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O atribulado percurso de um relatório de pesquisa: as observações de Albert
Hirschman sobre onze projetos do BIRD1
Ana Maria Bianchi
Professora Titular
Universidade de São Paulo
Em 1967 a Brookings Institutions publicou um livro de autoria de Albert O. Hirschman,
denominado Development Projects Observed. O livro originou-se de um relatório de
pesquisa que o autor escrevera para o Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento (BIRD), uma das instituições que integram o Banco Mundial, fundada
em 1944. Ele relata as observações de uma visita prolongada feita por Hirschman durante a
década de 1960 a onze projetos de desenvolvimento regional espalhados pelo mundo, na
América Latina, na Ásia, na África e na própria Europa.
O objetivo deste artigo é narrar e analisar criticamente o trajeto percorrido por Hirschman
desde o projeto original montado para angariar financiamento para seu plano de visitas até a
publicação do livro em que relata os resultados das mesmas. Começo por uma descrição
das negociações efetuadas entre o autor e o BIRD para viabilizar sua pesquisa, negociações
que tiveram início ainda na primavera de 1963 e prosseguiram em 1964, quando o autor fez
sua primeira visita a campo. Focalizo em seguida a etapa intermediária do trajeto analisado,
aquela em que Hirschman redige a primeira versão de seu relatório de visita. Na pesquisa
documental que realizei nos arquivos do Banco Mundial em Washington verifiquei tratar-se
de uma etapa particularmente conturbada, pois essa primeira versão foi avaliada, em seus
1Versão preparada para apresentação no seminário semanal da EAESP-FGV em 12/05/2010,
exposta anteriormente no VI Encontro da Associação Ibérica de História do Pensamento Econômico
realizado na Universidade de Coimbra em dezembro de 2009. Peço não citar sem autorização.
Agradeço ao CNPq o apoio para realização desta pesquisa.
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aspectos técnicos e políticos, pelos técnicos do BIRD. As críticas foram numerosas e
cáusticas, a ponto de se ter considerado a hipótese de vetar a publicação do livro.
As sessões que se seguem analisam o contexto em que o trabalho de Hirschman foi
realizado e as características próprias desse trabalho, que foi o último livro publicado pelo
autor no campo da economia do desenvolvimento.2
Meu ponto de partida é a caracterização do papel desempenhado pelas missões de
especialistas estrangeiros que foram enviadas a países do chamado “3º Mundo” no período
que se estende do final do século XIX até meados do século XX. Em muitos casos, essas
missões prepararam o terreno para a concepção e implantação de projetos de
desenvolvimento regional do BIRD. Na sessão seguinte faço uma breve reconstituição da
biografia de Albert Hirschman, em particular no período em que ele fez parte de tais
missões e, como pesquisador e autor, ajudou a consolidar o novo campo de economia do
desenvolvimento.
As sessões seguintes constituem o núcleo do artigo. Estão baseadas em extensa pesquisa
documental, que inclui, além de material dos arquivos do Banco Mundial, os arquivos da
Biblioteca Seely G. Mudd, em Princeton, NJ, e os do Rockfeller Archive Center em Sleepy
Hollow, NY. Focalizo o processo de negociação do projeto de Hirschman e a elaboração de
2 Os dois primeiros livros da trilogia, The Strategy of Economic Development e Journeys Toward
Progress, foram publicados em 1958 e 1963, respectivamente. Em 1971 Hirschman publicou A
Bias for Hope – Essays on Development and Latin America, editado pela Yale University Press.
Contudo, trata-se de uma coletânea de artigos mais antigos, muito dos quais haviam sido publicados
em periódicos.
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seu relatório de visitas, mais tarde convertido em livro. Descrevo, em seguida, a recepção
negativa que esse relatório teve entre técnicos e dirigentes do BIRD.
Neste ponto meu trabalho se soma ao esforço de Alacevich (2008), que destaca o papel
pioneiro de Hirschman na criação de uma sistemática de avaliação dos projetos de
instituições como o Banco Mundial. Contudo, diferentemente de Alacevich e de analistas
como Mason e Asher (1973), minha abordagem situa-se no campo da história do
pensamento econômico. Meu objetivo aqui não é caracterizar a constituição de uma
sistemática de avaliação de projetos no Banco Mundial, processo no qual Hirschman teve
uma contribuição decisiva, mas, ao contrário, dar sequência a meu estudo sobre a obra do
autor no campo da economia do desenvolvimento.
Meu principal argumento é que a rejeição ao relatório de Hirschman por parte dos técnicos
do BIRD pode ser atribuída ao fato do autor ter seguido um caminho próprio, ditado por
suas convicções acerca dos procedimentos de avaliação mais recomendados. Pronunciou-se
de maneira crítica, assim, às técnicas de análise que eram então corriqueiras na instituição,
amplamente baseadas no cálculo de taxas de retorno.
Nas considerações finais sugiro alguns padrões que emergem do episódio em tela e,
sobretudo, levanto a hipótese de que as tensões vividas por Hirschman foram a gota d´água
em sua decisão de abandonar a economia e migrar para o campo vizinho das ciências
sociais.
O papel dos especialistas estrangeiros
Durante os dois últimos séculos, a América Latina e outras regiões menos desenvolvidas do
mundo receberam visitas periódicas de missões de especialistas estrangeiros. Paul W.
Drake (1994) destaca a importância desses “money doctors ”, que Hirschman apelidou de
“economistas visitantes”, nas mudanças econômicas ocorridas no período. De 1890 a 1920,
praticamente todos os países da América Latina receberam esse tipo de assistência técnica;
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depois de 1920, o número e a periodicidade de tais visitas aumentou, estendendo-se para a
totalidade dos países do continente. (Drake 1994, p. xxviii).
Tal como Albert Hirschman, a maioria dos money doctors que visitaram a América Latina
durante as primeiras décadas do século XX eram economistas acadêmicos contratados
como consultores pelos governos nacionais. Depois da 2ª Grande Guerra, houve missões
oficiais do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, mas estas quase sempre
envolveram o recrutamento de especialistas do setor privado, cujo aconselhamento técnico
foi crucial na concepção das políticas econômicas latino-americanas durante todo o
período.
Qual era a missão desses especialistas e de que forma deram cumprimento à mesma? A
analogia expressa pelo rótulo “money doctors” não é fortuita, pois seu papel era
basicamente terapêutico. O que se esperava desses especialistas era que funcionassem como
conselheiros nas reformas econômicas e financeiras consideradas necessárias para o
desenvolvimento econômico de cada país. Tipicamente, suas prescrições diziam respeito ao
modo como as autoridades governamentais deveriam agir para instituir um banco central,
regular o setor financeiro, reformar o sistema fiscal e assegurar acesso ao capital
estrangeiro. Em muitos casos, sua influência levou ao estabelecimento do padrão-ouro ou
retorno ao mesmo, o que, juntamente com um banco central independente, era visto como
condição necessária para a estabilização da moeda nacional. Outro requisito do acesso ao
capital estrangeiro era a racionalização administrativa, e a convocação de especialistas tinha
como meta garantir esse tipo de assessoria técnica para os governos locais.
Kraske e outros (1996, p. 59) argumentam que, durante as primeiras décadas de operação
do Banco Mundial, a avaliação da capacidade de contrair empréstimos de um país
raramente decorria de uma análise sofisticada. Mais do que limitações de ordem
metodológica, sobre como tratar os dados, havia uma escassez generalizada de registros
estatísticos sobre os países de 3º Mundo. Faltavam, portanto, elementos cruciais para se
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avaliar a capacidade que um determinado país teria de contrair empréstimos externos. A
visita de técnicos estrangeiros possibilitava uma avaliação que era, essencialmente, uma
questão de julgamento, e o resultado dessa avaliação apoiava-se, via de regra, no
comportamento prévio do país que demandava empréstimos em relação a suas obrigações
creditícias.
