escola e democracia. edição comemorativa - saviani
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SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Edição comemorativa. Campinas: Autores Associados, 2008. 112 p.TRANSCRIPT
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Este livro pode ser considerado o ma-
nifesto de lançamento da pedagogiahistóricocrítica. O primeiro capítulo
apresenta o diagnóstico das principais
teorias pedagógicas. Mostra as contri-
buições e os limites de cada uma delas.
E termina com o anuncio da necessida-
de de uma nova teoria. O capítulosegundo é o momento da denúncia.
Pela via da polêmica, procurase des-
montar as visões que se acreditavam
progressistas de modo que se abra ca-
minho para a formulação de uma
alternativa superadora. O capítulo ter-ceiro apresenta as características
básicas e o encaminhamento metodo-
lógico da nova teoria, que passou a se
chamar de pedagogia históricocrítica.
Finalmente no capítulo quarto são
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Finalmente no capítulo quarto são
EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira
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Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Bernardete A. Gatti Carlos Roberto Jamil Cury Dermeval Saviani Gilberta S. de M. Jannuzzi Maria Aparecida Motta Walter E. Garcia
Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis
Coordenadora EditorialErica Bombardi
RevisãoAline MarquesRodrigo Nascimento
Diagramação e ComposiçãoDPG Editora
CapaDafne, a Sibila Délfica , Michelangelo, afresco na Capela Sistina (c. 1510)
Arte-finalErica Bombardi
Impressão e AcabamentoProl Editora Gráfica
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Saviani, Dermeval
Escola e democracia / Dermeval Saviani. - Campinas, SP: Autores
Associados, 2008. - (Coleção educação contemporânea)
“Edição comemorativa”
Bibliografia.
ISBN 978-85-7496-219-1
1. Democracia 2. Educação - Filosofia 3. Política e educação I. Título.
II. Série
08-04723 CDD-379
índices para catálogo sistemático:
1. Política e educação 379
Impresso no Brasil - julho de 2008
Copyright © 2008 by Editora Autores Associados LTDA.
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Para Benjamim,
esperando que os filhos de sua geração
alcancem estudar numa escola verdadeiramente
democrática.
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Sumário
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Prefácio àedição comemorativa
ano de 2008 é particularmente significativo para o livro Escola e democracia.
Ao mesmo tempo em que se comemo
ram os 25 anos de seu lançamento, a
obra atinge a quadragésima edição.
Diante dessas circunstâncias, a
Editora Autores Associados decidiu preparar um lança
mento especial comemorativo desses dois importantesmarcos editoriais. O livro recebe um novo tratamento
gráfico, sendo apresentado em formato maior.
Aproveitei, então, o ensejo para ampliar seu conteú
do, incluindo o prólogo à edição uruguaia que a profes
sora Ema Julia Massera Garayalde, da Universidad de la
República, elaborou em março de 1988 para apresentar
o autor e a obra aos leitores de língua espanhola.Além do mencionado prólogo, acrescentei também
um apêndice constituído pelo texto “Setenta anos do
‘Manifesto’ e vinte anos de Escola e democracia: ba
lanço de uma polêmica”, que apresentei no “Colóquio
Nacional 70 anos do Manifesto dos Pioneiros: um legado
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X DERMEVAL SAVIANI
educacional em debate”, realizado em Belo Horizonte de 19 a 21 de agosto
de 2002.
Tomei a decisão de incluir esse texto, pois ele traz esclarecimentos im-
portantes sobre os aspectos polêmicos levantados pelo livro que, acredito,
são de interesse dos leitores.
O texto em referência, dirigido aos historiadores da educação, tem
como fio condutor a diferença entre a abordagem polêmica e a abordagem
historiográfica.
Considerando o debate travado, tomei a iniciativa de enviar aos principais
interlocutores nomeados no texto a primeira versão para a apreciação dos
colegas. Respondendo a essa iniciativa, a professora Zaia Brandão, após ler
a versão que lhe enviei, encaminhou uma bela e simpática carta. Gratificado
com esse retorno, registrei, em nota ao pé da primeira página: “Agradeço,
também, a Zaia Brandão a simpática carta redigida imediatamente após a
atenta leitura deste trabalho em que considera ‘o debate entre pares’ como a
‘via áurea da produção acadêmica’”. Lamentavelmente, os organizadores da
coletânea que reuniu os trabalhos apresentados no colóquio, por um lapso,
não utilizaram a última versão que lhes enviei, não tendo sido publicado esse
meu registro. Aproveito, então, esta oportunidade para reparar essa injustiça
estampando, no anexo, a íntegra da carta de Zaia Brandão.
Ao ensejo dessa edição comemorativa cabe-me agradecer à Aline
Marques, pela revisão cuidadosa dos originais, e à Erica Bombardi, pelo
esmero com que vem cuidando da produção editorial dos meus textos em
seus vários aspectos. Um agradecimento especialíssimo é dirigido à minha
esposa Maria Aparecida, não apenas pelo apoio de todas as horas, mas
também pelo empenho em apresentar preciosas sugestões, em particular na
escolha das capas, primando pela beleza estética do visual de meus livros.
Nesse aspecto estético, venho contando, também, com o olhar apurado de
meu filho Benjamim.
Finalmente, aos pedagogos, educadores, professores, em suma, a todos
os leitores, minha gratidão pela generosa acolhida e pelo estímulo constante
que tenho recebido para prosseguir em meu esforço de socializar, o mais
amplamente possível, os resultados de minhas pesquisas e reflexões.
Campinas, 2 de maio de 2008
Dermeval Saviani
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Prefácio à edição uruguaia
a obra del pedagogo brasileño Derme -val Saviani, ha despertado vivo inte
rés entre los educadores latinoameri
canos por la fecundidad y vigencia de
sus planteamientos.
La primera edición en lengua espa
ñola de Escola e democracia 1 se realiza en momentos
propicios, cuando los pueblos del Sur del Continenterealizan esfuerzos por encontrar las pautas de la recons
trucción nacional.
Para el Uruguay esto resulta particularmente de
safiante. Durante más de una década el país vivió una
feroz represión y se acentuaron dramaticamente los
índices de deterioro económico y social. El Uruguay, que
fuera abanderado del desarrollo educativo del continen-
1. Dermeval Saviani, Escola e democracia, São Paulo, Cortez/
Autores Associados (1. ed., 1983; 14. ed., 1986); el libro ha
sido parcialmente reproducido en revistas latinoamericanas de
lengua española. En Uruguay, la Revista de la Educación del Pueblo
reprodujo tres de las cuatro partes que integran el libro.
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DERMEVAL SAVIANI
te, se transformo en un país anómalo, el único país de América Latina con
crecimiento negativo de su índice de escolaridad en enseñanza primaria.
Hoy en día, los uruguayos en general y los educadores particularmente, nos
formulamos grandes interrogantes sobre el pasado más reciente, sobre la
validez y vigencia de nuestras tradiciones artiguistas y varelianas, sobre las
propuestas modernizadoras y desnacionalizadoras.
En este libro de autor brasileño, los educadores uruguayos podemos ver
reflejadas nuestras preocupaciones y perplejidades, nuestras frustraciones y
dificultades para encontrar salida a la profunda crisis que sufre el país y su
educación. En el trabajo de Saviani, encontramos un ejemplo de metodo
logía de análisis y un avance concreto en la formulación de soluciones que
puede ser extremamente valioso para el análisis de nuestra realidad.
Dermeval Saviani nace en 1944 en el seno de una familia campesina del
interior del Estado de São Paulo. En 1948, forzada por las dificultades de
sobrevivencia, la familia emigra a la capital; su padre y sus hermanos mayores
son entonces obreros en las fábricas. Dermeval se destaca en la escuela y
es becado para continuar estudios en diversos Seminarios católicos, donde
adquiere su primera formación filosófica. En 1964, después de abandonar
el Seminario, prosigue sus estudios de Filosofía en la Pontíficia Universidad
Católica de São Paulo (PUC-SP).
Posteriormente se forma como profesor e investigador en Filosofía de
la Educación. Desde 1978 es Coordinador del Programa de Doctorado en
Educación de la PUC-SP2.
La formación teórica inicial de Saviani se realiza dentro de las
orientaciones del neotomismo y la fenomenología, pero transitando
rápidamente hacia la perspectiva dialéctica. A esta fase de transición
pertenece la tesis O conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, elaborada a partir de 1968, defendida en 1971 y publicada en 1973
bajo el título de Educação brasileira: estrutura e sistema 3. En esta investigación
Saviani se plantea la crítica de las concepciones pedagógicas que se
implantaron sucesivamente en Brasil. Destaca la inexistencia de una teoría
2. Dermeval Saviani, Memorial , presentado al Concurso de Libre-Docencia, Campinas,
1986, mimeografado.
3. Dermeval Saviani, Educação brasileira: estrutura e sistema, São Paulo, Saraiva, 4. ed., 1980
y5. ed. 1983.
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ESCOLA E DEMOCRACIA Xlll
coherente de la educación nacional y la necesidad de laborar una Teoría de
la Educación Brasileña que contribuya a la promoción del hombre brasileño
y a la transformación de la realidad social.Entre 1974 y 1979, Saviani elabora un nuevo nivel, marcado por la
presencia del marxismo en su obra, tanto la crítica a la pedagogía burguesa
como una teoría educativa que busca responder a los intereses de los
trabajadores. El libro Educação: do senso comum à consciência filosófica 4 reúne
los textos producidos entre 1971 y 1979 y constituye un material valioso para
la comprensión de la evolución del autor. Los textos de 1979 ya continen
una formulación madura de las principales categorías teóricas de Escuela y democracia.
A partir de 1978, desde la coordinación del Programa de Doctorado,
Saviani promovió la implantación de las Actividades Programadas. A través
de este programa, se desarrolló un rico proceso de discusión colectiva de los
proyectos y elaboración de tesis, sin precedentes en la historia de los cursos
de posgrado en educación en Brasil5. El curso de posgrado se transformó en
un lugar de búsqueda de soluciones para los problemas educativos del país, enun momento en que la sociedad civil comenzaba a estructurarse, reclamando
el fin del proceso dictatorial. En este ámbito, se genera un verdadero equipo
de trabajo. Junto a Saviani estudiam un grupo de profesores e investigadores
entre los que se destacan Guiomar Namo de Mello, Carlos Jamil Cury y
José Carlos Libâneo. Los trabajos de este conjunto de profesores originan
la corriente de pensamiento educativo que recibe el nombre de Teoría
Histórico-Crítica. Esta corriente se ubica hoy, junto a otras tendencias, enel centro del debate educativo brasileño.
Escuela y democracia, que reúne textos producidos entre 1981 y 1983 y
cuya primera edición en castellano presentamos aquí, puede ser considerada
como la síntesis del pensamiento del autor y de los principales aportes rea
lizados por la Teoría Histórico-Crítica hasta ese momento, concebido en la
coyuntura de la transición de la dictadura militar a la democracia, iniciada
hacia fines de la década de 1970.Durante los años de dictadura militar inaugurada con el golpe de 1964,
el Brasil sufrió modificaciones significativas, transformándose en el país
4. Dermeval Saviani, Educação: do senso comum à consciência filosófica, São Paulo, Cortez/
Autores Associados, 1982.
5. Dermeval Saviani, Memorial, op. cit.
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xiv DERMEVAL SAVIANI
capitalista de mayor crecimiento económico de América Latina, ocupando
el 9º lugar en el ordenamiento mundial según su Producto Bruto Interno.
Sin embargo, este desarrollo se da bajo la forma de modelo económico ca-
pitalista monopolista multinacional y asociado dependiente, instalado en
el país a mediados de la década de 1950. La producción crece utilizando
tecnologías cada vez más avanzadas pero esto se hace estableciendo rela
ciones de producción que rebajan el papel de la fuerza de trabajo cualitativa
y cuantitativamente y sobre la base del autoritarismo.
En este período, el sistema educativo se extiende de manera significati'
va, ingresando a la enseñanza primaria importantes contingentes de niños
oriundos de familias de trabajadores, hecho nuevo en la historia nacional.
Sin embargo, en el mismo momento en que nuevas capas populares presio
nan y consiguen ingresar a la escuela, el estado reduce porcentualmente
el presupuesto de la educación a la mitad6 y realiza reformas de estructura
y contenidos del sistema de enseñanza inspiradas en formas tardías de la
Pedagogía Nueva y en la Pedagogía Tecnicista. La enseñanza pública se ve
limitada, entonces, en sus posibilidades de crecimiento y sufre una radical
descalificación. Paralelamente, se promueve mercantilización de la enseñan
za y se desarrollan programas de formación y entrenamiento de mano de
obra no formales, paralelos al sistema educativo formal. En los años ‘70 se
realizan estudios críticos de la política educativa dominante que enfatizan
la existencia de dificultades prácticamente insuperables para modificar la
situación. Muchos proponen la búsqueda de soluciones fuera del sistema de
enseñanza formal, en los movimientos de educación popular. De ese modo,
la política educativa dominante y las propuestas de los críticos se orientan
en direcciones diversas y discordantes con la presión y lucha popular por
más y mejor escuela. Esta lucha ha sufrido en Brasil sucesivas frustraciones
pero posee una tradición histórica. En las décadas de 1929 y 1949-1950, la
bandera de enseñanza pública, gratuita, obligatoria y laica era parte sustan
cial del programa de las organizaciones obreras y de docentes y es retomada
nuevamente en momentos en que el país comienza a organizarse para exigir
el fin de la dictadura.
6. Prácticamente en el mismo período en que se duplica la produción nacional, el porcentaje
de la enseñanza en el presupuesto nacional se reduce a la mitad. Luiz Antonio Cunha,
“Roda-viva”, em Luiz Antonio Cunha y Moacyr de Goes, O golpe na educação, Rio de
Janeiro, Zahar, 1985, p. 56.
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ESCOLA E DEMOCRACIA XV
En este contexto de desarrollo del capitalismo en Brasil, de modificación
del sistema educativo y de lucha social para poner fin al proceso dictatorial
abriendo paso a la democratización del país, se constituye la Teoría Histórico-Crítica de la Educación. Esta corriente recoge las mejores tradiciones
de lucha por la escuela pública y se propone generar una teoría que permita
superar las históricas frustraciones de ese movimiento en Brasil.
Escuela y democracia constituye una síntesis de ese proceso histórico,
reuniendo cuatro textos: “Las teorías de la educación y el problema de la
marginalidad”, “Escuela y democracia I - La teoría de la curvatura de la
vara”, “Escuela y democracia II - Superando la teoría de la curvatura de la vara”y “Once tesis sobre educación y política”7.
Los cuatro textos tienen una profunda unidad. Responden a la preocu
pación que atraviesa todo el pensamiento educativo de Saviani desde sus
primeros pasos teóricos: generar una teoría educativa capaz de contribuir a
la transformación de la sociedad brasileña. Esto se traduce en la necesidad
de precisar científicamente la especificidad del fenómeno educativo, es decir,
definir cómo la educación cumple su función política en las sociedades latinoamericanas.
La unidad del libro se va dando por sucesivos enriquecimientos y avan
ces de un texto sobre el anterior. En este Prólogo sólo destacaremos el hilo
conductor que los unifica.
En su análisis, el autor parte de un problema real y concreto: la margi-
nación de la escuela de la mayoría de los niños latinoamericanos. Muestra
cómo ese problema no ha sido resuelto por las teorías liberales ni por loscríticos de las teorías liberales y cómo, a pesar de la frustración escolar de sus
hijos, los trabajadores tienen en la escuela pública una de sus más preciadas
reivindicaciones históricas. A continuación, sobre la base de sus hipótesis y
guiado por ellas, el autor orienta su trabajo en dos direcciones: por un lado,
realiza la crítica de las propuestas educativas existentes explicando su fracaso
e insuficiencia y, por otro, formula su propuesta.
Comienza diciendo Saviani que en 1970, cerca del 50% de los alumnosde las escuelas primarias desertaban en condiciones de analfabetismo, o de
analfabetismo potencial, en la mayoría de los países de América Latina.
7. El segundo texto es de 1981, el primero y el tercero de 1982 y el cuarto fue escrito especialmente para integrar la primera edición de Escola e democracia en 1983.
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xvi DERMEVAL SAVIANI
Esto sin tener en cuenta el contingente de niños en edad escolar que ni
siquiera tienen acceso a la escuela y que, por lo tanto, se encuentran a priori
marginados de ella.
Las teorías liberales de la educación dominantes en América Latina,
dentro de su concepción de la educación como camino para la igualdad
social, se han planteado la solución de este problema, pero han fracasado.
Más recientemente, en la década de 1970, los críticos de la escuela liberal
se preocupan por mostrar que el fracaso de la escuela era, en realidad, su
objetivo. La educación, dicen, es dependiente de la estructura social y
cumple la función de reproducirla - de ahí que estos críticos sean llamados
“crítico-reproductivistas”. Sin embargo, si la escuela tuviera como únicafunción producir el fracaso escolar de sus alumnos como mecanismo de
reproducción de las desigualdades sociales, ¿cómo entender que los traba
jadores inscribieran el reclamo de más y mejor escuela entre sus principales
reivindicaciones desde el origen mismo de sus luchas?
Saviani plantea que, para entender el problema y la posición de los di
versos actores sociales en torno a él es necesario, en primer lugar, concebir la
escuela como lugar de lucha hegemónica entre las dos clases fundamentalesde la sociedad capitalista: la burguesía y el proletariado; en segundo lugar, es
imprescindible definir la especificidad del fenómeno educativo como lucha
hegemónica.
La educación sería una mediación de carácter contradictorio en el
seno de la práctica social global. Expresaría las contradicciones sociales
de una manera específicamente educativa y, al servir a la reproducción de
relaciones sociales contradictorias, poseería, al mismo tiempo, un carácterreproductor y cuestionador. En la escuela, la lucha hegemónica toma la
forma de la extensión (o no) de los servicios a todos los niños y jóvenes y,
una vez que estos empiezan a ingresar masivamente, esa lucha ocurre en
torno al carácter y tipo del saber escolar distribuido. El proletariado, para
transformarse en clase hegemónica y dirigente de la sociedad, necesita
construir una concepción del mundo suficientemente unitaria, coherente,
original y elevada. Va a luchar para que la escuela sirva e esta perspectiva,enfrentando al proyecto educativo burgués con el suyo propio.
Sobre la base de esta hipótesis se trata, entonces, de dar sustancia con
creta al proyecto educativo de los trabajadores.
En el trabajo de Saviani esto tiene dos aspectos interrelacionados.
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ESCOLA E DEMOCRACIA
Por un lado, es necesario hacer la crítica de las concepciones educativas
burguesas y de las teorías críticas que han demonstrado no interpretar ni
atender adecuadamente los intereses de los trabajadores - aspecto queSaviani también formula al decir que es necesario hacer una lectura de la
historia de la escuela y de las luchas populares a partir de la perspectiva de
clase dominada por otro lado, debe elaborarse una teoría crítica que no
sea reproductivista y responda a los intereses de las clases subalternas, que
explique al mecanismo contradictorio según el cual funciona la educación
y la escuela en la sociedad capitalista y permita ver cómo, a partir de esas
contradiciones, es posible articular la escuela con los movimientos concretostendientes a transformar la sociedad8.
Del rico y esclarecedor análisis que realiza Saviani de las teorías liberales
y crítico-reproductivistas de la educación, queremos destacar dos aspectos
particularmente valiosos para el estudio de las realidades educativas con-
cretas de nuestros países.
El primero se refiere al método de análisis, que por otra parte, es el mis-
mo que el autor utiliza para formular su propia teoría. Según este método,en primer lugar, las teorías de la educación deben ser comprendidas en el
contexto histórico de su producción a partir de las contradicciones presen-
tes en las relaciones sociales. En segundo lugar, la educación del futuro, la
educación que contribuya a la transformación de la sociedad, surge de las
contradiciones del presente, se constituye a partir de ellas. En tercer lugar,
no alcanza con establecer la relación de pertenencia o coexistencia formal
entre propuesta educativa y social. Es necesario explicar el fenómeno educativo en su particularidad, bajo la forma específica en que se presenta.
El segundo aspecto que queremos resaltar se refiere al planteamiento
particularmente radical y polémico por el que Saviani contrapone la pe-
dagogía tradicional, basada en una concepción filosófica esencialista, con
la pedagogía nueva en sus diversas variantes, fundada en una concepción
filosófica que privilegia la existencia sobre la esencia. Desafiando las con-
cepciones dominantes entre maestros y profesores, Saviani defiende la tesisde que la pedagogía tradicional es revolucionaria, científica y democrática y
que la pedagogía nueva es conservadora, pseudo-científica y no tiene nada
8. En este parágrafo hemos utilizado formulaciones contenidas en el libro de Saviani Edu
cação: do senso comum à consciência filosófica, op. cit., p. 180.
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xviii DERMEVAL SAVIANI
de democrática. Y esto, lo hace desde al punto de vista de los intereses de
los trabajadores.
La pedagogía tradicional - dice Saviani - al poner énfasis en la extensión
de la enseñanza, en los contenidos lógicamente sistematizados, en la razón,
en el papel del profesor, de la disciplina y el esfuerzo del alumno, estuvo
al servicio del proyecto social revolucionario burgués en la transición del
feudalismo al capitalismo. Constituyó la expresión educativa específica de la
lucha por la transformación del hombre en esa época. La pedagogía nueva,
al centrar su atención en la calidad de la enseñanza, restó importancia a la
lucha por la extensión y propuso una calidad que al estar preocupada por los
métodos, el aspecto psicológico, las relaciones intersubjetivas formalmente
democráticas y equitativas y la espontaneidad del alumno, sirvió a la per
manencia de las formas de existencia de la sociedad capitalista cuando ésta
se encontraba ya amenazada por las luchas obreras y populares.
Saviani, inclusive, va más allá. No solamente muestra el carácter
revolucionario, científico y democrático de la pedagogía tradicional en
sus orígenes, sino que sugiere que esta pedagogía contiene los elementos
potencialmente cuestionadores de la hegemonía burguesa en la fase de la
constitución de la clase obrera en clase revolucionaria.
Estos elementos pueden ser tomados por una pedagogía que exprese
los intereses del proletariado y los rearticule dentro de una concepción
que contribuya, ahora, a la transformación revolucionaria de la sociedad
capitalista.
Toda esta operación de análisis de la pedagogía tradicional y de la
pedagogía nueva, consiste en la aplicación de la “teoría de la curvatura dela vara”, sugerida por Lenin. En este caso, la vara estaba torcida para el lado
de la pedagogía nueva y Saviani se esfuerza por rectificarla curvando la vara
para el lado de la pedagogía tradicional. Pero una vez aplicada esta “teoría”,
llega el momento de superarla. Esa superación se realiza por la incorpo
ración de elementos presentes en las propuestas pedagógicas anteriores a
una nueva concepción, correspondiente a las nuevas condiciones sociales,
buscando descubrir la propuesta educativa que exprese los intereses de lostrabajadores.
Se trata de encontrar en las contradicciones de la práctica educativa
pasada y presente las bases para una lucha realmente eficiente contra la
marginación de la cultura, de interpretar con precisión que contenido
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ESCOLA E DEMOCRACIA xix
tiene hoy la bandera por la escuela pública levantada sin descanso por el
movimiento popular.
Entendemos que Saviani centra su propuesta en tres aspectos presentes
en la pedagogía tradicional y que hoy ganan nueva significación y se articu-
lan, constituyendo una propuesta cualitativamente nueva. Esos elementos
son la lucha por la extensión de la enseñanza pública formal, la valorización
de los contenidos y del papel del profesor en una nueva relación con los
alumnos.
Ele centro del problema concreto que encabeza Escuela y democracia es la
marginación cultural de la mayoría de los niños y jóvenes latinoamericanos.Por lo tanto, la extensión de la escuela pública es el tema prioritario. Sin
embargo, si no se acompaña esta reivindicación con un proyecto definido
de qué escuela queremos, aquella consigna queda vacía de contenido. Para
Saviani es entonces fundamental definir el carácter de los contenidos es
colares.
Al hacer la crítica de la escuela nueva y realizar una valoración crítica de
la escuela tradicional, Saviani establece que todo conocimiento nuevo sólopuede surgir de la crítica del conocimiento anterior. La pedagogía tradicional
entregaba a los alumnos el conocimiento histórico acumulado, la pedagogía
nueva no. Esta se preocupa de partir del educando y no tiene como condi
ción prioritaria traer al aula un conocimiento social. Saviani considera que
el dominado no se libera si no domina aquello que los dominantes dominan,
y que es absolutamente necesario llevar al aula la cultura históricamente
producida bajo la actual forma burguesa, como condición de superacióncrítica de la misma.
Pero el fenómeno educativo es un fenómeno contradictorio e histórica
mente determinado. Esta concepción es absolutamente ajena, tanto a la
pedagogía tradicional como a la nueva. De allí que cuando Saviani habla de
llevar el conocimiento burgués al aula no lo hace desde el punto de vista de
la pedagogía tradicional y cuando habla de la actividad crítica del alumno
no lo hace desde el punto de vista de la pedagogía nueva.El profesor y el alumno son considerados agentes sociales, portadores de
determinadas relaciones sociales y determinada práctica social. Esta práctica
social es el punto de partida del proceso educativo e ella guía la problemati-
zación de los contenidos científicos y culturales. Estos deben ser expuestos
de manera sistematizada y lógica por el profesor. Pero la apropiación de los
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XX DERMEVAL SAVIANI
contenidos científicos y culturales por parte del alumno - operación que
Saviani llama instrumentación - no es un fin en sí mismo, fuera de contexto.
En la instrumentación, en primer lugar, el alumno se apropia de informacio
nes y categorías teóricas, abstractas, necesarias para el análisis y manejo de
la realidad. Es solamente a partir de esa apropiación que el alumno puede
plantarse la crítica, esto es, entender la producción y vigencia históricamente
determinada de los instrumentos. En segundo lugar, esta apropiación se
realiza en contraste y contradicción con su sentido común inicial, con su
práctica social y los problemas y exigencias que ella plantea. De ello resulta,
al mismo tiempo, una superación del sentido común, del saber popular y
del saber erudito.
A este nuevo tipo de contenidos corresponde un nuevo método didác
tico, una valorización del papel y la formación del profesor y una nueva
relación de éste con los alumnos y de la clase en su conjunto. El alumno
no podrá elevarse al nivel del profesor si no es por medio del esfuerzo y de
una tenaz disciplina, a través de una lucha por su propia coherencia, que le
permita incorporar nuevas armas de análisis de la realidad que le son ajenas,
sin perder de vista su situación de clase.
Así es que, según Saviani, la educación cumple su función política desde
el punto de vista de las capas populares: realizándose en la función que les
es propia, permitiendo la apropiación de la cultura históricamente acumu
lada por la humanidad, la educación cumple su función política. La función
política de la educación se realiza por la mediación de la función docente.
Esta permite poner en manos de los trabajadores las armas intelectuales y
abstractas que éstos necesitan para elaborar su propia concepción del mundo
autónoma, unitaria, coherente y elaborada, una concepción capaz de ser
hegemónica, de orientar la transformación de la sociedad.
Tales son, en síntesis, algunos de los planteamientos fundamentales de
Escuela y democracia. Es posible decir que esta obra es un aporte significativo
al pensamiento pedagógico latinoamericano, que expresa las transformacio
nes que ha sufrido nuestro continente en las últimas décadas, y que recoge
tradiciones de análisis del fenómeno educativo.
Para los educadores uruguayos, este libro tal vez posee contornos espe
ciales. En el sutil y profundo análisis del autor, se siente un aire familiar que
por momentos nos hace ver en Saviani un “vareliano” en el Brasil de hoy.
Percibimos eso en su enfoque positivo y efectivamente revolucionario, en su
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ESCOLA E DEMOCRACIA xxi
voluntad de poner la educación al servicio de la transformación de la socie
dad, de incorporar a todo el pueblo al conocimiento de la cultura universal,
en su esfuerzo por buscar el camino concreto de avance, sobre la base de lacrítica radical de las concepciones dominantes y de la elaboración de solu
ciones que partan de las contradicciones y necesidades sociales presentes.
De ese modo, Escuela y democracia constituye para nosotros una valiosa
fuente de reflexión. Es un desafío. Nos incita a valorar y repensar criticamen
te nuestro proceso histórico. Estamos seguros que la divulgación y discusión
de este libro nos ayudará a elaborar nuestro propio camino educativo.
Montevideo, marzo de 1988
Ema Julia Massera Garayalde
Profesora del Centro de Estudios Latinoamericanos
de la Facultad de Humanidades y Ciencias
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Prefácio à 36a edição
, sem dúvida, um fato auspicioso olançamento de mais uma edição deste
livro exatamente no momento em que
se completam 20 anos da publicação
da primeira edição, em setembro de
1983.
Vivíamos, naquela época, uma situação de grande
efervescência, com ampla mobilização dos educadores,intensos debates pedagógicos e acalentadas esperanças
de mudanças substantivas na sociedade brasileira e em
sua educação.
No plano político nacional havíamos conquistado a
anistia, as eleições diretas para governadores dos esta-
dos e estávamos às vésperas da campanha das “diretas
já” para a Presidência da República e do fim formal daDitadura Militar.
Nesse contexto, Escola e democracia se inseriu no
debate pelo seu conteúdo polêmico e, além da denúncia
das nossas mazelas educacionais, trouxe também não
apenas o anúncio de novas perspectivas, mas contri-
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xxiv DERMEVAL SAVIANI
buiu igualmente para uma melhor compreensão das questões pedagógicas,
propiciando aos leitores uma sistematização sucinta das principais teorias
educacionais.A grande mobilização e às esperanças da década de 1980 seguiu-se, na
década seguinte, uma reversão de expectativas marcada pelo refluxo na
militância, por um certo descrédito na política associado a um cansaço da
luta em decorrência da crescente precarização das condições de trabalho e
de remuneração dos docentes de todos os níveis no país inteiro.
É gratificante constatar que, resistindo a essas flutuações de conjuntura,
este livro continuou sendo um valioso auxiliar no trabalho dos professores,como o atestam as suas sucessivas reedições.
É, ainda, estimulante perceber que, nos dias atuais, a perspectiva teórica
inaugurada com Escola e democracia e que prosseguiu com Pedagogia histórico -
crítica recobra novo fôlego, sendo enriquecida com novas contribuições teó
ricas e retomando um certo protagonismo na formulação e implementação
de políticas educativas neste ou naquele estado da federação brasileira, o
que pode ser ilustrado pelos casos do Mato Grosso e do Paraná.Ao ensejo desta 36ª edição, que marca os 20 anos de publicação inin
terrupta desta obra, só me resta agradecer aos leitores a calorosa acolhida,
assegurando-lhes que o trabalho prossegue com o mesmo espírito de luta,
o mesmo grau de exigência quanto ao rigor analítico e a mesma coerência
política e honestidade de propósitos que impregnaram a produção e conse
qüente divulgação, em 1983, dos textos que compõem o presente livro.
Campinas, 21 de setembro de 2003
Dermeval Saviani
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Prefácio à 35a edição
onforme anunciei no prefácio à 34ªedição, comemora-se, neste ano de
2002, os 70 anos do Manifesto dos Pio
neiros da Educação Nova. Para marcar
esse fato, o Grupo de Estudos e Pesqui
sa em História da Educação - GEPHE-,
da Universidade Federal de Minas Gerais, organizou, em
Belo Horizonte, nos dias 19, 20 e 21 de agosto, o Colóquio Nacional “70 anos do Manifesto dos Pioneiros: um
legado educacional em debate”. Convidado para o even
to, apresentei o texto “70 anos do ‘Manifesto’ e 20 anos
de Escola e democracia: balanço de uma polêmica”.
Como assinalei na introdução do trabalho apresenta
do no Colóquio, a pertinência dessa discussão ao ensejo
das comemorações dos 70 anos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova deve-se ao fato de que, por efeito de
um deslocamento da análise do âmbito da abordagem
polêmica para a abordagem historiográfica, as teses enun
ciadas no livro Escola e democracia foram lidas por uma
certa corrente da historiografia da educação brasileira
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xxvi DERMEVAL SAVIANI
nos anos de 1990 como uma espécie de “Manifesto contra a Escola Nova”
e, portanto, como uma espécie de anti-Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, um anti-Manifesto de 1932.No entanto, como já afirmei e reiterei várias vezes, este não é um livro
contra o movimento da Escola Nova. Se sua leitura ensejou essa interpre-
tação, tal ocorreu por se ter considerado uma abordagem com claro intuito
polêmico como se fosse uma abordagem gnosiológica. Eis porque, no caso
particular da história da educação, o livro foi lido como se fosse um estudo
de caráter historiográfico. Por isso, no referido evento, procurei esclarecer a
diferença entre a abordagem polêmica e a abordagem historiográfica. Assim,após estabelecer interlocução com as leituras de Escola e democracia feitas
por duas historiadoras da educação, mostro que a “teoria da curvatura da
vara”, metáfora a partir da qual instaurei a polêmica, é uma prática bastante
comum no âmbito do trabalho intelectual, sendo que a própria Escola Nova
dela lançou mão de forma recorrente. Esse procedimento pode ser ilustrado
pelos vários lemas cunhados pelo movimento da Escola Nova com o intuito
de facilitar sua difusão junto aos professores.No texto apresentado no referido Colóquio exemplifiquei esse fenômeno
com o lema escolanovista “ensinamos crianças, não matérias”. O que que-
remos dizer com essa expressão? Do ponto de vista gramatical, ela não se
sustenta, uma vez que o verbo ensinar é bitransitivo, comportando, pois, tanto
o objeto direto como o indireto. Na verdade não é possível, gramaticalmente,
dizer que se ensina nada a alguém, nem que se ensina algo a ninguém. De
fato, a ação de ensinar implica que algo seja ensinado a alguém. Portanto,deveríamos dizer que “ensinamos matérias às crianças”, não fazendo sentido
a afirmação de que “ensinamos crianças, não matérias”, do mesmo modo que
não faria sentido afirmar que “ensinamos matérias, não crianças”.
Então, qual seria a razão pela qual o movimento da Escola Nova formulou
e difundiu com tanta convicção esse lema? Ora, um enunciado como esse
se justifica exatamente na medida em que não se trata de uma definição,
mas de um slogan. E, enquanto slogan, tem o caráter de um símbolo aglutinador de adeptos em torno da idéia da centralidade da criança no processo
educativo. Em outros termos, partindo da consideração de que as atenções
dos educadores haviam se voltado excessivamente para as matérias, para o
conteúdo da aprendizagem, deixando em segundo plano as crianças que são,
ao fim e ao cabo, a razão de ser do processo educativo, cunhou-se o lema
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ESCOLA E DEMOCRACIA xxvii
“ensinamos crianças, não matérias” visando a alertar os professores para o
fato de que sua preocupação principal deve girar em torno dos educandos,
cujos interesses devem servir de base para se organizar o currículo, isto é,
os conteúdos do ensino.
Impõe-se, pois, a conclusão: “ensinamos crianças, não matérias” é um
slogan que a Escola Nova lançou contra a Escola Tradicional. Em outros ter
mos, considerando que, com a predominância da Escola Tradicional, a vara foi
entortada para o lado das matérias, a Escola Nova, exercitando a “teoria da
curvatura da vara”, buscou curvar a vara para o lado da criança. Ao fazê-lo,
entretanto, por aquele mecanismo descrito por Scheffler (1974, pp. 46-47),segundo o qual os slogans passam a ser defendidos como afirmações literais,
o enunciado difundiu-se como se fosse a pura expressão de uma verdade
pedagógica. Segue-se, pois, que a Escola Nova tem se utilizado amplamente
da “teoria da curvatura da vara” de forma, porém, bastante diferente do uso
feito por mim neste livro. Com efeito, enquanto para mim a metáfora da
“curvatura da vara” se apresentou tão-somente com o caráter de exercício
intelectual questionador das verdades instaladas, o movimento da EscolaNova a tem tomado como um dispositivo instaurador da própria verdade.
Fica claro, portanto, que o livro Escola e democracia não se propôs a ser
um “anti-Manifesto de 1932". Se for lido como manifesto, tratar-se-á, no caso,
do manifesto de lançamento de uma nova teoria pedagógica, uma teoria
crítica não-reprodutivista ou, como foi nomeada no ano seguinte após seu
lançamento, pedagogia histórico-crítica, proposta em 1984. Sim. Este livro
pode ser considerado o manifesto de lançamento da pedagogia histórico-crítica. Lido como manifesto, eis sua estrutura:
• O primeiro capítulo apresenta o diagnóstico das principais teorias
pedagógicas. Mostra as contribuições e os limites de cada uma delas.
