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Escola da Cidade
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
BELO MONTE: UMA CARTOGRAFIA DA AUSÊNCIA
A DESTERRITORIALIZAÇÃO DOS BEIRADEIROS
Relatório Final – Pesquisa de Iniciação Científica
Pesquisadora: Maytê Tosta Moledo Coelho
Orientadores: Profa. Dra. Marta Lagreca (EC) e
Prof. Dr. José Paulo Gouvêa (EC)
Colaboradores: Prof. Dr. José Guilherme
Schutzer (EC), Prof. Dr. Paulo Bomfim (IFSP) e
Profa. Dra. Karina Leitão (USP)
São Paulo
2016
MAYTÊ TOSTA MOLEDO COELHO
Belo Monte: uma Cartografia da Ausência – A desterritorialização dos beiradeiros
Relatório apresentado à Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo Escola da Cidade como requisito para a
realização de Iniciação Científica inserida no
Projeto Contracondutas.
Orientadores: Profa. Dra. Marta Lagreca (EC) e
Prof. Dr. José Paulo Gouvêa (EC)
Colaboradores: Prof. Dr. José Guilherme
Schutzer (EC), Prof. Dr. Paulo Bomfim (IFSP) e
Profa. Dra. Karina Leitão (USP)
São Paulo
2016
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 5
1.1 Justificativa do trabalho ................................................................................................... 7
2 PROBLEMA DE PESQUISA .............................................................................................. 8
2.1 Objetivos gerais .................................................................................................................... 8
2.2 Objetivos específicos ............................................................................................................ 8
3 METODOLOGIA .................................................................................................................. 9
4 ESTUDO INICIAL ................................................................................................................ 9
4.1 Discussões conceituais ....................................................................................................... 10
4.2 Aproximações cartográficas ............................................................................................... 24
4.2.1 Contexto Nacional ........................................................................................................... 24
4.2.2 Mapa IBGE ...................................................................................................................... 30
4.2.3 Mapa EIA/RIMA ............................................................................................................. 32
4.2.4 Reflexões ......................................................................................................................... 34
5 DISCURSOS CONFLITANTES ........................................................................................ 36
5.1 Discurso oficial – RIMA .................................................................................................... 37
5.2 Discurso não-oficial – Dossiê de Belo Monte .................................................................... 60
5.3 Reflexões ............................................................................................................................ 72
6 ANÁLISE DA CARTOGRAFIA OFICIAL – EIA .......................................................... 81
6.1 Desterritorializações e Reterritorializações ........................................................................ 82
6.1.1 ADA Rural ....................................................................................................................... 82
6.1.1.1 Reservatório do Xingu .................................................................................................. 83
6.1.1.2 Reservatório dos Canais ............................................................................................... 85
6.1.1.3 Reflexões ...................................................................................................................... 87
6.1.2 ADA Urbana .................................................................................................................... 87
6.1.2.1 Igarapé Altamira ........................................................................................................... 87
6.1.2.2 Igarapé Ambé ............................................................................................................... 89
6.1.2.3 Igarapé Panelas ............................................................................................................. 92
6.1.2.4 Reflexões ...................................................................................................................... 93
6.2 Modos de Vida ................................................................................................................... 95
6.2.1 Reflexões ....................................................................................................................... 100
6.3 Usos do Rio Xingu ........................................................................................................... 101
6.3.1 Reflexões ....................................................................................................................... 103
7 CARTOGRAFIA DA AUSÊNCIA .................................................................................. 104
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 106
9 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 108
10 GLOSSÁRIO ................................................................................................................... 109
5
1 INTRODUÇÃO
A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior hidrelétrica do mundo, foi
construída na bacia do Rio Xingu, próxima ao município de Altamira, no norte do Pará. O
projeto e obra, operados pela Norte Energia S.A., estão inseridos no PAC (Plano de
Aceleração de Crescimento), programa do governo federal lançado em 2007, que visa à
implementação de obras de infraestrutura a fim de alavancar o desenvolvimento nacional
analogamente a planos anteriores no Brasil. Desde o início, encontrou grande oposição por
ambientalistas e comunidades locais, o que suscitou uma série de alterações que resultaram no
projeto atual. Entretanto, houve inúmeros erros e omissões, tanto por parte da empresa Norte
Energia, quanto pelo governo federal, na condução das obrigações socioambientais
relacionadas à Usina, enfatizando o grande descompasso entre a execução da obra e a
realização das ações de mitigação e compensação de impactos na região afetada (ISA, 2015).
Para viabilizar a construção da UHE (Usina Hidrelética) de Belo Monte, foi feita como
premissa uma Avaliação de Impacto Ambiental, medida imposta pelo IBAMA (Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), na qual foram elaborados
estudos e avaliações dos impactos ambientais relacionados à implantação da obra na região.
As ações antecipatórias e de compensação dos impactos contidos nesses estudos,
comprometidos com os órgãos ambientais e com os movimentos sociais, foram adaptados ao
cronograma energético imposto pelo governo.
Desde a emissão da primeira licença, foram evidentes os inúmeros problemas na
condução do processo de licenciamento, tais como a insuficiência de estudos sobre a
qualidade da água dos reservatórios e as incertezas quanto às condições ambientais da Volta
Grande do Xingu após o desvio do Rio, uma região de rica biodiversidade, sendo o berço de
inúmeras espécies endêmicas de fauna e flora, além de abrigar diversos povos indígenas. É
clara a falta de consideração pelo tempo necessário para o cumprimento adequado das
condicionantes socioambientais de viabilidade da usina, dado o contexto muito sensível da
região. Este descompasso, portanto, impediu a devida realização das ações antecipatórias de
saúde, educação e saneamento básico, que deveriam preparar a região para receber a obra,
prevenindo e minimizando os impactos. O descompasso, então, só se aprofundou com o
tempo.
Com a nova dinâmica, a região (como os municípios de Altamira, Vitória do Xingu,
Brasil Novo) sofreu uma grande mudança. Houve uma migração de aproximadamente 75 mil
6
pessoas atraídas pela obra, aumentando drasticamente a demanda por infraestrutura e serviços
públicos (ISA, 2015). Os investimentos correlatos em infraestrutura de saúde, educação,
saneamento básico e segurança foram bastante insuficientes e inadequados (ISA, 2015).
Devido a este crescimento populacional repentino, os indicadores de violência também
aumentaram, com maiores casos de homicídios, violência contra mulheres e adolescentes,
acidentes de trânsitos, furtos e roubos, além de prostituição e drogradição. Os hospitais
sofreram superlotação na maior parte do tempo, o que interferiu também nas populações
rurais e indígenas que viajaram para o centro da cidade em busca de atendimento médico, sem
condições e com grandes esperas no local. A educação também sofreu sobrecarga, além da
piora dos indicadores de abandono escolar e reprovação, que se agravou com a oferta de
emprego nos canteiros de obras. As estações de tratamento de água e esgoto, por sua vez,
foram concluídas, mas as redes de tubulação não foram ligadas aos domicílios. Com o
barramento do Rio, as águas do reservatório e as subterrâneas foram muito degradadas.
O programa de realocação urbana também foi muito desorganizado, insuficiente e
pouco transparente. As populações das áreas rural e urbana foram obrigadas a sair de forma
rápida e compulsória de suas casas, pressionadas a escolher uma das propostas de
compensação, sem acesso à informação e à assistência jurídica gratuita: reassentamento rural
coletivo ou individual (longe do centro e de qualquer infraestrutura), indenização em dinheiro
(inviabiliza a compra dos caros terrenos devido à nova demanda) e carta de crédito ou
realocação assistida (impraticável para a população majoritariamente analfabeta, com pouco
acesso à informação e em meio ao caos fundiário). Não houve preocupação em procurar
condições similares às antigas para os moradores, desrespeitando e prejudicando agricultores
e comunidades beiradeiras, que sobreviviam à base da pesca, levadas para longe do Rio.
Além disso, a atividade pesqueira tradicional sofreu grandes riscos devido à
construção da Usina, que gerou alterações na turbidez da água, intensas iluminações dos
grandes canteiros, ruídos e vibrações causados por explosões ao redor do local, afastando
peixes e alterando também o aspecto físico do Rio Xingu. O investimento das condicionantes
indígenas, por sua vez, não buscou a mitigação e compensação dos impactos, mas sim o
fornecimento de bens materiais e mesadas, criando um relacionamento de padrão clientelista
entre os povos indígenas e a empresa e colocando em risco a saúde, a segurança alimentar e a
autonomia desses povos, devido à desestruturação social e ao enfraquecimento dos sistemas
de produção de alimentos. Deste modo, a empresa conseguiu somente “acalmar e controlar”
7
temporariamente os processos de organização e resistência indígena, mas com efeitos
perversos à saúde e à produtividade desses povos.
Devido à insuficiência de ações efetivas de reforço da fiscalização ambiental na
região, o histórico problema da exploração ilegal de madeira se potencializou de forma
abrupta – pondo em risco também as Terras Indígenas e as Unidades de Conservação do local.
Além disso, houve grande desperdício de madeira extraída dentro do canteiro de obra,
levando o empreendedor a comprar uma enorme quantidade de madeira do mercado regional
e reforçando esta pressão ao incentivar este mercado, majoritariamente ilegal.
Tendo em vista estes grandes equívocos e atrasos nas ações fundamentais para a
garantia de direitos das populações atingidas, é clara a necessidade de revelá-los e comunicá-
los. A ausência do planejamento socioambiental e o descumprimento das regras provindas de
instituições responsáveis são problemas a serem questionados e mudados com urgência nas
grandes obras que acontecem no país.
1.1 Justificativa do trabalho
A pesquisa está inserida no Projeto Contracondutas, que teve origem na denúncia e
flagrante de trabalho análogo ao escravo no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na grande
obra do Terminal 3. O projeto busca, através de pesquisas acadêmicas e jornalísticas e de
atividades didático-pedagógicas, levantar, analisar, problematizar e comunicar o trabalho
análogo ao escravo na indústria da construção civil, incluindo também os ramos da arquitetura
e do planejamento urbano de infraestrutura no país para além do caso específico do Terminal
3.
As linhas de pesquisa do Contracondutas surgiram a partir do compromisso da
Faculdade Escola da Cidade com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado pelo
Ministério Público de Trabalho. Deste modo, a presente pesquisa faz parte da linha geral
“Belo Monte, uma ‘cartografia da ausência’ – os beiradeiros atingidos”.
8
2 PROBLEMA DE PESQUISA
A presente pesquisa tem como objeto aprofundar o estudo acerca dos impactos da
construção da usina de Belo Monte, sobretudo em relação às populações autóctones, como
beiradeiros e povos indígenas, à margem das grandes políticas públicas. O estudo vem sendo
realizado com base nas áreas de influência do empreendimento mais impactadas pela Usina de
Belo Monte, no caso o município de Altamira, especialmente buscando entender as
representações cartográficas divulgadas pelos órgãos oficiais – as quais legitimam as políticas
de planejamento que possuem traços desenvolvimentistas de otimização do capital. Estas, por
sua vez, provocam processos de desterritoralização e reterritorizalização destas populações
intencionalmente emudecidas, expropriadas e pouco evidenciadas em favor do avanço
acelerado da modernidade, cujo discurso apela para o imperativo do “progresso” negando os
conflitos já existentes e gerados por esse mesmo sistema.
2.1 Objetivos gerais
O objetivo da pesquisa é, então, a confecção de procedimentos cartográficos e
textuais, que permitam compreender e ressaltar os processos de desterritorialização devido
aos fluxos materiais e imateriais das populações tradicionais e preexistentes impactadas pela
obra. A fim de aprofundar o entendimento sobre estes deslocamentos provindos da instalação
da Hidrelétrica, o estudo e a produção cartográfica buscam analisar, principalmente, as
comunidades beiradeiras ao longo do Rio Xingu e suas atividades socioeconômicas e
culturais, que passaram a sofrer grandes alterações quando expostas a este novo contexto.
2.2 Objetivos específicos
a) compreender de forma mais detalhada os processos gerados pela implantação de políticas
públicas que visam às grandes obras de infraestrutura no país.
b) divulgar as ausências cartográficas e as contra condutas no caso específico da construção
da UHE de Belo Monte.
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c) produção de uma cartografia alternativa que contemple e releve as questões e os impactos
sofridos pelos beiradeiros do Rio Xingu.
3 METODOLOGIA
Para o desenvolvimento do trabalho de pesquisa, foram adotados os seguintes
procedimentos: leitura e discussão de artigos e bibliografia escolhidos entre pesquisadores,
orientadores e colaboradores, a fim de fundamentar o referencial teórico e constituir uma base
conceitual que possibilitasse uma melhor análise cartográfica – iniciada nas etapas
denominadas discussões conceituais e aproximações cartográficas, elaborada em conjunto
com os orientadores e as duas pesquisadoras.
Posteriormente, visando à construção da cartografia não revelada, foram escolhidos
documentos que expressassem leituras “oficiais” e “não oficiais” sobre os impactos da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte sobre as populações atingidas, especialmente os beiradeiros. Os
documentos analisados foram o EIA-RIMA da UHE Belo Monte, produzido pela Leme
Engenharia (2006), e o Dossiê de Belo Monte, produzido pelo Instituto Socioambiental
(2015). Por último, foram construídas cartografias das ausências, de acordo com os dados
disponíveis e com o conhecimento produzido.
4 ESTUDO INICIAL
A fim de construir o conhecimento sobre a área de estudos e as variáveis em questão –
os interesses em jogo, as convenções, as perspectivas, o período histórico em que se situa a
construção da UHE de Belo Monte e seu impacto no território –, foram selecionados alguns
autores e fontes bibliográficas (como dissertações, livros e artigos), inicialmente lidos e
discutidos com a ajuda dos professores orientadores e posteriormente sistematizados pelas
pesquisadoras.
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4.1 Discussões conceituais
Inicialmente, foi proposto o aprofundamento da discussão sobre o texto: “Quem
impede o desenvolvimento ‘circular’?: Desenvolvimento e povos autóctones: paradoxos e
alternativas”, de Dominique Perrot, 1991.
A partir deste, é possível analisar o paradoxo da construção da Usina no local em que
foi escolhida. Uma região de alta biodiversidade, demarcada pela coabitação de diversas
populações tradicionais e /ou extrativistas, pela falta de infraestrutura básica e pela violência,
agora impactada pela política de planejamento da infraestrutura energética implementada no
país.
No texto apresentado, Dominique Perrot busca investigar o paradoxo entre
desenvolvimento e povos autóctones. Segundo sua ótica, ambos são conflitantes, se
contradizem. Possuem duas perspectivas diferentes, dois planos de realidade. A ideia de
desenvolvimento enquanto dogma moderno inevitável pode coexistir com a sobrevivência de
povos autóctones no mundo contemporâneo?
A autora inicia a discussão descontruindo o conceito de povo autóctone. Face ao
desenvolvimento insensato em que nos encontramos hoje, pode-se dizer que o planeta está
cada vez menor, mais palpável. Mas também cada vez mais devastado e ameaçado. Deste
modo, a noção de autoctonia ganha uma dimensão mais variável ao se pensar nos seres
humanos que habitam o mesmo e único território disponível, constantemente depredado.
“Não saberíamos, sem deixar o campo da decência, comparar os tipos de pressão a que são
submetidos, por exemplo, os índios da Amazônia, de um lado, com o que sofre o cidadão de
uma grande cidade poluída.” (PERROT, 1991, p.219)
Entretanto, há uma linha tênue entre as vítimas e os beneficiários desse sistema, o que
preocupa mais ainda aos privilegiados da modernidade. Essa aproximação se torna clara
quando se observa que as questões sobre a preservação do mundo enquanto um sistema
complexo autorregulador se aliam às questões emergentes dos povos autóctones, como
populações ribeirinhas, indígenas ou aborígenes. O chamado “desenvolvimento sustentável”
busca responder aos interesses de ambos os lados. Entretanto, as inúmeras intervenções feitas
por quem se preocupa em manter os recursos naturais, ainda em nome do desenvolvimento, só
tornam a sobrevivência dos povos autóctones cada vez mais precária.
A autora evidencia, então, que não há como os povos autóctones sobreviverem,
enquanto povos com culturas e modos de vida específicos, em meio à ideologia do
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desenvolvimento como sistema único e inevitável. Para isso, Perrot cita outros exemplos ao
longo da história em que o lado mais poderoso se apropria do mais fraco – como os
colonizadores e missionários europeus, que exterminavam os povos indígenas ou os forçavam
a se adequar aos seus valores civilizatórios e religiosos em nome do desenvolvimento. O
paradoxo do desenvolvimento se torna evidente ao analisar a noção de progresso a todo custo
e as práticas de expropriação.
Como distinguir, então, o desenvolvimento como bom ou mau? A fim de responder
esse paradoxo, Dominique Perrot inicia um processo de descolonização conceitual, no qual
busca descontruir os dogmas e paradigmas do desenvolvimento, visando compreender a
origem histórica dessa imposição. Desse modo, entende-o como derivado de três pilares
próprios ao Ocidente: Aristóteles, judaico-cristianismo e ideologia iluminista. Segundo essa
ótica, pode-se pensar o desenvolvimento como um processo natural, desejável, linear,
inevitável, irreversível, com um objetivo final. Apesar de haver críticas à noção de progresso
– devido às falhas e problemas consequentes desse sistema –, o desenvolvimento permanece
até os dias atuais como resposta e parâmetro de demarcação do traçado da História.
Entretanto, ao pensar o desenvolvimento no contexto das populações indígenas, o autor
o entende como um conceito não transcultural. Portanto, criado em determinado momento da
história por determinado jogo de forças. A autora caracteriza, então, a natureza de sua relação
“por uma valorização geral das pessoas e recursos naturais através de mecanismos de
mercado” (PERROT, 1991, p. 221), o que somente beneficia as minorias dominantes que cada
vez mais mantêm o dogma do desenvolvimento intacto. Isso ocorre de modo a passar por cima
do maior risco dessa prática, expropriando e destituindo qualquer tipo de capacidade
diferencial, como os povos autóctones. Por outro lado, a autora também compreende o
desenvolvimento como eficaz enquanto transformador de relações sociais e naturais em bens
de mercado e capital financeiro.
Ao pensar em uma possível relação social com povos autóctones, Dominique Perrot
enfatiza a necessidade de uma crítica profunda aos movimentos alternativos de
desenvolvimento. Considerando-o como um conjunto de práticas baseadas em uma visão de
mundo específica e particular, se torna contraditório articular alternativas como
autodesenvolvimento, etnodesenvolvimento e desenvolvimento endógeno, pois se tratam de
diferentes identidades culturais e o próprio conceito de desenvolvimento carrega em si uma
série de aspectos culturais específicos.
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Isso se torna evidente ao analisarmos projetos de ONGs e associações. Apesar de bem
intencionadas, são instituições que projetam e visam ajudar os povos autóctones a se
relacionarem melhor com os próprios conceitos e ideologias da modernidade imposta pela
sociedade ocidental. Em alternativa a isso, há muitas organizações indígenas que,
representando suas comunidades, buscam um profundo conhecimento sociológico das
mudanças políticas e organizacionais das ajudas, a fim de evitar que a intervenção externa
impeça o crescimento e a continuação de sua própria comunidade e cultura.
Ainda decompondo o aspecto das intermediações entre povos autóctones e o
desenvolvimento, proposto por organizações e instituições, Dominique Perrot analisa a
“Declaração sobre o direito ao desenvolvimento”, publicada em 1986 pela ONU (Organização
das Nações Unidas) e composta por uma série de discursos que tratavam o desenvolvimento.
Esta não considera as questões ambientais geradas por meio do desenvolvimento e não
menciona os povos indígenas e suas questões emergentes e tão particulares no contexto
Estado-nação.
Apesar de não nomear os povos autóctones e as minorias, a Declaração cita o direito à
autodeterminação. O discurso se torna contraditório uma vez que não há como equivaler o
direito à autodeterminação e o direito ao desenvolvimento para esses povos, pois seus
princípios da autodeterminação esbarram diretamente com conceitos intrínsecos à concepção
de desenvolvimento. A proclamação, portanto, é um instrumento que encobre as relações de
força, poder e política que impedem os direitos fundamentais e a luta dos povos indígenas e
de outras categorias dominadas.
A versão revisada da Convenção 107 sobre as populações tribais e indígenas, adotada
pelo BIT (Conferência Internacional do Trabalho), por sua vez, trata só dos povos autóctones.
Entretanto, ao contrário do proposto, a participação dos representantes dos povos indígenas na
elaboração do documento se deu de forma muito desigual, marginal, sendo somente
espectadores do processo. Os termos utilizados nas concessões do reconhecimento dos
direitos dos povos autóctones foram prioritariamente “participação” e “consulta”, o que
consequentemente significa a falta de controle e do direito de escolha e recusa sobre projetos
externos impostos ou que afetam direta ou indiretamente essas populações. Desse modo, se
torna claro que estes povos tem o direito de participar ou de serem consultados, mas não
possuem o direito de negar propostas de desenvolvimento ou discernir sobre questões que
envolvam ou afetem suas terras.
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Ao discutir a relação de desenvolvimento com os povos indígenas, Dominique Perrot
considera alguns paradoxos. O primeiro avalia que não é possível desenvolver o que já é
desenvolvido, questionando a relatividade do termo em si para povos com diferentes culturas.
Articula, ainda, que ao recusar o desenvolvimento, o povo reitera seu próprio destino, e não o
estagna ou o retarda, pois recusa a participação dentro de uma relação completamente
assimétrica que visa à conversão das pessoas em partes pequenas e enfraquecidas deste grande
sistema normativo. O segundo profere que toda sociedade, por força de sua reprodução, deve
saber enfrentar mudanças, sendo verdadeiro também às comunidades comunitárias quando
forçadas a entrar em contato com a sociedade moderna. Já o terceiro, descreve as
consequências da ajuda externa dentro de uma sociedade. Quanto mais pobre for a sociedade,
mais o contato se torna desestabilizador e mal absorvido, mesmo que bem intencionado.
Perrot conclui ao entender a dificuldade da sobrevivência dos povos autóctones em
contato com a cultura ocidental. Apesar disso, há recursos e ferramentas das quais os povos
podem se apropriar para facilitar a comunicação entre os lados. As novas formas de
sobrevivência estão, portanto, constantemente ameaçadas em decorrência do avanço acelerado
do desenvolvimento. Nesta lógica, considera o caráter destruidor desse movimento o fato de a
abundância inacabável de uns acarretar na expropriação de outros.
A obra possibilita, portanto, uma maior apreensão sobre as inúmeras controvérsias do
estudo de caso escolhido para a pesquisa de iniciação científica e todas as questões
envolvidas: o projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e seus impactos nas comunidades
ribeirinhas. Visando acelerar o desenvolvimento nacional a qualquer custo, o governo federal,
através do PAC (Plano de Aceleração de Crescimento), aprovou e licenciou uma obra de
grande porte que afeta uma imensurável quantidade de pessoas, mais vulneráveis,
expropriando-as de suas terras, culturas e fontes de recursos naturais.
Deste modo, pode-se observar como os povos autóctones da região de Belo Monte, os
beiradeiros, são diretamente impactados pela instalação dessa nova infraestrutura. Apesar de
habitarem o local, são reduzidos e expropriados em nome do desenvolvimento, sem ao menos
terem poder de veto ou opinião sobre a instalação da usina, que impacta tanto no aspecto da
desapropriação de edificações, quanto do próprio modo de vida da região.