Eichengreen (1994) define o principal papel desempenhado pelos especialistas estrangeiros
como a provisão de “sinais de mercado”. Um bom desempenho envolvia a análise e a
exposição da capacidade que um dado país teria de contrair empréstimos de capital. Nesse
particular, os especialistas estrangeiros indicariam ao mercado se os governos locais
estavam aptos a endossar as políticas financeiras, fiscais e monetárias consistentes com as
prioridades dos emprestadores. Eichengreen ilustra esse ponto ao descrever as sete missões
enviadas à América Latina chefiadas por Edwin Walter Kemmerer. Ele alega que, em seu
caráter puramente privado, tais missões foram altamente eficientes no fornecimento de
sinais de mercado, que tendiam a agir bem sob condições favoráveis no mercado
internacional. Da mesma forma, Flandreau (2003, p. 4) descreve a incumbência típica dos
consultores estrangeiros como sendo a de realizar a “corretagem” de dinheiro por reformas.
Nesse sentido, a transferência de tecnologia e instituições como o banco central era um
importante ingrediente na negociação, como aponta Drake (1994).
Depois da 2ª Guerra Mundial, os money doctors desempenharam outra importante função: a
de ajudar os Estados Unidos, de onde a maioria deles procedia, a manter uma ordem
internacional estável. A explicação para isso é geopolítica: em um mundo dividido em dois
blocos conflitantes, capitalismo e comunismo, a manutenção de uma ordem estável
dependia da adoção de controles rígidos, de modo que “when the Latin Americans strayed
from the path of virtue, they were reminded to get back in line” (Drake 1994, p. xxv).
Consistentemente com essa preocupação geopolítica, houve um reconhecimento gradual da
necessidade de aumentar o padrão de vida das populações nas regiões mais pobres do
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mundo. Não necessariamente por razões altruístas -- o extremo contraste entre os países
mais e menos desenvolvidos passou a ser encarado como uma ameaça potencial para a
estabilidade política (Kraske et al. 1996, p. 65). Isso ajuda a explicar a mudança de ênfase
na orientação geral do Banco Mundial, durante o final da década de 1950 e a década
subsequente, de reconstrução para desenvolvimento. No primeiro período, o programa de
recuperação européia foi o principal alvo de suas operações de crédito; no segundo, o
Banco endossou gradativamente uma nova missão, a de promover o desenvolvimento dos
países membros em outros continentes.
Segundo Flandreau (2003 p. 2), missões de especialistas estrangeiros eram instrumentos
concebidos para lidar com crises. Desde o final do século XIX, crises econômicas e
financeiras experimentadas por alguns países haviam criado demanda por operações de
limpeza capazes de “limpar a bagunça”. Em tais emergências, os money doctors eram
incumbidos de identificar e investigar os problemas envolvidos, para em seguida fornecer
conhecimento técnicos sobre os mecanismos associados e soluções para os mesmos. Ainda
à luz da metáfora médica, um influxo de capital aliviaria pressões de curto prazo e, assim,
tornaria o paciente mais disposto a submeter-se ao tratamento doloroso (Flandreau 2003,
p.2). Os especialistas agiriam como corretores entre as autoridades locais e os investidores
estrangeiros – sintonizados com a perspectiva destes últimos, eles se encarregavam de
transmitir às autoridades dos países visitados as expectativas existentes em relação a sua
conduta.
Outro fator importante no aumento do número de missões especialistas enviadas à América
Latina foi a rápida expansão e prosperidade da economia dos Estados Unidos. De fato,
durante as três primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos tornaram-se o principal
poder industrial no mundo, e estabeleceram o que Rosenberg (2003) chama de “uma
diplomacia do dólar”. Eram o único país grande com finanças suficientemente robustas
para manter a paridade com o ouro. Nesse cenário, procurar áreas para expansão econômica
e comercial era uma tendência natural. Por volta do fim da 2ª Guerra, quando os custos da
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guerra e da reconstrução passaram a inibir o comércio e o investimento da Europa, os
Estados Unidos já se haviam tornado o principal credor internacional. (Seidel, 1994).
Em suma, a expertise fornecida pelos money doctors estava intimamente associada à
geopolítica, e atendeu a expectativas econômicas e políticas bem definidas. Havia uma
clara conexão entre o fluxo internacional de dinheiro e o de expertise.
Albert Hirschman, um money doctor
O objetivo desta sessão é descrever brevemente a experiência profissional de Hirschman
em meados do século XX , na qualidade de especialista estrangeiro indicado para assessorar
projetos de desenvolvimento em países de 3º Mundo. Como relato em maiores detalhes em
artigo anterior (Bianchi 2007), Hirschman aportou nos Estados Unidos em Janeiro de 1941,
no navio Excalibur, procedente de Lisboa.3 Refugiado do nazismo, conseguiu abrigo após
uma tumultuada fuga pela Península Ibérica. Graças a uma bolsa da Fundação Rockfeller,
que usufruiu durante um período inicial de dois anos, pôde dedicar-se ao estudo detalhado
de estatísticas do comércio internacional, como assistente de pesquisa na Universidade da
California. Em Junho de 1941 contraiu matrimônio com Sarah Chapiro, então estudante da
mesma universidade.
Depois de servir durante uma temporada no exército dos Estados Unidos, para o qual foi
recrutado devido a sua fluência em francês, alemão e italiano, Hirschman passou a trabalhar
na assessoria do Federal Reserve System. Suas atribuições consistiam no acompanhamento
da execução do Plano Marshall, que, como é sabido, tinha por objetivo solucionar os
problemas de recuperação econômica da Europa devastada pela guerra.
3 RF Recorder Cards, Series Humanitas, Rockfeller Archive Center.
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A carreira de Hirschman como money doctor começou em 1952, quando foi enviado à
Colombia por indicação do BIRD, para servir como consultor do recém-criado Conselho
Nacional de Desenvolvimento. Permaneceu no país durante quase cinco anos, em tarefas
afeitas à assessoria do governo e de outros grupos privados empenhados em promover a
industrialização do país.
Escapar às armadilhas decorrentes da condição de especialista integrante de missões
enviadas ao 3º Mundo foi sempre uma preocupação central de Hirschman, como argumento
em trabalho anterior (2009). O autor aliou suas pesquisas em economia do
desenvolvimento, campo do qual foi precursor, à atuação prática como consultor
econômico, na promoção das reformas institucionais julgadas necessárias para o
desenvolvimento.
Após sua temporada na Colombia Hirschman retornou aos Estados Unidos, vinculando-se a
diferentes universidades de prestígio para a realização de suas pesquisas. Dedicou-se, então,
à elaboração de dois de seus principais livros sobre desenvolvimento econômico, a saber,
The Strategy of Economic Development, publicado em 1958, e Journeys toward Progress,
publicado em 1963.4
Diferentemente de outros especialistas estrangeiros e mesmo de economistas com os quais
conviveu no Banco Mundial, como Lauchlin Currie e Paul Rosenstein-Rodan, Hirschman
mostrou-se sempre descrente em relação à eficácia de grandes planos integrados de
desenvolvimento. Ao contrário, acreditava na eficácia de projetos localizados, capazes de
gerar efeitos de encadeamento (linkage effects) sobre a economia local. Para o êxito de tais
4 Em Adelman (2008) o leitor poderá encontrar um relato interessante da experiência profissional
de Hirschman durante sua estada na Colombia e nos anos imediatamente posteriores.
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projetos, considerava ser necessária uma cuidadosa investigação empírica, antes e depois de
sua implantação, com vistas a uma aplicação mais adequada de recursos.
Pode-se portanto afirmar que a preocupação de Hirschman era simultaneamente teórica e
prática. Em sua concepção, não só uma nova abordagem teórica era necessária para
fortalecer o recém fundado programa de pesquisas em desenvolvimento econômico, como
era imprescindível que seus conceitos e suas hipóteses estivessem apoiados em minuciosos
estudos de caso. Hirschman pautou sua atuação na assessoria do BIRD pelo
reconhecimento dos méritos de projetos de desenvolvimento localizados, para cujo sucesso
considerava essencial a sistemática de incursões periódicas ao campo.
