas e

presentes nos segmentos organizados da sociedade e na Administrao Pblica.

No Brasil no foi diferente, tanto que a Constituio Cidad de 1988 consagrou em

seu artigo 225, que o meio ambiente ecologicamente equilibrado direito de todos, cabendo

ao Estado e toda a sociedade preserv-lo, para presentes e futuras geraes.2

A viso de que o homem no integra o meio ambiente e dele pode usufruir como lhe

aprouver, vem perdendo espao para novas formas de encarar a si prprio e ao meio ambiente.

Novas vertentes se apresentam no limiar do sculo XXI, distanciando-se da viso

antropocntrica clssica, o homem como centro do universo, e caminhando para o

antropocentrismo mitigado ou estendido ou, em uma viso mais integrada, para o biocentrismo.

Na verdade, o que se percebe que tanto o antropocentrismo quanto o biocentrismo

esto adotando postura mais reflexiva, reconhecendo a necessidade de se modificar a forma

como o homem costuma interagir com o resto do universo e com os outros seres vivos.

A anlise do que vem a ser meio ambiente, j de incio, evidencia que no existe uma

nica definio e que as influncias culturais exercem papel decisivo neste campo. Da

natureza intocada ao meio ambiente construdo e s manifestaes culturais, tudo envolve o

contexto conformador do meio ambiente.

Segundo Costa (2010, p. 57), meio ambiente [...] O conjunto de elementos

naturais e artificiais partilhados com seres humanos e no humanos, necessrio ao

desenvolvimento e sobrevivncia dessas espcies de forma harmnica e solidria.

Para Silva, J. (2009, p. 20), [...] O meio ambiente , assim, a interao do conjunto

de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da

vida em todas as suas formas.

2Artigo 225. Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e

essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e

preserv-lo para as presentes e futuras geraes.

19

Echevara (2009, p. 8) adverte que o termo natureza tem 19 acepes no

Dicionrio da Academia Real Espanhola.

Uma viso mais ampliada do conceito engloba no s os recursos naturais existentes

na Terra, mas os oriundos de outros planetas e satlites do sistema solar:

So recursos naturais os seres vivos e substncias minerais do planeta Terra que o

homem utiliza ou poderia utilizar para sua alimentao, construes, gerao de

energia e fabricao de bens materiais. Na era espacial, tambm devem computar os

recursos naturais potenciais de outros planetas e satlites do sistema solar. (BO;

VILAR, 1999, p. 25)3

As crenas e convices individuais influenciam a concepo do que meio

ambiente e em que ele consiste. Por consequncia, fica mais difcil definir o que deve ou no

ser mantido intocado. Vrias pessoas sustentam uma postura mais preservacionista. Outras

cedem presso econmica e acreditam, ou tentam acreditar, que a cincia possui capacidade

infindvel de criar substitutos para os recursos naturais e novas oportunidades de lucro sempre

existiro. Noutro extremo, vm aqueles que promovem a postura radical de preservao,

geradora de uma tirania que massacra e cria diferenas e, sob esse aspecto, esquecer tambm

torna-se um direito defensvel.

Discorrendo sobre patrimnio cultural, conclui Paiva (2008, p. 174):

preservar por preservar inconcebvel. O regime jurdico, o Poder Pblico e a

sociedade devem fazer acompanhar a preservao de uma poltica educacional

voltada para insero e vivncia do patrimnio, de modo a interligar a sociedade

atual com o seu passado e criando os meios para que as geraes futuras tambm o

faam. No se trata de obrigar os indivduos a apreciarem os bens culturais, criar

os meios e substratos necessrios para que eles prprios optem por apreciar, dar

valor e preservar, ou no, o que entendem ser importante para a formao de uma

identidade social que seja transmitida posteridade.

Essas controvrsias remontam origem da relao do homem com o meio onde vive

e sua interligao com a evoluo dos direitos.

At a era industrial, o homem utilizava os recursos naturais para sua sobrevivncia,

mas temia os eventos naturais por entender que eles eram incontrolveis. O desenvolvimento

industrial baseou-se na ideia de que a natureza, fonte inesgotvel de recursos, correspondia a

tudo aquilo que estava fora da sociedade e precisava ser controlado. Essa fase foi denominada

por Ulrich Beck como Primeira Modernidade (NAVES, 2010, p. 28).

3Traduo livre de Son recursos naturales los seres vivientes y sustancias minerales del planeta Tierra que el

hombre utiliza o podra utilizar para su alimentacin, construcciones, generacin de energa y fabricacin de

bienes materiales. En la era espacial, tambin deben computarse los recursos naturales potenciales de otros

planetas y satlites del sistema solar.

20

O avano industrial sinalizou a possibilidade de substituio do homem pela

mquina, ao alcanar a mesma fora produtiva, tornando-o vulnervel, por vezes incapaz de

garantir sua prpria subsistncia e de sua famlia, o que abalou a ordem social.

Tais problemas foram contornados devido capacidade de adaptao humana e sua

criatividade, que proporcionaram condies para o surgimento de novas profisses e

investimentos em novas reas do conhecimento.

A partir desse processo evolutivo, as questes ecolgicas afloraram, podendo-se

afirmar que, at ento, elas encontravam-se esquecidas ou eram desconhecidas.

Surge a Segunda Modernidade, que se expressa

pela globalizao econmica, poltica, social e cultural -, pelo individualismo

institucionalizado, pela sociedade de risco e pela participao social, revelada nas

tecnologias de comunicao e consequentemente na alterao da sociedade de

trabalho. (NAVES, 2010, p. 28).

Na primeira fase, o cientificismo dominou. A cincia foi considerada responsvel por

definir o que seria melhor para o ser humano. Ela possua as respostas. O paradigma

dominante impunha maior especializao como meio de se alcanar mais conhecimento e

certeza cientfica.

Santos (2010, p. 74) observa que a especializao, levada a seus extremos, fez o

cientista perder o conhecimento do todo, prendendo-se unicamente s partes, sem compreender

o funcionamento no conjunto, conduzindo-o ignorncia. A superespecializao, caracterstica

do paradigma dominante, esvaziou a viso global, do todo, do homem em suas diversas facetas

e ambientes.

O conhecimento cientfico, nesse paradigma, no se preocupou com a integrao das

diversas cincias, afastando-se da viso holstica do homem, causando vulnerabilidades, em

especial no quesito segurana.

Por outro lado, os avanos tecnolgicos permitiram acesso s informaes em tempo

real, estabelecendo maior integrao social e a participao da populao sobre os destinos do

mundo, do meio ambiente e do seu prprio destino.