E termina com o anúncio da necessidade de uma nova teoria.
• O capítulo segundo é o momento da denúncia. Pela via da polêmica,
procura-se desmontar as visões que se acreditavam progressistas demodo a que se abra caminho para a formulação de uma alternativa
superadora. Por isso afirmei no texto do Coloquio que o que estava
em causa na virada da década de 1970 para a de 1980 era tornar
o grupo social dos professores autônomo em relação a um ideário
que ele havia acolhido sem crítica e sem “benefício de inventário”.
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xxviii DERMEVAL SAVIANI
Não estava em jogo desvelar uma suposta “verdadeira história dos
pioneiros da Educação Nova” nem a “fixação de uma outra memória”.
O contexto do discurso era, pois, a polêmica e não a historiografia.• O capítulo terceiro apresenta as características básicas e o encami
nhamento metodológico da nova teoria que passou a se chamar de
pedagogia histórico-crítica, esclarecendo-se, no capítulo quarto, as
condições de sua produção e operação em sociedades como a nossa,
marcadas pelo primado da política sobre a educação.
Os comentários feitos neste prefácio tiveram a intenção de ajudar osleitores no entendimento do contexto em que surgiu esse livro e das razões
que levaram à sua publicação. Espero que, por esse caminho, se possa des
locar um pouco o foco das atenções da polêmica com a Escola Nova para
a construção da pedagogia histórico-crítica, em cujo ponto de partida se
encontra a presente obra.
Campinas, 29 de agosto de 2002Dermeval Saviani
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Prefácio à 34a edição
o ano de 2002, estaremos comemorando os 70 anos do Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova, marco
do desenvolvimento do Escolanovismo
no Brasil.
Paralelamente, os textos que com
põem este livro giram ao redor dos 20 anos. Com efeito,
embora a publicação do livro date de setembro de 1983,o primeiro capítulo foi escrito e publicado originalmente
em 1982 como artigo no número 42 de Cadernos de
Pesquisa, revista de estudos e pesquisas em educação da
Fundação Carlos Chagas. O segundo capítulo resultou
da exposição oral ocorrida no simpósio Abordagem política
do funcionamento interno da escola de 1 o grau que integrou
a programação da I Conferência Brasileira de Educação,realizada em São Paulo, de 31 de março a 3 de abril de
1980. A referida exposição, uma vez transcrita, foi pu
blicada como artigo no número 1 de Ande, Revista da
Associação Nacional de Educação, em 1981. O terceiro
capítulo foi escrito e publicado em 1982, no número 3,
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XXX DERMEVAL SAVIANI
também da revista da Ande. Finalmente, o quarto capítulo foi escrito em
1983 especialmente para integrar o presente livro. Portanto, o conteúdo
desta obra foi produzido e divulgado entre 1980 e 1983.Ao longo dos aproximadamente 20 anos de circulação deste livro, os
trabalhos que o integram foram objeto de muitas discussões, em especial o
capítulo dois, Escola e democracia I — A teoria da curvatura da vara que inten-
cionalmente abriu uma polêmica com a corrente da Escola Nova.
Olhando à distância, posso considerar que o impacto gerado pela radi
calidade da crítica que formulei provocou reações com forte teor de emoti
vidade, o que não deixou de suscitar alguns equívocos interpretativos. Pensoque o ensejo das comemorações dos 70 anos do Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova e dos 20 anos dessa crítica contundente, constitui uma boa
oportunidade para um balanço dos acertos e desacertos das interpretações
que se construíram em torno dessa questão.
Espero poder, em 2002, proceder ao mencionado balanço num seminá
rio que está sendo programado para comemorar os 70 anos do documento
conhecido como Manifesto de 1932. Para efeitos desse prefácio quero apenasregistrar o fato, recordando o que enunciei no VII Encontro da Associação
Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação (ASPHE), realiza
do em Pelotas, nos dias 3 e 4 de maio de 2001, ao tratar do tema “História
Comparada da Educação”. Nesse texto assinalo, em nota de rodapé:
Aliás, parece que o único tema que, no Brasil, tem atraído o interesse
para estudos de história comparada da educação é aquele relativo à EscolaNova. A julgar pelas referências, ainda que depreciativas, a mim feitas no
texto introdutório, de autoria de Ovide Menin (pp. 7-8) e no texto de Clarice
Nunes (pp. 23-27) que integram o livro Escuela Nueva en Argentina y Brasil,
a polêmica que abri em 1980 em torno do modo como o escolanovismo se
difundiu e se tornou hegemônico no ideário dos professores exerceu um efeito
provocativo cujo resultado foi a realização de estudos específicos e detalhados
sobre as características da Escola Nova. Fico feliz por esse resultado, emboralamente que a uma investida polêmica seja atribuída a característica de pesquisa
historiográfica que é criticada mais com imputações do que com a análise do
conteúdo dos argumentos apresentados [D. Saviani, “História Comparada da
Educação: algumas aproximações”, História da Educação, vol. 5, n.10, setembro
de 2001, pp. 10-11].
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ESCOLA E DEMOCRACIA xxxi
Como já havia me manifestado no Prefácio à 20 a edição deste livro, datado
de janeiro de 1988, embora a Escola Nova tenha sido posta no centro da
polêmica, este não é um livro contra a Escola Nova como tal. A denúncia daEscola Nova foi apenas uma estratégia visando a demarcar mais precisamente
o âmbito da pedagogia dominante, então caracterizada como a pedagogia
burguesa de inspiração liberal, em contraposição ao âmbito de uma pedago-
gia emancipatória, então identificada com uma pedagogia socialista de ins
piração marxista. Portanto, não há nenhuma contradição entre o conteúdo
deste livro e o reconhecimento do caráter progressista do movimento da
Escola Nova, em especial na formulação contida no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova que, sob alguns aspectos, chegou mesmo a ultrapassar a
concepção liberal burguesa de educação, incorporando propostas que se inse
rem na tradição pedagógica socialista. Além do mais, como assinalei algumas
vezes em minhas aulas, considero que o Manifesto de 1932, mais do que um
documento em defesa da Escola Nova, configura-se como um programa de
política educacional cujo vetor é a instituição de um sistema completo de
educação pública destinado a abarcar todas as crianças e jovens integrantesda população brasileira. Foi, pois, antes de tudo, um manifesto em defesa da
escola pública, diferentemente da maioria das experiências de Escola Nova
que, no contexto europeu, traziam a marca da iniciativa privada.
Assim, na ocasião do lançamento de mais uma edição deste livro,
manifesto a esperança de que as comemorações dos 70 anos do Manifesto
galvanizem o conjunto dos educadores e toda a população do nosso país
num pujante movimento em defesa da educação pública de modo a instaurar
uma política educativa, em âmbito nacional, capaz de reverter os efeitos
negativos decorrentes da orientação e das ações implementadas no campo
escolar pelos governos nos últimos dez anos.
Campinas, 16 de outubro de 2001
Dermeval Saviani
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Prefácio à 33a edição
ara esta nova edição não houve altera-
ção no conteúdo. Entretanto, o texto
foi refeito integralmente por nova di
gitação, o que implicou, portanto, uma
revisão completa de todo o livro.
O lançamento desta 33ª edição
coincide com as comemorações do centenário do nas
cimento de Anísio Teixeira, do qual podemos dizer que
o grande tema de toda a sua obra pedagógica, teórica
e prática é a relação entre educação e democracia,
convergindo, portanto, para o assunto central deste
livro. À semelhança de Marx que, apesar de crítico de
Hegel proclamou-o grande pensador, rendo aqui minha
homenagem ao grande educador Anísio Teixeira, que se
empenhou, por todos os meios, na luta em defesa de uma
escola pública de qualidade aberta a todos os brasileiros
indistintamente.
Somos, pois, herdeiros de Anísio Teixeira. Dizia
ele, em 1947, por ocasião da discussão do capítulo de
Educação e Cultura da Constituição do Estado da Bahia:
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xxxiv DERMEVAL SAVIANI
“Sobre assunto algum se falou tanto no Brasil, e em nenhum outro, tão pouco
se realizou. Não há, assim, como fugir à impressão penosa de nos estarmos
a repetir”. E exatamente porque tão pouco se realizou, somos forçados a
continuar insistindo nos pontos que Anísio, segundo seu próprio testemunho,
se cansara de repetir. Sua luta de ontem é, ainda, a nossa luta de hoje.
Campinas, 27 de agosto de 2000
Dermeval Saviani
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Prefácio à 30a edição
uando essa obra foi lançada a socie
dade brasileira passava por uma fasede grande mobilização. Estávamos no
início da década de 1980 e os primei
ros frutos das lutas pela democratiza
ção começavam a ser colhidos. Em
1983 tomavam posse os governadores de estado eleitos
diretamente, após quase 20 anos de eleições indiretas
controladas pelo regime militar instalado no poder emconseqüência do golpe de 1964- Escola e Democracia
vinha a público em setembro de 1983 e começavam as
articulações em torno da campanha pelas eleições diretas
para presidente da República, campanha esta que seria
o fato político mais saliente de 1984.
No contexto indicado era intensa a mobilização
dos educadores, carregada de expectativas favoráveis.Esperava-se que, no quadro das transformações políticas,
a educação encontraria canais adequados para se desen
volver no sentido da universalização da escola pública,
garantindo um ensino de qualidade a toda a população
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xxxvi DERMEVAL SAVIANI
brasileira. Ensaios nessa direção foram tentados por alguns governos estaduais
e municipais, mas os desdobramentos da transição democrática no âmbito
da chamada “Nova República” não corresponderam àquelas expectativaseducacionais. Em verdade, o referido processo de transição acabou sendo
dominado pela “conciliação das elites”, mantendo-se a descontinuidade
da política educacional, os vícios da máquina administrativa, a escassez de
recursos e a conseqüente precariedade da educação pública.
A década de 1990 surge, assim, marcada por um clima de perplexidade
e descrença. A orientação dita neoliberal assumida por Fernando Collor e
agora pelo governo Fernando Henrique Cardoso vem se caracterizando porpolíticas educacionais claudicantes: combinam um discurso que reconhece
a importância da educação com a redução dos investimentos na área e
apelos à iniciativa privada e organizações não-governamentais, como se a
responsabilidade do Estado em matéria de educação pudesse ser transferida
para uma etérea “boa vontade pública”.
Nesse contexto não deixa de ser reconfortante o fato de que este livro,
que se constitui ao mesmo tempo como denúncia das formas disfarçadasde discriminação educacional e anúncio de uma pedagogia superadora das
desigualdades, tenha atingido 30 edições, quase um terço delas já nessa
difícil década de 1990.
Efetivamente, se as condições se tornaram adversas, esse fato, em lugar
de nos levar ao desânimo como infelizmente tende a acontecer, deve nos
conduzir a ampliar a nossa capacidade de luta, organizando-nos mais for
temente e atuando decisivamente no interior das escolas e junto ao Estadono sentido de transformar em verdade prática a consciência, já consensual,
da importância estratégica da educação e da urgência da resolução de seus
problemas.
Que esse livro continue a auxiliar os educadores de todos os níveis e
de todas as regiões deste país em sua luta tenaz por uma educação de qua
lidade acessível a todos os brasileiros, é a única recompensa que almeja o
seu autor.
Campinas, 19 de março de 1996
Dermeval Saviani
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Prefácio à 20a edição
primeira edição deste livro data desetembro de 1983. Portanto, em pouco
mais de quatro anos se esgotaram 19
edições, cada uma delas com tiragem
de cinco mil exemplares. A acolhida
vem sendo, pois, calorosa, chegando
mesmo alguns leitores a revelar grande entusiasmo por
este trabalho.A par da grande acolhida (e talvez mesmo por causa
dela), surgiram também algumas críticas. Obviamente,
esta obra não está isenta de limitações e defeitos. A julgar
pelos depoimentos dos leitores, o reconhecimento de limi
tações não obscurece os méritos que o trabalho contém.
Assim, o primeiro texto, se não esgota a temática
que aborda, constitui uma síntese clara e didática dasprincipais teorias da educação, o que tem sido sobrema
neira útil aos educadores ajudando-os na compreensão
de sua prática e permitindo-lhes situarem-se mais cla
ramente no universo pedagógico. Os próprios críticos
têm se beneficiado dessa síntese já que nela se apóiam,
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xxxviii DERMEVAL SAVIANI
o que implica um endosso da classificação e análise das teorias pedagógicas
aí apresentadas.
O segundo texto tem um caráter preparatório para a teoria crítica daeducação que fora apenas anunciada no texto anterior e cujo esboço é objeto
da exposição efetuada no terceiro texto. Trata-se de uma abordagem centrada
mais no aspecto polêmico do que no aspecto gnosiológico. Por isso, mutatis
mutandis, vale para ele a observação feita por Gramsci a propósito da crítica
de Croce à concepção marxista de “superestrutura ideológica”:
Quando, por razões “políticas”, práticas, para tornar um grupo social indepen
dente da hegemonia de um outro grupo, fala-se de “ilusão”, como é possível - de
boa-fé - confundir uma linguagem polêmica com um princípio gnosiológico?
[Gramsci, 1978, p. 261].
A par dos limites ligados ao caráter polêmico, a exposição contém também
defeitos de estilo derivados do fato de ser transcrição direta de uma fala não
baseada em texto escrito. Daí o tom oral de que está impregnada. O mérito
do texto é antes heurístico do que analítico. Não se trata de uma exposiçãoexaustiva e sistemática, mas da indicação de caminhos para a crítica do existen
te e para a descoberta da verdade histórica. O leitor encontra aí um estímulo
para um ajuste de contas consigo mesmo ante tendências pedagógicas com as
quais tem se envolvido.
Se na polêmica avulta a questão da Escola Nova, isto não deve induzir a
equívocos. Este não é um livro contra a Escola Nova como tal. E, antes, um
livro contra a pedagogia liberal burguesa. Por isso, enganam-se aqueles queimaginam que, por efetuar a crítica à Escola Nova, o autor desta obra estaria
de algum modo reabilitando a pedagogia burguesa. Ora, não se nega à Escola
Nova o seu caráter progressista em relação à Escola Tradicional. Aliás, isso está
formalmente explícito no terceiro texto. Entretanto, como proposta burguesa,
a Escola Nova articula em torno dos interesses da burguesia os elementos
progressistas que, obviamente, não são intrinsecamente burgueses. È dessa
forma que a burguesia trava a luta pela hegemonia procurando subordinaraos seus interesses os interesses das demais classes. Do ponto de vista do
proletariado a luta hegemônica implica o processo inverso: “Trata-se de de
sarticular dos interesses dominantes aqueles elementos que estão articulados
em torno deles, mas não são inerentes à ideologia dominante e rearticulá-los
em torno dos interesses dominados” (Saviani, 1980, pp. 10-11).
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ESCOLA E DEMOCRACIA xxxix
Dessa forma, a denúncia da Escola Nova é apenas uma estratégia visando
a demarcar mais precisamente o âmbito da pedagogia burguesa de inspiração
liberal e o âmbito da pedagogia socialista de inspiração marxista. Aliás, nãofoi outro o comportamento do próprio Marx que, em 1848, ao se engajar na
luta política dos trabalhadores na Alemanha não se negou a participar do
Movimento Democrático sob a condição, porém, de deixar sempre explícita
a diferença entre a perspectiva proletária e aquela dos burgueses e pequeno-
burgueses progressistas (cf. Fedosseiev et al., 1983, p. 190). De minha parte,
tenho procurado sistematicamente estabelecer essa diferenciação como pode
ser comprovado de forma recorrente em meus diferentes trabalhos. Dentreeles, cito como exemplo o texto “A Defesa da Escola Pública” que deveria
integrar este livro, o que não ocorreu por falta de espaço - e esta é outra
limitação da presente obra. No referido texto me empenho em demarcar a
perspectiva burguesa da perspectiva socialista, explicitando os limites da
concepção liberal na defesa da escola pública e registrando como o próprio
movimento popular acabou por cair na armadilha da “ilusão liberal” (Saviani,
1984, pp. 10-25).É esse e não outro o sentido que assume neste livro a crítica à Escola
Nova. Nesse contexto chegam a soar um tanto deslocadas as abordagens que,
provocadas por este trabalho, pretendem reabilitar a Escola Nova a partir da
perspectiva proletária.
Demarcadas as perspectivas, feita a crítica da visão liberal burguesa,
os elementos progressistas desarticulados da concepção dominante são, no
terceiro texto, articulados no âmbito da perspectiva pedagógica correspondente aos interesses da classe trabalhadora. Ainda que não se tenha podido
explorar e aprofundar suas diversas implicações, avança-se aí decididamente
na formulação de uma teoria crítica (não-reprodutivista) da educação, a
qual, como foi assinalado no final do primeiro texto, só pode ser formulada
do ponto de vista dos interesses dominados (cf. pp. 30-31).
O último texto, “Onze Teses sobre Educação e Política”, procura situar o
debate pedagógico muito além dos acanhados limites geralmente marcadospela repetição de slogans esvaziados de conteúdo. Com efeito, sem perder
de vista a realidade concreta da sociedade de classes, projetou-se a reflexão
para o horizonte de possibilidades, isto é, para o momento da passagem do
reino da necessidade ao reino da liberdade, o momento da constituição da
sociedade sem classes, momento catártico por excelência em que toda a
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DERMEVAL SAVIANI
sociedade humana se reencontra consigo mesma. A alguns leitores parece
ter escapado tal intento, talvez em razão do caráter lapidar das teses formu
ladas e da economia das explicações apresentadas (seria este outro defeitodo livro?). A questão do “desaparecimento do Estado” permite ilustrar esse
ponto. No texto afirmo: “Sabe-se que não se trata de destruir o Estado; ele
simplesmente desaparecerá por não ser mais necessário” (cf. p. 86). Obvia
mente, o contexto aí é o da passagem do reino da necessidade ao reino da
liberdade, portanto, a passagem do socialismo ao comunismo que significa
o advento da sociedade sem classes. Conseqüentemente, o Estado que fora
utilizado pelo proletariado como instrumento de transição para a sociedadesem classes, ao ser esta consolidada, perde a razão de ser e desaparece.
Que dizer então da interpretação que considera a colocação supra como
indicadora de que o Estado burguês não é destruído mas consente no seu
desaparecimento? Antes de qualquer outra consideração, cabe registrar
que tal interpretação não corresponde ao que foi registrado no texto. Com
efeito, lá está escrito: “Sabe-se que não se trata de destruir o Estado”; e,
não, “Sabe-se que não se trata de destruir o Estado burguês”. Nesse ponto dareflexão supõe-se já superada a sociedade burguesa. Ora, a revolução socia
lista (proletária) não destrói o Estado em si mesmo. Ao conquistar o poder,
o proletariado, por meio do mesmo ato revolucionário, destitui (destrói) o
Estado burguês e constitui o Estado proletário. Como falar, nessa nova situa
ção, de destruição do Estado? Quem destruirá o Estado proletário? Não será
uma outra classe, pois com a conquista do poder pelo proletariado, que é a
classe cujo domínio consiste na superação das classes, já não há outra classeque a ele se possa contrapor como historicamente progressista. Seria, então,
o próprio proletariado? Na verdade, não se trata já da destruição do Estado.
Uma vez cumprido o papel de instrumento coercitivo para inviabilizar as
tentativas de restauração do poder burguês, o Estado (sociedade política),
não sendo mais necessário, desaparecerá.
A concepção acima exposta é encontrada reiterativamente nos escritos
de Marx, resultando, assim, um contra-senso invocar esse autor paradesautorizar a linha de reflexão por mim desenvolvida (cf. Mar x , s. d., p. 38 ;
1974, pp. 80 e 90; 1968, pp. 47-48; 1984, pp. 62-68). Para economia deste
prefácio, cito apenas o final de A Miséria da Filosofia : “Somente numa ordem
de coisas em que não existem mais classes e antagonismos entre classes as
evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas” (M ar x , 1985, p. 160).
xl
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ESCOLA E DEMOCRACIA xli
O mesmo se diga de Gramsci:
O fim do Estado sublinhado por Marx e Lênin é concebido por Gramsci
como a absorção, pela sociedade civil, da sociedade política que, numa socieda
de sem classes, está destinada à extinção na proporção e na medida em que se
harmonizam os interesses do proletariado e os interesses do conjunto do corpo
social [Grisoni & Maggiori, 1973, pp. 177-178].
Nas palavras do próprio Gramsci:
A classe burguesa está “saturada”; não só não se amplia, mas se desagrega;não só não assimila novos elementos, mas desassimila uma parte de si mesma
(ou, pelo menos, as desassimilações são muitíssimo mais numerosas do que as
assimilações). Uma classe que se considere capaz de assimilar toda a sociedade, e
ao mesmo tempo seja realmente capaz de exprimir este processo, leva à perfeição
esta concepção do Estado e do direito, de tal modo a conceber o fim do Estado
e do direito, em virtude de terem eles completado a sua missão e de terem sido
absorvidos pela Sociedade Civil [Gramsci, 1976, p. 147].
E, mais adiante:
O elemento Estado-coerção pode ser imaginado em processo de desapareci
mento, à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedade
regulada (ou Estado ético ou sociedade civil) [idem, p. 149].
Para esta edição foi feita uma revisão de todo o trabalho, corrigindo-sealgumas falhas de impressão ao mesmo tempo em que se procurou minorar os
defeitos de estilo do segundo texto.
Agradecendo a confiança dos leitores espero que os esclarecimentos deste
prefácio os ajudem a melhor compreender as posições assumidas pelo autor. Os
comentários feitos tiveram apenas essa intenção, não cabendo, pois, interpretá-
los como resposta às objeções dos críticos. Pelo respeito que merecem os colegas
que valorizaram este trabalho com suas apreciações, cabe considerá-las uma
a uma de forma detida. Como não é possível fazer isso num simples prefácio,
tais considerações são remetidas para outro momento e outro lugar.
São Sepé (RS), 26 de janeiro de 1988
Dermeval Saviani
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Apresentação
ste pequeno livro foi organizado daseguinte maneira: o primeiro texto
reproduz o artigo “As Teorias da Edu
cação e o Problema da Marginalidade
na América Latina” publicado origi
nalmente em Cadernos de Pesquisa,
nº 42, agosto/82, da Fundação Carlos Chagas.
Os textos seguintes, “Escola e Democracia (I)” e“Escola e Democracia (II)” reproduzem, respectivamente,
os artigos “Escola e democracia ou a ‘Teoria da Curvatura
da Vara’”, Ande, 1981 e “Escola e Democracia: para além
da ‘Teoria da Curvatura da Vara”’, Ande, 1982.
O último texto, “Onze Teses sobre Educação e
Política”, foi escrito especialmente para integrar a
presente publicação. Seu objetivo é encaminhar, demodo explícito, a discussão das relações entre educação
e política já que aí reside a questão central que atravessa
de ponta a ponta o conteúdo deste livro.
Dada a estreita conexão entre os artigos acima
mencionados, tem havido uma tendência a estudá-los
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DERMEVAL SAVIANI
conjuntamente, o que, entretanto, tem sido obstado pelas dificuldades em
encontrá-los disponíveis nas livrarias. A decisão de reuni-los numa mesma
publicação atende, assim, à solicitação de diversos leitores no sentido decontornar aquelas dificuldades.
Esperamos que este livro, a exemplo dos artigos que lhe deram origem,
continue a auxiliar professores e alunos na busca de uma compreensão mais
sistemática e crítica das diferentes teorias da educação.
Finalmente, aproveitamos a oportunidade para agradecer a Cadernos de
Pesquisa, revista de estudos e pesquisas em educação da Fundação Carlos
Chagas, e Ande, revista da Associação Nacional de Educação, pela anuênciaà inclusão dos artigos na presente obra.
São Paulo, setembro de 1983
Dermeval Saviani
2
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Capítulo 1 As teorias da educação
e o problema da marginalidade
1. O PROBLEMA
e acordo com estimativas relativas a
1970, “cerca de 50% dos alunos das
escolas primárias desertavam em con
dições de semi-analfabetismo ou de
analfabetismo potencial na maioria dos
países da América Latina” (Tedesco,
1981, p. 67). Isto sem levar em conta o contingente de
crianças em idade escolar que sequer têm acesso à escola
e que, portanto, já se encontram a priori marginalizadas
dela.
O simples dado acima indicado lança de imediato em
nossos rostos a realidade da marginalidade relativamente
ao fenômeno da escolarização. Como interpretar essedado? Como explicá-lo? Como as teorias da educação
se posicionam diante dessa situação?
Grosso modo, podemos dizer que, no que diz respeito
à questão da marginalidade, as teorias educacionais po
dem ser classificadas em dois grupos. No primeiro, temos
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4 DERMEVAL SAVIANI
aquelas teorias que entendem ser a educação um instrumento de equalização
social, portanto, de superação da marginalidade. No segundo, estão as teorias
que entendem ser a educação um instrumento de discriminação social, logo,um fator de marginalização.
Ora, percebe-se facilmente que ambos os grupos explicam a questão da
marginalidade a partir de determinada maneira de entender as relações entre
educação e sociedade. Assim, para o primeiro grupo a sociedade é concebida
como essencialmente harmoniosa, tendendo à integração de seus membros. A
marginalidade é, pois, um fenômeno acidental que afeta individualmente um
número maior ou menor de seus membros, o que, no entanto, constitui umdesvio, uma distorção que não só pode como deve ser corrigida. A educação
emerge aí como um instrumento de correção dessas distorções. Constitui,
pois, uma força homogeneizadora que tem por função reforçar os laços sociais,
promover a coesão e garantir a integração de todos os indivíduos no corpo
social. Sua função coincide, no limite, com a superação do fenômeno da
marginalidade. Enquanto esta ainda existir, devem se intensificar os esforços
educativos; quando for superada, cumpre manter os serviços educativos numnível pelo menos suficiente para impedir o reaparecimento do problema da
marginalidade. Como se vê, no que respeita às relações entre educação e
sociedade, concebe-se a educação com uma ampla margem de autonomia
em face da sociedade. Tanto que lhe cabe um papel decisivo na conformação
da sociedade evitando sua desagregação e, mais do que isso, garantindo a
construção de uma sociedade igualitária.
Já o segundo grupo de teorias concebe a sociedade como sendo essencialmente marcada pela divisão entre grupos ou classes antagônicas que
se relacionam à base da força, a qual se manifesta fundamentalmente nas
condições de produção da vida material. Nesse quadro, a marginalidade
é entendida como um fenômeno inerente à própria estrutura da socieda
de. Isso porque o grupo ou classe que detém maior força se converte em
dominante se apropriando dos resultados da produção social, tendendo,
em conseqüência, a relegar os demais à condição de marginalizados.Nesse contexto, a educação é entendida como inteiramente dependente
da estrutura social geradora de marginalidade, cumprindo aí a função
de reforçar a dominação e legitimar a marginalização. Nesse sentido, a
educação, longe de ser um instrumento de superação da marginalidade,
converte-se num fator de marginalização já que sua forma específica de
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ESCOLA E DEMOCRACIA 5
reproduzir a marginalidade social é a produção da marginalidade cultural
e, especificamente, escolar.
Tomando como critério de criticidade a percepção dos condicionantesobjetivos, denominarei as teorias do primeiro grupo de “teorias não-críticas”
já que encaram a educação como autônoma e buscam compreendê-la a partir
dela mesma. Inversamente, aquelas do segundo grupo são críticas uma vez
que se empenham em compreender a educação remetendo-a sempre a seus
condicionantes objetivos, isto é, à estrutura socioeconômica que determina
a forma de manifestação do fenômeno educativo. Como, porém, entendem
que a função básica da educação é a reprodução da sociedade, serão por mimdenominadas de “teorias crítico-reprodutivistas”.
2. AS TEORIAS NÃO-CRÍTICAS
2.1. A Pedagogia Tradicional
A constituição dos chamados “sistemas nacionais de ensino” data de
meados do século XIX. Sua organização inspirou-se no princípio de que a
educação é direito de todos e dever do Estado. O direito de todos à educação
decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova classe
que se consolidara no poder: a burguesia. Tratava-se, pois, de construir uma
sociedade democrática, de consolidar a democracia burguesa. Para superar
a situação de opressão, própria do “Antigo Regime”, e ascender a um tipode sociedade fundada no contrato social celebrado “livremente” entre os
indivíduos, era necessário vencer a barreira da ignorância. Só assim seria
possível transformar os súditos em cidadãos, isto é, em indivíduos livres por
que esclarecidos, ilustrados. Como realizar essa tarefa? Por meio do ensino. A
escola é erigida no grande instrumento para converter os súditos em cidadãos,
“redimindo os homens de seu duplo pecado histórico: a ignorância, miséria
moral, e a opressão, miséria política” (Zanotti, 1972, pp. 22-23).
Nesse quadro, a causa da marginalidade é identificada com a ignorância.
É marginalizado da nova sociedade quem não é esclarecido. A escola surge
como um antídoto à ignorância, logo, um instrumento para equacionar o
problema da marginalidade. Seu papel é difundir a instrução, transmitir os
conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente.
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6 DERMEVAL SAVIANI
O mestre-escola será o artífice dessa grande obra. A escola organiza-se como
uma agência centrada no professor, o qual transmite, segundo uma gradação
lógica, o acervo cultural aos alunos. A estes cabe assimilar os conhecimentosque lhes são transmitidos.
À teoria pedagógica acima indicada correspondia determinada maneira
de organizar a escola. Como as iniciativas cabiam ao professor, o essencial era
contar com um professor razoavelmente bem preparado. Assim, as escolas
eram organizadas na forma de classes, cada uma contando com um professor
que expunha as lições, que os alunos seguiam atentamente, e aplicava os
exercícios, que os alunos deveriam realizar disciplinadamente.Ao entusiasmo dos primeiros tempos suscitado pelo tipo de escola
anteriormente descrito de forma simplificada, sucedeu progressivamente
uma crescente decepção. A referida escola, além de não conseguir realizar
seu desiderato de universalização (nem todos nela ingressavam e mesmo os
que ingressavam nem sempre eram bem-sucedidos) ainda teve de curvar
se ante o fato de que nem todos os bem-sucedidos se ajustavam ao tipo de
sociedade que se queria consolidar. Começaram, então, a se avolumar ascríticas a essa teoria da educação e a essa escola que passa a ser chamada
de Escola Tradicional.
2.2. A Pedagogia Nova
As críticas à pedagogia tradicional formuladas a partir do final do
século XIX foram, aos poucos, dando origem a uma outra teoria da educação. Esta teoria mantinha a crença no poder da escola e em sua função
de equalização social. Portanto, as esperanças de que se pudesse corrigir
a distorção expressa no fenômeno da marginalidade, por meio da escola,
ficaram de pé. Se a escola não vinha cumprindo essa função, tal fato se
devia a que o tipo de escola implantado - a Escola Tradicional - se revelara
inadequado. Toma corpo, então, um amplo movimento de reforma, cuja
expressão mais típica ficou conhecida sob o nome de “escolanovismo”. Talmovimento tem como ponto de partida a Escola Tradicional já implantada
segundo as diretrizes consubstanciadas na teoria da educação que ficou
conhecida como pedagogia tradicional. A pedagogia nova começa, pois, por
efetuar a crítica da pedagogia tradicional, esboçando uma nova maneira de
interpretar a educação e ensaiando implantá-la, primeiro, por intermédio
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ESCOLA E DEMOCRACIA 7
de experiências restritas; depois, advogando sua generalização no âmbito
dos sistemas escolares.
Segundo essa nova teoria, a marginalidade deixa de ser vista predominantemente sob o ângulo da ignorância, isto é, o não domínio de conhecimentos.
O marginalizado já não é, propriamente, o ignorante, mas o rejeitado. Alguém
está integrado não quando é ilustrado, mas quando se sente aceito pelo grupo
e, por meio dele, pela sociedade em seu conjunto. É interessante notar que
alguns dos principais representantes da pedagogia nova se converteram à
pedagogia a partir da preocupação com os “anormais” (ver, por exemplo, De-
croly e Montessori). A partir das experiências levadas a efeito com crianças“anormais” é que se pretendeu generalizar procedimentos pedagógicos para
o conjunto do sistema escolar. Nota-se, então, uma espécie de biopsicologi-
zação da sociedade, da educação e da escola. Ao conceito de “anormalidade
biológica” construído a partir da constatação de deficiências neurofisiológicas
se acrescenta o conceito de “anormalidade psíquica” detectada por testes de
inteligência, de personalidade etc., que começam a se multiplicar. Forja-se,
então, uma pedagogia que advoga um tratamento diferencial a partir da “descoberta” das diferenças individuais. Eis a “grande descoberta”: os homens são
essencialmente diferentes; não se repetem; cada indivíduo é único. Portanto,
a marginalidade não pode ser explicada pelas diferenças entre os homens,
quaisquer que elas sejam: não apenas diferenças de cor, de raça, de credo ou
de classe, o que já era defendido pela pedagogia tradicional; mas também
diferenças no domínio do conhecimento, na participação do saber, no desem
penho cognitivo. Marginalizados são os “anormais”, isto é, os desajustados einadaptados de todos os matizes. Mas a “anormalidade” não é algo, em si,
negativo; ela é, simplesmente, uma diferença. Portanto, podemos concluir,
ainda que isto pareça paradoxal, que a anormalidade é um fenômeno normal.
Não é, pois, suficiente para caracterizar a marginalidade, a qual está marcada
pela inadaptação ou desajustamento, fenômenos associados ao sentimento de
rejeição. A educação, como fator de equalização social, será um instrumento
de correção da marginalidade na medida em que cumprir a função de ajustar,de adaptar os indivíduos à sociedade, incutindo neles o sentimento de aceita
ção dos demais e pelos demais. A educação será um instrumento de correção
da marginalidade na medida em que contribuir para a constituição de uma
sociedade cujos membros, não importam as diferenças de quaisquer tipos,
aceitem-se mutuamente e respeitem-se na sua individualidade específica.
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8 DERMEVAL SAVIANI
Compreende-se, então, que essa maneira de entender a educação,
por referência à pedagogia tradicional, tenha deslocado o eixo da questão
pedagógica do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos;
do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para a
espontaneidade; do diretivismo para o não-diretivismo; da quantidade para
a qualidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada na ciência
da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental baseada princi
palmente nas contribuições da biologia e da psicologia. Em suma, trata-se
de uma teoria pedagógica que considera que o importante não é aprender,mas aprender a aprender.
Para funcionar de acordo com a concepção anteriormente exposta,
obviamente a organização escolar teria que passar por uma sensível reformu
lação. Assim, em lugar de classes confiadas a professores que dominavam as
grandes áreas do conhecimento, revelando-se capazes de colocar os alunos
em contato com os grandes textos que eram tomados como modelos a se
rem imitados e progressivamente assimilados pelos alunos, a escola deveria
agrupar os alunos segundo áreas de interesses decorrentes de sua atividade
livre. O professor agiria como um estimulador e orientador da aprendizagem
cuja iniciativa principal caberia aos próprios alunos. Tal aprendizagem seria
uma decorrência espontânea do ambiente estimulante e da relação viva que
se estabeleceria entre os alunos e entre estes e o professor. Para tanto, cada
professor teria de trabalhar com pequenos grupos de alunos, sem o que a
relação interpessoal, essência da atividade educativa, ficaria dificultada; e
num ambiente estimulante, portanto, dotado de materiais didáticos ricos,
biblioteca de classe etc. Em suma, a feição das escolas mudaria seu aspecto
sombrio, disciplinado, silencioso e de paredes opacas, assumindo um ar alegre,
movimentado, barulhento e multicolorido.
O tipo de escola acima descrito não conseguiu, entretanto, alterar
significativamente o panorama organizacional dos sistemas escolares. Isso
porque, além de outras razões, implicava custos bem mais elevados do que
aqueles da Escola Tradicional. Com isso, a “Escola Nova” organizou-se ba
sicamente na forma de escolas experimentais ou como núcleos raros, muito
bem equipados e circunscritos a pequenos grupos de elite. No entanto,
o ideário escolanovista, tendo sido amplamente difundido, penetrou nas
cabeças dos educadores acabando por gerar conseqüências também nas
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ESCOLA E DEMOCRACIA 9
amplas redes escolares oficiais organizadas na forma tradicional. Cumpre
assinalar que tais conseqüências foram mais negativas que positivas uma vez
que, provocando o afrouxamento da disciplina e a despreocupação com atransmissão de conhecimentos, acabou a absorção do escolanovismo pelos
professores por rebaixar o nível do ensino destinado às camadas populares,
as quais muito freqüentemente têm na escola o único meio de acesso ao
conhecimento elaborado. Em contrapartida, a “Escola Nova” aprimorou a
qualidade do ensino destinado às elites.
