escola secundária dr. joaquim gomes ferreira alves -a melodia dos cabelos dançantes

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  • 7/30/2019 Escola Secundria Dr. Joaquim Gomes Ferreira Alves -a melodia dos cabelos danantes

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    ra uma vez Talvez esta no seja a melhor forma de comear esta aventuraera uma vez demasiadomontono, pouco estimulante, pouco atrativo, creio que no te ia cativar. Todas as histrias comeam com era umavez, mas esta histria no como os comuns contos de fadas, esta algo real, e, quando tu a ouvires, depois deadormecer com ela que vais sonhar.

    Numa longa tarde de vero, daquelas em que o ar morno e os nossos corpos so moles, pelos mais longnquos bosques deItlia, eu observei no horizonte mvel uma rapariga. De incio parecia-me uma vulgar rapariga, sem importncia alguma. Estranhei asua solido, mas tentei esquecer a ideia da sua imagem. Mas a minha viso era teimosa e eu no parava de olhar para a menina doscabelos danantes. A sua figura esbelta e delicada como uma flor aproximava-se cada vez mais e eu cadavez mais ansioso por poder desvendar a beleza que seu rosto de certeza tinha.Quando dei por mim, ela j estava a menos de mil metros, oque na altura me parecia muito mais

    prximoEu quase posso declarar que

    sentia a sua respirao incessante contudodelicada como uma flor que acabou dedesabrochar. Finalmente me atrevi a

    perguntar o seu nome (quase que apostavaque era to esbelto como ar o que elarespirava sobre mim). Com a sua confiante vozque no deixava de ser tnue e ingnua respondeu:

    - Chamo-meBelamina,mas osmeus amigos tratam-me por Bella. E o senhor?- Eu chamo-me Francesco. O que faz uma menina to frgil como tu neste bosque feroz e sombrio quando o sol se est a

    preparar para iluminar outras terras?-respondi, sem deixar o olhar dela, olhar esse muito mais forte que a fora de atrao entre aTerra e a Lua.

    Foi assim que comeou a nossa amizade, e cresceu muito mais que os carvalhos que nos rodeavam naquele anoitecer. Maisbela que aquelas btulas, vermelhas e vaidosas, que danavam ao som do vento, no tendo vergonha de se exibirem.

    Ouvia-se de longe as guas do rio a correrem numa corrida sem destino, sem conscincia, talvez competissem contra o suavearoma a jasmim que pairava no ar e que o vento teimava em espalhar. Parecia que a natureza estava sincronizada com a dana damenina, e com o incio da nossa amizade.

    J vivo nesta floresta h tanto tempo que j a conheo como a palma enrugada das minhas mos. Na altura em que eu aconheci, pensei que a vida j no me iria surpreender. Mas Belamina entrou por entre os meus cansados e montonos pensamentos emudou-me. A conversa foi curta, no passou de um virar de pgina de um livro, de um vulgar cumprimento. Disse-me que era

    costume vir para aquela clareira todos os fins de tarde, e prometeu-me regressar e esperar por mim todas as tardes. Sei que ela sesentia protegida com a minha presena, um pouco curvada como os troncos das rvores.

    Todos os dias, espervamos um pelo outro ansiosamente. Eu contava-lhe a experincia da vida, o passado, e ela alegrava-mecom pensamentos futuros. Contava-lhe as rotas por onde j passei, os meandros que a vida me revelou.Esta tal e qual a sensao queum pintor experimenta antes de iniciar uma obra de arte, nunca se sabe o que vai surgir da nossa mente. Contei-lhe que era um

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    viajante solitrio, um escritor que procurava inspirao em todas as partes do mundo. No o mundo ilusrio que todos se habituarama escrever mas talvez aquele que todos deveriam ver. Viajei desde os montes Urais na Rssia ao cheiro extico das especiarias dandia, percorri os campos de arroz da China, nadei lado a lado com os golfinhos no Pacfico, vagueei pelos mercados coloridos defrica onde os tecidos se organizavam segundo as cores do arco-ris. Deliciei-me com a subida quente das lanternas que iluminava ofrio dos cus da Tailndia. Percorri um mundo desigual mas belo. Todavia s aqui nesta pequena floresta encontrei a minhainspirao. s vezes nos lugares mais raros que os entendidos consideram sem qualquer interesse cultural e biolgico , nel es quecada um de ns se encontra consigo mesmo.