Nesse particular, é no mínimo curioso que Paul Krugman (1994) tenha colocado Hirschman
no grupo dos economistas que desenvolveram aquilo que chamou de “high theory” do
desenvolvimento. Krugman alega que a falência progressiva desse tipo de abordagem,
durante a década de 1950, deveu-se à descrença nos grandes modelos de desenvolvimento
e, adicionalmente, à dificuldade que esses economistas tiveram de adaptar-se à retórica
crescentemente formalizada da teoria econômica.
A crítica de Krugman foi devidamente rebatida por Hirschman, mas cabe ainda aqui um
breve comentário. Se é verdade que Hirschman não adotou uma linguagem matematizada,
em nível de sofisticação comparável ao da literatura econômica mais recente, o fato é que
seus escritos tem essa abordagem mais microeconômica que, segundo Krugman,
caracterizaria a pesquisa emergente. Como afirma Alacevich (2008) Hirschman é
representativo de um período em que a ´high theory´ tinha cedido lugar a abordagens mais
“micro”.
Nesse contexto, o projeto que Hirschman encaminhou ao BIRD para obter apoio para sua
visita a projetos espalhados pelo mundo bem reflete essa dupla pressão interna: de um lado,
sua crença na necessidade de uma constante auto-crítica, que levava ao questionamento da
natureza e do alcance do papel de um money doctor e das missões de que faziam parte; de
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outro, sua defesa da necessidade de construir mecanismos de avaliação adequados dos
projetos de desenvolvimento já implementados ou em elaboração.
A negociação da proposta
Hirschman começou a planejar e negociar sua visita aos projetos do BIRD em 1963,
período em que era professor de Relações Econômicas Internacionais da Universidade de
Columbia, em Nova York. Na proposta original, o extenso projeto de visita coincidiria com
um ano sabático nesta universidade.
A visita acabou se estendendo de Julho de 1964 a Agosto de 1965. Hirschman teve a
companhia de sua mulher, Sarah Hirschman, como assistente de pesquisa. O casal deixou
seu apartamento no número 350 da Central Park West, em Nova York e partiu para
investigar detalhadamente os onze projetos relacionados no quadro 1, que se segue.
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Quadro I – Projetos do Banco Mundial Estudados por Hirschman
País Setor Localização ou Propósito
El
Salvador
Energia Elétrica Hidroestação no Rio Lempa
Equador Rodovias Província de Guayas
Peru Irrigação Projeto San Lorenzo no norte do Peru
Uruguai Pastagens Melhoria das pastagens em todo o país
India Desenvolvimento
hidroviário geral
Vale do Damodar, nos estados de Bihar e Bengala
Ocidental
Paquistão Indústria Indústria de papel e celulose no Rio Karnaphuli no
Paquistão Oriental
Tailândia Irrigação Rio Chao Phya, na planície central
Itália Irrigação Vários projetos de irrigação no sul da Itália
Uganda Energia elétrica Transmissão e distribuição de Owen Falls
Etiópia Telecomunicações No país todo
Nigéria Ferrovias Modernização e extensão de Bornu (300 milhas)
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Fonte: adaptado de Hirschman 1967, p. 2
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A seleção dos projetos a serem visitados foi feita em comum com os técnicos do BIRD, em
1964-5. Em um primeiro momento a listagem foi elaborada ainda na matriz do Banco em
Washington, D.C. e, na etapa seguinte, a partir de visitas preliminares ao campo. Dois
critérios foram contemplados: em primeiro lugar, os projetos deveriam abranger uma
variedade de setores de atividade e áreas geográficas; como segundo requisito, deveriam ter
um histórico relativamente longo, correspondente a vários anos de operação.
Este segundo critério implicava, na prática, que a pesquisa se concentraria nos projetos
mais antigos do Banco, que haviam sido apoiados pela instituição ainda nos primeiros anos
de sua operação. Como se verá, situa-se aqui o foco das críticas dirigidas ao projeto e ao
relatório elaborado após o trabalho de campo. Questiona-se o fato de terem sido
contemplados apenas projetos mais antigos, que, segundo os técnicos, não eram os
melhores projetos em operação, pois apresentavam deficiências que foram sendo
percebidas e sanadas com o tempo.
A hipótese de Hirschman, exposta em sua proposta, era a de que a diversidade de
experiências extraídas dos vários projetos devia ser atribuída às características estruturais
dos mesmos. Tais características envolveriam não apenas atributos econômicos e
tecnológicos, entre as quais a extensão em que era possível substituir trabalho por capital
ou quantidade por qualidade, mas também propriedades organizacionais ou administrativas
do projeto.
A proposta inicial de Hirschman ao BIRD foi feita de comum acordo com a Brookings
Institution, que seria responsável pela publicação do livro resultante da pesquisa. Ela
mereceu críticas de Burke Knapp, então vice-presidente da instituição, e de parte de seu
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staff.5 A acusação era que a proposta estava excessivamente voltada para a consideração de
efeitos colaterais (side effects), em detrimento da análise propriamente econômica dos
projetos. Essa crítica não é isolada, e continuou a ser feita depois de pronto o relatório.
Em resposta às críticas, Hirschman redigiu uma segunda versão da proposta, em que
identificou focos de análise da efetividade dos projetos a serem visitados. É importante
registrar que ele se propôs a pesquisar o processo de decisão política em duas condições
distintas, a saber, no país onde se localizava o projeto (grupos e interesses específicos
envolvidos) e no próprio BIRD, antes e depois da implementação do projeto. Neste
segundo aspecto abordou a questão da análise custo-benefício, técnica bastante utilizada
pelos técnicos da instituição, à época. Levantou a hipótese de análises desse tipo falharem
por uma subestimação de custos (“as is frequently the case”) e de benefícios (“also
frequent”) por parte dos analistas internos. Como argumenta Lepenies (2009), elas falham
por pressupor que o futuro é previsível e, portanto, é possível antecipar os erros e os acertos
de uma determinada política.
Outro foco de análise definido na segunda versão da proposta de Hirschman foi uma
avaliação retrospectiva do projeto, mais especificamente dos resultados que apresentou
durante o período de implementação e depois dele. Seria avaliado seus efeitos de
encadeamento sobre a atividade econômica da região, mas, além deles, suas consequências
de mais longo prazo, como era o caso de seus impactos sobre a distribuição de renda,
riqueza e poder.6
5 WB Archives, ISN#61705 ACC # 194-02, Box 41.
6 WB Archives, Albert O. Hirschman, “A study of completed investment projects which have
received financial support from the World Bank”, Junho de 1963, vol. 1.
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O staff do BIRD reagiu negativamente a esta última parte da proposta. Para os técnicos, a
avaliação deveria concentrar-se prioritariamente nos aspectos econômicos, uma vez que,
alegavam eles, os aspectos tipicamente sociais seriam secundários do ponto de vista de uma
avaliação adequada do andamento dos projetos.7
Como se discutirá mais adiante, essa atenção de Hirschman aos chamados efeitos colaterais
(side effects) não é fortuita, nem é, tampouco, uma faceta ocasional de sua postura como
pesquisador. Ela decorre, de um lado, de sua disposição para romper barreiras disciplinares,
e investigar as múltiplas dimensões de cada fenômeno social. Por outro lado, traduz uma
convicção arraigada, que já transparece em seus escritos anteriores, segundo a qual esses
efeitos inesperados podem representar o maior capital de um projeto.
Ainda na fase de negociação, ao antever futuras dificuldades de entendimento, Hirschman
propôs que o BIRD não pudesse vetar parágrafos, capítulos, sessões ou sentenças. Por
intermédio de seu vice-presidente, o Banco retrucou que não poderia assegurar isso
categoricamente, mas, retrucou em tom conciliatório, seria pouco provável encontrar
diferenças gritantes de opinião entre Hirschman e o staff do Banco.8
7 Curiosamente, o mesmo tipo de crítica havia sido feita, anos antes, ao relatório de Lauchlin
Currie, economista canadense que foi indicado para chefiar uma missão de especialistas enviada à
Colombia antes de Hirschman ter se mudado para lá. As relações entre Hirschman e Currie foram
atritadas, como narro em artigo anterior (Bianchi 2009), a despeito da preocupação social que
ambos revelam em seus relatórios.