A presente pesquisa, ainda, propõe a análise crítica de cartografias já existentes e a
construção de cartografias experimentais como forma de expressão das análises do objeto de
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estudo. Neste sentido buscou-se aprofundar o conhecimento sobre esta ferramenta de trabalho,
a produção cartográfica, por meio da discussão intensa de dois capítulos da Dissertação de
Mestrado “Cidade do mapa: a produção do espaço de São Paulo através de suas
representações cartográficas” de José Paulo Neves Gouvêa, 2010 (p. 1-70).
A fim de melhor compreender os fundamentos e conceitos que instrumentam a análise
cartográfica, neste caso a de São Paulo, José Paulo Gouvêa busca aprofundar fundamentos
sociais e econômicos e levantar termos utilizados como elementos indispensáveis para a
compreensão da mesma. Introduz, então, a questão por meio de análises e questionamentos da
imagem histórica e socialmente construída dos mapas e como são entendidos hoje: um
registro fiel e real de um espaço em determinado tempo. Diz, ainda, que a sua eficácia como
ferramenta de persuasão se dá através do discurso de transparência que busca convencer o
observador de que se trata de uma realidade.
Além disso, destaca na produção cartográfica seu ambivalente papel científico e
artístico, que ocorre de forma simultânea e de fácil apreensão. Os mapas, portanto, constroem
uma realidade própria e não são somente a representação de uma já existente. São
instrumentos utilizados por específicos interesses, sendo assim, incapazes de representar a
realidade como um todo – pois, de modo isolado, simbolizam somente determinada visão de
determinado espaço.
Para melhor fundamentar seu caminho conceitual, o autor buscou um maior
aprofundamento em obras de grandes pensadores na área de economia política, como Karl
Marx, e na de produção social do espaço, como Henri Lefebvre. No primeiro capítulo,
Gouvêa expõe termos e conceitos utilizados no campo da cartografia para enfim poder
analisar como os mapas interferem socialmente e como são dirigidos por determinados atores
sociais e seus interesses. Para isso, decompõe primeiramente os conceitos de modo de
produção, produção do espaço e representação para então construir a conceituação de espaço
abstrato.
José Paulo Gouvêa estudou o conceito de modo de produção por meio do estudo da
evolução social e econômica de Marx (presente no livro “Formações Econômicas Pré-
Capitalistas”, 2006), no qual ele discorre sobre a propriedade e sua relação com o trabalho.
Essa relação dá-se no sentido de que o homem, na atividade social de viabilizar sua
subsistência, age sobre a natureza e dela se apropria. A partir dessa nova apropriação das
condições naturais, o homem constrói relações sociais e novas concepções que compõem a
sociedade, sendo essa a base da relação homem-natureza.
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Ainda segundo o texto, Marx percebe um progressivo afastamento entre propriedade e
trabalho, culminando na completa separação: o modo capitalista, somente torna-se viável
quando o homem se afasta de suas condições naturais de produção, o que viabiliza que o
trabalho possa ser moeda de troca livre por dinheiro. Entende, por tanto, cada fase desse
processo de distanciamento como modo de produção. Entretanto, isso não significa que exista
uma ordem cronológica ou de importância. A fim de compreender o conjunto dessas
transformações de modo geral, Marx divide-o em quatro fases, desde a propriedade comunal
direta, até a dos dias atuais. Essa, por sua vez, é caracterizada pelo Capital que se apropria
somente do trabalho, mas não mais do homem, dispensável enquanto condição de produção.
“Seguindo a análise de Marx, percebemos que o modo capitalista é a forma em que o
trabalho vivo mantém uma relação de não-propriedade com a matéria prima, com os
instrumentos de trabalho e com os meios de subsistência, necessários durante o
próprio processo de produção, e acima de tudo, a não-propriedade da terra (MARX,
2006). Na visão de Marx essa é a relação que implica propriedade, produção e modo
de produção.” (GOUVÊA, 2010. p. 36)
Para melhor compreensão deste conceito no campo cartográfico, é necessário um
aprofundamento sobre o espaço e sua produção. Dessa forma, José Paulo Gouvêa parte da
discussão de Henri Lefebvre em “A Produção do Espaço” (1998), na qual o espaço e o tempo
sociais são produtos, para definir a produção do espaço: um conjunto de relações que definem
uma sociedade em sua totalidade, um momento. Define o espaço, então, enquanto produto,
como diferente de outras mercadorias, por não ser passivo ou vazio ou ter a troca e o consumo
como finalidades exclusivas. Além de produto, define-o também como produtor porque
“intervém na produção social, na organização do trabalho, no fluxo, e no estoque de matérias
primas e energia e nas redes de distribuição. É, portanto, produto-produtor” (GOUVÊA, 2010,
p. 37). O espaço, portanto, enquanto produtor, produz o reprodutível, o re-produto, o
reproduzido.
Ainda, analisa o espaço como tendo uma relação com o modo de produção. Considera
importante para a compreensão dessa relação, a periodização feita por Jorge Oseki (em “O
Único e o Homogêneo na Produção do Espaço”, 1996) sobre a história do espaço segundo as
quatro fases do modo de produção de Karl Marx. Conceitua, então, o espaço analógico, o
cosmológico, o simbólico e o perspectivo. Esse último período ocorre na Idade Média,
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quando há uma completa separação entre produção e comércio e a cidade, consequentemente,
detém a maior parte das relações sociais e econômicas. Também surgem os primeiros
instrumentos utilizados para o estudo cartográfico e a perspectiva de Brunelleschi e Alberti,
que transforma a visão de mundo como uma única estrutura espacial, permitindo uma maior
precisão e objetividade nos mapas.
Essa nova concepção de mundo como totalidade foi incrementada também pelo uso do
calendário e o relógio, que gerou um tempo mensurável e universal, criando novas relações
sociais, como a de quantificação do trabalho. Gouvêa entende que tanto o espaço quanto o
tempo, portanto, são suportes para a atividade humana por serem ligados ao modo de
produção.
Ao pensar na produção do espaço a partir do modo capitalista descrito por Marx, já
citado acima, caracteriza o espaço capitalista como hierarquizado, despedaçado e
homogêneo, além de dependente do Estado. Neste período ocorre a criação da maior parte do
objeto de estudo da dissertação: os mapas de São Paulo. Para melhor compreensão desse
espaço, que nomeia como espaço abstrato, Gouvêa aponta primeiro os mapas enquanto
representações, pois mediam a relação entre o espaço e as atividades sociais que ocorrem
nele.
Para fazer essa análise, o autor se apoia na teoria das representações de Henri
Lefebvre, em “La Presencia y La Ausencia”, que aponta que as representações, além de
interpretarem dada realidade, também interferem nela. Segundo a teoria, o representado é
superado pelo representante, deste modo, está ao mesmo tempo ausente e presente na
representação – ao passo em que ausência e presença supõem uma a outra. Como mediação, a
representação ganha poder pela forma dual em que opera: de simular e dissimular, permitir e
impedir, ser falsa e verdadeira simultaneamente.
Ainda segundo Lefebvre, para viabilizar uma análise crítica e, desta forma, não
enganosa sobre as representações, é necessário investigar essa força ambígua das mesmas,
aprofundando também o estudo de suas origens e influências.
Seguindo os pensamentos de Marx e Lefebvre, José Paulo Gouvêa entende que as
representações, assim como a ideologia, apesar de serem diferentes, possibilitam o modo
capitalista e sua consequente forma de exploração. A ideologia, pois é a lógica da dominação
social e política (MARX, 1982). Já a representação, por possibilitar, por exemplo, a
representação quantitativa do trabalho, agora medido pelo tempo de trabalho, reduzindo a
atividade individual que o trabalhador realiza. A quantificação do trabalho é, portanto, uma
17
medição e não o trabalho em si. “A representação do trabalho, portanto, coloca-se entre
trabalho e trabalhador, deslocando o representado.” (GOUVÊA, 2010, p. 49).
Os relógios e os mapas são, por sua vez, instrumentos para representações articuladas
e estabelecidas pelo modo de produção capitalista e por sua ideologia. Assim como a medição
do trabalho não é o trabalho, a medição do tempo não é o tempo. O espaço medido, portanto,
não é o espaço vivido (GOUVÊA, 2010). Deste modo, o mapa suporta de forma material e
abstrata o espaço capitalista e sua consequente quantificação. O autor conclui, então, que o
espaço, assim como o tempo, não só representa o conjunto da experiência humana, mas
estrutura, de forma simbólica, o próprio conjunto através das representações – o que
possibilita a forma de dominação e exclusão citada anteriormente.
Para definir o espaço abstrato, Gouvêa cita ainda a análise de Lefebvre que, por sua
vez, divide o espaço social em três classificações que totalizam sua unidade. A primeira
classificação é o espaço físico (ou espaço vivido), composto por uma elaboração dupla: a
representação do espaço (ou espaço concebido), sendo essa a segunda classificação, que
constitui o espaço da cartografia, do conhecimento, da ciência, do progresso, “o espaço
dominante na sociedade, que atualiza e suporta as relações sociais de produção e de
reprodução” (GOUVÊA, 2010, p. 51); e o espaço das representações (ou espaço percebido),
como terceira classificação, regido por simbolismos e pela irregularidade da vida social. O
espaço vivido, então, como objeto representado, é reduzido pelas duas representações, o
espaço concebido e o percebido. Entretanto, segundo Lefebvre, apesar de fragmentado, os três
espaços se conformam enquanto prática espacial.
A partir disso, inicia uma decomposição do espaço desde o da Antiguidade
(denominado espaço absoluto) até o espaço abstrato, a partir do final do século XX;
analisando as diversas transformações sociais, econômicas e políticas, no aspecto das
representações de espaço e tempo e dos modos de produção e reprodução, no consciente e no
inconsciente. Entende que o espaço social absoluto se fragmenta totalmente quando
suplantado, no capitalismo, pelo espaço abstrato. Lefebvre caracteriza-o em três aspectos: o
geométrico, redutível como espaço euclidiano, homogêneo; o ótico, que implica a supremacia
da visão sobre os outros sentidos e do escrever como prática social; e o fálico, como um
objeto cheio, que representa a violência brutal e a força masculina, mas também a do poder
político e repressor.
18
Ao discorrer agora sobre a abstração propriamente dita, Lefebvre, segundo Gouvêa,
entende o espaço como o maior instrumento que assegura a manifestação da violência
intrínseca ao uso social da abstração.
“Marx e Engels mostraram, por seu lado, que não podia haver violência ‘pura’ e
absoluta, sem base econômica, sem luta de classes, sem ‘expressão’ da classe
dominante economicamente, pois o Estado não pode se estabelecer sem apelo a
recursos materiais, sem objetivo se repercutindo nas forças produtivas e nas relações
de produção.” (LEFEBVRE, 2006, p. 187)
Deste modo, definido o conceito de espaço abstrato, é ilustrada a realidade e o contexto no
qual se deu a produção do espaço atual, conhecimento necessário para a análise da cartografia
da cidade de São Paulo feita por José Paulo Gouvêa no capítulo segundo de sua dissertação e
também para análise das cartografias da presente pesquisa.
O segundo capítulo, então, inicia-se com uma aproximação da análise da cartografia
em si, com base em autores como Brian Harley e Pierre Bourdieu. Segundo a análise de
Harley em “La Nueva Naturaleza de los Mapas; Ensayos sobre la História de la Cartografía”,
os mapas se assemelham muito a um texto, podendo ser lidos como um, dotados de diversos
significados e simbologias. Por afirmar a falta de neutralidade e cientificidade dos mesmos,
Harley sugere um maior aprofundamento na leitura dos mapas a fim de enxergar essa falta.
Para isso, sugere maior apreensão do: contexto do cartógrafo, uma tarefa difícil pela autoria
múltipla dos mapas, resultado possível de divisão de trabalho; contexto de mapas
contemporâneos da mesma localidade representada e também de outros mapas do próprio
cartógrafo; contexto da sociedade e sua relação do cartógrafo. Portanto, sugere uma
desconstrução do mapa, um olhar para as omissões, a ausência, capazes de revelar diversas
informações ocultas.
Portanto, Harley questiona a neutralidade e cientificidade dos mapas, ao alegar que a
ciência, que se impõe como neutra moral e eticamente, é uma construção do homem. Acusa,
ainda, os mapas contemporâneos de somente parecerem científicos: não necessariamente o
são. Pierre Bourdieu, por sua vez, em “O Poder Simbólico” se aprofunda às ideologias
compreendidas na autoridade científica. Alega que há um poder simbólico na autoridade: as
representações cartográficas, portanto, utilizam desse poder para publicar, oficializar, tornar
público o seu próprio discurso.
19
“A ciência, ‘que pretende propor os critérios mais bem alicerçados na realidade, não
deve esquecer que se limita a registrar um estado da luta das classificações, quer dizer,
um estado da relação de forças materiais ou simbólicas entre os que têm interesse num
ou noutro modo de classificação e que, como ela, invocam frequentemente a
autoridade científica para fundamentarem na realidade e na razão a divisão arbitrária
que querem impor.” (BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro:
Bertrand Russel, 2007. p.115)
Ou seja, o Bourdieu revela a arbitrariedade das lutas pelo poder autoral do discurso científico
e seu caráter simbólico, tornando válido o questionamento da autoridade científica apropriada
pelas representações cartográficas.
A dissertação de mestrado possibilita, portanto, uma maior avaliação crítica sobre as
representações cartográficas que de longe parecem homogêneas e transparentes, mas ao se
aproximar a visão se tornam cada vez mais fragmentadas em decorrência da significante
hierarquia presente na sua formação. Deste modo, será possível uma análise cartográfica mais
sensível, pensando desde a origem das forças de produção do espaço, até a autoridade
científica do cartógrafo, seus interesses, crenças e objetivos, e da representação cartográfica
em si, através da utilização de recursos investigativos que permitem a apreensão de fatores
ocultos na própria forma de representação. A produção de cartografias, proposta nesta
pesquisa, será igualmente beneficiada pela compreensão dos processos de criação de uma
representação cartográfica desde o início, evitando possíveis discursos falhos ou omissões,
mas deixando claros os objetivos da representação.
Pretende-se, então, utilizar desses recursos apreendidos para aprofundar de forma
crítica e fundamentada alguns mapas, cartogramas e gráficos que abordam a região da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte e suas áreas de influência, como os mapas do EIA-RIMA (2009) e
do IBGE (2005) – além de verificar os aspectos dos fatos representados e investigar as
ausências e os autores e públicos alvos dessas representações cartográficas.
Ainda, a fim de analisar detalhadamente o paradoxo entre o Estado e os povos
autóctones nos processos de desterritorialização decorrentes da implantação da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, buscou-se, na leitura e discussão do artigo “Território e
20
multiterritorialidade: um debate” de Rogério Haesbaert (2007), apreender os conceitos e
origens da palavra território e suas derivações.
O debate busca investigar e compreender melhor o conceito de território, de
territorialidade e da noção de “multiterritorialidade”. Rogério Haesbaert nega o “mito” da
desterritorialização, dando uma alternativa conceitual: a multiterritorialidade. Justifica que,
quando há desterritorialização, há consequentemente uma reterritorialização, um movimento
complexo de territorialização, mais múltiplo, que denomina como multiterritorialização.
Entretanto, alega haver, no aspecto social, a desterritorialização quando alguém perde a posse
ou o controle sobre a terra, é destituído, expropriado pelos mais privilegiados. Deste modo,
por implicarem e poderem desdobrar diversas perspectivas políticas, julga necessária uma
discussão acerca desses processos de territorialização.
Para iniciar a discussão, o autor busca explicar a dupla conotação do conceito de
território, que diz respeito ao poder sobre a terra: tanto no sentido de poder político, de
dominação, medo e recurso, quanto no sentido de apropriar-se, mais simbólico, de identidade.
O autor retoma, ainda, alguns conceitos já destrinchados na análise da dissertação de mestrado
de José Paulo Gouvêa, conceitos propostos por Lefebvre e Karl Marx, ao considerar o
primeiro território como “unifuncional”, ligado à reprodução do espaço do modo de
produção capitalista-estatista, em contraposição ao segundo, atrelado ao espaço e ao tempo
vividos, onde há prática, multiplicidade, subjetividade.
Haesbaert retoma o conceito de espaço de Lefebvre e considera-o como semelhante ao
de território, por se tratarem de espaços socialmente construídos. Entretanto, seu foco de
debate é o das relações de poder, dos processos sociais que compõem o espaço. Explica o
território, portanto, como sendo simultaneamente funcional e simbólico, ao passo em que
ambos implicam relações de poder, de controle social, sendo elas, além de políticas,
econômicas e culturais.
Ao pensar no território enquanto recurso, o Haesbaert percebe a mesma dualidade: os
“hegemônicos”, como o autor os denomina, possuem uma necessidade do recurso, do
território; enquanto os “hegemonizados”, ainda segundo a denominação do autor, consideram
o recurso como identidade, como abrigo, como apego.
O autor defende, então, a necessidade de se analisar as diversas definições de
territorialidade, dividindo-as em: territorialidade num sentido mais abstrato, teórico, ou em
um sentido mais ontológico, como controle físico através da materialidade, como controle
21
simbólico através da imaterialidade ou como ambos, o que conforma o espaço vivido, já
citado anteriormente.
Essas diferentes conceituações de territorialidade podem corresponder, portanto, a
diferentes conceituações de território. Havendo assim, múltiplas possibilidades dessa relação
expostas no debate, “desde a indistinção até a completa separação entre eles” (HAESBAERT,
2007. p. 26). O autor, como geógrafo, propõe então a concepção de territorialidade como
uma mais ampla que a de território. Ou seja, há territorialidade sem território, mas o inverso
não é plausível. Entretanto, considera necessário o cuidado em notar qual dos sentidos de
territorialidade está se utilizando. Já sobre o território, define: “pode ser concebido a partir
da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações
econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente
cultural” (HAESBAERT, 2004. p. 79).
A fim de entender a multiplicidade territorial do capitalismo e da modernidade, o autor
faz uma distinção de sentidos e valores do território ao longo do tempo: como abrigo físico e
fonte de recursos/meios de produção, como auto identificação de grupos, como forma de
controle e como construção e controle de conexões e fluxos. Sendo o último, uma lógica
típica e empresarial da pós-modernidade.
Diz, ainda sobre essa diversidade territorial no capitalismo atual, que há uma distinção
dual de sentidos, que se relacionam, se mesclam, coexistem. Haesbaert define uma lógica
como a de “território-zona”, como forma de controle político e estatal, tradicional e
uniterritorial, e a outra como uma de “território-rede”, como controle tanto do “território-
zona” quanto de seus fluxos e redes globais. Esse controle, entretanto, pode ser mais efetivo
ou não dependendo de quem o promove e se é mais funcional ou mais simbólico. Deste modo,
essa multiplicidade de territorialidades pode conviver em um mesmo espaço, enquanto
espaço de relações e disputas políticas entre diferentes representações sociais que se
apropriam ou não do espaço.
O autor justifica seu discurso ao relacioná-lo com as ideias de Zambrano sobre
pluralidade de territórios e territórios múltiplos:
“A pluralidade de territórios indica sua multiplicidade: ‘a superfície terrestre como
suporte está sujeita a um processo permanente de organização/diferenciação, processo
central para a reprodução sistêmica. (...)’ Os territórios plurais, além de conceberem a
multiplicidade descrita anteriormente, concebem todo espaço terrestre ocupado por
22
distintas representações sobre ele, que tendem a legitimar a jurisdição sobre os
habitantes que nele residem, configurando a série de relações sociais entre as
diferentes percepções de domínio. (...) Os territórios plurais permitem perceber, em
cada unidade do múltiplo, a pluralidade de percepções territoriais estruturadas [a
cotidianidade dos habitantes], estruturando [processo de construção] e estruturantes
[ex.: judiciais, eclesiásticas e algumas guerrilheiras, formadas pela progressiva ação
dos movimentos sociais]. (ZAMBRANO, C. 2001. Territórios plurales, cambio
sociopolítico y globernabilidad cultural. Boletim Goiano de Geografia 21(1). p. 29-
30)
A fim de distinguir multiplicidade territorial de multiterritorialidade, o autor remonta as
origens da palavra para então definir duas concepções: a de multiterritorialidade no sentido
mais amplo, “moderno”, sendo a propriedade da multiplicidade territorial (o encaixe de
territórios) ou a de multiterritorialidade no sentido mais estrito, “contemporâneo”, ao se
pensar na existência de múltiplos territórios e territorialidades, de uma articulação ‘de’ e
‘entre’ territórios-rede.
Segundo ele, baseado nas ideias de Yve Lacoste, a multiterritorialidade
contemporânea é uma transformação constituída de forma quantitativa, pela maior quantidade
e diversidade de territórios e territorialidades, mas também de forma qualitativa, pela maior
acessibilidade e intervenções entre territórios e territorialidades, devido à globalização e a
consequente aproximação virtual, o que fragmenta e conecta os territórios de forma
simultânea. Ao discorrer sobre a multiterritorialidade mais estrita como uma compreensão
inovadora do espaço-tempo, ressaltando a burguesia hegemônica e seu maior acesso a ela,
afirma que:
“A principal novidade é que hoje temos uma diversidade ou um conjunto de opções
muito maior de territórios/territorialidades com os/as quais podemos ‘jogar’, uma
velocidade (ou facilidade, via Internet, por exemplo) muito maior (e mais múltipla) de
acesso e trânsito por essas territorialidades – elas próprias muito mais instáveis e
móveis – e, dependendo de nossa condição social, também muito mais opções para
desfazer e refazer constantemente essa multiterritorialidade.” (HAESBAERT, 2004a.
p. 344)
23
Ainda sobre a multiterritorialidade, enquanto possibilidade ou efetivação, diz:
“As implicações políticas desta distinção são importantes, pois sabemos que a
disponibilidade do “recurso” multiterritorial – ou a possibilidade de ativar ou de
vivenciar concomitantemente múltiplos territórios – é estrategicamente muito
relevante na atualidade e, em geral, encontra-se acessível apenas a uma minoria.
Assim, enquanto uma elite globalizada tem a opção de escolher entre os territórios que
melhor lhe aprouver, vivenciando efetivamente uma multiterritorialidade, outros, na
base da pirâmide social, não têm sequer a opção do ‘primeiro’ território, o território
como abrigo, fundamento mínimo de sua reprodução física cotidiana.”
(HAESBAERT, 2004a. p. 360)
Conclui que multiterritorialidade pode se conformar como múltiplos poderes, dominâncias;
como múltiplas identidades, de forma mais simbólica, como apropriações culturais em
espaços híbridos; e múltiplas funções devido à conotação econômica. Deste modo, reconhece
a importância estratégica do espaço enquanto território e ferramenta transformadora da
sociedade.
Portanto, através dos conceitos apreendidos no estudo desse artigo, é possível uma
maior apreensão sobre os processos que ocorreram e ocorrem na região da UHE de Belo
Monte. Os processos de desterritorialização dos povos autóctones, sejam eles beiradeiros ou
povos indígenas – realizados por meio da desapropriação de edificações (como moradias,
comércios, sítios, casas de pesca) e também pela interferência direta no modo de vida e no
uso social do rio – ocorrem ao mesmo tempo em que é rearticulada uma reterritorialização
“compulsória” do mesmo espaço, utilizado agora pela Usina e suas decorrentes infraestruturas
e áreas de alagamento. Estes processos, juntos, configuram multiterritorialidades (ou seja, a
sobreposição de usos e perspectivas diferentes sobre um único território) que ocorre no
entorno do Rio Xingu, onde a minoria hegemônica, tanto de poder econômico quanto político,
prevalece e reduz os povos que anteriormente já habitavam e usufruíam da região.