    Agora que reparo, eu falava mais que ela, mas o seu silncio valia mais que cem palavras. Dizem que o silncio a forma maisinteligente de conversao. Belamina falava-me da sua aldeia, das feiras populares que a caraterizavam e da doce mas salgada pizzaque saa dos grandes fornos da praa. Deu-me a entender que era uma menina solitria, que a sua companhia, para alm da famlia,era um pssaro azul como o cu, to grande que ela subia para o seu longo e grande corpo e deixava-se libertar naquele voo, voo esseque lhe permitia sonhar e esquecer o mundo que a rodeava. Belamina tinha uma viso cruel do Mundo. Sempre me questionei o que a

    fazia afastar-se das pessoas, da aldeia. Nunca falava de ningum em especial, parecia indiferente aos sentimentos humanos. Mas certodia falou-me de um rapaz, Vivaldo, que partira para Paris,em busca da concretizao dum sonho indeciso, para fugir profisso defamlia que o esperava : ser padeiro. Ele era o nico que a compreendia.

    Belamina falava dela como diferente, como se no entendessem o seu nobre pensamento. Este seu sentimento de fragilidade einsegurana estava em completa oposio com a viso que eu tinha dela. Para mim ela era nica mas bela, astuta, cheia de sonhos eansiava ser livre como um pssaro. Depois de muitas conversas, ficava sempre a observ-la a ir embora. Era como se as rvores

    baloiassem na melodia dos seus passos e os pssaros chilreavam dando um compasso quele movimento. Enrolava o seu leno deseda lils volta dos seus pequeninos braos como uma me enrola o seu filho para o proteger do frio da noite; a sua trana rodopiavaao longo do seu elegante pescoo formando um enorme cachecol cor de ouro. As suas pestanas definiam os seus grandes olhos onde

    as algas danavam sobre o seu olhar dando uma certa tranquilidade s mas do rosto rosadas. Tudo nela era harmonia.

    - Sou diferente. Eu sei que o sou. Os olhares desviam-se, as outras crianas riem-se de mim. - contava a pequena com aslgrimas a inundarem-lhe o rosto. - Posso mesmo dizer que o oceano ndico corria pelos seus olhos.Porque que a diferena vistacomo sendo algo mau?

    No sabia o que responder. Parte de mim queria dizer-lhe que no era diferente, que, aos meus olhos, ela era absolutamenteespecial.

    - Tu s nica, mas todos ns o somos. Somos diferentes na igualdade. Qual seria a graa se o mundo fosse todo da mesma cor,se o cheiro fosse sempre a alfazema e se o nosso paladar fosse sempre a ma? No irias sentir o prazer de cheirar alfazema pois noexistiriam outros cheiros; no apreciarias comer uma fresca ma numa noite ao luar, pois seria o nico alimento que conhecerias.Tudo o que se torna rotineiro acaba por cair no aborrecimento.

    - No percebes. No vs que estou sempre a danar?

    -E isso no bom?

    - algo que no consigo dominar. Desde pequenina que nasci com este dom. Os meus ps so irrequietos, comeam a baloiar

    na mais pequena e estranha sinfonia, basta o som das carruagens a passar nas ruas. Os meus braos ganham vida, abraam o ar numgrande adgio. Todo o corpo se junta num cordo sincronizado com o bater das asas de uma borboleta e o cair das folhas no mantoalaranjado do Outono. O que menos passa despercebido so os meus cabelos, andam sempre numa algazarra, de tal modo numa luta

    perptua, que se entrelaam entre eles mesmos, j no consigo andar com eles soltos, h anos que no desmancho esta trana.

    - Solta o teu cabelo e dana, dana livremente.

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    Ela danou. Imagineia num grande palco a danar o Lago dos Cisnes ao som de Tchaikovsky, tal era a graciosidade dos seuspassos. Oh os seus belos cabelos pareciam flutuar no ar, como que algum poderia discriminar um ser to belo como aquele?

    Eu no via diferenas. Nunca vi. E continuo sem ver. Aos meus olhos este dom s a torna mais especial. Contei-lhe que em

    breve teria que partir, teria que regressar aonde sempre pertenci. Como Manuel Antnio Pina dizia A casa a sombra do Viajante. e no podia estar mais de acordo. Paris era a minha casa. A viagem s se torna atrativa se tivermos o aconchego da casa na memria,o saber que algum espera as nossas saudosas cartas. Convidei-a para vir comigo, pedi para que me deixasse mostrar-lhe o mundo

    para alm daquela aldeia, que a desprezava pela diferena.