Vê-se, assim, que paradoxalmente, em lugar de resolver o problema da
marginalidade, a “Escola Nova” o agravou. Com efeito, ao enfatizar a “qualidade do ensino” ela deslocou o eixo de preocupação do âmbito político
(relativo à sociedade em seu conjunto) para o âmbito técnico-pedagógico
(relativo ao interior da escola), cumprindo ao mesmo tempo uma dupla
função: manter a expansão da escola em limites suportáveis pelos interesses
dominantes e desenvolver um tipo de ensino adequado a esses interesses. É
a esse fenômeno que denominei de “mecanismo de recomposição da hege
monia da classe dominante” (Saviani, 1980).Cabe assinalar que o papel da “Escola Nova” previamente descrito
manifestou-se mais nitidamente no caso da América Latina. Em verdade,
na maioria dos países dessa região os sistemas de ensino começaram a as
sumir feição mais nítida já no século XX, quando o escolanovismo estava
largamente disseminado na Europa e principalmente nos Estados Unidos,
não deixando, em conseqüência, de influenciar o pensamento pedagógico
latino-americano. Portanto, a disseminação das escolas efetuada segundoos moldes tradicionais não deixou de ser de alguma forma perturbada pela
propagação do ideário da pedagogia nova, já que esse ideário ao mesmo tempo
que procurava evidenciar as “deficiências” da escola tradicional, dava força
à idéia segundo a qual é melhor uma boa escola para poucos do que uma
escola deficiente para muitos.
2.3. A Pedagogia Tecnicista
Ao findar a primeira metade do século XX, o escolanovismo apresentava
sinais visíveis de exaustão. As esperanças depositadas na reforma da escola
resultaram frustadas. Um sentimento de desilusão começava a se alastrar
nos meios educacionais. A pedagogia nova, ao mesmo tempo que se tornava
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10 DERMEVAL SAVIANI
dominante como concepção teórica - a tal ponto que se tornou senso comum
o entendimento segundo o qual a pedagogia nova é portadora de todas as
virtudes e de nenhum vício, ao passo que a pedagogia tradicional é portadorade todos os vícios e de nenhuma virtude —, na prática revelou-se ineficaz
em face da questão da marginalidade. Assim, de um lado surgiam tentati
vas de desenvolver uma espécie de “Escola Nova Popular”, cujos exemplos
mais significativos são as pedagogias de Freinet e de Paulo Freire; de outro
lado, radicalizava-se a preocupação com os métodos pedagógicos presentes
no escolanovismo que acaba por desembocar na eficiência instrumental.
Articula-se aqui uma nova teoria educacional: a pedagogia tecnicista.A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos prin
cípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a
reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e opera
cional. De modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-
se a objetivação do trabalho pedagógico. Com efeito, se no artesanato o
trabalho era subjetivo, isto é, os instrumentos de trabalho eram dispostos
em função do trabalhador e este dispunha deles segundo seus desígnios, naprodução fabril essa relação é invertida. Aqui, é o trabalhador que deve se
adaptar ao processo de trabalho, já que este foi objetivado e organizado na
forma parcelada. Nessas condições, o trabalhador ocupa seu posto na linha
de montagem e executa determinada parcela do trabalho necessário para
produzir determinados objetos. O produto é, pois, uma decorrência da forma
como é organizado o processo. O concurso das ações de diferentes sujeitos
produz assim um resultado com o qual nenhum dos sujeitos se identifica eque, ao contrário, lhes é estranho.
O fenômeno acima mencionado ajuda-nos a entender a tendência que
se esboçou com o advento daquilo que estou chamando de “pedagogia tecni
cista”. Buscou-se planejar a educação de modo a dotá-la de uma organização
racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr
em risco sua eficiência. Para tanto, era mister operacionalizar os objetivos
e, pelo menos em certos aspectos, mecanizar o processo. Daí a proliferaçãode propostas pedagógicas tais como o enfoque sistêmico, o microensino, o
telensino, a instrução programada, as máquinas de ensinar etc. Daí também
o parcelamento do trabalho pedagógico com a especialização de funções,
postulando-se a introdução no sistema de ensino de técnicos dos mais di
ferentes matizes. Daí, enfim, a padronização do sistema de ensino a partir
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ESCOLA E DEMOCRACIA I I
de esquemas de planejamento previamente formulados aos quais devem se
ajustar as diferentes modalidades de disciplinas e práticas pedagógicas.
Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia ao professor - que era, aomesmo tempo, o sujeito do processo, o elemento decisivo e decisório - e se
na pedagogia nova a iniciativa desloca-se para o aluno - situando-se o nervo
da ação educativa na relação professor-aluno, portanto, relação interpessoal,
intersubjetiva -, na pedagogia tecnicista, o elemento principal passa a ser
a organização racional dos meios, ocupando o professor e o aluno posição
secundária, relegados que são à condição de executores de um processo
cuja concepção, planejamento, coordenação e controle ficam a cargo deespecialistas supostamente habilitados, neutros, objetivos, imparciais. A
organização do processo converte-se na garantia da eficiência, compensando
e corrigindo as deficiências do professor e maximizando os efeitos de sua
intervenção.
Cumpre notar que, embora a pedagogia nova também dê grande im
portância aos meios, há, porém, uma diferença fundamental: enquanto na
pedagogia nova os meios são dispostos em função da relação professor-aluno,estando, pois, a serviço dessa relação, na pedagogia tecnicista a situação
inverte-se. Enquanto na pedagogia nova são os professores e alunos que
decidem se utilizam ou não determinados meios, bem como quando e como o
farão, na pedagogia tecnicista dir-se-ia que é o processo que define o que pro
fessores e alunos devem fazer e, assim também, quando e como o farão.
Compreende-se, então, que para a pedagogia tecnicista a marginalidade
não será identificada com a ignorância nem será detectada a partir do sentimento de rejeição. Marginalizado será o incompetente (no sentido técnico
da palavra), isto é, o ineficiente e improdutivo. A educação estará contri
buindo para superar o problema da marginalidade na medida em que formar
indivíduos eficientes, isto é, aptos a dar sua parcela de contribuição para o
aumento da produtividade da sociedade. Assim, estará ela cumprindo sua
função de equalização social. Nesse contexto teórico, a equalização social é
identificada com o equilíbrio do sistema (no sentido do enfoque sistêmico).A marginalidade, isto é, a ineficiência e improdutividade, constitui-se numa
ameaça à estabilidade do sistema. Como este comporta múltiplas funções,
às quais correspondem determinadas ocupações, e como essas diferentes
funções são interdependentes, de tal modo que a ineficiência no desem
penho de uma delas afeta as demais e, em conseqüência, todo o sistema,
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12 DERMEVAL SAVIANI
cabe à educação proporcionar um eficiente treinamento para a execução
das múltiplas tarefas demandadas continuamente pelo sistema social. A
educação será concebida, pois, como um subsistema, cujo funcionamentoeficaz é essencial ao equilíbrio do sistema social de que faz parte. Sua base de
sustentação teórica desloca-se para a psicologia behaviorista, a engenharia
comportamental, a ergonomia, informática, cibernética, que têm em comum
a inspiração filosófica neopositivista e o método funcionalista. Do ponto de
vista pedagógico, conclui-se que, se para a pedagogia tradicional a questão
central é aprender e para a pedagogia nova, aprender a aprender, para a
pedagogia tecnicista o que importa é aprender a fazer.À teoria pedagógica acima exposta corresponde uma reorganização
das escolas que passam por um crescente processo de burocratização. Com
efeito, acreditava-se que o processo se racionalizava na medida em que se
agisse planificadamente. Para tanto, era mister baixar instruções minuciosas
sobre como proceder com vistas a que os diferentes agentes cumprissem cada
qual as tarefas específicas acometidas a cada um no amplo espectro em que
se fragmentou o ato pedagógico. O controle seria feito basicamente pelopreenchimento de formulários. O magistério passou, então, a ser submetido
a um pesado e sufocante ritual, com resultados visivelmente negativos. Na
verdade, a pedagogia tecnicista, ao ensaiar transpor para a escola a forma
de funcionamento do sistema fabril, perdeu de vista a especificidade da
educação, ignorando que a articulação entre escola e processo produtivo se
dá de modo indireto e por meio de complexas mediações. Além do mais, na
prática educativa, a orientação tecnicista cruzou com as condições tradicionais predominantes nas escolas bem como com a influência da pedagogia
nova que exerceu poderoso atrativo sobre os educadores. Nessas condições,
a pedagogia tecnicista acabou por contribuir para aumentar o caos no campo
educativo, gerando tal nível de descontinuidade, de heterogeneidade e de
fragmentação, que praticamente inviabiliza o trabalho pedagógico. Com isso,
o problema da marginalidade só tendeu a se agravar: o conteúdo do ensino
tornou-se ainda mais rarefeito e a relativa ampliação das vagas tornou-seirrelevante em face dos altos índices de evasão e repetência.
A situação descrita afetou particularmente a América Latina já que
desviou das atividades-fim para as atividades-meio parcela considerável dos
recursos sabidamente escassos destinados à educação. Sabe-se, ainda, que
boa parte dos programas internacionais de implantação de tecnologias de
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ESCOLA E DEMOCRACIA 13
ensino nesses países tinham por detrás outros interesses como, por exemplo,
a venda de artefatos tecnológicos obsoletos aos países subdesenvolvidos (cf.
Mattelart, 1976 e s.d.).
3. AS TEORIAS CRÍTICO-REPRODUTIVISTAS
Como já assinalei, o primeiro grupo de teorias concebe a marginalidade
como um desvio, tendo a educação por função a correção desse desvio. Amarginalidade é vista como um problema social e a educação, que dispõe
de autonomia em relação à sociedade, estaria, por esta razão, capacitada a
intervir eficazmente na sociedade, transformando-a, tornando-a melhor,
corrigindo as injustiças; em suma, promovendo a equalização social. Essas
teorias consideram, pois, apenas a ação da educação sobre a sociedade.
Porque desconhecem as determinações sociais do fenômeno educativo, eu
as denominei de “teorias não-críticas”. Inversamente, as teorias do segundogrupo - que passarei a examinar - são críticas, uma vez que postulam não
ser possível compreender a educação senão a partir dos seus condicionantes
sociais. Há, pois, nessas teorias uma cabal percepção da dependência da
educação em relação à sociedade. Entretanto, como na análise que desen
volvem chegam invariavelmente à conclusão de que a função própria da
educação consiste na reprodução da sociedade em que ela se insere, bem
merecem a denominação de “teorias crítico-reprodutivistas”. Tais teoriascontam com um razoável número de representantes e manifestam-se em
diferentes versões. Há, por exemplo, os chamados “radicais americanos”,
cujos principais representantes são Bowles e Gintis, com o livro Schooling
in Capitalist America (1976), que podem ser classificados nesse grupo de
teorias. Tais autores consideram que a escola tinha, nas origens, uma função
equalizadora, mas que atualmente se torna cada vez mais discriminadora e
repressiva. Todas, as reformas escolares fracassaram, tornando cada vez maisevidente o papel que a escola desempenha: reproduzir a sociedade de classes
e reforçar o modo de produção capitalista.
Em que pesem as diferentes manifestações, considero que, no âmbito
desse grupo, as teorias que tiveram maior repercussão e que alcançaram um
maior nível de elaboração são as seguintes:
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14 DERMEVAL SAVIANI
a) “teoria do sistema de ensino como violência simbólica”;
b) “teoria da escola como aparelho ideológico de Estado (AIE)”;
c) “teoria da escola dualista”.
A seguir comentarei brevemente cada uma delas.
3.1. Teoria do Sistema de Ensino como Violência Simbólica
Esta teoria está desenvolvida na obra A Reprodução: elementos para
uma teoria do sistema de ensino, de p. Bourdieu e J. C. Passeron (1975). Aobra é constituída de dois livros. No livro I, “Fundamentos de uma teoria
da violência simbólica”, a teoria é sistematizada num corpo de proposições
logicamente articuladas segundo um esquema analítico-dedutivo. O livro II
expõe os resultados de uma pesquisa empírica levada a cabo pelos autores no
sistema escolar francês em um de seus segmentos, qual seja, a Faculdade de
Letras. Como as análises do livro II podem ser consideradas como aplicações
a um caso historicamente determinado dos princípios gerais enunciados nolivro I, ainda que tenham servido, ao mesmo tempo, como ponto de partida
para a construção dos princípios do livro I, minha exposição se limitará ao
conteúdo do livro I.
O arcabouço do livro I constitui, mais do que uma sociologia da educa
ção, uma “sócio-lógica” da educação. Isto porque não se trata de uma análise
da educação como fato social, mas da explicitação das condições lógicas de
possibilidade de toda e qualquer educação para toda e qualquer sociedadede toda e qualquer época ou lugar. Trata-se de uma teoria axiomática que
se desdobra dedutivamente dos princípios universais para os enunciados
analíticos de suas conseqüências particulares. Por isso, cada grupo de pro
posições começa sempre por um enunciado universal (todo poder de vio
lência simbólica..., toda ação pedagógica etc.) e termina por uma aplicação
particular, expressa pela fórmula “uma formação social determinada...”. Vale
notar que, no intuito de preservar a validade universal da teoria, os autorestêm o cuidado de utilizar sempre a expressão “grupos ou classes”, jamais
se referindo apenas às classes simplesmente; o que indica que a validade
da teoria não pretende se circunscrever apenas às sociedades de classes,
mas se estende também às sociedades sem classes que porventura tenham
existido ou venham a existir. Em suma, o axioma fundamental (proposição
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ESCOLA E DEMOCRACIA 15
zero), que enuncia a teoria geral da violência simbólica, aplica-se ao siste
ma de ensino que é definido como uma modalidade específica de violência
simbólica (proposições de grau 4), por meio de proposições intermediárias
que tratam, sucessivamente, da ação pedagógica (proposições de grau 1),
da autoridade pedagógica (proposições de grau 2) e do trabalho pedagógico
(proposições de grau 3).
Por que violência simbólica? Os autores tomam como ponto de partida
que toda e qualquer sociedade estrutura-se como um sistema de relações
de força material entre grupos ou classes. Sobre a base da força material e
sob sua determinação, erige-se um sistema de relações de força simbólicacujo papel é reforçar, por dissimulação, as relações de força material. É essa
a idéia central contida no axioma fundamental da teoria. Senão vejamos
o seu enunciado: “Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder
que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando
as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria
força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força” (Bourdieu
& Passeron, 1975, p. 19).Vê-se que o reforço da violência material se dá pela sua conversão ao pla
no simbólico em que se produz e reproduz o reconhecimento da dominação
e de sua legitimidade pelo desconhecimento (dissimulação) de seu caráter
de violência explícita. Assim, à violência material (dominação econômica)
exercida pelos grupos ou classes dominantes sobre os grupos ou classes
dominados corresponde a violência simbólica (dominação cultural).
A violência simbólica manifesta-se de múltiplas formas: formação daopinião pública pelos meios de comunicação de massa, jornais etc.; prega
ção religiosa; atividade artística e literária; propaganda e moda; educação
familiar etc. No entanto, na obra em questão, o objetivo de Bourdieu e
Passeron é a ação pedagógica institucionalizada, isto é, o sistema escolar.
Daí o subtítulo da obra: “elementos para uma teoria do sistema de ensino”.
Para isso, partindo, como já disse, da teoria geral da violência simbólica,
buscam explicitar a ação pedagógica (AP) como imposição arbitrária dacultura (também arbitrária) dos grupos ou classes dominantes aos grupos ou
classes dominados. Essa imposição, para se exercer, implica necessariamente
a autoridade pedagógica (AuP), isto é, um “poder arbitrário de imposição
que, só pelo fato de ser desconhecido como tal, se encontra objetivamente
reconhecido como autoridade legítima” (idem, p. 27).
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16 DERMEVAL SAVIANI
A referida ação pedagógica que se exerce pela autoridade pedagógica
(AuP) realiza-se pelo trabalho pedagógico (TP) entendido:
[...] como trabalho de inculcação que deve durar o bastante para produzir uma
formação durável; isto é, um habitus como produto da interiorização dos prin
cípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessação da ação
pedagógica (AP) e por isso de perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário
interiorizado [idem, p. 44].
Para a compreensão do sistema de ensino, é de fundamental importância
a distinção entre trabalho pedagógico (TP) primário (educação familiar) e
trabalho pedagógico secundário, cuja forma institucionalizada é o trabalho
escolar (TE). Como os autores indicam no “escolio” da proposição 1,
[...] reservou-se a seu momento lógico (proposições de grau 4) a especificação
das formas e dos efeitos de uma ação pedagógica que se exerce no quadro de
uma instituição escolar; é somente na última proposição (4.3) que se encontra
caracterizada expressamente a AP escolar que reproduz a cultura dominante,
contribuindo desse modo para reproduzir a estrutura das relações de força, numa
formação social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do
monopólio da violência simbólica legítima [idem, pp. 20-21].
A proposição 4.3 sintetiza de modo exaustivo, o conjunto da teoria do
sistema de ensino como violência simbólica. Vale a pena, então, apesar de
sua extensão, transcrevê-la integralmente:
Numa formação social determinada, o SE [sistema de ensino] dominante
pode constituir o TP dominante como TE sem que os que o exercem como os
que a ele se submetem cessem de desconhecer sua dependência relativa às rela
ções de força constitutivas da formação social em que ele se exerce, porque ele
produz e reproduz, pelos meios próprios da instituição, as condições necessárias
ao exercício de sua função interna de inculcação, que são ao mesmo tempo as
condições suficientes da realização de sua função externa de reprodução da
cultura legítima e de sua contribuição correlativa à reprodução das relações
de força; e porque, só pelo fato de que existe e subsiste como instituição, ele
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ESCOLA E DEMOCRACIA 17
implica as condições institucionais do desconhecimento da violência simbólica
que exerce, isto é, porque os meios institucionais dos quais dispõe enquanto ins-
tituição relativamente autônoma, detentora do monopólio do exercício legítimo
da violência simbólica, estão predispostos a servir também, sob a aparência da
neutralidade, os grupos ou classes dos quais ele reproduz o arbitrário cultural
(dependência pela independência) [idem, p. 75].
Portanto, a teoria não deixa margem a dúvidas. A função da educação
é a de reprodução das desigualdades sociais. Pela reprodução cultural, ela
contribui especificamente para a reprodução social.Como interpretar, nesse quadro, o fenômeno da marginalidade? De
acordo com essa teoria, marginalizados são os grupos ou classes dominados.
Marginalizados socialmente porque não possuem força material (capital
econômico) e marginalizados culturalmente porque não possuem força sim
bólica (capital cultural). E a educação, longe de ser um fator de superação
da marginalidade, constitui um elemento reforçador da mesma.
Eis a função logicamente necessária da educação. Não há outra alternativa. Toda tentativa de utilizá-la como instrumento de superação da
marginalidade não é apenas uma ilusão. É a forma pela qual ela dissimula
e, por isso, cumpre eficazmente a sua função de marginalização. Todos os
esforços, ainda que oriundos dos grupos ou classes dominados, reverte
sempre no reforço dos interesses dominantes:
É pela mediação desse efeito de dominação da AP dominante que as dife
rentes AP que se exercem nos diferentes grupos ou classes colaboram objetiva
e indiretamente na dominação das classes dominantes (inculcação pelas AP
dominadas de conhecimentos ou de maneiras, dos quais a AP dominante define
o valor sobre o mercado econômico ou simbólico) [idem, p. 22].
Eis por que Snyders resumiu sua crítica a essa teoria na seguinte frase:
“Bourdieu-Passeron ou a luta de classes impossível” (Snyders, 1977, p. 287).De fato, à luz da teoria da violência simbólica, a classe dominante exerce
um poder de tal modo absoluto que se torna inviável qualquer reação por
parte da classe dominada. A luta de classes resulta, pois, impossível.
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18 DERMEVAL SAVIANI
3.2. Teoria da Escola como Aparelho Ideológico de Estado (AIE)
Ao analisar a reprodução das condições de produção que implica a
reprodução das forças produtivas e das relações de produção existentes,
Althusser é levado a distinguir no Estado os Aparelhos Repressivos de
Estado (o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as
prisões etc.) e os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) que ele enumera
provisoriamente, da seguinte forma:
• AIE religioso (o sistema das diferentes Igrejas);
• AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e particulares) ;
• AIE familiar;
• AIE jurídico;
• AIE político (o sistema político de que fazem parte os diferentes parti
dos) ;
• AIE sindical;
• AIE da informação (imprensa, rádio-televisão etc.),
• AIE cultural (Letras, Belas-Artes, desportos etc.)
[Althusser, s.d., pp. 43-44].
A distinção entre ambos assenta no fato de que o Aparelho Repressivo
de Estado funciona massivamente pela violência e secundariamente pela
ideologia enquanto, inversamente, os Aparelhos Ideológicos de Estado
funcionam massivamente pela ideologia e secundariamente pela repressão
(idem, pp. 46-47).
O conceito “Aparelho Ideológico de Estado” deriva da tese segundo
a qual “a ideologia tem uma existência material”. Isto significa dizer que a
ideologia existe sempre radicada em práticas materiais reguladas por rituais
materiais definidos por instituições materiais (idem, pp. 88-89).
Em suma, a ideologia materializa-se em aparelhos: os aparelhos ideoló
gicos de Estado.
A partir desses instrumentos conceituais, Althusser (idem, p. 60) avança
a tese segundo a qual:
[...] o Aparelho Ideológico de Estado que foi colocado em posição dominante
nas formações capitalistas maduras, após uma violenta luta de classes política
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ESCOLA E DEMOCRACIA 19
e ideológica contra o antigo Aparelho Ideológico de Estado dominante, é o
Aparelho Ideológico Escolar.
Como AIE dominante, vale dizer que a escola constitui o instrumento
mais acabado de reprodução das relações de produção de tipo capitalista. Para
isso, ela toma a si todas as crianças de todas as classes sociais e inculca-lhes
durante anos a fio de audiência obrigatória “saberes práticos” envolvidos na
ideologia dominante (idem, p. 64).
Uma grande parte (operários e camponeses) cumpre a escolaridade bá
sica e é introduzida no processo produtivo. Outros avançam no processo deescolarização, mas acabam por interrompê-lo passando a integrar os quadros
médios, os “pequeno-burgueses de toda a espécie” (idem, p. 65).
Uma pequena parte, enfim, atinge o vértice da pirâmide escolar. Estes
vão ocupar os postos próprios dos “agentes da exploração” (no sistema pro
dutivo), dos “agentes da repressão” (nos Aparelhos Repressivos de Estado)
e dos “profissionais da ideologia” (nos Aparelhos Ideológicos de Estado)
(idem, ibidem).Em todos os casos, trata-se de reproduzir as relações de exploração
capitalista. Nas palavras de Althusser (idem, p. 66):
[...] é através da aprendizagem de alguns saberes práticos (savoir-faire) envolvidos
na inculcação massiva da ideologia da classe dominante, que são em grande parte
reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista, isto é, as
relações de explorados com exploradores e de exploradores com explorados.
Nesse contexto, como se coloca o problema da marginalidade? O fenô
meno da marginalidade inscreve-se no próprio seio das relações de produção
capitalista que se funda na expropriação dos trabalhadores pelos capitalistas.
Marginalizada é, pois, a classe trabalhadora. O AIE escolar, em lugar de
instrumento de equalização social, constitui um mecanismo construído pela
burguesia para garantir e perpetuar seus interesses. Se as teorias do primeirogrupo (por isso elas bem merecem ser chamadas de não-críticas) desconhe
cem essas determinações objetivas e imaginam que a escola possa cumprir
o papel de correção da marginalidade, isso se deve simplesmente ao fato de
que aquelas teorias são ideológicas, isto é, dissimulam, para reproduzi-las, as
condições de marginalidade em que vivem as camadas trabalhadoras.
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20 DERMEVAL SAVIANI
No entanto, diferentemente de Bourdieu e Passeron, Althusser (idem,
p. 49) não nega a luta de classes. Ao contrário, chega mesmo a afirmar que
“os AIE podem ser não só o alvo mas também o local da luta de classes e porvezes de formas renhidas da luta de classes”.
Entretanto, quando descreve o funcionamento do AIE escolar, a luta
de classes fica praticamente diluída, tal o peso que adquire aí a dominação
burguesa. Eu diria, então, que a luta de classes resulta nesse caso heróica,
mas inglória, já que sem nenhuma chance de êxito. O parágrafo um tanto
longo que me permito transcrever, fundamenta essa conclusão:
Peço desculpas aos professores que, em condições terríveis, tentam voltar
contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas em que este os encerra,
as armas que podem encontrar na história e no saber que “ensinam”. Em certa
medida são heróis. Mas são raros, e quantos (a maioria) não têm sequer um
vislumbre de dúvida quanto ao “trabalho” que o sistema (que os ultrapassa e
esmaga) os obriga a fazer, pior, dedicam-se inteiramente e em toda a consciên
cia à realização desse trabalho (os famosos métodos novos!). Têm tão poucasdúvidas, que contribuem até pelo seu devotamente a manter e a alimentar a
representação ideológica da Escola que a torna hoje tão “natural”, indispensável-
útil e até benfazeja aos nossos contemporâneos, quanto a Igreja era “natural”,
indispensável e generosa para os nossos antepassados de há séculos [idem,
pp. 67-68].
3.3. Teoria da Escola Dualista
Essa teoria foi elaborada por C. Baudelot e R. Establet e exposta no livro
L'École Capitaliste en France (1971). Chamo de “teoria da escola dualista”,
porque os autores se empenham em mostrar que a escola, em que pese a
aparência unitária e unificadora, é uma escola dividida em duas (e não mais
do que duas) grandes redes, as quais correspondem à divisão da sociedade
capitalista em duas classes fundamentais: a burguesia e o proletariado.Os autores procedem de modo didático, enunciando preliminarmente as
teses básicas que sucessivamente passam a demonstrar. Assim, na primeira
parte, após dissipar as “ilusões da unidade da escola” formulam seis proposi
ções fundamentais que passarão a demonstrar ao longo da obra:
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ESCOLA E DEMOCRACIA 21
1. Existe uma rede de escolarização que chamaremos rede secundária-
superior (rede S.S.).
2. Existe uma rede de escolarização que chamaremos rede primária'
profissional (rede P.P.).
3. Não existe terceira rede.
4. Estas duas redes constituem, pelas relações que as definem, o aparelho
escolar capitalista. Este aparelho é um aparelho ideológico do Estado
capitalista.
5. Enquanto tal, este aparelho contribui, pela parte que lhe cabe , a reproduzir
as relações de produção capitalistas, quer dizer, em definitivo a divisão
da sociedade em classes, em proveito da classe dominante.
6. È a divisão da sociedade em classes antagonistas que explica em última
instância não somente a existência das duas redes, mas ainda (o que as
define como tais) os mecanismos de seu funcionamento, suas causas e
seus efeitos [Baudelot & Establet, 1971, p. 42].
Por meio de minuciosa análise estatística, os autores empenham-se emdemonstrar, na segunda parte, as três primeiras proposições, isto é, a exis
tência de apenas duas redes de escolarização: as redes PP e SS. A quarta
proposição é objeto das terceira e quarta partes; na terceira parte procura-
se pôr em evidência que “é a mesma ideologia dominante que é imposta a
todos os alunos sob formas necessariamente incompatíveis”; na quarta parte
demonstra-se que a divisão em duas redes atravessa o aparelho escolar em seu
conjunto, portanto, desde a escola primária, contrariamente às aparências deunidade da escola primária. Mais do que isso, afirmam os autores que “é na
escola primária que o essencial de tudo o que concerne ao aparelho escolar
capitalista se realiza”. Finalmente, a quinta parte é dedicada à demonstração
das duas últimas proposições, evidenciando, então, que “o aparelho escolar,
com suas duas redes opostas, contribui para reproduzir as relações sociais de
produção capitalista” (idem, p. 47).
Importa reter que, nesta teoria, é retomado o conceito de Althusser(“Aparelho Ideológico de Estado”) definindo-se o aparelho escolar como
“unidade contraditória de duas redes de escolarização” (idem, p. 281).
Como aparelho ideológico, a escola cumpre duas funções básicas:
contribui para a formação da força de trabalho e para a inculcação da ide
ologia burguesa. Cumpre assinalar, porém, que não se trata de duas funções
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separadas. Pelo mecanismo das práticas escolares, a formação da força de
trabalho dá-se no próprio processo de inculcação ideológica. Mais do que
isso: todas as práticas escolares, ainda que contenham elementos que implicam um saber objetivo (e não poderia deixar de conter, já que sem isso
a escola não contribuiria para a reprodução das relações de produção), são
práticas de inculcação ideológica. A escola é, pois, um aparelho ideológico,
isto é, o aspecto ideológico é dominante e comanda o funcionamento do
aparelho escolar em seu conjunto. Conseqüentemente, a função precípua
da escola é a inculcação da ideologia burguesa. Isto é feito de duas formas
concomitantes: em primeiro lugar, a inculcação explícita da ideologiaburguesa; em segundo lugar, o recalcamento, a sujeição e o disfarce da
ideologia proletária.
Vê-se, assim, a especificidade dessa teoria. Ela admite a existência da
ideologia do proletariado. Considera, porém, que tal ideologia tem origem e
existência fora da escola, isto é, nas massas operárias e em suas organizações.
A escola é um aparelho ideológico da burguesia e a serviço de seus interesses.
O parágrafo abaixo transcrito é extremamente esclarecedor a respeito:
A contradição principal existe brutalmente fora da escola sob a forma de uma
luta que opõe a burguesia ao proletariado: ela se trava nas relações de produção,
que são relações de exploração. Como aparelho ideológico de Estado, a escola é
um instrumento da luta de classes ideológica do Estado burguês, onde o Estado
burguês persegue objetivos exteriores à escola (ela não é senão um instrumento
destinado a esses fins). A luta ideológica conduzida pelo Estado burguês na escolavisa à ideologia proletária que existe fora da escola nas massas operárias e suas
organizações. A ideologia proletária não está presente em pessoa na escola, mas
apenas sob a forma de alguns de seus efeitos que se apresentam como resistências:
entretanto, inclusive por meio dessas resistências, é ela própria que é visada no
horizonte pelas práticas de inculcação ideológica burguesa e pequeno-burguesa
[idem, p. 280].
No quadro da “teoria da escola dualista” o papel da escola não é, então, o
de simplesmente reforçar e legitimar a marginalidade que é produzida social
mente. Considerando-se que o proletariado dispõe de uma força autônoma
e forja na prática da luta de classes suas próprias organizações e sua própria
ideologia, a escola tem por missão impedir o desenvolvimento da ideologia
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do proletariado e a luta revolucionária. Para isso ela é organizada pela bur
guesia como um aparelho separado da produção. Conseqüentemente, não
cabe dizer que a escola qualifica diferentemente o trabalho intelectual e otrabalho manual. Cabe, isto sim, dizer que ela qualifica o trabalho intelec
tual e desqualifica o trabalho manual, sujeitando o proletariado à ideologia
burguesa sob um disfarce pequeno-burguês. Assim, pode-se concluir que a
escola é ao mesmo tempo um fator de marginalização relativamente à cultura
burguesa assim como em relação à cultura proletária. Em face da cultura
burguesa, pelo fato de inculcar à massa de operários que tem acesso à rede
PP apenas os subprodutos da própria cultura burguesa. Em relação à culturaproletária, pelo fato de recalcá-la, forçando os operários a representarem sua
condição nas categorias da ideologia burguesa. Conseqüentemente, a escola,
longe de ser um instrumento de equalização social, é duplamente um fator
de marginalização: converte os trabalhadores em marginais, não apenas por
referência à cultura burguesa, mas também em relação ao próprio movimento
proletário, buscando arrancar do seio desse movimento (colocar à margem
dele) todos aqueles que ingressam no sistema de ensino.Pode-se concluir que, se Baudelot e Establet se empenham em compre
ender a escola no quadro da luta de classes, eles não a encaram, porém, como
palco e alvo da luta de classes. Com efeito, entendem que a escola, vista como
aparelho ideológico, é um instrumento da burguesia na luta ideológica contra
o proletariado. A possibilidade de que a escola se constitua num instrumento
de luta do proletariado fica descartada. Uma vez que a ideologia proletária
adquire sua forma acabada no seio das massas e organizações operárias, nãose cogita de utilizar a escola como meio de elaborar e difundir a referida
ideologia. Se o proletariado se revela capaz de elaborar, independentemente
da escola, sua própria ideologia de um modo tão consistente quanto o faz a
burguesia com o auxílio da escola, então, por referência ao aparelho escolar,
a luta de classes revela-se inútil. Eis por que Snyders (1977, pp. 338-344)
resume sua crítica à teoria da escola dualista com a expressão: “Baudelot-
Establet ou a luta de classe inútil”.Ao terminar esse rápido esboço relativo às teorias crítico-reprodutivistas,
cumpre assinalar que, obviamente, tais teorias não deixaram de exercer in
fluência na América Latina, tendo alimentado ao longo da década de 1970
uma razoável quantidade de estudos críticos sobre o sistema de ensino. Se
tais estudos tiveram o mérito de pôr em evidência o comprometimento da
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educação com os interesses dominantes também é certo que contribuíram
para disseminar entre os educadores um clima de pessimismo e de desânimo
que, evidentemente, só poderia tornar ainda mais remota a possibilidade dearticular os sistemas de ensino com os esforços de superação do problema
da marginalidade nos países da região.
4. PARA UMA TEORIA CRÍTICA DA EDUCAÇÃO
O leitor terá notado que, quando me referi às teorias não-críticas após
expor brevemente o conteúdo de cada uma, procurei mostrar a forma de
organização e funcionamento da escola decorrente da proposta pedagógica
veiculada pela teoria. Já em relação às teorias crítico-reprodutivas isto não foi
feito. Na verdade, essas teorias não contêm uma proposta pedagógica. Elas
empenham-se tão-somente em explicar o mecanismo de funcionamento da
escola tal como está constituída. Em outros termos, pelo seu caráter repro-dutivista, estas teorias consideram que a escola não poderia ser diferente do
que é. Empenham-se, pois, em mostrar a necessidade lógica, social e histórica
da escola existente na sociedade capitalista, pondo em evidência aquilo que
ela desconhece e mascara: seus determinantes materiais.
Em relação à questão da marginalidade, ficamos com o seguinte resul
tado: enquanto as teorias não-críticas pretendem ingenuamente resolver
o problema da marginalidade por meio da escola sem jamais conseguirêxito, as teorias crítico-reprodutivistas explicam a razão do suposto fra
casso. Segundo a concepção crítico-reprodutivista, o aparente fracasso
é, na verdade, o êxito da escola; aquilo que se julga ser uma disfunção é,
antes, a função própria da escola. Com efeito, sendo um instrumento de
reprodução das relações de produção, a escola na sociedade capitalista
necessariamente reproduz a dominação e exploração. Daí seu caráter
segregador e marginalizador. Daí sua natureza seletiva. A impressão quenos fica é que se passou de um poder ilusório para a impotência. Em ambos
os casos, a história é sacrificada. No primeiro caso, sacrifica-se a história
na idéia em cuja harmonia se pretende anular as contradições do real. No
segundo caso, a história é sacrificada na reificação da estrutura social em
que as contradições ficam aprisionadas.
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ESCOLA E DEMOCRACIA 25
O problema permanece em aberto. E pode ser recolocado nos seguintes
termos: é possível encarar a escola como uma realidade histórica, isto é,
suscetível de ser transformada intencionalmente pela ação humana? Evitemos escorregar para uma posição idealista e voluntarista. Retenhamos da
concepção crítico-reprodutivista a importante lição que nos trouxe: a escola
é determinada socialmente; a sociedade em que vivemos, fundada no modo
de produção capitalista, é dividida em classes com interesses opostos; por
tanto, a escola sofre a determinação do conflito de interesses que caracteriza
a sociedade. Considerando-se que a classe dominante não tem interesse na
transformação histórica da escola (ela está empenhada na preservação de seudomínio, portanto, apenas acionará mecanismos de adaptação que evitem a
transformação), segue-se que uma teoria crítica (que não seja reprodutivista)
só poderá ser formulada do ponto de vista dos interesses dos dominados. O
nosso problema pode, então, ser enunciado da seguinte maneira: é possível
articular a escola com os interesses dos dominados? Da perspectiva do tema
deste artigo a questão recebe a seguinte formulação: é possível uma teoria
da educação que capte criticamente a escola como um instrumento capazde contribuir para a superação do problema da marginalidade? (Limito-me
aqui a afirmar a possibilidade dessa teoria, já que escapa aos objetivos desse
artigo o desenvolvimento da mesma.)