8 B-K para AOH: “I should be surprised if there turned out to be any strong difference of opinion
between you and us.” ISN#61705 ACC # 194-02 Box 41.
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Para colocar um ponto final nessa pendência, e com o intuito de acomodar as divergências e
minimizar as possibilidades de conflito, o BIRD sugeriu mudar duas sentenças finais da
proposta de Hirschman. Em primeiro lugar, ele se comprometeria a mostrar o manuscrito
final ao staff antes de enviá-lo para publicação. Se não houvesse veto, ele seria publicado.
Se houvesse, uma segunda cláusula estipulava que o BIRD poderia determinar que o
manuscrito não viesse a público como publicação oficial da instituição, alternativa que
acabou por vingar.
Em 26 de Maio de 1964 Hirschman finalmente estabeleceu um acordo com o Banco,
segundo o qual este não insistiria em seu poder de veto sobre a publicação de qualquer
manuscrito que viesse a escrever.9 Isso se confirma no prefácio que Kermit Gordon, então
presidente do Banco Mundial, escreveu para Development Projects, onde destaca: ...”The
bank bears no responsibility for the views expressed and the conclusions reached.”
Permaneceram ainda críticas à representatividade da amostra a ser visitada.10 A despeito das
mesmas, porém, Hirschman recebeu o apoio oficial do BIRD, que incluía verba para a
contratação de um assistente de pesquisa. Depois de três tentativas, Sarah Hirschman, que,
como já disse, acompanhou o autor em suas visitas aos projetos, foi contratada como
assistente.
O relatório de visita
9 GDW para ERB, ambos presidentes do Banco Mundial, nos períodos 1963-68 e 1949-62,
respectivamente.
10 24/2/1964, memo, PMM para WD.
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Em Agosto de 1965, quando completou seu prolongado roteiro de visita a projetos
localizados em três continentes, Hirschman apresentou ao Banco seu relatório preliminar
de pesquisa, intitulado “A study of selected WB projects – Some interim observations”.
O relatório de Hirschman constitui um “boneco” do livro que viria a publicar. Ele combina
um breve descrição das visitas feitas aos vários projetos com observações de caráter mais
geral sobre atividades de apoio ao desenvolvimento econômico. De fato, o roteiro exprime
esse esforço de extrair inferências sugeridas pela detecção de características comuns aos
projetos analisados.
Como lembra Alacevich, a iniciativa de Hirschman sinaliza sua defesa da importância de
estudos de caso detalhados para a extração de conclusões mais gerais acerca dos
mecanismos em operação nos processos de desenvolvimento bem sucedidos, e sobre as
causas de eventuais insucessos. O próprio Hirschman destaca em seu relatório que estudos
de caso são uma ferramenta essencial para a detecção de padrões universais, se, quando e
até que ponto esses padrões existem.
Convidado a manifestar-se sobre o projeto de Hirschman, um especialista vinculado ao
BIRD exaltou o projeto por representar, a seu juízo, provavelmente a primeira tentativa de
criar um mecanismo padronizado de escrutínio a posteriori do sucesso de um projeto de
infra-estrutura.11
Essa impressão é compartilhada por outros especialistas consultados. Concordam assim
com Alacevich, que define a avaliação post mortem de projetos de desenvolvimento como
atividade fundamental para uma instituição que tem como atividade central a concessão de
11 18/2/1964, DA to Department Heads, IBRD and IFC, WB Hirschman Folders, vol. I.
18
empréstimos. Essa atividade só se tornou operacional no BIRD no início de década de
1970, graças, inclusive, à discussão suscitada pela divulgação do relatório de Hirschman.
Do ponto de vista da montagem de uma sistemática de avaliação, a contribuição de
Hirschman foi de fato estratégica. Não obstante as críticas de que seu relatório foi alvo, ele
proporcionou ao BIRD uma oportunidade concreta de reflexão mais aprofundada a respeito
de métodos para avaliar a repercussão de suas políticas nos países menos desenvolvidos.
Mason e Asher (1973, p. 251) também reconhecem explicitamente esse mérito. Eles
apontam que as funções de avaliação dos projetos estavam então nas mãos de engenheiros e
analistas financeiros. Os primeiros ocupavam-se de determinar as quantidades de materiais
necessários para a implementação do projeto; os segundos calculavam taxas de retorno e
preocupavam-se com fontes de financiamento e fluxos monetários. Faltava, contudo, uma
avaliação mais global do desempenho de projetos já em plena operação, em todas as suas
dimensões, e foi isso exatamente o que motivou Hirschman a expressar essa preocupação
em seu relatório. Discutir suas sugestões proporcionou um avanço significativo no processo
de sofisticação da análise dos projetos de desenvolvimento do BIRD.
Como desdobramento concreto desse esforço pioneiro, a estrutura organizacional do BIRD
foi reformulada para acomodar um departamento especificamente incumbido das tarefas de
avaliação. Isso se deu, em uma primeira etapa, na forma de um Departamento de
Programação e Orçamento e, em seguida, na forma de um Departamento de Avaliação de
Operações (Alacevich 2008, p. 9).
Um percurso atribulado
O relatório com as observações interinas de Hirschman circulou amplamente entre os
técnicos do BIRD. Recebeu críticas, algumas bastante severas, que não deixam dúvidas
quanto às diferenças de ponto de vista. Há em algumas a reiteração dos reparos feitos à
proposta original, que demonstram que as objeções à abordagem de Hirschman não foram
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devidamente superadas pelas mudanças feitas e explicações dadas pelo autor durante a fase
de negociação do projeto. Em outras palavras, nem Hirschman abdicou inteiramente de
seus propósitos originais, nem o staff do BIRD arrefeceu em suas críticas.
As críticas incidiram principalmente sobre os seguintes aspectos do relatório: 1) critérios
estabelecidos na seleção dos projetos avaliados; 2) atenção considerada excessiva aos
aspectos colaterais e, por associação, a hipótese de Hirschman de ocorrência de efeitos
inesperados; 3) uma suposta identificação do autor com os interesses dos beneficiários, em
detrimento dos interesses do BIRD; 4) as objeções explícitas de Hirschman ao cálculo de
taxas de retorno, que teriam determinado a falta de utilidade operacional do relatório; 5)
finalmente, o estilo considerado academicista do relatório.
Para facilitar a exposição dessas críticas, vou seguir de acordo com a classificação acima.
1. Critérios de seleção dos projetos
As críticas desse tipo centram-se na falta de representatividade que os projetos selecionados
para visita teriam em termos das práticas mais recentes do BIRD.
Um dos técnicos que foi chamado a se pronunciar sobre o relatório tinha dois pontos em
comum com Hirschman: era refugiado do nazismo e tivera um engajamento profissional
anterior no Federal Reserve. Sua especialidade era a área de transportes, que privilegia em
sua análise. A primeira crítica deste técnico volta-se contra a presumida ignorância de
Hirschman em relação às práticas de avaliação adotadas pelo BIRD no período mais
recente, e sobre o próprio andamento dos novos projetos em operação. Assim, argumenta
que “pelo menos no que diz respeito a transporte”, as práticas de avaliação econômica dos
projetos haviam sido substancialmente aprimoradas, nos últimos anos. Em vista disso,
algumas das recomendações que Hirschman apresentava como sendo uma grande novidade
estavam, de fato, plenamente incorporadas ao sistema de avaliação em curso. Em última
análise, o técnico sugere que Hirschman não só foi leviano em seus comentários como foi
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negligente, pelo fato de não ter lido os relatórios mais recentes emitidos pela instituição, em
função de experiências mais recentes. Esse ponto voltará a aparecer em outras críticas.
2. Aspectos colaterais e efeitos inesperados
A ênfase que Hirschman imprime aos aspectos “colaterais” dos projetos é objeto de vários
questionamentos. Ela está diretamente ligada às dimensões sociais dos empreendimentos,
para os quais o autor dedica uma parcela significativa de suas considerações. Em
memorando interno, um dos leitores do relatório queixa-se que Hirschman enfatiza
demasiadamente aspectos sociais, em detrimento de econômicos ( 16/11/65, PAR para
LJCE).