24
4.2 Aproximações cartográficas
Com base nas leituras descritas anteriormente, entende-se que as representações
cartográficas demonstram uma perspectiva e uma intencionalidade, apesar de parecerem
neutras e científicas. Deste modo, busca-se uma primeira aproximação cartográfica a fim de
contextualizar a grande obra de infraestrutura em questão, além de ler e analisar mapas da
região da Usina Hidrelétrica de Belo Monte por meio dos conceitos discutidos.
4.2.1 Contexto Nacional
A lógica do planejamento energético brasileiro pauta-se no aproveitamento do recurso
hídrico, devido à própria geografia do Brasil – constituída por uma malha hídrica vasta,
avaliada com um potencial significativo. Portanto, este potencial
é associado à necessidade de progresso e de geração de energia, configurando-se em um dos
maiores complexos hidrelétricos do mundo.
25
FIGURA 1 – Brasil – Hidrografia e Usinas Hidrelétricas
Fonte: Produção própria sobre base cartográfica do IBGE - Mapa Brasil Grandes Regiões [Cartas e Mapas-
Folhas Topográficas]
Esta cartografia busca demonstrar, justamente, este aspecto do desenvolvimento
nacional associado à construção de usinas hidrelétricas. É notável a geração de
energia tanto numa esfera de progresso econômico, como no âmbito social, pois o consumo
26
de energia elétrica está intrinsecamente ligado à qualidade de vida social, indispensável na
escala do indivíduo e na institucional. Todavia, através da apreensão anterior, em proporção
regional, a implantação de usinas do porte da Usina Hidrelétrica de Belo Monte tem fortes
desdobramentos e impactos socioambientais. Estas alteram o curso natural dos rios e o
volume de suas vazões e desmatam regiões inteiras nas quais serão construídas e onde se
instalarão seus reservatórios, que alcançam dimensões monumentais. Portanto, resultam, de
forma direta, em um grande impacto sobre o meio físico, biótico e socioeconômico do local
em que serão inseridas. A proporção destes impactos pode ser observada a exemplo da UHE
Belo Monte, que possui um reservatório de 516 km², área maior que a do município de Porto
Alegre – assim, podendo transformar antigos rios em efetivos lagos.
27
FIGURA 2 – Brasil – Hidrografia, Usinas Hidrelétricas e Desmatamento
Fonte: Produção própria sobre base cartográfica do IBGE - Mapa Brasil Grandes Regiões [Cartas e Mapas-
Folhas Topográficas]
A questão que envolve a região da Floresta Amazônica e as grandes obras de
infraestrutura contidas no plano de desenvolvimento nacional estabelece em si controvérsias
ao longo da história do país. A partir da década de 1960, a região da Amazônia como um
28
todo, passou a ser objeto de um processo de integração nacional. Este processo, através de
projetos de incentivo do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária),
atraiu significativos fluxos migratórios para a região, motivando novas demandas de
infraestrutura para comportar tais populações.
O próprio município de Altamira foi um dos municípios afetados por este plano.
A construção da rodovia Transamazônica, anterior à implantação do AHE (Aproveitamento
Hidrelétrico) Belo Monte, iniciada em 1968, ocasionou impactos semelhantes aos já citados
decorrentes da Usina, como o aumento do fluxo migratório, portanto o inchaço
demográfico; a desestruturação das dinâmicas locais, o que modificou aspectos tradicionais da
região; o desmatamento da área onde foi construída a infraestrutura, além do incentivo ao
desmatamento das localidades no entorno; e a ocupação urbana desordenada, que propiciou
processos de favelização e pauperização social, como no caso das palafitas (ocupações junto
aos igarapés, motivadas por necessidades de subsistência). Justamente estas últimas,
estruturas mais vulneráveis, estão contidas na área levantada pelas Avaliações de Impacto
Ambiental da UHE Belo Monte como a área diretamente afetada pela sua construção.
Com isto, compreende-se também a implantação de rodovias como impulsionadora de
impactos ambientais e sociais de destaque e amplidão similares aos de
usinas hidrelétricas. Estas infraestruturas, portanto, impulsionadas há décadas pelos planos de
desenvolvimento para o país, impactam diretamente no desmatamento. Estes processos se
tornam claros ao se sobrepor a malha rodoviária às manchas de desmatamento configuradas
no território brasileiro.
29
FIGURA 3 – Brasil – Rodovias e Desmatamento
Fonte: Produção própria sobre base cartográfica do IBGE - Mapa Brasil Grandes Regiões [Cartas e Mapas-
Folhas Topográficas]
Deste modo, a partir das cartografias aqui explicitadas, infere-se de suma importância
a elaboração de produtos cartográficos para se construir o entendimento crítico acerca dos
processos conflitantes entre desenvolvimento e povos autóctones. As cartografias propostas,
30
então, conformam-se em ferramentas elementares para embasamento do debate a respeito
das controvérsias presentes no paradigma do desenvolvimento sustentável e passíveis de
serem empregadas como representações espaciais reveladoras das ausências contidas nos
discursos em questão.
4.2.2 Mapa IBGE
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é o órgão público responsável
por produzir bases técnicas georreferenciadas, de caráter institucional e científico, que
representam e indicam os processos que ocorrem no território brasileiro. Para uma primeira
análise, selecionou-se o mapa político de Belém de 2005, que contém em sua representação a
área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Por ser um mapa político, centra-se
em identificar somente os nomes de cidades e municípios e elementos de infraestrutura
urbana, como as principais rodovias, ferrovias e a rede hídrica, incluindo a indicação da
localização da Usina de Belo Monte, de Terras Indígenas e de localidades rurais. Deste modo,
seu discurso permanece neutro e caracteriza o espaço como homogêneo.
No que diz respeito à representação das Terras Indígenas, não há informações que as
qualifiquem, inclusive, não indicando a localidade da Terra Indígena Arara da Volta do Xingu
que se localiza a margem do rio Xingu a leste da Terra Indígena Paquiçamba.
31
FIGURA 4 – Mapa político de Belém - PA
Fonte: IBGE (2005)
32
FIGURA 5 – Recorte do “Mapa político de Belém - PA”
Fonte: IBGE (2005)
4.2.3 Mapa EIA/RIMA
Para viabilizar a construção da obra, a Empresa Norte Energia S.A. elaborou estudos
de Avaliação de Impacto Ambiental, medida imposta pelo IBAMA (Instituto Brasileiro de
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) a empreendimentos de grande potencial
poluidor. Este estudo analisa parte do EIA (Estudo de Impacto Ambiental), que visa avaliar os
impactos ambientais decorrentes da UHE Belo Monte e estabelecer programas de mitigação e
monitoramento dos mesmos.
33
A cartografia selecionada representa a ADA (Área Diretamente Afetada) e os imóveis
urbanos afetados em uma parcela do município de Altamira, o maior município da região.
Representa, além dos sistemas viário e hidrográfico, o uso das edificações da área afetada, o
limite do reservatório, a cota 100m (cota prevista de impacto direto) e a APP (Área de
Preservação Permanente).
FIGURA 6 – Área Diretamente Afetada – Imóveis Urbanos Afetados
Fonte: EIA (2008)
Entretanto, observa-se que este mapa só representa as edificações diretamente afetadas
por meio da delimitação da cota 100m, não as diferencia das demais edificações. Ao
representá-las da mesma maneira, por exemplo, uma edificação de uso educacional dentro da
cota 100 e uma fora, a cartografia em questão negligencia o real impacto sofrido pelas
edificações na ADA, neutralizando as diferenças e a ação de remoção involuntária. Além
disso, reduz ainda mais o problema ao representar somente os imóveis afetados, a construção
em si, ocultando as dinâmicas físico-funcionais, ou seja, onde a população reside, como se
utiliza dos equipamentos e se move neste território. Os outros mapas do EIA também não
34
apresentam as relações físico-funcionais da população impactada. Portanto, cabe ressaltar
ainda que ao se pensar na população afetada, deveria estar representada no mapa uma parcela
muito maior de edificações, dentre elas também onde residem os beiradeiros além da cota
100m. Como se pode verificar na figura 4 a seguir, o limite físico do impacto real para as
desapropriações, muitas vezes, terão que ser estendidos para além da cota 100m, se
adequando à delimitação final dos lotes ou às ruas que fazem limite com esta cota.
FIGURA 7 – Recorte do mapa “Área Diretamente Afetada – Imóveis Urbanos Afetados”
Fonte: EIA (2008)
4.2.4 Reflexões
Nota-se, portanto, que as duas fontes cartográficas, selecionadas para a análise
representativa do padrão de cartografia oficial, não apresentam os reais impactos decorrentes
da implementação da UHE Belo Monte padronizando os limites de abrangência, as
35
diferenciações sociais, deixando invisíveis a desestruturação dos modos de vida e novos
fluxos locais (trabalho, escola, lazer) a que a parcela da população será submetida. Ao
sobrepor informações de ambos os mapas, é possível fazer uma interpretação mais específica
desses processos, dentro da cota 100m, ainda assim, uma representação insuficiente por não
abordar questões que envolvem o encadeamento dos efeitos sociais, pois somente a indicação
do raio dos impactos permite, como dito, estabelecer o grau de interferência nas dinâmicas
que de fato ocorrem no espaço, demonstrando a ausência de informações e a necessidade de
evidência de elementos que deveriam ser representados cartograficamente. Portanto, entende-
se a necessidade de uma cartografia alternativa, que supere o caráter tecnicista e superficial.
FIGURA 8 – Cartografia Alternativa da UHE Belo Monte – Os Beiradeiros
Fonte : Autoria própria, elaborada a partir do mapa do IBGE e do EIA apresentados anteriormente.
36
5 DISCURSOS CONFLITANTES
Esta etapa da pesquisa tem como objetivo apresentar duas perspectivas distintas que
configuram uma situação de conflito, ao tratarem dos impactos da Usina Hidrelétrica Belo
Monte. Uma contida na Avaliação de Impacto Ambiental, elaborado pela Leme Engenharia,
que busca caracterizar a área afetada pela implantação da Usina, incluindo o âmbito dos
estudos relacionados à dimensão Socioeconômica, que interessa de perto a esta pesquisa.
O Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental, contidos nesta Avaliação, demonstram
as dimensões e abrangência dos impactos negativos e positivos da implantação da Usina nas
áreas afetadas, em seus aspectos sociais e econômicos e nos meios físico e biótico. A fim de
solucionar, mitigar ou compensar estes impactos, são propostos planos, ações e projetos,
como condicionantes ambientais, para as diversas fases de licenciamento da obra (instalação,
implantação, operação).
Por outro lado, o Dossiê Belo Monte, elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA),
apresenta uma perspectiva mais crítica e atenta aos prejuízos trazidos ao território e à
população local pela implantação da Usina. Este documento visa trazer a público a efetividade
da implementação das condicionantes ambientais como parte do licenciamento da Usina de
Belo Monte. Demonstra claramente que tais medidas revelaram-se, posteriormente, como
insuficientes, desarticuladas e, em alguns casos, não foram cumpridas. Observaram-se
também muitos descompassos entre o compromisso assumido no processo de licenciamento,
o cronograma da obra e a implementação efetiva das medidas de equiparação de danos.
O intuito do presente capítulo é confrontar dois discursos que atualmente mostram-se
conflitantes, a fim de explicitar o debate e as reflexões acerca das lógicas de produção, mais
detidamente das cartografias, gráficos e infográficos elaborados nos dois documentos, e
apontar as divergências atuais entre os documentos produzidos no âmbito do licenciamento
ambiental pela concessionária – EIA/RIMA – e as lacunas e dificuldades para a
implementação dos planos e programas de mitigação, assim como o descumprimento destas
condicionantes ambientais exigidas pelo IBAMA e evidenciadas no Dossiê Belo Monte.
Desta forma, pode-se contribuir para a formação de uma visão mais crítica da produção
cartográfica associada ao licenciamento ambiental de grandes obras no país.
37
5.1 Discurso oficial – RIMA
O RIMA – Relatório de Impacto Ambiental do AHE Belo Monte – é o documento que
visa trazer, de forma acessível e sucinta, as informações analisadas no EIA (Estudo de
Impacto Ambiental): informações sobre o empreendimento, sobre a região anterior a
construção da Usina Hidrelétrica e os principais efeitos decorrentes da mesma. A Leme
Engenharia foi a empresa responsável pela realização tanto do EIA, quanto do RIMA. A
Themag, a Intertechne e a Engevix foram as responsáveis pelos estudos das comunidades,
terras e áreas indígenas. O EIA e o RIMA fazem parte do processo de licenciamento para a
Usina ser construída e entrar em funcionamento e, para isto, foram aprovados pelo IBAMA.
O Relatório afirma, inicialmente, que a construção da Usina Hidrelétrica de Belo
Monte é uma decisão muito importante, que precisa ser estudada e avaliada pelo poder
público, pelo órgão ambiental, pelos moradores da região, pelas entidades e pelos
representantes da sociedade civil.
A apresentação do mesmo consiste em ressaltar a necessidade de analisar os efeitos
decorrentes da construção de uma usina hidrelétrica, sendo eles negativos ou positivos – o que
foi feito pelo EIA ao se estudar o meio físico, o meio biótico, o meio socioeconômico e as
comunidades indígenas. Deste modo, o EIA pôde apontar grandes mudanças no projeto inicial
de engenharia presente nos Estudos de Viabilidade de 2002, a fim de construir uma usina que
“possa ser construída e operada com sustentabilidade” (RIMA, 2009, p.7), ao diminuir seus
efeitos negativos e potencializar os positivos.
A Introdução do RIMA consiste na explicação breve do que é uma usina hidrelétrica e
dos processos que precedem e decorrem de sua construção, explicando de forma sucinta as
etapas para uma usina entrar em funcionamento. Apresenta, então, o AHE Belo Monte, que
faz parte dos planos do Governo Federal de produzir mais energia até 2030, representando
5,5% do que o Brasil necessita, com uma capacidade de 11.233,2 MW. Faz parte, também, do
SIN – Sistema Interligado Nacional, que distribui e recebe grande parte da energia elétrica
que percorre o país.
O documento exibe, posteriormente, as mudanças propostas pelo EIA ao Projeto de
Engenharia a fim de diminuir os efeitos negativos: a mudança para a cidade Vitória do Xingu
de 2.500 casas para funcionários das obras (previstas anteriormente para uma vila residencial
próxima ao local da casa de força principal), a construção de 500 casas para funcionários
espalhadas pela cidade de Altamira (prevista anteriormente como uma vila fechada), a
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construção de um canal ao lado da barragem principal para passagem de peixes, a construção
de um mecanismo próximo à barragem principal para travessia de barcos e a definição de um
hidrograma ecológico para o trecho do rio Xingu entre a barragem principal e a casa de força,
para navegação e sobrevivência de peixes e plantas.
Além de citar de forma impessoal e simplista as mudanças propostas, exibidas em
forma de itens, cita da mesma forma as mudanças que já ocorreram durante o processo de
licenciamento do AHE Belo Monte: a redução da área de inundação de 1.225 km² para 516
km², a não-inundação de Terras Indígenas e a construção de apenas uma usina no Rio Xingu.
Descreve, então, um breve histórico de todo o processo, de forma sucinta e esquemática,
assim como os mapas que mostram o reservatório da proposta antiga e o da atual,
naturalizando os impactos na região que o próprio documento revela.
FIGURA 9 – Reservatório do Estudo Anterior (anos 80 e 90)
Fonte: RIMA (2009)
39
Mostra, por meio de outro mapa, o local das obras principais da usina: sítio Pimental,
Bela Vista, Belo Monte e região de Canais e Diques, localizados nos municípios de Vitória do
Xingu e de Altamira. Neles, estão localizadas as áreas das construções da barragem principal,
das casas de força principal e complementar, dos reservatórios dos canais e diques e do
Xingu, e dos canais de derivação, além do Trecho de Vazão Reduzida. Este último, por sua
vez, é um trecho de 100 quilômetros do rio Xingu que terá suas águas reduzidas devido ao
desvio para a formação do Reservatório dos Canais. Entretanto, segundo o RIMA, deve ser
mantida uma quantidade mínima de água para a navegação e manutenção da vida aquática
pré-existente no local. Já as Terras Indígenas, não aparecem mais no mapa, estão ausentes.
FIGURA 10 – Como Será o AHE Belo Monte
Fonte: RIMA (2009)
Além disso, discorre sobre as demais infraestruturas necessárias para a construção da
obra, como a implantação ou melhoria de acessos, canteiros de obras, moradias e alojamentos
para trabalhadores e residências para funcionários. O prazo, segundo o documento, para a
40
implantação da usina seriam de dez anos: os cinco primeiros destinados à construção das
estruturas da AHE Belo Monte e os cinco últimos, às máquinas responsáveis pela geração
total de energia e funcionamento das casas de força.
Segundo o texto, haveria um treinamento para a formação de trabalhadores
especializados para maior contratação de mão-de-obra local. Estima-se o terceiro ano da
construção como o pico das obras, necessitando de um maior número de funcionários: 18.700.
Deste modo, os trabalhadores migrantes e suas famílias seriam instalados em residências e
alojamentos em Altamira e Vitória do Xingu, além da instalação de mais infraestrutura para
suprir a nova demanda populacional: postos de saúde, escolas, áreas para prática de esporte,
além de uma rede de abastecimento e tratamento de água, esgoto e lixo. Estas novas moradias
são mostradas de forma “romantizada” através de uma representação gráfica, onde há uma
série de casas, todas de mesmo formato, cor e aparência, em um campo verde por onde passa
somente uma rua de terra batida. É visível a falta de veracidade da ilustração, que demonstra
um local imaginário, não definido na prática, sem arquitetura ou entorno em que está inserido.
Os canteiros de obras, de acordo com o RIMA, também seriam equipados de sistema
de abastecimento e tratamento de água e esgoto, sistema de drenagem, controle de incêndios e
sistema para separação de óleos e graxas, a fim de impedir a contaminação do rio e dos
igarapés nos Sítios Belo Monte, Bela Vista, Pimental e nos Canais de Derivação e Diques.
Além disso, também seria fornecido um sistema de energia, de telefonia e de retransmissão de
TV para a região das obras.
A fim de melhorar os acessos e complementar os já existentes pela Rodovia
Transamazônica e pelo Rio Xingu, é proposta também uma melhoria nos travessões e a
criação de um porto próximo ao Sítio Belo Monte, para transporte de materiais, insumos e
equipamentos durante o período das obras.
Para a construção das estruturas principais nos sítios Pimental e Belo Monte, é
necessário o uso e exploração das Áreas de Empréstimo (identificadas nos estudos do EIA),
de pedreiras e de jazidas de areia. A sobra de material teria como finalidade os chamados
bota-foras, grandes aterros definitivos – localizados em áreas escolhidas seguindo critérios
técnicos e ambientais, segundo afirma o RIMA. Além disso, também recebe um incentivo à
produção local de tijolos e madeiras.
No capítulo “Conhecendo a Realidade da Região”, é apresentado o local determinado
para a construção da Usina. Descreve-se a Bacia do rio Xingu como uma área importante para
conservação do meio ambiente, por ser formada por Terras Indígenas e Unidades de
41
Conservação, áreas protegidas por lei. Entretanto, há uma ressalva de que a área em questão
não se encontra preservada mesmo antes da implantação do AHE Belo Monte: “Mas, mesmo
bastante protegida, existe desmatamento na bacia do rio Xingu” (RIMA, 2009, p.28). Lista
então, em forma de itens, as causas principais de desmatamento, como o cultivo de soja e de
gado, a extração de madeira e o crescimento da população decorrente das principais estradas
da região. O documento não prevê o possível impacto da construção da Usina nestas áreas
protegidas, apesar de listar os impactos decorrentes de outros agentes da região.
A seguir, apresenta uma caracterização feita de acordo com as áreas de influência da
usina hidrelétrica e seus respectivos impactos estudados pelo EIA. São elas: Área de
Influência Indireta (AII), que sofrem impactos de forma indireta através dos sofridos pelas
áreas vizinhas às obras; Área de Influência Direta (AID), áreas no entorno do AHE Belo
Monte e do reservatório; e a Área Diretamente Afetada (ADA), áreas ocupadas pelas
principais estruturas e infraestruturas, incluindo as áreas dos reservatórios, as Áreas de
Preservação Permanente e o Trecho de Vazão Reduzida. O documento apresenta um estudo
detalhado de cada uma dessas áreas, descrevendo o meio físico, o biótico e o socioeconômico.
“Populações tradicionais ribeirinhas – cerca de 350 famílias – moram nas Reservas
Extrativistas (Resex) do Rio Iriri, do Riozinho do Ânfrísio, Verde para Sempre e do
Médio Xingu, às margens dos rios Xingu, Iriri e Curuá. Essas populações têm seu
modo de vida dependente do rio, de onde tiram seu sustento, utilizando e conservando,
ao mesmo tempo, os recursos naturais dos quais dependem.” (RIMA, 2009, p. 45)
Apesar de ressaltar e caracterizar as populações tradicionais estudadas, baseadas no modo de
vida ribeirinho, os impactos por elas sofridos nas áreas de influência, entretanto, são tratados
de forma apenas informativa, independente de serem negativos ou positivos. Dentre as
ocupações tradicionais presentes no território, há 21 comunidades quilombolas, nos
municípios de Gurupá e Porto de Moz, presentes na Área de Influência Indireta, que não
possuem território demarcado segundo o jurídico (RIMA, 2009). Apesar de citados no RIMA,
não há nenhuma análise ou medida pensada para esta população, que também está situada na
área afetada pela construção da Usina.
A seguir, são apresentadas as Comunidades Indígenas. Divididas em Grupo 1
(composto pelas Terras Indígenas Paquiçamba e Arara da Volta Grande do Xingu e pela Área
Indígena Juruna), fruto de estudos mais detalhados por fazer parte da AID, e Grupo 2
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(composto pelas Terras Indígenas Trincheira Bacajá, Araram Cachoeira Seca, Kararaô,
Koatinemo, Araweté/Igarapé Ipixuna e Apyterewa). A Fundação Nacional do Índio (Funai)
também ressaltou a importância do estudo da população indígena que vive na cidade de
Altamira e nas margens do rio Xingu.
FIGURA 11 – Terras Indígenas Localizadas na Região do AHE Belo Monte
Fonte: Rima (2009)
Ao descrever as Comunidades Indígenas e os impactos sofridos pelas mesmas, o
Relatório ressalta os impactos positivos, ao relatar que as Comunidades se tornam mais
conhecidas devido aos anúncios e discussões gerados pelo AHE Belo Monte, o que torna suas
organizações internas ainda mais fortes. Além disso, propõe diversos programas e planos de
auxílio e ajuda a estas comunidades a fim de diminuir as influências externas e os impactos
43
negativos, como o Programa de Comunicação com a População Indígena, o Plano de
Fortalecimento Institucional e de Direitos Indígenas e o Plano de Sustentabilidade Econômica
da População Indígena.
