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QUADRO TEÓRICO Estudar a educação no contexto da realidade brasileira re- cente, a partir de um enfoque sociológico, exige um referencial teó- rico que pode ser encontrado em parte na sociologia e na economia da educação. Não tentaremos aqui uma revisão de todas as posições teóricas existentes; basta-nos, para justificar a posição por nós adotada, recapitular os limites e as vantagens das teorias mais conhecidas. Quanto à conceituação de educação e sua situação num contexto social, existe, em quase todos os autores, concordância em dois pontos: 1) a educação sempre expressa uma doutrina pedagógica, a qual implícita ou explicitamente se baseia em uma filosofia de vida, concepção.de homem e sociedade; 2) numa realidade social concreta, o processo educacional se dá através de instituições específicas (família, igreja, escola, comu- nidade) que se tornam porta-vozes de uma determinada doutrina pedagógica. Essa posição foi primeiramente sistematizada por Emile Dur- kheim, 1 que não especifica os conteúdos educacionais mas que parte do conceito do homem egoísta que precisa ser moldado para a vida societária. As novas gerações apresentam uma flexibilidade 1. Veja DURKHEIM, Êmile: Educação e Sociologia, Melhoramentos, 8? ed. São Paulo, 1972.

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QUADRO TEÓRICO

Estudar a educação no contexto da realidade brasileira re­cente, a partir de um enfoque sociológico, exige um referencial teó­rico que pode ser encontrado em parte na sociologia e na economia da educação.

Não tentaremos aqui uma revisão de todas as posições teóricas existentes; basta-nos, para justificar a posição por nós adotada, recapitular os limites e as vantagens das teorias mais conhecidas. Quanto à conceituação de educação e sua situação num contexto social, existe, em quase todos os autores, concordância em dois pontos:

1) a educação sempre expressa uma doutrina pedagógica, a qual implícita ou explicitamente se baseia em uma filosofia de vida, concepção.de homem e sociedade;

2) numa realidade social concreta, o processo educacional se dá através de instituições específicas (família, igreja, escola, comu­nidade) que se tornam porta-vozes de uma determinada doutrina pedagógica.

Essa posição foi primeiramente sistematizada por Emile Dur-kheim,1 que não especifica os conteúdos educacionais mas que parte do conceito do homem egoísta que precisa ser moldado para a vida societária. As novas gerações apresentam uma flexibilidade

1. Veja DURKHEIM, Êmile: Educação e Sociologia, Melhoramentos, 8? ed. São Paulo, 1972.

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para assimilar, internalizar e, finalmente, reproduzir os valores, as normas e as experiências das gerações mais velhas. O processo educacional é mediatizado basicamente pela família, mas também por instituições do Estado como escolas, universidades. As gerações adultas suscitam na criança, através dessas instituições, "certo nú­mero de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela socie­dade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança particularmente se destina".2

A filosofia de vida implícita nessa teoria educacional pressu­põe que a experiência das gerações adultas é indispensável para a sobrevivência das gerações mais novas. A transmissão da experiên­cia de uma geração a outra se dá no interesse da continuidade de uma sociedade dada. Também transparece aqui a posição do soció­logo que se opõe a qualquer forma de reducionismo. A educação é um fato social. Portanto, se impõe coercitivamente ao indivíduo que, para o seu próprio bem, sofrerá a ação educativa, integrando-se e solidarizando-se com o sistema social em que vive. Os conteúdos da educação são independentes das vontades individuais; são as nor­mas e os valores desenvolvidos por uma certa sociedade (ou grupo social) em determinado momento histórico, que adquirem certa generalidade e com isso uma natureza própria, tornando-se assim "coisas exteriores" aos indivíduos.3

É no processo educacional que essas coisas, ao mesmo tempo que são impostas de fora ao indivíduo, são por ele "internalizadas" e com isso reproduzidas e perpetuadas na sociedade. O indivíduo que originalmente apresentava uma natureza egoísta, depois de edu­cado, adquire uma segunda natureza, que o habilita a viver em sociedade dando prioridade às necessidades do todo, antes das necessidades pessoais. A educação é para Durkheim o processo através do qual o egoísmo pessoal é superado e transformado em altruísmo, que beneficia a sociedade. Sem essa modificação subs­tancial da natureza do homem individual em ser social, a sociedade não seria possível. A educação se torna assim um fator essencial e constitutivo da própria sociedade.

2. Ibid., p. 41. 3. Para a conceituação de "fato social" em Durkheim confira: D U R K H E I M

E . : As Regras do Método Sociológico, Editora Nacional, 6? ed., especialmente os Caps. I e II, São Paulo, 1971.

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Talcott Parsons, absorvendo em seu Social System'1 parte substancial das idéias de Durkheim, vê na educação (em sua termi­nologia apresentada como "socialização") o mecanismo básico para a constituição de sistemas sociais e de manutenção e perpetuação dos mesmos em forma de sociedades. Sem a socialização o sistema social é incapaz de manter-se integrado, preservar sua ordem, seu equilíbrio e conservar seus limites.5

Para que o sistema sobreviva, os novos indivíduos que nele ingressam precisam assimilar e internalizar os valores e as normas que regem o seu funcionamento. Parsons, ao contrário de Dur­kheim, não destaca tanto o aspecto coercitivo do sistema face ao indivíduo, mas ressalta a complementaridade dos mecanismos em atuação a fim de satisfazer os requisitos do sistema social e do sistema de personalidade. Assim como o sistema tem necessidade de socializar seus membros integrantes, também o indivíduo tem neces­sidades que somente o sistema pode satisfazer.

Há, portanto, no processo educativo uma troca de equivalen­tes em que tanto o indivíduo quanto a sociedade se beneficiam. A fim de maximizar as gratificações e minimizar as privações o indi­víduo se sujeita a certas exigências impostas pelo sistema. Este con­cede ao indivíduo certas gratificações para amenizar as tendências disruptivas do indivíduo e garantir assim o equilíbrio e a harmonia do todo. O equilíbrio do sistema de personalidade, por sua vez, é requisito do equilíbrio do próprio sistema social. A criança, ne­cessitada de amor e carinho materno, aceita as normas e as proi­bições formuladas no interesse da ordem social. A própria satisfação desses interesses do sistema, mediatizada pelos pais, vai sendo expe­rimentada como gratificação (reflexo condicionado) pela criança. Reforçada pelo sistema com elogios, carinho, sorrisos, ela não per­cebe que as necessidades do sistema estão se tornando suas próprias necessidades. É assim que o indivíduo passa a atuar no sistema como um elemento funcional do mesmo.

Como Durkheim, Parsons não fixa quais seriam os valores e as normas específicas de cada sistema. Mas como Durkheim, Parsons deixa claro que valores genéricos como continuidade, conservação,

4. PARSONS. Talcott: The Social System, The Free Press of Glencoe, Lon­dres, 1964 (1? ed. paperback).

5. Ibid. Confira especialmente o Cap. VI.

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ordem, harmonia, equilíbrio são os princípios básicos que regem o funcionamento do sistema societário como um todo e de seus subsis­temas, aos quais os indivíduos se sujeitam no seu próprio interesse. Ê por essa razão que tanto Durkheim como Parsons têm sido criti­cados por seus pressupostos conservadores, que os levam a exor­cizar, com auxílio de uma teoria educacional, o conflito, a contra­dição, a luta e a mudança social de seus sistemas societários. Os dois autores não vêem na educação um fator de desenvolvimento e de superação de estruturas societárias arcaicas, mas sim o know-how necessário, transmitido de geração em geração, para manter a estru­tura e o funcionamento de uma sociedade dada.

Divergem substancialmente dessa posição autores como De-wey ou Mannheim. Ambos vêem na educação não um mecanismo de correção e ajustamento do indivíduo a estruturas societárias dadas, mas um fator de dinamização das estruturas, através do ato ino­vador do indivíduo. No processo educacional o indivíduo é habili­tado a atuar no contexto societário em que vive, não simplesmente reproduzindo as experiências anteriores, transmitidas por gerações adultas, mas em vista de tais experiências, sua análise e avaliação crítica, ele se torna capaz de reorganizar seu comportamento e contribuir para a reestruturação e reorganização da sociedade mo­derna. Tanto o indivíduo como a sociedade são vistos num contexto dinâmico de constantes mudanças.