As decises, outrora adotadas a portas fechadas, passaram a ser impugnadas pela

sociedade, que se tornou menos passiva, passando a exigir sua participao, se no em todas,

mas naquelas relevantes. As respostas prontas, baseadas exclusivamente na tcnica, na

cincia, deixaram de ser suficientes, como bem destaca Raposo (2011, p. 136) ao citar Fbio

Roberto DAvila,

21

A certeza quanto ao destino da humanidade e quanto possibilidade de controle da

natureza pelo homem, que marcou a cincia a partir da revoluo cientfica do

sculo XVI e do Iluminismo, tem, paulatinamente, dado lugar indeterminao e

dvida acerca do futuro da civilizao.

O homem obteve maior conhecimento dos riscos provocados pelos avanos

tecnolgicos, bem como, dos riscos invisveis produzidos por sua prpria conduta, o que

gerou uma nova expresso da sociedade: a sociedade de risco.

Os modos de vida humana so influenciados pelos recursos naturais a que as

comunidades tm acesso e, por conseguinte, tambm provocam interferncia direta na

natureza. A compreenso crescente desta intrincada relao uma caracterstica presente na

sociedade atual.

Beck (2006, p. 230) destaca que a noo de sociedade de risco global pertinente

para um mundo que pode caracterizar-se pela perda de uma distino clara entre natureza e

cultura. [...] Se hoje falamos de natureza, falamos de cultura, e se falamos de cultura,

falamos de natureza.4

Nesse diapaso, observa-se a existncia de um descompasso espacial entre

conhecimento e impacto. Enquanto a percepo construda em um contexto e de forma local

que, para atingir outras reas, depende da imaginao e da ajuda de tecnologias como a

televiso e outros meios de comunicao em massa, o impacto espacial e temporalmente

aberto e tende a estender-se por toda a terra. A radiao, os compostos qumicos sintticos e

os organismos geneticamente modificados so exemplos da extenso do impacto. (BECK,

2006, p. 228).

Isso demonstra que o paradigma at ento em vigor vem perdendo foras e cede

lugar a um novo modelo, que prope trabalhar as reas de conhecimento de forma integrada,

conjugando tcnica e cultura:

No paradigma emergente o conhecimento total, tem como horizonte a totalidade

universal de que fala Wigner ou a totalidade indivisa de que fala Bohm. Mas sendo

total, tambm local. Constitui-se em redor de temas que em dado momento so

adoptados por grupos sociais concretos como projectos de vida locais, sejam eles

reconstituir a histria de um lugar, manter um espao verde, construir um

computador adequado s necessidades locais, fazer baixar a taxa de mortalidade

infantil, inventar um novo instrumento musical, erradicar uma doena, etc., etc. A

fragmentao ps-moderna no disciplinar e sim temtica. Os temas so galerias

por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. (SANTOS, 2010,

p. 47)

A interdisciplinaridade dos temas natureza e cultura vem ampliando e se fortalece

como ferramenta de gesto ambiental.

4Traduo livre de Si hoy hablamos de naturaleza, hablamos de cultura, y si hablamos de cultura hablamos de

naturaleza.

22

2.1.1 A percepo do risco

A convivncia com riscos faz parte da vida humana. No ponto que interessa a este

trabalho, cumpre observar que a origem dos riscos mudou ao longo dos tempos. Se no incio

eram oriundos da fora da natureza ou das divindades, com o avano cientfico e tecnolgico,

nascem da prpria atividade humana.

Na era primitiva, o homem no interferia diretamente na natureza, conformando-se

em usufruir o que a terra produzia espontaneamente. Mas logo descobriu que era possvel nela

interferir e passou a exercer atividades agropastoris, momento no qual iniciou o domnio

sobre os demais seres vivos, utilizando-os para a satisfao dos seus interesses. Nesse

perodo, a civilizao alcanou grande desenvolvimento nas artes, na literatura e no

pensamento filosfico. As descobertas cientficas inauguraram um novo perodo, a fase

industrial, ampliando muito a fora do homem, que passou a operar intervenes mais

profundas na natureza, rumando para a era tecnolgica:

A informtica permitiu imitar e aumentar no s a fora muscular do homem, mas

sua fora mental. No que, para construir a mquina de primeiro tipo, o homem no

deva utilizar os recursos mentais: cincia e tcnica esto sempre juntas desde que o

homem homem, mas o objetivo das mquinas de informtica(rob e computador)

utilizar o clculo, a informao e o dado mental transmitido pelo homem e proceder

combinao, simulao e clculo autnomo. (SGRECCIA, 2009, p. 749)

certo que, inicialmente, apenas os louros das novas descobertas eram divulgados e

a populao no se preocupava com o caminho percorrido para se atingir os grandes feitos.

Em nome da cincia tudo era permitido, pois competia a ela traar o destino da humanidade.

Entretanto, os avanos cientficos permitiram tambm o acesso s informaes, descortinando

o mito da certeza cientfica, na medida em que os erros e acertos passaram a ser de

conhecimento pblico, deixando claro que em muitas situaes inexistia e inexiste uma

aferio adequada dos riscos aos quais as pessoas so expostas em nome da pesquisa

cientfica. A viso paternalista de que a cincia sabia a resposta e somente por meio dela se

optaria pelas melhores escolhas perdeu sua consistncia, abrindo espao para a desconfiana e

insegurana.

A sociedade passou a questionar o poder da comunidade cientfica e a exigir o direito

de intervir nas decises sobre os caminhos a serem seguidos.

Se, no incio da modernidade, a indstria impunha seus projetos sem submet-los a

quaisquer controles e regulaes, a cobrana da sociedade fez com que o Estado se fizesse

presente para regulamentar essas atividades. Entretanto, constata-se que a regulao estatal

no teve o condo de afastar todos os perigos, haja vista a ocorrncia de acidentes, com

23

graves consequncias para toda a humanidade, colocando em evidncia que algumas

atividades expem o homem a riscos desconhecidos, fora do controle da cincia.

Assim sendo, veio tona a falibilidade das normas de segurana, demonstrando que

a evoluo tecnolgica trouxe consigo, na mesma proporo, a assuno de novos problemas

e que o equilbrio da relao avano-segurana torna-se, a cada dia, mais longe de ser

alcanado, fazendo com que todas as reas,social, econmica,poltica, ficassem mais atentos.

E no poderia ser diferente, pois a mudana da fase industrial para a chamada

Segunda Modernidade foi considervel, como bem observou Naves (2010, p. 27) [...] de

sociedade que domina o meio ambiente, vislumbra-se uma sociedade que intervm na

formao do meio ambiente.

Nesse cenrio de incertezas, surge a chamada crise ecolgica, fundada na conscincia

do risco, que se expande para abarcar no s o que visvel, mas tambm o perigo invisvel,

no quantificvel pela percepo social cotidiana. So as chamadas incertezas fabricadas ou

autogeradas, as quais nos levam a constatar que o clculo dos riscos e as normas de segurana

podem falhar.

Para Beck (2006, p. 33), a crise ecolgica parte da conscincia de que a anlise das

questes ambientais no poderia ficar adstrita cincia, que tenta traduzir, por meio de

frmulas, quais os danos produzidos e os limites de destruio tolerveis, ou seja, frmulas que

buscam delimitar a toxicidade do ar, da gua, dos alimentos, os modelos climatolgicos, dentre

outros.