Assim, ressalta os aspectos positivos decorrentes da influência da construção da obra e
cria ações de mitigação para diminuir os impactos, mas não cita os reais impactos negativos a
que estão expostas estas comunidades e suas terras. O trecho “Os Juruna de Paquiçamba
habitam a margem esquerda do rio Xingu, entre o Igarapé Paraíso e Mangueira, na região da
Volta Grande do Xingu onde haverá redução de vazão caso o AHE Belo Monte venha a ser
construído” (RIMA, p. 49) exemplifica um dos casos em que o relatório descreve um impacto
que interfere no modo de vida da população em questão, mas o naturaliza, deixando ausentes
os reais impactos ocasionados.
“Parte destes índios terá que ser reassentada por causa do AHE Belo Monte. Isto
porque habitam as margens dos Igarapés Ambé e Altamira, na cidade de Altamira, e as
margens do rio Xingu, nos trechos que sofrerão os efeitos do Reservatório do Xingu”
(RIMA, 2009, p. 57)
Neste trecho, também é possível observar como as medidas e os planos propostos pelo EIA-
RIMA não abarcam todos os impactos sofridos por esta população, especialmente em relação
à população indígena mais afetada, que reside na cidade de Altamira e não possui seu
território demarcado e protegido como nas TIs, que por sua vez também sofrem os impactos.
O desenvolvimento do documento retoma as informações ditas anteriormente, com
mais detalhes e informações. Assim como foi feito com as populações ribeirinhas, descreve e
caracteriza as Áreas de Influência Direta e Indiretamente Afetada. Diferencia as áreas
ressaltando o que elas abrangem.
Sobre a ADA, há um mapa de localização com os equipamentos da UHE Belo Monte.
Neste, há a representação somente do rio, das estradas principais, travessões e dos
equipamentos decorrentes da construção da obra, como os reservatórios, os diques e canais, as
casas de força e o vertedouro, além do Trecho de Vazão Reduzida. Entretanto, o mapa não
mostra estes elementos em um contexto real, mas sim em um pano de fundo verde.
Ausentando, assim, o real contexto dos sistemas ambientais e das populações impactados
pelos mesmos.
44
FIGURA 12 – Área Diretamente Afetada
Fonte: Rima (2009)
FIGURA 13 – Trechos Ambientais - AID
Fonte: Rima (2009)
45
Ao iniciar a discrição das áreas, discorre sobre a AID, onde houve estudos
socioeconômicos nos municípios de Altamira, Anapu, Brasil Novo, Senador José Porfírio e
Vitória do Xingu e onde encontram-se as principais estradas da região e os Núcleos de
Referência Rural (locais onde há equipamentos de saúde, educação e lazer utilizados pelos
moradores da região e do entorno). A fim de uma maior compreensão dos impactos nesta
região, o EIA-RIMA a divide em trechos de acordo com o meio ambiente e modo de vida da
população: Trecho do Reservatório do Xingu, do Reservatório dos Canais, de Vazão
Reduzida e de Restituição de Vazão. O mapa acima, em que são mostradas estas divisões,
apresenta as mesmas ausências que o mapa da ADA, apesar de indicar as Terras Indígenas.
Segundo o Relatório, a área urbana da AID, que abriga a maior parte da população
(oitenta por cento), consiste em menos de um por cento do total de sua área de influência
direta, de 13.940 quilômetros de extensão. São apresentadas características de cada área,
como as características dos meios físico e biótico, os usos dos lotes, a presença ou não de
estradas, a composição urbana e rural, as principais atividades das populações residentes e as
localidades que a compõe (como aglomerados, povoados e núcleos de referência rural,
localizados em um mapa similar aos já mostrados nas figuras 4 e 5).
Ao analisar esta caracterização, é possível destacar ainda o caráter asséptico do
discurso do RIMA, como no caso em que o mesmo somente cita o rio como um meio muito
utilizado pela população ribeirinha, sendo em alguns casos a única alternativa de transporte.
Ao enfatizar, em seguida, que as principais atividades econômicas são a criação de gado e a
plantação de cacau e pupunha, o Relatório diminui a importância do rio como modo de vida
da população que vive no entorno – importância, esta, reconhecida em outros momentos do
relatório, apresentando uma contradição no discurso, que pode ser visto no seguinte trecho:
“A pesca é muito importante para quem mora nos imóveis rurais que ficam às margens
do rio Xingu e nas ilhas. Ela tanto pode ser uma atividade para completar a
agricultura, como pode ser a principal atividade econômica de várias pessoas. O rio
também é muito importante para as pessoas irem a outras localidades e até Altamira,
onde vendem os produtos da agropecuária, da pesca e do extrativismo. É também em
Altamira que as pessoas buscam vários serviços, como médicos, bancos e compras em
geral.” (RIMA, 2009, p. 79)
46
Este caráter impessoal, discursivo, informativo, reduz os efeitos negativos causados pela
implantação da UHE de Belo Monte, como demonstra o trecho a seguir, onde é apresentada a
desterritorialização de uma vila inteira, informando somente dados quantitativos sobre o local
e ausentando os reais impactos gerados para esta população que terá seu modo de vida
completamente abalado e transferido para outro local:
“A Vila de Santo Antônio será diretamente afetada pela construção do AHE Belo
Monte. Está entre a Transamazônica e o rio Xingu e vai precisar mudar de lugar. São
105 imóveis e 35 famílias que fazem um total de 151 moradores. Os lotes são usados
para a agricultura de subsistência (principalmente o plantio de feijão) e para lazer.”
(RIMA, 2009, p. 69)
Ao iniciar o capítulo seguinte, sobre os Impactos Ambientais, é apresentado como fato as
mudanças provocadas pela implantação da Usina, como mudanças na paisagem, no rio Xingu
e nos Igarapés, na fauna e na flora e na vida das pessoas da região, além dos novos moradores
que chegariam para trabalhar nas obras e compartilhariam do sistema médico, escolar, de
saneamento e de segurança. Cita, ainda, que “muitos imóveis na área rural e na cidade de
Altamira serão atingidos. Por causa disso, muitos moradores terão que morar e trabalhar em
outros lugares” (RIMA, 2009, p. 80). Ao relatar o brusco processo de transformação a ser
enfrentado pela população local, o RIMA o apresenta de maneira mais uma vez naturalizada,
como demonstrado no exemplo anterior. Só que desta vez, reaparece seguido de uma
compensação por impactos positivos como novos empregos na região ou a grande quantidade
de energia gerada para o país.
O mesmo ocorre ao longo deste capítulo inteiro: apresenta-se uma ação decorrente da
implantação do aproveitamento hidrelétrico, a seguir seus impactos negativos, compensados
pelos positivos e por fim os programas e as medidas estabelecidos pelo EIA-RIMA a fim de
“prevenir, diminuir ou compensar os efeitos dos impactos negativos e para aumentar os
benefícios dos impactos positivos” (RIMA, 2009, p. 80). A primeira ação descrita é a dos
estudos de campo que se iniciaram desde 1975, impactando a região com pesquisas, reuniões,
reportagens, visitas técnicas às residências, etc. As expectativas da população em relação aos
possíveis impactos negativos são compensados, no texto, pela expectativa de novos empregos.
A fim de minimizar este impacto, é proposto o Plano de Relacionamento com a População,
dentro do qual há o Programa de Interação Social e Comunicação.
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Também há uma grande geração de expectativa nas populações indígenas, como visto
anteriormente. Neste caso, é proposto um Programa de Comunicação com a População
Indígena, ligado ao Plano de Relacionamento com a População, além do Plano de
Fortalecimento Institucional e Direitos Indígenas e um Plano de Sustentabilidade Econômica
da População Indígena.
Devido à contratação de mão-de-obra prevista para o máximo de 18 mil empregos
diretos e 23 mil indiretos, os impactos analisados pelo documento são o aumento da
população e da ocupação de forma intensa e desordenada do solo, congestionando também os
equipamentos pré-existentes nas cidades e aumentando a drogadição, a violência e a
prostituição. Isto afeta também as populações e áreas indígenas, que sofrem ainda mais com a
pressão sobre suas terras. Para tanto, são propostos os Projetos de Educação Ambiental,
ligados ao Programa de Comunicação com a População Indígena; o Programa de Saúde
Indígena, ligado ao Plano de Saúde Pública; o Plano de Readequação do Serviço de Educação
para a População Indígena; o Plano de Melhoria das Habitações Indígenas; o Programa de
Segurança Territorial das TIs; o Plano de Saneamento Básico para as TIs e o Plano de
Sustentabilidade Econômica da População Indígena, que abrange o Programa de Capacitação
de Mão-de-obra Indígena; além da articulação institucional com Programas do Governo
Federal, a fim de “melhorar as condições de vida das populações indígenas e fazer com que
suas TIs fiquem mais atraentes para elas lá permanecerem” (RIMA, 2009, p. 89)
O Relatório cita ainda aspectos positivos decorrentes do grande fluxo migratório de
trabalhadores, como o aumento do número de trabalhos, o estímulo a novas atividades
produtivas, a regularização fiscal de empresas e a consequentemente o aumento da
arrecadação de impostos. As ações preventivas propostas são: o Plano de Articulação
Institucional, o Programa de Incentivo à Capacitação Profissional e ao Desenvolvimento de
Atividades Produtivas, o Plano de Requalificação Urbana, o Projeto de Acompanhamento e
Monitoramento Social das Comunidades do Entorno da Obra e das Comunidades Anfitriãs e o
Plano de Saúde Pública.
Dentro destes planos e programas, estão incluídas as medidas propostas para a Vila de
Santo Antônio, integralmente desterritorializada. A fim de minimizar os impactos da
transposição desta população, portanto, o EIA propõe a discussão com a população para a
escolha de um novo local, de forma transparente e participativa através do Plano de
Atendimento à População Atingida, além da participação na recomposição dos equipamentos
sociais e econômicos na área rural, dentro do Plano de Atendimento à População Atingida.
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Nas áreas onde serão formados os Reservatórios, na parte rural da ADA, a
implantação da Usina impacta 2.822 pessoas, segundo o RIMA. A aquisição dos imóveis, a
transferência da população para outras áreas e a perda das atividades produtivas locais são os
impactos que seriam compensados ou minimizados pelo Plano de Atendimento à População
Atingida, pelo Programa de Negociação e Aquisição de Terras e Benfeitorias, pelo Programa
de Recomposição de Atividades Produtivas Rurais e pelo Plano de Atendimento à População
Atingida, que contém o Programa de Acompanhamento Social, em que há monitoria e
acompanhamento das populações que tem seu modo de vida interferido.
Já na área considerada urbana pelos estudos em questão, o impacto alcança 16.420
pessoas, que “deverão sair antes do enchimento do reservatório” (RIMA, 2009, p. 93) por
estarem localizados em terrenos abaixo da cota 100. Além dos moradores que serão
desterritorializados, o Relatório reconhece os que moram na vizinhança também como
impactados, por sofrerem grandes mudanças com isto. As medidas propostas também estão
incluídas no Plano de Atendimento à População Atingida, além do Programa de Negociação e
Aquisição de Imóveis e Benfeitorias, o Programa de Recomposição de Atividades Produtivas
Urbanas, o Programa de Acompanhamento Social e o Programa de Intervenção em Altamira,
que faz parte do Plano de Requalificação Urbana, que visa planejar a realocação destas
populações.
Outra ação que interfere na região da obra é a construção de estradas, canteiros e
outras estruturas principais, como alojamentos, linhas de transmissão e etc. Segundo o RIMA,
estas atividades geram impactos como desmatamentos, grandes movimentos de terra
(interferindo diretamente na paisagem), exploração de áreas de empréstimo, de pedreiras e
jazidas de areia, além das novas áreas de bota-fora para descarte de material. Os impactos
positivos decorrem do maior acesso à região, que facilita o transporte de mercadorias para
compra e venda, o acesso aos serviços públicos, além da consequente diminuição do custo do
transporte. A população indígena também é beneficiada pelo melhor acesso para
comercializar, entretanto, também sofre impactos negativos, como a pressão sobre as TIs
decorrente do maior acesso à região, a piora da qualidade do ar e o aumento do nível de
ruídos. Para potencializar os impactos positivos, o RIMA prevê o Plano Ambiental de
Construção, que inclui o Projeto de Segurança e Alerta. Para os negativos, o Plano de
Relacionamento com a População, que abrange o Programa de Interação Social e
Comunicação, o Programa de Educação Ambiental e o Programa de Recuperação de Áreas
49
Degradadas, contido no Plano Ambiental de Construção – apesar deste programa, os estudos
preveem que há locais que sofrerão mudanças definitivas na paisagem.
Para a instalação da infraestrutura e a construção das obras principais do AHE Belo
Monte, foram previstos pelos estudos grandes interferências nos meios físicos e bióticos da
região, como a supressão de vegetação e matas ciliares, a produção de poeira e consequente
modificação do ar, o aumento do nível de ruídos, deslizamentos de terras, erosões, a piora da
qualidade da água, a interrupção dos Igarapés do Trecho do Reservatório dos Canais e,
consequentemente, o afastamento de espécies de animais de seus biomas naturais e a extinção
de algumas espécies. Como forma de compensação e diminuição destes impactos, há o
Programa de Recuperação de Áreas Degradadas; os Planos de Conservação dos Ecossistemas
Terrestres e dos Ecossistemas Aquáticos; o Programa de Monitoramento da Estabilidade das
Encostas Marginais e de Processos Erosivos, que faz parte do Plano de Acompanhamento
Geológico/Geotécnico e de Recursos Minerais; o Programa de Monitoramento dos Igarapés
Interceptados pelos Diques e o Programa de Monitoramento Limnológico e da Qualidade da
Água, incluídos no Plano de Gestão de Recursos Hídricos; e o Programa de Conservação e
Manejo de Habitats Aquáticos, incluído no Plano de Conservação dos Ecossistemas
Aquáticos.
Apesar destes impactos negativos que causam influências e interferências diretas no
meio ambiente, o EIA ainda chama atenção para possíveis aspectos positivos, de forma a
compensar os efeitos negativos da obra, como é mostrado no trecho a seguir:
“Os peixes que vivem nesses Igarapés, e que dependem das planícies que serão
inundadas, sofrerão consequências negativas, com o desaparecimento de espécies. Mas
esse impacto poderá ser compensado em parte no futuro, com a inundação dos
Igarapés na margem esquerda para a formação do Reservatório dos Canais, criando
novos ambientes para peixes.” (RIMA, 2009, p. 101)
Ainda devido às obras principais, especificamente no Sítio Pimental, o Relatório prevê
grandes impactos para a população indígena, como a interrupção temporária dos canais do
Rio Xingu e o consequente aumento da velocidade das águas em outros canais livres,
comprometendo a navegação na área do Sítio Pimental e nos arredores, o que dificulta o
acesso a população indígena para outras regiões (onde se encontram equipamentos e serviços
públicos, além de possíveis familiares) e a comercialização de seus produtos também. Além
50
disso, a piora da qualidade da água, afeta diretamente a pesca, fonte de subsistência e renda de
grande parte da população indígena e pode afetar a água também utilizada para consumo. A
fim de diminuir todos estes impactos, são propostos o Projeto de Segurança e Alerta, que faz
parte do Plano Ambiental de Construção; o Programa de Comunicação com a População
Indígena; o Programa de Monitoramento da Qualidade das Águas Superficiais e Subterrâneas,
incluído no Plano de Gerenciamento de Recursos Hídricos; o Projeto de Monitoramento da
Pesca, incluído no Plano de Conservação dos Ecossistemas Aquáticos; o Programa de
Garantia de Segurança Alimentar e Nutricional, incluído no Plano de Sustentabilidade
Econômica da População Indígena; o Programa de Abastecimento de Água, que faz parte do
Plano de Saneamento Básico da População Indígena; e os Projetos de Incentivo à Pesca
Sustentável e de Aquicultura de Peixes Ornamentais, incluídos no Plano de Conservação dos
Ecossistemas Aquáticos.
O Núcleo de Referência Rural São Pedro se encontra na mesma região e,
consequentemente, sofre estes mesmos impactos. Portanto, o RIMA propõe o Plano de
Atendimento à População Atingida, responsável pelo reassentamento dos 60 moradores da
região; o Programa de Interação Social e Comunicação, que faz parte do Plano de
Relacionamento com a População, responsável por proporcionar uma escolha consciente da
população sobre a forma de negociação mais adequada para cada um; e o Plano Ambiental de
Construção e o Programa de Acompanhamento Social, incluídos no Plano de Atendimento à
População Atingida, responsáveis por possibilitar o reassentamento dos moradores.
A partir dos estudos realizados, o RIMA prevê que, a partir do quinto ano da obra,
dois terços da população migrante (cerca de 32 mil pessoas) vão embora da região, causando
grandes impactos principalmente nas cidades de Altamira e Vitória do Xingu. Dentre eles, é
prevista a diminuição do número de empregos e consequentemente de renda de parte da
população. Propõe, então, o Plano de Articulação Institucional, o Programa de Incentivo à
Capacitação Profissional e ao Desenvolvimento de Atividades Produtivas, o Plano de
Relacionamento com a População e o Programa de Orientação e Monitoramento da População
Migrante, para preparar e auxiliar as pessoas a encontrarem novos empregos e fontes de
renda, sendo eles dentro ou fora da região da Usina.
Para reaproveitar os equipamentos existentes e que sofrerão diminuição em seu uso,
como serviços sociais, escolares e de saúde, é proposto o Plano de Articulação Institucional.
Também propõe o Programa Federal Territórios da Cidadania, na área rural, responsável pelo
fortalecimento da economia agropecuária. Para a proteção das áreas indígenas e a diminuição
51
da pressão nas proximidades das Tis, é proposto o Plano de Segurança Territorial das Terras
Indígenas.
O Estudo de Impacto Ambiental também prevê e analisa os grandes impactos causados
pelo enchimento dos reservatórios sobre a vegetação da região, que afeta tanto o próprio meio
ambiente local, sua fauna e flora, quanto os proprietários e trabalhadores rurais. Segundo o
Relatório, 24% da área total dos reservatórios corresponde às florestas. Além do
desmatamento, há a consequente formação de “ilhas florestais”. Estas alterações também
afetam as populações indígenas, causando um aumento de pressão sobre as TIs vindo da
população rural extrativista, as possíveis perdas culturais, devido à grande alteração da
paisagem, e alteração de meios de subsistência e renda.
Frente a estes impactos, são propostos o Programa de Desmatamento e Limpeza das
Áreas dos Reservatórios, o Projeto de Reestruturação do Extrativismo Vegetal, que faz parte
do Plano de Atendimento à População Atingida, o Plano de Conservação dos Ecossistemas
Terrestres, o Plano de Conservação do Ecossistema Aquático, o Programa de Monitoramento
da Qualidade das Águas, incluído no Plano de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, o
Programa de Proposição de Áreas de Preservação Permanente, o Plano Ambiental de
Conservação e Uso do Entorno dos Reservatórios Artificiais e o Programa de Compensação
Ambiental, que faz parte do Plano de Conservação dos Ecossistemas Terrestres, responsável
pela criação de novas Unidades de Conservação (UCs).
O Relatório reconhece, ainda, que o enchimento dos reservatórios e as mudanças
decorrentes dele na paisagem interferem nas áreas de lazer da população local: muitas das
praias existentes na região serão atingidas. Além de utilizadas como lazer, há muitas
atividades econômicas e infraestruturas no local, como comércios e balneários. Para
minimizar este impacto, é proposto o Plano de Atendimento à População Atingida, através do
Programa de Restituição/Recuperação das Atividades de Turismo e Lazer.
A área dos reservatórios abrange também sítios e patrimônios arqueológicos. O
Relatório propõe, para minimizar e compensar estes impactos, o Plano de Valorização do
Patrimônio, através dos Programas de Prospecção e de Salvamento Arqueológico, e o Plano
de Relacionamento com a População, a fim de diminuir a perda cultural local e regional e
valorizar o patrimônio cultural.
Segundo o RIMA, há jazidas de argila nas planícies de inundação e nos aluviões dos
igarapés Ambé e Panelas que não poderão mais ser exploradas devido ao enchimento do
Reservatório do Xingu. Propõe, então, que a extração passe para uma nova área em Altamira,
52
supervisionado pelo Programa de Acompanhamento das Atividades Minerárias dentro do
Plano de Acompanhamento Geológico/Geotécnico e de Recursos Minerais.
É ressaltado, mais uma vez, no documento analisado, o enorme impacto sofrido pelos
peixes e pescadores do Rio Xingu. O barramento do rio e a formação dos reservatórios
interferem muito nas espécies de peixes ali presentes, sendo algumas mais favorecidas e
outras muito prejudicadas, mudando a dinâmica de quem vende ou se alimenta dos peixes do
rio. A solução mais adequada, segundo o Relatório, é um Projeto de Implantação e
Monitoramento de Mecanismo para Transposição de Peixes, responsável pela formação de
um canal que deriva da margem direita do rio, no Sítio Pimental – ao invés da escada de
peixes proposta pelos Estudos de Viabilidade de Engenharia. O RIMA ressalta os benefícios
que podem decorrer disto: os peixes adaptados às novas condições são de maior valor
econômico e de consumo. Apesar disto, propõe o Plano de Conservação dos Ecossistemas
Aquáticos, para monitoramento das espécies de peixes, e o Projeto de Incentivo à Pesca
Sustentável, para auxiliar a adaptação dos pescadores.
Os estudos realizados indicam que os igarapés de Altamira, ao ser formado o
Reservatório do Xingu, sofrerão modificações: o aumento dos níveis das águas (podendo
chegar na cota 100 m nos períodos de cheia) e a diminuição da velocidade das mesmas,
devido ao bloqueio causado pelo reservatório, que impede a circulação das águas. Estas
modificações, somadas à quantidade de esgoto sem tratamento lançada nas águas, causarão a
piora de sua qualidade e, consequentemente, o crescimento de plantas aquáticas que, por sua
vez, prejudicam os peixes e o uso da água (RIMA, 2009, p. 117). São propostos, então, o
Programa de Intervenção em Altamira, dentro do Plano de Requalificação Urbana,
responsável pela implantação da rede de saneamento básico nas áreas mais próximas, e o
Plano de Gestão de Recursos Hídricos, para melhoria da qualidade das águas através da
diminuição de resíduos poluentes, da mudança da população que reside e será transferida
deste local para outro e a criação de áreas verdes nas margens dos igarapés.
O problema da qualidade das águas ocorre também no Reservatório dos Canais,
devido à sua grande profundidade, à formação de poças e áreas alagadas nas laterais do
reservatório, onde as águas ficam mais paradas, ao apodrecimento das vegetações pré-
existentes que serão alagadas e ao crescimento de plantas aquáticas. Além do Plano de Gestão
dos Recursos Hídricos já citado, as medidas propostas estão dentro do Plano Ambiental de
Conservação e Uso do Entorno do Reservatório Artificial, obrigatório para todos os
reservatórios segundo o Conselho Nacional de Meio Ambiente, sendo elas: a retirada da
53
vegetação existente, o mantimento de água corrente para renovação da água dentro do
reservatório e o enriquecimento da vegetação das margens através do planto e
reflorestamento.