O mesmo técnico atribui essa ênfase em aspectos sociais à visita que Hirschman fez à FAO
(Food and Agriculture Organization), uma instituição das Nações Unidas, durante o
transcurso de sua pesquisa de campo. O tempo dedicado a essas visitas teria sido excessivo,
e desviado a atenção dos aspectos econômicos e tecnológicos dos projetos: “...Prof
Hirschman spent quite some time at FAO during his investigations and his general
emphasis on social rather than economic and production aspects of agricultural projects
may reflect some FAO views.”
Ora, não se pode dissociar a atenção que Hirschman concede aos aspectos sociais de cada
projeto de sua presunção de efeitos inesperados. Uma hipótese favorita de seu relatório
prende-se aos padrões surpreendentes que poderiam ser observados após encerrada a fase
de implantação de um determinado projeto, padrões que decorreriam daquilo que
denominou de “racionalidades escondidas” presentes em determinadas circunstâncias, cujo
impacto sobre o desempenho do projeto seria positivo.
Já na p.2 de seu relatório Hirschman constata a distância que separa o andamento efetivo
dos projetos de sua proposta original. O autor aponta resultados imprevistos que acometem
determinados projetos, notadamente: o projeto de irrigação San Lorenzo, no norte do Peru;
21
o de melhoria de pastagens, no Uruguai; e o da indústria de papel e celulose, no leste do
Paquistão. Destaca os elementos desconhecidos, incertos e inesperados de tais projetos,
com os quais exemplifica o desvio em relação aos objetivos originais: “The element of the
unknown, the uncertain and the unexpected which deflects projects from the originally
chartered course is considerable in all projects.” (p. 2) Longe de lamentar essa mudança de
rota, porém, o autor, curiosamente, discorre sobre as consequências positivas que ela
desencadeia.
A melhor ilustração dessa confiança em efeitos inesperados benéficos é dada pelo projeto
de papel e celulose no Paquistão. Sintomaticamente, Hirschman escolhe esse caso para
encabeçar toda o seu relatório. A descrição da experiência é feita em tom poético. Ele
comenta a boa fortuna que cercou o projeto, a despeito de uma grosseira subestimação do
fornecimento de matéria prima – bambu, no caso - para a fabricação de papel: “Looking
backward, it may be said that the Karnaphuli mill was ´lucky´: its planners had badly
overestimated the permanent availability of bamboo but the mill escaped the possibly
disastrous consequences of this error by an offsetting underestimate or, more correctly, by
the unsuspected availality of alternative raw materials.”
Portanto, a falta de disponibilidade de bambu não foi prejudicial a médio prazo, uma vez
que gerou efeitos de encadeamento para trás (backward linkages), que estimularam a oferta
de insumos substitutos e, mais importante ainda, um trabalho ativo de revitalização das
florestas.Ora, seria esse desdobramento feliz um mero produto de sorte? Hirschman
suspeita que não, embora, advirta, esse final feliz não possa ser esperado sempre. Ele logo
estabelece um paralelo com deficiências notadas em outros projetos que visitou. Assim, o
projeto de irrigação no Peru sofreu atrasos substanciais por causa de mudanças no poder
político e indecisões nas providências necessárias para viabilizá-lo. Contudo, essa demora
acabou por favorecer uma reforma fundiária bem sucedida, ao levar à subdivisão da terra
em propriedades familiares viáveis e com um esquema de crédito compatível. Da mesma
forma, os atrasos das decisões políticas e administrativas no Uruguai permitiram o
22
desenvolvimento de pesquisas experimentais e aplicadas, que possibilitaram o atendimento
de uma área de pastagens significativamente maior do que a prevista inicialmente.
Em outras palavras, Hirschman louva as dificuldades enfrentadas por tais projetos e aí
localiza, à primeira vista paradoxalmente, o segredo de seu sucesso. Introduz o tema das
racionalidades escondidas, para os quais voltaria a chamar a atenção no decorrer do
relatório, e que abordaria exaustivamente no livro que resultou do mesmo. Racionalidades
escondidas são ocasionalmente despertadas por padrões regulares que se verificam em
trajetórias reais cujo curso parece à primeira vista desordenado.12
O tema dos efeitos colaterais (side effects) é objeto de uma das sessões do relatório de
Hirschman. A começar de seu título - “Project appraisal: the centrality of side-effects” -
todo o texto é provocativo. Ao sugerir a centralidade de efeitos que são impropriamente
rotulados de “colaterais”, Hirschman estabelece uma marca registrada de seu estilo, que é
nutrido por paradoxos. Ele classifica os efeitos esperados de um projeto que é posto em
operação em duas categorias: os de ameaças insuspeitadas, de um lado; e os de remédios
também insuspeitados para essas ameaças. Neste segundo grupo estão as soluções criativas
que, longe de acarretar o fracasso do projeto, vem a revelar-se um ponto alto de sua
implementação. Assim, ao se colocar em execução um projeto, deslancha-se um processo
12 Como observa o autor em suas anotações da visita a projeto de irrigação na Tailândia: “In
irrigation projects there always seems to be a shortfall of water availabilities with respect to
expectations... Is this a general phenomenon? Isn´t it the same phenomenon that I just noticed in
KPM – overestimate of adaptability of technology and underestimate of resourcefulness in
achieving required adaptation?” (AOH Papers, G.S. Mudd Library, box 13).
23
de aprendizagem que, se bem aproveitado, poderá levar à descoberta de racionalidades
escondidas.13
Contudo, a superação de dificuldades não é um resultado obrigatório, como argumenta
Hirschman. Ao comparar o projeto de linhas férreas na Nigéria com a alternativa de
transporte por caminhão, o autor adverte o leitor para o fato de que problemas, por si só,
não constituem condição suficiente para uma resposta criativa. Os conflitos inter-étnicos
observados no país africano e um alto nível de corrupção impediram que se criasse o clima
de harmonia e cooperação necessário para o êxito do projeto ferroviário. Hirschman chega
a criar um novo substantivo, “nigerianização”, com o qual designa a substituição de
expatriados pelo pessoal local, sem a mesma qualificação técnica.
3. Identificação com os interesses dos beneficiários
O relatório de Hirschman foi recebido com outra critica, particularmente severa em suas
implicações. Alguns dos especialistas consultados destacaram a identificação do autor com
os interesses dos beneficiários dos projetos. Em decorrência disso, teria deixado de levar
em consideração os interesses do próprio BIRD, com cujo patrocínio realizara suas visitas.
Assim, um técnico ressalva que o relatório tem insights interessantes “mas muitos pontos
discutíveis”.14 Ele se queixa de parcialidade no julgamento, que no limite denotaria “falta
de solidariedade” com a visão dos técnicos da instituição que apoiara sua pesquisa. É
possível que Hirschman, diz o técnico, não tenha examinado todos os lados das questões
13 ACRESCENTAR NOTA SOBRE DISSONÂNCIA COGNITIVA.
14 17/9/65, memo, WCB para BC.
24
que apontou, particularmente o ponto de vista dos técnicos do Banco, mais familiarizados
com os projetos. O comentarista reclama, por exemplo, da crítica que Hirschman faz às
agências autônomas, que considera inadequada.
Esse ponto merece maiores esclarecimentos. Em determinado trecho de seu relatório,
Hirschman reclama da regra estabelecida pelo BIRD, segundo a qual os empréstimos
externos deveriam ser canalizados por agências autônomas. A justificativa para essa regra
era permitir isolamento em relação às injunções políticas. Ao operar por intermédio de
agências autônomas, o BIRD teria à sua disposição um interlocutor menos suscetível aos
interesses particularistas deste ou daquele grupo que estivesse no poder.