Uma análise mais detalhada da posição desses autores mostra, porém, como também a sua posição encerra limites intransponíveis. Dewey6 exige que não se faça uma separação entre educação e vida. "Educação não é preparação, nem conformidade. Educação é vida, é viver, é desenvolver-se, é crescer."7

Ao viver sua própria vida o indivíduo é forçado a atuar e sua ação se transforma em processo educativo. Isso porque Dewey parte do princípio de que o indivíduo se dispõe para novas ações depois de avaliar e reorganizar suas experiências. O ato educacional consiste, pois, em dar a esse indivíduo os subsídios necessários para que essa

6. DEWEY, John: Vida e Educação, Melhoramentos, São Paulo 1971 (7a

ed.). ' 7. Ibid. Veja a introdução de Anísio Teixeira: A Pedagogia de Dewey —

Esboço da Teoria de Educação de John Dewey, p. 31.

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reorganização de experiências vividas se dê em linhas mais ou menos ordenadas e sistematizadas. Ora, para que isso se efetive, o meio em que se dá o processo educacional tem que ser organizado e reestru­turado para que haja uma seqüência adequada de experiências que possam ser avaliadas e alargadas de forma mais ou menos siste­mática.

Para Dewey este meio é a escola, que deve assumir as carac­terísticas de uma pequena comunidade democrática. Aqui a criança aprenderia pela própria vivência as práticas da democracia, habili-tando-se a transferi-las, futuramente, em sua vida adulta, à socie­dade democrática como tal. Ainda mais, a vivência democrática na escola, onde ficariam excluídos os momentos perturbadores do estilo democrático de vida, fortaleceria na criança e no futuro adulto as regras do jogo democrático. Pois os cursos dessas escolas estariam aptos a reestruturar e reorganizar a sociedade global, que muitas vezes apresenta desvios em relação aos princípios da democracia, seja no campo econômico, político ou ideológico.

Assim vista, a educação exigida por Dewey vem a ser uma doutrina pedagógica específica da sociedade democrática. Educação não é simplesmente um mecanismo de perpetuação de estruturas sociais anteriores, mas um mecanismo de implantação de estruturas sociais ainda imperfeitas: as democráticas. Educação não se reduz aos valores e normas formuladas por Durkheim e Parsons, de cará­ter extremamente formal e conservador, mas está incondicional­mente ligada aos valores e normas da democracia. Pressupõe indi­víduos que tenham chances iguais, dentro de uma sociedade livre e igualitária, onde eles competem por diferentes privilégios. A compe­tição se dá mediante regras de jogo claramente fixadas, aceitas e internalizadas pelos indivíduos e em vigor e funcionamento nas diferentes instituições democráticas. Pode haver diferenças de nível e de qualidade entre os indivíduos, mas eles as aceitam como justas porque adquiridas democraticamente pelos diferentes indivíduos. O modelo societário subjacente é o da igualdade das chances, não o da igualdade entre os homens. Essa igualdade das chances é reconhe­cida e aceita pelos indivíduos que se admitem e aceitam como dife­rentes quanto a certos dons da natureza (força, inteligência e habi­lidade). As desigualdades na sociedade não são percebidas como diferenças geradas histórica e socialmente pelo próprio sistema so-

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cial estabelecido, mas como justas, decorrentes das diferenças natu­rais entre os homens.

Por isso este modelo societário também não é questionado, criticado ou modificado. Reina nele a ordem regulamentada pela competição: os conflitos são democraticamente solucionados. As mudanças admitidas nesse sistema societário se resumem no aper­feiçoamento das estruturas democráticas. Uma vez implantado esse sistema societário, todos os mecanismos funcionarão para a conser­vação do mesmo. A divergência inicial constatada entre a concepção de Durkheim e Parsons se apaga ao compararmos os resultados a que ambos os processos educacionais levam.

Em Mannheim temos uma versão ampliada da teoria de De­wey. V .

O jovem sociólogo de formação hegeliana, depois de experi­mentar o caos do fascismo e da II Guerra Mundial na Alemanha, emigra para a Inglaterra onde se deixa seduzir pelo modelo demo­crático da sociedade britânica. Em seus trabalhos, a partir de então, se torna advogado de uma sociedade democrática planejada.8 A natureza e a história do homem e da sociedade precisam ser contro­ladas de forma racional e democrática. Para tal se oferecem uma série de técnicas sociais e entre elas, estrategicamente, a educação. Essas técnicas precisam ser manipuladas de tal forma que impeçam a repetição do caos e garantam a manutenção de uma ordem social essencialmente democrática.

Para que as sociedades modernas alcancem esse objetivo su­premo da democracia, precisam educar os seus membros nas regras do jogo, valores e normas democráticos a partir das bases e desde o início da vida do indivíduo em sociedade. A educação assume aqui claramente uma conotação politica. A educação vem a ser o pro­cesso de socialização dos indivíduos para uma sociedade racional, harmoniosa, democrática, por sua vez controlada, planejada, man­tida e reestruturada pelos próprios indivíduos que a compõem. A pesquisa é uma das técnicas sociais necessárias para que se conhe­çam as constelações históricas específicas. O planejamento é a inter­venção racional controlada nessas constelações para corrigir suas

8. Veja MANNHEIM, Karl: Freedom, Power and Democratic Planning. New York, 1950.

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distorções e seus defeitos. O instrumento que por excelência põe em prática os planos desenvolvidos é a educação.9

Essa, compreendida no sentido mais amplo, como sociali­zação, encontra agentes nas mais variadas formas, e instituições. As mais fundamentais são a família (mas também grupos de refe­rência, vizinhança, etc), a escola e o lugar de trabalho (incluindo sindicatos, partidos, clubes, o boteco da esquina, etc). É nessas instituições que as práticas democráticas são adquiridas, forta­lecidas e reproduzidas. No complexo societário uma e outra insti­tuição exercem um controle recíproco sobre os indivíduos que a integram.

Assim, Mannheim, apesar de partir do objetivo final de uma sociedade democrática em pleno funcionamento, revela-se como um teórico na linha das reflexões de Dewey. É na própria experiência da vida em instituições de cunho democrático que se dá a educação para a democracia. Resta perguntar para ambos os autores o que vem primeiro: a democracia ou o indivíduo democrático? Pois, por um lado, a educação deve produzir indivíduos democráticos, capazes de criarem e manterem em funcionamento instituições e estruturas democráticas. Mas, por outro lado, esses indivíduos só virão a ser democratas convictos se as próprias instituições em que vivem lhes transmitirem as regras do jogo democrático. Ambos partem do pres­suposto que tanto os indivíduos como as instituições são — do ponto de vista dos valores básicos da democracia — imperfeitos. Essa imperfeição deve ser corrigida pela educação. Mas a própria edu­cação se efetiva em estruturas sociais concretas, as quais por sua vez são imperfeitas.

Surge o impasse. Dewey, que se limita ao nível da institucio­nalização da educação em escolas, propõe que essas assumam o caráter de comunidades democráticas artificiais que reproduzam de maneira perfeita as comunidades imperfeitamente democráticas da sociedade global envolvente. Os alunos que deixam essas escolas--modelo serão futuramente capazes de aperfeiçoar as instituições deficitárias da sociedade. Mannheim recorre à ciência e aos homens que a praticam: a intelligentsia.

9. Cf. MANNHEIM, Karl e STEWART, W. A. C: Introdução à Sociologia da Educação, Cultrix, São Paulo, 1972. p. 41 e segs.

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Treinados pela inteligência e pela razão, conhecendo as estru­turas em que vivem e os mecanismos históricos que as regem, os intelectuais se libertam com auxílio da reflexão consciente, dos condicionamentos e das deformações de classe, tornando-se aptos a planejarem e executarem o modelo da sociedade democrática racio­nalmente planejada e controlada.10 São eles, portanto, uma elite rarefeita que imporá aos demais membros da sociedade os princí­pios da organização da vida democrática. Os demais indivíduos, membros da sociedade, assimilarão, de bom grado, essas impo­sições, porque nelas aprendem a reconhecer sua própria felicidade. A democracia se transforma assim no autoritarismo democrático consentido pelo povo. Também nesse modelo se visa a implantação do sistema perfeito, ao qual os indivíduos precisam se adaptar. Os conflitos são controlados racionalmente e erradicados a longo prazo pelo comportamento democrático inculcado em cada um.