    - Seria bom acompanhares-me na viagem. Deixa-me mostrar o teu dom ao mundo, mundo esse que ir de certeza aplaudir-te.Parto amanh bem cedo, quando o sol ainda estiver preguioso e se esconder entre as nuvens.

    O silncio dela, mais uma vez o silncio falava. Sabia que viria comigo e no dia seguinte l estava ela com as suas pequenas e

    delicadas malas, com uma mente cheia de sonhos e a ambio de rodopiar em novos mundos. Toda esta nsia provocava nela umagrande alegria, que era demonstrada pela generosidade e alternncia dos seus passos, ora sissones orapas de bourres Trazia umvestido branco simples como a sua alma, ca-lhe sobre o corpo com a leveza de uma pena. Sim, ela estava pronta para a viagem

    Subiu para o meu branco cavalo e durante horas percorremos os caminhos mais remotos, observmos a beleza modesta doscampos de margaridas que atravessmos, sentimos a frescura das transparentes e plidas guas que brotavam da nascente, sentimos anatureza

    Ao anoitecer por entre a linha do horizonte que contornava as montanhas que cortavam o cu com um manto brancoconseguamos de longe ver a Cidade Eterna, Roma. medida que nos aproximvamos, um enorme enxame de luzes preenchia a

    paisagem e convidava-nos a entrar numa das mais belas cidades italianas. Decidimos parar para descansar.Durante aquele dia aindano tnhamos parado, nem mesmo para comer os dois bocadinhos de broa que Belamina se deu ao trabalho de preparar.Olhei para osseus olhos, estavam exaustos, embora no tivessem perdido o brilho. Prometi-lhe ficar uns dias na cidade para lhe mostrar os tesourosde arte que por aqui foram ficando, os ingredientes mais frescos e os sabores mais fortes que fazem das pizzas uma dascombinaes ideais para acabar o dia.

    Ficmos instalados em casa de uns amigos, que em tempos dedicaram as suas vidas, como eu, a viagens. Embora a loucuradeles no fosse to grande como a minha. Toda essa azfama das viagens levou-os a desistir h alguns anos. Receberam-nos e ficarammaravilhados com a beleza de Belamina, beleza to rara e pura como nunca antes vista. No fugiam regra das tpicas famliasitalianas: Lorenzo e Marslia foram buscar a melhor toalha, Marslia insistiu em pr o melhor servio, aquele que s usa em ocasiesde festa e no haja dvida que nos trataram como se estivssemos numa dessas ocasies.

    Belamina estava radiante com a quantidade variedade de iguarias e com o perfume que estas libertavam por entre as paredes depedra, ao qual era impossvel ficar indiferente. Fizeram questo de mostrar que ramos bem vindos. J sentados mesa, serviram-nosem primeiro lugarbruschettas, um pedao de po regado por um fio de azeite onde mergulhavam bocadinhos de alho e o manjericomais aromtico que alguma vez comi. Lorenzo foi adega buscar o melhor vinho, trouxe um Frascati, um subtil e saboroso vinho

    branco seco feito com Trebiano e Malvasia. Belamina deliciava-se com o spaghetti alla carbonara que Marslia fizera em especialpara a menina da trana de ouro. No ar pairava um clima de festa, o olfato, sempre atento, no deixava escapar nenhum aroma quesaa sempre que a porta do velho e enorme forno se abria. Surgiam gargalhadas por entre o iluminar das velas que nos rodeavam,

    brindvamos nova aventura que nos esperava e cantarolvamos as mais belas partituras de canes italianas.

    A noite estava serena e silenciosa, quente como a brisa do vento que por momentos se fazia sentir. Pedi a Belamina quedanasse, queria que ela soubesse que ali no havia razo de se esconder como uma rosa esconde o seu perfume por detrs das suas

    ptalas, ali poderia libertar-se, poderia deixar que a sua alma se soltasse deixando maravilhados todos aqueles que estivessem aassistir. Os seus olhos fixaram os meus. O tilintar das gotas da fonte do fim da rua criavam por entre os cus uma melodia mgica.