O que teria Hirschman contra esse mecanismo? Seu argumento é que com a instituição de
uma agência autônoma perder-se-ia o acesso direto ao poder político central do país onde o
projeto se estabelece. Se criar uma agência autônoma já era uma tarefa difícil, garantir o
sucesso de sua atuação como mediadora seria bem mais problemático ainda. A relação de
troca é perversa: para garantir imunidade em relação às pressões políticas seria preciso
pagar um preço excessivamente alto, decorrente da perda de legitimidade junto às
autoridades locais.
Ao repercutir as demandas dos governos locais, Hirschman refere-se ainda à possibilidade
de tomadores de empréstimos domésticos serem preteridos em favor de agências
autônomas internacionais: “...complaints were heard in some countries about the de facto
discrimination against domestic contractors and in favor of large international firms.”
Talvez o tempo não estivesse maduro para a implantação desse “enclave”. Algumas
agências autônomas, concebidas para impregnar a velha ordem com um novo espírito
deixaram-se, ao contrário, infiltrar por essa velha ordem. Assim teria ocorrido no caso das
estradas de ferro da Nigéria e no Vale do São Francisco, no Brasil.
A réplica do técnico transparece em seus comentários sobre o relatório. Basicamente, alega
que o BIRD recomendava, sim, agências autônomas, mas que não tinha posição fechada
25
acerca da necessidade das mesmas.15 Ao contrário, a despeito dos fundamentos bastante
razoáveis em que se assentava essa regra, ela poderia ser contornada sempre que se
mostrasse inadequada a situações concretas. O BIRD não tinha visão doutrinária a respeito,
e não considerava imperioso confiar às mesmas a operação de linhas férreas e portos.
Mais uma vez, esse comentário negativo imputa a Hirschman o desconhecimento das
políticas de fato seguidas nos projetos do BIRD. Para o analista consultado, o relatório
levantava dúvidas quanto ao fato de Hirschman ter examinado todos os ângulos das
questões tratadas, mormente do ponto de vista dos responsáveis pela condução dos
projetos: “At this point I question whether he has examined all sides of the questions, more
particularly the point of view of those in the Bank most familiar with the projects.”16
As observações acima mostram que os técnicos colocaram em questão a imparcialidade das
opiniões de Hirschman e sua própria percepção dos fatos que compilou em suas visitas de
campo. Havia, porém, a esperança de que essa imparcialidade não fosse transferida para o
livro. Como diz o técnico: “But we should be sure that Mr. Hirschman has access to all the
facts, and all the points of view, before he completes his book.”17 Em sequência, o técnico
lamenta com certa ironia o tom negativo do relatório de Hirschman, que, acredita, deve ser
atribuído a seu viés acadêmico ou até mesmo, quem sabe, literário, que o levava a preferir a
crítica ao elogio: “In the academic and literary professions, criticism seems to draw higher
marks than does praise, and while Mr. Hirschman is very knowlegeable and capable, he
may not be above succombing to this temptation.”
15 17/9/65, memo, WCB para BC.
16 17/9/65, memo, WCB para BC – grifo.
17 17/9/65, memo, WCB para BC.
26
Viés semelhante é apontado por outro técnico do BIRD, que enviou seus comentários
diretamente a Hirschman. Ele argumenta que muitas das observações do autor “não são
irrazoáveis, mas tendem a ser unilaterais” (22/9/65, memo, BR para CPM ). Sugere que
toda sua simpatia teria se voltado para os beneficiários dos empréstimos. Por conta disso,
faltaria a Hirschman uma visão mais equilibrada: “Uma visão mais equilibrada poderia ter
emergido se o autor tivesse dado mais atenção à visão do pessoal no Banco do que deu à
visão dos tomadores de empréstimo.” Reclama, ainda, do caráter pouco preciso da
avaliação das incertezas a que Hirschman se refere, associadas às consequências
imprevistas da implementação dos projetos. Conclui, por fim, que uma “apreciação
intuitiva das incertezas”, como a sugerida pelo autor, não é um bom meio de gerar
generalizações confiáveis.
4. Falta de utilidade operacional
A crítica de falta de utilidade do processo de avaliação sugerido por Hirschman transparece
na correspondência interna entre os técnicos do BIRD. Ela faz parte do quadro de relutância
do autor na adoção do cálculo de taxas de retorno, procedimento tradicional na instituição
uma vez que era um indicador sintético, considerado crucial para a avaliação dos méritos de
um projeto.
Antes de passar às críticas dos técnicos, é importante fazer um pequeno resumo da opinião
de Hirschman acerca da técnica de análise baseada no cálculo de taxas de retorno. Uma das
sessões de seu relatório, reproduzida na versão final do livro, qualifica a análise custo-
benefício como parte de uma “ofensiva contra os efeitos colaterais”. Diz Hirschman que a
literatura que se apoia nesse tipo de análise, cada vez mais presente no campo da economia
do desenvolvimento, é altamente crítica da própria noção de efeitos colaterais. É, portanto,
incompatível com uma das teses centrais do autor, que, como visto, valoriza a possibilidade
de ocorrência de tais efeitos. O cálculo de benefícios requerido pela técnica, diz Hirschman,
baseia-se em muitos pressupostos arbitrários, que resultam em uma “tentativa de
27
quantificação mal direcionada (misguided), ainda que heróica” (reproduzido em
Development Projects, p. 175).
Hirschman segue adiante em sua crítica ao argumentar que a transposição dessa técnica
para regiões “menos afortunadas” (less fortunate economic climes) é problemática, em
virtude dos fortes pressupostos em que se baseia. Nessas condições, diz ele, é impossível
assumir crescimento estável, pleno emprego ou perfeita mobilidade de pessoas e capital.
Uma comparação da técnica em questão com o conceito de encadeamentos para frente e
para trás (forward and backward linkages), que ele próprio introduzira em trabalhos
anteriores, é desfavorável à primeira. Assim, a idéia de encadeamentos se consagrara
plenamente na análise de processos de industrialização e na ponderação de prioridades para
setores, subsetores e projetos. O mesmo não poderia ser dito, contudo, da análise de custo-
benefício, que era alvo de críticas ferrenhas.
Um outro motivo bastante ponderável explica o descrédito de Hirschman em relação ao
cálculo de taxas de retorno. Ele faria parte de um quadro geral de raciocínio incompatível
com a tese de efeitos colaterais e benefícios secundários. Por que os economistas teriam
reagido desfavoravelmente a essa tese e, ao contrário, prestigiado o cálculo de taxas de
retorno? indaga Hirschman. (A referência, aqui, é aos economistas do BIRD, mas
Hirschman não chega a dizer isso.) Certamente porque andavam à busca de um instrumento
de ordenação único, que conseguisse reunir em um mesmo indicador as várias dimensões
econômicas de um projeto. Hirschman logo qualifica essa busca como “fútil”: como seria
possível ordenar projetos de desenvolvimento ao longo de uma só escala, a partir de um
único índice sintético capaz de aglutinar todas as suas dimensões?
Ao adotar esse precário mecanismo de análise para avaliar os projetos, prossegue
Hirschman, os especialistas estrangeiros das agências de fomento, indicados pelos
emprestadores, afastariam de si qualquer responsabilidade pela decisão última dos
tomadores de empréstimo. Quando estes últimos se desviavam do recomendado, eram
28
vítimas da influência negativa de “fatores políticos”, o adjetivo, aqui, tomado como
sinônimo de irracional. Nas palavras do autor:
Political is here equated with irrational, if not worse; the heavy price for the unique
ranking is the fact that, with many important considerations excluded from the
technicians´s purview, the decision maker will in the end make more rather than less
use of his intuition and “seat-of-the-pants” judgment than if the technicians had set
themselves the more modest goal of comparing projects according to a limited number
of criteria.” (trecho do relatório reproduzido em Development Projects, p.180)
As críticas ao relatório revelam a diferença de pontos de vista. Para um técnico, a
recomendação de Hirschman, no sentido da valorização dos fatores políticos e sociais, seria
uma faca de dois gumes. Argumenta esse técnico que, justamente, um dos grandes
patrimônios do BIRD é sua política deliberada de restringir suas preocupações a critérios
propriamente econômicos. Isso daria ao avaliador imunidade em relação a pressões
políticas, na qual residiria o segredo de um aconselhamento bem sucedido.18
Assim, a resposta dos especialistas às críticas de Hirschman fundamenta-se na defesa da
análise custo-benefício como instrumento útil, embora não exclusivo, pelo qual se julga o
sucesso dos projetos. Na prática, diz um deles, dificilmente as decisões do BIRD são
tomadas com base apenas na razão custo-benefício, “mesmo nos setores onde essa razão é
mais útil”. Ao contrário, em seu trabalho de avaliação de um determinado projeto, os
18 17/9/65, WCB para BC.