Também aqui, na doutrina educacional de Mannheim, desco­brimos, subjacente, o modelo da ordem, da harmonia, da ausência de conflitos e contradições de uma sociedade sem classes em que as diferenças horizontais e verticais entre os indivíduos são justificadas por uma ideologia democrática. Admite-se, porém, que, para che­gar a esse modelo, muitos esforços ainda precisam ser feitos, espe­cialmente através da educação, para criar nos indivíduos as cons­ciências adequadas de aceitação e reprodução do novo status quo proposto. Apesar de a educação ser uma "técnica social" de dinami­zação, superando velhas estruturas pela sugestão do novo modelo democrático, este — uma vez implantado — não permite novas mudanças. A educação passa a ser um processo rotineiro de cons­tante reprodução do mesmo: estruturas sociais supostamente demo­cráticas que de fato perpetuam desigualdades sociais e históricas, interpretadas como naturais e devidas a diferenças individuais, com auxílio do postulado da igualdade de chances.

Além dessas restrições feitas ao modelo teórico proposto por Mannheim permanece sem resposta a pergunta levantada por Marx: quem educa os educadores, quem planeja os planejadores, quem forma a intelligentsia que decidirá (democraticamente) sobre o des­tino dos homens na sociedade planejada de Mannheim?

10. Cf. MANNHEIM, Karl: Freedom, Power op. cit.

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As teorias educacionais até agora revistas pecam por seu alto grau de generalidade e seu extremo formalismo. Assim, referem-se a indivíduos e sociedades históricas, de características universais. Todos os indivíduos são sujeitos ao mesmo processo de socialização em uma sociedade dada, caracterizando-se esta por seu funciona­mento global, sua harmonia e ordem interna.

Durkheim e Parsons, negando a dimensão histórica e com isso a possibilidade de mudança do contexto societário em que vivem os indivíduos, negam também a concepção do homem histórico que seria produto dos condicionamentos sócio-econômicos, ao mesmo tempo que ator consciente dentro das estruturas que o condicionam.

Negam ainda a dimensão inovadora e emancipatória da edu­cação, que em suas teorias é reduzida a um instrumento de manu­tenção e apologia do status quo. Não se fala nos conteúdos educa­cionais específicos e no interesse de grupos em nome dos quais esses estão sendo transmitidos de geração em geração. Isso porque não partem de uma concepção de sociedade estruturada em classes ou grupos com interesses e aspirações distintas, já que a sociedade é concebida como um todo sistêmico composto por elementos (os indi­víduos) interligados que garantem o funcionamento harmonioso do todo. Os referidos autores expelem os conflitos e as contradições de seus modelos teóricos, escondendo com isso as diferenças sociais existentes. Ainda mais, postulam ser o sistema educacional o meca­nismo de ajustamento por excelência entre homem (indivíduo) e sociedade. Somente se aquele falhar, podem emergir os conflitos, concebidos como disfunções do sistema.

Dewey e Mannheim parecem, ao contrário, ver na educação um instrumento de mudança social, já que é através dela que se imporá e realizará a sociedade democrática. Educação, em verdade, é concebida como agente de democratização da sociedade.

A teoria dos dois autores está subjacente a concepção de sociedades empiricamente imperfeitas, contraditórias, conflituosas, não (perfeitamente) democráticas. No caso de Dewey a democrati­zação global será alcançada pela ação da escola "que educará para a rida". Quanto a Mannheim essa democratização se dará mediante estudo científico meticuloso das condições societárias vigentes (ta­refa da ciência). A base dos resultados desse estudo entra em ação o planejamento social que recorrerá à educação como um dos seus

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instrumentos estratégicos para encaminhar e garantir a democrati­zação.

O objetivo final, no caso de ambos os autores, é a sociedade democrática harmoniosa, em que reina a ordem e tranqüilidade, onde conflitos e contradições encontram seus mecanismos de solu­ção e canalização. Assim sendo, Dewey e Mannheim não diferem — quanto aos resultados finais de suas teorias — da posição a priori conservadora de Durkheim e Parsons. Pois, uma vez implantada a sociedade democrática, a função da educação se reduzirá a sua manutenção.

Divergem fundamentalmente dessa concepção do processo educativo autores como Passeron e Bourdieu? Têm eles uma visão histórica da sociedade e^dohõmem. Partem da análise e crítica da sociedade capitalista (especificamente da sociedade francesa do sé­culo X X ) . 1 1 A característica fundamental dessa sociedade é a sua estrutura de classes, decorrente da divisão social do trabalho, basea­da na apropriação diferencial dos meios de produção.

O sistema educacional é visto como uma instituição que pre­enche duas funções estratégicas para a sociedade capitalista: a reprodução da cultura (nisso os autores coincidem com as colo­cações feitas por Durkheim ou Parsons) e a reprodução da estrutura de classes. Uma das funções se manifesta no mundo das "repre­sentações simbólicas" (Bourdieu) ou ideologia, a outra atua na própria realidade social.

Ambas as funções estão intimamente interligadas, já que a função global do sistema educacional é garantir a reprodução das relações sociais de produção. Para que essa reprodução esteja total­mente assegurada, não basta que sejam reproduzidas as relações factuais que os homens estabelecem entre si (relações de trabalho e relações de classe); precisam também ser reproduzidas as represen­tações simbólicas, ou sejam, as idéias que os homens se fazem dessas relações. Durkheim, Parsons, Dewey e Mannheim praticamente reduziram a função das instituições escolares a essa última, ou seja, à reprodução de cultura, deixando de lado o que Bourdieu chama de reprodução social, isto é, a função de perpetuar a própria estrutura

11. BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude: A Reprodução - Ele­mentos para uma Teoria do Sistema de Ensino, Francisco Alves, Rio de Janeiro 19"5.

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social hierarquizada, imposta por uma classe social a outra. Assim, nas palavras de Bourdieu, o sistema educacional garante a "trans­missão hereditária do poder e dos privilégios, dissimulando sob a aparência da neutralidade o cumprimento desta função". 1 2

Daí deriva uma nova conceituação de sociologia da educação. Esta — segundo Bourdieu — "configura seu objeto particular quando se constitui como ciência das relações entre a reprodução cultural e a reprodução social, ou seja, no momento em que se es­força por estabelecer a contribuição que o sistema de ensino oferece com vistas à reprodução da estrutura das relações de força e das relações simbólicas entre as classes, contribuindo assim para a reprodução da estrutura da distribuição do capital cultural entre as classes".13

O sistema educacional consegue reproduzir as relações sociais, ou seja, a estrutura de classes, reproduzindo de maneira diferen­ciada a "cultura", i. e., a ideologia da classe dominante. Como Dur­kheim, Bourdieu considera o processo educativo uma ação coerci­tiva, definindo a ação pedagógica como um ato de violência, de força.14

Neste ato são impostos aos educandos sistemas de pensamento diferenciais que criam nos mesmos habitus diferenciais, ou seja, predisposições de agirem segundo um certo código de normas e va­lores que os caracteriza como pertencentes a um certo grupo ou uma classe.13

Bourdieu e Passeron mostram que o sistema educacional fran­cês moderno consegue, desta maneira, desempenhar, de forma mais ajustada que o sistema tradicional, a sua dupla função de reprodução (cultural e social). Se o sistema tradicional se caracterizava por dois tipos de escolas: as escolas da classe dominante (de "elite") e as es­colas "para o povo", hoje, o moderno sistema educacional não ostenta mais essa dualidade. Aparentemente unificado, ele "cul-

12. BOURDIEU, Pierre: A Economia das Trocas Simbólicas, Perspectiva, São Paulo, 1974, Cap. 7: Reprodução Cultural e Reprodução Social, p. 296.