Uma teoria do tipo acima enunciado impõe-se a tarefa de superar tanto
o poder ilusório (que caracteriza as teorias não-críticas) como a impotência
(decorrente das teorias crítico-reprodutivistas), colocando nas mãos dos
educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um poderreal, ainda que limitado.
No entanto, o caminho é repleto de armadilhas, já que os mecanismos
de adaptação acionados periodicamente a partir dos interesses dominantes
podem ser confundidos com os anseios da classe dominada. Para evitar esse
risco é necessário avançar no sentido de captar a natureza específica da
educação, o que nos levará à compreensão das complexas mediações pelas
quais se dá sua inserção contraditória na sociedade capitalista. É nessa direçãoque começa a se desenvolver um promissor esforço de elaboração teórica. O
leitor encontrará um esboço dessa teoria no texto “Escola e Democracia II:
para além da teoria da curvatura da vara”, neste livro.
Do ponto de vista prático, trata-se de retomar vigorosamente a luta
contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das ca
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26 DERMEVAL SAVIANI
madas populares. Lutar contra a marginalidade por meio da escola significa
engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor
qualidade possível nas condições históricas atuais. O papel de uma teoriacrítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta de modo
a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes.
5. POST-SCRIPTUM
Os leitores certamente terão estranhado que, ao longo de um texto
versando sobre as teorias da educação e o problema da marginalidade, não
apareceu uma palavra sequer sobre “teoria da educação compensatória”.
Tal estranheza parece procedente já que, se há alguma proposta educativa
intimamente ligada à questão da marginalidade, esta é a chamada educação
compensatória. Com efeito, não é exatamente a situação de marginalidade
vivida pelas assim chamadas “crianças carentes” que constitui a razão de serda educação compensatória? Não é a educação compensatória a estratégia
acionada para superar o problema da marginalidade na medida em que
propõe nivelar as precondições de aprendizagem pela via da compensação
das desvantagens das crianças carentes?
Entretanto, devo dizer que não considero a educação compensatória
uma teoria educacional seja no sentido de uma interpretação do fenômeno
educativo que acarreta determinada proposta pedagógica (como é o caso dasteorias não-críticas), seja no sentido de explicitar os mecanismos que regem
a organização e funcionamento da educação explicando, em conseqüência,
as suas funções (como é o caso das teorias crítico-reprodutivistas), seja,
ainda, no sentido de um esforço para equacionar, pela via da compreensão
teórica, a questão prática da contribuição específica da educação no processo
de transformação estrutural da sociedade (como será o caso de uma teoria
crítica da educação).
A meu ver, a educação compensatória configura uma resposta não-
crítica às dificuldades educacionais postas em evidência pelas teorias crítico-
reprodutivistas. Assim, uma vez que se acumulavam as evidências de que o
fracasso escolar, incidindo predominantemente sobre os alunos socioecono
micamente desfavorecidos, se devia a fatores externos ao funcionamento da
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ESCOLA E DEMOCRACIA 27
escola, tratava-se, então, de agir sobre esses fatores. Educação compensatória
significa, pois, o seguinte: a função básica da educação continua sendo in
terpretada em termos da equalização social. Entretanto, para que a escola
cumpra sua função equalizadora é necessário compensar as deficiências
cuja persistência acaba sistematicamente por neutralizar a eficácia da ação
pedagógica. Vê-se que não se formula uma nova interpretação da ação peda
gógica. Esta continua sendo entendida em termos da pedagogia tradicional,
da pedagogia nova ou da pedagogia tecnicista encaradas de forma isolada
ou de forma combinada.
O caráter de compensação de deficiências prévias ao processo de escolarização permite-nos compreender a estreita ligação entre educação com
pensatória e pré-escola. Daí porque a educação compensatória compreende
um conjunto de programas destinados a compensar deficiências de diferentes
ordens: de saúde e nutrição, familiares, emotivas, cognitivas, motoras, lin
güísticas etc. Tais programas acabam colocando sob a responsabilidade da
educação uma série de problemas que não são especificamente educacionais,
o que significa, na verdade, a persistência da crença ingênua no poder redentor da educação em relação à sociedade. Assim, se a educação se revelou
incapaz de redimir a humanidade por meio da ação pedagógica, não se trata
de reconhecer seus limites mas alargá-los: atribui-se à educação um conjunto
de papéis que no limite abarcam as diferentes modalidades de política social.
A conseqüência é a pulverização de esforços e de recursos com resultados
praticamente nulos do ponto de vista propriamente educacional.
Essas constatações levaram-me à conclusão de que a própria expressão“educação compensatória” coloca o problema em termos invertidos, isto é,
o termo que aparece como substantivo deveria ser o adjetivo e vice-versa.
Portanto, se se quer compensar as carências que caracterizariam a situação
de marginalidade das crianças das camadas populares, é preciso considerar
que há diferentes modalidades de compensação: compensação alimentar,
compensação sanitária, compensação afetiva, compensação familiar etc.
Nesse quadro, constatada a existência de deficiências especificamenteeducacionais, caberia falar não em educação compensatória (atribuindo-se
à educação a responsabilidade de compensar todo tipo de deficiência), mas
em compensação educacional. E aqui fica, finalmente, evidenciada a não-
autonomia teórica da “educação compensatória”, uma vez que a exigência de
tratamento diferenciado, de respeito às diferenças individuais e aos diferentes
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ritmos de aprendizagem bem como a ênfase na diversificação metodológica e
técnica, no sentido de suprir as carências dos educandos, são preocupações
próprias do tipo de teoria denominada neste texto de “pedagogia nova”.No contexto da América Latina, a tendência atualmente em curso
(freqüentemente reforçada pelo patrocínio de organismos internacionais)
de difusão da educação compensatória com a conseqüente valorização da
pré-escola, entendida como mecanismo de solução do problema do fracas-
so escolar das crianças das camadas trabalhadoras no ensino de primeiro
grau, deve ser submetida à crítica. Com efeito, tal tendência acaba por se
configurar numa nova forma de contornar o problema em lugar de atacá-lo
de frente. Exemplo eloqüente desse desvio é o caso da cidade de São Paulo,
onde, após dez anos de merenda escolar, os índices de fracasso escolar na
passagem da primeira para a segunda série do primeiro grau, em lugar de
diminuir, aumentaram1 em 6%.
Cumpre não tergiversar. Não se trata de negar a importância dos diferen
tes programas de ação compensatória. Considerá-los, porém, como programas
educativos implica um afastamento ainda maior, em lugar da aproximação
que se faz necessária em direção à compreensão da natureza específica do
fenômeno educativo.
1. Depoimento da secretária de Educação do município de São Paulo em 1983.
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Capítulo 2Escola e democracia I
A teoria da Curvatura da Vara
tema desta exposição1 é a abordagem
política do funcionamento interno
da escola de 1º grau. Parece-me, à
primeira vista, que poderíamos fazê-
lo de duas maneiras: abordarmos a
questão da organização da escola de
lº grau, e, aí então, colocaríamos ênfase nas atividades-
meio, focalizando o papel do diretor, suas relações comos técnicos intermediários, orientadores, supervisores,
assim por diante, chegando, em seguida, ao professor e
aos alunos. Neste caso, o enfoque estaria nas atividades-
meio, ou seja, na organização. A outra forma de abordar
seria enfatizar as atividades-fim, e nesse sentido examinar
mais propriamente como se desenvolve o ensino, que
finalidades ele busca atingir, que procedimentos ele adotapara atingir suas finalidades, em que medida existe coe-
1. Exposição oral apresentada no Simpósio “Abordagem Política doFuncionamento Interno da Escola de 1º Grau”, 1ª ConferênciaBrasileira de Educação, São Paulo, 31-3-1980.
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30 DERMEVAL SAVIANI
rência entre finalidades e procedimentos. Bem, é melhor me preocupar com
as atividades-fim e deixar à margem a questão da organização da escola de
lº grau. Enfatizarei justamente a problemática do ensino que se desenvolveno interior da escola de 1º grau, pensando que funções políticas esse ensino
desempenha. Já que a abordagem é política, vou logo me colocar no coração
do político.
Nesse sentido, farei uma exposição centrada em três teses. Enunciarei
para vocês as três teses, que vou apenas comentar rapidamente; em seguida,
extrairei delas algumas conseqüências para a educação brasileira e comple
mentarei com um apêndice. Para retirar o suspense sobre a forma da minhaexposição, eu já antecipo quais são as teses e também qual é o apêndice.
Vejam bem, todas elas são teses políticas; no entanto, a primeira, por ser mais
geral, eu a considero uma tese filosófico-histórica. Poderíamos enunciá-la
da seguinte maneira: do caráter revolucionário da pedagogia da essência e
do caráter reacionário da pedagogia da existência.
Uma segunda tese, que se articula com essa, é uma tese que eu chamaria
pedagógico-metodológica, e a enuncio assim: do caráter científico do métodotradicional e do caráter pseudocientífico dos métodos novos.
Vejam, então, que estou me colocando diretamente no coração do po
lítico. Estou enunciando teses; isso significa posições, e posições polêmicas.
Dessas duas teses eu obtenho uma terceira, que, portanto, opera como uma
conclusão das duas primeiras. As duas primeiras funcionam como premissas
para extrair uma terceira tese conclusiva especificamente política, de política
educacional. Eu a enuncio da seguinte maneira; de como, quando mais sefalou em democracia no interior da escola, menos democrática foi a escola; e de
como, quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada
com a construção de uma ordem democrática.
Bem, essa terceira tese é derivada das duas primeiras. Em seguida exa
minaremos as conseqüências disso na educação brasileira e, por último, farei
referência a um apêndice. Nesse apêndice farei uma pequena consideração
sobre a “teoria da curvatura da vara”. Eu não sei se a teoria da curvatura davara é conhecida. Conforme Althusser (1977, pp. 136-138), ela foi enunciada
por Lênin ao ser criticado por assumir posições extremistas e radicais. Lênin
responde o seguinte: “quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e
se você quiser endireitá-la, não basta colocá-la na posição correta. É preciso
curvá-la para o lado oposto”.
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ESCOLA E DEMOCRACIA 31
Com essa teoria da curvatura da vara, compietarei minha exposição.
A impossibilidade de desenvolver todas as teses acima colocadas faz com
que eu apenas as enuncie para, em seguida, mencionar algumas conseqüências e, a partir delas, provocar um debate e, mais do que isso, deixá-las para
serem exploradas mais profundamente em outros trabalhos. Entre parênteses,
eu acrescentaria apenas que essas teses derivam de uma reflexão relativamente
amadurecida, que venho desenvolvendo há algum tempo. Alguma coisa já
expus em textos ou palestras.
Quanto à primeira tese, “do caráter revolucionário da pedagogia da es
sência e do caráter reacionário da pedagogia da existência”, o que eu querodizer com isso é, basicamente, o seguinte: nós estamos hoje, no âmbito da
política educacional e no âmbito do interior da escola, na verdade, nos
digladiando com duas posições antitéticas que, geralmente, são traduzidas em
termos do novo e do velho, da pedagogia nova e da pedagogia tradicional.
Essa pedagogia tradicional é uma pedagogia que se funda numa concep
ção filosófica essencialista, ao passo que a pedagogia nova se funda numa
concepção filosófica que privilegia a existência sobre a essência. O que isso
significa do ponto de vista histórico-filosófico?
1. 0 HOMEM LIVRE
Se nós voltarmos à antigüidade grega, vamos verificar que, em verdade,
a filosofia da essência não implicava maiores problemas lá, e a pedagogia que
decorria dessa filosofia, por sua vez, não implicava problemas políticos muito
sérios, na medida em que o homem, o ser humano, era identificado com o
homem livre; o escravo não era considerado ser humano, conseqüentemente
a essência humana só era realizada nos homens livres. Então, o problema do
escravismo, sobre o qual se assentava a produção da sociedade grega, fica des
cartado e nem era um problema do ponto de vista filosófico-pedagógico.
Durante a Idade Média, essa concepção essencialista recebe uma ino
vação, que diz respeito justamente à articulação da essência humana com a
criação divina; portanto, ao serem criados os homens segundo uma essên
cia predeterminada, também já seus destinos eram definidos previamente;
conseqüentemente, a diferenciação da sociedade entre senhores e servos já
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32 DERMEVAL SAVIANI
estava marcada pela própria concepção que se tinha da essência humana.
Então, a essência humana justificava as diferenças.
Ora, coisa diversa vem a ocorrer na época moderna, com a ruptura domodo de produção feudal e a gestação do modo de produção capitalista. Nesse
momento, a burguesia, classe em ascensão, vai se manifestar como uma classe
revolucionária, e, enquanto classe revolucionária, vai advogar a filosofia da
essência como um suporte para a defesa da igualdade dos homens como um
todo e é justamente a partir daí que ela aciona as críticas à nobreza e ao clero.
Em outros termos: a dominação da nobreza e do clero era uma dominação
não-natural, não-essencial, mas social e acidental, portanto, histórica. Vejamque toda postura revolucionária é uma postura essencialmente histórica,
é uma postura que se coloca na direção do desenvolvimento da história.
Naquele momento, a burguesia colocava-se na direção do desenvolvimento
da história e seus interesses coincidiam com os interesses do novo, com os
interesses da transformação; e é nesse sentido que a filosofia da essência,
que vai ter depois como conseqüência a pedagogia da essência, vai fazer uma
defesa intransigente da igualdade essencial dos homens. Sobre essa base da
igualdade dos homens, de todos os homens, é que se funda então a liberdade,
e é sobre, justamente, a liberdade que se vai postular a reforma da socie-
dade. Lembrem-se, de passagem, de Rousseau. O que defendia Rousseau?
Que tudo é bom enquanto sai do autor das coisas. Tudo degenera quando
passa às mãos dos homens. Em outros termos, a natureza é justa, é boa, e
no âmbito natural a igualdade está preservada. As desigualdades (vejam o
Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens) são geradas pela
sociedade. Esse raciocínio não significa outra coisa senão colocar diante da
nobreza e do clero a idéia de que as diferenças, os privilégios de que eles
usufruíam, não eram naturais e muito menos divinos, mas eram sociais. E
enquanto diferenças sociais, configuravam injustiça; enquanto injustiça, não
poderiam continuar existindo. Logo, aquela sociedade fundada em senhores
e servos não poderia persistir. Ela teria que ser substituída por uma sociedade
igualitária. É nesse sentido, então, que a burguesia vai reformar a sociedade,
substituindo uma sociedade com base num suposto direito natural por uma
sociedade contratual.
Vejam como é que se tece todo o raciocínio. Os homens são essencialmen
te livres; essa liberdade funda-se na igualdade natural, ou melhor, essencial
dos homens, e se eles são livres, então podem dispor de sua liberdade, e na
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ESCOLA E DEMOCRACIA 33
relação com os outros homens, mediante contrato, fazer ou não concessões.
É sobre essa base da sociedade contratual que as relações de produção vão se
alterar: do trabalhador servo, vinculado à terra, para o trabalhador não maisvinculado à terra, mas livre para vender a sua força de trabalho e ele a vende
mediante contrato. Então, quem possui os meios de produção é livre para
aceitar ou não a oferta de mão-de-obra, e vice-versa, quem possui a força de
trabalho é livre para vendê-la ou não, para vendê-la a este ou aquele, para
vender a quem quiser. Esse é o fundamento jurídico da sociedade burguesa.
Fundamento, como veremos, formalista, de uma igualdade formal. No en
tanto, é sobre essa base de igualdade que vai se estruturar a pedagogia daessência e, assim que a burguesia se torna a classe dominante, ela vai, a partir
de meados do século XIX, estruturar os sistemas nacionais de ensino e vai
advogar a escolarização para todos. Escolarizar todos os homens era condição
para converter os servos em cidadãos, era condição para que esses cidadãos
participassem do processo político, e, participando do processo político, eles
consolidariam a ordem democrática, democracia burguesa, é óbvio, mas o
papel político da escola estava aí muito claro. A escola era proposta comocondição para a consolidação da ordem democrática.
2. A MUDANÇA DE INTERESSES
Ocorre que a história vai evoluindo, e a participação política das massasentra em contradição com os interesses da própria burguesia. Na medida em
que a burguesia, de classe em ascensão, portanto, de classe revolucionária, se
transforma em classe consolidada no poder, os interesses dela não caminham
mais em direção à transformação da sociedade; ao contrário, os interesses
dela coincidem com a perpetuação da sociedade. É nesse sentido que ela
já não está mais na linha do desenvolvimento histórico, mas está contra a
história. A história volta-se contra os interesses da burguesia. Então, paraa burguesia defender seus interesses, ela não tem outra saída senão negar
a história, passando a reagir contra o movimento da história. É nesse mo
mento que a escola tradicional, a pedagogia da essência, já não vai servir e a
burguesia vai propor a pedagogia da existência. Ora, vejam vocês: o que é a
pedagogia da existência senão diferentemente da pedagogia da essência, que
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é uma pedagogia que se fundava no igualitarismo, uma pedagogia da legiti
mação das desigualdades? Com base neste tipo de pedagogia, considera-se
que os homens não são essencialmente iguais; os homens são essencialmentediferentes, e nós temos que respeitar as diferenças entre os homens. Então,
há aqueles que têm mais capacidade e aqueles que têm menos capacidade;
há aqueles que aprendem mais devagar; há aqueles que se interessam por isso
e os que se interessam por aquilo.
Eis, em síntese, o que eu quis dizer com a minha primeira tese, tese
filosófico-histórica, “do caráter revolucionário da pedagogia da essência, e
do caráter reacionário da pedagogia da existência”.
Com efeito, a pedagogia da existência vai ter esse caráter reacionário,
isto é, vai contrapor-se ao movimento de libertação da humanidade em seu
conjunto, vai legitimar as desigualdades, legitimar a dominação, legitimar
a sujeição, legitimar os privilégios. Nesse contexto, a pedagogia da essência
não deixa de ter um papel revolucionário, pois, ao defender a igualdade
essencial entre os homens, continua sendo uma bandeira que caminha
na direção da eliminação daqueles privilégios que impedem a realização
de parcela considerável dos homens. Entretanto, neste momento, não é a
burguesia que assume o papel revolucionário, como assumira no início dos
tempos modernos. Nesse momento, a classe revolucionária é outra: não é
mais a burguesia, é exatamente aquela classe que a burguesia explora.
3. A FALSA CRENÇA DA ESCOLA NOVA
A segunda tese eu enunciei da seguinte forma: “do caráter científico do
método tradicional, e do caráter pseudocientífico dos métodos novos”.
Vejam que no fundo as minhas teses estão indo contra a tendência
corrente, contra a tendência dominante. E por que isso? Porque, vejam
bem, tanto na primeira tese, como veremos agora na segunda, o que em
verdade a burguesia faz, ao defender a posição que corresponde aos seus
interesses, é contrapô-la ao momento anterior. Assim, no caso da pe
dagogia da existência e da essência, a burguesia constrói os argumentos
que defendem a pedagogia da existência contra a pedagogia da essência,
pintando essa última como algo tipicamente medieval. Nesse sentido,
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ESCOLA E DEMOCRACIA 35
ela deixa de assumir a pedagogia da essência como uma construção dela
própria. Veremos agora, em relação ao método, como essa questão se co
loca de modo também bastante claro. Eu vou especificar um pouco maisa questão do método, porque diz respeito justamente ao modo como a
gente trabalha no interior da própria escola, no interior da sala de aula. E
aqui nós poderíamos nos lembrar, já diretamente, do movimento da Escola
Nova, que pintou o método tradicional como um método pré-científico,
como um método dogmático e como um método medieval. Basta nós nos
lembrarmos, por exemplo, de Kilpatrick, Educação para uma Civilização
em Mudança, em que caracteriza a civilização, que foi se construindo combase no surgimento da ciência moderna a partir do Renascimento, como
sendo a civilização em mudança. Nesse sentido, os métodos tradicionais são
remetidos para a Idade Média, e, portanto, para um caráter pré-científico,
e mesmo anticientífico ou seja, dogmático. Ora, no entanto, essa crença
que a Escola Nova propaga é uma crença totalmente falsa. Com efeito, o
chamado ensino tradicional não é pré-científico e muito menos medieval.
Esse ensino tradicional, que predomina ainda hoje nas escolas, constituiu-seapós a Revolução Industrial e implantou-se nos chamados sistemas nacionais
de ensino, configurando amplas redes oficiais, criadas a partir de meados do
século XIX, no momento em que, consolidado o poder burguês, aciona-se a
escola redentora da humanidade, universal, gratuita e obrigatória como um
instrumento de consolidação da ordem democrática.
O que estou querendo enfatizar com isto é que esse método tradicional
foi constituído após a Revolução Industrial, contrariamente, portanto, aoargumento que os escolanovistas comumente levantam de que a Revolução
Industrial transformou a sociedade, determinou uma sociedade não mais
estática, em mudança contínua, que essa Revolução Industrial, que tem seu
fundamento na ciência, não teve sua contrapartida na educação, que conti
nuou sendo pré-científica, seguindo lemas medievais. Daí a razão do método
novo proclamar-se científico, proclamar-se instrumento de introdução da
ciência na atividade educativa e, em conseqüência, colocar a educação àaltura do século, à altura da época. No entanto, esse ensino dito tradicional
estruturou-se por meio de um método pedagógico, que é o método expositivo,
que todos conhecem, todos passaram por ele, e muitos estão passando ainda,
cuja matriz teórica pode ser identificada nos cinco passos formais de Herbart.
Esses passos, que são o passo da preparação, da apresentação, da comparação
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e assimilação, da generalização e, por último, da aplicação, correspondem
ao esquema do método científico indutivo, tal como fora formulado por
Bacon, método que podemos esquematizar em três momentos fundamentais:a observação, a generalização e a confirmação. Trata-se, portanto, daquele
mesmo método formulado no interior do movimento filosófico do empirismo,
que foi a base do desenvolvimento da ciência moderna. Eu acho que esse
ponto precisa ser explicitado um pouco melhor.
No ensino herbartiano, o passo da preparação significa basicamente a
recordação da lição anterior, logo, do já conhecido; através do passo da apre
sentação, é colocado diante do aluno um novo conhecimento que lhe cabeassimilar; a assimilação, portanto o terceiro passo, ocorre por comparação,
daí por que eu o denominei assimilação-comparação - a assimilação ocorre
por comparação do novo com o velho; o novo é assimilado, pois, a partir do
velho. Esses três passos correspondem, no método científico indutivo, ao
momento da observação. Trata-se de identificar e destacar o diferente entre
os elementos já conhecidos. O passo seguinte, o da generalização, significa
que, se o aluno já assimilou o novo conhecimento, ele é capaz de identificartodos os fenômenos correspondentes ao conhecimento adquirido. Ora, no
método indutivo, o momento da generalização não é outra coisa senão a
subsunção, sob uma lei extraída dos elementos observados, pertencentes a
determinada classe de fenômenos, de todos os elementos (observados ou
não), que integram a mesma classe de fenômenos. O passo da aplicação,
que é o quinto passo do método herbartiano, coincide, de forma geral, com
as “lições para casa”. Fazendo os exercícios, o aluno vai demonstrar se eleaprendeu, se assimilou ou não o conhecimento. Trata-se de verificar por
meio de exemplos novos, não manipulados ainda pelo aluno, se ele efeti
vamente assimilou o que foi ensinado. Corresponde, pois, ao momento da
confirmação, no caso do método científico, uma vez que, se o aluno aplicou
corretamente os conhecimentos adquiridos, se ele acertou os exercícios, a
assimilação está confirmada. Pode-se afirmar que ao ensino correspondeu
uma aprendizagem. Por isso, a preparação da lição seguinte começa com a
recapitulação da anterior, o que é feito normalmente mediante a correção da
lição de casa. Eis, pois, a estrutura do método tradicional; na lição seguinte
começa-se corrigindo os exercícios, porque essa correção é o passo da pre
paração. Se os alunos fizeram corretamente os exercícios, eles assimilaram
o conhecimento anterior, então eu posso passar para o novo. Se eles não
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ESCOLA E DEMOCRACIA 37
fizeram corretamente, então eu preciso dar novos exercícios, é preciso que
a aprendizagem se prolongue um pouco mais, que o ensino atente para as
razões dessa demora, de tal modo que, finalmente, aquele conhecimentoanterior seja de fato assimilado, o que será a condição para se passar para
um novo conhecimento.
Cabe aqui perguntar: por que o movimento da Escola Nova tendeu a
classificar como pré-científico, e até mesmo como anticientífico, dogmático, o
método aqui citado? Acredito que demonstrei a sua cientificidade. Mas vamos
tentar agora responder a essa pergunta. A Escola Nova deve ter suas razões.
4. ENSINO NÃO É PESQUISA
Na verdade, o que o movimento da Escola Nova fez foi tentar articular
o ensino com o processo de desenvolvimento da ciência, ao passo que o
chamado método tradicional o articulava com o produto da ciência. Emoutros termos, a Escola Nova buscou considerar o ensino como um processo
de pesquisa; daí por que ela se assenta no pressuposto de que os assuntos
de que trata o ensino são problemas, isto é, são assuntos desconhecidos não
apenas pelo aluno, como também pelo professor. Nesse sentido, o ensino
seria o desenvolvimento de uma espécie de projeto de pesquisa, quer dizer,
uma atividade - vamos aos cinco passos do ensino novo que se contrapõem
simetricamente aos passos do ensino tradicional: então, o ensino seria umaatividade (lº passo) que, suscitando determinado problema (2]º passo),
provocaria o levantamento dos dados (3º passo), a partir dos quais seriam
formuladas as hipóteses (4º passo) explicativas do problema em questão,
empreendendo alunos e professores, conjuntamente, a experimentação
(5º passo), que permitiria confirmar ou rejeitar as hipóteses formuladas.
Vê-se, pois, que o ensino novo basicamente se funda nessa estrutura: ele
começa por uma atividade; na medida em que a atividade não pode prosseguir por algum obstáculo, alguma dificuldade, algum problema que surgiu, é
preciso resolver esse problema. Como se vai resolver esse problema? Então,
todos, alunos e professores, saem à cata de dados, dados dos mais diferentes
tipos, dados documentais, bibliográficos, dados de campo etc. Esses dados,
uma vez levantados, permitirão acionar uma ou mais hipóteses explicativas
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do problema. Formulada a hipótese, é preciso passar à experimentação,
é preciso testar essa hipótese. São esses os cinco passos do método novo.
Diferentemente disso, o ensino tradicional propunha-se a transmitir osconhecimentos obtidos pela ciência, portanto, já compendiados, sistema
tizados e incorporados ao acervo cultural da humanidade. Eis por que esse
tipo de ensino, o ensino tradicional, centra-se no professor, nos conteúdos
e no aspecto lógico, isto é, centra-se no professor, o adulto, que domina os
conteúdos logicamente estruturados, organizados, enquanto os métodos
novos centram-se no aluno (nas crianças), nos procedimentos e no aspecto
psicológico, isto é, centram-se nas motivações e interesses da criança emdesenvolver os procedimentos que a conduzam à posse dos conhecimentos
capazes de responder às suas dúvidas e indagações. Em suma, aqui, nos
métodos novos, privilegiam-se os processos de obtenção dos conhecimentos,
enquanto lá, nos métodos tradicionais, privilegiam-se os métodos de trans
missão dos conhecimentos já obtidos.
Bem, acho que, isto posto, um e outro método, uma e outra pedagogia,
estão indicadas também as razões de cientificidade de uma e de outra. Masque conseqüências isso tem?
Vejam que com essa maneira de interpretar a educação, a Escola Nova
acabou por dissolver a diferença entre pesquisa e ensino, sem se dar con
ta de que, assim fazendo, ao mesmo tempo que o ensino era empobrecido
inviabilizava-se também a pesquisa. O ensino não é um processo de pesquisa.
Querer transformá-lo num processo de pesquisa é artificializá-lo. Daí o meu
prefixo pseudo ao científico dos métodos novos. Eu vou tentar explicar um
pouquinho ainda isso. Por que o ensino era empobrecido e ao mesmo tempo
se inviabilizava a pesquisa?
Vejam bem que, se a pesquisa é incursão no desconhecido, e por isso ela
não pode estar atrelada a esquemas rigidamente lógicos e preconcebidos,
também é verdade que: primeiro, o desconhecido só se define por confronto
com o conhecido, isto é, se não se domina o já conhecido, não é possível
detectar o ainda não conhecido, a fim de incorporá-lo, mediante a pesqui
sa, ao domínio do já conhecido. Aí, parece-me que esta é uma das grandes
fraquezas dos métodos novos. Sem o domínio do conhecido, não é possível
incursionar no desconhecido. E aí está também a grande força do ensino
tradicional: a incursão no desconhecido fazia-se sempre por meio do conhe
cido, e isso é muito simples; qualquer aprendiz de pesquisador passou por
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ESCOLA E DEMOCRACIA 39
isso ou está passando, e qualquer pesquisador sabe muito bem que ninguém
chega a ser pesquisador, a ser cientista, se ele não domina os conhecimentos
já existentes na área em que ele se propõe a ser investigador, a ser cientista.Em segundo lugar, o desconhecido não pode ser definido em termos indivi-
duais, mas em termos sociais, isto é, trata-se daquilo que a sociedade e, no
limite, a humanidade em seu conjunto desconhece. Só assim seria possível
encontrar-se um critério aceitável para distinguir as pesquisas relevantes
das que não o são, isto é, para se distinguir a pesquisa da pseudopesquisa,
da pesquisa de “mentirinha”, da pesquisa de brincadeira, que, em boa parte,
me parece, constitui o manancial dos processos novos de ensino. Em suma,só assim será possível encetar investigações que efetivamente contribuam
para o enriquecimento cultural da humanidade. Creio que está demonstrada
a minha segunda tese, isto é, o caráter científico do método tradicional e o
caráter pseudocientífico dos métodos novos.
5. A ESCOLA NOVA NÃO É DEMOCRÁTICA
Destas duas teses extrai-se a terceira, que é a conclusão segundo a qual
quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos demo
crática foi a escola; e, quando menos se falou em democracia, mais a escola
esteve articulada com a construção de uma ordem democrática.
Parece-me que, como diziam os escolásticos, conclusio patet, isto é, essa
tese é evidente depois do que foi explicitado em relação às duas primeiras,porque, obviamente, nós sabemos que, em relação à pedagogia nova, um
elemento que está muito presente nela é a proclamação democrática, a
proclamação da democracia. Aliás, inclusive, o próprio tratamento dife
rencial, portanto, o abandono da busca de igualdade é justificado em nome
da democracia e é nesse sentido também que se introduzem no interior da
escola procedimentos ditos democráticos. E hoje nós sabemos, com certa
tranqüilidade, já, a quem serviu essa democracia e quem se beneficiou dela,quem vivenciou esses procedimentos democráticos no interior das escolas
novas. Não foi o povo, não foram os operários, não foi o proletariado. Essas
experiências ficaram restritas a pequenos grupos, e nesse sentido elas se
constituíram, em geral, em privilégios para os já privilegiados, legitiman
do as diferenças. Em contrapartida, os homens do povo (o povão, como
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se costuma dizer) continuaram a ser educados basicamente segundo o
método tradicional, e, mais que isso, não só continuaram a ser educados,
à revelia dos métodos novos, como também jamais reivindicaram tais procedimentos. Os pais das crianças pobres têm uma consciência muito clara
de que a aprendizagem implica a aquisição de conteúdos mais ricos, têm
uma consciência muito clara de que a aquisição desses conteúdos não se dá
sem esforço, não se dá de modo espontâneo; conseqüentemente, têm uma
consciência muito clara de que para se aprender é preciso disciplina e, em
função disso, eles exigem mesmo dos professores a disciplina. É comum a
gente encontrar esta reação nos pais das crianças das classes trabalhadoras:se o meu filho não quer aprender, vocês têm que fazer com que ele queira.
E o papel do professor é o de garantir que o conhecimento seja adquirido, às
vezes mesmo contra a vontade imediata da criança, que espontaneamente
não tem condições de enveredar para a realização dos esforços necessários
à aquisição dos conteúdos mais ricos e sem os quais ela não terá vez, não
terá chance de participar da sociedade.
É nesse sentido que digo que quando mais se falou em democracia no
interior da escola, menos democrática ela foi, e quando menos se falou em
democracia, mais ela esteve articulada com a construção de uma ordem
democrática. Ora, na explicação da minha primeira tese, eu tinha indicado
que a burguesia, ao formular a pedagogia da essência, ao criar os sistemas
nacionais de ensino, colocou a escolarização como uma das condições para
a consolidação da ordem democrática. Conseqüentemente, a própria mon
tagem do aparelho escolar estava aí a serviço da participação democrática,
embora no interior da escola não se falasse muito em democracia, embora
no interior da escola nós tivéssemos aqueles professores que assumiam, não
abdicavam, não abriam mão da sua autoridade, e usavam essa autoridade
para fazer com que os alunos ascendessem a um nível elevado de assimilação
da cultura da humanidade.
6. ESCOLA NOVA: A HEGEMONIA DA CLASSE DOMINANTE
Passemos, enfim, às conseqüências para a situação educacional brasileira.
Vou tomar dois momentos para ilustrar: o primeiro momento seria em torno
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ESCOLA E DEMOCRACIA 41
da década de 1930 e o segundo seria na década de 1970, mais exatamente
uma referência à reforma do ensino instituída pela Lei n. 5.692 para verificar
como ela se enquadra nesse esquema mais amplo de compreensão e comoela interferiu no interior da escola do ponto de vista político, determinando
que, interiormente, as escolas cumprissem certas funções políticas.
Em relação ao momento de 1930, eu o tomo justamente porque o mo
vimento da Escola Nova toma força no Brasil exatamente a partir daí. A
Associação Brasileira de Educação, ABE, foi fundada em 1924 e, num certo
sentido, aglutinou os educadores novos, os pioneiros da educação nova, que
vão depois lançar seu manifesto, em 1932, e vão travar em seguida uma polêmica com os católicos em torno do capítulo da educação da Constituição
de 1934- Esse momento, 1924, com a criação da ABE, 1927, com a I Con
ferência Nacional de Educação, 1932, com o lançamento do Manifesto dos
Pioneiros, é marco da ascendência escolanovista no Brasil, movimento este
que atingiu o seu auge por volta de 1960, quando, em seguida, entra em
refluxo, em função de uma nova tendência da política educacional, que a
gente poderia chamar de “os meios de comunicação de massa” e “as tecnologias de ensino”. Eu não vou poder entrar nesse detalhe. Já tratei disso em
algumas palestras que estão publicadas no livro Educação: do senso comum
à consciência filosófica.
O que queria destacar em relação ao momento de 1930 é, basicamente,
o seguinte: o contraste entre o “entusiasmo pela educação” e “otimismo
pedagógico”. J. Nagle analisa isso com razoável detalhe na sua tese de
livre-docência que versou sobre a década de 1920, e foi publicada sob otítulo Educação e Sociedade na 1ª República. Ali, Nagle faz referência a duas
categorias: uma que ele chama “o entusiasmo pela educação”, marca carac
terística do início do século e também da década de 1920 que, no entanto,
entra em refluxo no final dessa década, cedendo lugar àquilo que ele chama
“otimismo pedagógico” que é uma característica do escolanovismo. Ora, o
importante do ponto de vista político a salientar aqui é que nessa fase do
entusiasmo pela educação se pensava a escola como instrumento de participação política, isto é, pensava-se a escola com uma função explicitamente
política; a primeira década desse século, a segunda, a década de 1910, e a
terceira, a década de 1920, foram muito ricas em movimentos populares que
reivindicavam uma participação maior na sociedade, e faziam reivindicações
também do ponto de vista escolar. Nós sabemos que a década de 1920 foi
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uma década de grande tensão, de grande agitação, de crise de hegemonia
das oligarquias até então dominantes. Essa crise de hegemonia foi de certo
modo aguçada pela organização dos trabalhadores; várias greves operáriassurgiram nesse período e vários movimentos organizacionais também se
deram. Com o escolanovismo, o que ocorreu foi que a preocupação políti
ca em relação à escola refluiu. De uma preocupação em articular a escola
como um instrumento de participação política, de participação democrática,
passou-se para o plano técnico-pedagógico. Daí essa expressão de Jorge
Nagle: “otimismo pedagógico”. Passou-se do “entusiasmo pela educação”,
quando se acreditava que a educação poderia ser um instrumento de participação das massas no processo político, para o “otimismo pedagógico”,
em que se acredita que as coisas vão bem e resolvem-se nesse plano interno
das técnicas pedagógicas. Num outro texto, faço referência à Escola Nova
como desempenhando a função de recompor os mecanismos de hegemonia
da classe dominante. Com efeito, se na fase do “entusiasmo pela educação”
o lema era “escola para todos”, essa era a bandeira de luta, agora a Escola
Nova vem transferir a preocupação dos objetivos e dos conteúdos para osmétodos e da quantidade para a qualidade. Ora, vocês não sabem o que
existe de significado político por detrás dessa metamorfose! Em verdade, o
significado político, basicamente, é o seguinte: é que quando a burguesia
acenava com a escola para todos (por isso era instrumento de hegemonia),
ela estava num período capaz de expressar os seus interesses abarcando
também os interesses das demais classes. Nesse sentido, advogar escola
para todos correspondia ao interesse da burguesia, porque era importante
uma ordem democrática consolidada e correspondia também ao interesse
do operariado, do proletariado, porque para ele era importante participar
do processo político, participar das decisões.