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    Bella deixou que a leveza do seu corpo se soltasse.Os seus esguios braos uniam-se formando uma bola que com um pequeno saltoconquistava o olhar de todos aquelas que a conseguiam ver no ptio da casa. Naquela longa e estreita rua as varandas preenchiam-sede admiradores.Todos eles olhavam maravilhados com tal dana. Belamina esquecera-se de tudo o que a rodeava, pela primeira vezno se deixava intimidar pelos olhares fixos que caam sobre ela. Aquele cu estrelado daquela quente noite de vero convidara-a a

    danarum villarete pelos paralelos da rua acima.

    -Bravo , bravo! ouvia-se por toda a parte. Desde pequenos a grados glorificavam e aplaudiam a pequena Bella que pelaprimeira vez sentiu a sua dana aceite por aqueles que a observavam.Que bailarina mais bela, encantado ! Bravo !

    Nos dois dias seguintes percorremos as ruas de Roma, Belamina a cada passo que dava soltava um novo passo de dana, osseus cabelos ganhavam uma vida nova, ela finalmente era uma flor que comeava a desabrochar. O seu doce e frgil rosto j erafalado por toda a cidade, os seus passos de dana corriam de boca em boca, os rapazes italianos no a deixavam passar despercebida,em cada canto l estava um a fazer-lhe uma serenata com uma rosa vermelha. Ao quarto dia da nossa estadia decidimos partir, apesar

    da insistncia de Lorenzo e de Marslia para ficarmos mais uns dias, j se fazia tarde.Ainda nos restava um longo caminho at estaviagem terminar. Lorenzo falou-me do porto de Brindisi, l seramos bem recebidos e comeramos os melhores pratos de peixe.

    Foi um dia longo de viagem, o sol ardente que nos caa sobre a cara fazia com que o passar das horas demorasse umaeternidade, o cavalgar do cavalo comeara a torna-se lento, o pobre animal que at ao momento no tinha mostrado fracasso,comeara a desistir . Chegmos quando a lua j bem l no alto iluminava o grande manto azul. A nossa estadia por aqui seria breve,hospedmo-nos numa pequena estalagem onde nos serviram algo quente para tomar e no dia seguinte, antes de o sol aparecer,

    partimos no primeiro barco de pescadores que sara do porto. No hesitaram em levar-nos consigo at ilha de Santorini, na Grcia.No houve um nico momento de silncio,eles faziam questo que este no entrasse no seu velho e azul barco. Fascinaram-nos comas histrias que nos contavam sobre as guas por onde j tinham navegado, desvendaram os melhor preservados mistrios do mar.

    Belamina por momentos fechava os olhos e deixava que o cheiro a maresia e o sal do mar lhe batessem na cara, sentia-se bem ao ladodaquelas homens do mar.Tinha-lhes muito respeito.Apesar de estes no terem uma vida fcil e estarem constantemente dependentedas vontades do mar, os olhos deles sorriam por entre as ondas e o brilho do sol na

    gua. As gaivotas, que voavam l no alto, nuncanos deixaram de acompanhar.Estas aves astutas, j sendo conhecidas dos pescadores, sabiam que, de algum peixe quevinha rede,algum seria para elas.

    Ao longe j conseguamos ver a longa colina. Os tons de azul e obranco caiado das casas transmitiam uma profundabeleza quele soberbo quadro. Uma nvoa

    rodeava a ilha como se fosse um verdadeiroconto de fadas. O leve azul da guacontornava aquela espcie de paraso. Todosos cinco sentidos eram despertados por aqueleespetculo natural. As trepadeiras teimosasinsistiam em trepar o branco cal das casas. Erauma insistncia que completava a palete decores da ilha contornada pelo mar Egeu. Aqui,fomos muito bem acolhidos, apesar de

    permanecermos pouco tempo. O tempo voava

    e ainda tnhamos muitas cidades parapercorrer. Apesar do escasso tempo, aindaconseguimos conhecer um velho grego que noscontou tudo sobre a ilha. Diz a lenda queEufemo, o navegador, deitou ao mar Egeu, um

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    pedao de terra dado por Trito e da surgiu Kalliste, que em grego significa a mais bela das ilhas. Continumos a nossa viagem,agora, rumo Monglia.