13. Ibid.,p. 295. 14. BOURDIEU, P. e PASSERON, J. C: A Reprodução, op. cit, p. 20. 15. BOURDIEU, P.: A Economia das Trocas Simbólicas, op. cit. Veja espe­

cialmente o Cap. Sistemas de Ensino e Sistemas de Pensamento, publicado origi­nalmente em: Revue Internationale des Sciences Sociales, Vol. XIX, 3, 1967, pp. 367-88.

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tiva" certos sistemas de pensamento que permitem por um lado a retenção do indivíduo no sistema escolar, garantindo-lhe a ascensão aos níveis superiores do ensino. Para os demais que vão sendo excluídos oferece outros sistemas como justificativa de sua exclusão. Dessa maneira, o sistema educacional não reproduz estritamente a configuração de classes, como o fazia o anterior, mas consegue, impondo o habitus da classe dominante, cooptar membros isolados das outras classes.

Tendo tido êxito segundo os padrões fixados pela ação peda­gógica e estando por isso familiarizados com os esquemas e rituais da classe dominante, os cooptados vão defender e impor de maneira mais radical à classe dominada os sistemas de pensamento que a fazem aceitar sua sujeição à dominação. Ao mesmo tempo que o sistema educacional promove aqueles que, segundo seus padrões e mecanismos de seleção, se demonstram aptos a participarem dos privilégios e do uso da força (do poder), ele cria, sob uma aparência de neutralidade, os sistemas de pensamentos que legitimam a exclu­são dos não-privilegiados, convencendo-os a se submeterem à domi­nação, sem que percebam que o fazem.

Em geral, a exclusão é explicada em termos de falta de habi­lidades, capacidades, mau desempenho, etc, colocando-se o sis­tema educacional como árbitro neutro. Como mostra Bourdieu, a própria escola canaliza e aloca os indivíduos que a percorrem ou deixam de percorrer em suas respectivas classes, facilitando-lhes a justificação desse fato, através de sistemas de pensamento que ela mesma transmite. Assim a escola cumpre, simultaneamente, sua função de reprodução cultural e social, ou seja, reproduz as relações sociais de produção da sociedade capitalista.

Mas seria ela somente isso? Suas funções realmente se limitam à reprodução cultural e social das relações sociais?

Se assim fosse, como se justificariam as investidas e interfe­rências das empresas e do Estado na esfera educacional com a intenção de aprimorar recursos humanos e refuncionalizar o sistema educacional?

Parece óbvio que a sociologia da educação tem negligenciado o aspecto econômico da educação, dando origem a disciplinas para­lelas como planejamento educacional e economia da educação que procuram preencher as áreas não consideradas pelas teorias educa-

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cionais até aqui recapituladas. Becker,16 Schultz,17 Edding 1 8 e Solow19 são os pais dessas novas disciplinas que hoje orientam as decisões de muitos governos na área educacional.

Partem eles de uma constatação empírica que fundamenta suas reflexões teóricas: a alta correlação entre crescimento econô­mico e nível educacional dos membros de uma sociedade dada. Partindo de uma abordagem econômica, não encontravam eles uma explicação satisfatória do crescimento econômico do mundo oci­dental dos últimos decênios que seguem a II Guerra Mundial. Os fatores input da função de crescimento — capital e trabalho — não bastaram para justificar o output (taxa de crescimento) registrado. Durante muito tempo essa grandeza residual foi atribuída a um "terceiro fator", fator desconhecido que para alguns era a técnica, para outros "a measure of ignorance", da própria economia. Becker e Schultz procuravam desvendar o mistério, atribuindo à educação a causa do crescimento excedente. Aceita como válida essa hipótese, os investimentos econômicos "rentáveis" seriam aqueles que se con­centrassem no aumento quantitativo e qualitativo da educação for­mal da população ativa. Desde então se vem falando em investi­mento em recursos humanos, formação de capital humano, for­mação de manpower.

O planejamento educacional só vem a ser uma conseqüência lógica das colocações anteriores.

Já que a formação educacional é considerada direito e dever de todos e o Estado tem a obrigação de criar as condições para que todos estudem, será o próprio Estado o autor dos investimentos e do planejamento educacional. A economia da educação lhe fornece o embasamento teórico e, portanto, a justificativa tecnocrática para tal. Como o investimento é feito em nome do desenvolvimento da

16. BECKER, Gary S.: Human Capital, National Bureau of Economic Re­search, New York, 1964.

17. SCHULTZ, Thedore W.: O Capital Humano — Investimentos em Edu-cäo e Pesquisa, Zahar, Rio de Janeiro, 1971.

18. EDDING, Friedrich: Internationale Tendenzen In der Entwicklung der Ausgaben fuer Schulen und Hochschulen, Kieler Studien, Kiel, 1958; e EDDING, F.: Oekonomie des Bildungswesens. Lehren und Lernen als Haushalt und Investition, Freiburg i.Br., 1965.

19. SOLOW, Robert M . : Capital Theory and the Rate of Return, North Holland Publishing Company, Amsterdä. 1963.

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nação, produzindo uma taxa de crescimento que beneficia a todos, os cofres públicos podem e devem arcar com as despesas. A maior produtividade dos indivíduos não beneficia, porém, somente esse crescimento econômico da nação. Segundo os teóricos da economia da educação há uma "taxa de retorno social e individual". Isto significa em outros termos que a taxa de lucro criada com a maior produtividade dos indivíduos devida ao seu mais em educação é repartida de maneira justa entre o indivíduo e o Estado. Aquele porque investiu esforço, energia e tempo, perdendo potencialmente salários se tivesse utilizado esse tempo para seguir um trabalho remunerado. O Estado receberia de volta, sob forma de taxas e impostos, os investimentos originais mais a parcela da taxa de lucro, justamente repartida entre ele e o indivíduo. Numa análise ideológico-crítica a taxa de retorno se desmascara como a taxa de mais-valia que em verdade não beneficia o trabalhador que a produz, nem uma entidade abstrata como a nação, representada pelo Es­tado, mas sim o empresário capitalista, que empregou a força de trabalho.

Toda concepção da educação como investimento é válida, desde que conscientizada como investimento lucrativo para as em­presas privadas. A política educacional que adota essa concepção garante o crescimento da taxa de lucro para essas empresas. Alt-vater,20 um dos críticos da economia da educação, reinterpreta e traduz para uma terminologia marxista a versão economicista dos investimentos educacionais. Para ele, há de fato uma socialização dos gastos educacionais, mediatizada pelo Estado, no interesse da empresa privada e do capital monopolístico. Os investimentos feitos para aprimorar a força de trabalho, sob a forma declarada da "qualificação da mão-de-obra", "aperfeiçoamento dos recursos hu­manos", precisam ser vistos no contexto da produção capitalista. A força de trabalho não é qualificada, no interesse do trabalhador, para que melhore sua vida, se independentize e se emancipe das re­lações de trabalho vigentes, mas sim, para aprimorar e tornar mais eficazes essas relações, ou seja, a dependência do trabalhador em

20. A L T V A T E R , Elmar: Krise und Kriük — Zum Verthaelthis von Oeko-nomischer Entwicklung und Bildungs und Wissenschaftspolitik, em: LEIBFRIED, Stephan (ed.): Wlder dle Untertanfabrik — Handbuch zur Demokratlslerung der Hochschulen. Koeln, 1967. pp. 52-6.

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relação ao capiialista. Os investimentos educacionais vistos no con­texto da reprodução ampliada precisam ser compreendidos como investimentos em capital variável, que tornará mais eficientes inves­timentos em capital constante, aumentando com isso a produtivi­dade do processo de produção e reprodução capitalista. A economia da educação, baseada nos princípios da economia neoclássica, nada mais faz que explicar "o crescimento econômico" por manipulações feitas com auxílio da intervenção estatal na composição orgânica do capital. E mais, através do seu manpower approach torna-se uma disciplina normativa. Ela propõe ao Estado as formas de investi­mentos. Os gastos educacionais devem ser feitos com um mínimo de desperdício e desajustamentos entre o output do sistema educacio­nal e as necessidades do mercado de trabalho. Essas são, em ver­dade, as necessidades das empresas privadas em ter uma força de trabalho adequadamente treinada. A força de trabalho devidamente treinada, como mostra Altvater, funciona como capital variável, no processo produtivo, sendo o verdadeiro produtor da mais-valia.