Já as localidades da ADA, situados próximas aos reservatórios, sofrerão impactos
socioeconômicos, segundo o documento analisado, como: perda de imóveis, benfeitorias,
renda, fontes de subsistência e equipamentos sociais e interrupção de estradas e acessos. Para
minimizar estes impactos e auxiliar a população, é proposto o Plano de Atendimento à
População Atingida, que abrange projetos como o de Recomposição da Infraestrutura Viária,
responsável pela diminuição dos impactos sofridos pela população rural devido à interrupção
dos acessos aos equipamentos sociais e à cidade de Altamira. Dentro desta cidade, diversas
ruas e acessos também serão interrompidos, separando diversos bairros e regiões
anteriormente conectadas. Frente a isto, o RIMA propõe o Programa de Intervenção em
Altamira, dentro do Plano de Requalificação Urbana, responsável por novos acessos.
Os estudos em questão propõem, ainda, que o Projeto de Recomposição da
Infraestrutura Viária construa o máximo possível de acessos terrestres ao Reservatório dos
Canais, a fim de potencializar sua utilização, junto ao Reservatório do Xingu, como uma nova
opção de acesso. Entretanto, relatam também o aumento do “banzeiro” no reservatório –
ondas provocadas pelo vento –, que dificultam a navegação e o acesso entre as localidades
beiradeiras. Propõem, então, o Programa de Monitoramento do Microclima, incluído no Plano
de Gerenciamento de Recursos Hídricos, e o Projeto de Segurança e Alerta, dentro do Plano
Ambiental de Construção, a fim de auxiliar e permitir a readequação das populações
beiradeiras às novas condições de navegação. Em específico à situação da população
indígena, há o Programa de Garantia das Condições de Acessibilidade das Populações
Indígenas a Altamira. O mapa que demonstra este novo acesso apresenta os mesmos
problemas dos já citados anteriormente, omitindo o entorno e a real condição em que está
inserido, além de ausentar também a formação original do rio Xingu.
FIGURA 14 – Novo Trajeto para Navegação nos Reservatórios do Xingu,
dos Canais e nos Canais de Derivação
54
Fonte: Rima (2009)
O RIMA cita, ao falar sobre a Etapa de Operação do AHE Belo Monte, um impacto
positivo: o aumento da quantidade de energia a ser gerada e transmitida para o SIN (Sistema
Interligado Nacional), regulada pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) do
Governo Federal, que tem como objetivo distribuir energia elétrica de forma segura e com
custos baixos. Isto ocorrerá através da Subestação Xingu (localizada no mapa a seguir, que
segue o modelo dos mapas anteriores), que levará a energia para o norte do país através do
futuro linhão Tucuruí-Macapá-Manaus e para a ligação Norte-Sul através da ampliação de
linhões a partir da UHE Tucuruí. A Subestação Altamira, já existente, também receberá
energia por meio da construção de um novo linhão, beneficiando também a cidade de
Altamira.
55
FIGURA 15 – Interligação do AHE Belo Monte ao SIN
Fonte: Rima (2009)
Segundo os estudos em questão, o aumento de energia proporcionado à cidade de
Altamira e à região de seu entorno, somado à medida compensatória determinada pelo
Governo chamada Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos para fins
de Geração de Energia (CF) (através de recursos financeiros para os locais de terras inundadas
por empreendimentos hidrelétricos para os municípios de Altamira, Vitória do Xingu e Brasil
Novo), impulsionará o desenvolvimento das atividades econômicas, que, por sua vez,
aumentará também a arrecadação de impostos e tributos e, consequentemente, gerará mais
recursos para os municípios da região. Frente a isto, o RIMA propõe o Plano de Articulação
Institucional, a fim viabilizar este impacto e capacitar os municípios a administrar os recursos
gerados.
O Estudo de Impacto Ambiental também analisou, segundo o RIMA de forma
cuidadosa, os impactos gerados pela diminuição do volume das águas no Trecho de Vazão
Reduzida, “para se saber qual deve ser o Hidrograma Ecológico a ser liberado no rio Xingu, a
partir do sítio Pimental, para diminuir os impactos negativos sobre o meio ambiente e os
modos de vida da população” (RIMA, 2009, p.129). Os impactos analisados são: a
56
interrupção ou maior dificuldade de navegação nos períodos de seca, que afeta diretamente no
modo de vida da população beiradeira; a perda de ambientes para reprodução, alimentação e
abrigo de espécies de peixes e outros animais; a formação de poças no entorno, que favorece a
criação de mosquitos que transmitem doenças; a piora da qualidade das águas, que favorece o
desenvolvimento de plantas aquáticas; o prejuízo para a pesca e seu papel como fonte de
renda e de subsistência de grande parte da população beiradeira; e o possível aumento da
atividade garimpeira, o que aumenta o conflito com as populações indígenas e a pressão sobre
as TIs.
O Hidrograma Ecológico proposto visa o equilíbrio entre a geração de energia – que é,
segundo o relatório, um projeto estruturante para o país – e a liberação de vazões mínimas
para o Trecho de Vazão Reduzida, a fim de diminuir em alguma escala os impactos citados.
Aliado a ele, é proposto o Plano de Gerenciamento Integrado da Volta Grande do Xingu, que
envolve, dentre outras ações, o Programa de Monitoramento das Condições de
Navegabilidade e das Condições de Vida, o Projeto de Monitoramento da Atividade
Garimpeira, o Projeto de Monitoramento da Largura, Profundidade e Velocidades em Seções
do Trecho de Vazão Reduzida, o Programa de Monitoramento da Qualidade das Águas
Superficiais, o Programa de Monitoramento da Dinâmica das Águas Subterrâneas, e, voltados
para as questões das populações indígenas, o Projeto de Monitoramento do Dispositivo de
Transposição de Embarcações, o Projeto de Monitoramento da Navegabilidade e das
Condições de Escoamento da Produção das TIs e o Projeto de Monitoramento das Condições
de Vida das Populações Indígenas das TIs Paquiçamba, Arara da Volta Grande do Xingu e
Trincheira Bacajá.
No fim deste capítulo, é apresentada uma tabela na qual são categorizados os
principais impactos, o período em que ocorrerão e as correspondentes etapas da construção do
AHE Belo Monte, divididas em Estudos e Projetos, Construção da Infraestrutura, Enchimento
dos Reservatórios e Operação. Deste modo, os impactos são demonstrados, como mencionado
anteriormente, de forma asséptica, neutra, pragmática. São categorizados em alguns grupos,
delimitando o tempo em que ocorrerão – o que traz a ideia de que são finitos, limitados, têm
início, meio e fim. Esta forma de apresentação, em forma de tabela, racionaliza e ausenta os
reais impactos e as possíveis influências e decorrências destes, mesmo que de forma indireta.
FIGURA 16 – Tabela de Impactos Causados pelo AHE Belo Monte
57
Fonte: Rima (2009)
58
No capítulo seguinte do documento, “Planos, Programas e Projetos Ambientais”, são
reapresentadas as ações propostas através dos estudos e das análises dos impactos. Estas,
segundo o Relatório, são de responsabilidade do empreendedor da obra, em parcerias com o
Governo Federal, o Governo Estadual, as prefeituras municipais, além de ONGs e outras
instituições. Ademais, o empreendedor deve conciliá-las com os planos e programas já
existentes por parte dos Governos Federal, Estadual e Municipal que visam ao
desenvolvimento sustentável da região. Um dos princípios básicos para a realização destas
ações, segundo o EIA, é o Processo de Participação Popular, que propõe que as comunidades
envolvidas conheçam e participem das ações, acompanhando a forma em que são realizadas
pelo empreendedor.
Vale ressaltar que, dentro do Plano de Atendimento à População Atingida, há os
Programas de Negociação e Aquisição de Terras e Benfeitorias nas Áreas Rural e Urbana.
Estes visam ao tratamento das questões que envolvem as transferências obrigatórias das
populações residentes das ADAs, a definição da melhor opção para cada grupo de acordo com
suas especificidades e demandas e a garantia de transparência sobre os direitos da população e
sobre a aplicação de critérios jurídicos e técnicos das indenizações.
Para as comunidades rurais, o EIA propõe formas de aquisição ou indenização, como:
Indenização em Dinheiro, Relocação Assistida (relocação do proprietário em uma área na
região com condições equivalentes às originais, com direito a uma assessoria para apoio
social e jurídico e informações para auxiliar na compra do novo imóvel), Reassentamento em
Áreas Remanescentes (permite a permanência do proprietário nas áreas que sobram após a
desapropriação, desde que atendido à legislação) e Reassentamento Rural (implantado pelo
empreendedor, o reassentamento deve ser um projeto resultado de discussão coletiva, para
pequenos proprietários e posseiros, para trabalhadores ou quem tem posse de minifúndios,
para atingidos que não possuem direito à propriedade ou para quem se encontra em condições
de vulnerabilidade social).
A fim de categorizar e funcionalizar a relação entre os atingidos e as possíveis formas
de indenização, o RIMA apresenta uma nova tabela, que, pelo seu próprio caráter de
apresentação, reduz e ausenta as especificidades de cada morador e a complexidade de suas
desterritorializações e reterritorializações. O mesmo ocorre com a população urbana atingida,
para as quais são oferecidos tratamentos similares aos da população rural, resumidos também
em forma de tabela:
59
FIGURA 17 – Tabela de Grupos Atingidos pelo AHE Belo Monte
e Projetos para a Área Rural
Fonte: Rima (2009)
FIGURA 18 – Tabela de Grupos Atingidos pelo AHE Belo Monte
e Projetos para a Área Urbana.
Fonte: Rima (2009)
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Por fim, o RIMA frisa a importância da construção do AHE Belo Monte, tanto para o
desenvolvimento do país devido ao aumento significativo de energia proporcionado para o
SIN (Sistema Interligado Nacional) e a contribuição deste sistema para as regiões Norte,
Nordeste, Sudeste e Sul, quanto para o desenvolvimento da própria região em que será
implantado. Entretanto, ressalta a importância da preparação desta região como um passo
imprescindível para a concessão da obra. Para isto, considera necessário que os planos dos
Governos Estadual e Federal e os propostos pelo EIA-RIMA sejam colocados em prática.
Desta forma, segundo o documento, a região – que já passa por problemas de desmatamento,
de pressão e disputas de terra, de ameaça à pesca tradicional e às espécies de alguns animais e
peixes, além de problemas de falta de infraestrutura, de saneamento básico e de sistemas de
saúde – poderá se fortalecer institucionalmente e alcançar um desenvolvimento econômico
sustentável, através também dos impactos positivos decorrentes da nova usina.
O Relatório de Impacto Ambiental, portanto, apesar de relatar os estudos e as análises
feitas pelo Estudo de Impacto Ambiental sobre os meios físicos, bióticos e socioeconômicos
da região em que será implantada a UHE Belo Monte, demonstra algumas faces da fragilidade
do estudo em questão. Ainda que cumpra a função de tornar acessível o conteúdo do EIA, as
informações contidas no RIMA são demonstradas de forma asséptica, neutra. Esta
neutralidade reduz os impactos negativos sofridos pela população afetada e pelo meio
ambiente da região, sempre acompanhados de ressalvas ou possíveis impactos positivos.
Alguns destes efeitos negativos, por sua vez, além de minimizados, são omitidos, se perdem,
no discurso fragmentado e contraditório do documento. Já os planos e projetos
compensatórios ressaltados pelo mesmo e expostos como imprescindíveis, muitas vezes
genéricos, não ocorreram de fato ou ocorreram somente de forma parcial, como pode ser
compreendido na análise a seguir do Dossiê Belo Monte.
5.2 Discurso não-oficial – Dossiê de Belo Monte
O Dossiê Belo Monte, cujo o subtítulo é “Não há condições para a licença de
operação”, lançado em junho de 2015, consiste em um documento organizado pelo Instituto
Socioambiental (ISA), uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) de
caráter defensivo em relação à luta por direitos sociais e ambientais que tem como foco a
implantação da usina de Belo Monte e sua rede de impactos. O ISA, fundado em 1994, tem
61
como objetivo principal a defesa de bens de direito coletivos relativos ao meio ambiente,
patrimônio cultural e direitos humanos pela implantação de programas e projetos que
promovam soluções socioambientais.
O dossiê analisado tem como finalidade trazer a público por meio da produção de
entrevistas e artigos elaborados por especialistas e atores regionais -um debate qualificado e
pautado em constatações materiais acerca do processo de licenciamento da usina de Belo
Monte. Em sua apresentação, o referido Dossiê, de início já explicita o que denomina de
descompasso entre os documentos elaborados e de apoio à empresa concessionária da Usina,
a Norte Energia S.A., onde há a constatação do não cumprimento ou do parcial cumprimento
das condicionantes apresentadas quando da construção de Belo Monte, mesmo já havendo
investimentos monetários nas áreas de impacto direto e indireto em razão da construção da
usina. Estes se apresentaram aplicados de maneira equivocada, insuficiente, além de, em
alguns casos, nem sequer terem saído do papel.
Em 2010 houve a concessão, por meio do IBAMA, da licença prévia de Belo Monte,
que contemplava uma espécie de pacote de medidas de mitigação e compensação, chamadas
de “condicionantes socioambientais de viabilidade da usina”, que previam ações
antecipatórias nos setores da saúde, educação e saneamento básico, a fim de precaver e
reduzir, em certa escala, os impactos sobre estes setores do serviço público. Depois de
finalizadas as obras o dossiê constata atrasos na implementação de infraestruturas necessárias
e previstas nestas ações antecipatórias, que incluem também ações de regularização fundiária
e proteção das Terras indígenas (TI) e das Unidades de Conservação (UC) afetadas, o que
afirmam acarretar uma piora nas condições de qualidade de vida das populações locais e a
perda de recursos naturais fundamentais à manutenção do modo de vida dos povos indígenas
e das comunidades tradicionais da região.
“Desde a emissão da primeira licença, já estava claro que sérios problemas na
condução do processo de licenciamento não estavam satisfatoriamente equacionados.
Por exemplo, a insuficiência de estudos sobre a qualidade da água dos reservatórios e
as incertezas quanto às condições ambientais da volta grande do Xingu após o desvio
do rio, já que se trata de uma região de rica biodiversidade, berço de espécies
endêmicas de fauna e flora, e território tradicionalmente ocupado pelos povos
indígenas Juruna e Arara.” (Dossiê Belo Monte, 2015, p.8)
62
No que se refere ao reassentamento da parcela da população tanto de origem da área rural
quanto da urbana, estas são obrigadas a se desterritoralizar, portanto, são deslocadas
impositivamente de suas residências devido à construção da usina , por se encontrarem na
área delimitada para o alagamento que servirá de reservatório (acima da cota 100m). Trata-se
de um processo traumático, que afeta quantitativamente, mais de oito mil famílias, as quais o
empreendimento denomina de “interferidos”, adjetivo inadequado e pouco transparente.
Atualmente, constata-se que cerca de 3000 famílias já foram transferidas e passaram a
residir em novos loteamentos previstos pelo programa de realocação urbana, os
Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC), que não possuem serviços públicos essenciais,
como transporte, saúde e educação. Além disso, mesmo havendo a construção de 220
quilômetros de redes de esgoto e 170 quilômetros de redes de água potável instaladas, as
tubulações que ligariam a rede coleta de esgotos aos domicílios e imóveis comerciais não
estão conectadas, pois os ramais e ligações não foram implantados pelo empreendedor, um
aspecto de descaso e planejamento deficitário sob a responsabilidade da Norte Energia, já que
esta, nas medidas condicionantes socioambientais de viabilidade da usina, assumiu o
compromisso de proporcionar a Altamira os sistemas completos de abastecimento de água, e
de coleta, afastamento e tratamento de esgotos. Existem impasses referentes à gestão destes
sistemas que nem a prefeitura consegue equacionar e sanar.
Ademais, destacam-se questões que envolvem exclusivamente as populações
ribeirinhas, obrigadas a se deslocar das áreas beiradeiras do rio, assentadas em regiões
urbanas, afastadas do rio. Ou seja, é desconsiderada sua identificação social com os rios, sua
ligação de subsistência, seu modo de vida. As propostas de compensação apresentadas pela
Norte Energia em relação a essa população se limitaram a: reassentamento rural coletivo,
reassentamento individual, indenizações em dinheiro e carta de crédito/reassentamento
assistido. Cerca de 75% das famílias contempladas por esta medida escolheram a opção de
indenizações monetárias, 21% a opção de carta de crédito e somente 1,5% o reassentamento
rural coletivo. Estas, como aponta o Dossiê, são soluções limitadas e pouco estruturadas, pois
apontam que os reassentamentos, tanto o rural coletivo, quanto o individual, são distantes da
localidade original das famílias, além de possuir problemas de infraestrutura, localizados
longe de serviços básicos e comércio, as indenizações em dinheiro não foram em valor
suficiente para que conseguisse contemplar a compra de terrenos próximos da antiga moradia
destas famílias, já que os terrenos próximos a margem do rio encareceram justamente pela
implementação da usina, já a carta de crédito argumentam ser impraticável para esta parcela
63
da população, já que muitos são analfabetos, com pouco acesso à informação, assistência
especializada.
“Os dados demonstram que a conversão de populações ribeirinhas em populações
exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando, devido à ausência de
opções que assegurem sua manutenção na beira do rio.” (Dossiê Belo Monte, 2015,
p.13)
Além disto, há o registro de não terem sido feitos estudos acerca das populações ribeirinhas
que se encontravam no entorno de Altamira e das comunidades que viviam nas reservas
extrativistas da Terra do Meio. Descreve-se que os pescadores reclamam de impactos
negativos da usina que interferem diretamente na pesca, como em razão das diversas
explosões de dinamite e das luzes fortes dos holofotes do canteiro de obras causaram uma
descaracterização física dos rios, que diminuiu a quantidade de peixes e até relatando uma
possível extinção de determinadas espécies. Também é relatado o aumento dos conflitos por
disputa pelas áreas de pesca restantes.
Outros fatores abordados pelo Dossiê (e estabelecidos pela Fundação Nacional do
Índio - FUNAI) que dizem respeito às medidas de mitigação e compensação e que também
são apresentados como problemáticos e relacionados aos povos indígenas, consistem em 13
ressalvas estabelecidas no Plano Básico Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI) de
responsabilidade do empreendedor e do poder público tendo duração de 35 anos. O dossiê
indica que uma parcela significativa destas medidas ainda não começou a ser implementada e
as que foram implantadas se deram de maneira desordenada. Apresentam que, segundo a
Norte Energia, cerca de R$ 215 milhões já foram repassados para os povos indígenas, porém
foi constatado que este investimento foi utilizado de modo equivocado, para fornecimento de
bens materiais. Descrevem que até março de 2015 foram comprados 578 motores para barco,
322 barcos e voadeiras, 2,1 milhões de litros de gasolina, entre outros, o que reforça um
caráter apaziguante e de certo controle e manipulação dos povos indígenas. Além dos recursos
aplicados anteriormente dentro do período de outubro de 2011 a setembro de 2013, houve
uma espécie de mesada, em torno de R$ 30 mil mensais por cada aldeia, o que demonstra uma
prática de controle por parte do empreendedor e do Estado que afetou diretamente o
andamento da organização e resistência indígena.
64
Para ilustrar esse comparativo entre o que foi pactuado oficialmente pela Norte
Energia com as instâncias do governo e como se encontra o andamento dos programas na
realidade, o Dossiê Belo Monte do ISA elaborou uma série de infográficos ilustrando de
forma didática os temas que englobam saneamento básico; remoção compulsória das famílias
e perda do modo de vida ribeirinho; plano emergencial indígena e desestruturação das aldeias;
impactos na pesca não reconhecidos no licenciamento. Eles apresentam estes infográficos de
forma sintética para uma assimilação rápida e resumida sobre os impactos dentro destes
temas, contendo ilustrações simples para um entendimento didático. Uma crítica a ser feita a
este material gráfico, em especifico, poderia ser que ao tornar ilustrativo demais o infográfico,
com o possível intuito positivo em fazer com que qualquer pessoa consiga compreender os
impactos gerados pela UHE Belo Monte, o material, de certa forma, simplifica os processos
provocados. Talvez como apoio, pudesse ser feito, com o mesmo intuito didático, um material
que conseguisse transparecer a emergência e magnitude dos impactos, esmiuçando a
complexidade do assunto sem perder os detalhes. Obviamente, ressalta-se a importância do
Dosssiê, inclusive deste material infográfico, como ferramenta essencial para divulgar e
revelar ao público as complexas dinâmicas impulsionadas pela implantação da usina.
FIGURA 19 – Saneamento básico
Jogo de empurra põe em risco a qualidade da água
Fonte: Dossiê Belo Monte (2015)
65
FIGURA 20 – Remoção forçada das famílias e perda do modo de vida ribeirinho
Fonte: Dossiê Belo Monte (2015)
FIGURA 21 – Plano emergencial indígena e desestruturação das aldeias
Fonte: Dossiê Belo Monte (2015)
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FIGURA 22 – Impactos na pesca não reconhecidos no licenciamento
Fonte: Dossiê Belo Monte (2015)
No que diz respeito das consequências do descumprimento destas condicionantes
relacionadas à UHE Belo Monte, há a indicação de impactos negativos em diversos setores
que implicam diretamente na qualidade de vida e segurança das populações afetadas. O
Dossiê descreve diversas destas consequências, como por exemplo, a ocorrência de
sobrecarga dos serviços públicos de saúde. Alega que o atraso na entrega de hospitais
previstos ocasionou numa superlotação dos hospitais locais, inclusive porque há também a
procura por atendimento no centro pela população indígena e tradicional. De acordo com
dados do Hospital Municipal São Rafael entre 2009 e 2014 o número de atendimentos (entre
atendimentos hospitalares, emergenciais e ambulatoriais) teve uma elevação de 101%,
constatando-se ainda, de forma geral nos hospitais locais, a falta de itens básicos, como leitos
para atendimento e internação.
Apresenta uma estimativa de que durante os últimos quatro anos, a quantidade de
acidentes de trânsito por ano em Altamira se elevou em torno de 144%. Segundo dados do
Hospital Regional de Altamira, em 2014, o número de pacientes vítimas de acidente de
trânsito no hospital aumentou 213% em relação a 2013. Além da apuração de que existe um
grande risco de que hospitais entregues pelo empreendedor acabem por serem subutilizados
67
ou até mesmo inutilizados, já que há por parte das prefeituras a falta de orçamento para geri-
los. O setor da educação também revela ter sido afetado pela implementação da UHE Belo
Monte. Há a notação de uma queda nos índices de qualidade da educação. Apesar da Norte
Energia informar que os cinco municípios que constam na AID receberam 378 salas de aula,
onde as estruturas já existentes foram ampliadas e reformadas, e novas estruturas foram
construídas como medidas antecipatórias, os dados do Inep, indicam que após o início da
construção de Belo Monte, houve um registro nas zonas urbanas dos municípios da AID uma
sobrecarga de alunos no ensino fundamental. Concomitantemente, há relatos sobre
equipamentos de educação ociosos, que foram construídos, mas não utilizados, como
exemplo, há escolas rurais em Vitória do Xingu desativadas.
Em resumo, de acordo com o levantamento do Dossiê Belo Monte, entende-se que no
âmbito da educação as medidas antevistas para minimizar os impactos na educação foram
inábeis, notando-se a falta de planejamento municipal adequado tanto no quesito de estrutura
física quanto no âmbito social pela ausência de participação e controle público, incluindo a
ausência de articulação das políticas públicas no período da obra que exigisse as obrigações e
programas de responsabilidade da Norte Energia, acrescentando ainda a debilidade da gestão
dos serviços por uma ótica integrada, que contemplasse o corpo docente disponível na região
e os impactos sobre os processos pedagógicos de ensino (Dossiê Belo Monte, 2015).