O enfoque, pautado exclusivamente na cincia, ignora a importncia das percepes

culturais, do conflito e do dilogo intercultural, haja vista que um mesmo fato pode se

apresentar como perigo para uns e como oportunidade para outros, tudo dependendo do ponto

de vista em que est sendo analisado. Utilizada como nico parmetro, a cincia confere

poderes de gesto aos tecnocratas e desconsidera que a percepo ecolgica cotidiana no se

prende a viso totalmente tcnica, no se podendo ignorar os modelos culturais.

Por isso, com clareza, Beck (2006, p. 34) afirma que,

A conscincia ecolgica cotidiana , portanto, o inverso exato de certa conscincia

natural: uma viso totalmente cientfica do mundo, em que frmulas qumicas

determinam o comportamento cotidiano. E, entretanto, nenhuma classe de

especialistas poder responder jamais a esta pergunta: como queremos viver?5

5Traduo livre de La conciencia ecolgica cotidiana es, por tanto, el reverso exacto de cierta conciencia

natural: es una visin totalmente cientfica del mundo, en la que frmulas qumicas determinan el

comportamiento cotidiano. Y, sin embargo, ninguna clase de expertos podr responder jams a esta pregunta:

cmo queremos vivir?.

24

Decerto que no se pode caminhar para uma concluso simplista de que o grau do

risco est associado exclusivamente forma de perceb-lo. Porm, desconsiderar uma de suas

caractersticas, a imaterialidade, consistente na definio social do risco, torna-se inaceitvel

na atual conjuntura, marcada pela sensao de insegurana.

O que se tem so conceitos utilizados para a avaliao dos riscos, definies precisas,

frmulas, que no necessariamente aferem os riscos das atividades na sua totalidade, at

porque, muitos deles so desconhecidos, cumprindo-se muito mais uma avaliao formal do

que real.

o que discute Sgreccia (2009, p. 759), quando trabalha com o princpio de risco-

benefcio, comentando sobre a utilizao de energia nuclear:

Mas o que se entende com esse problemtico princpio de risco-benefcio? A

tendncia, ou pelo menos o perigo, de que a esses dois termos seja dado um

significado totalmente economicista ou um significado no homogneo.

O significado totalmente economicista representado pelo clculo em dlares das

vidas humanas que se podem perder ou pelo custo econmico das doenas que

podem ser induzidas, e esse dado posto num prato da balana. No outro prato

poderiam ser postos os benefcios econmicos (postos de trabalho, produo das

mquinas etc.) que podem derivar dessas aplicaes da energia nuclear... D-se

outro equvoco quando as grandezas calculadas no so homogneas, ou seja, por

causa do risco realmente considerado o prejuzo causado sade e, portanto, um

bem antropolgico, mas no outro prato da balana posta a vantagem econmico-

social; trata-se, pois, de atividades economicamente necessrias e socialmente teis.

O conceito de risco/benefcio, em sntese, bem empregado em sentido personalista

quando se refere ao mesmo sujeito e mesma ordem de bens.

No se trata apenas de incerteza quanto ao mrito das normas, mas a noo de que as

prprias normas esto permitindo a destruio ambiental, tornando legais as maiores

intervenes ao meio ambiente, pautadas em interesses meramente econmicos, enquanto

que, de outro lado, erige condutas nem to relevantes condio de no ecolgicas. Segundo

Beck (2006, p.53), esse fato obriga a uma reflexo sobre as bases do modelo democrtico

nacional e econmico da primeira modernidade, o exame das instituies dominantes e a

depreciao histrica das bases da racionalidade. No se pode mais negociar a portas

fechadas, porque tudo est exposto crtica pblica.

As ameaas globais, resumidas por Beck (2006, p. 54), na evoluo tecnolgica, em

contraposio destruio do meio ambiente e perigos tecnolgicos; os riscos diretamente

relacionados pobreza, na medida em que o homem privado do mnimo existencial torna-se

potencial poluidor; e as armas de destruio em massa, tais como as qumicas, biolgicas e

nucleares, se interagem e se acentuam mutuamente, ou seja, existe uma interao entre a

destruio ecolgica, as guerras e as consequncias da modernizao incompleta.

25

Portanto, conclui-se que os novos perigos eliminam os parmetros de segurana j

sedimentados, porque eles desconsideram que os danos ambientais no se prendem a limites

espao-temporais, assumindo carter global e duradouro, vale dizer, atingindo a todos,

indistintamente, no se arrefecendo por meio de controles nacionais, porque extrapolam os

limites territoriais dos pases. Ademais, os diagnsticos so passveis de falhas.

A construo do princpio da culpabilidade, no que se refere ao meio ambiente, vai

perdendo sua eficcia, na medida em que ignora os efeitos cumulativos, aqueles produzidos

pela prtica de uma mesma ao por um nmero indeterminado de pessoas, que,

individualmente, no teria potencialidade danosa, mas, em razo da repetio, gera

consequncias devastadoras para o meio ambiente. Como a aferio da culpabilidade se pauta

em avaliaes cientficas de condutas individualizadas, a conscincia dos efeitos cumulativos

mostra a vulnerabilidade de sua estruturao. Nesse escopo, Beck (2006, p. 233) afirma que o

conceito de sociedade de risco global significa:

1. Nem destruio nem confiana/segurana seno virtualidade real. 2. Um futuro

ameaador, todavia se converte em parmetro de influncia para a ao atual. 3.

Uma proposio simultaneamente ftica e valorativa combina uma moralidade

matematizada. 4. Controle e falta de controle tal como se expressa na incerteza

fabricada. 5. Conhecimento ou desconhecimento materializado em conflitos de

reconhecimento. 6. Global e local simultaneamente reconstitudos como

globalidade dos riscos. 7. A distino entre conhecimento, impacto latente e

consequncias sintomticas. 8. Um mundo hbrido criado pelo homem que j perdeu

o dualismo entre natureza e cultura.6

Torna-se imperioso rediscutir as balizas que definem as causas da degradao

ambiental, as formas de controle e como ser possvel reverter o quadro atual, nos remetendo

a uma redefinio conceitual, pautada no conhecimento cientfico e comum.