A fim de cumprir com essa tarefa, a economia da educação recorre ao planejamento educacional. Os dois modelos clássicos da economia da educação — o modelo do investimento (input ou rate of return) e o modelo da demanda (output, manpower ou social de-mand approach) — se complementam servindo ao mesmo tempo como modelos explicativos e normativos do processo econômico. No primeiro, a unidade de cálculo é o dinheiro. Aqui se procura res­ponder às perguntas de como otimizar os gastos estatais; como alocar da maneira mais adequada os meios disponíveis (escassos) para alcançar maior rentabilidade. No segundo modelo, a unidade considerada é a pessoa qualificada, formada pelo sistema educa­cional, a ser alocada adequadamente na estrutura ocupacional. Se o primeiro modelo enfatiza a racionalidade (meios escassos ajustados a fins cuidadosamente ponderados), o segundo se preocupa com o equilíbrio entre oferta e procura de mão-de-obra no mercado de trabalho. No primeiro modelo há uma manipulação do orçamento público que vai beneficiar ou negligenciar certos ramos de ensino ou tipos de escolas. No segundo, a manipulação do sistema educacional e dos educandos é direta, procurando-se fazer da escola uma fábrica de mão-de-obra. Na quantidade e qualidade de seu output, ela pre­cisa considerar a demanda (e as oscilações dessa demanda) do mer­cado de trabalho. Como são os interesses da empresa privada que se

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manifestam neste mercado, o modelo negligencia os interesses da sociedade global e os interesses individuais, a favor daqueles.

O planejamento educacional executa na prática o que os dois modelos propõem em teoria. Ele além de ajudar a alocar os meios escassos de maneira ótima a fim de garantir o output quantitativo e qualitativo necessário para cobrir a demanda do mercado, funciona como mecanismo corretivo entre o sistema educacional e o mercado de trabalho. Naquele a lei da oferta e da procura não funcionam plenamente, pelo fato de a norma da maximização de lucros hão lhe ser aplicável. No mercado de trabalho tanto a lei quanto a norma atuam sem restrições. O planejamento educacional vem, pois, pre­encher a lacuna das leis de mercado inoperantes.

Segundo Huisken,21 os modelos da economia e do planeja­mento educacional nada mais fazem que ajustar o pessoal formado pelas escolas aos ciclos e às crises geradas pela economia capitalista. Criam eles uma certa flexibilidade do sistema capitalista face a tais crises. Sob a ideologia do desenvolvimento e do crescimento conti- :

nuado da economia e alegando ao mesmo tempo assegurar empre­gos duradouros à força de trabalho disponível, defendem, em ver­dade, os interesses da maximização dos lucros da empresa privada, pois mantêm em reserva um potencial de trabalhadores que cons­tantemente são reciclados em função das novas demandas geradas pela dinâmica e irracionalidade do modo de produção. O planeja­mento educacional constitui assim uma maneira de manipular "o exército industrial de reserva", dando-lhes sua plena funcionali­dade: fornecer a cada momento a força de trabalho necessária à expansão ou contenção da produção e degradar os salários.

Os modelos da economia da educação não divergem, em seus pressupostos básicos, das colocações de Durkheim e Parsons. Pode­mos dizer que os economistas da educação reassentaram o modelo sistêmico de Parsons em suas bases econômicas, pois a teoria do papel nele formulada consiste numa aparente troca de equivalentes. Ego define suas expectativas e suas ações em vista de alter e vice--versa; e ego satisfaz as expectativas de alter porque espera que também alter satisfaça as suas. Por isso não se podem definir, no | sistema, papéis isolados, mas sempre complementares. O papel do

21. HUISKEN, Freerk: Zar Kritik BuergerUcher Didaktlk and BUdungsoe-konomie, ListVerlag, Muenchen, 1973.

pai só está completamente circunscrito vis-à-vis do papel do filho (dos filhos), etc. Também a mercadoria A só consegue expressar seu valor num equivalente de B (uma unidade de A = duas unidades de B), o valor deste só se configura em sua plenitude quando expresso em A. A maximização das gratificações por parte de indivíduos corresponde em Parsons à maximização dos lucros ambicionada pelos capitalistas. A harmonia e o equilíbrio do sistema social de­pendem da livre e igual competição dos indivíduos atomizados (por­tadores de papéis), por posições sociais (poder e prestígio) que têm diferentes valores na hierarquia social. Ocupa a posição quem para ela estiver mais habilitado. Isso corresponde perfeitamente à lei da oferta e da procura no mercado em que diferentes vendedores e compradores de mercadorias competem na fixação dos preços, dando equilíbrio ao sistema. A mão invisível que regulamenta a harmonia e ordem dessas diferentes formas de competição é a mesma. Ela também é responsável pela "igualdade de chances" garantida a cada um, tanto no modelo social (de adquirir posições de prestígio e poder) como no modelo econômico (de adquirir mer­cadorias). As recompensas e gratificações correspondem ao quan-tum de mercadorias disponíveis ou compráveis. As perturbações do sistema nunca se originam de conflitos internos, mas são sempre produto de intervenções externas.

A economia da educação justamente ajuda a disfarçar a essên­cia do problema subjacente a estas ideologias da igualdade de chan­ces e da troca de equivalentes. Marx mostrou em sua teoria do valor que de fato pode haver equivalência entre duas mercadorias desde que medidas com uma unidade padrão que seja comum a ambas: o tempo médio socialmente necessário absorvido para a sua produção. Por isso se pode trocar um saco de arroz por dois de feijão. A única mercadoria disponível no mercado em que a equivalência não fun­ciona é em relação à própria força de trabalho. O seu valor de uso diverge do seu valor de troca. Pois ela, ao ser comprada no mercado por um valor, quando usada no processo de trabalho, produz mais valor do que custou ao comprador, o capitalista. Os indivíduos ou o Estado, investindo pois na qualificação da força de trabalho, e justa­mente para aqueles setores e ramos em que há necessidade de tra­balhadores mais ou menos qualificados, criam um valor. Este, no ato da troca, recebe seu equivalente (tempo socialmente necessário para produzi-lo) em salário. Mas na hora que essa força de trabalho

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é empregada no processo produtivo, ela gera mais valor do que o salário percebido. Este excedente não retorna ao indivíduo ou ao Estado que nele investiram para qualificá-lo, mas é apropriado pelo comprador, o empresário capitalista.

A tese da economia da educação de que há uma 'taxa de retorno individual e social, mascara esse problema da diferença de equivalentes. Nos salários que os indivíduos recebem, de fato se troca equivalente por equivalente. O salário corresponderá, em seu valor, ao tempo médio socialmente necessário para a produção e reprodução da força de trabalho, o que inclui sua qualificação para o trabalho. Mas esse salário é bem menor que o valor que o traba­lhador cria no tempo pelo qual vendeu sua força de trabalho. Sua maior produtividade face à sua maior qualificação não beneficia a ele, aumentando gradativamente seu salário, mas ao seu emprega­dor que se apropria da diferença, a mais-valia.

Assim como Parsons e os economistas permaneceram, em sua análise dos mecanismos de troca, na superfície dos fenômenos, assim também o faz, necessariamente, a economia da educação. Mais especificamente, ela procura mascarar a exploração e alie­nação da força de trabalho com sua teoria do crescimento e das taxas de retorno individuais. A "taxa de retorno social e individual" corresponde exatamente à taxa de lucro, apropriada pela empresa privada para assegurar o processo de acumulação do capital.