29
técnicos acabariam por fazer, concretamente, esse esforço sustentado para visualizar
incertezas a que se refere Hirschman na sua hipótese de racionalidades escondidas.19
O interlocutor segue adiante em sua defesa das práticas correntes, ao apontar a já
mencionada falta de diálogo entre Hirschman e os técnicos da instituição. Ele teria tido
ocasião de perceber isso se tivesse tido mais oportunidade de discutir alguns de seus casos
com as pessoas do BIRD que trabalharam nos projetos visitados.
Outro técnico comenta que o manuscrito (sic) não continha nenhuma análise
“operacionalmente útil”, seja dos méritos e da prioridade dos projetos visitados por
Hirschman, seja das mudanças que poderiam ser feitas para aprimorá-los. A principal
fraqueza do relatório seria, a seu juízo, a ênfase indevida em fatores e efeitos secundários.
Para esse crítico, a tese de que efeitos colaterais poderiam, paradoxalmente, converter-se
em centrais, não era absolutamente razoável.20
O mesmo crítico usa de ironia em relação ao princípio da mão escondida. Diz o técnico
que, se bem entendido, esse princípio levaria a decisões absurdas. É bem verdade, o
raciocínio é ardilosamente construído. Mas adotar o princípio da mão escondida levaria a
recomendar às agências de fomento que privilegiassem justamente os projetos com maiores
dificuldades, pois só assim seria possível estimular a habilidade de seus administradores
19 Sobre o tema é interessante ler também o depoimento de Robert Picciotto, que entrou em contato
com Hirschman em 1964, imediatamente antes de suas visitas de campo. Picciotto, que mais tarde
assumiria a diretoria de avaliação do Banco Mundial, concorda que a tarefa de avaliação não pode
ficar confinada ao cálculo de taxas de retorno. (Picciotto 1994)
20 13/9/65, RHD para REA, box 41, 184140B.
30
para superar os gargalos. Ora, acrescenta, a despeito da forma persuasiva com que fora
exposto, o argumento de Hirschman não resistiria a uma análise mais detida. Mais ainda,
felizmente, jamais chegaria a ser acatado: “Fortunately, while the argumentation is cleverly
presented, few readers are likely to take it seriously.”21
Em outro memorando encontra-se uma crítica à pequena aplicabilidade das conclusões de
Hirschman. Reitera-se sua falta de atenção à evolução recente, e considerável, das práticas
adotadas pelo BIRD na avaliação de projetos. O progresso nessas técnicas só poderia ser
percebido nos projetos mais novos. Neste ponto o técnico sugere a ignorância de
Hirschman em relação às práticas atuais do BIRD: “It may therefore be useful for
Hirschman to read some of our recent reports to determine for himself to what extent his
suggestions are still relevant”.22
Mesmo críticos mais favoráveis insistem nessa questão da operacionalidade. Um técnico
diz não fazer reparos ao conteúdo do relatório propriamente dito, mas cobra novas
providências de Hirschman. Ele deveria preparar uma “versão operacional” de seu livro,
ou, pelo menos, acrescentar-lhe um capítulo operacional (18/1/67, HDT) A mesma
sugestão é feita por outro comentarista.23 Hirschman, contudo, retruca que não faria uma
nova versão, pois estava ocupado na edição do livro junto à Brookings Institution e
pretendia viajar para a América Latina no futuro próximo.
21 13/9/65, RHD para REA, box 41, 184140B.
22 22/9/65, HAA, memo.
23 11/4/67 AS para AOH. É interessante constatar que Hirschman agradece a Stevenson no prefácio
de seu livro, coisa que não faz em relação aos outros técnicos do BIRD que se pronunciaram sobre
seu relatório.
31
Em setembro de 1966 reuniu-se um conselho consultor convocado pelo BIRD para decidir
sobre a publicação do relatório de Hirschman. Para a reunião foi convocado Richard
Demuth, representante da Brookings Institution, que chegou a conviver com Hirschman na
Colombia. Demuth justificou sua ausência à reunião, mas mandou um parecer onde deplora
a ausência no relatório de uma análise operacionalmente útil dos méritos e da prioridade
dos projetos observados, ou mesmo sugestões de melhoria dos mesmos .
As críticas de falta de operacionalidade não sensibilizaram Hirschman. Não surpreende,
portanto, que ele as rejeite e que reproduza suas objeções às técnicas em uso pelo BIRD no
prefácio de Development Projects. Não pede desculpas, não busca contemporizar, ao
contrário, verbaliza um desafio explícito. Hirschman se refere ao capítulo em que enuncia o
princípio da mão escondida como “the most speculative chapter of the book, close to a
provocation” (grifo nosso). Definido o tom, volta suas baterias contra os críticos que
acusaram seus comentários de falta de operacionalidade. Começa em tom conciliador: nada
poderia ser menos operacionalmente útil, concorda ele, do que dizer que a subestimação
dos custos e dificuldades de um projeto é, de quando em vez, benéfica no sentido de dar
vazão a energias criativas que de outro modo teriam passado desapercebidas. Mas a
introdução cautelosa não o demove de sua posição. Em sequência, defende que a tese das
racionalidades escondidas faz parte de uma agenda oculta, a de conferir um sentido de
mistério e estranhamento à busca das mesmas racionalidades, que “tem muito em comum
com as mais altas buscas da humanidade”.
5. Viés academicista
As críticas ao relatório de Hirschman incidem também sobre seu estilo, especificamente
sobre o conteúdo pretensamente acadêmico – no mau sentido da expressão – adotado pelo
autor ao relatar suas visitas. Em tom cáustico, um especialista comenta que Hirschman não
foi capaz de distinguir um relatório de projeto de uma dissertação acadêmica: “...the Doctor
may have a point, but it must be remembered that our project reports are not academic
32
dissertations”. 24 O “ponto” a que se refere o técnico é, desta vez, a crítica de Hirschman à
regra das agências autônomas como condição para empréstimos.
Em memorando interno, outro técnico contrasta o acadêmico com o tomador de decisão.
Diz o autor que o defeito de um “exercício” como o desenvolvido por Hirschman é a
tentativa de conciliar abordagens muitos diferentes, quando se “busca um casamento entre
dois pontos de vista incompatíveis, o do tomador de decisão e o do acadêmico à busca da
verdade”.25 É possível concordar que existe uma diferença de estilo entre os dois tipos de
profissionais, o acadêmico, de um lado, e o especialista de uma instituição como o BIRD,
com preocupações práticas, de outro. Mas o defeito dessa crítica é que ela opõe a busca da
verdade à tomada de decisão técnica – curiosamente, sugere que encontrar a verdade não
seria uma meta do tomador de decisão.
A mudança de rumo
Este artigo destaca a preocupação de Albert Hirschman com o bom cumprimento de seu
papel como money doctor e, como desdobramento dessa preocupação, sua contribuição
para a sistematização de procedimentos de avaliação em uma instituição voltada para o
fomento do desenvolvimento. Mas a lacuna que este artigo quis preencher é mais restrita.
Meu objetivo é mostrar como a divergência entre Hirschman e os técnicos do BIRD gerou
estímulos para uma mudança de rumo na carreira do autor.
24 9/8/65, memo, ADS para BC (grifo no original).
25 15/9/65, memo, DSB para BC.