2.1.2 Primeira Modernidade e Segunda Modernidade

A modernidade inicia-se na Idade Mdia, em que se destacam relevantes

acontecimentos, tais como a descoberta das Amricas e explorao de toda a terra, a reforma

protestante e a inveno do telescpio:

6Traduo livre de [] 1. Ni destruccin ni confianza/seguridad sino virtualidad real. 2. Un futuro amenazante,

(todava) contrafctico, se convierte en el parmetro de influencia para la accin actual. 3. Una proposicin

simultneamente fctica y valorativa, combina una moralidad matematizada. 4. Control y falta de control tal

como se expresa en la incertidumbre fabricada. 5. Conocimiento o desconocimiento materializado en conflictos

de (re) conocimiento. 6. Global y local simultneamente reconstituidos como glocalidad de los riegos. 7. La

distincin entre conocimiento, impacto latente y consecuencias sintomticas. 8. Un mundo hbrido creado por el

hombre que ha perdido el dualismo entre naturaleza y cultura.[]

26

No limiar da era moderna encontram-se trs grandes eventos que lhe determinaram o

carter: a descoberta da Amrica e a subsequente explorao de toda a Terra; a

Reforma, que, expropriando as propriedades eclesisticas e monsticas, desencadeou

o duplo processo de expropriao individual e acmulo de riqueza social; e a

inveno do telescpio, ensejando o desenvolvimento de uma nova cincia que

considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo[...] Aos olhos dos seus

contemporneos, o mais espetacular dos trs eventos deve ter sido as descobertas de

continentes desconhecidos e de oceanos jamais sonhados; o mais inquietante deve

ter sido a irremedivel ciso da cristandade ocidental devido Reforma, com seu

inerente desafio ortodoxia como tal e com sua imediata ameaa tranquilidade das

almas dos homens; e, sem dvida, o menos percebido de todos foi a introduo, no

j amplo arsenal de utenslios humanos, de um novo instrumento, intil a no ser

para olhar as estrelas, embora fosse o primeiro instrumento puramente cientfico j

concebido. (ARENDT, 2010, p. 309-311)

Caracteriza-se pelo rompimento com os padres e paradigmas do pensamento,

provocando alterao profunda no mundo intelectual, na organizao social, nas estruturas de

poder, condutas e crenas.

A razo erigida a fundamento das decises, pautada na crtica ao passado e na

ausncia de preocupao com o futuro, que indecifrvel. Prevalece o culto ao presente. O

homem e demais seres se tornam objeto e, deste modo, so tratados apenas sob a tica da

razo tcnica.

Os conceitos slidos entram em crise a partir dos fins do sculo XIX, com o

fortalecimento da racionalidade tecnicista e do sistema capitalista.

O homem passa a ter domnio sobre os fenmenos naturais. Surge a ideia de que a

razo poder superar qualquer obstculo, provocando o rompimento com as crenas at ento

existentes, j que o homem no necessita mais agradar s divindades, colocando-se em

posio de igualdade com o prprio Criador:

O Arquiteto Divino, portanto, tinha cada vez menos coisas a fazer no mundo. No

precisava nem mesmo conserv-lo, porquanto o mundo cada vez mais prescindia

desse servio.

Assim, o Deus possante enrgico de Newton, que efetivamente governava o

universo de acordo com sua livre vontade e Sua deciso, tornou-se, em rpida

sucesso, uma fora conservadora, uma inteligncia supra-mundana e um

Dieufainant.

Interrogado por Napoleo sobre o papel reservado a Deus em seu Sistema do

mundo, Laplace, que cem anos depois de Newton havia conferido Nova

Cosmologia sua perfeio definitiva, respondeu: Sire, jenaipas eu besoin de

cettehypothse. Mas no era o Sistema de Laplace, era o mundo ali descrito que

no tinha mais necessidade da hiptese Deus.

O universo infinito da Nova cosmologia, infinito em Durao tanto quanto em

Extenso, no qual a matria eterna, de acordo com leis eternas e necessrias, move-

se sem fim e sem desgnio no espao eterno, herdou todos os atributos ontolgicos

da Divindade. Entretanto, apenas estes: os demais, Deus, ao abandonar o mundo,

levou consigo. (KOYR, 2001, p. 257)

A Revoluo Cientfica joga por terra as bases conceituais anteriores, fazendo surgir

uma nova relao com a natureza, aferida por caracteres matemticos, fazendo com que a

27

cincia abandone a essncia e passe a se ocupar da quantidade. Em seu novo perfil, torna-se

autnoma, pblica, controlvel e progressista.

O homem livre no se deixa dominar pela emoo. A razo a fora motriz de suas

decises:

Em Descartes predomina o amor do verdadeiro, cuja lgica, uma vez alcanada, se

impe com a fora da razo. Apenas sob o peso da verdade que o homem pode se

considerar livre, no sentido de que obedece a si mesmo e no a foras exteriores. Se

o eu define-se como res cogitans, seguir a verdade significa seguir no fundo a si

mesmo, na mxima unidade interior e no pleno respeito realidade objetiva. O

primado da razo deve impor-se tanto no campo do pensamento como no da ao.

A virtude, qual, em ltima anlise, a moral provisria conduz, identifica-se com

a vontade do bem e esta com a vontade de pensar o verdadeiro que, enquanto tal,

tambm bem (REALE; ANTISERI, 2004, p. 305).

Ele j no precisa apegar-se a uma divindade, pois a tcnica lhe propicia o controle

sobre tudo. Ela est associada ao progresso e em seu nome tudo permitido. Nessa tica, no

s a natureza passa a ser objeto da tcnica, mas o prprio homem. Ao mesmo tempo em que a

tcnica libertadora, ela escraviza o homem, porque se posiciona como sendo a nica e

insupervel alternativa:

A ideologia do progresso contnuo, sustentada por uma cincia desenvolvida segundo

modelos matemticos e uma correspondente tcnica construda sob modelos

mecanicistas, provocou a indistino na relao sujeito-objeto na prtica social, na

qual a expresso humana do saber agir foi engolida pela avidez do saber produzir.

Corre-se hoje o risco de que o homem, aprisionado lgica do consumo e da

satisfao imediata, atravs de seu mpeto exploratrio, comprometa definitivamente a

continuidade de sua existncia na terra, justamente por esta antinomia entre o fazer

(produzir) e o como fazer (agir). (NAVES; BRITO, 2013, p. 7)

Os avanos tcnicos ficam cada vez mais velozes. Faz-se necessrio criar novos

produtos e desenvolver novas ideias, como nica forma de se alcanar o progresso.

Rapidamente, as coisas perdem seu valor, transformando-se em descartveis. A cada dia, uma

nova descoberta, um novo produto a ser consumido, um novo desejo a ser alcanado e assim

por diante.

O mundo se converte em um mundo de velocidade e preciso correr, para no deixar

de pertencer ao grupo. Essa corrida desenfreada desmonta a estrutura existente e coloca o

homem em um grande vazio. Busca-se preencher esse vazio atravs do consumo, atendendo

ao forte apelo patrocinado pelo sistema capitalista.

O interesse volta-se para aquilo que pode ser consumido instantaneamente, no

deixando lugar para questionamentos sobre morte, esperanas de reencarnao ou

ressurreio. A ordem acelerar, viver tudo o que for possvel, sem olhar para trs. No

importa por que e o que se consome. O comando introjetado no inconsciente das pessoas

28

determina o consumo na maior quantidade possvel e em menor tempo, porque no consumo

que se encontra a esperana da felicidade.