Os modelos teóricos sistêmicos tanto de Parsons como de Be­cker ou Schultz descrevem, portanto, o aspecto exterior do funcio­namento dos sistemas sociais. Não revelam os verdadeiros meca­nismos que produzem e mantêm as estruturas de desigualdade, mas os escondem atrás de aparentes igualdades e equivalências. Somente uma análise radicalmente crítica pode desmascarar o caráter ideo­lógico dessas teorias e da realidade que elas alegam descrever.

Essa análise é feita pela primeira vez de forma exaustiva e explícita por Althusser,22 Poulantzas23 eEstablet.24

22. ALTHUSSER, Louis: Idéologie et Appareils Idéologiques d'Etat, Pensée, Paris, junho de 1970.

23. POULANTZAS, Nicos: Escola em Questão, Tempo Brasileiro, n? 35, Rio de Janeiro, 1973, pp. 126-37.

24. ESTABLET, Roger: A Escola, Tempo Brasileiro, n? 35. Rio de Janeiro, 1973, pp. 93-125.

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Estes autores não analisam somente funções isoladas preen­chidas pela educação, escola ou sistema escolar (como foi o caso dos teóricos até agora examinados), permanecendo em um nível mera­mente descritivo, mas tentam chegar à essência do fenômeno, atra­vés de uma análise crítica da sociedade capitalista como um todo, nas instâncias econômica, política e social. É Althusser que, pela primeira vez, caracteriza a escola como "aparelho ideológico do estado" (AIE). Localizada no ponto de intersecção da infra-estru­tura e dos aparelhos repressivos e ideológicos do Estado, a escola preenche a função básica de reprodução das relações materiais e sociais de produção. Ela assegura que se reproduza a força de tra­balho, transmitindo as qualificações e o savoir faire necessários para o mundo do trabalho: e faz com que ao mesmo tempo os indivíduos se sujeitem à estrutura de classes. Para isso lhes inculca, simulta­neamente, as formas de justificação, legitimação e disfarce das dife­renças e do conflito de classes. Atua, assim, também ao nível e através da ideologia.

"A reprodução da força de trabalho exige não somente uma reprodução da sua qualificação, mas ao mesmo tempo uma repro­dução de sua submissão às regras da ordem estabelecida, i. e., uma reprodução da sua submissão à ideologia dominante para os operá­rios e uma reprodução de sua capacidade de bem manejar a ideo­logia dominante para os agentes da exploração e da repressão, a fim de assegurar, também pela palavra a dominação da classe domi­nante."25

A escola contribui, pois, de duas formas, para o processo de reprodução da formação social do capitalismo: por um lado repro­duzindo as forças produtivas, por outro, as relações de produção existentes.

Se em Bourdieu em certos momentos se tinha a impressão de a escola ser não somente instrumento, mas também causa da divisão da sociedade em classes, Establet26 e Poulantzas27 deixam bem claro que tanto a escola como outras instituições de socialização (os AIE de Althusser), como a igreja, meios de comunicação de massa,

25. ALTHUSSER, Louis: Ideologia e Aparelhos Ideológicos, op. cit., p. 6. 26. ESTABLET, Roger: A Escola, op. cit., p. 107. 27. POULANTZAS, Nicos: A Escola em Questão, op. cit., p. 129.

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família, "não criam a divisão em classes, mas contribuem para esta divisão, e, assim, para sua reprodução ampliada".28

Nisso se apoiam no próprio Marx, que deixou bem claro que a sociedade de classes não só é gerada, mas também reproduzida na própria esfera da produção. "A produção capitalista..., em si mes­ma reproduz a separação entre a força de trabalho e os meios de trabalho. Reproduz e perpetua, assim, as condições de exploração do trabalhador... O processo de produção capitalista considerado em seu contexto global, ou seja, como um processo de reprodução, não produz apenas mercadorias ou mais-valia, mas produz e repro­duz, igualmente, a relação capitalista: de um lado o capitalista, de outro o trabalhador assalariado."29

A escola vem a ser, portanto, um mecanismo de reforço dessa própria relação capitalista.

A contribuição de Althusser, Establet e Poulantzas à teoria da educação não consiste somente em perceber a multifuncionalidade do sistema educacional na complexa sociedade capitalista. Longe de verem nessas funções um mero somatório, revelam a dialética in­terna das mesmas, no contexto da estrutura global da sociedade. Assim a escola, na medida em que qualifica os indivíduos para o trabalho, inculca-lhes uma certa ideologia que os faz aceitar a sua condição de classe, sujeitando-os ao mesmo tempo ao esquema de dominação vigente. Essa sujeição é, por sua vez, a condição sem a qual a própria qualificação para o trabalho seria impossível.

É, pois, a escola que transmite as formas de justificação da divisão do trabalho vigente, levando os indivíduos a aceitarem, com docilidade, sua condição de explorados, ou a adquirirem o instru­mental necessário para a exploração da classe dominada.

Importante nessa explicação é o fato de que o caminho que garante a reprodução da força de trabalho, e com isso das relações materiais de produção, precisa ser preparado pelos aparelhos ideo­lógicos. A reprodução material das relações de classe depende da eficácia da reprodução das falsas consciências dos operários. Essas são criadas e mantidas com auxílio da escola. A reprodução da ideologia vem a ser uma condição sine qua non da reprodução das

28. Ibid., p. 129. 29. MARX, Karl: Das Kapltal. Vol. I, Dietz Verlag, Berlin, 1958, pp. 606-7.

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relações materiais e sociais de produção. A escola, como AIE mais importante das sociedades capitalistas modernas, satisfaz plena­mente essa função. 3 0

A escola atua no interesse da estrutura de dominação estatal e, em última instância, no interesse da dominação de classe. Essa dominação não se dá por via direta, através da aplicação explícita da violência, mas de maneira disfarçada, com o consentimento dos indivíduos que sofrem a violência da "ação pedagógica". A escola tem, pois, uma função básica de reprodução das relações de pro­dução. Para satisfazê-la, ela age de diferentes maneiras, ao nível das três instâncias. As diferentes formas de atuação, em seu desdobra­mento múltiplo, vistas dialeticamente no contexto estrutural global, acabam por se reduzir a uma essencial: a da manutenção e perpe­tuação das relações existentes.

Althusser, Poulantzas e Establet fornecem um referencial teó­rico que realmente permite analisar, explicar e criticar o funciona­mento da escola nas modernas sociedades capitalistas.

Até aqui, porém, ainda não foram esclarecidas quais as condi-ções históricas e estruturais que permitiram o fortalecimento dos AIE, em geral, e da escola, em especial, como mecanismos hoje indispensáveis da reprodução material e social das relações de produ-ção. Em outras palavras, Althusser não revela como surgiram esses mecanismos que procuram bloquear a tomada de consciência da classe operária, na intenção de anular os dinamismos que — se-gundo Marx — levariam inevitavelmente à luta de classes. Não que-remos com isso insinuar que os althusserianos vejam nos AIE, e especialmente na escola, os mecanismos exclusivos de formação e perpetuação da falsa consciência, impedindo a luta de classes e paralisando a história. Mas se aceitarmos as colocações dos autores ao nível puramente descritivo, então as coisas se passam na socie­dade capitalista como se de fato a escola tivesse esse poder. Essa dedução seria falsa, já que os dinamismos que criam o conflito e a luta de classes se localizam fora da escola, manifestando-se também nos AIE, mas não só neles. O peso da escola não pode, portanto, ser sobreestimado. A escola não é nem a causa da falsa consciência nem o único fator que a perpetua.

30. Cf. as exposições sobre Gramsci no texto a seguir.

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Em última instância, a causa determinante da condição de classe e da falsa consciência é a infra-estrutura econômica. Nas condições concretas das sociedades capitalistas modernas há porém uma sobredeterminação em que a escola assume um papel funda­mental na manutenção e reprodução das falsas consciências e, com isso, das relações materiais e sociais de produção.

Falta, na análise dos althusserianos, a gênese desse momento da sobredeterminação, bem como uma análise estrutural global detalhada que revele a conjunção de todos os fatores (adicionais ao da educação) que permitem que esta, institucionalizada em um AIE, assuma um papel estratégico na manutenção do status quo, procurando bloquear a história.