Ocorre que, na medida em que tem início essa participação, as contra
dições de interesses que estavam submersas sob aquele objetivo comum vêm
à tona e fazem submergir o comum; o que sobressai, agora, é a contradição
de interesses, ou seja, o proletariado, o operariado, as camadas dominadas,
na medida em que participavam das eleições, não votavam bem, segundo a
perspectiva das camadas dominantes, quer dizer, não escolhiam os melhores;
a burguesia acreditava que o povo instruído iria escolher os melhores gover
nantes. Mas o povo instruído não estava escolhendo os melhores. Observe-se
que não escolhiam os melhores do ponto de vista dominante. Ocorre que os
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ESCOLA E DEMOCRACIA 43
melhores do ponto de vista dominante não eram os melhores do ponto de
vista dominado. Na verdade, o povo escolhia os menos piores, porque é claro
que os melhores ele não podia escolher, uma vez que o esquema partidárionão permitia que seus representantes autênticos se candidatassem. Então ele
tinha que escolher, entre as facções em luta no próprio campo burguês, as
opções menos piores; só que as menos piores, do ponto de vista dos interesses
dos dominados, eram as piores do ponto de vista dominante. “Ora, então essa
escola não está funcionando bem”, foi o raciocínio das elites, das camadas
dominantes; e se essa escola não está funcionando bem, é preciso reformar
a escola. Não basta a quantidade, não adianta dar a escola para todo mundodesse jeito. E surgiu a Escola Nova que tornou possível, ao mesmo tempo, o
aprimoramento do ensino destinado às elites e o rebaixamento do nível de
ensino destinado às camadas populares. É nesse sentido que a hegemonia
pôde ser recomposta. Sobre isso haveria coisas interessantíssimas para a gente
discutir em relação ao que está ocorrendo no Brasil, hoje; a contradição da
política educacional atual, em que a proposta de base, referente ao ensino
fundamental, é, no meu modo de ver, populista, e a proposta de cúpula, emrelação à pós-graduação, é elitista.
Em suma, o movimento de 1930, no Brasil, devido à ascensão do escola
novismo, correspondeu a um refluxo e até a um desaparecimento daqueles
movimentos populares que advogavam uma escola mais adequada aos seus
interesses. E por que isso? A partir de 1930, ser progressista passou a significar
ser escolanovista. E aqueles movimentos sociais, de origem, por exemplo,
anarquista, socialista, marxista, que conclamavam o povo a se organizar ereivindicar a criação de escolas para os trabalhadores, perderam a vez, e todos
os progressistas em educação tenderam a endossar o credo escolanovista.
Bem, eu poderia me estender, puxar o fio da história, de 1930 até agora,
mas vamos fazer um corte, e vou tomar a reforma de 1971 como uma outra
indicação prática da tese que enunciei.
O que fez a Lei n. 5.692? Tomemos, por exemplo, o princípio de flexibili
dade, que é a chave da lei, que é a grande descoberta dessa lei, a sua grandeinovação. Ela é tão flexível que pode até não ser implantada. E mais ainda: é
tão flexível que pode até ser revogada sem ser revogada; e eu não estou inven
tando, não. Peguem o Parecer n. 45/72, da profissionalização, em confronto
com o Parecer n. 76/75, também da profissionalização. O primeiro parecer
regulamentou o artigo 5º da lei; o segundo revogou o primeiro e, com ele,
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revogou também o artigo 5º; só que, mediante o princípio da flexibilidade,
ele não revogou, mas o reinterpretou, e o artigo 5º permanece nela.
Devido a essa flexibilidade, instituiu-se, por exemplo, aquela diferenciação entre terminalidade real e terminalidade legal ou ideal. Ora, o que
é a terminalidade real senão admitir que quem tem pouco continua tendo
menos ainda? Às vezes eu digo, brincando, que nesse sentido o capitalismo
é bem evangélico. Ele aplica ao pé da letra a máxima evangélica enunciada
na parábola dos talentos: “ao que tem se lhe dará; e ao que não tem, até o
pouco que tem lhe será tirado”.
Em relação a essa diferenciação entre terminalidade ideal e terminalidadereal, diz-se comumente o seguinte: todo o conteúdo de aprendizagem do
lº grau será dado em oito anos; eis o legal, ou seja, o ideal. Mas, naqueles
lugares em que não há condições de se ter escola de oito anos, então que se
organize esse conteúdo para seis anos, em outros, para quatro ou para dois,
e assim por diante; e, numa mesma região, a escola que não tem condição
de dar oito, que dê seis, e assim por diante; e, numa mesma classe, para
aqueles alunos que não têm condições de chegar lá no oitavo, você dá umaformação geral em quatro anos, que é quase só o que eles vão ter mesmo; em
seguida, sondagem de aptidão, e encaminha-se para o mercado de trabalho.
Ora, vejam vocês como está aqui de modo bem caracterizado aquilo que eu
chamo o aligeiramento do ensino destinado às camadas populares. Dessa
maneira, o ensino das camadas populares pode ser aligeirado até o nada, até
se desfazer em mera formalidade.
Outro ponto apenas, e eu já passo para a teoria da curvatura da vara,porque acho que estão todos curiosos em relação a ela. Então, uma ob
servação só, sobre a reformulação curricular. Outra “descoberta” da Lei
n. 5.692 foi a reformulação curricular por meio de atividades, áreas de
estudos e disciplinas, determinando que o ensino, nas primeiras oito séries,
se desenvolvesse predominantemente sob a forma de atividades e áreas
de estudo. Ora, essas atividades e áreas de estudos são outra maneira de
diluir o conteúdo da aprendizagem das camadas populares; e todos sabemque isso efetivamente ocorreu e vem ocorrendo.
Vou dispensar outras ilustrações vinculadas à Lei n. 5.692; apenas
gostaria de enfatizar isso: que, contra essa tendência de aligeiramento do
ensino destinado às camadas populares, nós precisaríamos defender o apri
moramento exatamente do ensino destinado às camadas populares. Essa
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ESCOLA E DEMOCRACIA 45
defesa implica a prioridade de conteúdo. Os conteúdos são fundamentais e
sem conteúdos relevantes, conteúdos significativos, a aprendizagem deixa
de existir, ela transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa.Parece-me, pois, fundamental que se entenda isso e que, no interior da es
cola, nós atuemos segundo essa máxima: a prioridade de conteúdos, que é
a única forma de lutar contra a farsa do ensino. Por que esses conteúdos são
prioritários? Justamente porque o domínio da cultura constitui instrumento
indispensável para a participação política das massas. Se os membros das
camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem
fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e
consolidar a sua dominação. Eu costumo, às vezes, enunciar isso da seguinte
forma: o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os
dominantes dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é
condição de libertação.
Nesse sentido, eu posso ser profundamente político na minha ação peda
gógica, mesmo sem falar diretamente de política, porque, mesmo veiculandoa própria cultura burguesa, e instrumentalizando os elementos das camadas
populares no sentido da assimilação desses conteúdos, eles ganham condições
de fazer valer os seus interesses, e é nesse sentido, então, que se fortalecem
politicamente. Não adianta nada eu ficar sempre repetindo o refrão de que a
sociedade é dividida em duas classes fundamentais, burguesia e proletariado,
que a burguesia explora o proletariado e que quem é proletário está sendo
explorado, se o que está sendo explorado não assimila os instrumentos pelosquais ele possa se organizar para se libertar dessa exploração. Associada a
essa prioridade de conteúdo, que eu já antecipei, parece-me fundamental
que se esteja atento para a importância da disciplina, quer dizer, sem disci
plina esses conteúdos relevantes não são assimilados. Então, eu acho que
nós conseguiríamos fazer uma profunda reforma na escola, a partir de seu
interior, se passássemos a atuar segundo esses pressupostos e mantivéssemos
uma preocupação constante com o conteúdo e desenvolvêssemos aquelasfórmulas disciplinares, aqueles procedimentos que garantissem que esses
conteúdos fossem realmente assimilados. Por exemplo, o problema dos alu
nos das camadas populares nas salas de aula implica redobrados esforços por
parte dos responsáveis pelo ensino, por parte dos professores, mais direta
mente. O que ocorre, geralmente, é que, as condições de trabalho, o próprio
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modelo que impregna a atividade de ensino, as exigências e expectativas a
que são submetidos professores e alunos, tudo isso faz com que o próprio
professor tenda a cuidar mais daqueles que têm mais facilidade, deixandoà margem aqueles que têm mais dificuldade. E é assim que nós acabamos,
como professores, no interior da sala de aula, reforçando a discriminação e
sendo politicamente reacionários.
Quanto ao apêndice, relativo à “teoria da curvatura da vara”, faço apenas
um comentário rápido e encerro. Na verdade, introduzi esse apêndice sim
plesmente pelo seguinte: a ênfase que dei, invertendo a tendência corrente,
decorre da consideração de que, na tendência corrente, a vara está torta; estátorta para o lado da pedagogia da existência, para o lado dos movimentos
da Escola Nova. E é nesse sentido que o raciocínio habitual tende a ser o
seguinte: as pedagogias novas são portadoras de todas as virtudes, enquanto a
pedagogia tradicional é portadora de todos os defeitos e de nenhuma virtude.
O que se evidencia pelas minhas teses é justamente o inverso.
Creio ter conseguido fazer curvar a vara para o outro lado. A minha
expectativa é justamente que com essa inflexão a vara atinja o seu pontocorreto, o qual não está também na pedagogia tradicional, mas na valorização
dos conteúdos que apontam para uma pedagogia revolucionária. Esta identi
fica as propostas burguesas como elementos de recomposição de mecanismos
hegemônicos e dispõe-se a lutar concretamente contra a recomposição
desses mecanismos de hegemonia, no sentido de abrir espaço para as forças
emergentes da sociedade, para as forças populares, para que a escola se insira
no processo mais amplo de construção de uma nova sociedade.
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Capítulo 3Escola e democracia II
Para além da teoria da Curvatura da Vara
o texto anterior, partindo da suposiçãode que o ideário escolanovista logrou
converter-se em senso comum para os
educadores, isto é, tornou-se a forma
dominante de se conceber a educação,
enunciei teses polêmicas visando a
contestar as crenças que acabaram por tomar conta
das cabeças dos educadores. Meu objetivo era revertera tendência dominante. Uma vez que a concepção
corrente, na qual o reformismo acabou por prevalecer
sobre o tradicionalismo, tende a considerar a pedagogia
nova como portadora de todas as virtudes e de nenhum
vício atribuindo, inversamente, à pedagogia tradicional
todos os vícios e nenhuma virtude, empenhei-me, no
texto citado, em demonstrar exatamente o inverso. Eo fiz por meio de três teses que enunciei e explicitei de
modo sucinto, as quais constituíram o arcabouço daquilo
que denominei, utilizando uma expressão tomada de
empréstimo a Lênin, de “teoria da curvatura da vara”
(Althusser, 1977, pp. 136-138).
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Para comodidade dos leitores penso ser útil reproduzir aqui as teses
referidas:
Primeira tese (filosófico-histórica)
Do caráter revolucionário da pedagogia da essência (pedagogia
tradicional) e do caráter reacionário da pedagogia da existência
(pedagogia nova).
Segunda tese (pedagógico-metodológica)
Do caráter científico do método tradicional e do caráter pseudocien-
tífico dos métodos novos.Terceira tese (especificamente política)
De como, quando menos se falou em democracia no interior da
escola, mais ela esteve articulada com a construção de uma ordem
democrática; e quando mais se falou em democracia no interior da
escola, menos ela foi democrática.
Como se percebe de imediato, o próprio enunciado dessas proposiçõesevidencia que, mais do que teses, elas funcionam como antíteses por referên
cia às idéias dominantes nos meios educacionais. É este sentido de negação
frontal das teses correntes que se traduz metaforicamente na expressão
“teoria da curvatura da vara”. Com efeito, assim como para se endireitar
uma vara que se encontra torta não basta colocá-la na posição correta, mas
é necessário curvá-la do lado oposto, assim, também, no embate ideológico,
não basta enunciar a concepção correta para que os desvios sejam corrigidos;é necessário abalar as certezas, desautorizar o senso comum. E para isso nada
melhor do que demonstrar a falsidade daquilo que é tido como obviamente
verdadeiro demonstrando ao mesmo tempo a verdade daquilo que é tido
como obviamente falso1. Meu objetivo, pois, ao introduzir no debate educa
cional a “teoria da curvatura da vara” foi o de polemizar, abalar, desinstalar,
inquietar, fazer pensar. E creio ter conseguido, ao menos em parte, uma vez
1. E interessante assinalar que o procedimento acima indicado pode, até certo ponto, serconsiderado uma característica da filosofia. Com efeito, ele é encontrado nos diálogosplatônicos; na expressão maior da filosofia medieval, a Summa Theologica de Tomás de
Aquino, pela expressão “videtur quod non”; em Descartes, com a dúvida metódica e assimpor diante. Com a filosofia dialética tal procedimento adquire sua máxima expressãoteórica.
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ESCOLA E DEMOCRACIA 49
que as reações não tardaram, tendo alguns, ainda que com certa ponta de
ironia, insinuado que eu seria conservador em matéria de educação. Entre
tanto, no final daquele texto, afirmei textualmente:
1. PEDAGOGIA NOVA E PEDAGOGIA DA EXISTÊNCIA
Entendidas em sentido amplo, as expressões “pedagogia nova” e “pe
dagogia da existência” equivalem-se. Isto porque ambas são tributárias
daquilo que poderíamos chamar de “concepção humanista moderna de
Filosofia da Educação”. Tal concepção centra-se na vida, na existência, na
atividade, por oposição à concepção tradicional que se centrava no intelecto,
na essência, no conhecimento. Nesta acepção, estamos nos referindo a um
amplo movimento filosófico que abrange correntes tais como o pragmatismo,
o vitalismo, o historicismo, o existencialismo e a fenomenologia, com im
portantes repercussões no campo educacional. Obviamente, assim como
não se ignora a diversidade de correntes filosóficas, também não se perde
de vista a existência de diferentes nuanças pedagógicas no bojo do que de
nominamos “concepção ‘humanista’ moderna de filosofia da educação”. Em
outros termos: as expressões “pedagogia nova” e “pedagogia da existência”
equivalem-se sob a condição de não reduzir a primeira à pedagogia escola
novista e a segunda, à pedagogia existencialista. Esse esclarecimento faz-se
necessário uma vez que a concepção “humanista” moderna se manifesta na
Neste texto pretendo prosseguir o debate tentando ultrapassar o momento da antítese na direção do momento da síntese.
Por isso a estrutura deste texto parte do arcabouço do anterior. Assim,
após esclarecer a razão do emprego indiferenciado das expressões “pedagogia
da existência” e “pedagogia nova” serão retomadas consecutivamente, com
intento de superação, cada uma das três teses anteriormente enunciadas
com intento negador.
Creio ter conseguido fazer curvar a vara para o outro lado. A minha expec
tativa é justamente que com essa inflexão a vara atinja o seu ponto correto, o
qual não está também na pedagogia tradicional, mas, justamente, na valorização
dos conteúdos que apontam para uma pedagogia revolucionária.
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necessário uma vez que a concepção humanista moderna se manifesta na
50 DERMEVAL SAVIANI
educação predominantemente sob a forma do movimento escolanovista cuja
inspiração filosófica principal situa-se na corrente do pragmatismo. Atual
mente alguns educadores buscam rever suas posições pedagógicas à luz dafenomenologia e do existencialismo (Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger).
A esses educadores soou estranho o fato de eu ter utilizado a expressão “pe
dagogia da existência” como equivalente à “pedagogia nova”. Entretanto,
quando em outro texto caracterizei a concepção “humanista” moderna de
filosofia da educação, registrei de modo explícito essa diferença de matiz ao
afirmar que a referida concepção admite a existência de formas descontínuas
na educação, entendidas, porém, em dois sentidos:
[...] num primeiro sentido (mais amplo) na medida em que, em vez de se con
siderar a educação como um processo continuado, obedecendo a esquemas
predefinidos, seguindo uma ordem lógica, considera-se que a educação segue
o ritmo vital que é variado, determinado pelas diferenças existenciais ao nível
dos indivíduos; admite idas e vindas com predominância do psicológico sobre
o lógico; num segundo sentido (mais restrito e especificamente existencialista),
na medida em que os momentos verdadeiramente educativos são considerados
raros, passageiros, instantâneos. São momentos de plenitude, porém, fugazes e
gratuitos. Acontecem independentemente da vontade ou de preparação. Tudo
o que se pode fazer é estar predisposto e atento a esta possibilidade [Saviani,
1980, pp. 18-19],
É nesse segundo sentido que se desenvolve o trabalho de O. F. Bollnow
(1971). Já Suchodolski (1978) entende a pedagogia da existência no primeirosentido. Cabe observar, por fim, que o primeiro sentido abrange o segundo
e que, a rigor, não se pode falar numa “pedagogia existencialista” uma vez
que esta não chegou a se configurar, havendo mesmo controvérsias no que
diz respeito à compatibilidade entre pedagogia e existencialismo (BOLLNOW,
1971, pp.11-35).
2. PARA ALÉM DAS PEDAGOGIAS DA ESSÊNCIA E DA EXISTÊNCIA
Na primeira tese do texto anterior empenhei-me em demonstrar ao
mesmo tempo o caráter revolucionário da pedagogia tradicional e o caráter
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ESCOLA E DEMOCRACIA 51
reacionário da pedagogia nova. Isto foi feito por meio da historicização de
ambas as pedagogias. Em outros termos, evidenciou-se como se deu histo
ricamente a passagem de uma concepção pedagógica igualitarista para umapedagogia das diferenças, com sua conseqüência política: a justificação de
privilégios. Ora, ao proceder desta maneira, eu já estava, naquele mesmo
texto, situando-me para além das pedagogias da essência e da existência.
Com efeito, nessas pedagogias está ausente a perspectiva historicizadora.
Falta-lhes a consciência dos condicionantes histórico-sociais da educação.
São, pois, ingênuas e não críticas já que é próprio da consciência crítica
saber-se condicionada, determinada objetivamente, materialmente, ao passoque a consciência ingênua é aquela que não se sabe condicionada, mas,
ao contrário, acredita-se superior aos fatos, imaginando-se mesmo capaz
de determiná-los e alterá-los por si mesma. Eis por que, tanto a pedagogia
tradicional como a pedagogia nova entendiam a escola como “redentora
da humanidade”. Acreditavam que era possível modificar a sociedade por
meio da educação. Nesse sentido, podemos afirmar que ambas são ingênuas
e idealistas. Caem na armadilha da “inversão idealista” já que, de elementodeterminado pela estrutura social, a educação é convertida em elemento
determinante, reduzindo-se o elemento determinante à condição de determi
nado. A relação entre educação e estrutura social é, portanto, representada
de modo invertido.
Foi destacado que o caráter revolucionário da pedagogia da essência
centra-se na defesa intransigente da igualdade essencial entre os homens.
É preciso insistir em que tal posição tinha um caráter revolucionário na fasede constituição do poder burguês e não o deixa de ter agora. No entanto
é preciso acrescentar que seu conteúdo revolucionário é histórico, isto é,
modifica-se historicamente. Assim, o acesso das camadas trabalhadoras à
escola implica a pressão no sentido de que a igualdade formal (“todos são iguais
perante a lei”), própria da sociedade contratual instaurada com a revolução
burguesa, se transforme em igualdade real. Nesse sentido, a importância da
transmissão de conhecimentos, de conteúdos culturais, marca distintiva dapedagogia da essência, não perde seu caráter revolucionário. A pressão em
direção à igualdade real implica a igualdade de acesso ao saber, portanto, a
distribuição igualitária dos conhecimentos disponíveis. Mas aqui também
é preciso levar em conta que os conteúdos culturais são históricos e o seu
caráter revolucionário está intimamente associado à sua historicidade. As
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DERMEVAL SAVIANI
sim, a transformação da igualdade formal em igualdade real está associada à
transformação dos conteúdos formais, fixos e abstratos, em conteúdos reais,
dinâmicos e concretos. Ao conjunto de pressões decorrentes do acesso dascamadas trabalhadoras à escola, a burguesia responde denunciando pela
Escola Nova o caráter mecânico, artificial, desatualizado dos conteúdos
próprios da escola tradicional. Obviamente, tal denúncia é procedente e
pode ser conta-bilizada como um dos méritos da Escola Nova. Entretanto,
ao reconhecer e absorver as pressões contra o caráter formalista e estático
dos conhecimentos transmitidos pela escola, o movimento da Escola Nova
funcionou como mecanismo de recomposição da hegemonia burguesa. Istoporque subordinou as aspirações populares aos interesses burgueses, tornando
possível à classe dominante apresentar-se como a principal interessada na
reforma da escola, reforma esta que viria finalmente a atender aos interesses
de toda a sociedade contemplando ao mesmo tempo suas diferentes aspira
ções, capacidades e possibilidades. Com isso, a importância da transmissão
de conhecimentos foi secundarizada e subordinada a uma pedagogia das
diferenças, centrada nos métodos e processos: a pedagogia da existência oupedagogia nova.
Uma pedagogia revolucionária centra-se, pois, na igualdade essencial
entre os homens. Entende, porém, a igualdade em termos reais e não ape
nas formais. Busca converter-se, articulando-se com as forças emergentes
da sociedade, em instrumento a serviço da instauração de uma sociedade
igualitária. Para isso, a pedagogia revolucionária, longe de secundarizar os
conhecimentos descuidando de sua transmissão, considera a difusão deconteúdos, vivos e atualizados, uma das tarefas primordiais do processo
educativo em geral e da escola em particular.
Em suma: a pedagogia revolucionária não vê necessidade de negar a
essência para admitir o caráter dinâmico da realidade como o faz a pedagogia
da existência, inspirada na concepção “humanista” moderna de filosofia da
educação. Também não vê necessidade de negar o movimento para captar a
essência do processo histórico como o faz a pedagogia da essência inspiradana concepção “humanista” tradicional de filosofia da educação.
A pedagogia revolucionária é crítica. E, por ser crítica, sabe-se con
dicionada. Longe de entender a educação como determinante principal
das transformações sociais, reconhece ser ela elemento secundário e de
terminado. Entretanto, longe de pensar, como o faz a concepção crítico-
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ESCOLA E DEMOCRACIA 53
reprodutivista2, que a educação é determinada unidirecionalmente pela
estrutura social dissolvendo-se a sua especificidade, entende que a educa
ção se relaciona dialeticamente com a sociedade. Nesse sentido, ainda queelemento determinado, não deixa de influenciar o elemento determinante.
Ainda que secundário, nem por isso deixa de ser instrumento importante
e por vezes decisivo no processo de transformação da sociedade.
A pedagogia revolucionária situa-se além das pedagogias da essência e da
existência. Supera-as, incorporando suas críticas recíprocas numa proposta
radicalmente nova. O cerne dessa novidade radical consiste na superação
da crença na autonomia ou na dependência absolutas da educação em facedas condições sociais vigentes.
3. PARA ALÉM DOS MÉTODOS NOVOS E TRADICIONAIS
Na segunda tese do texto anterior, afirmei o caráter científico do métodotradicional e o caráter pseudocientífico dos métodos novos. Questionei com
isso o principal argumento da crítica escolanovista ao método tradicional
de ensino. Isto significa que a referida crítica é inteiramente infundada?
Eu diria que não se trata disso. A crítica escolanovista atingiu não tanto o
método tradicional, mas a forma como esse método se cristalizou na prática
pedagógica, tornando-se mecânico, repetitivo, desvinculado das razões e
finalidades que o justificavam. Essa defasagem entre a proposta original e suasaplicações subseqüentes me faz lembrar da afirmação de Goldmann (1976,
p. 37), segundo a qual Durkheim foi suficientemente inteligente para não
tomar ao pé da letra o seu lema “tratar os fatos sociais como coisas”. Com
isto, trouxe contribuições decisivas à constituição da ciência sociológica. Já
os sociólogos quantitativistas, de modo especial os americanos, tomando ao
pé da letra o lema de Durkheim, acabaram por desenvolver uma tendência
esterilizadora da ciência sociológica.Aplicando o mesmo raciocínio à situação educacional, cabe observar
que as críticas da Escola Nova atingiram o método tradicional não em si
2. Para um entendimento do que está sendo denominado de “concepção crítico-reprodu-
tivista”, ver, neste livro, pp. 13-28.
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tivista , ver, neste livro, pp. 13 28.
54 DERMEVAL SAVIANI
mesmo, mas em sua aplicação mecânica cristalizada na rotina burocrática
do funcionamento das escolas. A procedência das críticas decorre do fato
de que uma teoria, um método, uma proposta devem ser avaliados não em simesmos, mas nas conseqüências que produziram historicamente. Essa regra,
porém, deve ser aplicada também à própria Escola Nova. Nesse sentido,
cumpre constatar que as críticas, ainda que procedentes, tiveram, como
assinalamos no texto anterior, o efeito de aprimorar a educação das elites e
esvaziar ainda mais a educação das massas. Isto porque, realizando-se em
algumas poucas escolas, exatamente naquelas freqüentadas pelas elites, a
proposta escolanovista contribuiu para o aprimoramento do nível educacional da classe dominante. Entretanto, ao estender sua influência em termos
de ideário pedagógico às escolas da rede oficial, que continuaram funcio
nando de acordo com as condições tradicionais, a Escola Nova contribuiu,
pelo afrouxamento da disciplina e pela secundarização da transmissão de
conhecimentos, para desorganizar o ensino nas referidas escolas. Daí, entre
outros fatores, o rebaixamento do nível da educação destinada às camadas
populares.Ora, se o principal problema da pedagogia nova está no seu efeito
discriminatório, surge, então, a questão: os métodos novos não seriam
generalizáveis? Assim como esses métodos foram capazes de aprimorar a
educação das elites, não seriam eles úteis também para aprimorar a educação
das massas?
E nessa direção que surgem tentativas de constituição de uma espécie
de “Escola Nova Popular”. Exemplos dessas tentativas são a “PedagogiaFreinet” na França e o “Movimento Paulo Freire de Educação” no Brasil.
Com efeito, de modo especial no caso de Paulo Freire, é nítida a inspiração
da “concepção ‘humanista’ moderna de filosofia da educação”, por meio da
corrente personalista (existencialismo cristão). Na fase de constituição e im
plantação de sua pedagogia no Brasil (1959-1964), suas fontes de referência
são principalmente Mounier, G. Marcel, Jaspers (Freire, 1967).
Parte-se da crítica à pedagogia tradicional (pedagogia bancária) caracterizada pela passividade, transmissão de conteúdos, memorização, verbalismo
etc. e advoga-se uma pedagogia ativa, centrada na iniciativa dos alunos,
no diálogo (relação dialógica), na troca de conhecimentos. A diferença,
entretanto, em relação à Escola Nova propriamente dita, consiste no fato
de que Paulo Freire se empenhou em colocar essa concepção pedagógica a
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ESCOLA E DEMOCRACIA 55
serviço dos interesses populares. Seu alvo inicial foi, com efeito, os adultos
analfabetos.
Esse fenômeno histórico do surgimento daquilo que chamei de “EscolaNova Popular” põe em evidência que a questão escolar na sociedade ca
pitalista, dada a sua divisão em classes com interesses opostos, é objeto de
disputa. Assim como a escola tradicional, proposta pela burguesia, volta-se
contra seus interesses obrigando a uma recomposição de hegemonia por
intermédio da Escola Nova, assim também a Escola Nova não fica imune
à luta que se trava no seio da sociedade. Se o credo escolanovista se torna
predominante e toma conta das cabeças dos professores, é inevitável osurgimento de pressões no sentido de que a Escola Nova se generalize. Se o
escolanovismo pressupõe métodos sofisticados, escolas mais bem equipadas,
menor número de alunos em classe, maior duração da jornada escolar; se
se trata de uma escola mais agradável, capaz de despertar o interesse dos
alunos, de estimulá-los à iniciativa, de permitir-lhes assumir ativamente o
trabalho escolar, por que não implantar esse tipo de escola exatamente para
as camadas populares nas quais supostamente a passividade, o desinteresse,as dificuldades de aprendizagem são maiores?
Não é por acaso que justamente quando esse tipo de questionamento vai
se tornando mais agudo, quando surgem propostas de renovação pedagógica
articuladas com os interesses populares, quando aparecem críticas à Escola
Nova que visam incorporar suas contribuições no esforço de formulação
duma pedagogia popular, exatamente nesse momento, novos mecanismos
de recomposição de hegemonia são acionados: os meios de comunicação demassa e as tecnologias de ensino. Passa-se, então, a minimizar a importância
da escola e a se falar em educação permanente, educação informal etc. No
limite, chega-se mesmo a defender a destruição da escola. Ora, nós sabe
mos que o povo não está interessado na desescolarização, ao contrário, ele
reivindica o acesso às escolas. Quem defende a desescolarização são os já es
colarizados, portanto, também já desescolarizados. Conseqüentemente, para
eles a escola não tem mais importância uma vez que eles já se beneficiaramdela. Os ainda não escolarizados, estes estão interessados na escolarização
e não na desescolarização.
Uma pedagogia articulada com os interesses populares valorizará, pois, a
escola; não será indiferente ao que ocorre em seu interior; estará empenhada
em que a escola funcione bem; portanto, estará interessada em métodos de
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56 DERMEVAL SAVIANI
ensino eficazes. Tais métodos situar-se-ão para além dos métodos tradicionais
e novos, superando por incorporação as contribuições de uns e de outros.
Serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrirmão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre
si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acu-
mulada historicamente; levarão em conta os interesses dos alunos, os ritmos
de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista
a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para
efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos.
Não se deve pensar, porém, que os métodos indicados terão um carátereclético, isto é, constituirão uma somatória dos métodos tradicionais e
novos. Não! Os métodos tradicionais assim como os novos implicam uma
autonomização da pedagogia em relação à sociedade. Os métodos que
preconizo mantêm continuamente presente a vinculação entre educação
e sociedade. Enquanto no primeiro caso professor e alunos são sempre
considerados em termos individuais, no segundo caso, professor e alunos
são tomados como agentes sociais. Assim, se fosse possível traduzir os métodos de ensino que estou propondo na forma de passos à semelhança dos
esquemas de Herbart e de Dewey, eu diria que o ponto de partida do ensino
não é a preparação dos alunos, cuja iniciativa é do professor (pedagogia
tradicional), nem a atividade, que é de iniciativa dos alunos (pedagogia
nova). O ponto de partida seria a prática social (primeiro passo), que é
comum a professor e alunos. Entretanto, em relação a essa prática comum,
o professor assim como os alunos podem se posicionar diferentementeenquanto agentes sociais diferenciados. E do ponto de vista pedagógico
há uma diferença essencial que não pode ser perdida de vista: o professor,
de um lado, e os alunos, de outro, encontram-se em níveis diferentes de
compreensão (conhecimento e experiência) da prática social. Enquanto
o professor tem uma compreensão que poderíamos denominar de “síntese
precária”, a compreensão dos alunos é de caráter sincrético. A compreensão
do professor é sintética porque implica uma certa articulação dos conhecimentos e das experiências que detém relativamente à prática social. Tal
síntese, porém, é precária uma vez que, por mais articulados que sejam os
conhecimentos e as experiências, a inserção de sua própria prática peda
gógica como uma dimensão da prática social envolve uma antecipação do
que lhe será possível fazer com alunos cujos níveis de compreensão ele não
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ESCOLA E DEMOCRACIA 57
pode conhecer, no ponto de partida, senão de forma precaria. Por seu lado,
a compreensão dos alunos é sincrética uma vez que, por mais conhecimen-
tos e experiências que detenham, sua própria condição de alunos implicauma impossibilidade, no ponto de partida, de articulação da experiência
pedagógica na prática social de que participam.
O segundo passo não seria a apresentação de novos conhecimentos por
parte do professor (pedagogia tradicional) nem o problema como um obs
táculo que interrompe a atividade dos alunos (pedagogia nova). Caberia,
neste momento, a identificação dos principais problemas postos pela prática
social. Chamemos a este segundo passo de Problematização. Trata-se de detectar que questões precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e,
em conseqüência, que conhecimento é necessário dominar.
Segue-se o terceiro passo que não coincide com a assimilação de conteú
dos transmitidos pelo professor por comparação com conhecimentos ante
riores (pedagogia tradicional) nem com a coleta de dados (pedagogia nova),
ainda que por certo envolva transmissão e assimilação de conhecimentos
podendo, eventualmente, envolver levantamento de dados. Trata-se de seapropriar dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamen
to dos problemas detectados na prática social. Como tais instrumentos são
produzidos socialmente e preservados historicamente, a sua apropriação pelos
alunos está na dependência de sua transmissão direta ou indireta por parte
do professor. Digo transmissão direta ou indireta porque o professor tanto
pode transmiti-los diretamente como pode indicar os meios pelos quais a
transmissão venha a se efetivar. Chamemos, pois, este terceiro passo de instru- mentalização. Obviamente, não cabe entender a referida instrumentalização
em sentido tecnicista. Trata-se da apropriação pelas camadas populares das
ferramentas culturais necessárias à luta social que travam diuturnamente
para se libertar das condições de exploração em que vivem.
O quarto passo não será a generalização (pedagogia tradicional) nem a
hipótese (pedagogia nova). Adquiridos os instrumentos básicos, ainda que
parcialmente, é chegado o momento da expressão elaborada da nova formade entendimento da prática social a que se ascendeu. Chamemos este quarto
passo de catarse, entendida na acepção gramsciana de “elaboração superior
da estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (Gramsci, 1978,
p. 53). Trata-se da efetiva incorporação dos instrumentos culturais, trans
formados agora em elementos ativos de transformação social.
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58 DERMEVAL SAVIANI
O quinto passo, finalmente, também não será a aplicação (pedagogia
tradicional) nem a experimentação (pedagogia nova). O ponto de chegada é
a própria prática social, compreendida agora não mais em termos sincréticospelos alunos. Neste ponto, ao mesmo tempo que os alunos ascendem ao
nível sintético em que, por suposto, já se encontrava o professor no ponto
de partida, reduz-se a precariedade da síntese do professor, cuja compreensão
se torna mais e mais orgânica. Essa elevação dos alunos ao nível do professor
é essencial para se compreender a especificidade da relação pedagógica. Daí
por que o momento catártico pode ser considerado o ponto culminante
do processo educativo, já que é aí que se realiza pela mediação da análiselevada a cabo no processo de ensino, a passagem da síncrese à síntese; em
conseqüência, manifesta-se nos alunos a capacidade de expressarem uma
compreensão da prática em termos tão elaborados quanto era possível ao
professor. É a esse fenômeno que eu me referia quando dizia em outro traba
lho que a educação é uma atividade que supõe uma heterogeneidade real e
uma homogeneidade possível; uma desigualdade no ponto de partida e uma
igualdade no ponto de chegada (Saviani, 1980a).Ora, pelo processo já indicado, a compreensão da prática social passa
por uma alteração qualitativa. Conseqüentemente, a prática social referida
no ponto de partida (primeiro passo) e no ponto de chegada (quinto passo)
é e não é a mesma. É a mesma, uma vez que é ela própria que constitui ao
mesmo tempo o suporte e o contexto, o pressuposto e o alvo, o fundamento
e a finalidade da prática pedagógica. E não é a mesma, se considerarmos que
o modo de nos situarmos em seu interior se alterou qualitativamente pelamediação da ação pedagógica; e já que somos, enquanto agentes sociais,
elementos objetivamente constitutivos da prática social, é lícito concluir
que a própria prática se alterou qualitativamente. É preciso, no entanto,
ressalvar que a alteração objetiva da prática só pode se dar a partir da nossa
condição de agentes sociais ativos, reais. A educação, portanto, não trans
forma de modo direto e imediato e sim de modo indireto e mediato, isto
é, agindo sobre os sujeitos da prática. Como diz Sánchez Vázquez (1968,pp. 206-207):
A teoria em si [...] não transforma o mundo. Pode contribuir para a sua
transformação, mas para isso tem que sair de si mesma, e, em primeiro lugar
tem que ser assimilada pelos que vão ocasionar, com seus atos reais, efetivos, tal
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ESCOLA E DEMOCRACIA 59
transformação. Entre a teoria e a atividade prática transformadora se insere um
trabalho de educação das consciências, de organização dos meios materiais e planos
concretos de ação; tudo isso como passagem indispensável para desenvolver ações
reais, efetivas. Nesse sentido, uma teoria é prática na medida em que materia
liza, através de uma série de mediações, o que antes só existia idealmente, como
conhecimento da realidade ou antecipação ideal de sua transformação.