Bauman (2009(a), p. 14-15) observa que o importante a velocidade e no a

durao:

Velocidade, e no durao, o que importa. Com a velocidade certa, pode-se

consumir toda a eternidade do presente contnuo da vida terrena. Ou pelo menos

isso que o lumpem proletariado espiritual tenta e espera alcanar. O truque

comprimir a eternidade de modo a ajust-la, inteira, durao de uma existncia

individual. A incerteza de uma vida mortal em um universo imortal foi finalmente

resolvida: agora possvel parar de se preocupar com as coisas eternas sem perder

as maravilhas da eternidade. Com efeito, ao longo de uma vida mortal possvel

extrair tudo aquilo que a eternidade poderia oferecer. Talvez no se possa eliminar a

restrio temporal da vida mortal, mas podem-se remover (ou pelo menos tentar)

todos os limites das satisfaes a serem vividas antes que se atinja o outro limite, o

irremovvel.

Quanto mais se produz produtos e tecnologias, maior a necessidade de consumo.

Produo significa maior explorao dos recursos naturais. Consumo significa maior gerao

de resduos. Os dois juntos, maior degradao ambiental. Ser pego com algo ultrapassado

motivo de grande vergonha. Significa que no se pertence ao grupo, que se est obsoleto.

Usar o ltimo modelo de tudo d status e como se ver adiante, na linha do conceito

hierrquico da cultura, estar em um nvel superior. A ascenso na hierarquia cultural induz

ao consumo e este produo de lixo, j que tudo descartvel e no precisa ser

reaproveitado. Ao contrrio, substituir, jogar fora, desfazer. Mas vale ressaltar que essa nova

ordem atende, e muito, ao sistema capitalista porque est atrelada ideia de progresso. Para

Bauman (2009(a), p. 17) o lixo tornou-se objeto de dois principais desafios desse estgio da

Idade Moderna remov-lo ou ser jogado no lixo:

O lixo o principal e comprovadamente o mais abundante produto da sociedade

lquido-moderna de consumo. Entre as indstrias da sociedade de consumo, a de

produo de lixo a mais slida e imune a crises. Isso faz da remoo do lixo um

dos dois principais desafios que a vida lquida precisa enfrentar e resolver. O outro

a ameaa de ser jogado no lixo. Em um mundo repleto de consumidores e produtos,

a vida flutua desconfortavelmente entre os prazeres do consumo e os horrores da

pilha de lixo.

Justifica-se, assim, a opo pelo termo segunda modernidade, expresso cunhada

pelo socilogo alemo Ulrich Beck, porque no houve um rompimento com as vertentes

cientfico-tecnolgica e tica que marcaram o primeiro perodo, mas uma continuidade, numa

verso mais reflexiva, como afirma Naves e Brito (2013, p. 6). Nesse sentido, prosseguem

afirmando:

29

Esse segundo estgio da Idade Moderna, complexionado pelas suas contradies, traz

consigo a continuidade do que foi a primeira modernidade, com resqucios do sujeito

racional, que compreendido por si mesmo como portador privilegiado, seno

exclusivo, do logos. A natureza antes catica e deve ser ordenada pela razo humana,

sendo objeto e lugar da ao livre do ser humano. (NAVES; BRITO, 2013, p. 6)

A reflexo conduz triste constatao de que a felicidade obtida com o consumo

to efmera que no preenche o vazio existencial, de modo a em nada ajudar na resoluo de

uma das questes que torna o ser humano mais frgil: sua incompletude natural. Como o

consumo no a resposta para os questionamentos humanos, mergulha-se num grande vazio

existencial e, nesse contexto, que a preocupao com o meio ambiente est aflorando:

Embora todos os habitantes do planeta estejam, por assim dizer, no mesmo barco, do

ponto de vista de suas perspectivas de sobrevivncia (s podendo optar entre

navegar ou afundar juntos), suas tarefas imediatas, e, portanto seus destinos

preferidos, diferem amplamente, tornando as aes e os propsitos que os informam

dissonantemente deslocados, e alimentando antagonismos em que a solidariedade

o imperativo do momento. O preceito de Adorno - de que a tarefa do pensamento

crtico no a conservao do passado, mas a redeno das esperanas do passado

no perdeu nada de sua atualidade; mas precisamente pela permanente atualidade

desse preceito que o pensamento crtico precisa de um contnuo repensar, para que

continue condizente com a sua tarefa. (BAUMAN, 2009(a), p. 193)

Bauman (2009(a), p. 193) prossegue, afirmando que preciso repensar as relaes

humanas e com os outros seres vivos, na busca do equilbrio entre liberdade e segurana,

vetores mestres da sociedade humana. Mas adverte que o caminho a ser percorrido longo e

rduo, porque esto em jogo conceitos e parmetros fortemente arraigados na estruturao da

vida em comunidade.

Nas cidades, os espaos pblicos no mais se destinam ao desfrute de todos. A

violncia afasta as pessoas desses locais originalmente voltados a uma maior integrao do

homem com a natureza. Comportamentos como depredao, utilizao inadequada dos

equipamentos pblicos, pichaes, dentre outros, acabam por afast-los de sua funo

primordial. Tornam-se campos de batalha nos quais interesses egosticos de uns so impostos

aos demais habitantes. Bauman (2009(a), p. 49) observa que, no estgio atual da

modernidade, o privado que coloniza o espao pblico [...] espremendo e expulsando o que

quer que no possa ser expresso inteiramente, sem deixar resduos, no vernculo dos

cuidados, angstias e iniciativas privadas. No seu entendimento, para que o espao pblico

volte a ser um local de engajamento permanente, preciso reinvent-lo de forma global, onde

todos assumam responsabilidades para com o planeta:

O espao pblico poderia ser transformado novamente num lugar de engajamento

permanente, e no de encontros casuais e passageiros? Sim e no. Se o espao

pblico significa a esfera envolta e atendida pelas instituies representativas do

Estado-nao (como foi durante a maior parte da histria moderna), a resposta

30

provavelmente no. Essa variedade particular de palco pblico foi despida da

maior parte dos implementos e ferramentas que lhe possibilitam sustentar os dramas

encenados no passado. Mesmo que a antiga parafernlia tenha permanecido intacta,

dificilmente seria suficiente para atender s novas produes, cada vez maiores e

mais complexas, com milhes de personagens e bilhes de figurantes e

espectadores. Esses palcos pblicos, originalmente construdos para os propsitos

polticos da nao e do Estado, continuam teimosamente locais - enquanto o drama

contemporneo tem a amplido da humanidade, e, portanto ruidosa e

enfaticamente global. A resposta sim, para ser confivel, exige um espao pblico

novo e global: uma poltica que seja genuinamente planetria (o que diferente de

internacional) e um palco planetrio vivel. Trata-se de uma responsabilidade

verdadeiramente planetria: o reconhecimento do fato de que todos ns que

compartilhamos o planeta dependemos uns dos outros para o nosso presente e

futuro, que nada que faamos ou deixemos de fazer pode ser indiferente para o

destino de todos os outros, e que nenhum de ns pode mais procurar e encontrar um

refgio privado para tormentas que se podem originar em qualquer parte do globo.