Das consequências que abarcam o saneamento básico, há a constatação pelo Dossiê
que em Altamira 220 quilômetros de redes de esgoto e 170 quilômetros de redes de água
potável foram instalados e que na somatória de todos os municípios incluídos na AID, cerca
de R$ 485 milhões foram utilizados para a contratação de projetos de saneamento básico.
Entretanto, havia a projeção de que esses projetos não estariam finalizados e funcionando
antes do termino da construção da barragem, o que colocaria em risco a qualidade da água dos
aquíferos subterrâneos e do reservatório do Xingu que atende população.
O impasse consiste na constatação de que as estações de tratamento estão finalizadas,
mas as tubulações não estão conectadas aos domicílios e imóveis comerciais para receberem o
esgoto, já que os ramais e ligações domiciliares não foram implantados pela Norte Energia. A
empresa alega que as ligações domiciliares não estão na alçada de suas obrigações incluídas
no PBA estabelecidas pelo Ibama, e que a responsabilidade estaria a cargo dos moradores ou
do poder público. Alegação que beira a irresponsabilidade, atribuindo à população solucionar
um problema gerado pela própria empreendedora. Foi constatada também certa negligência
nas remoções compulsórias da população reassentada pela UHE Belo Monte. É denunciada a
68
ausência de publicidade e transparência na execução do cadastro desta parcela afetada,
resultando na exclusão de parte da população atingida neste processo.
O primeiro processo de cadastramento que ocorreu entre os anos de 2011 e 2012,
notou-se que falhas graves prejudicaram na caracterização das pessoas e núcleos familiares
afetados. Em razão disto, no ano de 2013 foi executado um novo cadastramento por uma nova
empresa contratada a fim de corrigir as falhas anteriores, reconsiderando famílias que
anteriormente não haviam sido contempladas, porém constatou-se que esta situação passada
impactou nessas novas negociações. Este cadastramento, de uma forma geral, deveria refletir
a realidade local e ser utilizado como base para que a construção dos reassentamentos fosse
mais adequada aos modos de vida dessas populações, mas o que aconteceu de fato foi um
distanciamento desta realidade típica amazônica, caracterizando um não reconhecimento
desses beiradeiros em suas novas moradias, que anteriormente habitavam as ilhas sazonais e
margens do rio Xingu, sendo essas novas locações muito distantes do próprio rio e do centro
da cidade, não havendo um cadastro socioeconômico distinto para a parcela que se configura
como pescadores, um agravante em serem deslocados da beira rio.
“Além dos impactos diretos provocados pela instalação da usina, a região experimenta
graves conflitos sociais, já que cada uma das áreas de pesca, tradicionalmente, é
explorada por determinado grupo de pescadores, de modo que a destruição de certas
áreas tem levado os pescadores que ali exerciam suas atividades a migrar para as áreas
já exploradas por outros.” (Dossiê Belo Monte, 2015, p.42)
O Dossiê informa que a Norte Energia não executou o reassentamento considerando que suas
casas beira rio ou as que se localizam nas ilhas sazonais são essenciais para os beiradeiros,
entendendo que essas colocações seriam como “ponto de apoio” e determinantes para sua
subsistência e identidade, utilizando-as como moradia e para pesca e coleta, inclusive como
lazer e ambiente de desenvolvimento da família, pois não foi assegurada pela empreendedora
algo semelhante a uma dupla opção de reassentamento a quem possuía também esta moradia
as margens do rio. Constataram que os que optam pelo reassentamento urbano obtiveram
apenas indenização monetária pela casa da ilha/margem, e os que optaram pelo
reassentamento rural só obtiveram indenização apenas pela casa na cidade. O que configura
num risco de desaparecimento desse modo de vida tradicional e ao desamparo dessa
população, que não tem alternativa de trabalho além da pesca.
69
Já os Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC’s), também tiveram sua localização
como decisão exclusiva da Norte Energia, sem comunicação com a população assistida,
desacatando a definição contida no PBA, que estabelecia que os RUC’s se localizassem em
até dois quilômetros de distância dos centros urbanos, o que não ocorreu. Igual situação se
deu na definição do material construtivo, que impede que haja expansão da moradia, e
dimensões das residências, descumprindo medidas anteriores que diziam considerar as
particularidades de cada família, porém o que se deu foi a construção de residências padrão
único, e distantes dos centros urbanos. Outra crítica a apontar neste processo é que as famílias
não puderam escolher em qual reassentamento gostariam de ir, desarticulando vizinhanças,
desagregando comunidades e relações sociais.
Outro fator é de que nos RUC’s, de maneira geral, há a ausência de equipamentos
sociais necessários, constata-se que três Unidades Básicas de Saúde (UBS) foram construídas
pela Norte Energia conjuntamente com a prefeitura de Altamira, porém estas não contemplam
todos reassentamentos, além de faltarem escolas e acesso ao transporte público. Serviços que
de acordo com o PBA, deveriam estar prontos e funcionando integralmente antes da
instalação das famílias.
A exiguidade de transporte público que atende aos RUC’s é um aspecto grave, pois
grande parte dos reassentados está se locomovendo a pé diariamente por muitos quilômetros,
o que os prejudica o acesso a serviços e a oportunidade de trabalho, sendo que em alguns
casos, têm que arcar com o encargo financeiro de utilizarem moto-táxis para chegar ao centro.
Tais fatores impedem também a continuidade da atividade pesqueira, em razão da distância
significativa ao rio Xingu.
Decorrente desses elementos, por pressão de grupos de atingidos, a Norte Energia se
incumbiu em construir um RUC nas margens do rio Xingu, o RUC Pedral, visando a atender
os beiradeiros que se engaram a permanecer na realocação distante e distinta de suas
condições de vida específica. O Dossiê ressalta que ainda que a obra não contemplará toda a
população beiradeira necessária.
Outro aspecto preocupante é da degradação florestal e da intimidação de comunidades
indígenas e ribeirinhas por madeireiros que exercem a exploração ilegal de madeira na região.
O Dossiê alega o descumprimento de um conjunto de ações que visava o controle de extração
de madeira realizado pela própria Norte Energia para a instalação dos canteiros de obra e dos
reservatórios, onde significativa parte da madeira extraída pela obra apodreceu, não sendo
reaproveitadas na construção da usina, como previsto no PBA. Com isto, a Norte Energia
70
adquiriu vasta quantidade de madeira de fornecedores externos, cerca de 17 mil m³ até
dezembro de 2012, ação reprovada e que os programas ambientais procuravam evitar, posto
que a madeira comercializada na região, é em suma, ilegal.
O saldo desta situação demonstrou o aumento dos índices de degradação florestal, ou
seja, da exploração ilegal de madeira, na área de influência da obra, agravando a
vulnerabilidade da floresta a queimadas e risco de redução da biodiversidade, além do
aumento de casos de violência contra os moradores das áreas de atuação dos madeireiros, o
que figura em ameaças e cooptação. Como exemplo, o Dossiê traz dados de que na Terra
Indígena Cachoeira Seca, desde o ano de 2014, foram extraídos cerca de 200 mil metros
cúbicos de madeira, o equivalente a 13 caminhões madeireiros cheios.
Sobre as consequências que afetam especificamente os povos indígenas há a
constatação de que as medidas de mitigação foram inadequadas, agravadas pelo fato da usina
estar praticamente construída em sua totalidade e as medidas previstas para proteção dos
territórios indígenas, como regularização fundiária e fiscalização, não terem sido
implementadas, prejudicando a autonomia indígena sob o seu próprio território.
O Dossiê apresenta que em uma nota técnica datado de março de 2015, a Funai
demonstrou que entre 2008 e 2013 houve 193,4 quilômetros quadrados de desmatamento na
região das terras indígenas localizadas na área afetada pela UHE Belo Monte, o que
apresentou um aumento de 16,31% em comparação a dados anteriores. Há também o aumento
do número de queimadas e a abertura de estradas improvisadas e ilegais que facilitam a
invasão nessas terras. Nas terras indígenas Apyterewa, Trincheira Bacajá, Xipaia,
Paquiçamba, Curuaia e Cachoeira Seca houve a incidência de desmatamento ilegal e/ou
extração de madeira ilegal, já nas terras indígenas de Arara, Koatinemo e Ituna/Itatá
constatou-se o aumento de invasões de caçadores e de uma expansão de loteamentos rurais, já
nas terras indígenas Bacajá, Paquiçamba e Arara da Volta Grande houve o crescimento no
número de invasões de pescadores comerciais e nas Terras Indígenas Xipaia e Curuaia e no
entorno da Arara intensificou-se a presença de garimpos ilegais. Situação alarmante e
preocupante que coloca em risco a vida destas comunidades indígenas.
Ainda há as críticas e consequências referentes ao Plano Emergencial recorrido para
apoio as populações indígenas, que ocorreu de maneira desordenada, onde foi cedida uma
espécie de mesada as comunidades, na qual atendia às listas de mercadoria elaborada pelos
indígenas, que incluía bens de consumo, a serem fornecidas pela Norte Energia. Consequência
deste ato, foi a perda da capacidade de produção de alimentos de maneira continua,
71
resguardada no parâmetro de segurança alimentar indígena do empreendedor, gerando
complicações no âmbito da saúde e autonomia destes povos, aumentando significativamente
os índices de desnutrição das crianças menores de cinco anos dessas comunidades.
“E, apesar de ser verdade que Belo Monte não alaga nenhuma TI (Terra Indígena),
vale lembrar que a usina praticamente seca o rio Xingu entre as TI’s Arara da Volta
Grande e Paquiçamba, desviando até 80% da vazão hídrica para o reservatório de
geração de energia.” (Dossiê Belo Monte, 2015, p.40)
As medidas de construção de infraestrutura de serviços públicos ainda não foram executadas,
nem estão em prática os projetos produtivos que deveriam assegurar a segurança alimentar e
melhoria nas condições de subsistência e autonomia material dessas populações. Para estas
terras indígenas só estão previstas medidas de monitoramento de impactos.
Por fim, o Dossiê Belo Monte, após apresentar o comparativo entre o que foi
estabelecido oficialmente e legalmente pela Norte Energia com o Governo Federal e local e
como na realidade essas medidas foram realizadas, apresentando as consequências da
execução e ausência desses mecanismos de mitigação e compensação de impactos, busca
apresentar uma espécie de lições apendidas, em própria descrição, onde, em resumo, procura
indicar os problemas institucionais que envolveram a UHE Belo Monte que precisam ser
superados e não mais repetidos, com a premissa evitar qualquer desrespeito às instituições
democráticas, que incluam em seu planejamento o diálogo com a sociedade civil,
considerando o conhecimento das populações atingidas sobre o território a fim de firmar um
comprometimento socioambiental transparente e eficaz, havendo um alto grau de
comprometimento por parte do empreendedor e do Estado, para evitar tragédias e
agravamento de mazelas e vulnerabilidade de populações que se encontram afetadas e à
margem de grandes obras de infraestrutura.
“Quando a usina hidrelétrica (UHE) de Belo Monte foi a leilão, vieram à tona muitos
questionamentos sobre a viabilidade do empreendimento. Uma crítica recorrente era
de que os impactos previstos estavam mal dimensionados e os custos socioambientais,
subestimados, mesmo havendo sido destinados R$ 3,2 bilhões às condicionantes de
mitigação da obra. O planejamento e a construção da UHE foram marcados por
autoritarismo e falta de participação e controle social, expressos em audiências
72
públicas de ‘faz de conta’ e na ausência de processos de consulta prévia, livre e
informada.” (Dossiê Belo Monte, 2015, p.56)
O tom do Dossiê além de denunciar os graves impactos gerados pela UHE Belo Monte é de
suscitar uma nova visão de planejamento, que busque o desenvolvimento sustentável. Para tal
conscientização, ao final, o Dossiê compila uma série de artigos denominados “Vozes do
Xingu”, reunidos de forma colaborativa, onde buscam reunir “vozes”, perspectivas diversas,
não consideradas nesses anos de execução da UHE Belo Monte. Esses artigos reúnem textos
de pesquisadores, agentes públicos e representantes de movimentos sociais, que descrevem
desde testemunhos pessoais a relatórios técnicos sobre as consequências decorrentes da
ausência ou ineficácia de como se deram as medidas de mitigação socioambiental realizadas
pela Norte Energia e pelo poder público, buscando traçar a dimensão dos impactos sofridos
pelas populações afetadas pela obra.
5.3 Reflexões
Quando se trata das populações tradicionais, sobretudo as que usufruem e/ou habitam
a margem do rio Xingu, há a relação intrínseca entre essas populações e o rio: uma relação de
dependência física e cultural, ligada a uma questão de subsistência, ao modo de vida, tendo a
pesca como principal fonte de alimento e renda. Configuram-se, assim, como beiradeiros.
População que, segundo Mauro Leonel em seu livro “A morte social dos rios”, se define como
de pescadores artesanais e rurais que residem em vilas e localizações às margens do rio, o que
caracteriza uma parte do modo de vida do interior amazônico. A pesca não é somente uma
profissão, mas uma atividade de sobrevivência e de acesso ao mercado (LEONEL, 1998).
Justamente tais características, segundo é apontado pelo Dossiê Belo Monte, não são levadas
em consideração nas propostas de compensação e mitigação dos impactos apresentados pelo
EIA-RIMA.
A apresentação feita pelo RIMA sobre os beiradeiros se dá de maneira superficial,
neutra. O Relatório indica, em números, quantas pessoas estão dentro do parâmetro
estabelecido de áreas diretamente afetadas (ADAs), inclusive reconhecendo que o rio e a
atividade pesqueira são importantes para esta parcela da população que mora às margens do
Xingu. Porém, ao se tratar de soluções, somente apresenta as que são de âmbito material
73
como alternativa ao desalojamento, como as indenizações monetárias, as cartas de crédito e os
reassentamentos urbanos e rurais coletivos. Deste modo, justifica que, em contrapartida a este
impacto, haverá outros investimentos em infraestrutura local, visando a uma futura
necessidade decorrente, justamente, da implantação da usina.
Estes investimentos, por sua vez, são constatados pelo Dossiê Belo Monte como
aplicados de maneira equivocada ou que, em muitos casos, nem sequer foram aplicados na
prática. Um exemplo é o caso da solução ofertada aos beiradeiros, população por muitas vezes
carente de informação, onde muitos são analfabetos, encontrando dificuldades em escolher e
se posicionar frente a essas medidas compensatórias apontadas pelo Dossiê como limitadas,
problemáticas e insuficientes para minimizar os impactos gerados e de fato solucionar os
danos causados pelas suas remoções.
Entende-se que se está frente à paradoxal relação sobre a qual discorre Dominique
Perrot, em seu artigo já mencionado de 2008, ou seja, a relação, na maior parte das vezes
dicotômica, entre desenvolvimento e povos autóctones. No artigo citado, Perrot aponta que o
desenvolvimento se dá “por uma transformação sistemática da natureza e das relações sociais
em bens e serviços para o mercado” (PERROT, 2008, p.221). Assim, ao observar a UHE Belo
Monte, compreende-se que os impactos gerados nas populações autóctones se tornam
minimizados frente a um projeto de escala federal e de grandes proporções em âmbito
nacional, que diretamente movimentará a matriz energética do país e subsequentemente o
setor da economia. Eufemizam-se, assim, os impactos diretos, como no presente caso, onde,
“o desenvolvimento aparece como o empreendimento de destituição e expropriação em
proveito de minorias dominantes” (PERROT, 2008, p.221), afinal já é sabido que grande
parte da geração elétrica da UHE Belo Monte se destinará ao setor industrial.
Este deslocamento forçado de populações que se encontram nos parâmetros da ADA,
provoca processos de “desterritorializações e reterritorializações” que, segundo Rogério
Haesbaert, desconsideram as relações particulares destas populações autóctones com o
espaço, pois são destituídos de suas áreas de moradia, onde já desenvolviam seu cotidiano e
cultura, mas que impositivamente têm que se realocar em outras regiões, sejam elas por
escolha própria possibilitada pela carta de crédito ou determinada pela Norte Energia com os
reassentamentos coletivos.
Em particular, os RUCs (Reassentamentos Urbanos Coletivos) apresentam problemas
significativos. As unidades ofertadas não contemplaram a totalidade de famílias atingidas. A
maior parte das unidades, por sua vez, não teve sua infraestrutura finalizada antes de ser
74
ocupada, além de se localizar distante da moradia de origem desta população, longe do rio.
Também não há uma rede de transportes públicos eficiente e eficaz que faça a ligação entre os
RUCs, o centro da cidade e as margens do Rio Xingu. Assim, longe de serviços e de
oportunidades de emprego, há um maior incentivo aos processos informais de criação de
comércios e equipamentos dentro dos reassentamentos, os quais, além de suprirem uma
demanda local de produtos e serviços de necessidade cotidiana, servem como uma alternativa
de renda, mesmo que ínfima. Ainda, a própria estrutura das moradias é padronizada,
homogeneizadora, e não possibilita modificações e ampliação, propiciando a criação de
“puxadinhos” (cômodos anexos no lote construídos de forma improvisada) e estruturas
informais.
FIGURA 23 - Imóveis do reassentamento urbano coletivo (RUC)
Fonte: Autoria de Júlia de Francesco, 2016
75
FIGURA 24 - Imóveis do reassentamento urbano coletivo (RUC)
Fonte: Autoria de Júlia de Francesco, 2016
FIGURA 25 - Imóveis do reassentamento urbano coletivo (RUC)
Fonte: Autoria de Júlia de Francesco, 2016
Ao se tratar da população indígena, o RIMA aborda os impactos nas Terras Indígenas
relacionados ao Trecho de Vazão Reduzida do rio, de um aumento de tráfego próximo ao
local dessas comunidades e do aumento de pressão sobre as TIs. O relatório, apesar de listar e
descrever modos de vida e características particulares de cada comunidade, que também estão
76
ligadas intrinsecamente com o rio como modo de subsistência ou modo de vida, apresenta
algumas propostas que afirmam servirem de proteção e fortalecimento de suas relações
culturais singulares. Isso se daria por intermédio de ações previstas no Plano de
Sustentabilidade Econômica da População Indígena, que em suma, alicerceado em um
discurso de melhoria da condição de vida indígena, visa à capacitação de mão de obra
indígena, além de programas que abordam temas como segurança alimentar, saneamento
básico, educação que possibilite trocas culturais com demais povos indígenas e melhoria das
habitações. Inclui também um programa de segurança territorial, para, assim, “tornar as terras
indígenas atraentes” para que se permaneçam preservadas e possuam articulações com demais
programas do governo federal, o que resulta na melhoria na própria organização interna de
cada comunidade indígena.
O Dossiê Belo Monte traz a informação de que estas medidas de mitigação e
compensação adotadas para os povos indígenas – reunidas no Plano Básico Ambiental do
Componente Indígena (PBA-CI) de responsabilidade do empreendedor e do poder público,
tendo duração de 35 anos – ainda não foram implementadas, se deram de maneira
desorganizada ou ocorreram por meio de repasse financeiro. Este último foi aplicado de forma
arbitrária para aquisição de bens de consumo e não aplicado em medidas de melhoria
estrutural em longo prazo, gerando uma desarticulação das organizações e resistências
indígenas.
Esse caráter do discurso do EIA em levar melhoria às populações indígenas se
assemelha a uma característica do desenvolvimento abordado por Dominique Perrot, onde o
valor simbólico do indígena em relação ao seu território não é considerado pelos atores
desenvolvimentistas ao interpretarem essas populações como não desenvolvidas. Logo,
justificam as razões de intervenções, investindo em pressupostas necessidades externas as das
suas próprias estruturas sociais. Interpretam a vulnerabilidade dessas sociedades e apontam
como solução a implementação de medidas e metodologias estabelecidas externamente e não
por uma demanda e modo de fazer interno, que na prática cerceiam uma maior autonomia
indígena. Portanto, através destes sincretismos, sutis ou profundos, que se estabelecem nesses
projetos de assistência, a imposição de novas formas de sobrevivência ameaça a dissolução da
identidade tradicional por intermédio do avanço da modernidade que corre a um ritmo
acelerado, descompassado das condições dos povos autóctones.
77
“Quando a relação de desenvolvimento visa os povos indígenas, ela se choca com
alguns paradoxos. O primeiro considera que não se pode desenvolver o que já está
desenvolvido. Sem querer negar a grande diversidade de situações e histórias
particulares, podemos adiantar que os povos autóctones se distinguem dos outros
segmentos da sociedade nacional pelo fato de que não são “desenvolvidos” no sentido
comum do termo. Na verdade, as sociedades tradicionais não aderem à noção de lucro
individual infinito. Tais sociedades praticam uma economia da reciprocidade, muitas
vezes mais importante que aquela do comércio de mercado; elas não têm acesso ao
avanço científico do conhecimento, isto é, à reflexividade sistemática e ao
deslocamento cognitivo em seu axioma e produzem uma racionalidade holística do
social, antes que uma racionalidade puramente econômica, para evocar apenas alguns
traços fundamentais que as caracterizam. Ser desenvolvido é ter aceitado de maneira
irreversível a lógica essencialmente transitiva do desenvolvimento. Em compensação,
rejeitar o desenvolvimento é recusar uma relação assimétrica que visa converter as
pessoas em elementos atomizados e enfraquecidos de um vasto movimento
controlador e impessoal. Recusar o desenvolvimento é assumir seu próprio destino e
não estagná-lo ou retardá-lo, como considera a visão mítica de uma história linear
própria do Ocidente.” (PERROT, 2008, p.227)
Essa situação conflituosa entre a UHE Belo Monte e os povos indígenas remete à origem do
projeto, previsto desde o período da ditatura militar, incluso no II Plano Nacional de
Desenvolvimento (BRASIL, 1974). Foi contestado justamente pelos danos ambientais que seu
impacto afetaria sobretudo o próprio rio Xingu, defendido veementemente pelas lideranças
indígenas, principalmente pelos Kayapós e Raonis. Em 1989, no primeiro Encontro de Povos
da Floresta em Altamira, onde um representante do governo foi escalado para defender a
construção da Usina, que na época se chamava Kararaô (grito de guerra dos Kayapós) houve
momentos de tensão entre os atores opostos, onde a índia Tuíra encostou um “facão” no
pescoço do representante da Usina em atitude de reprovação e protesto contra a construção da
mesma.
Mesmo com o recuo que acarretou em um engavetamento do projeto, na modificação
de seu nome em respeito às manifestações indígenas e na alteração do próprio projeto de
implantação (onde a usina e seu reservatório sofreram diminuição em seu tamanho), a UHE
Belo Monte permaneceu dentro dos interesses do planejamento público de desenvolvimento,
78
independente do descontentamento de setores da sociedade, principalmente da população
indígena, em relação aos impactos identificados. Leonel, em seu livro, tece críticas acerca da
ética que envolve o processo do planejamento, onde os Estudos de Impacto Ambiental (EIA),
que, em geral, servem somente para fins burocráticos de licenciamento da obra, tendem a
ignorar as interferências que podem acarretar em um redimensionamento das obras em curso
por demandas socioambientais.