    A paisagem vestiu-se de cores tnues e calmas para nos receber, o sol que no nos deu descanso durante toda a viagem ,

    brilhava bem l no cimo no enorme manto azul do cu que por vezes era interrompido por montinhos brancos de algodo. O caminhoque ainda tnhamos para enfrentar no ia ser tarefa fcil, um extenso tapete arenoso esperava-nos. amos atravessar o grande desertode Gobi. Belamina no aguentava o calor, ardiam-lhe os braos conforme o sol lhe batia na pele, os cabelos caam-lhe sobre osombros, nem eles tinham foras para danar naquele momento. H horas que andvamos naquele deserto, e apesar de no ter ditonada a Belamina, comeava a sentir o meu corpo a desistir, as minhas foras comeavam a ficar derrubadas pelo cansao que j hmuito tempo me pesava sobre as costas. Depois de termos abandonado as areias do sul da Monglia, penetramos pelo verde e o

    baloiar das folhas dos pinheiros das plancies.

    Hulagu e Gengis receberam-nos na sua bela cabana. Belamina,ao incio, sentiu-se pouco vontade com a presena deles.Eram

    os tpicos caadores mongis.Sobre os seus corpos os volumosos casacos de pelo intimidavam a pequena menina, que se escondiaatrs de mim. Com o tempo habitou-se presena deles, a sua ateno era agora focada nas longas paredes de madeira da cabana quepor entre as ranhuras deixavam escapar o fresco cheiro dos pinheiros e entrar uma leve brisa queajudava que a sopa que os caadores nos tinham servido arrefecesse.

    Nessa tarde, Hulagu e Gengis ausentaram-se para caar, Belamina ficou contentepor ficarmos apenas os dois. Ainda lhe fazia alguma confuso que todas aquelascabeas de animais penduradas ao longo do corredor tivessem pertencido a animaiscaados por eles. O meu corpo continuava exausto, pela primeira vez ao longo destaviagem senti que j no sou um jovem aventureiro e que os anos que passaram desde

    ento comeavam a mostrar agora que j no vou para novo. Os meus ps estavaminchados e em ferida, a pele do meu rosto estava seca e plida, sentia que aqualquer momento me iriam cair os olhos com a fora que estes faziam parafecharem. Sentei-me numa das velhas poltronas de pele de javali junto janela.Apesar de ter uma das melhores paisagens que vi em toda a minha vida, depressaadormeci, segundo Belamina. Enquanto os sonhos me levavam por outros cantos domundo, Belamina resolveu ir dar uma volta pela floresta. Era l que se sentiacomo se estivesse em casa. Contou-me que descalou as sabrinas e se deitousobre a enorme manta lils onde por entre os enormes troncos dos pinheiros

    cresciam os mais belos ramos de lavanda. Os poucos raios do sol queconseguiam atravessar os ramos verdes dos pinheiros iluminavam-lhe a cara; oslongos cabelos tornavam-se cor de ouro e depressa comearam a danarconforme a brisa do vento se fazia sentir; a sua enorme trana enrolava-se nostroncos dos pinheiros.Nela pousavam os mais pulcros pssaros que se deixavamdeliciar pelos seus passos de dana. Regressou cabana, quando j estava o sol aesconder-se.

    Hulagu e Gengis tinham regressado h cerca de uma hora e preparavam-nos amelhor carne bovina para o jantar. No tinha disposio para comer, apesar de ter a

    esperana de que aps a sesta comeasse a sentir-me melhor. Continuava a doer-me oestmago, uma enorme dor de cabea no me largava, sentia uma peso mortosobre mim, enfim, tudo me doa.

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    Hulagu apercebeu-se que algo no estava bem, o meu plido tom de pele no o deixou indiferente. Foi-me buscar doiscobertores, fez questo que passasse a noite no quarto dele, ele l iria dormir para o sof.Fez-me um ch de flor de montanha eesperou at que eu o acabasse de beber para sair.

    Passei os dias seguintes com noites em branco a arder em febre, todo o corpo me doa. S o respirar o fazia com imensosacrifcio. Sabia que em breve a situao iria piorar .Pobre Belamina, apesar da imensa vontade que tinha em ajudar-me nada podiafazer. No podia permitir que ela permanecesse ali durante muito mais tempo, no tnhamos feito toda esta viagem para que a nossaltima paragem fosse numa cabana no meio das montanhas da Monglia. Pedi a Gengis que a acompanhasse at ao que seria o nosso

    prximo destino, ndia. A Belamina, estava a custar-lhe partir sem mim, receava que ao faz-lo nunca mais me voltasse a ver.Prometi-lhe que dali a trs meses nos iramos encontrar em Paris, a ltima cidade da nossa viagem, cidade essa que esperavaansiosamente para ver a magia desta menina. Dei-lhe um beijo quente e meigo na testa para me despedir. Partiram na madrugada dodia seguinte.