33
Aqui é oportuno estabelecer uma analogia com os processos migratórios, pois o episódio
sugere a presença simultânea de fatores de repulsão e fatores de atração. De um lado, os
incidentes narrados contribuiram decisivamente para a decisão do autor de abandonar o
campo da ciência econômica; de outro, as regularidades que foi capaz de observar ao voltar
sua atenção para as dimensões sociais dos projetos o estimularam a enveredar para o campo
mais amplo das ciências sociais.
É bem verdade que, como apontado por vários comentaristas (Bianchi 2007; Frobert e
Ferraton 2003; Lepenies 2009; Meldolesi 1995; Schön 1994, entre outros), um dos traços
recorrentes na obra de Hirschman é a tendência de ultrapassar barreiras interdisciplinares.
Esta não é uma característica fortuita, e já estava presente em seus trabalhos anteriores. Mas
o movimento foi, desta vez, mais ousado, a ponto de constituir um visível passo para fora
do campo da economia.
As críticas dos técnicos do BIRD a Hirschman incidiram sobre uma das grandes intuições
do autor, que serviria de “gancho” para uma hipótese recorrente em seus escritos
posteriores: a de que o futuro é indeterminado e muitas consequências importantes da
implementação de projetos são imprevistas. Na aventura da existência humana, como ele
diz, desdobramentos positivos podem decorrer de circunstâncias propícias, em que a
criatividade humana encontra elementos para driblar as dificuldades. Esse fascínio pela
novidade e essa desconfiança em relação à previsão ganham vida na retrospectiva que mais
tarde faria de sua carreira:
“I simply think that I am not much interested in forecasts; they are not part of my
theoretical impulses. ... My aim, in any event, is not to forecast tendencies; rather I am
trying to understand what may possibly happen and to shift people´s focus in that
direction.” (Hirschman 1998, p. 96)
Dessa idéia-matriz brota a concepção que Hirschman tem do processo de aprendizado
social. Para o autor, decisões arriscadas, que envolvem exposição ao erro, geram
34
oportunidades de aprendizado. A implementação de um projeto de desenvolvimento
propicia um tipo de conhecimento que emana da práxis, no qual se corrigem os rumos
decorrentes de decisões anteriores e se criam mecanismos para contornar dificuldades que
não estavam – nem poderiam estar - no horizonte do planejador. Como aponta Schön
(1994, p.83), Hirschman vê no processo de enfrentamento de problemas e portanto, na
própria ação, a fonte de capacidades necessárias para solucionar esses problemas.26
A noção de desenvolvimento desequilibrado, que tem em Hirschman um de seus primeiros
e mais autorizados defensores, caminha junto com esse reconhecimento da importância de
se aprender com a experiência, sempre rica em surpresas. Um processo desequilibrado de
desenvolvimento é também um processo de aprendizado, repleto de tensões, conflitos e
dificuldades. Bem canalizadas, essas forças podem dar vida a energias dispersas. No
learning by doing superam-se obstáculos, libera-se endorfina, obstáculos se transforma em
esporas (Schön 1994, p.71).27
26 No caderninho em que anotou suas observações da visita a agricultores do Mezzogiorno italiano,
Hirschman manifestou claramente seu interesse pelo processo de aprendizado de autoridades locais
e agricultores. Segundo ele, estes haviam enfrentado “the technical, social, economic and
administrative problems that have arisen and the manner in which they have been resolved.” (AOH
Papers, G. S. Mudd Library, Box 12). O autor consultou uma farta literatura psicológica sobre o
tema do aprendizado.
27 A esse respeito, existe uma anotação primorosa nos caderninhos de campo de Hirschman: “You
have to do all these fool things before you do the sensible things”. Mais uma vez, alude a um
aprendizado que se faz a partir da prática, um aprendizado que descarta as receitas de bolo e busca
soluções para os problemas à medida que vão sendo experimentados.
35
Os críticos tem, de certo, alguma razão em sua crítica ao relatório. Na verdade, agiram
defensivamente, em reação às críticas de Hirschman. Sua crítica às consequências não
intencionais não é em princípio descabida. Afinal, não é razoável supor que projetos de
desenvolvimento e a injeção de capital externo associada aos mesmos gerem sempre
consequências não intencionais ou, pelo menos, que tais consequências sejam sempre
benéficas. Streeten (1984) chega mesmo a sugerir um princípio simétrico inverso ao da mão
escondida, que apelida de “princípio do punho escondido”, e que geraria consequências
indesejáveis. Qualquer entidade de fomento precisa avaliar antecipadamente as chances de
êxito de um projeto, e seria temerário adotar o princípio de que seu rumo deve ser avaliado
por suas consequências imprevistas.
Hirschman não chega ao extremo de negar a possibilidade de consequências imprevistas
indesejáveis, mas rechaça o uso das técnicas em voga na avaliação de projetos, para tornar
essa tarefa, em contraponto, muito mais dependente da intuição do analista, do “faro” que
este possa ter para localizar as soluções criativas encontradas pelos beneficiários na
superação de gargalos. Mas, como indaga Schön (1994, p. 79), é razoável supor que todos
os tipos e graus de dificuldades são salutares para o desenvolvimento? Ou apenas alguns
deles, em circunstâncias bem definidas? Se esta for a resposta, como diferenciar uns de
outros?
Por outro lado, a pretensão do staff do BIRD de encontrar o indicador perfeito, que pudesse
refletir todas as dimensões de um projeto de desenvolvimento é, de certo, descabida. Sua
deficiência não decorre do nível de sofisticação econométrica que pressupõe, certamente
difícil de atingir, mas porque é exposta como uma justificativa para se desconsiderarem as
dimensões sociais dos projetos. É a velha e surrada história, se é difícil de medir, então
deve ser retirado da frente...
Talvez por não ter conseguido convencer seus colegas de trabalho da necessidade de levar
em conta os tais aspectos colaterais é que Hirschman se desiludiu com a Economia e com
36
os economistas e decidiu lançar-se à aventura de exploração dos territórios vizinhos. Seu
próximo livro, Exit, Voice and Loyalty, publicado em 1970, já estaria do outro lado da cerca
que isola os economistas dos demais cientistas sociais. Para o olhar retrospectivo, foi uma
surpresa anunciada. A decisão de Hirschman já estava madura quando escreveu o prefácio
de Development Projects, onde enuncia: “...the present book was not only the last volume
of my ´trilogy´on development but became the bridge to the broader social science themes
of my subsequent writings”.
Conclusão provisória
Relatei neste artigo uma etapa importante da carreira profissional de Albert Hirschman, que
girou em torno da pesquisa de campo que realizou em 1964-65, em onze projetos do Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, uma das instituições que integram o
Banco Mundial. Os resultados dessa pesquisa foram expostos no livro Development
Projects Observed, texto que representou a culminância da obra pioneira do autor no campo
da economia do desenvolvimento.
Procurei aqui mostrar os impasses que o autor teve de superar para viabilizar a execução de
sua proposta junto ao BIRD e, posteriormente, para transformar em livro seu relatório de
viagem. Os desacordos são emblemáticos dos conflitos que afetam uma instituição jovem,
que tomou para si a complexa tarefa de promover o desenvolvimento econômico.
Certamente, este não foi o único caso de um autor que enfrentou a resistência de seus pares
nas conclusões extraídas de sua pesquisa de campo e em sua concepção do papel das
agências de fomento ao desenvolvimento. Que sirva, pois, como contraponto para novas
incursões da mesma natureza, com outros autores, outros cenários, outras instituições.
REFERÊNCIAS
37
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2007, from Princeton University. Website:
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Alacevich, Michele (2008). Visualizing uncertainties: Albert O. Hirschman and project
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Bianchi, A. M. (2009). Visiting-economists through Hirschman’s Eyes. aceito para
publicação no European Journal of the History of Economic Thought.
Bianchi, A.M. (2007). Albert Hirschman na América Latina e sua trilogia sobre
desenvolvimento econômico, Economia e Sociedade, 16 (2-30), p. 131-150.
Drake, P.W. (1994). Introduction. in Drake, P. W. (Ed.). Money doctors, foreign debts, and
economic reforms in Latin America from the 1890s to the present (pp. xi-xxxiii).
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