Falta também a explicitação de uma estratégia que permita, ao nível da superestrutura e dentro dos AIE, a superação desse momento de sobredeterminação. Uma teoria da educação realmente dialética teria que incluir em seu quadro teórico os elementos da prática que possibilitassem a superação de um determinado status quo. Essa teoria deveria mostrar o caminho para uma ação emanci-patória da educação no contexto estrutural analisado.

Althusser se limita a admitir que os AIE e, com eles, a escola, não devem ser encarados somente como objetos de estudo, mas sim como o lugar em que se manifesta a luta de classes. O autor não desenvolve, porém, reflexões sobre a possibilidade de a classe opri­mida assumir o controle dos AIE e através deles efetivar a luta de classes nas outras instâncias.

Althusser, apesar de admitir a importância estratégica da educação como instrumento de dominação nas mãos da classe domi­nante, não vê nela importância estratégica como instrumento de libertação por parte da classe dominada. Falta-lhe aqui, a nosso ver, a visão histórica e dialética dos AIE e da escola.

Sua visão de mudança em geral e refuncionalização da escola como AIE de uma nova formação social segue o esquema clássico de Marx.

A luta de classes se trava e se decide ao nível das outras duas instâncias, a econômica e a política. É aqui que se decide o destino da superação das estruturas capitalistas, não na instância dos AIE. Essa constatação vem a ser um tanto paradoxal, já que a impor­tância dos AIE e da ideologia para a manutenção e reprodução dessas estruturas havia sido claramente reconhecida.

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Gramsci vai ser o autor que atribui à escola e a outras insti­tuições da sociedade civil (ou seja, aos AIE de Althusser) essa dupla função estratégica (ou seja, a função dialética) de conservar e minar as estruturas capitalistas.

A preocupação central de Gramsci3 1 não é a escola e sua fun­ção específica na sociedade capitalista, e por isso não pode ser considerado um teórico explícito da educação.

Gramsci tem sido caracterizado, dentro da tradição do pensa­mento marxista, como o "teórico das superestruturas" e é nessa qualidade que ele fornece os elementos que permitem pensar uma teoria dialética da educação.

Uma contribuição importante de Gramsci à teoria do pensa­mento marxista consiste na revisão do conceito de Estado. Se Marx o considerava momento exclusivo da coação e da violência, Gramsci propõe sua subdivisão em duas esferas: "a sociedade política, na qual se concentra o poder repressivo da classe dirigente (governo, tribunais, exército, polícia) e a sociedade civil, constituída pelas associações ditas privadas (igreja, escolas, sindicatos, clubes, meios de comunicação de massa), na qual essa classe busca obter o consen­timento dos governados, através da difusão de uma ideologia unifi­cadora, destinada a funcionar como cimento da formação social". 32

A sociedade civil assume aqui um sentido novo, tanto em relação a Marx como a Hegel. Hegel confundia o conceito com o de Estado, caracterizando nele ao mesmo tempo a dominação e hege­monia burguesa. Marx o situa na infra-estrutura como expressão da própria relação de produção capitalista.

Para Gramsci a sociedade civil expressa o momento da per­suasão e do consenso que, conjuntamente com o momento da re­pressão e da violência (sociedade política), asseguram a manutenção da estrutura de poder (Estado). Na sociedade civil a dominação se expressa sob a forma de hegemonia, na sociedade política sob a forma de ditadura.

Os conceitos de sociedade civil e de hegemonia permitem pensar o problema da educação a partir de um novo enfoque:

31. GRAMSCI, Antonio: D Materialismo Storico, Editori Riuniti, Roma,

1973. 32. R O L A N E T . Sérgio Paulo: Imaginário e Dominação, Editora Tempo

Brasileiro, Rio de Janeiro. 1978, p. 69.

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permitem elaborar um conceito emancipatório de educação, em que uma pedagogia do oprimido pode assumir força política, ao lado da conceituação da educação como instrumento de dominação e repro­dução das relações de produção capitalistas.

Isso porque Gramsci admite que na sociedade civil circulam ideologias. Nela a classe hegemônica procura impor à classe subal­terna sua concepção do mundo que, aceita e assimilada por esta, constitui o que Gramsci chama de senso comum.

"É nesse sentido que Gramsci diz que 'toda relação de hege­monia é necessariamente uma relação pedagógica': no caso da hege­monia burguesa, trata-se essencialmente do processo de aprendi­zado pelo qual a ideologia da classe dominante se realiza histori­camente, transformando-se em senso comum. É uma pedagogia política, que visa a transmissão de um saber, com intenções prá­ticas."3 3

A função hegemônica está plenamente realizada, quando a classe no poder consegue paralisar a circulação de contra-ideologias, suscitando o consenso e a colaboração da classe oprimida que vive sua opressão como se fosse a liberdade. Nesse caso houve uma inte­riorização absoluta da normatividade hegemônica.

Para realizar essa função hegemônica, a classe dominante re­corre ao que Gramsci chama de instituições privadas (que na termi­nologia de Althusser seriam os AIE), entre elas a escola.

É por isso que na luta de classe o controle das instituições privadas pode assumir um papel estratégico e, dependendo da cons­telação histórica, prioritário diante do controle das instituições re­pressivas ou dos mecanismos de produção.

Pois a dominação das consciências, através do exercício da hegemonia, é um momento indispensável para estabilizar uma re­lação de dominação, e com isso as relações de produção.

Por isso a estratégia política da classe oprimida deve visar também o controle da sociedade civil, com o objetivo de consolidar uma contra-hegemonia.

Mas como assumir o controle, se a classe dominante, no exer­cício de sua hegemonia, monopoliza as instituições privadas, para através delas difundir sua concepção de mundo?

33. Ibid.,p. 72.

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É nesse contexto que assume importância a concepção da sociedade civil como o lugar da circulação (livre) de ideologias. Só não haverá essa circulação numa situação ditatorial, em que a socie­dade política invade o terreno da sociedade civil, transformando o que Althusser chamou de aparelhos ideológicos em aparelhos repres­sivos. Desde que uma classe pretenda assegurar seu domínio pela hegemonia, precisa conceder, mesmo ilusoriamente, um momento de liberdade, insinuando à classe oprimida que ela livremente opta por sua concepção de mundo. A contradição que aqui se expressa pode ser explorada de maneira consciente pela classe oprimida. Mediante seus intelectuais orgânicos ela pode lançar no âmbito da sociedade civil sua contra-ideologia. Esta procurará realizar-se atra­vés das próprias instituições privadas, os AIE, refuncionalizando-os; ou criando contra-instituições que divulguem a nova concepção do mundo, procurando corroer o senso comum. É óbvio que dentro dessa visão a escola e as doutrinas pedagógicas assumem uma importância estratégica. Mas também é óbvio que tal estratégia só terá chances de êxito quando a classe hegemônica oscilar no poder, delineando-se a corrosão do bloco histórico que garantia a sua hegemonia, e dando-se a emergência de um novo bloco. É evidente que as chances de êxito de uma pedagogia do oprimido e de uma educação emancipatória dependem da erosão das relações de pro­dução capitalista nas três instâncias que compõem o bloco histórico. Nisso Gramsci não diverge dos althusserianos.

Mas estes, ao reformular na teoria dos AIE o tema gramsciano da hegemonia, omitiram o essencial da contribuição de Gramsci — a tese de que a luta política pode, e no contexto do capitalismo avançado deve, travar-se prioritariamente na instância da sociedade civil. O que não exclui que em outras sociedades em outros estágios de desenvolvimento histórico o papel decisivo possa caber à infra--estrutura ou à esfera estatal (sociedade política).

Dentro desse esquema gramsciano se torna possível pensar dialeticamente no problema da educação e no funcionamento da escola.