As reflexões desenvolvidas podem ser consideradas uma tentativa de
aduzir elementos para a explicitação de uma definição de educação na qual
venho insistindo há alguns anos3. Trata-se da conceituação de educaçãocomo “uma atividade mediadora no seio da prática social global” (Saviani,
1980a, p. 129). Daí porque a prática social foi tomada como ponto de partida
e ponto de chegada na caracterização dos momentos do método de ensino
por mim preconizado. É fácil identificar aí o entendimento da educação como
mediação no seio da prática social. Também é fácil perceber de onde retiro
o critério de cientificidade do método proposto. Não é do esquema indutivo
tal como o formulara Bacon; nem é do modelo experimentalista ao qual sefiliava Dewey. É, sim, da concepção dialética de ciência tal como a explicitou
Marx no “método da economia política” (Marx, 1973, pp. 228-240). Isto não
quer dizer, porém, que eu esteja incidindo na mesma falha que denunciara
na Escola Nova: confundir o ensino com a pesquisa científica. Simplesmente
estou querendo dizer que o movimento que vai da síncrese (“a visão caótica
do todo”) à síntese (“uma rica totalidade de determinações e de relações
numerosas”) pela mediação da análise (“as abstrações e determinações maissimples”) constitui uma orientação segura tanto para o processo de desco
berta de novos conhecimentos (o método científico) como para o processo
de transmissão-assimilação de conhecimentos (o método de ensino).
Cabe, por fim, levar em conta que o empenho em apresentar simetrica
mente aos cinco passos de Herbart e de Dewey as características do método
pedagógico que, no meu entendimento, se situa para além dos métodos novos
3. Não cheguei a elaborar por escrito a referida definição. Entretanto, minha insistência em
diferentes oportunidades já produziu seus frutos. Assim, Carlos Roberto Jamil Cury tomou
a si a tarefa de desenvolver o conceito de mediação como uma das categorias chaves
de compreensão do fenômeno educativo (Cury, 1985). Algo semelhante ocorreu com
Guiomar N. Mello que construiu uma visão da escola a partir do conceito de mediação
(Mello, 1982).
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DERMEVAL SAVIANI
e tradicionais, correspondeu a um esforço heurístico e didático cuja função
era facilitar aos leitores a compreensão do meu posicionamento. Em lugar
de passos que se ordenam numa seqüência cronológica, é mais apropriadofalar aí de momentos articulados num mesmo movimento, único e orgânico.
O peso e a duração de cada momento obviamente irão variar de acordo com
as situações específicas em que se desenvolve a prática pedagógica. Assim,
nos inícios da escolarização a Problematização é diretamente dependente
da instrumentalização, uma vez que a própria capacidade de problematizar
depende da posse de certos instrumentos. A necessidade da alfabetização,
por exemplo, é um problema posto diretamente pela prática social não sendonecessária a mediação da escola para detectá-lo. No entanto, é fácil perceber
que as crianças captam de modo sincrético, isto é, de modo confuso, caótico,
a relação entre a alfabetização e a prática social; já o professor capta essa
relação de modo sintético, ainda que em termos de uma “síntese precária”.
A instrumentalização no sentido de se passar da condição de analfabeto para
alfabetizado se impõe. E aqui o momento catártico é fixado com nitidez, e, em
bora metaforicamente por referência ao sentido contido na frase de Gramsci,dá-se, de fato, uma “elaboração superior da estrutura em superestrutura na
consciência dos homens”, isto é, a assimilação subjetiva da estrutura objetiva
da língua. E o alfabetizado adquire condições de se expressar em nível tão
elaborado quanto o era capaz o professor no ponto de partida, isto é, ele se
expressa agora não apenas oralmente, mas também por escrito.
Em contrapartida, se as pedagogias tradicional e nova podiam alimentar
a expectativa de que os métodos por elas propostos poderiam ter aceitaçãouniversal, isto devia-se ao fato de que dissociavam a educação da sociedade,
concebendo esta como harmoniosa, não-contraditória. Já o método que
preconizo deriva de uma concepção que articula educação e sociedade e
parte da consideração de que a sociedade em que vivemos é dividida em
classes com interesses opostos. Conseqüentemente, a pedagogia proposta,
uma vez que se pretende a serviço dos interesses populares, terá contra si
os interesses até agora dominantes. Trata-se, portanto, de lutar também nocampo pedagógico para fazer prevalecer os interesses até agora não domi
nantes. E esta luta não parte do consenso, mas do dissenso. O consenso é
vislumbrado no ponto de chegada. Para se chegar lá, porém, é necessário,
pela prática social, transformar as relações de produção que impedem a
construção de uma sociedade igualitária. A pedagogia por mim denominada
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ESCOLA E DEMOCRACIA 61
ao longo deste texto, na falta de uma expressão mais adequada, de “pedago
gia revolucionária”, não é outra coisa senão aquela pedagogia empenhada
decididamente em colocar a educação a serviço da referida transformaçãodas relações de produção.
4. PARA ALÉM DA RELAÇÃO AUTORITÁRIA OU DEMOCRÁTICANA SALA DE AULA
Com o enunciado da terceira tese procurei evidenciar como a Escola
Nova, a despeito de considerar a pedagogia tradicional como intrinsecamente
autoritária, proclamando-se, por seu lado, democrática e estimulando a livre
iniciativa dos alunos, reforçou as desigualdades tendo, portanto, um efeito
socialmente antidemocrático.
Ora, assim como aquela terceira tese derivava diretamente das duas
anteriores de tal modo que, uma vez demonstradas as duas primeiras a terceira ficava evidente, penso também que neste artigo, após a superação das
antinomias contidas nas duas teses iniciais, fica também superada a antinomia
própria da terceira tese. Assim, após as considerações anteriores resulta óbvio
que, ao denunciar os efeitos socialmente antidemocráticos da Escola Nova,
nem por isso estava eu defendendo que a relação pedagógica no interior da
sala de aula devesse assumir um caráter autoritário. Simplesmente importa
reter que o critério para se aferir o grau em que a prática pedagógica contribuipara a instauração de relações democráticas não é interno, mas tem suas
raízes para além da prática pedagógica propriamente dita. Se a educação é
mediação, isto significa que ela não se justifica por si mesma, mas tem sua
razão de ser nos efeitos que se prolongam para além dela e que persistem
mesmo após a cessação da ação pedagógica. Considerando-se, como já se
explicitou, que, dado o caráter da educação como mediação no seio da
prática social global, a relação pedagógica tem na prática social o seu pontode partida e seu ponto de chegada, resulta inevitável concluir que o critério
para se aferir o grau de democratização atingido no interior das escolas deve
ser buscado na prática social.
Se é razoável supor que não se ensina democracia através de práticas pe
dagógicas antidemocráticas, nem por isso se deve inferir que a democratização
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das relações internas à escola é condição suficiente de democratização da
sociedade. Mais do que isso: se a democracia supõe condições de igualdade
entre os diferentes agentes sociais, como a prática pedagógica pode ser de-mocrática já no ponto de partida? Com efeito, se, como procurei esclarecer,
a educação supõe a desigualdade no ponto de partida e a igualdade no ponto
de chegada, agir como se as condições de igualdade estivessem instauradas
desde o início não significa, então, assumir uma atitude de fato pseudodemo-
crática? Não resulta, em suma, num engodo? Acrescente-se, ainda, que essa
maneira de encarar o problema educacional acaba por desnaturar o próprio
sentido do projeto pedagógico. Isto porque se as condições de igualdade estão dadas desde o início, então já não se põe a questão de sua realização no
ponto de chegada. Com isto o processo educativo fica sem sentido. Veja-se
o paradoxo em que desemboca a Escola Nova; a contradição interna que
atravessa de ponta a ponta a sua proposta pedagógica; de tanto endeusar o
processo, de tanto valorizá-lo em si e por si, acabou por transformá-lo em
algo místico, uma entidade metafísica, uma abstração esvaziada de conteú
do e sentido. Ora, com isso perdeu-se de vista que o processo jamais podeser justificado por si mesmo. Ele é sempre algum tipo de passagem (de um
ponto a outro) ; uma certa transformação (de algo em outra coisa). É, enfim,
a própria catarse (elaboração-transformação da estrutura em superestrutura
na consciência dos homens).
Entendo, pois, que o processo educativo é passagem da desigualdade à
igualdade. Portanto, só é possível considerar o processo educativo em seu
conjunto como democrático sob a condição de se distinguir a democraciacomo possibilidade no ponto de partida e a democracia como realidade
no ponto de chegada. Conseqüentemente, aqui também vale o aforismo:
democracia é uma conquista; não um dado. Este ponto, porém, é de funda
mental importância. Com efeito, assim como a afirmação das condições de
igualdade como uma realidade no ponto de partida torna inútil o processo
educativo, também a negação dessas condições como uma possibilidade no
ponto de chegada inviabiliza o trabalho pedagógico. Isto porque, se eu nãoadmito que a desigualdade é uma igualdade possível, ou seja, se não acre
dito que a desigualdade pode ser convertida em igualdade pela mediação
da educação (obviamente não em termos isolados, mas articulada com as
demais modalidades que configuram a prática social global), então, não
vale a pena desencadear a ação pedagógica. Neste ponto vale lembrar que,
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ESCOLA E DEMOCRACIA 63
se para os alunos a percepção dessa possibilidade é sincrética, o professor
deve compreendê-la em termos sintéticos. O professor deve antever com
uma certa clareza a diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada sem o que não será possível organizar e implementar os procedimentos
necessários para se transformar a possibilidade em realidade. Diga-se de
passagem que esta capacidade de antecipar mentalmente os resultados da
ação é a nota distintiva da atividade especificamente humana. Não sendo
preenchida essa exigência, cai-se no espontaneísmo. E a especificidade da
ação educativa se esboroa.
Em síntese, não se trata de optar entre relações autoritárias ou democráticas no interior da sala de aula, mas de articular o trabalho desenvolvido
nas escolas com o processo de democratização da sociedade. A prática peda
gógica contribui de modo específico, isto é, propriamente pedagógico, para
a democratização da sociedade na medida em que se compreende como se
coloca a questão da democracia relativamente à natureza própria do trabalho
pedagógico. Foi isso o que tentei indicar ao insistir em que a natureza da
prática pedagógica implica uma desigualdade real e uma igualdade possível.Conseqüentemente, uma relação pedagógica identificada como supostamen
te autoritária, quando vista pelo ângulo do seu ponto de partida, pode ser, ao
contrário, democrática, se analisada a partir do ponto de chegada, ou seja,
pelos efeitos que acarreta no âmbito da prática social global. Inversamente,
uma relação pedagógica vista como democrática pelo ângulo de seu ponto de
partida não só poderá como tenderá, dada a própria natureza do fenômeno
educativo nas condições em que vigora o modo de produção capitalista, aproduzir efeitos socialmente antidemocráticos.
5. CONCLUSÃO: A CONTRIBUIÇÃO DO PROFESSOR
Como assinalei na introdução, o objetivo deste texto era prosseguir odebate iniciado em “Escola e Democracia 1 - a teoria da curvatura da vara”.
Para isso lancei uma série de idéias que, obviamente, necessitam ser mais
desenvolvidas e detalhadas. Eventualmente, poderá ser o caso de que elas
necessitem ser retificadas. Daí a importância de que se dê prosseguimento
ao debate.
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64 DERMEVAL SAVIANI
Entretanto, penso não ser demais lembrar que o desenvolvimento, o
detalhamento e a eventual retificação das idéias expostas passam pela sua
confrontação com a prática pedagógica em curso na sociedade brasileira atual.Daí o interesse em que os professores as submetam a uma crítica impiedosa
à luz da prática que desenvolvem. Com isso espero também contribuir para
que os professores revejam sua própria ação pedagógica auxiliados e/ou
provocados pelas minhas posições.
Evidentemente, a proposição pedagógica apresentada aponta na dire
ção de uma sociedade em que esteja superado o problema da divisão do
saber. Entretanto, ela foi pensada para ser implementada nas condições dasociedade brasileira atual, na qual predomina a divisão do saber. Entendo,
pois, que um maior detalhamento dessa proposta implicaria a verificação de
como ela se aplica (ou não se aplica) às diferentes modalidades de trabalho
pedagógico em que se reparte a educação nas condições brasileiras atuais.
Exemplificando: um professor de história ou de matemática, de ciências ou
estudos sociais, de comunicação e expressão ou de literatura brasileira etc.
têm cada um uma contribuição específica a dar, em vista da democratizaçãoda sociedade brasileira, do atendimento aos interesses das camadas populares,
da transformação estrutural da sociedade. Tal contribuição consubstancia-se
na instrumentalização, isto é, nas ferramentas de caráter histórico, mate
mático, científico, literário etc., cuja apropriação o professor seja capaz de
garantir aos alunos. Ora, em meu modo de entender, tal contribuição será
tanto mais eficaz quanto mais o professor for capaz de compreender os
vínculos da sua prática com a prática social global. Assim, a instrumentalização desenvolver-se-á como decorrência da Problematização da prática
social, atingindo o momento catártico que concorrerá na especificidade da
matemática, da literatura etc., para alterar qualitativamente a prática de
seus alunos como agentes sociais. Insisto neste ponto porque, em geral, há
a tendência a desvincular os conteúdos específicos de cada disciplina das
finalidades sociais mais amplas. Então, ou se pensa que os conteúdos va
lem por si mesmos sem necessidade de referi-los à prática social em que seinserem, ou se acredita que os conteúdos específicos não têm importância
colocando-se todo o peso na luta política mais ampla. Com isso dissolve-se
a especificidade da contribuição pedagógica, anulando-se, em conseqüência,
a sua importância política.
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Capítulo 4Onze teses sobre educação e política
oncluí o texto anterior sugerindo quea importância política da educação
está condicionada à garantia de que
a especificidade da prática educativa
não seja dissolvida.
A compreensão do que foi dito requer
delimitar mais precisamente as relações entre política e
educação.De uns tempos para cá, tornou-se lugar-comum a
afirmação de que a educação é sempre um ato políti
co. Mas o que significa essa afirmação? Obviamente,
trata-se de um slogan que tinha por objetivo combater
a idéia anteriormente dominante segundo a qual a edu
cação era entendida como um fenômeno estritamente
técnico-pedagógico, portanto, inteiramente autônomo eindependente da questão política. Nesse sentido o slogan
cumpriu uma função cuja validade se inscreve nos limites
da “teoria da curvatura da vara”. Com efeito, se a vara
havia sido curvada para o lado técnico-pedagógico, o
referido slogan forçou-a em direção ao pólo político. Com
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DERMEVAL SAVIANI
isto, entretanto, corre-se o risco de se identificar educação com política, a
prática pedagógica com a prática política, dissolvendo-se, em conseqüência,
a especificidade do fenômeno educativo.Cabe, pois, indagar: educação e política se equivalem, se identificam?
Se são diferentes, em que consiste a diferença?
Entendo que educação e política, embora inseparáveis, não são idênticas.
Trata-se de práticas distintas, dotadas cada uma de especificidade própria.
Em que consiste a especificidade de cada uma dessas práticas?
O problema de se determinar a especificidade da educação coincide com
o problema do desvendamento da natureza própria do fenômeno educativo.Trata-se de uma questão nodal que vem ocupando o centro de minhas refle
xões nos últimos anos. Penso que é necessário enfrentá-la e acredito dispor
já de algumas evidências que me indicam a direção que deverei seguir para
elucidar tal questão. Tal tarefa implica, porém, um projeto mais ambicioso,
impossível de ser desenvolvido a curto prazo. Neste texto, pretendo apenas
adiantar alguns elementos relativos à natureza da prática educativa por
confronto com a especificidade da prática política.Uma análise, ainda que superficial, do fenômeno educativo nos revela
que, diferentemente da prática política, a educação configura uma relação
que se trava entre não-antagônicos. É pressuposto de toda e qualquer re
lação educativa que o educador está a serviço dos interesses do educando.
Nenhuma prática educativa pode se instaurar sem este suposto.
Em se tratando da política, ocorre o inverso. A mais superficial das aná
lises põe em evidência que a relação política se trava, fundamentalmente,entre antagônicos. No jogo político defrontam-se interesses e perspectivas
mutuamente excludentes. Por isso em política o objetivo é vencer e não
convencer.
Inversamente, em educação o objetivo é convencer e não vencer. O
educador, seja na família, na escola ou em qualquer outro lugar ou cir
cunstância, acredita estar sempre agindo para o bem dos educandos. Os
educandos, por sua vez, também não vêem o educador como adversário.Acreditam, antes, que o educador está aí para ajudá-los, para possibilitar o
seu desenvolvimento, para abrir-lhes perspectivas, iniciá-los em domínios
desconhecidos. Ainda quando tais características são negadas pelos fatos
da superfície, elas permanecem como suporte, como a estrutura, como o
substrato que permite à relação manter-se educativa. Assim, a rebeldia
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ESCOLA E DEMOCRACIA 67
dos educandos tende a ser encarada pelo educador como um desafio que
lhe cumpre superar, conduzindo-os à percepção de que eles próprios são os
maiores prejudicados com tal comportamento. Já no plano político, a rebeldiada classe dominada tende a ser interpretada pela classe dominante como
rebelião e, como tal, reprimida pela força.
As diferenças anteriormente assinaladas permitem-nos entender por
que, em política, seria ingenuidade acreditar que o adversário está na posi
ção oposta porque está equivocado; porque não compreendeu o seu erro e
a validade da proposta contrária, compreensão essa que, uma vez atingida,
o levará a aderir à proposta que atualmente combate. Por isso, em geral,o fato de um partido perder uma batalha (eleições, propostas etc.) não o
demove de sua posição; ao contrário, ele passa para a oposição e continua
fustigando o partido contrário buscando alterar a correlação de forças para,
na oportunidade seguinte, reverter a situação. Em suma, ele pode ser ven
cido, mas não convencido.
Parece claro que em educação o comportamento é claramente diferente
do anteriormente descrito. Um professor, por exemplo, acredita que, se elefundamentar adequadamente os assuntos em torno dos quais se trava sua
relação com os alunos; se ele os expuser de modo claro, se suas posições fo
rem consistentes e os alunos chegarem ao entendimento de seu significado,
eles tenderão a concordar com ele. Se isso não ocorrer, é normal atribuir o
desentendimento a uma insuficiente compreensão, a algum tipo de equívoco.
Por isso, é comum na relação pedagógica expressões do tipo: “se eu não estiver
enganado...”, “se vocês me convencerem que estou errado...” etc., comportamento, no mínimo, inusitado numa assembléia ou num palanque.
Com as considerações anteriores espero ter esclarecido a não-identidade
e, em conseqüência, a distinção entre política e educação. Trata-se, pois,
de práticas diferentes, cada uma com suas características próprias. Cumpre,
portanto, não confundi-las, o que redundaria em dissolver uma na outra
(a dissolução da educação na política configuraria o politicismo pedagógico
do mesmo modo que a dissolução da política na educação implicaria o viésdo pedagogismo político).
Entretanto, se se trata de práticas distintas, isso não significa que sejam
inteiramente independentes, dotadas de autonomia absoluta. Ao contrário,
elas são inseparáveis e mantêm íntima relação.
Como se configuram as relações entre educação e política?
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68 DERMEVAL SAVIANI
Primeiramente é preciso considerar a existência de uma relação interna,
isto é, toda prática educativa, como tal, possui uma dimensão política assim
como toda prática política possui, em si mesma, uma dimensão educativa.A dimensão política da educação consiste em que, dirigindo-se aos não-
antagônicos a educação os fortalece (ou enfraquece) por referência aos anta
gônicos e desse modo potencializa (ou despotencializa) a sua prática política.
E a dimensão educativa da política consiste em que, tendo como alvo os
antagônicos, a prática política se fortalece (ou enfraquece) na medida em que,
pela sua capacidade de luta, ela convence os não-antagônicos de sua validade
(ou não-validade) levando-os a se engajarem (ou não) na mesma luta.A dimensão pedagógica da política envolve, pois, a articulação, a aliança
entre os não-antagônicos visando à derrota dos antagônicos. E a dimensão
política da educação envolve, por sua vez, a apropriação dos instrumentos
culturais que serão acionados na luta contra os antagônicos.
Em segundo lugar, cabe considerar que existe também uma relação
externa entre educação e política, ou seja, o desenvolvimento da prática
especificamente política pode abrir novas perspectivas para o desenvolvimento da prática especificamente educativa e vice-versa. Configura-se,
aí, uma dependência recíproca: a educação depende da política no que diz
respeito a determinadas condições objetivas como a definição de priorida
des orçamentárias que se reflete na constituição-consolidação-expansão
da infra-estrutura dos serviços educacionais etc.; e a política depende da
educação no que diz respeito a certas condições subjetivas como a aquisição
de determinados elementos básicos que possibilitem o acesso à informação,a difusão das propostas políticas, a formação de quadros para os partidos e
organizações políticas de diferentes tipos etc.
Por fim, é de fundamental importância levar em conta que as relações
entre educação e política, cuja descrição esbocei conceitualmente, têm
existência histórica; logo, só podem ser adequadamente compreendidas
enquanto manifestações sociais determinadas. E aqui evidencia-se, por um
outro ângulo, a inseparabilidade entre educação e política. Com efeito, trata-se de práticas distintas, mas que ao mesmo tempo não são outra coisa senão
modalidades específicas de uma mesma prática: a prática social. Integram,
assim, um mesmo conjunto, uma mesma totalidade.
Em sua existência histórica nas condições atuais, educação e política de
vem ser entendidas como manifestações da prática social própria da sociedade
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ESCOLA E DEMOCRACIA 69
de classes. Trata-se de uma sociedade cindida entre interesses antagônicos.
Está aí a raiz do primado da política. Com efeito, já que a relação política se
trava fundamentalmente entre antagônicos, nas sociedades de classes ela éerigida em prática social fundamental.
Percebe-se por aí que a autonomia relativa da educação em face da política
e vice-versa assim como a dependência recíproca anteriormente referida não
têm um mesmo peso, não são equivalentes. Em outros termos: se se trata de
dependência recíproca, é preciso levar em conta que o grau de dependência
da educação em relação à política é maior do que o desta em relação àquela.
Poderíamos, pois, dizer que existe uma subordinação relativa mas real daeducação diante da política. Trata-se, porém, de uma subordinação histórica
e, como tal, não somente pode como deve ser superada. Isto porque, se as con
dições de exercício da prática política estão inscritas na essência da sociedade
capitalista, as condições de exercício da prática educativa estão inscritas na
essência da realidade humana, mas são negadas pela sociedade capitalista não
podendo se realizar aí senão de forma subordinada, secundária. Por aí, penso,
pode-se entender o “realismo” da política e o “idealismo” da educação. Comefeito, acreditar que estão dadas, nesta sociedade, as condições para o exercício
pleno da prática educativa é assumir uma atitude idealista. Entretanto, em
relação às condições da prática política tal atitude resulta realista.
As reflexões supra estão em consonância com a posição segundo a qual
a superação da sociedade de classes conduz ao desaparecimento do Estado.
Sabe-se que não se trata de destruir o Estado; ele simplesmente desaparecerá
por não ser mais necessário. Ora, o que significa isso senão a afirmação deque cessou o primado da política?
Essa questão fica ainda mais clara na formulação de Gramsci. Sabemos
que Gramsci alargou o conceito de Estado incluindo aí além da sociedade
política (aspecto coercitivo) a sociedade civil (aspecto persuasivo). Nessa
perspectiva o Estado não desaparece, mas é identificado com a sociedade
civil, a qual absorve a sociedade política. Quer dizer, superada a sociedade
de classes, chegado o momento histórico em que prevalecem os interesses
comuns, a dominação cede lugar à hegemonia, a coerção à persuasão, a
repressão se desfaz, prevalecendo a compreensão. Aí, sim, estarão dadas
historicamente as condições para o pleno exercício da prática educativa.
Falei antes em exercício pleno da prática educativa como algo só possível
num tipo de sociedade que se delineia no horizonte de possibilidades das
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70 DERMEVAL SAVIANI
condições atuais, mas que não chegou ainda a se concretizar. Isto porque a
plenitude da educação como, no limite, a plenitude humana, está condicio-
nada à superação dos antagonismos sociais.Ser idealista em educação significa justamente agir como se esse tipo de
sociedade já fosse realidade. Ser realista, inversamente, significa reconhecê-la
como um ideal que buscamos atingir.
No processo histórico que implica o desenvolvimento e transformação da
sociedade, isto é, a substituição de determinadas formas por outras, educação
e política se articulam cumprindo, entretanto, cada uma funções específicas
e inconfundíveis. Por ser uma relação que se trava fundamentalmente entre
antagônicos, a política supõe a divisão da sociedade em partes inconciliáveis.
Por isso a prática política não pode não ser partidária. Em contrapartida, a
educação, sendo uma relação que se trava fundamentalmente entre não-
antagônicos, supõe a união e tende a se situar na perspectiva da universali
dade. Por isso ela não pode ser partidária.
Em outros termos: a prática política apóia-se na verdade do poder; a
prática educativa, no poder da verdade. Ora, a verdade (o conhecimento),
nós sabemos, não é desinteressada. Mas nós sabemos também que, numa
sociedade dividida em classes, a classe dominante não tem interesse na ma
nifestação da verdade já que isto colocaria em evidência a dominação que
exerce sobre as outras classes. Já a classe dominada tem todo interesse em
que a verdade se manifeste porque isso só viria a patentear a exploração a
que é submetida, instando-a a se engajar na luta de libertação.
Eis aí o sentido da frase “a verdade é sempre revolucionária”. Eis aí tam
bém por que a classe efetivamente capaz de exercer a função educativa em
cada etapa histórica é aquela que está na vanguarda, a classe historicamente
revolucionária. Daí, o caráter progressista da educação. É este o sentido da
afirmação de Gramsci segundo a qual “a burguesia não consegue educar os seus
jovens”, os quais se deixam atrair culturalmente pelos operários; “os jovens [...]
da classe dirigente [...] se rebelam e passam para a classe progressista, que se
tornou historicamente capaz de tomar o poder” (Gramsci, 1968, p. 52).
De tudo o que foi dito, conclui-se que a importância política da educação
reside na sua função de socialização do conhecimento. É realizando-se na
especificidade que lhe é própria que a educação cumpre sua função política.
Daí ter eu afirmado que, ao se dissolver a especificidade da contribuição
pedagógica, anula-se, em conseqüência, a sua importância política.
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ESCOLA E DEMOCRACIA 71
As reflexões expostas podem ser ordenadas e sintetizadas nas teses
seguintes:
Tese 1: Não existe identidade entre educação e política.
COROLÁRIO: educação e política são fenômenos inseparáveis, porém
efetivamente distintos entre si.
Tese 2: Toda prática educativa contém inevitavelmente uma dimensão
política.
Tese 3: Toda prática política contém, por sua vez, inevitavelmente uma
dimensão educativa.OBS: As teses 2 e 3 decorrem necessariamente da inseparabilidade
entre educação e política afirmada no corolário da tese 1.
Tese 4: A explicitação da dimensão política da prática educativa está con
dicionada à explicitação da especificidade da prática educativa.
Tese 5: A explicitação da dimensão educativa da prática política está,
por sua vez, condicionada à explicitação da especificidade da prática
política.OBS: As teses 4 e 5 decorrem necessariamente da efetiva distinção entre
educação e política afirmada no corolário da tese 1. Com efeito, só é
possível captar a dimensão política da prática educativa, assim como
a dimensão educativa da prática política, na medida em que essas
práticas forem captadas como efetivamente distintas uma da outra.
Tese 6: A especificidade da prática educativa define-se pelo caráter de
uma relação que se trava entre contrários não-antagônicos.COROLÁRIO: a educação é, assim, uma relação de hegemonia alicer
çada na persuasão (consenso, compreensão).
Tese 7: A especificidade da prática política define-se pelo caráter de uma
relação que se trava entre contrários antagônicos.
COROLÁRIO: a política é, então, uma relação de dominação alicerçada
na dissuasão (dissenso, repressão).
Tese 8: As relações entre educação e política dão-se na forma de autonomia relativa e dependência recíproca.
Tese 9: As sociedades de classe caracterizam-se pelo primado da política, o
que determina a subordinação real da educação à prática política.
Tese 10: Superada a sociedade de classes, cessa o primado da política e,
em conseqüência, a subordinação da educação.
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72 DERMEVAL SAVIANI
OBS: Nas sociedades de classes a subordinação real da educação reduz
sua margem de autonomia mas não a exclui. As teses 9 e 10 apontam
para as variações históricas das formas de realização da tese 8.Tese 11: A função política da educação cumpre-se na medida em que
ela se realiza como prática especificamente pedagógica.
OBS: A tese 11 põe-se como conclusão necessária das teses anterio
res, que operam como suas premissas. Trata-se de um enunciado
analítico, uma vez que apenas explicita o que já está contido nas
premissas. Esta tese afirma a autonomia relativa da educação em face
da política como condição mesma da realização de sua contribuiçãopolítica. Isto é óbvio uma vez que, se a educação for dissolvida na
política, já não cabe mais falar de prática pedagógica restando apenas
a prática política. Desaparecendo a educação, como falar de sua
função política?
À luz das teses apresentadas, como interpretar o slogan expresso na frase
“a educação é sempre um ato político”? Obviamente, se se quer com isso afirmar a identidade entre educação e política tal slogan deve ser rejeitado. Há,
porém, duas situações em que essa afirmação pode ser levada em conta:
a) tomando-se o adjetivo “político” em sentido amplo em que a política
se identifica com a prática social global, como ocorre na afirmação
de Aristóteles: “o homem é um animal político”. Mas, nesse caso,
todo ato humano é político e cai-se, com isso, na tautologia e naindiferenciação. No limite isso se expressa em frases do tipo: tudo
é tudo, tudo é nada, nada é tudo, nada é nada. Com efeito, nesse
âmbito, podemos afirmar que tudo é político como tudo é educativo
ou outra coisa qualquer. Assim, comer, vestir, amar, brincar e cantar
são atos políticos, assim como são atos educativos etc.;
b) na medida em que se pretende evidenciar a dimensão política da
educação. Nesse sentido, dizer que a educação é sempre um ato
político não significaria outra coisa senão sublinhar que a educação
possui sempre uma dimensão política, independentemente de se
ter ou não consciência disso (conforme o enunciado da tese 2). E
aqui vale lembrar que a recíproca também é verdadeira e que esse
sentido não pode ser evidenciado senão quando se preserva a espe
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ESCOLA E DEMOCRACIA 73
cificidade de cada uma dessas práticas (conforme os enunciados das
teses 3, 4 e 5). Com efeito, eu só posso afirmar que a educação é um
ato político (contém uma dimensão política) na medida em que eucapto determinada prática como sendo primordialmente educativa
e secundariamente política.
Por fim, cumpre lembrar que o exercício lógico-conceitual feito neste
texto sobre as relações entre educação e política pode tanto auxiliar análises
de situações concretas como pode ser aplicado a outros domínios, como as
relações entre educação e religião, educação e arte, educação e ciência.
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ApêndiceSetenta anos do “Manifesto”
e vinte anos de Escola e democracia
balanço de uma polêmica*
tema deste texto gira em torno dadiferença entre a abordagem polêmica
e a abordagem historiográfica. Prelimi-
narmente penso ser relevante registrar
que, ao revisitar as teses provocativas
do livro Escola e democracia, não se está
pretendendo reabrir a polêmica instaurada no início da
década de 1980. Como toda produção humana, trata-sede um evento datado. O que se procura é lançar sobre ele
um olhar histórico buscando esclarecer os seus móveis e
o seu significado. No exercício desse olhar retrospectivo,
pretendo sugerir que, por efeito de um deslocamento
da análise do âmbito da abordagem polêmica para a
abordagem historiográfica, as teses enunciadas no livro
Trabalho apresentado no Coloquio Nacional 70 anos do Manifesto dos Pioneiros: um legado educacional em debate, realizado em Belo
Horizonte de 19 a 21 de agosto de 2002 e publicado em Mariado Carmo Xavier (org.), Manifesto dos pioneiros da educação: um legado educacional em debate, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2004,pp. 183-204.
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76 DERMEVAL SAVIANI
Escola e democracia foram lidas por uma certa corrente da historiografia da
educação brasileira nos anos de 1990 como uma espécie de “Manifesto contra
a Escola Nova” e, portanto, como uma espécie de anti-“Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, um anti-“Manifesto de 1932”. Daí a pertinência
dessa discussão ao ensejo da realização do coloquio comemorativo dos 70
anos do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”.
Esclareço, ainda, que essa iniciativa não quer significar a desautorização
das leituras com as quais se vai estabelecer interlocução. Um texto, quando
publicado, sai do controle de seu autor, ficando disponível para diferentes
tipos de leitura, não fazendo sentido, portanto, pensar-se em leituras autorizadas e leituras não-autorizadas. O juiz soberano de cada leitura é o
próprio leitor, não sendo admissível qualquer forma de interdição, ao menos
no que concerne às regras que se convencionou adotar numa comunidade
de intelectuais no contexto histórico em que nos encontramos. É claro que
essas mesmas regras implicam o respeito à fala do outro, o que significa que
deverão ser observados os requisitos técnicos de leitura e citação que evitem,
o máximo possível, eventuais distorções dos textos lidos, o que se impõe exatamente para garantir a plena liberdade de leitura, não devendo, em hipótese
alguma, servir de pretexto para qualquer tipo de interdição. Assim, o que se
apresenta a seguir é apenas um esforço no intuito de explicitar o significado
do evento que se expressou na polêmica então levantada partindo de suas
próprias motivações, à luz das quais são avaliadas as leituras interpeladas.
Para os que compreendem a historiografia como intento de captar o signi
ficado objetivo dos fenômenos históricos, dir-se-ia que o esforço em pautaconsistiria em repor o sentido próprio do objeto analisado. Para aqueles que
entendem a historiografia como sendo constituída por diferentes maneiras
de abordar os objetos históricos, expressando, portanto, diferentes pontos
de vista, nenhum deles capaz de apreender o sentido próprio dos fenômenos
investigados, caberá dizer que o presente texto expressa a leitura do autor
do livro Escola e democracia sobre seu próprio trabalho em interlocução com
determinado tipo de leitura que sobre ele se produziu. Vindo a público, elefica à disposição dos estudiosos da história da educação brasileira como
mais um elemento a ser considerado na busca de compreensão desse objeto.
Assim sendo, tem-se consciência de que, na condição de um novo texto
publicado, também ele escapará ao controle de seu autor e estará sujeito a
diferentes leituras.
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ESCOLA E DEMOCRACIA 77
Para tratar do tema proposto, o texto foi construído em cinco tópicos.
No primeiro, enuncio, de forma breve, qual é, para mim, a temática central
do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”. No segundo tópico, indicoque o livro E scola e democracia surgiu num contexto marcado, cinqüenta anos
depois, por uma motivação comum àquela que conduziu ao lançamento do
“Manifesto de 1932”: a defesa da escola pública. No terceiro tópico, abordo
a leitura da referida polêmica feita por Clarice Nunes. O quarto tópico,
denominado “Paschoal Lemme no ‘Manifesto’: um estranho no ninho dos
pioneiros?”, discute a leitura feita por Zaia Brandão. Finalmente, no tópico
quinto, “A Escola Nova exercitando a ‘teoria da curvatura da vara’”, procuroesclarecer a diferença entre a abordagem polêmica e a abordagem historio-
gráfica, eixo articulador de todo o texto.
1. A TEMÁTICA CENTRAL DO “MANIFESTO DOS PIONEIROS DA
EDUCAÇÃO NOVA”
Dado o caráter abrangente do coloquio que contou com a presença de
diversos estudiosos da questão, os temas básicos do “Manifesto” são abordados
e discutidos de forma pertinente em outras sessões do evento. Não é, pois,
meu objetivo tratar, de forma sistemática, das questões centrais do “Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova”. Apenas farei uma breve referência àquilo
que, para mim, constitui a sua temática central.Em minha leitura do “Manifesto”, a idéia central que sempre vem à tona
é a de que se trata de um documento de política educacional em que, mais
do que a defesa da Escola Nova, está em causa a defesa da escola pública.