(BAUMAN, 2009(a), p. 195-196)

Mas no se trata de uma tarefa fcil. Sem a participao das pessoas no h como se

concretizar projeto to arrojado. preciso encorajar as populaes a assumirem a bandeira em

prol do meio ambiente equilibrado e de espaos pblicos que voltem sua funo de

integrao, onde se possa conviver com as pessoas, com os bens naturais e, principalmente,

onde se possa desacelerar.

A transposio da fase slida para a fase lquida, operada no segundo estgio da

modernidade, consistente na desvinculao de todos os conceitos at ento existentes, por

evidente, tambm repercutiu nas relaes de trabalho, uma vez que j no se almeja

estabilidade.

Segundo Bauman (2001, p. 163), a nova ordem industrial nasceu na Gr-Bretanha,

rompendo com a ligao natural entre o homem, a terra e a riqueza:

A nova ordem industrial e a rede conceitual que permitiu a proclamao do advento

de uma sociedade diferente industrial nasceram na Gr-Bretanha; e esta se

destacava entre seus vizinhos europeus por ter destrudo seu campesinato, e com ela

a ligao natural entre terra, trabalho humano e riqueza. Os cultivadores da terra

tinham primeiro que ficar ociosos, vagando e sem senhores, para que pudessem ser

vistos como portadores de fora de trabalho pronta para ser usada; e para que essa

fora pudesse ser considerada como potencial fonte de riqueza por si mesma.

Se antes havia uma forte vinculao entre capital e trabalho, [...] os trabalhadores

dependiam do emprego para sua sobrevivncia; o capital dependia de empreg-los para sua

reproduo e crescimento (BAUMAN, 2001, p. 166), com a acelerao das relaes,

voltadas ao curto prazo, os trabalhadores deixaram de almejar segurana nas suas relaes

laborais, assumindo a fluidez e incerteza que atingiu a humanidade, e, com isso, os riscos,

rompendo com os paradigmas anteriores. A durabilidade das coisas e das relaes tornou-se

absolutamente relativa. J no se pretende um trabalho para o resto da vida, um casamento

duradouro, um eletrodomstico que dure espao temporal razovel. Ao contrrio, tudo

31

descartvel e pode ser trocado, substitudo. Tudo possvel e as oportunidades so infinitas.

S importa o presente. O futuro indecifrvel.

Cabvel, neste ponto, observar que o trabalho, durante algum tempo, serviu como

fonte de esperana de um mundo melhor, na perspectiva de que a segurana e estabilidade

levavam consigo toda a infelicidade humana, bastando, sob essa tica, manter aquecido o

mercado de trabalho, com a criao de novas frentes, para serem resolvidas as mazelas

humanas:

Forada a vender sua capacidade laboral/criativa a um preo fraudulento e vtima da

negao da dignidade humana que acompanhava essa venda, esperava-se que a

classe trabalhadora se erguesse, ou fosse erguida, da existncia meramente

objetiva, irracional, de uma classe em si para as fileiras de uma classe para si

tornar-se consciente de seu destino histrico, abra-lo, transformar-se (ou ser

transformada) de objeto em sujeito (o sujeito de sua histria, por assim dizer) e se

unir numa revoluo destinada a pr fim ao sofrimento. J que, no entanto, as causas

de sua misria tinham razes sistmicas, essa classe de sofredores, de acordo com a

inesquecvel sentena de Karl Marx, era uma classe singular de pessoas que no

poderiam se emancipar sem fazer o mesmo com o conjunto da sociedade humana,

nem poderiam acabar com sua misria especfica determinada pela classe sem

acabarem com toda a misria humana. Uma vez dotada desse poder, a classe

trabalhadora oferecia um abrigo seguro e natural para a esperana muito mais

seguro do que as cidades longnquas em que os autores das utopias do incio da Era

Moderna colocaram os seus dspotas iluminados, dos quais se esperava e confiava

que impusessem a felicidade a seus sditos inconscientes e originalmente tambm

relutantes. (BAUMAN, 2008, p. 211)

Tal pensamento tambm justificou os ataques desmedidos aos recursos naturais e

demais seres vivos, pois havia a certeza de que se o homem estivesse bem, no importaria o

resto, at porque tudo o mais seria substituvel.

Entretanto, essa premissa no se confirmou. A pobreza no foi eliminada. Tampouco

o sofrimento humano. Em um mundo em que falta referncia, onde tudo muito rpido,

quando o medo, o individual e a fluidez de todas as coisas prevalecem em todas as reas, o

homem se distancia de sua prpria essncia e, cada vez mais, questiona o que a felicidade.

2.1.3 Desafios da Segunda Modernidade

Como visto, o rompimento com os paradigmas tradicionais impulsionou o ser

humano em direo a um grande vazio. A necessidade de pertencer ao grupo acaba fazendo

com que as pessoas se adquem, sem maiores questionamentos, s novas tendncias.

Esse rompimento alterou, ainda, a prpria estrutura das sociedades, forando o

Estado a reordenar suas bases de sustentao, posto que com o rompimento com a Igreja, j

no lhe compete exercer liderana espiritual sobre seus administrados, evidenciando sua

32

incapacidade de assegurar condies scio-econmicas, adequadas a todos. o fim do estado

moderno:

Empoleiradas seguramente no trip econmico-cultural-militar, cada nao-estado

estava em posio melhor que qualquer outra unidade poltica anterior ou posterior

para assumir, catalogar, supervisionar e administrar diretamente os recursos

submetidos a seu poder, inclusive os recursos morais da populao e o potencial

contra estrutural da sociedade. Mas esse trip agora se desconjuntou. A muito falada

globalizao da economia e dos suprimentos culturais, junto com a insuficincia

defensiva de qualquer unidade poltica tomada sozinha, profetiza o fim do estado

moderno tal como o conhecemos. (BAUMAN, 2006, p. 159)

Bauman (2006, p. 159-162) prossegue afirmando que o trip econmico-cultural-

militar deixou de atender s necessidades das pessoas. A chamada economia nacional se

mantm para fins eleitorais, desdobrando-se para manter condies locais hospitaleiras,

atraindo intermedirios do capital cosmopolita, sem estado e nmade, para visitar e ficar. J

no exerce poder sobre as respectivas populaes, o que o enfraquece.

O Estado se interessa apenas pelo cumprimento das leis e manuteno da ordem por

ele editada. Essa nova postura estatal uma tendncia. No interessa prpria estrutura

poltica e, menos ainda, s comunidades, retrocederem ao status anterior, para sofrer

gerenciamento dirio de suas atividades pelo poder estatal.