“Há no setor a tendência a considerar qualquer estudo como irreversível, e quanto
mais longo e custoso, mais difícil o recuo: uma prática de fato consumada, sustentado
por fortes interesses. Argumenta-se que um estudo prévio custa em média US$ 16
milhões, ou seja, num país pobre, estudou-se a obra, há que executá-la. Com os
projetos semi-aprovados na mão, as construtoras ficam de tocaia nos cofres públicos
para viabilizá-los, quando não os antecipam, comprometendo previamente o
orçamento governamental.” (LEONEL, 1998, p.193)
Aborda também que a implementação de hidrelétricas possui um fator determinante na
escolha do local de sua implantação. São preferidas regiões interioranas, pouco
desenvolvidas, como no caso de Altamira e municípios lindeiros, onde se pode manter um
ritmo de construção acelerado a baixo custo. Além da facilitação de impasses financeiros, que
podem se orientar a privatização ou ainda a manipulações ilícitas do orçamento federal.
Ademais, são obras “promotoras de cidades”, o que atrai uma população externa, que pode se
dar pelo aumento de oferta de trabalho, como no caso da UHE Belo Monte em Altamira.
Neste caso, a oferta chega a ser significativamente maior do que a da área diretamente
atingida, produzindo também mudanças nas áreas não submetidas ao impacto direto do
alagamento: os chamados impactos indiretos, que ainda carecem de estudos mais
aprofundados (LEONEL, 1998). O projeto das vias de borda e parque ao longo do Rio Xingu,
pós alagamento da cota 100m, nunca foram conhecidos pela população atingida ou
interessada.
A fim de minimizar os impactos decorrentes da migração de trabalhadores e beneficiar
a população da região, segundo o RIMA, haveria um treinamento para formação de
trabalhadores especializados para maior contratação local. Ainda assim, é necessário um
grande contingente de trabalhadores de outras regiões, principalmente durante o terceiro ano
da obra (período de maior necessidade de mão-de-obra), como pode ser visto também no
79
Dossiê Belo Monte. Deste modo, o repentino crescimento populacional – composto pelos
trabalhadores migrantes e suas famílias – demandam maior infraestrutura, como as previstas
pelo EIA-RIMA: postos de saúde, escolas, áreas para prática de esporte, rede de
abastecimento e tratamento de água, esgoto e lixo, além da construção de alojamentos e
residências.
Estas, entretanto, não foram construídas ou foram construídas parcialmente, como
pode ser visto no documento do ISA. As redes de tratamento de esgoto e água, por exemplo,
estão construídas, mas não foram devidamente ligadas às residências. Além disso, o Dossiê
também apresenta impactos sociais causados pelo inchaço populacional, ausentes nos Estudos
de Impacto Ambiental. Dentre eles, são destacados os casos de violência contra mulheres e
adolescentes, homicídios, acidentes de trânsito, furtos e roubos, prostituição e drogadição, que
aumentaram significativamente após o início da obra da UHE Belo Monte.
O Dossiê, ainda, problematiza o futuro uso destas novas infraestruturas e residências
ao analisar o processo de deslocamento dos trabalhadores da obra, que começam a sair da
região após o período de maior necessidade de mão-de-obra (terceiro ano). Este processo de
esvaziamento e subutilização das infraestruturas também ocorre nos RUCs, onde houve a
construção e criação de serviços e comércios (como visto anteriormente) que perdem grande
parte de seus clientes devido ao retorno das famílias para seus locais de origem ou novos
locais de trabalho. Deste modo, os povos autóctones, além de sofrerem um processo de
desterritorialização como apreendido no artigo de Haesbaert (2007), ainda sofrem danos
diretos ao tentarem recriar seu modo de vida nas novas condições que lhes foram conferidos.
Por ser uma obra pertencente ao PAC (Plano de Aceleração de Crescimento), visa
acelerar o desenvolvimento nacional a qualquer custo. Ou seja, assim como demonstra o texto
de Dominique Perrot, os povos autóctones, mais vulneráveis, são expropriados e reduzidos
em nome desta prática desenvolvimentista. O espaço é visto como necessário somente para
este fim. As dinâmicas já existentes no território não cabem na lógica citada, que cria outras a
partir da implantação da Usina de Belo Monte, exemplificando, assim, o conceito estudado de
multiterritorialidade. Dessa forma, a mesma porção do espaço pode ser utilizada por diversas
camadas das comunidades de diversas maneiras. O mesmo espaço abrange processos de
territorialidade diferentes, contrastantes: o rio como fonte de energia em uma escala nacional,
como forma de produto, ao mesmo tempo em que se busca atender às demandas locais das
populações que vivem à beira.
80
“No que diz respeito aos projetos de desenvolvimento que supostamente beneficiariam
as minorias, deveríamos, em geral, partir da hipótese segundo a qual os projetos
correm o risco de serem implantados em detrimento das populações e inverter o fardo
da prova: estabelecer primeiro se o projeto tem condições de cumprir uma função
protetora indispensável e avaliar se o desenvolvimento desejado pela minoria será ou
não impedido por essa intervenção exterior.” (PERROT, 2008, p.224)
Além disso, os impactos decorrentes da obra não abrangem somente os territórios na beira do
rio, dentro da cota 100m, mas também impactam os territórios do entorno ao interferir e
recriar processos como no caso dos Reassentamento Urbanos Coletivos, por exemplo. Neste
caso, as populações beiradeiras sofrem um processo de desterritorialização e posteriormente
de reterritorialização, ao serem reassentados nos RUCs. Já o território onde foram construídos
os reassentamentos sofre igualmente um processo de desterritorialização, ao ser modificado, e
também de reterritorialização, ao receber um novo uso e novos processos. O mesmo acontece
com o território de onde a população beiradeira sai: além de perder a função e a dinâmica que
acontecia antes, criam-se novas, a água invade.
FIGURA 26 – Multiterritorialidade no processo de reassentamento dos beiradeiros
beiradeiros
desterritorialização
RUCs
reterritorialização
descaracterização do território
reterritorialização
81
Desta maneira, configura-se uma justaposição de territórios, hierarquicamente
articulados, uma multivariada quantidade de pertencimentos e interpretações do território. Há
um paradoxo entre o espaço usado – conceito de Milton Santos, onde o Estado considera o
valor de uso, portanto econômico, do território de seu domínio, exemplificando a UHE Belo
Monte, onde o rio é visto como potencial hidráulico de um empreendimento que visa o capital
– com o espaço banal, território vivido, local onde se desenvolve o cotidiano destes povos
autóctones, tendo o rio como característica intrínsecamente cultural e de subsistência.
Portanto, perspectivas que se chocam e entram em conflito. Assim, a partir da perspectiva da
multiterritorialidade (HAESBAERT, 2007), uma interpretação que possibilita a compreensão
do encadeamento de processos de maneira crítica, pode-se assimilar com devida profundidade
as múltiplas leituras dos diversos agentes presentes no mesmo território, que configuram
territorialidades distintas, que integram múltiplas especificidades, sejam na esfera econômica,
cultural e política.
6 ANÁLISE DA CARTOGRAFIA OFICIAL – EIA
A partir das os estudos realizados sobre os discursos contidos nas fontes oficiais e não oficiais
sobre o AHE Belo Monte, pôde-se compreender o contraste existente entre ambos. O EIA-
RIMA, realizado pela Leme Engenharia, uma fonte oficial, portanto, apresenta um discurso
neutro, asséptico, como visto anteriormente. Desta forma, apesar de apresentar estudos e
expor características sobre as regiões impactadas pela construção da obra e sobre as
populações afetadas, ainda omite ou reduz a real esfera de impactos a que estão submetidas
estas regiões e populações.
Por meio dos conceitos já estudados na presente pesquisa e com base no entendimento
acerca dos discursos conflitantes, esta etapa da pesquisa busca analisar alguns mapas, imagens
e tabelas presentes no Estudo de Impacto Ambiental. Desta forma, pretende-se elaborar um
pensamento crítico sobre essas figuras, ao desconstruir o discurso analisado anteriormente e
revelar alguns aspectos que o mesmo omite ou esconde.
82
6.1 Desterritorializações e Reterritorializações
Através dos conceitos elaborados por Rogério Haesbaert em seu artigo “Território e
multiterritoralidade: um debate”, é possível elaborar assimilações acerca dos fatores inerentes
que relacionam as ações sociais com o espaço ocupado. Busca-se, então, entender a
denominada noção de múltiplas territorialidades, que manifestam-se, segundo o autor, em
uma dupla implicação. Uma que abarca um caráter simbólico, ligado ao espaço vivido, logo,
apropriado, conectado intrinsecamente a identificação cultural estabelecida pelas populações
com certa região, e outra ligada a um caráter de dominação, portanto, regida por relações de
poder político e econômico, associadas às lógicas do capital e da propriedade, identificáveis,
por exemplo, na supremacia da autoridade estatal sobre o espaço de sua jurisdição, que
legitimam obras de infraestrutura como as da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, objeto de
análise.
Nesse sentido, pretende-se, identificar nos estudos levantados – sobretudo nos
produtos cartográficos – elaborados pela concessionária Norte Energia, responsável pela
implantação da obra da UHE Belo Monte, as possíveis correspondências teóricas com os
processos gerados pelo impacto da usina. Onde, em suma, observa-se o encadeamento de
desterritoralizações, ou seja, a perda do território vivido pelo deslocamento forçado
decorrente de forças externas hierarquicamente superiores no âmbito político e/ou econômico.
No caso específico, isto ocorre com as populações levantadas que habitam na Área
Diretamente Afetada pela Usina, condicionadas ao desalojamento compulsório, submetendo-
as a reterritorializações, subsequentes à desterritorialização, e compelindo em novas relações
com um novo território, no caso, região de sua realocação, impactando diretamente nos seus
modos de vida e vínculos anteriores. Deste modo, aspira-se revelar algumas perdas de sujeitos
sociais decorrentes da implantação desta obra de expressivo impacto.
6.1.1 ADA Rural
A Área Diretamente Afetada (ADA) abrange as áreas definidas para construção das
obras principais da UHE Belo Monte, da infraestrutura de apoio e pelos locais de inundação,
como, por exemplo, as casas de força, a barragem, os vertedouros, os reservatórios do Xingu e
do Canal e o Trecho de Vazão Reduzida. Na pesquisa apresentada, as representações
83
cartográficas, que buscam mostrar os imóveis presentes nesta área, se valeram da constatação
de 261 imóveis rurais (lotes basicamente constituídos por projetos de assentamento sob
jurisdição do INCRA).
6.1.1.1 Reservatório do Xingu
Os imóveis investigados na margem direita do Rio Xingu correspondem aos seguintes
números: 261 imóveis rurais para a caracterização fundiária, 246 estabelecimentos produtivos
para a caracterização da estrutura produtiva e 155 grupos domésticos, abrangendo um total de
487 pessoas com vistas a obter informações sobre condições de vida da população residente.
Já na margem esquerda do rio, o levantamento apontou, ao se tratar dos imóveis, que 46,20%
do total de imóveis rurais localizados no setor são utilizados para moradia e produção e
38,01% apenas para a produção, num total de 144 imóveis rurais destinados às duas
categorias; entre os demais 2,34% são destinados à produção e lazer e 0,58% ao comércio e
moradia; 1,75% apenas ao lazer e 0,58% a outros usos. A pesquisa também demonstrou que
apenas 7,60% dos proprietários não usam o imóvel rural.
Seguem os produtos cartográficos produzidos pelo EIA que sintetizam tais dados e os
objetivam espacialmente, respectivamente descritos acima, pela identificação e indicação do
lote e a caracterização da situação do imóvel nele encontrado.
84
FIGURA 27 – Situação Jurídica dos Imóveis Rurais no
Setor Margem Direita do Reservatório do Xingu
Fonte: EIA (2008)
FIGURA 28 – Situação Jurídica dos Imóveis Rurais no
Setor Margem Esquerda do Reservatório do Xingu
Fonte: EIA (2008)
85
Legenda ampliada – Figura 21
Legenda ampliada – Figura 22
6.1.1.2 Reservatório dos Canais
O levantamento sobre os imóveis presentes na área do Reservatório dos Canais
também foi efetuado da mesma maneira dos setores do Reservatório do Xingu. A área total
correspondente ao Reservatório dos Canais compreende-se em um total de 495 imóveis rurais
(lotes basicamente constituídos por projetos de assentamento sob jurisdição do INCRA), que
através da pesquisa socioeconômica e censitária identificou a presença de 495 imóveis rurais
de caracterização fundiária; onde 547 são estabelecimentos produtivos para a caracterização
da estrutura produtiva; 354 identificados como grupos domésticos; e até onde foi possível
averiguar há cerca de 323 proprietários e 370 produtores rurais nesta área. A título de
porcentagem, que se registrou cartograficamente nos mapas anexados abaixo, reconheceu-se
que 62,42% do total obtém posse de escritura e o título definitivo do INCRA, 38,38% possui
a escritura definitiva de sua propriedade, 11,52% obtém documento de compra e venda e
12,32% não possui nenhuma documentação.
Estes dados, como anteriormente, foram representados de forma cartográfica e
conforme a lógica representativa apresentada nas outras regiões: identificam o loteamento e
classificam a situação do imóvel presente.
86
FIGURA 29 – Situação Jurídica dos Imóveis Rurais na
Faixa de Domínio das Linhas de Transmissões
Fonte: EIA (2008)
FIGURA 30 – Situação Jurídica dos Imóveis Rurais no
Setor Reservatório dos Canais
Fonte: EIA (2008)
87
6.1.1.3 Reflexões
Apesar de saber que durante o programa de reassentamento das famílias serão
realizadas avaliações mais detalhadas das propriedades apresentadas, nota-se, em todos os
casos acima apresentados, uma representação neutra e, de certa forma, de caráter
homogeneizador das diversas condições dos imóveis levantados. Isto ocorre mesmo que haja
a descrição dos imóveis e a indicação deles no espaço de acordo com suas situações
singulares. A cartografia e o texto que os suportam em momento algum se referem às famílias
moradoras destes lotes em si e não há identificação das áreas construídas dentro dos lotes ou
atividades produtivas realizadas, mesmo que em sua maioria. Deste modo, resulta em uma
representação pragmática, neutra, pouco comprometida em configurar e revelar, de forma
explícita, a expropriação dessas áreas pela concessionária durante a construção da UHE Belo
Monte.
A desterritorialização se faz presente nestas cartografias pela ausência nas
representações das mudanças de uso do território, apartado pelos processos sociais e pela
disputa que se dá nestes territórios entre a população local e os interesses do empreendimento.
As cartografias em questão negligenciam o real impacto sofrido pelas edificações na ADA,
neutralizando as diferenças e a ação de remoção involuntária, reduzindo o problema à
representação somente dos lotes afetados e suas condições jurídicas, apoiadas na análise
burocrática feita pelo EIA. Oculta, portanto, as fotos e cadastros, o patrimônio reprodutivo e
não reprodutivo e a população que reside e se utiliza do território – elementos que, para um
entendimento assertivo e mais lídimo, deveriam ser entendidos e representados juntos no
espaço.
6.1.2 ADA Urbana
6.1.2.1 Igarapé Altamira
A região do Igarapé Altamira é a levantada, pelo EIA, como a de maior densidade
populacional dentre as regiões dos Igarapés apresentados. É descrita como localizada em meio
à região central, contendo a urbanização mais antiga da cidade de Altamira. Compreende as
áreas dos bairros Alberto Soares, Aparecida, Brasília, Centro, Jardim Altamira, Sudam I e
88
Sudam II, totalizando uma área de 55,30 ha. De acordo com a pesquisa socioeconômica
censitária apresentada no EIA-RIMA, foram constatados 2.002 imóveis, ou seja, cerca de
42,6% do total dos imóveis da ADA Urbana. Dentre estes, 98 foram descritos como
desocupados, representando cerca de 4,9%, e 1.904 ocupados, portanto 95,1%.
Já o levantamento feito acerca das edificações locais constatou 2.831 unidades, sendo
96,70% destas ocupadas, somando 2.737 edificações, e as edificações desocupadas
contabilizaram 94 edificações, figurando 3,32%. Assim, o documento conclui que a
quantificação de edificações e de imóveis apresenta índices de adensamento construtivo
maiores do que as outras zonas da ADA Urbana, formando uma média de 1,4 edificações por
imóvel.
Ao discorrer sobre os tipos de ocupações dos imóveis, destaca-se o uso exclusivo
residencial, levantado como 73,51% do total, posteriormente o uso misto foi contabilizado em
11,38% e o comercial em 3,61%. Foi observado somente 12 imóveis institucionais,
correspondendo a uma escola e 11 imóveis utilizados como igrejas.
Sobre a caracterização da população, observou-se uma maior quantidade de homens
residentes, predominantemente jovens, na faixa entre os zero e quatorze anos, quantificados
em 34,34% do total da população. Foi relatado também que 8,87% da população se
encontrava na faixa etária superior aos 56 anos.
O levantamento acerca do tempo de residência no Igarapé Altamira demonstrou que
80% da população era oriunda da própria cidade de Altamira. Dentre a população residente,
20,7% eram residentes por um período entre dez e vinte anos, 18,4% residiam a menos de um
ano. Sobre os migrantes de outros estados, representavam 7% da população, dos quais 1,8%
proviam do estado do Maranhão.
O apoio cartográfico referente a este levantamento foi sistematizado em uma imagem
de satélite da região, denominada como croqui de localização, destacando a área diretamente
afetada que compreende o setor Igarapé Altamira, onde através de uma mancha que visa
demonstrar a dimensão e abrangência da localidade, são identificados também os limites dos
bairros, contendo as informações das vias urbanas e do curso d’água.
89
FIGURA 31 – ADA Urbana - Igarapé Altamira
Fonte: EIA (2008)
6.1.2.2 Igarapé Ambé
A área referente ao Igarapé Ambé foi apresentada pelo EIA como abrangendo 2.29,44
hectares, na qual 43,6% dos imóveis levantados são classificados como ocupados. Dentre os
ocupados, foi quantificado 2.211 destes imóveis como edificações. Entre estes, 2.694 imóveis
configuram-se como próprios dos moradores e os demais na situação de alugados ou cedidos.
Ao total o Igarapé Ambé configura-se como 37,23% da área total dos imóveis levantados na
ADA Urbana, onde a dimensão média dos lotes figura em 197 m².
Segundo as pesquisas do EIA, as edificações cadastradas estimaram o número de
2.503, dos quais 83% apresentam seu uso como residencial e 1,5% como contendo alguma
atividade econômica. Também cadastrou-se a existência de somente uma escola, particular, o
Centro de Ensino Pequeno Cidadão (CEPEC), de 426 edificações vazias e 1.901 edificações
em uso - não conseguindo a pesquisa identificar todos os grupos domésticos diretamente
afetados neste setor - além de 18 edificações destinadas a atividades religiosas.
90
Dentre estas edificações, 38% foram identificadas como palafitas e o restante
instaladas no solo. Foi constatado, em suma, queas construções em palafita estão localizadas
em áreas sujeitas a inundação periódica, compreendendo poucos lotes localizados nas áreas
mais altas, como no bairro Boa Esperança. A área média destas edificações estima-se em 28,4
m², analisada como a menor das áreas médias das edificações levantadas na ADA Urbana. O
documento traz a descrição da tipologia básica das edificações, contendo então ambientes
como sala, um ou dois quartos e um corredor que faz ligação com a cozinha.
Sobre as condições sanitárias, foram avaliadas como bastante precárias, 66% das
edificações possuem instalações de uso exclusivo, porém se encontram impróprias no quesito
do saneamento ambiental, porque se caracterizam como fossas rudimentares. Somente três
dessas edificações são atendidas pela rede geral de esgoto sanitário e nove contêm fossas
sépticas.
No que se trata do abastecimento de água, há 69,6% edificações com poços
particulares e 5,7% ligadas à rede geral gerenciada pela Prefeitura. Foi relatado no documento
que não foi possível coletar informações acerca da qualidade da água desses poços, mas é
salientada a possível contaminação ou poluição referente às condições gerais das áreas de
contribuição e a ausência de critério para suas implantações. Constatou-se pelo estudo que em
muitos lotes o despejo do esgoto se dava no próprio Igarapé Ambé, interferindo, portanto, na
qualidade da água, impossibilitando seu uso doméstico, e consequentemente se tornando fator
de contaminação e proliferação de doenças.
Ao tratar da caracterização da população, levantou-se que predomina o número de
jovens com menos de 20 anos, de pessoas nativas de Altamira, destacando também que uma
parcela significativa é oriunda do Maranhão, onde a maioria dos habitantes se encontra
solteira e residente da região entre dez e vinte anos.
Sobre as atividades econômicas predominantes no Igarapé Ambé, contabilizando o
número de 226 edificações levantadas pelo estudo, destacando-se a existência de pequenos
comércios, seguido pelos setores de serviços e de indústrias.
Assim como o apoio cartográfico do Igarapé Altamira, o pertencente ao Igarapé Ambé
também é um croqui de localização, que por meio de uma sobreposição a uma imagem de
satélite por uma mancha que limita a área correspondente, busca ilustrar a localização deste
setor em Altamira, também identificando os limites dos bairros e informações das vias
urbanas e do curso d’água. Além deste, é a única análise contida na ADA Urbana que possui
outro elemento cartográfico, igualmente com uma imagem de satélite como base, que
91
identifica espacialmente em sua área, a localização das edificações destinadas a atividades
econômicas, com o intuito de demonstrar a distribuição das mesmas, possibilitando então, a
visualização espacial da disposição das atividades econômicas existentes, apresentando sua
diversidade em constatar pontos de comércio, serviços, indústria e suas variações, traçando os
limites referentes a área do setor de pesquisa Ambé e a que compreende ao reservatório,
exibindo suas justaposições.
FIGURA 32 – ADA Urbana - Igarapé Ambé
Fonte: EIA (2008)
92
FIGURA 33 – Distribuição das Edificações Destinadas a Atividades Econômicas
Igarapé Ambé
Fonte: EIA (2008)
6.1.2.3 Igarapé Panelas
A área referente ao Igarapé Panelas compreende 10,93 ha, sendo o menor setor urbano
classificado pelo EIA, com apenas 75 imóveis. Sua foz situa-se no limite da zona urbana de
Altamira e parte de sua zona rural, a noroeste. Esta região é caracterizada, pelo estudo em
questão, pelas grandes áreas vazias não parceladas, contendo algumas propriedades rurais, e
pelo difícil acesso, que ocorre de forma precária.
Entretanto, o EIA considerou, para a pesquisa da área urbana, uma pequena porção da
bacia do Igarapé Panelas, devido à maior ocupação do território e o acesso que ocorre pela
Avenida Tancredo Neves, além de sua importância para a população da região por abranger a
Praia do Page, na margem esquerda do Rio Xingu.
Nesta área, dentre os 75 imóveis citados (de tamanho médio de 166 m²), 64 são classificados
como contendo edificações, correspondente a 86,33%, e 11 como vazios, correspondente a
14,66%. 64 destes imóveis são apresentados pelo estudo como contendo algum tipo de uso,
sendo eles: 57 edificações de uso residencial (90,6%), 64 deles apresentam algum tipo de uso
(77,7%). Predomina o uso exclusivamente residencial em 90,6% dos casos (57 edificações);
em apenas 5 edificações (6,2%) foram detectadas alguma atividade econômica, sendo que em
duas delas o uso é misto (também residencial). Foram registradas 10 edificações vazias
(12,35%). Não foram registrados equipamentos sociais e comunitários na ADA no Igarapé
93
Panelas. Quanto à condição de ocupação das edificações, a grande maioria é do próprio
morador (72,83%), sendo restritos os imóveis alugados (8,7%) ou cedidos (6,52%) e
inexistentes a situação de imóvel ocupado.