Nesse sentido, o “Manifesto” emerge como uma proposta de construção de
um amplo e abrangente sistema nacional de educação pública, abarcando
desde a escola infantil até a formação dos grandes intelectuais pelo ensino
universitário. E esta me parece ser uma originalidade do caso brasileiro. Comefeito, na Europa (o caso dos Estados Unidos deve ser considerado à parte)
as iniciativas que integraram o Movimento da Escola Nova, via de regra, se
deram no âmbito das escolas privadas, ficando à margem do sistema público
de ensino. Mesmo nos casos em que se pretendeu atuar no âmbito do ensino
público, a tentativa fracassou, como foi o caso de Freinet, na França, que
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acabou sendo demitido de seu cargo como professor público no município
de Vence. Em conseqüência, fundou sua própria escola onde desenvolveu
suas experiências pedagógicas.Como documento de política educacional, o “Manifesto” expressa a
posição de uma corrente de educadores que busca firmar-se pela coesão
interna e pela conquista da hegemonia educacional diante do conjunto da
sociedade, capacitando-se, conseqüentemente, ao exercício dos cargos de
direção da educação pública tanto no âmbito do governo central como dos
estados federados.
O “Manifesto” apresenta-se, pois, como um instrumento político, como épróprio, aliás, desse “gênero literário”. Expressa a posição do grupo de educa
dores que se aglutinou na década de 1920, especialmente a partir da fundação
da Associação Brasileira de Educação (ABE) em 1924 e que vislumbrou na
Revolução de 1930 a oportunidade de vir a exercer o controle da educação
no país. O ensejo para isso se manifestou por ocasião da IV Conferência Na
cional de Educação realizada em dezembro de 1931, quando Getúlio Vargas,
chefe do governo provisório, presente na abertura dos trabalhos ao lado deFrancisco Campos, que se encontrava à testa do recém-criado Ministério
da Educação e Saúde Pública, solicitou aos presentes que colaborassem na
definição da política educacional do novo governo. O impacto gerado pela
solicitação de Vargas, que tumultuou a Conferência Nacional de Educação,
seguido da resposta objetivada no texto do “Manifesto” divulgado em março
de 1932, provocou o rompimento entre o grupo dos renovadores e o grupo
católico que decidiu retirar-se da ABE e fundar, em 1933, sua própria associação materializada na Confederação Católica Brasileira de Educação, que
realizou em 1934 o I Congresso Nacional Católico de Educação.
2. O CONTEXTO EM QUE SURGIU ESCOLA E DEMOCRACIA
A segunda metade da década de 1970 foi palco de um amplo processo
de reorganização do campo educacional, que assistiu à fundação de diversas
entidades em âmbito nacional. A par das associações de docentes da educação
básica e de nível superior, surgiu, em 1977, a Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) ; em 1978, articulou-se a criação
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do Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes), cuja ata de fundação
data de 5 de março de 1979; e em 1979 foi criada a Associação Nacional
de Educação (Ande). Recordo-me que, por ocasião da fundação da Ande,
discutimos a idéia de refundar a ABE caso ela tivesse sido extinta ou reanimá-
la, caso formalmente ainda continuasse existindo. À vista da constatação
de que ela ainda existia e verificando não ser possível reativá-la pela filiação
maciça do grupo que discutia a criação dessa nova entidade, decidiu-se pela
fundação da Ande. Assim, em lugar da Associação Brasileira de Educação,
surgiu a Associação Nacional de Educação, que, juntamente com a ANPEd
e o Cedes, organizou, a partir de 1980, a série das Conferências Brasileirasde Educação, as CBEs. Curiosamente, enquanto na década de 1920 surgia a
Associação Brasileira de Educação, que organizou as Conferências Nacionais
de Educação, no final da década de 1970 surgiu a Associação Nacional de
Educação, que foi uma das organizadoras das Conferências Brasileiras de
Educação. Ressalte-se que, à semelhança do “Manifesto de 1932”, o vetor
dessa mobilização do final da década de 1970 era também a reorganização da
educação pública, como o ilustra o “Decálogo em defesa do ensino público”editado em 1982 no número 5 da revista da Ande por Guiomar Namo de
Mello sob o pseudônimo de Kloé. Isto, porém, sem a pretensão explícita
de hegemonia que caracterizou o “Manifesto”, como registram as cartas de
Fernando de Azevedo a Anísio Teixeira, a exemplo daquela de 12 de março
de 1932 em que afirma: “é preciso estarmos vigilantes para obtermos desse
Manifesto todo o efeito que procuramos, já de irradiação de idéias, já de
consolidação do bloco ou do grupo que se vai lançar” (X avier, 2002, p. 29).De fato, a aspiração da Ande era elevar a qualidade do ensino público. Para
isso, buscou estreitar os laços entre os intelectuais da educação e os profes
sores da educação básica, o que foi definido como o objetivo prioritário da
revista fundada pela entidade.
A programação da I CBE, realizada nos dias 31 de março e 1o e 2 de abril
de 1980, previu um simpósio denominado “Abordagem política do funciona
mento interno da escola de primeiro grau” localizado no primeiro dia, logoapós a abertura oficial do evento. Como um dos três participantes da mesa
e o último a falar, diante do tema e das circunstâncias em que foi realizado o
simpósio, decidi imprimir um tom polêmico à minha exposição lançando mão
da metáfora da “teoria da curvatura da vara”. Partindo da suposição de que o
ideário da Escola Nova havia se tornado hegemônico e, nessa condição, havia
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ganhado a cabeça dos professores, imaginei que a esmagadora maioria das mais
de mil cabeças que compunham a platéia do simpósio havia aderido ao esco-
lanovismo. Defini, então, a linha de minha exposição que não estava baseadaem texto escrito: servindo-me da imagem da “curvatura da vara”, propus-me
a inverter a posição dominante que considerava a Escola Nova portadora de
todas as virtudes e de nenhum vício em contraposição à Escola Tradicional,
considerada portadora de todos os vícios e de nenhuma virtude. Em minha
exposição, empenhei-me em destacar os vícios da Escola Nova, exaltando,
em contrapartida, as virtudes da Escola Tradicional. A referida exposição foi
gravada e, depois de transcrita, publicada no número 1 da revista da Ande,
lançada em 1981. Posteriormente esse artigo, ao lado de outros três textos,
veio a compor o livro Escola e democracia, cuja 1ª edição data de 1983.
Assim, embora a publicação do livro date de setembro de 1983, o primeiro
capítulo, denominado “As teorias da educação e o problema da marginalida
de”, foi escrito e publicado originalmente em 1982 como artigo no número
42 de Cadernos de Pesquisa - Revista de Estudos e Pesquisas em Educação da
Fundação Carlos Chagas. O segundo capítulo, “Escola e democracia I: a‘teoria da curvatura da vara’”, resultou da exposição oral ocorrida no sim
pósio “Abordagem política do funcionamento interno da escola de primeiro
grau”, que integrou a programação da I CBE. O terceiro capítulo, “Escola
e democracia II: para além da ‘teoria da curvatura da vara’”, foi escrito e
publicado em 1982, no número 3 da revista da Ande. E o último capítulo,
“Onze teses sobre educação e política”, foi escrito em 1983 especialmente
para integrar essa publicação. Portanto, o conteúdo do livro Escola e demo -cracia foi produzido e divulgado entre 1980 e 1983. Assim, quando, em 2002,
comemoramos os 70 anos do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”,
o livro Escola e democracia chegava ao vigésimo ano de circulação.
Ao longo desses 20 anos, este livro foi objeto de muitas discussões,
especialmente o capítulo dois, que, intencionalmente, abriu uma polêmica
com a Escola Nova. Num primeiro momento, ocorrido ainda na década de
1980, as objeções vieram do interior das próprias teorias críticas da educação,em especial na sua vertente marxista, tendo alguns adeptos dessa tendência
considerado o livro não suficientemente alinhado com as teses do marxismo.
Em atenção a essas interpretações, no prefácio à 20ª edição (Saviani, 1988a),
redigido em janeiro de 1988, procurei esclarecer a relação entre as idéias aí
expostas e a visão marxista. O segundo momento situa-se já na década de
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1990, quando as objeções são formuladas no âmbito da história da educação,
mais especificamente dirigidas ao suposto viés historiográfico que atravessa
ria as análises apresentadas no livro. Sobre essas objeções mantive-me, atéagora, em silêncio.
Como assinalei no prefácio à 34ª edição (Saviani, 2001), redigido em
outubro de 2001, olhando à distância posso considerar que o impacto pro
vocado pela radicalidade da crítica que formulei suscitou reações com forte
teor de emotividade, o que não deixou de resultar em alguns equívocos
interpretativos. Assim, diante do convite formulado pelo professor Luciano
Mendes de Faria Filho ao propor a realização do coloquio, entendi que esseevento comemorativo dos 70 anos do “Manifesto”, aliado aos 20 anos da
crítica contundente divulgada no livro Escola e democracia, constituía uma
boa oportunidade para um balanço dos acertos e desacertos das interpretações
que se construíram em torno dessa questão.
Preliminarmente caberia assinalar, como já o fiz nos prefácios mencio
nados, que, embora a Escola Nova tenha sido posta no centro da polêmica,
Escola e democracia não é um livro contra a Escola Nova como tal. A denúncia da Escola Nova foi apenas uma estratégia visando a demarcar mais
precisamente o âmbito da pedagogia dominante, então caracterizada como
a pedagogia burguesa de inspiração liberal, em contraposição ao âmbito
de uma pedagogia emancipatória, então identificada com uma pedagogia
socialista de inspiração marxista. Portanto, não há nenhuma contradição
entre o conteúdo do livro e o reconhecimento do caráter progressista do
movimento da Escola Nova, em especial na formulação contida no “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, que, sob alguns aspectos, chegou
mesmo a ultrapassar a concepção liberal burguesa de educação, incorporando
propostas que se inserem na tradição pedagógica socialista.
Ao longo da década de 1990, deparei-me diversas vezes com textos cujos
autores declaravam pertencer a uma nova geração de pesquisadores em
história da educação dos anos noventa que, por oposição à geração dos anos
oitenta, estavam empenhados em resgatar a importância da Escola Nova nahistória da educação brasileira ou desvelar, com base em pesquisa de fontes,
o papel de seus protagonistas considerando-os nem como heróis, nem como
vilões. E, obviamente, entre os trabalhos citados da dita geração dos oitenta
lá se encontrava E scola e democracia. Ao ler esses textos dos novos autores,
constatava que, em geral, se tratava de trabalhos de boa qualidade conten-
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do considerações pertinentes e relevantes sobre o objeto analisado. Assim,
ficava com a impressão de que a menção aos anos de 1980 era desnecessária
porque não interferia no caráter da análise apresentada, além de, por vezes,não fazer justiça aos autores citados.
Por não me ter preocupado em colecionar todas as referências ao livro
Escola e democracia constantes nos textos produzidos por essa autodenomi
nada geração dos noventa e levando em conta, também, os limites dessa
exposição, vou restringir-me aos trabalhos de Clarice Nunes e de Zaia
Brandão, que, a meu ver, são não apenas paradigmáticos mas, além disso,
em especial aquele de Clarice Nunes, constituem referências para os demais.Com efeito, via de regra, os textos a que tive acesso e que invocam essa
condição de pertencimento à geração de novos pesquisadores em história
da educação, ao se reportar a Escola e democracia, geralmente tendem a se
apoiar nas críticas formuladas por Clarice Nunes. Um exemplo é o trabalho
de Marcus Vinicius Cunha (1995), que, na página 24, propõe explicitamente
o recurso a Clarice Nunes. Seguindo a mesma linha interpretativa dessa
autora, ele considera que “em Escola e democracia, que já se tornou tambémum clássico, o próprio Saviani parece não dar muita atenção aos cuidados
que cercaram seu trabalho anterior, há pouco comentado”. Declara, em
seguida, que eu, no livro indicado, estaria afirmando “categoricamente que
os princípios escolanovistas eram psicologistas” (idem, ibidem). No entanto,
no trecho que ele transcreve para documentar essa afirmação, fica claro que,
com a Escola Nova, teria havido um deslocamento de ênfase do lógico para
o psicológico, o que não significa a adoção do psicologismo e, muito menos,a sua afirmação categórica.
3. A “MANIPULAÇÃO DE CONCEITOS E DO PROCESSO HISTÓRICO”NO LIVRO ESCOLA E DEMOCRACIA, SEGUNDO CLARICE NUNES
As críticas de Clarice Nunes foram formuladas no contexto da produção
de sua tese de doutoramento, Anísio Teixeira: a poesia da ação, defendida na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e repetiram-
se em diferentes publicações. Aparecem no texto da tese (Nunes, 1991,
pp. 14-18) e são mantidas na publicação da tese em livro, em 2000, com o
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mesmo título Anísio Teixeira: a poesia da ação (Nunes, 2000, pp. 20-24). Uma
referência mais condensada é feita também no artigo “História da educação
brasileira: novas abordagens de velhos objetos”, publicada no número 6da revista Teoria & Educação (Nunes, 1992, pp. 157 e 180, notas 11 e 13).
Observo que na nota 11 se afirma:
Para uma revisão detalhada da obra de Nagle e da trajetória de apropriação
de sua matriz por autores como Vanilda Paiva, Dermeval Saviani, Guiomar Namo
de Mello e Paulo Ghiraldelli Jr., ver nosso projeto de tese de doutorado - “A
República Educadora (Os intelectuais e a constituição da hegemonia nos anos
vinte e trinta)” - RJ, Departamento de Educação da PUC-Rio, 1988.
Dado que esse projeto é mencionado também na própria tese assim como
no livro que dela resultou e no texto que vou comentar abaixo (Nunes,
1996, p. 38, nota 6), confesso que fiquei curioso e desejoso de examinar
esse trabalho no qual, como informado na nota, se encontraria uma análise
detalhada da questão que me envolve. No entanto, como ter acesso a umafonte desse tipo? Será que o Departamento de Educação da PUC-Rio arquiva
os projetos dos alunos e, assim, mesmo aqueles que não resultam nas teses
defendidas poderiam ser consultados?
Para efeitos desta exposição, vou tomar como referência o texto publicado
no livro Escuela Nueva en Argentina y Brasil, organizado por Silvina Gvirtz e
publicado por Miño y Dávila Editores, de Buenos Aires, em 1996. Todas as
observações que farei valem, igualmente, para as outras publicações, já queos enunciados são idênticos em todas elas. Faço essa escolha porque o livro
Escuela Nueva en Argentina y Brasil traz os textos apresentados no Primeiro
Seminário Binacional “Escola Nova na Argentina e no Brasil. Estado da
arte e perspectiva da investigação”, realizado no Instituto de Investigações
em Ciências da Educação da Universidade de Buenos Aires nos dias 22,
23 e 24 de agosto de 1995. Como tal, ensejou a manifestação de Ovide
Menin, diretor do instituto que sediava o evento. Trata-se de um respeitávelinvestigador, já de idade avançada e que, por isso, se pode dar à liberdade
de expressar suas opiniões sem se preocupar com a diplomacia acadêmica.
Nessa condição, não obstante se declarar não especialista no tema, após
destacar a importância do evento à vista da relevante contribuição trazida
pela Escola Nova, afirma:
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Por eso me ha llamado la atención que hombres como Dermeval Saviani
condenaran con notable desparpajo, hace más o menos una década, esta filoso
fía educacional. Critica que, a mi juicio, sea por sectarismo, sea por apresurado
análisis, no aportó nada o muy poco a la historia epistemológica de la pedagogía
contemporánea. Es que los marxistas también suelen producir estas piezas his
tóricas ligeramente dogmáticas [Menin, 1996, pp. 7-8].
Ignoro se Ovide Menin teve oportunidade de analisar o meu livro, seja
em português, seja na versão em espanhol publicada pela Editorial Monte
Sexto, de Montevidéu (Saviani, 1988b), seja, ainda, nos artigos publicadospela Revista Argentina de Educación (Saviani, 1983 a e 1987a) e na Revista de
la Educación del Pueblo, do Uruguai (Saviani, 1986a, 1986b e 1987b). O fato
é que, independentemente de tê-lo feito ou não, a espontaneidade de sua
manifestação e o caráter incisivo de sua afirmação segundo a qual minha crí
tica “não trouxe nada ou muito pouco à história epistemológica da pedagogia
contemporânea” são indícios da tendência a considerar as teses enunciadas
em Escola e democracia como formulações de caráter historiográfico em lugarde simples afirmações de caráter polêmico. E, a meu ver, é essa tendência
que marca a análise de Clarice Nunes que integra a mesma obra.
Passemos, então, ao exame das objeções formuladas.
No livro em questão, o texto de Clarice Nunes, denominado “A escola
nova no Brasil: do estado da arte à arte do estudo”, encontra-se entre as páginas
13 e 39 e contém três tópicos: “as representações instituídas” (pp. 14-20); “a
apropriação de Jorge Nagle e a defesa da tecnificação do campo educacional”(pp. 20-28); e “as representações instituintes” (pp. 28-37). O enquadramento
de meu trabalho encontra-se no segundo tópico, entre as páginas 23 e 27.
Preliminarmente se faz necessário observar que Clarice Nunes tem um
modo um tanto problemático de se apropriar das passagens dos textos a
que se reporta. Com efeito, não utilizando aspas nem itálico, ela produz no
leitor o efeito de considerar que está parafraseando os autores referidos. No
entanto, freqüentemente se trata de transcrições literais entremeadas comalguns conectivos ou palavras intercaladas no texto citado. É assim que
Clarice me insere em seu texto. Diz ela:
O Movimento da Escola Nova teria em sua base a concepção “humanista”
moderna, através da qual a visão de homem está centrada na existência, na vida,
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na atividade: a existência precederia a essência e a natureza humana é mutável.
A educação passa a centrar-se na criança (no educando), na vida, na atividade.
Há formas descontínuas na educação já que o ritmo vital é variado, determi
nado pelas diferenças existenciais ao nível dos indivíduos, e na medida em que
os momentos verdadeiramente educativos são considerados raros, passageiros,
instantâneos [1980, pp. 18-19 apud Nunes, 1996, p. 23],
Vejamos, agora, como está redigida a fonte dessa passagem citada. Para
facilitar a compreensão do leitor, colocarei em negrito os trechos transcritos
anteriormente por Clarice Nunes:
A concepção “humanista” moderna abrange correntes tais como o Pragma
tismo, Vitalismo, Historicismo, Existencialismo e Fenomenologia. Diferentemente
da concepção tradicional, esboça-se uma visão de homem centrada na existên
cia, na vida, na atividade. Não se trata mais de se encarar a existência como mera
atualização das potencialidades contidas “a priori” e definitivamente na essência.
Ao contrário; aqui a existência precede a essência. Já não há uma naturezahumana ou, dito de outra forma, a natureza humana é mutável, determinada
pela existência. Na visão tradicional dá-se um privilégio do adulto, considerado
o homem acabado, completo, por oposição à criança, ser imaturo, incompleto.
Daí que a educação se centra no educador, no intelecto, no conhecimento. Na
visão moderna, sendo o homem considerado completo desde o nascimento e
inacabado até morrer, o adulto não pode se constituir em modelo. Daí que a
educação passa a centrar-se na criança (no educando), na vida, na atividade.Admite-se a existência de formas descontínuas na educação. E isso em dois
sentidos: num primeiro sentido (mais amplo) na medida em que, em vez de se
considerar a educação como um processo continuado, obedecendo a esquemas
pré-definidos, seguindo uma ordem lógica, considera-se que a educação segue o
ritmo vital que é variado, determinado pelas diferenças existenciais ao nível
dos indivíduos; admite idas e vindas com predominância do psicológico sobre o
lógico; num segundo sentido (mais restrito e especificamente existencialista), namedida em que os momentos verdadeiramente educativos são considerados
raros, passageiros, instantâneos [Saviani, 1980, pp. 18-19].
Comparando-se os dois trechos citados, vê-se que a fonte foi truncada.
Retiraram-se passagens que, transcritas literalmente, foram postas fora
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do contexto em que se encontravam, mudando o seu sentido. Assim, a
concepção “humanista moderna” deixou de ser uma tendência ampla que
engloba diversas correntes como o pragmatismo, o vitalismo, o historicismo,o existencialismo e a fenomenologia, ficando reduzida ao “Movimento da
Escola Nova”. No entanto, o movimento da Escola Nova identifica-se mais
propriamente, do ponto de vista filosófico, com a corrente do pragmatismo,
não cobrindo, portanto, o amplo espectro da concepção “humanista” moderna.
É o que se passou também com as formas descontínuas da educação. Na
fonte faz-se referência a dois sentidos distintos, um amplo e o outro restrito
e especificamente existencialista. Na transcrição, os dois sentidos viraramum só. Ora, o segundo sentido, estando referido especificamente à corrente
existencialista, não se aplica à Escola Nova, que, embora admita, de modo
geral, a precedência da existência sobre a essência conforme o significado
amplo que aparece no livro de Suchodolski (1960), La pédagogie et les grands
courants philosophiques, que cito em nota de rodapé, nada tem a ver com o
existencialismo, como fica evidente no livro de Bollnow (1971), Pedagogia
e filosofia da existência, que também cito em nota de rodapé. Indício da relevância desse aspecto está no fato de que, no início do terceiro capítulo de
Escola e democracia, introduzi um tópico específico com o título “Pedagogia
nova e pedagogia da existência” (Saviani, 1983a, pp. 64-66) em que escla
reço que as expressões “pedagogia nova” e “pedagogia da existência” podem
ser consideradas sinônimos, com a condição, porém, de não se confundir
“pedagogia nova” com “escolanovismo” e nem “pedagogia da existência”
com “pedagogia existencialista”.Na página seguinte, Clarice afirma:
Para o autor, ao enfatizar a “qualidade do ensino”, a “escola nova” deslocou o
eixo das preocupações do âmbito político (relativo à sociedade em seu conjunto)
para o âmbito técnicopedagógico (relativo ao interior da escola), cumprindo, ao
mesmo tempo, uma dupla função: manter a expansão da escola nos limites supor
táveis pelos interesses dominantes e desenvolver um tipo de ensino adequado aesses interesses. Com isso, a “escola nova”, ao mesmo tempo que [sic] aprimorou
a qualidade do ensino destinado às elites, forçou a baixa da qualidade do ensino
destinado às camadas populares, já que sua influência provocou o afrouxamento
da disciplina e das exigências de qualificação nas escolas convencionais [1980,
pp. 24-25 apud Nunes, 1996, p. 24].
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Todo esse parágrafo, com exceção da expressão “para o autor”, é trans-
crição literal, embora não apareça entre aspas nem em itálico. Esse mesmo
trecho é também transcrito, da mesma maneira, no artigo “História daeducação brasileira: novas abordagens de velhos objetos” (p. 157), sendo
que, nesse caso, como aparece logo após uma referência a Jorge Nagle, o
leitor concluirá que se trata de uma passagem de autoria de Nagle. Confor
me Clarice esclareceu em e-mail a mim enviado, ocorreu aí um problema
técnico não detectado na revisão do texto da tese, que se reproduziu quando
do aproveitamento do mesmo material no artigo citado.
Voltando ao texto que estou comentando, na seqüência Clarice afirmaque, tendo incorporado a tese de Nagle relativa à “tecnificação do campo
pedagógico”, “Saviani não se dá ao trabalho de explorar a vislumbrada com
plexidade, em particular quando analisa o processo histórico concreto, e mais
especificamente o caso da sociedade brasileira. E não o faz porque suas teses
assim o exigem” (idem, p. 25). E menciona, na seqüência, as três teses que
aparecem no texto “Escola e democracia: a ‘teoria da curvatura da vara’”,
que figura como segundo capítulo do livro Escola e democracia:
a) do caráter revolucionário da pedagogia da essência e do caráter
reacionário da pedagogia da existência;
b) do caráter científico do método tradicional e do caráter pseudocien-
tífico dos métodos novos;
c) de como quando menos se falou em democracia no interior da escola
mais ela foi democrática e quando mais se falou em democracia menosela foi democrática.
Clarice toma, portanto, essas teses como se eu pretendesse que elas
fossem resultado de uma investigação historiográfica. No entanto, essas
teses foram enunciadas explicitamente no exercício de um procedimento
expresso na metáfora da “teoria da curvatura da vara”, conforme se encontra
registrado no texto do capítulo dois, sendo reiterado no início do capítulotrês, nos seguintes termos:
No texto anterior, partindo da suposição de que o ideário escolanovista
logrou converter-se em senso comum para os educadores, isto é, tornou-se a
forma dominante de se conceber a educação, enunciei teses polêmicas visando a
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contestar as crenças que acabaram por tomar conta das cabeças dos educadores.
Meu objetivo era reverter a tendência dominante. Uma vez que a concepção
corrente, na qual o reformismo acabou por prevalecer sobre o tradicionalismo,tende a considerar a pedagogia nova como portadora de todas as virtudes e de
nenhum vício atribuindo, inversamente, à pedagogia tradicional todos os vícios
e nenhuma virtude, empenhei-me, no texto citado, em demonstrar exatamente
o inverso. E o fiz por meio de três teses que enunciei e explicitei de modo sucinto
[...] [Saviani, 1983a, p. 62].
E, após reproduzir as três teses, acrescento:
Como se percebe de imediato, o próprio enunciado dessas proposições evi
dencia que, mais do que teses, elas funcionam como antíteses por referência às
idéias dominantes nos meios educacionais. É este sentido de negação frontal das
teses correntes que se traduz metaforicamente na expressão “teoria da curvatura
da vara”. Com efeito, assim como para se endireitar uma vara que se encontra
torta não basta colocá-la na posição correta, mas é necessário curvá-la do lado
oposto, assim também, no embate ideológico não basta enunciar a concepção
correta para que os desvios sejam corrigidos; é necessário abalar as certezas,
desautorizar o senso comum. E para isso nada melhor do que demonstrar a falsi
dade daquilo que é tido como obviamente verdadeiro demonstrando ao mesmo
tempo a verdade daquilo que é tido como obviamente falso. Meu objetivo, pois,
ao introduzir no debate educacional a “teoria da curvatura da vara” foi o de
polemizar, abalar, desinstalar, inquietar, fazer pensar [idem, p. 63].
É evidente, portanto, que eu me situava, nesse texto, no âmbito do debate
ideológico e não no plano da discussão historiográfica. Esse ponto parece-me
central para se compreender o viés interpretativo da maior parte das leitu
ras que se produziram a respeito do livro Escola e democracia, em especial
no campo da história da educação. Por isso voltarei a essa questão no final
deste texto. Espero, então, deixar claro que o procedimento denominado
de “teoria da curvatura da vara” é bastante usual no trabalho intelectual,tendo a própria Escola Nova dele se utilizado amplamente com a diferença de
que, para ela, esse procedimento seria instaurador da verdade ao passo que,
para mim, se apresenta tão-somente com o caráter de exercício intelectual
questionador das verdades instaladas.
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ESCOLA E DEMOCRACIA 89
Para não me alongar em excesso, abordo um último ponto relativo ao
papel da burguesia que Clarice considera ser o que lhe interessa em meus ar
gumentos. Diz ela: “Aproximamo-nos de Saviani quando visualiza a escolanova como mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante,
mas nos distanciamos dele quando manipula conceitos e o próprio processo
histórico para defender suas teses” (Nunes, 1996, p. 25).
De fato, se há alguma tese que eu defenda a respeito do papel da Escola
Nova no âmbito da sociedade burguesa é esta relativa ao mecanismo de re
composição da hegemonia da classe dominante. As teses que, segundo ela,
eu estaria defendendo por meio da manipulação de conceitos e do próprioprocesso histórico são, como se mostrou anteriormente, apenas antíteses
introduzidas com o objetivo de polemizar. E onde está a manipulação de
conceitos e do processo histórico? Clarice não mostra quando, onde, em que
passagens dos meus textos se encontraria tal manipulação.
Ao fim e ao cabo, ficamos, pois, com a seguinte conclusão. No funda
mental, Clarice aproxima-se de minha posição. As discordâncias expressas de
forma tão contundente e tão bem traduzidas por Ovide Menin com a palavra“desparpajo ", não passariam de um viés de interpretação decorrente do fato
de se ter tomado como conclusões de pesquisa historiográfica enunciados que
modestamente não pretendiam outra coisa senão questionar conceitos que
supus tivessem se imposto ao senso comum dos educadores, colocando-me,
portanto, no terreno da polêmica ideológica.
É evidente que o referido viés interpretativo em nada desmerece o imen
so trabalho baseado em pesquisa de fôlego que Clarice Nunes desenvolveupara sua tese de doutoramento e que se materializou no belo, profundo e
abrangente texto denominado sugestivamente Anísio Teixeira: a poesia da
ação. Simplesmente entendo que os comentários a meu respeito incluídos no
primeiro tópico do texto, denominado “A educação do educador”, que fun
ciona como uma espécie de introdução ao tema específico da tese que versa
sobre Anísio Teixeira, não eram exigidos pela pesquisa realizada. Portanto,
suas críticas formuladas ao meu trabalho nenhum influxo exerceram sobreo caráter, a consistência e a qualidade de sua investigação. A menos que
ela considere que meu trabalho serviu como uma provocação e, pois, como
uma motivação para que ela mergulhasse a fundo nos arquivos e retornasse
à superfície com um Anísio Teixeira reconstituído em toda a sua riqueza
como homem, intelectual, político e educador dos mais brilhantes que nosso
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90 DERMEVAL SAVIANI
país já produziu. Nesse caso eu me daria por feliz em ter contribuído, ainda
que pelo avesso, para esse resultado. O que, então, estaria mostrando que
a polêmica instaurada não foi tão inócua ou tão negativa como sua críticapretendeu mostrar.
4. PASCHOAL LEMME NO “MANIFESTO”: UM ESTRANHO NO NINHODOS PIONEIROS?
Na pesquisa desenvolvida em função de sua tese de doutoramento,Zaia Brandão retoma a abordagem de Escola e democracia limitando-se ao
texto “Escola e democracia: a ‘teoria da curvatura da vara’”, que, como já
foi informado, veio a compor o segundo capítulo do livro. Neste texto tomo
como referência a publicação da tese sob a forma do livro A intelligentsia
educacional - Um percurso com Paschoal Lemme por entre as memórias e as
histórias da Escola Nova no Brasil (Brandão, 1999). O texto é construído de
forma instigante, procurando conduzir o leitor não apenas aos resultadosda investigação, mas também aos caminhos percorridos para se chegar às
conclusões apresentadas. Do ponto de vista técnico-formal, apenas obser
vo que, ao efetuar as transcrições, com a conseqüente remissão às páginas
correspondentes, Zaia tomou por base a publicação dos Anais da I CBE,
enquanto na bibliografia do livro não aparecem os Anais e sim a 1- edição
do livro Escola e democracia. Isso dificulta ao leitor a identificação da fonte
utilizada e sua consulta para um eventual confronto.A análise de meu trabalho localiza-se no item 1.3. da primeira parte,
denominada “A desconstrução da memória/monumento: Dermeval Saviani
e a fixação de uma nova memória”. Em princípio, não tenho objeção a esse
enunciado, uma vez que, de fato, no texto referido eu me propus, pelo pro
cedimento da “teoria da curvatura da vara” já comentado no item anterior,
a desconstruir a memória instalada que certamente resultou da construção
operada pelos Pioneiros, de modo especial por Fernando de Azevedo, aliásmuito bem analisada na tese de Marta de Carvalho, Molde nacional e forma
cívica, defendida em 1986 e publicada como livro em 1998. No entanto, é
bom que se frise, eu não tinha em mira propriamente efetuar a crítica do
trabalho dos Pioneiros, mas desmontar o modo como o ideário da Escola
Nova se fixou na cabeça dos professores.
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ESCOLA E DEMOCRACIA 91
Em sua explanação, Zaia Brandão revela ter feito uma leitura atenta do
texto, citando adequadamente e mantendo, quando parafraseia, o sentido
captado na fonte utilizada. Sua interpretação, porém, participa do mesmo viésde considerar as idéias por mim expostas como expressão de uma pesquisa
historiográfica, como o ilustra a seguinte passagem:
O problema deste tipo de análise é o de trabalhar no horizonte da substituição
da memória-legada, pelo seu avesso: uma espécie de memória-negada.
A despositivação da memória dos pioneiros acabou positivando uma nova
memória como a verdadeira. Apesar da lógica dessa análise, ela é bem pouco
histórica, em minha concepção de fazer história [idem, pp. 42-43].
A essa passagem eu retrucaria: o problema desse tipo de interpretação é
que, no caso em tela, não estava em causa o fazer história. Logo, como diria
Gramsci (1978, p. 261), não se deve “confundir uma linguagem polêmica
com um princípio gnosiológico”. Mas, como já assinalei, no próximo item
penso esclarecer essa questão. Antes, porém, me parece necessário abordarum outro aspecto da tese de Zaia Brandão que se refere à própria motivação
que a levou a tomar Paschoal Lemme como objeto de estudo.
Zaia relata que seu interesse pelo estudo do pioneiro Paschoal Lemme
decorreu da constatação de que se tratava de um marxista que, como tal,
estaria pouco à vontade entre os signatários do “Manifesto”, tendo em vista
“o silenciamento da matriz marxista pelo pensamento liberal hegemônico,
no campo da educação” (Brandão, 1999, p. 11). Em termos mais explícitos,diz Zaia: “Minha pesquisa, ao “recuperar” a reflexão de inspiração marxista
entre os Pioneiros, poderia contribuir, ainda, para comprovar uma outra face
da desmobilização dos movimentos populares pelo “escolanovismo”: a que
marginalizava do debate educacional aquela reflexão” (idem, ibidem).
Mas Paschoal Lemme, ao ser abordado por Zaia Brandão, longe de se
considerar um “estranho no ninho” dos Pioneiros, sentia-se plenamente
integrado no meio deles. E recomendava à pesquisadora que revisse seuponto de partida: “... Procure eliminar de seu trabalho a idéia de que eu
tenha sofrido restrições ou ‘silenciamento’ por parte dos ‘Cardeais’, depois
que passei a trilhar um caminho independente em relação às concepções que
eles adotavam sobre o ‘fenômeno da educação”’ (idem, p. 12), aconselhou
ele a Zaia Brandão.
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92 DERMEVAL SAVIANI
E Zaia prossegue seu relato descrevendo as vicissitudes de sua aproxi-
mação com Paschoal Lemme, em que se foi firmando a convicção contrária
àquela corrente historiográfica, basicamente de inspiração marxista, quevinha “transmutando” os Pioneiros “de heróis em vilões” (idem, p. 13),
corrente esta em que, obviamente, fui enquadrado enquanto responsável
pela “desconstrução da memòria-monumento e a fixação de uma outra
memória: a do escolanovismo” (idem, p. 23). Nesse movimento ela, enfim,
libertou-se do “hábito maniqueísta” que não a “deixava entrever a possibi
lidade de haver um mínimo de compatibilidade entre ‘liberais’ e ‘marxistas’
na formulação de um projeto educacional, àquela época e naquelas circunstâncias” (idem, p. 15).
Penso ser necessário registrar, neste ponto, que aquilo de que se trata no
relato previamente sumariado diz respeito à leitura que Zaia estava fazendo
do movimento da Escola Nova e da historiografia desse movimento, o que
não quer dizer que os representantes dessa historiografia coincidissem com
essa leitura. De minha parte, pelo menos, não me reconheço nessa leitura.
Com efeito, não só não via incompatibilidade entre “liberais” e “marxistas”na formulação de um projeto educacional, àquela época e naquelas
circunstâncias, como, ao contrário, me manifestei pela efetiva existência
dessa compatibilidade. Isto está explícito no próprio texto citado por Zaia,
como se pode verificar exatamente na passagem em que sou acusado de
“apagar todas as diferenças, ambigüidades e contradições que atravessaram
a história do movimento de escola nova, entre nós” (idem, p. 45). Trata-se
da passagem em que afirmo que “aqueles movimentos sociais, de origem, porexemplo, anarquista, socialista, maximalista que conclamavam o povo a se
organizar e reivindicavam a criação de escolas para os trabalhadores, esses
perderam a vez, e todos os progressistas em educação tenderam a endossar
o credo escolanovista” (idem, pp. 44-45). Ora, se todos os progressistas,
inclusive os marxistas, tenderam a endossar o credo escolanovista, então
havia compatibilidade entre marxistas e liberais.