As mudanas introduzidas pela modernidade trouxeram reflexos substanciais na

formao das cidades, proporcionando uma reconfigurao da ligao do homem com o

espao onde vive:

Enquanto os bairros centrais so valorizados e tornam-se objeto de grandes

investimentos urbansticos, outras reas so corrodas pela degradao e tornam-se

marginais. Quem possui recursos econmicos ou tem condies de deslocar-se tenta

se defender criando verdadeiros enclaves, nos quais a proteo garantida por

empresas privadas de segurana, ou transferindo-se para reas mais tranquilas e

nobres. Os mais pobres (ou seja, aqueles que so obrigados a permanecer onde

esto) so forados, ao contrrio, a suportar as consequncias mais negativas das

mudanas. Isso s pode gerar um crescente e difuso sentimento de medo.

(BAUMAN, 2009(b), p. 8-9)

Como o Estado no tem se mostrado capaz de dar respostas adequadas s

necessidades prementes dos seres humanos, promovendo uma melhor distribuio de riquezas

e, nem mesmo consegue disponibilizar o acesso a servios essenciais a toda a populao, a

parte que efetivamente sofre com os efeitos danosos das aes humanas sobre a natureza

acaba sendo a menos favorecida.

essa parte da populao que enfrenta o caos dirio: no atendida pelo transporte

pblico e pelo sistema de sade, no tem acesso gua potvel, coleta de esgoto e de resduos

33

slidos. Convive com a sujeira, com a criminalidade, com a marginalidade e,

consequentemente, com o medo.

As comunidades pobres so empurradas para a periferia, sujeitando-se a pssimas

condies de vida e explorao acentuada de sua fora de trabalho. Segundo Coutinho

(2011, p. 108), tal no ocorre em razo do crescimento desordenado das cidades, mas pela

lgica capitalista, que fora o trabalhador a se sujeitar a qualquer tipo de remunerao,

trabalho e condies para o exerccio de suas atividades, pois necessita assegurar a satisfao

de suas necessidades mais bsicas:

A configurao social das cidades no capitalismo perifrico est intimamente

relacionada reestruturao produtiva do capital e s mudanas no mundo do

trabalho, assentada na combinao da intensa explorao da fora de trabalho com

as precrias condies de vida, constituindo o que KOWARICK, define como

espoliao urbana: somatrio de extorses que se opera atravs da inexistncia ou

precariedade dos servios de consumo coletivo que se apresentam como

socialmente necessrios em relao aos nveis de subsistncia e que agudizam

ainda mais a dilapidao que se realiza no mbito das relaes de trabalho.

(COUTINHO, 2011, p. 106)

O processo de construo das cidades, sem preocupao efetiva com o ser humano e

voltado apenas explorao econmica, produz um excedente de mo de obra que se torna

suprfluo e no consegue ser absorvido pelo mercado local, sendo, portanto, empurrado para a

informalidade:

Tudo recai sobre a populao local, sobre a cidade, sobre o bairro. Definitivamente,

ao impor a rpida modernizao de lugares muito distantes, o grande mundo do livre

mercado, da livre circulao financeira, criou uma enorme quantidade de gente

suprflua, que perdeu todos os meios de sustento e no pode continuar a viver

como seus antepassados. So indivduos obrigados a deslocar-se, a deixar os lugares

onde so considerados refugiados para se transformar em imigrantes econmicos,

imigrantes que, em seguida, vo para outra cidade. Mais uma vez so os recursos

locais que tm de resolver como acomod-los. (BAUMAN, 2009(b), p. 79)

A partir da perda de identidade do ser humano com o local onde vive, a vez das

cidades serem vistas como mercadorias e, como tal, passam a ser geridas e consumidas:

Na verdade, h uma indissocivel relao entre o mundo do trabalho e o prprio

processo de construo das cidades e, apesar de no ser recente a constatao da

associao entre a trajetria das cidades modernas, a diviso social do trabalho e a

acumulao capitalista, o que implica uma relao direta entre a configurao

espacial urbana e a reproduo do capital, registre-se como categoria at certo ponto

diferenciada, nesse momento de reestruturao produtiva, o fato das cidades

passarem a ser geridas e consumidas como mercadorias. (COUTINHO, 2011, p.108)

O medo, inerente ao ser humano, se agrava com a generalizao desse sentimento,

sem que haja identificao exata de sua origem, criando mal estar e uma busca incessante por

segurana.

34

Bauman (2009(b), p. 14), ao analisar a questo do medo, vale-se dos ensinamentos

de Freud quando afirma que os sofrimentos humanos derivam do poder superior da natureza,

da fragilidade de nossos prprios corpos e da inadequao das normas que regem os

relacionamentos mtuos dos seres humanos na famlia, no estado e na sociedade. Conclui que

necessrio aceitar a impossibilidade de supresso de todos os sofrimentos, e aprender a lidar

melhor com as questes que nos afligem:

Em relao s duas primeiras causas expostas por Freud, podemos dizer que

conseguimos de algum modo aceitar os limites do que somos capazes de fazer:

sabemos que jamais poderemos dominar totalmente a natureza e que no tornaremos

nossos corpos imortais, subtraindo-os do fluxo impiedoso do tempo; portanto,

estamos prontos para nos contentar com a segunda opo. Essa conscincia, no

entanto, mais instigadora e estimulante e menos deprimente e inibidora. Se no

podemos eliminar todos os sofrimentos, conseguimos, contudo, eliminar alguns e

atenuar outros. O fato que sempre vale a pena tentar e tentar novamente.

A globalizao permite ao homem conectar-se com o mundo e vivenciar os

acontecimentos em tempo real, distanciando-o da identidade direta com o local onde habita.

As questes locais vm tona, nesse contexto, apenas quando interferem diretamente na

esfera individual, particular, quando se busca, nesse caso, solues de maior amplitude, porm

voltadas exclusivamente para a satisfao de interesses pontuais:

A gente da cidade no se identifica com a terra que a alimenta, com a fonte de sua

riqueza ou com uma rea sob sua guarda, ateno e responsabilidade, como

acontecia com os industriais e comerciantes de ideias e bens de consumo do

passado. Eles no esto interessados, portanto, nos negcios de sua cidade: ela no

passa de um lugar como outros e como todos, pequeno e insignificante, quando visto

da posio privilegiada do ciberespao, sua verdadeira embora virtual morada.

(BAUMAN, 2009(b), p. 27)

Nesse sentido, levantar a bandeira do meio ambiente, apesar de, no ntimo, por vezes

no representar os reais interesses, confere status s pessoas, colocando-as, sob o prisma

cultural, em uma posio admirada e inquestionvel.

Ressalte-se que, nessa perspectiva, muitas vezes a preocupao nem se concentra na

proteo do meio ambiente para todos. Na verdade, a defesa fervorosa de determinado espao,

tem como nico e exclusivo objetivo a satisfao de interesses diretos das pessoas envolvidas.