    Cavalgaram durante dois dias at chegar fronteira com a China. A preferiram trocar o cavalo pelo comboio, que durantedoze dias atravessou paisagens magnficas, enormes campos de arroz, linhas paralelas comprida muralha que preenchia todo aquelecenrio verde. Finalmente tinham chegado ndia, e embora o percurso at ento tivesse sido feito a dois, Gengis teria que deixarBelamina e regressar montanha. Belamina estava apavorada, nunca tinha estado to longe de casa, muito menos sozinha. Gengisrecordou que dali a dois meses e meio teria que estar em Paris para se encontrar comigo.

    Belamina permaneceu trs semanas na ndia, a sua estadia por l no fora fcil. Olhavam-na de lado, a sua cor e os seus traosincomodavam tudo e todos, quando ela passava na rua. Ficara instalada numa penso, onde permanecia a maior parte do seu tempo,escondendo-se como se fosse culpada de algo. Escreveu-me uma carta, ansiava por saber como me encontrar e eu, para a descansar,disse-lhe que a cada dia melhorava, e aos poucos saa do meu corpo aquele peso morto. Disse que deveria ir at Tailndia, sabia que

    a seria bem recebida sem dvida alguma. Mal recebeu a minha carta, apanhou o ltimo barco que saa do porto de Calcut.

    Viajou durante cerca de duas semanas pelo azul do mar Arbico, e mal pisouas terras tailandesas foi servida com o melhor ch do Oriente. Belaminaretribuiu a bondade do povo danando no meio da praa,da avenida, dosmais conhecidos mercados. Todos ficaram boquiabertos com a delicadadana daquele pequeno ser que para eles s poderia pertencer a outromundo. O nome de Belamina j se fizera conhecido pelas ruastailandesas e a cada passo ela danava como forma de retribuir a

    hospitalidade com que a tinham recebido.

    Ao contrrio da ndia , na Tailndia, o povo valorizou a diferena como algopositivo. Pelo facto de sermos diferentes tal no significa que somospiores pessoas ,sem valores, sem respeito. As diferenas permitem adiversificao do prprio gnero humano e a animao do mundocorrente. S as diferenas permitem que sejamos de todas as cores.Belamina sentia-se em casa, sentia que a Tailndia era como se fossea casa que sempre sonhou. Teve a leve ideia de que j conheciaaquele pas como a palma das suas mos e foi duro ter de partir, mas

    era necessrio. Agora partia rumo ao clima frio e rgido da Sibriaatravs de um pequeno barco que parecia bastante frgil para aquelatravessia. Hesitou em ir, mas aquele era o seu nico passaporte paraconhecer o mundo e sobretudo para se reencontrar comigo. Por ela e

    por mim, entrou naquele barco e demonstrou que era realmente mais

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    forte do que pensava. Posso mesmo dizer que aquela foi a mais intrnseca prova de amizade que alguma vez tive. Demorou trssemanas a chegar Sibria. Estas trs semanas foram as mais vividas de toda a viagem. Naquele barco passou por grandestempestadesGrandes e duras tempestades onde a ideia do fim da vida era bastante evidente , mas, devido percia do comandante esobretudo sua enorme tranquilidade, conseguiram chegar ao Japo sos e salvos para se reabastecerem e voltarem a mergulhar na

    aventura do mar .

    Permaneceu no Japo cerca de uma semana. Ainda assim conseguiu conhecer a msica ecltica do Japo e apaixonou-serealmente por um belssimo instrumento de cordas, Koto. Este instrumento despertou logo em Belamina um sentimento de liberdadee de paz com ela prpria. Com esta descrio j imaginam o que aconteceu: toda ela flutuava, danava com a suavidade de uma pena.Gostaria de ter estado naquele momento, mas a minha sade no me possibilitou. Mas continuando

    Belamina apercebeu-se de que ao contrrio de muitos locais que visitou e onde conheceu verdadeiros amigos, este local erarodeado de uma tranquilidade e racionalidade j antes percecionada. As pessoas eram muito cultas e pensavam de uma forma

    diferente da dos outros pases .Tinham sobretudo uma capacidade de disciplina interior incrvl. Para Belamina, o Japo e o seu povoficaram na sua memria como um pincel pensativo que bailava pelas folhas de papel.