Somente ele permite a conceituação de uma pedagogia do oprimido e uma educação emancipatória institucionalizada. Isso porque o referencial teórico não se limita à análise, explicação e crítica de uma sociedade historicamente estabelecida (como a socie­dade do capitalismo avançado), mas oferece também os instrumen-

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tos para pensar e realizar, com o auxílio da escola e das demais instituições da sociedade civil (e em certos momentos históricos, eventualmente, a partir deles), uma nova estrutura societária. Os dinamismos que regem — como revelou Bourdieu e denunciaram os althusserianos — o funcionamento da escola capitalista como repro­dutora das relações materiais, sociais e culturais de produção dessa formação histórica podem ser explorados em sua contradição in­terna, para corroer não só sua própria funcionalidade, mas a da própria estrutura capitalista em questão. A contra-ideologiar na forma de uma "pedagogia do oprimido", pode apoderar-se do AIE escolar, corroendo-o, refuncionalizando-o, destruindo-o, ao mesmo tempo em que a nova pedagogia nele se institucionaliza para divul­gar sua nova concepção de mundo.

É por isso que, para Gramsci, "toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica". 3 4 E toda conceituação de educação é necessariamente uma estratégia política. Isso explica por que o controle do sistema educacional constitui um momento decisivo na luta de classes.

Numa formação social historicamente realizada, esse controle sempre é exercido pela classe dominante, mas, dependendo da sociedade e da conjuntura histórica específica, o Estado pode inter­calar-se como mediador, como é o caso do capitalismo moderno. Sob a aparência de defender uma concepção de mundo universal, justa e neutra em relação a todos os membros da sociedade, o Estado capitalista introduz ao nível da sociedade política e civil a concepção do mundo da classe hegemônica, da burguesia, usando a escola como um dos elementos de sua divulgação, inculcação e pene­tração. Como destacaram Establet, Poulantzas e Althusser, essa intervenção estatal não se limita às instâncias da superestrutura. O Estado capitalista moderno interfere diretamente na infra-estru­tura, criando com as escolas "fábricas de mão-de-obra qualifi­cada", i

É por isso que o modelo gramsciano, explicitado em certos aspectos pelos althusserianos, fornece o quadro teórico referencial mais adequado para a nossa análise da política educacional brasi­leira. Como nesta análise nos propusemos tratar basicamente da

34. GRAMSCI, A.: op.cit.p. 30.

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política educacional oficial, a conceituação de Estado e as funções a ele atribuídas têm peso fundamental.

A diferenciação desse conceito, introduzida por Gramsci, de­monstra-se neste contexto extremamente frutífera. Pois, podemos inserir, na nova tipologia criada — sociedade política, sociedade civil e infra-estrutura — todas as ações do Estado concernentes à educação focalizando-as a partir de um novo prisma. Se concei­tuarmos política educacional como a ação estatal, no sentido lato de Gramsci, essa política abrange as atividades educacionais tanto da sociedade política como da civil.

Sendo a sociedade politica o lugar do direito e da vigilância institucionalizada, será ela a encarregada de formular a legislação educacional, de impô-la e fiscalizá-la. Ao fazê-lo, ela absorve a concepção do mundo da classe dominante, a interpreta e a traduz para uma linguagem adequada, para que seja legalmente sancio­nada. Assim, em um certo sentido, a legislação educacional já é uma das formas de materialização da filosofia formulada pelos intelec­tuais orgânicos da classe dominante. Toda classe hegemônica pro­cura concretizar sua concepção de mundo na forma do senso co­mum, ou seja, fazer com que a classe subalterna interiorize, os valores e as normas que asseguram o esquema de dominação por ela implantado. Um dos agentes mediadores entre a transformação da filosofia da classe hegemônica em senso comum da classe subalterna é o sistema educacional, dirigido e controlado pelo Estado.

O lugar do sistema educacional é a sociedade civil. É aqui que se implantam as leis. Se estas já representavam uma forma de mate­rialização da concepção do mundo, a sua verdadeira concretização somente se dá quando for absorvida pelas instituições sociais que compõem a sociedade civil. Essas, por sua vez, a inculcam aos dominados de tal maneira que estes a transformam em padrões de orientação de seu próprio comportamento. O "senso comum" é pois a forma mais adequada de atuação das ideologias. A escola è um dos agentes centrais de sua formação. A implantação da legislação edu­cacional na sociedade civil significa criar ou reestruturar o sistema educacional no "espírito da lei", ou seja, de acordo com os inte­resses da classe dominante traduzidos em sua concepção de mundo e reinterpretadas na lei.

Portanto, o Estado, depois de formular as leis ao nível da sociedade política, se encarrega também de sua materialização na

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sociedade civií, fazendo com que haja as condições materiais e pessoais de sua implantação e que a mesma concepção do mun­do absorvida em lei agora se reflita nos conteúdos curriculares, na seriação horizontal e vertical de informações filtradas, na im­posição de um código lingüístico (o das classes dominantes), nos mecanismos de seleção e canalização de alunos, nos rituais de aprendizagem impostos ao corpo discente pelo corpo docente, etc.

A política educacional estatal procurará alcançar a hege­monia, sempre na defesa dos interesses da classe dominante. Por isso seu domínio não se pode dar pela violência (seria o caso da dita­dura), mas precisa criar as condições para que os indivíduos das classes subalternas façam suas opções de forma aparentemente livre. Por isso o Estado não pode, por exemplo, impor rigidamente a escolha das profissões, limitar as leituras dos estudantes, privá-los ostensivamente do direito à reflexão. O pequeno grau de liberdade que necessariamente precisa haver na sociedade civil, para conse­guir a dominação pelo consenso e garantir a hegemonia da classe no poder, é a chance de liberação da classe subalterna. Quando esse grau de liberdade é utilizado para propagar uma contra-ideologia, pu se cria uma nova situação hegemônica ou o Estado interfere com seus mecanismos corretivos, tanto ao nível da sociedade civil como da política, para impedir a concretização dessa contra-ideologia. Também há interferência estatal quando, no processo de transfor­mação da concepção de mundo em senso comum, ocorrem, na reali­dade efetiva, defasagens em relação às intenções originais da classe hegemônica. Em ambos os casos, o Estado mobiliza os corretivos, reformulando leis (reforma do ensino), reestruturando a organiza­ção interna do sistema educacional, reorganizando currículos, etc. Os corretivos da política educacional visam ou um ajustamento perfeito do funcionamento da realidade efetiva aos postulados ine­rentes à concepção do mundo, ou reformulam essa própria con­cepção do mundo sob forma de leis, programas, planos, etc, quando a realidade, especialmente a esfera da produção, apresenta alterações substanciais, que modificam a constelação de interesses da classe detentora dos meios de produção, forçando-a a rever sua concepção de mundo.

Podemos dizer que isso ocorreu em relação à escola e à valo­rização da educação como força produtiva no justo momento em que

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a reprodução ampliada passou a depender da força de trabalho cada vez mais qualificada.

A política educacional estatal age e se manifesta acima de tudo na superestrutura; de fato, porém, sua ação visa a infra-estru-tura: aqui ela procura assegurar a reprodução ampliada do capital e as relações de trabalho e de produção que a sustentam.

Por isso a política educacional se manifesta, direta ou indire­tamente, também na infra-estrutura. A sua atuação é direta quando visa transformar a escola nos centros de qualificação da força de trabalho. Com isso o Estado procura ativar as forças produtivas em nome de um projeto de desenvolvimento da sociedade global, de fato, porém, no interesse dos detentores dos meios de produção. Também no caso específico desta política educacional o Estado funciona como corretivo da própria economia capitalista.

A análise crítica da escola ou do sistema educacional como AIE, i. e., como mecanismo de dominação pelo consenso, realmente só aparece em todas suas dimensões quando demonstrada sua vincu­lação dialética com a política educacional do Estado. Somente a atuação desta nas três instâncias através da manipulação do AIE escolar torna compreensível a multifuncionalidade do sistema de ensino nas diferentes instâncias da formação capitalista. O Estado através de sua política educacional só é o ator e a causa central do funcionamento do moderno sistema de educação capitalista, apa­rentemente. Em verdade seu papel é o de mediador dos interesses da classe dominante.

Esses interesses se concentram na base do sistema, a produção de mais-valia, ou seja, manter as relações de exploração da classe subalterna.

É este o quadro referencial teórico dentro do qual procura­remos desenvolver nossa análise da política educacional brasileira da última década.