A ningum mais se permite usufruir dos recursos naturais ou mesmo dos avanos urbanos

obtidos. A defesa do meio ambiente, travestida de altrusta, no tem como finalidade o

interesse coletivo, e sim a preservao e proteo de interesses particulares ou, vulgarmente

falando, do meu ambiente.

Entretanto, essa tica distorcida no se encontra generalizada. No se pode ignorar o

constante despertar do ser humano para as questes ambientais, porque vale a pena tentar

35

estabelecer uma nova relao com os outros seres vivos, com o ecossistema. A poltica se

encaixa nesse novo cenrio, ocupando-se das questes locais, onde parece ser possvel

promover mudanas:

Nesse nosso mundo que se globaliza, a poltica tende a ser cada vez mais

apaixonada e conscientemente local. Como foi banida do ciberespao, ou teve seu

acesso vetado, ela se volta para as questes locais, as relaes de bairro. Para a

maioria de ns, e na maior parte do tempo, elas parecem ser as nicas questes em

relao s quais se pode fazer alguma coisa, sobre as quais possvel influir,

recolocando-as nos eixos, melhorando-as, modificando-as. [...] Tambm as situaes

cuja origem e cujas causas so indubitavelmente globais, remotas e obscuras s

entram no mbito das questes polticas quando tm repercusses locais. A poluio

do ar notoriamente global ou dos recursos hdricos s diz respeito poltica

quando um terreno, vendido abaixo do custo em razo da presena de resduos

txicos ou de alojamentos para refugiados polticos-, est localizado aqui ao lado,

praticamente em nosso quintal, aterrorizadoramente prximo, mas tambm (o que

encorajador) ao alcance da mo. (BAUMAN, 2009(b), p. 30-31)

Os abalos e incertezas, a sensao de que o tempo est acelerado, faz com que o

homem se volte para a satisfao de seus prprios interesses, perdendo o foco no outro, na

coletividade. Com isso, a sociedade contempornea sofre com a dissoluo dos vnculos de

solidariedade:

As cidades contemporneas so os campos de batalha nos quais os poderes globais e os

sentidos e identidades tenazmente locais se encontram, se confrontam e lutam, tentando

chegar a uma soluo satisfatria ou pelo menos aceitvel para esse conflito: um modo

de convivncia que espera-se possa equivaler a uma paz duradoura, mas que em

geral se revela antes um armistcio, uma trgua til para reparar as defesas abatidas e

reorganizar as unidades de combate. (BAUMAN, 2009(b), p. 35)

no plano local que se travam as grandes batalhas, nas quais se disputa o espao

pblico para satisfazer desejos particulares do ser humano, na medida em que se sente no

direito de destruir os espaos pblicos, conspurcar, utiliz-los de forma indevida em

detrimento de seu desfrute pelo restante da comunidade. Pode-se citar como exemplo, o uso

excessivo de placas, de anncios de propagandas, de destruio dos jardins, bancos e demais

equipamentos das praas, de aglomerao de pessoas sem o cuidado devido com o lixo

produzido, de utilizao de alto volume de som pelas pessoas em locais pblicos, dentre

outros. Como dito alhures, a escravizao do pblico pelo privado.

Compreende-se que a voracidade do consumo global e no encontra limites

socioeconmicos. Mesmo carecendo de recursos financeiros, o consumo objeto de desejo

das classes menos favorecidas. E tem se prestado, inclusive, como motivo e alvo de

campanhas eleitoreiras, que fazem apologia ao progresso das classes menos favorecidas como

vinculado possibilidade de consumo. Contudo, o verdadeiro progresso, consistente no

desfrute dos servios bsicos essenciais por todos, no tem plataforma, transformando as

36

classes populares em verdadeiros viles para o meio ambiente, visto que a vida humana por si

s, dada a quantidade de pessoas alojadas em locais inadequados, torna-se altamente

poluidora e, como num crculo vicioso, da mesma forma que provocam a degradao, arcam

diretamente com os efeitos danosos de suas aes.

A mudana desse cenrio exige investimentos severos em educao, sade e obras de

saneamento bsico, dentre outros. No se pode, contudo, ignorar e invalidar a importante

contribuio das classes menos favorecidas na defesa do meio ambiente, posto que o dever

agir com retido no se vincula a questes socioeconmicas. No a falta de recursos que faz

do homem um ser moralmente inadequado. Ao revs, Bauman (2006, p. 284-285) afirma que

a responsabilidade moral um dos mais preciosos direitos humanos, que no pode ser

eliminada, partilhada, cedida, penhorada ou depositada em custdia:

O que sabemos com certeza que curar a fraqueza aparente da conscincia moral

cabe ao eu moral, em geral desarmado perante a opinio unnime de todos os que o

cercam e de seus porta-vozes eleitos ou autonomeados; ao passo que o poder, que

aquela opinio unnime controlava, no era absolutamente nenhuma garantia de seu

valor tico. Sabendo disso, temos pouca escolha, a no ser apostar naquela

conscincia que, embora lnguida, s ela pode instilar a responsabilidade de

desobedecer ao comando de fazer o mal. Contrariamente a um dos axiomas mais

acriticamente aceitos, no h nenhuma contradio entre a rejeio de (ou ceticismo

para com) a tica das normas socialmente convencionalizadas e racionalmente

fundadas, e a insistncia de que o que importa, e importa moralmente, o que

fazemos ou deixamos de fazer. Longe de excluir uma outra, as duas s podem ser

aceitas ou rejeitadas juntas. Se duvidas, consulta tua conscincia. A responsabilidade

moral a mais pessoal e inalienvel das posses humanas, e o mais precioso dos

direitos humanos. No pode ser eliminada, partilhada, cedida, penhorada ou

depositada em custdia segura. A responsabilidade moral incondicional e infinita,

e manifesta-se na constante tortura de no se manifestar a si mesma suficientemente.

A responsabilidade moral no busca resseguro para o seu direito de ser ou para

escusas do seu direito de no ser. Est a antes de qualquer resseguro ou prova e

depois de qualquer escusa ou absolvio. Isso , pelo menos, o que podemos

descobrir olhando em retrospectiva para a moderna e longa luta para provar e fazer

real o oposto.

Saliente-se que o homem nunca esteve to preocupado com a natureza como agora.

Nunca se mostrou to compelido a enfrentar as questes ambientais e a propor alternativas.

Cada vez mais, se cogita em desacelerar, rever o processo de crescimento econmico, ampliar

as discusses sobre os avanos tecnolgicos.

O ambiente est mais frtil e propcio a mudanas. As pessoas demonstram

disposio para assumir novos compromissos, novas lutas, fazer o oposto. Esto se

mobilizando, se organizando, prontas a discutir e se envolver nas questes que, antes, ficavam

adstritas aos gabinetes dos especialistas.

O homem atual, enfim, valora a liberdade sobre a verdade e a cultura sobre a

natureza. Em