    Rumo Sibria, deixou os climas tpidos da sia meridional e entrou neste novo mundo frio. Quando o barco aportou pareciaque as suas ideias estavam congeladas .Tudo nela estava frio e rgido, mas, apesar de toda aquela aparente autoridade do pas,Belamina admirou as belas paisagens onde o azul e o branco sobressaam. Belamina nunca tinha visto tanta gua gelada, tantoalgodo em rama congelado. Todo aquele mundo enregelado era novo para ela , mas no deixava de ser apaixonante.

    Belamina conheceu uma bela menina com olhos cor de mar, Marinka. Com ela explorou parte daquele fabuloso pas. Marinkamostrou a Belamina como brincar com a neve ,mas explicou-lhe que a neve, apesar de divertida, era muito restritiva. Explicou-lhe que

    o frio era muito aborrecido, as noites eram mal passadas , o vento era forte e que, muitas vezes, ficavam isolados por causa da neve.Na sua estadia ainda encontraram um grande e imponente tigre-siberiano. Ficaram com medo e tiveram de ser cautelosas e andaramcomo se tivessem almofadinhas nos ps. Marinka explorou algumas tradies siberianas e a que causou mais perplexidade foi, semdvida, Bania. Bania era uma tradio antiga que consistia em tomar banho em gua muito quente e depois mergulhar num lagogelado. Belamina,a princpio, estava um pouco apreensiva e achava que, para alm de doloroso, era desconfortvel. Como quealgum conseguia descobrir diverso na dor? A verdade que ela prpria adorou a experincia, apesar dos seus longos cabelosdanantes se terem retrado. Foram momentos bem explorados e construtivos mas,sabem que mais, Belamina tinha saudades de casaou de aconchego e, por melhor tratada que fosse nos locais por onde viajava , a necessidade de falar comigo era ainda maior. Estavaansiosa por chegar a Paris e contar-me tudo o que tinha passado sozinha! E quando estes pensamentos a circundavam, ela pensou o

    quo corajosa tinha sido. Ela realmente estava a tornar-se independente e,apesar dos maus momentos passados, Belamina conseguicrescer com os seus prprios erros e com todas as experincias. Tudo isto fora pensado quando se dirigia para o Canad num barco degrande porte.

    Quando chegou ao Canad decidiu seguir o conselho de Marinka,antes de atravessar todo o pas at ao Atlntico:visitar o lagoMoraine. Belamina, com a ajuda de Henry, um meu amigo que foi muito prestvel em acolh-la por uns dias em sua casa, conseguiuchegar ao belo lago. quase indiscritvel a beleza do lago. Aquele local com os seus tons de verde e azul parecia quase irreal,salpicado pelo cor-delaranja do esplndido pr do sol a finalizar o quadro.Aquela paisagem fazia esquecer todo o frio que tinha tidoat ento. Depois de terem sido ultrapassados pela aquela obra da Natureza, decidiram ir jantar. Aps a nobre refeio, Henry faloudas viagens que tinha feito e Belamina ficou encantada por descobrir que aquela grande viagem lhe tinha feito to bem e lhe abriu

    novos horizontes.Henry proporcionou-lhe um grande sero junto da lareira ,naquela grande casa de madeira.O toque final :enquantohavia esse autntico partilhar de experincias, Belamina bebia um delicioso chocolate quente. Para retribuir toda a ajuda oferecida, amenina pensou em elaborar uma rstica pizza italiana para tambm ela demonstrar as suas prprias tradies. Henry adorou e creioque repetiu aquele manjar dos deuses.Belamina partiu depois do almoo e de comboio foi at ao local que fazia ccegas ao majestoso

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    Atlntico.Durante a viagem adormeceu e sonhou com o seu amigo Vivaldo. H quanto tempo que no estou com ele-pensou-Faz-me tanta falta! Realmente h certas coisas que no se esquecem!!!

    Despediu-se do continente americano e saudou o velho continente europeu; separavam-se apenas por um gigante Oceano! A

    viagem foi dolorosa e s graas companhia de um jovem mexicano, Jos, que conseguiu ter esperana de que conseguiria chegar acasa. Jos era carinhoso e j tinha passado por muito. Podemos mesmo dizer que a vida no lhe tinha sorrido, mas que era to bondosoque ele no hesitava em lhe sorrir. Tinha ficado rfo aos trs anos e agora aos dezassete rumava para a Europa, para tentar esquecero passado e comear com o p direito uma nova vida cheia de alegria. Belamina e Jos tornaram-se grandes amigos e todos os dias atchegarem a Frana contavam uma nova histria das suas vidas e tentavam acompanhar-se e serem o suporte um do outro.