É certo que aí, em razão do objetivo polêmico, o discurso é radicalizado,permitindo a interpretação de que o escolanovismo teria absorvido todas
as tendências e anulado as diferenças. No entanto, o que está em causa é
a percepção de que o objetivo modernizador colocou lado a lado liberais
e marxistas, compatibilizando-os, portanto. Referi-me a essa questão no
texto “O pensamento de esquerda e a educação na República brasileira”
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ESCOLA E DEMOCRACIA 93
(Saviani, 1991) que correspondeu à conferência proferida no evento “Um
século de educação republicana” realizado na Faculdade de Educação da
Unicamp em novembro de 1989. Aí eu me reporto ao refluxo do movimentoanarquista e ao surgimento do Partido Comunista, que passa a se tornar
predominante no pensamento de esquerda; registro, ainda, a tese abraçada
pelo Partido Comunista de que era necessário, primeiro, realizar a revolução
democrático-burguesa como condição para se colocar, posteriormente, a
questão da revolução socialista. E faço a seguinte observação:
Nesse sentido, talvez, e essa é mais uma hipótese a ser estudada, passamos
a entender melhor por que, do ponto de vista educacional, não se chegou a uma
formulação mais clara de uma proposta educacional de esquerda, de uma pro
posta educacional marxista, de uma proposta educacional específica do Partido
Comunista [idem, p. 63].
E reforço esse enunciado, à guisa de conclusão:
Isso fica como hipótese a ser melhor investigada no sentido de se verificar
em que grau essa perspectiva de uma revolução democrático-burguesa posta para
as forças de esquerda permitia que elas se sentissem sintonizadas com o ideário
escolanovista enquanto um ideário pedagógico que visava traduzir, do ponto
de vista educacional, essa perspectiva e esse objetivo da chamada revolução
democrático-burguesa [idem, ibidem].
Ora, parece claro nessas citações, em um texto que, embora não sendo
um estudo de caráter estritamente historiográfico, tem um certo caráter
analítico e não foi construído com o objetivo de polemizar, que não há um
empenho em se “apagar as diferenças, ambigüidades e contradições”, mas
se está, ao contrário, procurando compreender o processo histórico e, fora
de qualquer perspectiva teleologica da história e de qualquer dogmatismo,
cautelosamente apresenta um enunciado na condição de hipótese a ser maisbem investigada.
Em suma, o que estou querendo mostrar é que o ponto de partida da
pesquisa de Zaia Brandão, o silenciamento do marxismo, de modo geral, e
de Paschoal Lemme, em particular, pelo pensamento liberal hegemônico
não coincide com a minha visão dessa questão e, portanto, não poderia ser
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tributada à “fixação de uma outra memória: o escolanovismo”, da qual eu
teria sido o principal mentor (Brandão, 1999, pp. 23 e 40-46). Para mim
foi ficando claro, desde as primeiras leituras do “Manifesto”, que não setratava de um texto homogêneo, o mesmo ocorrendo com o grupo dos
Pioneiros. E, se essa leitura não fosse suficiente, eu estava sendo alertado
para o problema na interlocução com Luiz Antônio Cunha por meio de
suas intervenções incidentais sobre o tema no decorrer dos debates que
travamos entre 1978 e 1981 no grupo de doutoramento em educação
da PUC de São Paulo, lembrando que, além de Paschoal Lemme, entre
os signatários do “Manifesto” “podem ser tidos como socialistas: RoldãoLopes de Barros, Hermes Lima, Edgard Sussekind de Mendonça” (Cunha,
1994, p. 146). O próprio Fernando de Azevedo, em seu esboço autobiográ -
fico escrito na terceira pessoa e publicado no livro Figuras de meu convívio,
declara-se socialista:
Suas idéias socialistas não resultaram apenas de leituras a que se atirou com
sofreguidão, quando se rompeu o seu isolamento, nem só de meditação e de reflexões teóricas. Elas tinham fundas raízes, na observação das coisas e do mundo
em que mergulhou, por um encontro inesperado com as classes pobres em cuja
intimidade lhe permitiu entrar um emprego obtido (e com que dificuldades!)
para cuidar de sua subsistência e poder prosseguir em seus estudos de direito.
Era o de um modesto auxiliar no escritório de conferentes no Loide Brasileiro
[Azevedo, 1973, p. 227].
Sobre as leituras, mencionadas de passagem, ele informa-nos em outra
obra, História de minha vida:
Eu vinha lendo, desde que deixei a Ordem Religiosa, duas obras quase in
teiramente desconhecidas entre nós, - as de Karl Marx e de Engels, de um lado,
e a de Émile Durkheim, de outro. Aquelas, sobre o Socialismo, e esta, sobre a
Sociologia [...]
Rigorosamente fiel ao princípio, que impõe distinção fundamental entre
ciência e ideologia, eu acabei tornando-me sob a inspiração de Karl Marx, um
socialista, e, sob outras influências, - as de Durkheim, - sociólogo e um dos
fundadores da Sociologia no Brasil [Azevedo, 1971, p. 210].
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ESCOLA E DEMOCRACIA 95
No esboço autobiográfico, Azevedo informa que a idéia e a aspiração de
uma nova “era clássica” anunciada por Lunatscharsky lhe eram muito caras,
concorrendo para suas idéias socialistas. E declara-se “socialista, homem deesquerda, como se diria depois [...]” (Azevedo, 1973, p. 225).
Esses depoimentos de Fernando de Azevedo mostram que, efetiva
mente, o contexto em que surgiu o Manifesto, com as características das
subjetividades de seus protagonistas, precisa ser compreendido na sua es
pecificidade, não sendo redutível a esquemas simplificados e, muito menos,
maniqueístas. Isso, por outro lado, não significa desconhecer que havia, sim,
para o grupo hegemônico do movimento da Escola Nova no Brasil da épocado “Manifesto”, à testa o próprio Fernando de Azevedo, uma desconfiança
em relação ao pensamento de esquerda, em especial ao marxismo. Disso
dá conta o texto de Marta de Carvalho, “O novo, o velho, o perigoso: re
lendo a Cultura Brasileira”, publicado em 1989 no número 71 de Cadernos de
Pesquisa e citado por Zaia Brandão em sua tese de doutoramento. Não deixa
de ser surpreendente, e também curioso, o enquadramento do socialismo na
sociologia positivista operado pelo pioneiro considerado por Luiz AntônioCunha o líder da tendência liberal elitista. Ganha todo o sentido, portanto,
o enunciado de Antonio Candido em entrevista a Maria Luiza Penna: “se
não aceitarmos a contradição, não entenderemos Fernando de Azevedo.
Todo ele é contraditório” (Cunha, 1994, p. 140).
5. A ESCOLA NOVA EXERCITANDO A “TEORIA DA CURVATURADA VARA”
No início do segundo capítulo de Escola e democracia, inseri uma nota
em que lembro que o procedimento nomeado pela metáfora da “teoria da
curvatura da vara” é, de certo modo, uma característica da filosofia, podendo
ser encontrado nos diálogos platônicos, na expressão maior da filosofiamedieval, a Summa Theologica de Tomás de Aquino, por meio da expressão
videtur quod non, e em Descartes, com a dúvida metódica, adquirindo sua
máxima expressão teórica com o advento da filosofia especificamente dialé
tica inaugurada por Hegel (Saviani, 1983, p. 63). Poderíamos, no entanto,
considerar que se trata de uma atitude que se estende para além do campo
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96 DERMEVAL SAVIANI
estritamente filosófico, manifestando-se como uma característica bastante
comum no âmbito do trabalho intelectual.
Enquanto metáfora, a “teoria da curvatura da vara” é uma figura delinguagem. A corrente da filosofia analítica da educação, entendendo que
a filosofia diz respeito à clareza e consistência dos enunciados relativos aos
fenômenos e não aos fenômenos propriamente ditos, considera que o papel
da filosofia da educação é fazer a assepsia da linguagem educacional, depu
rando-a de suas inconsistências e ambigüidades. Como tal, essa corrente tem
operado análises de diferentes tipos sobre a lógica do discurso pedagógico.
Israel Scheffler, no livro A linguagem da educação, examina, além dasmetáforas educacionais, as definições em educação, os slogans educacionais
e explora mais detidamente os vários contextos de uso do verbo “ensinar”
em correlação com o verbo “dizer”.
No capítulo dois, tratando dos slogans educacionais, Scheffler começa
por mostrar a diferença entre eles e as definições; enquanto estas são consi
deradas esclarecedoras, aqueles são estimulantes, tendo por função unificar
as idéias e atitudes dos movimentos educacionais: “exprimem e promovem,ao mesmo tempo, a comunidade de espírito, atraindo novos aderentes e
fornecendo confiança e firmeza aos veteranos” (Scheffler, 1974, p. 46). Do
mesmo modo que os slogans religiosos e políticos, os slogans educacionais
resultam de espírito partidário. Diante disso, Scheffler considera “ocioso
criticar um slogan por inadequação formal ou por inexatidão na transcrição
do uso” (p. 46), mas entende haver uma importante analogia entre eles e as
definições. Assim, embora os slogans sejam símbolos unificadores de idéiase atitudes, “com o correr do tempo, entretanto, muitas vezes os slogans
passam progressivamente a ser interpretados de maneira mais literal, tanto
pelos aderentes como pelos críticos dos movimentos que eles representam”
(idem, pp. 46-47). Por esse caminho, eles tendem a ser considerados “como
argumentos ou doutrinas literais, e não mais simplesmente como símbolos
unificantes” (idem, p. 47).
No caso da educação, sublinha Scheffler, diferentemente do âmbitopolítico e religioso, os seus agentes não estão sob o controle de uma doutrina
oficial nem se encontram organizados em grupos confessionais. Nessas
circunstâncias, “as idéias educacionais, formuladas primeiramente em
textos cuidadosamente elaborados e muitas vezes difíceis, cedo tornam-se
influentes em versões popularizadas entre os professores” (idem, ibidem).
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ESCOLA E DEMOCRACIA 97
E não há como controlar esse processo submetendo-o a uma disciplina ou
liderança que preserve a concepção em sua formulação original. Scheffler
resume suas considerações afirmando ser necessária uma crítica dos slogans tanto pelo aspecto literal quanto pelo aspecto prático, devendo as doutrinas
originárias ser objeto de uma avaliação independente.
À luz dessa análise, considero relevante registrar que a crítica que for
mulei ao ideário escolanovista por meio da “teoria da curvatura da vara”
incidiu sobre as versões popularizadas, isto é, como se disse, sobre o modo
como esse ideário se fixou na cabeça dos professores. Em nenhum momento
esteve em causa as elaborações dos Pioneiros. Eis por que considerei nãopertinentes as referências ao meu trabalho na tese de Clarice Nunes, já que
Anísio Teixeira nunca esteve em pauta nas críticas que enderecei ao referido
ideário. Igualmente, agora no caso da tese de Zaia Brandão, nunca pus em
questão, no texto por ela citado, os trabalhos de Paschoal Lemme, Fernando
de Azevedo e Anísio Teixeira.
Mas, voltando ao livro de Scheffler, na seqüência ele vai tomar justa
mente o exemplo da influência de Dewey, observando que “suas afirmaçõessistemáticas, cuidadosamente formuladas e bem especificadas”, logo se
traduziram em “fragmentos de impacto que serviriam como slogans para as
novas tendências progressistas da educação americana” (idem, ibidem). E,
apesar da reação de Dewey criticando essa forma de utilização de suas idéias,
o que não deixou de ser levado em conta, dada a sua condição de líder inte
lectual inconteste do movimento renovador, “os slogans progressistas foram,
cada vez mais, assumindo uma vida própria passando a ser defendidos comoafirmações literais e atacados como tais” (idem, p. 48).
Após esses esclarecimentos, Scheffler passa a analisar detidamente os
slogans “ensinamos crianças, não matérias” e “não pode haver ensino sem
aprendizado”, os quais se inserem no processo de difusão da Escola Nova.
Para efeitos desta minha exposição me limitarei a uma breve referência ao
enunciado “ensinamos crianças, não matérias”. O que queremos dizer com
essa expressão? Do ponto de vista gramatical, ela não se sustenta, uma vezque o verbo “ensinar” é bitransitivo, comportando, pois, tanto o objeto direto
como o indireto. Na verdade não é possível, gramaticalmente, dizer que se
ensina nada a alguém, nem que se ensina algo a ninguém. De fato, a ação
de ensinar implica que algo seja ensinado a alguém. Portanto, deveríamos
dizer que “ensinamos matérias às crianças”, não fazendo sentido a afirmação
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de que “ensinamos crianças, não matérias”, do mesmo modo que não faria
sentido afirmar que “ensinamos matérias, não crianças”. Então, qual é a razão
do enunciado? Ora, ele justifica-se exatamente na medida em que não setrata de uma definição, mas de um slogan. E, enquanto slogan, tem o caráter
de um símbolo aglutinador de adeptos em torno da idéia da centralidade da
criança no processo educativo. Em outros termos, partindo da consideração
de que as atenções dos educadores se haviam voltado excessivamente para
as matérias, para o conteúdo da aprendizagem, deixando em segundo plano
as crianças, que são, ao fim e ao cabo, a razão de ser do processo educativo,
cunhou-se o lema “ensinamos crianças e não matérias” visando a alertaros professores para o fato de que sua preocupação principal deve girar em
torno dos educandos, a partir de cujos interesses o currículo e, portanto, o
conteúdo devem ser organizados.
Impõe-se, pois, a conclusão: “ensinamos crianças, não matérias” é um
slogan que a Escola Nova lançou contra a Escola Tradicional. Em outros
termos, considerando que, com a predominância da Escola Tradicional, a
vara foi entortada para o lado das matérias, a Escola Nova, exercitando a“teoria da curvatura da vara”, buscou curvar a vara para o lado da criança.
Ao fazê-lo, entretanto, por aquele mecanismo descrito por Scheffler segundo
o qual os slogans passam a ser defendidos como afirmações literais, o enunciado
difundiu-se como se fosse a pura expressão de uma verdade pedagógica. Eis
por que afirmei, anteriormente, que a Escola Nova se tem utilizado ampla
mente da “teoria da curvatura da vara”, considerando-a, diferentemente do
uso feito por mim, como um dispositivo instaurador da própria verdade.
Pergunto, então: por que, ao lançar mão da “teoria da curvatura da
vara”, acabei sendo acusado de manipular conceitos e o próprio processo
histórico com o intuito de impor minhas teses sobre “base empírica capenga”
(Nunes, 1996, p. 26), utilizando “esquemas analíticos globais prévios para
o desenvolvimento das interpretações desejadas” (Brandão, 1999, p. 43),
beirando à acusação de desonestidade, conforme o significado de “manipula
ção” aí implicado, isto é, “manobra oculta ou suspeita que visa à falsificação
da realidade” (Houaiss, 2001, p. 1.838)? Ora, como já observei, a “teoria
da curvatura da vara” é utilizada com bastante freqüência nos debates in
telectuais, mas principalmente nas disputas desportivas, religiosas, políticas
e ideológicas. E, como regra geral, esse uso tende a tomar os enunciados
correspondentes à figura de linguagem dos slogans como se fossem afirmações
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literais, vale dizer, expressões verdadeiras. A esse uso, entretanto, não se
imputa o epíteto da manipulação ou da desonestidade. Em contrapartida,
o uso que fiz foi de uma honestidade a toda prova. Com efeito, em nenhummomento deixei pairar no ar a suspeita de que eu tivesse a pretensão de
enunciar alguma verdade ao me servir da “teoria da curvatura da vara”. Ao
contrário, declarei em alto e bom som, deixei explícito com todas as letras
que eu estava curvando a vara para o outro lado; que eu estava, portanto,
forçando a barra; estava invertendo o modo corrente de pensar. E justamente
esse uso que nada ocultou, que pôs às claras o dispositivo que estava sendo
acionado, exatamente esse uso veio a ser taxado de manipulador!Em suma, como ensina a filosofia analítica, é necessário distinguir os
contextos de uso dos enunciados que compõem um discurso. Ou, como
assinalou Gramsci a propósito da crítica de Croce à concepção marxista de
“superestrutura ideológica”:
Algumas questões postas por Croce são puramente verbais. Quando ele
escreve que as superestruturas são concebidas como aparências, não pensa queisso pode significar simplesmente alguma coisa de similar à sua afirmação da não
“definitividade”, ou seja, da “historicidade” de toda filosofia? Quando, por razões
“políticas”, práticas, para tornar um grupo social independente da hegemonia
de um outro grupo, fala-se de “ilusão”, como é possível confundir, de boa-fé,
uma linguagem polêmica com um princípio gnosiológico? [Gramsci, 1975,
pp. 1.298-1.299, negritos meus].
E era isso o que estava em causa na virada da década de 1970 para a
de 1980: tornar o grupo social dos professores autônomo em relação a um
ideário que ele havia acolhido sem crítica e sem “benefício de inventário”.
Não estava em jogo desvelar uma suposta “verdadeira história dos Pionei
ros da Educação Nova” nem a “fixação de uma outra memória”. Por isso, o
contexto do discurso era a polêmica e não a historiografia.
Concluindo, espero, pela discussão que procurei fazer do tema relativoà controvérsia instaurada com a introdução da metáfora da “teoria da
curvatura da vara” e dos usos que dela se fizeram na pesquisa historiográfica,
ter contribuído, ao estabelecer a distinção entre os planos da polêmica e da
historiografia, para o debate em torno do legado educacional dos Pioneiros.
Um legado rico que, como assinalou Libânia Nacif Xavier, representa
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um “divisor de águas” na historia da educação brasileira: “interferiu na
periodização de nossa história educacional, estabelecendo novos marcos e
fornecendo novas valorações a determinados princípios e idéias, e a certasrealizações no campo educacional” (Xavier, 2002, p. 71). Gostaria, assim,
que minha crítica aos trabalhos que examinei neste texto fossem tomadas
no sentido positivo de ajudar a refinar melhor nossas categorias teóricas e o
móvel de nossas investigações, alertar-nos para o uso adequado das fontes
em relação ao objeto de que tratamos, evitando desfocá-las do âmbito em
que foram produzidas e dos alvos que buscaram atingir, e advertir-nos da
importância dos procedimentos relativos à forma da exposição dos resultadosa que chegamos de modo que possibilite sua compreensão clara por parte dos
leitores. Espero, enfim, ter contribuído na busca da superação dos equívocos
interpretativos que a circulação dos nossos trabalhos acaba inevitavelmente
por provocar. Foi tão-somente o espírito de somar esforços no fortalecimento
de nossa área de investigação que me moveu a enfrentar esse debate,
rompendo o silêncio em torno das interpretações produzidas no âmbito da
historiografia da educação brasileira sobre o meu trabalho.
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AnexoCarta de Zaia Brandão
Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2002
Caro Saviani,
Somente hoje, com muito interesse e grande respeito,
consegui ler o artigo que você me enviou há dias. Conti-
nuar um diálogo, compatível com o cuidado com que o
texto foi desenvolvido, exigiria certamente muito maistempo do que disponho, pela sua demanda. Entretanto,
não gostaria de interromper o que julgo a via áurea da
produção acadêmica: o debate entre pares. Esta é a razão
porque optei pela carta. Escrevo no mesmo dia em que
fiz a leitura.
Tratarei diretamente da parte em que dialoga com a
minha leitura a respeito do texto que você apresentouna lª CBE, e que foi publicado em Escola e democracia
(1983). Ele foi um dos seis textos que utilizei na primeira
parte de minha tese que versava sobre a desconstrução
da memória-monumento de Fernando de Azevedo sobre
o Movimento da Escola Nova no Brasil.
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102 DERMEVAL SAVIANI
Você começa seu artigo mais recente explicitando o contexto e as
intenções do autor (você) do texto apresentado oralmente na 1ª CBE e,
posteriormente, publicado como “Escola e democracia I: a teoria da curvatura da vara”. Assinala o seu caráter polêmico e caracteriza a transposição
indevida deste texto por alguns dos seus leitores (incluindo-me entre eles)
para o campo da historiografia. Neste sentido, cita Gramsci: [...] como é
possível confundir, de boa-fé, uma linguagem polêmica com um princípio
gnosiológico? (p. 22).
Embora sua argumentação me tenha alertado sobre a impropriedade de
tomar seu texto como historiográfica, explicito abaixo o contexto e a “intenção”de meu texto — pelo menos no que consigo recuperar “dela” por meio de
um retomo reflexivo sobre a minha tese de doutorado — na expectativa de
evidenciar que, apesar do equívoco no tratamento que dei a seu texto, não
houve má-fé na utilização que fiz dele.
Do meu ponto de vista, aquele texto desempenhou um importante
papel na constituição de uma nova interpretação sobre a Escola Nova no
Brasil, ainda que a intenção do autor não tenha sido produzir historiografia.Na época em que comecei a pesquisa sobre a presença de Paschoal Lemme
entre os Pioneiros (final da década de 1980), dominava na área da educação
um imaginário bastante negativo sobre o protagonismo político da Escola
Nova no Brasil. Minha intenção (objetivo da pesquisa) então, era construir
uma interpretação do mesmo movimento tomando como material empírico
o testemunho/depoimento de Paschoal Lemme e as fontes históricas que o
percurso por entre essas memórias fossem me sugerindo ou oferecendo. Naintrodução do meu texto, que você conhece, explicito detalhadamente esse
percurso, inclusive indicando a suposição inicial de que a Escola Nova no
Brasil tivesse contribuído para inviabilizar uma efetiva democratização do
ensino, fundamentada em boa parte na sua apresentação na 1ª CBE.
Do que consigo me lembrar, neste esforço de retorno reflexivo, o diálogo
com o seu texto não estava claramente previsto ao iniciar a pesquisa, embora
a sua análise da Escola Nova estivesse, conforme assinalei anteriormente,subjacente ao problema que suscitou a pesquisa; a importância do autor
daquele texto no cenário educacional e, muito especialmente, a polêmica
que levantara sobre o papel da Escola Nova não teriam como estar de fora do
“idioma geral” do campo acadêmico à época em que comecei a desenvolver
a minha pesquisa.
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ESCOLA E DEMOCRACIA 103
Na medida em que prosseguia no percurso com Lemme por entre as
memórias dos Pioneiros, a interlocução com a memória de Fernando de
Azevedo foi se tornando central para o entendimento de como se “forjara”um imaginário sobre o Movimento da Escola Nova no Brasil. Foi portanto a
“força” da memória-monumento de Azevedo que me levou, no contexto de um
outro imaginário sobre a Escola Nova, à metáfora heróis-vilões. O contraste,
portanto, entre o imaginário sobre a Escola Nova nos dois momentos (década
de 1930 e década de 1980) decorreu do próprio processo de construção do
meu objeto de pesquisa.
O processo de desconstrução da memória-monumento de Azevedofoi um desdobramento necessário ao entendimento de como e por que se
estaria fixando uma memória oposta àquela tão cuidadosamente urdida por
Azevedo. Com este objetivo recorri aos textos e autores mais citados sobre
o tema (Pioneiros e Escola Nova) na tentativa de reconstruir o itinerário de
leituras que teriam contribuído para a construção de uma outra e emblemá
tica leitura do movimento da Escola Nova no Brasil. Em meio a inúmeras
hipóteses formuladas então, selecionei quatro autores e textos que me pareceram constituir os pilares mais importantes desta nova leitura do campo
da educação sobre o significado histórico e político da Escola Nova, que se
contrapunha marcadamente à leitura construída pelos Pioneiros (Paschoal
Lemme, inclusive) sobre aquele movimento.
No item 1.3 de minha tese explicito a minha leitura do seu texto, à
época. Reafirmo hoje a minha convicção sobre a pertinência da correção
que você faz àquela minha análise de seu texto de 1983: eu o questionavaali pela ótica da historiografia, desconhecendo portanto os desdobramentos
do tratamento esquemático e polêmico que você explicitamente conferiu
ao texto. A minha leitura, portanto, distorcia - involuntariamente reafir
mo - a intenção do autor (você), apesar de a intenção do leitor (eu) ter
sido explicitar as bases textuais da construção de uma “contra-memória” à
memória-monumento de Azevedo.
Entretanto, ainda agora, nesta nova leitura que faço da minha tese(1992) e do seu texto de 1983 provocada por você, continuo convencida
de que mesmo não tendo sido a intenção do autor (você) desenvolver uma
análise historiográfica, o (seu) texto impactou fortemente a historiografia
sobre o tema.
Com Eco (1993) partilho da opinião de que entre a intenção do autor
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e o propósito do intérprete (leitor) existe a intenção do texto, servindo este
(o texto), em última análise, como elemento controlador da superinter -
pretação dos textos.Espero que estes rápidos comentários, motivados pelo seu paper, venham
a contribuir para motivar o debate sobre as condições e os desafios do processo
de produção do conhecimento e, sobretudo, sobre a importância da escuta
e do debate acadêmico no processo de aperfeiçoamento da pesquisa.
Receba um grande e afetuoso abraço de quem sempre admirou a seriedade
e a competência que têm marcado a sua presença no meio acadêmico.
Zaia Brandão
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Sobre o autor
Dermeval Saviani nasceu em Santo Antônio de
Posse, no estado de São Paulo, em 25 de dezembro de
1943. Sua Certidão de Nascimento, porém, registra a data
de 3 de fevereiro de 1944- Cursou o primário no Grupo
Escolar de Vila Invernada, então periferia da cidade de
São Paulo, entre 1951 e 1954, e o curso de admissão ao
ginásio, em 1955, na Paróquia de São Pio X e Santa Luziana Vila Diva, também na periferia de São Paulo. Em 27
de setembro de 1955, foi para Cuiabá, em Mato Grosso,
tendo sido aprovado nos exames de admissão ao ginásio
no Liceu Salesiano São Gonçalo. De 1956 a 1959, cursou
o ginásio no Seminário Nossa Senhora da Conceição de
Cuiabá, transferindo-se, em 1960, para o Seminário do
Coração Eucarístico de Campo Grande, hoje capital do
estado de Mato Grosso do Sul, onde iniciou o curso colegial,que teve prosseguimento em 1961, de novo no Seminário
Nossa Senhora da Conceição de Cuiabá (MT). Iniciou os
estudos filosóficos no Seminário Central de Aparecida do
Norte, no estado de São Paulo, em 1962, tendo ingressado
no curso de filosofia da Faculdade Salesiana de Filosofia,
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110 DERMEVAL SAVIANI
Ciências e Letras de Lorena (SP) em 1963. Transferindo-se, em 1964, para a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento da PUC de São Paulo,
aí se graduou bacharel e licenciado em filosofia em 1966.De 1967 a 1969, lecionou filosofia, história e história da arte no Colégio
Estadual Prof. Ataliba de Oliveira no bairro de São João Clímaco na periferia
de São Paulo. Também em 1967, lecionou história e filosofia da educação no
Curso Normal do Colégio Sion, em São Paulo. Em 1970, foi aprovado em
Concurso Público de Ingresso ao Magistério Médio Oficial do Estado de SãoPaulo para provimento do cargo de professor secundário de ciências humanas
III (filosofia, sociologia, história da ciência e cultura brasileira contemporânea).
Em conseqüência, assumiu a cadeira de filosofia no Colégio Estadual PlínioBarreto no bairro da Mooca, na capital paulista. E, em 1971, foi aprovado em
Concurso Público para Provimento do Cargo de Diretor do Ensino Secundário
do Estado de São Paulo, cargo que, entretanto, não chegou a assumir porque
na ocasião da escolha das escolas já se encontrava na condição de professor
em tempo integral na PUC de São Paulo.
Antes mesmo da experiência como professor no ensino médio, foi convi
dado para lecionar na própria PUC-SP onde atuou, no segundo semestre de1966, como monitor da disciplina filosofia da educação no curso de pedagogia,
tornando-se professor contratado em 1967. Em conseqüência, inscreveu-se para
desenvolver estudos pós-graduados em nível de doutorado e obteve o título de
doutor em filosofia da educação pela PUC-SP em 1971, mediante defesa da
tese O conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei n. 4.024, de 20/12/1961), publicada na forma de livro, em 1973, com o
título Educação brasileira: estrutura e sistema.
Entre agosto de 1975 e março de 1978, atuou como professor titular daUfscar, quando presidiu a comissão que planejou o Programa de Pós-Graduação
em Educação, instalado em março de 1976, sob sua coordenação.
Em 1980, permanecendo como professor da PUC-SP passou a atuar também
na Unicamp, onde, em 1986, obteve o título de livre-docente em história da
educação, ocasião em que defendeu a tese O Congresso Nacional e a educação
brasileira: análise do significado político da ação do Congresso Nacional na discussão
e aprovação dos projetos que se converteram nas leis 4-024/61, 5.540/68 e 5.692/71 ,cuja publicação na forma de livro se deu em 1987 com o título Política e edu
cação no Brasil: o papel do Congresso Nacional na legislação do ensino. A partir
de 1989, ingressou no Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa
(RDIDP) na Unicamp, onde, em 1990, foi aprovado no Concurso de Professor
Adjunto na disciplina história da educação. E, em 1993, mediante aprovação
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ESCOLA E DEMOCRACIA 111
em Concurso Público de Provas e Títulos, ascendeu ao cargo de professor titular
de história da educação da Unicamp. Entre 2002 e 2004, atuou como professor
titular colaborador da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP campus de Ribeirão Preto, colaborando na implantação do curso de pedagogia.
Sua experiência internacional iniciou-se em dezembro de 1977 com
um estágio de pesquisa no Institut d’Etude du Développement Économique
et Social (Iedes), Université de Paris I (Sorbonne) seguido, em janeiro de
1978, de um estágio no Istituto Gramsci, em Roma. Em setembro de 1979,
realizou intercâmbio acadêmico nas seguintes instituições da Alemanha:
Pädagogische Hochschule/Universidade de Colônia, Pädagogische Hochschule/
Universidade de Münster, Lateinamerica Institut de Berlim e Deutsches
Institut für Pädagogische Forschung de Frankfurt. Em 1982, 1983 e 1985
ministrou, como professor visitante no Programa de Mestrado em Educação
da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso) de Buenos Aires,
a disciplina teoría de la educación. Em agosto de 1986 participou, a convite
da OEA, do Seminário Interamericano sobre Educação, Desenvolvimento e
Democracia, realizado em Washington, D.C. (USA). Em fevereiro de 1987,
a convite da Universidad de la República, ministrou em Montevidéu doiscursos intensivos sobre “correntes pedagógicas contemporâneas” e “principais
correntes pedagógicas e sua aplicabilidade à realidade nacional” e proferiu
conferência sobre o tema “Realidade e Perspectiva da Educação no Contexto
Latino-Americano”. A convite da Universidad Nacional de Luján, participou
do Encuentro de Departamentos, Escuelas y Facultades de Ciencias de la
Educación de Universidades Nacionales, fazendo uma exposição sobre “Los
Post-grados en Brasil”. Ainda na Argentina, proferiu conferência sobre o tema
“A pedagogia e os interesses da classe trabalhadora” na casa UniversitáriaAnibal Ponce, em Buenos Aires. De julho de 1994 a março de 1995, realizou
“estágio sênior” (pós-doutorado) nas universidades italianas de Pádua, Bolonha,Ferrara e Florença.
Autor de grande número de trabalhos publicados na forma de livros (24),
capítulos de livros (57), prefácios de livros (62) e de artigos (145) em revistas
nacionais e internacionais, concluiu 18 projetos de pesquisa e orientou 37 dis
sertações de mestrado, 48 teses de doutorado, seis projetos de pós-doutorado eoito projetos de iniciação científica.
Ministrou cursos de pós-graduação como professor visitante em várias
universidades federais, na USP onde lecionou a disciplina filosofia da ciência
no Programa de Doutorado em Enfermagem, nas Universidades Estaduais de
Maringá e Guarapuava, no Paraná, no Programa de Pós-Graduação da Flacso
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112 DERMEVAL SAVIANI
em Buenos Aires e na Universidade do Centro da Província de Buenos Aires,
em Tandil, Argentina.
Integrou o Comitê Assessor do CNPq, bem como os corpos de assessores daFapesp, Capes, Inep e Faep-Unicamp, emitindo pareceres técnicos no campo daeducação. Fez parte do Conselho Editorial e do Conselho de Colaboradores da
Revista Ande, Revista de Educação AEC e revista Educação Brasileira. É membro
do Conselho Editorial dos seguintes periódicos: revista Alpha, da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Patos de Minas; Revista Brasileira de Educação,
da ANPEd; Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, do Inep; Revista Brasileira de
História da Educação, da SBHE; revista Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos
Chagas; revista Comunicações, do Programa de Pós-Graduação em Educação daUnimep; revista Diálogo Educacional, do Programa de Mestrado em Educação da
PUC-PR; revista Educação, do Centro de Educação da Universidade Federal de
Santa Maria; revista Educação e Filosofia, da Universidade Federal de Uberlândia;
revista Educação & Linguagem, da Universidade Metodista de São Paulo; revista
Educação e Pesquisa, da Faculdade de Educação da USP; revista Educação em
Revista, da Faculdade de Educação da UFMG; revista Educação & Sociedade,
do Cedes; revista Espaço Pedagógico, da Faculdade de Educação da UPF; revistaHistória da Educação, da Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em
História da Educação; revista Linhas, da Universidade do Estado de Santa Cata
rina; revista Nuances, da UNESP-Presidente Prudente; revista Perfiles Educativos,
do México; Revista Práxis Educacional, da Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia (UESB); revista Pro-Posições, da Faculdade de Educação da Unicamp;
Revista Semina, da Universidade Estadual de Londrina (UEL) ; Revista Trabalho,
Educação e Saúde, da Fiocruz.
Participou ativamente da dinamização da comunidade científica dos educadores, sendo sócio-fundador da Anped, Cedes, Ande e Cedec e, mais recente
mente, da SBHE. De agosto de 1984 a julho de 1987, foi membro do Conselho
Estadual de Educação de São Paulo, onde relatou mais de cem processos emitindo
os respectivos pareceres. Foi coordenador do Comitê de Educação do CNPq,
coordenador de pós-graduação na Ufscar, PUC-SP e Unicamp, diretor associado
da Faculdade de Educação da Unicamp e primeiro presidente da SBHE. Emitiu
grande número de pareceres científicos para agências de apoio à pesquisa, universidades, associações científicas, revistas e congressos da área de educação. Foi
condecorado com a medalha do mérito educacional do Ministério da Educação
e recebeu da Unicamp o Prêmio Zeferino Vaz de Produção Científica.
Atualmente é professor emérito da Unicamp e coordenador geral do
HISTEDBR.
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Formado em filosofia pela PUCSP (1966), é doutor
em filosofia da educação (PUCSP, 1971) e livredocente
em história da educação (Unicamp, 1986), tendo
realizado "estágio sênior" na Itália em 19941995. De
1967 a 1970, lecionou nos cursos colegial e normal.
Desde 1967, é professor no ensino superior. Foi membro
do Conselho Estadual de Educação de São Paulo,
coordenador do Comitê de Educação do CNPq,
coordenador de pósgraduação na UFSCAR, PUCSP e
Unicamp, diretor associado da Faculdade de Educação
da Unicamp, professor titular colaborador da USP
(campus de Ribeirão Preto) e sóciofundador da ANPED,
CEDES, ANDE, CEDEC e SBHE (Sociedade Brasileira de
História da Educação), da qual foi o primeiro presidente.
Foi condecorado com a medalha do mérito educacional
do Ministério da Educação e recebeu da Unicamp o prêmio
Zeferino Vaz de produção científica. Autor de grande
número de trabalhos publicados, atualmente é
f é it d U i d d l d
5/16/2018 Escola e democracia. Edi o comemorativa - Saviani - slidepdf.com
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professor emérito da Unicamp e coordenador geral do
Esta edição especial comemora os 25 anos de
lançamento do livro Escola e democracia que
atingiu, também em 2008, a quadragésima
edição.
Como está indicado no título, o eixo em torno
do qual gira o conteúdo desta obra são as
relações entre educação e democracia. Se é
razoável supor que não se ensina democracia
por meio de práticas antidemocráticas, nem por
isso deve-se inferir que a democratização das
relações internas à escola é condição suficiente
de preparação dos jovens para participação ativa
na democratização da sociedade. Não se trata
simplesmente de optar entre relações
autoritárias ou democráticas no interior da sala
de aula, mas de articular o trabalho desenvolvidonas escolas com o processo de democratização
da sociedade. A prática pedagógica contribui de
modo específico, isto é, propriamente
pedagógico, para a democratização da sociedade
na medida em que se compreende como se
coloca a questão da democracia relativamente à
natureza própria do trabalho pedagógico. Esteimplica uma desigualdade real (no ponto de
partida) e uma igualdade possível (no ponto de
h d )