FIGURA 34 – ADA Urbana - Igarapé Panelas
Fonte: EIA (2008)
6.1.2.4 Reflexões
A partir da apresentação do EIA acerca dos Igarapés contidos na área diretamente
afetada (ADA) da zona urbana, observa-se os mesmos problemas analisados nas
representações cartográficas contidas no ADA Rural, fazendo-se a possível leitura de que há,
inerentemente, a proposição de neutralidade e de homogeneização da multiplicidade espacial,
94
tanto em caráter material, relacionado aos imóveis levantados, quanto imaterial,
compreendendo as dinâmicas sociais e a pluralidade da população pertencente à área
averiguada.
Ainda que o estudo contenha os dados quantitativos inferidos por meio das pesquisas
censitárias, da variedade populacional em seus diferentes âmbitos e também dos diferentes
usos dos imóveis, estes dados não transparecem na cartografia elaborada, a não ser na
representação das atividades econômicas presentes no Igarapé Ambé, que mesmo de maneira
plana, traz um panorama de distribuição espacial da variedade dessas atividades,
possibilitando ao observador compreender, de certa maneira, a disposição associada às
dinâmicas deste compartimento, aspecto não utilizado na representação de outras temáticas,
nem dos outros igarapés.
Observa-se que apesar de se tratar de áreas urbanas com dinâmicas físico-funcionais
preexistentes, estas são emudecidas. O discurso apresentado no estudo e nas representações
cartográficas elaboradas, mesmo se tratando de croquis, esconde sua importância, valor ou
realidade, bem como os impactos gerados com a supressão de ruas, escolas, postos de saúde,
comércios e demais moradias entre um Igarapé e outro, como se não houvesse nenhuma
relação entre eles.
Portanto, a ausência emerge nas representações superficiais que não contém em seu
conteúdo a indicação dos resultados obtidos pelas pesquisas a campo, não contemplando a
desterritorialização a que foi submetida a cidade e a população e que requer uma indicação
mais profunda e detalhada cartograficamente, para assim haver confluência entre os dados
levantados e como estes se dão espacialmente. Afinal, as relações e dinâmicas sociais são
imanentes ao espaço, sempre e só podem existir coexistindo com este espaço.
O conteúdo apresentado neste momento ainda não aponta as soluções para o
reassentamento das famílias. Nota-se de extrema necessidade que, conjuntamente à exposição
do produto da pesquisa, após descrever suas condições levantadas, fosse feita alguma
consideração sobre o reassentamento dos desterritoralizados e sobre as novas formulações
urbanas frente à desestruturação dessas áreas. O que se observa, ao contrário, é a ausência de
compromisso e a carência de quaisquer definições mais claras e capazes de demonstrar as
medidas de compensação para os impactos sofridos.
95
6.2 Modos de Vida
A cientista política Marie-Dominique Perrot em seu artigo “Quem impede o
desenvolvimento “circular”?”, explicita a relação intrínseca entre o espaço e os traços
culturais da população identificada como autóctone a certa região, portanto há especificidades
inerentes que configuram o espaço, além de materiais, como imateriais e simbólicas,
englobando tanto relações de subsistência desses povos, como possibilitando a preservação e
as expressões culturais dos mesmos. Deste modo, pode-se compreender que a população
beiradeira será afetada em seu modo de vida, impactando suas dinâmicas relacionais
geográficas, em suma, a maneira com que vivenciam o espaço e como se estabelecem no
território.
Tanto no estudo referente à ADA rural quanto no da ADA urbana, são ressaltadas as
atividades de lazer da população, sendo estas fatores de expressão das atividades tradicionais
dos habitantes locais, que se desdobram em práticas culturais e de características locais. Nas
tabelas utilizadas como síntese dos levantamentos contidos no ADA acerca das atividades de
lazer, da ADA rural e da ADA urbana, respectivamente apresentadas a seguir, demonstram-se
quantitativamente aspectos típicos da população tradicional ao evidenciar a penetração social
das religiões de matriz cristã, indicadas pela quantidade de respostas que relacionam sua
atividade de lazer a ir à igreja, assim como, o expressivo número que frisa a importância do
rio Xingu na caracterização do modo de vida singular da população beiradeira, por meio das
respostas associadas a tomar banho de rio e à pesca. É possível, então, observar a relevância
do rio, mesmo obtendo posições mais baixas na zona urbana, nos dois setores contemplados
pela ADA.
FIGURA 35 – ADA Rural - Atividades de Lazer - Setor Santo Antônio
Fonte: EIA (2008)
96
FIGURA 36 – ADA Rural - Atividades de Lazer - Setor Santo
Fonte: EIA (2008)
FIGURA 37 – ADA Urbana - Tipos de Atividades de Lazer dos Grupos Domésticos
Fonte: EIA (2008)
97
Independentemente do conhecimento do Dossiê Belo Monte e das ocorrências pós-
obras da UHE Belo Monte, este levantamento, por si só, já coloca em dúvida a manutenção do
modo de vida da população diretamente afetada UHE de Belo Monte. Seguramente o
processo de desterritorialização dessa população com a expropriação da região onde habita e a
demolição das estruturas urbanas de referência, afetou a possibilidade de manutenção destas
mesmas práticas sociais, tanto pela população que foi realocada para longe das imediações do
rio Xingu ou da igreja que se habituou a frequentar, quanto pela população limítrofe, que
também tem sua dinâmica social e espacial interferida devido à perda destes territórios.
Somente no estudo referente à ADA rural foi utilizada a linguagem cartográfica para
explicitar a localização dos estabelecimentos de comércio e serviços na região diretamente
afetada. Estas representações, que compreendem a margem esquerda e direita do rio Xingu, as
ilhas e o local da implantação do reservatório dos canais da Usina, trazem em seu conteúdo a
locação dos postos de saúde, igrejas, escolas, comércios e cemitérios contidos nesta zona,
possibilitando visualizar como estes estavam dispostos espacialmente, porém mantém ausente
a percepção da abrangência destes estabelecimentos, inclusive exterior à Área Diretamente
Afetada, desta maneira, não sanando as dúvidas acerca da sua desterritorialização, aspecto
principal dos impactos do projeto.
98
FIGURA 38 – Equipamentos e Comércio no Setor Margem Esquerda
do Reservatório do Xingu
Fonte: EIA (2008)
99
FIGURA 39 – Equipamentos e Comércio no Setor Margem Direita
do Reservatório do Xingu
Fonte: EIA (2008)
FIGURA 40 – Equipamentos e Comércio no Setor Ilhas
do Reservatório do Xingu
Fonte: EIA (2008)
100
FIGURA 41 – Equipamentos e Comércio no Setor Reservatório dos Canais
Fonte: EIA (2008)
6.2.1 Reflexões
Assim como as demais peças cartográficas contidas no estudo das áreas diretamente
afetadas, os elementos representados são apresentados de uma maneira inexpressiva em
relação aos deslocamentos destes equipamentos, não ilustrando, ou sequer propondo, as
possibilidades acerca de novas implantações destes estabelecimentos ou das medidas de
compensação e mitigação praticáveis frente a este processo de desterritorialização, portanto,
indicando eventuais reterritorializações. Além disto, ao observar o número de entrevistados
acerca das atividades de lazer, nota-se um número bastante pequeno de moradores
consultados, não compreendendo, assim, a totalidade quantitativa da população total,
possibilitando o questionamento sobre as proporções obtidas.
101
Desta maneira, pode-se analisar que o empreendimento da UHE Belo Monte acarretará
mudanças significativas no modo de vida da região, já que compreende áreas de expressiva
dimensão territorial e de populações ligadas profundamente com o espaço que lhes é
particular, sobretudo, pela conexão considerável com o rio Xingu, ou seja um processo
compulsório de desterritorialização. Tais fatores carecem de transparência nestes
documentos, suscitando a interpretação de que as forças que regem projetos
desenvolvimentistas encontram justificativa e legitimação para suas intervenções na
pauperização de populações autóctones. Desta forma, isentam seus impactos adjetivados
‘como inevitáveis’, conferindo-lhes pressupostas necessidades atribuídas ao projeto, mesmo
que estas sejam distintas das identificadas e urgentes para as populações afetadas.
6.3 Usos do Rio Xingu
A partir da fundamentação teórica contida no livro “A morte social dos rios” do
cientista político e social Mauro Leonel, exibe-se a intrínseca relação com o rio presente nas
populações beiradeiras, assim, contendo em suas práticas culturais e cotidianas a presença do
rio como fator de destaque que permeia as relações sociais de tais populações. Portanto, deve-
se sublinhar, ao analisar populações beiradeiras, como as enquadradas nas áreas diretamente
afetadas pela usina hidrelétrica de Belo Monte, os processos sociais em que o rio Xingu
demonstra-se como essencial e determinante.
A partir dos levantamentos sobre os usos do rio Xingu, tanto no âmbito da ADA rural,
quanto da ADA urbana, o rio explicitado nas atividades de lazer como pesca e local de banho
é atribuído a um dos principais elementos deste contexto, de evidente importância para a
compreensão do modo de vida tradicional.
Em suma, a pesca é constatada pelos levantamentos na ADA, em três formas
substanciais, como constatado na qualidade de subsistência, praticada de maneira tradicional,
configurando-se como uma atividade para renda complementar e subsistência familiar, sendo
identificada mais notadamente no setor rural. O segundo desdobramento da pesca identificado
é como atividade exclusivamente comercial, dada de formas artesanais, voltada para a venda
nos mercados. E por fim, há a prática da pesca voltada para o âmbito esportivo, encarada
como atividade de lazer, tanto praticada pelos moradores locais, como também uma atividade
turística.
102
O modo representativo, utilizado para explicitar tais usos do rio nas duas zonas da
ADA, foi sistematizado por meio de tabelas. As pesquisas foram realizadas junto à população
local e resultaram em dados estatísticos que conformaram uma quantificação média acerca
dos usos referentes ao rio Xingu. Tais tabelas são apresentadas a seguir e referem-se,
respectivamente, à ADA rural e à ADA urbana.
FIGURA 42 – Finalidade da Atividade da Pesca – Setor Santo Antônio
Fonte: EIA (2008)
FIGURA 43 – Usos do Rio Xingu – Setor Santo Antônio
Fonte: EIA (2008)
103
FIGURA 44 – Alternativas de Uso dos Igarapés e do Rio Xingu
Mais Utilizadas pelos Moradores
Fonte: EIA (2008)
6.3.1 Reflexões
Equivalente à análise apresentada acerca do número de entrevistados no âmbito do
modo de vida local, no quesito dos usos do rio, a quantificação de moradores consultados
também se apresenta como pequeno, suscitando indagações se as proporções médias
auferidas, de fato, englobam a totalidade da população impactada.
É importante salientar o fato de entre os principais usos levantados, estar contido a
utilização do rio Xingu como transporte, aspecto negligenciado no conteúdo dos estudos da
ADA, como também nas medidas de mitigação e compensação firmadas pela empreendedora.
Este impacto é um ponto excepcional, já que o funcionamento do AHE Belo Monte altera o
curso e o volume do rio e afeta diretamente aqueles que o utilizam, além de ao deslocar as
populações impactadas, poder inviabilizar que essas utilizem o rio como transporte, já que
podem ser realocadas para longe de seu leito.
104
Por fim, outro ponto a ser levantado é a respeito de não haver nenhuma análise
cartográfica que referencie e represente as atividades que o rio exerce socialmente. Assim,
não é possível uma perspectiva espacial do local onde estas ocorrem, tolhendo uma
compreensão relacional de como as mudanças físicas do rio afetam diretamente essas
atividades, destacadas pelo próprio levantamento como significantes para a população local.
Portanto, ausenta-se da alçada do empreendedor uma análise especializada dos conflitos
diretamente vinculados ao fator de interesse principal da Usina: o recurso hídrico, que
também se configura como primordial para as dinâmicas sociais locais já existentes.
7 CARTOGRAFIA DA AUSÊNCIA
Com base nas análises anteriores, nota-se que as ausências das cartografias oficiais são
de suma importância para o entendimento dos processos desencadeados pela implantação da
Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Como pôde ser observado nas reflexões predecessoras, as
informações acerca dos impactos ocasionados pela implantação da Usina são demonstrados a
público de maneira desconectada, sem que se possa observar e compreender, em uma escala
adequada e relacional, os devidos impactos. Deste modo, ocultam-se elementos fundamentais
de modo intencional no discurso das fontes oficiais, demonstrados em suas cartografias.
Portanto, faz-se necessário revelar as ausências e articulá-las aos aspectos já expostos.
Substancialmente, o espaço se torna o elemento essencial para a assimilação dos
processos sociais, sendo ele próprio um produto social e também um elemento de interação
com a sociedade. Deste modo, partindo do princípio apreendido na presente pesquisa, do
espaço enquanto produto-produtor (GOUVÊA, 2010), torna-se mais clara a apreensão da rede
complexa de processos que se dão sob o mesmo. Com isto, considera-se indispensável a
representação dos fenômenos e processos em material cartográfico, pois, desta maneira, é
possível visualizar a dimensão e a correlação de aspectos que, a um primeiro momento,
podem parecer ou fazerem-se parecer estarem apartados.
Um ponto observável nos produtos cartográficos elaborados pela Leme Engenharia,
contidos no EIA-RIMA, é a divisão em recortes das representações
cartográficas em pequenas regiões, mesmo que estas retratem um mesmo tema. Sabe-se que
quanto menor a escala da representação cartográfica, mais aproximada e possivelmente
mais detalhada se torna o produto que se gera. Porém, no caso das cartografias referentes
105
no levantamento da ADA rural e da ADA urbana, não há uma cartografia de maior escala que
contemple toda a região afetada e, que consequentemente, apresente os locais presumidos
para realocação da população removida. Deste modo, proporcionam uma interpretação
fragmentada do processo de desterritorialização e reterritorialização acometido à população
local. Logo, não proporcionam uma definição precisa do deslocamento da população, muito
menos de suas perdas tanto de valor material, como imaterial, como as relações simbólicas e
afetivas com o lugar, as mudanças de modos de vida, etc.
Assim, em um primeiro momento, faz-se necessária uma cartografia que revele as
dimensões contidas neste processo de reassentamento em um único produto, desvelando as
relações entre a implantação destes reassentamentos com a cidade e a relação entre eles com a
localidade de origem da população desterritoralizada e consequentemente com o rio Xingu.
FIGURA 45 – Desterritorialização dos beiradeiros - Altamira
Fonte: Produção própria sobre base cartográfica do IBGE (Mapa urbano digital - Contagem
da população – folhas 01-01; 01-02; 02-01; 02-02. 2007)
106
A proposição cartográfica acima busca explorar e dar passos iniciais a um estudo de
representação cartográfica que estruture espacialmente os elementos possíveis de serem
cartografados em um único material, sem que este se torne poluído ou impossibilite a sua
apreensão. Visa, ainda, à representação da rede de impactos de forma objetiva, ao revelar
elementos relacionais e suas consequências. Deste modo, torna-se possível a realização de
constatações críticas, despindo-se da premissa e do discurso de neutralidade que a cartografia
oficial é imbuída.
No mapa acima, pretende-se demonstrar a distância espacial entre a localidade de
origem da população desterritoralizada e a região prevista para sua reterritorialização. Pela
identificação das vias estruturantes da região, confere-se a falta de conectividade dos
reassentamentos propostos com a cidade em si e, portanto, com a localidade de origem desta
população. Consequentemente, é visível, também, a distância destes com o rio Xingu, o
que reforça um ponto fundamental denunciado pelo Dossiê Belo Monte: a perda do modo de
vida ribeirinho, condição também levantada pelo EIA como característica intrínseca da
região e ausente na concepção da implantação dos reassentamentos coletivos.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, percebe-se que a cartografia da ausência se faz além de uma possível
produção cartográfica, como um modo de perspectivar a interpretação cartográfica,
compreendendo a importância de assimilar os contextos e processos que envolvem o mapa a
ser analisado. Compreender quais são as intencionalidades e finalidades presentes e ocultas na
cartografia e como tais elementos se articulam se demonstra como um ponto crucial para uma
análise mais profunda e crítica, um movimento dialético.
Com a presente pesquisa, foi possível observar de forma mais concreta a maneira
como a autoridade se infere ao mapa pelas instâncias oficiais que detêm suas produções. A
etapa de garimpagem das bases cartográficas oficiais para utilização como estudo frente às
elaboradas pela concessionária Norte Energia se mostraram árduas de encontrar, pois há
poucos produtos cartográficos disponíveis e utilizáveis para a análise que a presente pesquisa
se propôs a elaborar. Deste modo, fica evidente que informações cartográficas elaboradas por
órgãos estatais se encontram, atualmente, disponibilizados aos civis de maneira dificultosa,
principalmente ao se tratar de regiões não metropolitanas e com pouco destaque na conjuntura
107
nacional. No caso de Altamira, o objeto principal da pesquisa, mesmo sendo uma região
historicamente marcada por intervenções de infraestrutura que tiveram grande destaque (como
a implantação da rodovia Transamazônica e da UHE Belo Monte), é um município
abandonado por investimentos de ordem social voltados à população, em que as informações
cartográficas encontradas disponíveis se demonstraram insuficientes.
Em suma, os produtos que serviram de base para análise aqui desejada, se resumiram
às elaboradas pela Norte Energia, a qual intencionalidade do representável se pauta no
licenciamento da Usina. Portanto, de desígnio já explícito, distinto da problemática exposta
por órgãos de defesa ao meio ambiente e à parcela social vulnerável, que é o caso do ISA,
abordado anteriormente na análise do Dossiê Belo Monte, documento de denúncia às
inviabilidades inerentes a implantação da Usina.
Todavia, a percepção de que o essencial está na ótica da ausência e não
necessariamente de um produto que a represente, pois, a interpretação das representações
cartográficas disponíveis, independentemente de seu tema, contém em si a ambiguidade das
presenças e das omissões, sendo estas inevitáveis, “não sendo nem verdadeira nem falsas, mas
verdadeiras e falsas ao mesmo tempo, pois são respostas a necessidades concretas, ao mesmo
tempo que dissimulam objetivos reais” (GOUVÊA, 2010, p. 45). Portanto, mesmo não
havendo cartografias que se contrapõem, os imperativos de autoridade se explicitam no oculto
e cabe ao olhar crítico revelá-las e questioná-las frente à compreensão dos processos
contextuais e ao que se declara manifesto de maneira nítida.
Os processos aqui salientados de impacto à população beiradeira das áreas afetadas
pela UHE Belo Monte se dão para avante a implantação da Usina. Tanto no que se trata das
consequências que influenciarão o desenvolvimento local e o modo de vida da população (a
reassentada e também a que permaneceu em sua localidade), quanto por se tratar de uma
lógica intervencionista estatal de desenvolvimento, que tende, historicamente, a repetir os
mesmos processos de exploração territorial e desarticulação a comunidades tradicionais e
vulneráveis.
.
108
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de Altamira do Estado do Pará, [Contagem da população – Mapa Urbano Digital]. Folhas 01-
01; 01-02; 02-01; 02-02. 2007.
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Figura 40; 41; 42: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapa Brasil Grandes
Regiões, [Cartas e Mapas - Folhas Topográficas].
10 GLOSSÁRIO
Beiradeiro: População que usufrui e/ou habita à margem de um rio, no caso o rio Xingu,
afetada pela UHE Belo Monte.
Desenvolvimento: Política pública que visa o avanço crescimento econômico, social e
político de um país, região, município. (LEONEL,1998)
Desterritorialização: Perda do território apropriado e vivido; deslocamento forçado
decorrente de processos de forças externas hierarquicamente superiores no âmbito político
e/ou econômico.
Espaço: É a porção da superfície terrestre onde as atividades humanas acontecem; lugar onde
atua as sociedades servindo para seu desenvolvimento e exploração e extração de recursos
naturais.
Espaço capitalista: Espaço organizado sob o modo de produção capitalista. Podendo ser
caracterizado como “espaço homogêneo, fragmentado, hierarquizado”
Homogêneo por se tratar de um espaço urbanizado, de modo que em uma grande escala pode
ser observado como unidade; fragmentado porque está ligado ao caráter econômico, pois é
passível de ser geometrizado, logo vendido e consumido em lotes; e hierarquizado pela
separação funcional e de valor de uso que se atribui a determinado espaço, ligado a níveis de
poder econômico e político, observável na segregação entre centro e periferia.
Espaço produto-produtor: Conceito atribuído à relação do espaço com a sociedade, onde a
sociedade não somente interfere no espaço através de seu modo de produção, mas o espaço é
entendido também como agente interativo, não pelo viés de ser fato dado da natureza.
Forças produtivas: Combinação de força de trabalho com os meios de produção, utilizada
para transformação da natureza; segundo teoria marxista.
Modo de produção: Relação entre propriedade e trabalho relacionada à determinada
sociedade.
Multiterritorialização : Sobreposição lógica de territórios, hierarquicamente earticulados,
"encaixados"; Vivência concomitante de diversos territórios em uma mesma porção do
espaço.
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Povo Autóctone: Se refere a povos que são naturais de uma dada região, contextualizado na
pesquisa, diz respeito aos povos indígenas e populações tradicionais beiradeiras a região
impactada pela UHE Belo Monte.
Produção do espaço: Produto decorrente das interações e apropriações do espaço por uma
sociedade, modificando-o de acordo com seus imperativos econômicos e políticos, em dado
momento histórico.
Propriedade: Apropriação das condições naturais; Pertencimento ou direito legal de possuir
algo; Porção considerável de terra pertencente a um dono.
Relações de produção: Relação que o ser humano estabelece com o trabalho e a distribuição
através do processo de produção e reprodução; segundo teoria marxista.
Representação do espaço: Espaço concebido, segundo Lefebvre; que constitui o espaço da
cartografia, do conhecimento, da ciência, do progresso.
Reterritorialização: Processo decorrente e/ou subsequente a desterritorialização; implica em
uma relação com um novo território ou com uma mudança significativa do mesmo, afetando o
modo de vida dos afetados pelo processo.
Ribeirinho: Aquele que habita as margens do rio ou o usufrui em seu modo de vida, podendo
ou não possuir a atividade pesqueira como profissão ou para subsistência. De acordo com
Mauro Leonel, ribeirinho é um modo de vida do interior amazônico que pratica a pesca
artesanal, sendo ele rural, com moradia em vilas e colocações nas margens dos rios, seu
acesso à renda monetária e ao mercado é menor do que a do pescador especializado.
Territorialidade: Incorporação das relações econômicas, culturais e políticas que se dão no
território, está ligada ao modo de utilização, organização e significação do espaço por
determinada sociedade/comunidade.
Território: Espaço delimitado com o qual se tem uma relação de poder, este podendo ser
político e/ou representativo; portanto dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um sentido
multi-escalar e multi-dimensional, configurando a conceituação de multiterritorialidade.
Valor de troca: Deriva da relação de dominação que se tem com o território, relacionado ao
conceito de propriedade; pertence a noção de território funcional.
Valor de uso: Deriva da relação de apropriação que se tem com o território, relacionado a
identificação cultural e de vivência que se desenvolve com o território, pertence a noção de
ser composto por marcas do “vivido”.