    Finalmente chegaram a Frana. Belamina j sentia falta daquele sol, daquele verde, daquela brisa que pairava no ar do culmpidoSentia-se novamente em casae este sentimento o sentimento mais reconfortante das nossasvidas! Despediu-se do seu amigo Jos com muitas lgrimas saudosas .Jos implorou que esta o

    acompanhasse at Marselha, mas ela teve de recusar, pois a promessa que me tinha feitoera muito importante para ela e Bella mostrava dedicao e respeito da sua parte paracomigo. O porto situado no rio Dele pertencia formosa e histrica cidade deLille.

    Antes de ir para Paris decidiu explorar um pouco esta cidade to bela.Lille magnfica em todas as suas formas, desde os monumentos como a Portade Paris, uma homenagem a Lus XVI de Frana, at arquitetura histricaconhecida pelo seu grande porto. Esta a maior cidade do Norte de Franae para Belamina uma das mais dinmicas e coloridas das demais.

    Belamina estava na formosa Praa das Cebolas quando reconheceu umvelho amigo: Vivaldo. A menina estava incrdula e mergulhava numdaqueles mares de felicidade profunda. Encontrou-o e contou todas asaventuras que tinha feito at ento. Este revelou-lhe que se tornara numfamoso pintor , que finalmente tinha conseguido realizar o seu sonho.Vivaldo disse que Um sonho concretizado a felicidade na sua plenitude

    . Essas palavras doces ficaram no ouvido da pequena bailarina e nos meustambm. No meio da conversa descobriram que ambos iam para Paris :um

    para cumprir uma promessa, outro para ir concretizando o sonho, isto ,

    Vivaldo ia fazer uma exposio na famosa cidade das luzes.

    Partiram num belo cavalo at Paris e quando l chegaram j era noite. Anoite tinha uma beleza inatingvel por outra cidade. A Torre Eiffel cintilava

    parecendo a estrela mais brilhante dos cus ,o arco do Triunfo era a porta de entradapara a inspirao criativa, os campos Elsios transpiravam frescura aos doces olhos deBelamina. Enfim, tudo sorria para estes cansados viajantes.

    Belamina rapidamente percebeu que aquele era o seu lugar, a sua verdadeira casa. L por no ter nascido ali no significavaque no se sinta mais confortvel neste exuberante lugar! Ela no percebia aquela sensao, mas o corpo e os seus grandes cabelos

    baloiavam a cada brisa de vento, a cada cheiro de rosa, a cada cintilar de estrela. Mais do que danar, Belamina voava, voava e pode-se mesmo dizer que quase tocava no infinito e negro cu. A seda do seu vestido contrastava com aquela paisagem nica, bela eesplndida. Belamina no conseguia esperar e foi ter ao local que combinou comigo.

  • 7/30/2019 Escola Secundria Dr. Joaquim Gomes Ferreira Alves -a melodia dos cabelos danantes

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    Mal a vi senti uma alegria resplandecente, uma saudade que at l estragava a minha alma, mas que ficou curada naquelemomento. Naquele momento tudo parou porque a minha pequenina princesinha estava de volta. Sabia que a tinha de levar pera deParis para que vissem quo harmoniosa era .Para mim, era importante mostr-la ao Mundo ... Dirigi-me com ela para a pera e pedi

    para falar com o diretor, meu amigo de infncia, que me esperava. Belamina danou como se no houvesse amanh, com toda a sua

    garra e astcia e no dia a seguir estava a ser aplaudida naquela majestosa pera! Belamina saltava de alegria delicada. Tinhafinalmente sido recompensada e reconhecida pelo seu enorme talentoDepois da sua atuao, levei-a a subir Torre Eiffel e, se bemme lembro, parecia que a menina no estava a subir os degraus mas sim a voarOs dois juntos vimos a beleza do pr-do-soldaquela cidade e ela acabou por adormecernos meus braos num sono profundo

    Acordei, desorientado e apercebi-me que Belamina no passava de um sonho irreal e que aquela amizade era boa de mais paraser verdade at que, no dia seguinte, a encontrei no tal Bosque italiano a danar sorridente para a vida