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Escola da Cidade Faculdade de Arquitetura e Urbanismo BELO MONTE: UMA CARTOGRAFIA DA AUSÊNCIA A DESTERRITORIALIZAÇÃO DOS BEIRADEIROS Relatório Final Pesquisa de Iniciação Científica Pesquisadora: Maytê Tosta Moledo Coelho Orientadores: Profa. Dra. Marta Lagreca (EC) e Prof. Dr. José Paulo Gouvêa (EC) Colaboradores: Prof. Dr. José Guilherme Schutzer (EC), Prof. Dr. Paulo Bomfim (IFSP) e Profa. Dra. Karina Leitão (USP) São Paulo 2016

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Escola da Cidade

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

BELO MONTE: UMA CARTOGRAFIA DA AUSÊNCIA

A DESTERRITORIALIZAÇÃO DOS BEIRADEIROS

Relatório Final – Pesquisa de Iniciação Científica

Pesquisadora: Maytê Tosta Moledo Coelho

Orientadores: Profa. Dra. Marta Lagreca (EC) e

Prof. Dr. José Paulo Gouvêa (EC)

Colaboradores: Prof. Dr. José Guilherme

Schutzer (EC), Prof. Dr. Paulo Bomfim (IFSP) e

Profa. Dra. Karina Leitão (USP)

São Paulo

2016

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MAYTÊ TOSTA MOLEDO COELHO

Belo Monte: uma Cartografia da Ausência – A desterritorialização dos beiradeiros

Relatório apresentado à Faculdade de Arquitetura e

Urbanismo Escola da Cidade como requisito para a

realização de Iniciação Científica inserida no

Projeto Contracondutas.

Orientadores: Profa. Dra. Marta Lagreca (EC) e

Prof. Dr. José Paulo Gouvêa (EC)

Colaboradores: Prof. Dr. José Guilherme

Schutzer (EC), Prof. Dr. Paulo Bomfim (IFSP) e

Profa. Dra. Karina Leitão (USP)

São Paulo

2016

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 5

1.1 Justificativa do trabalho ................................................................................................... 7

2 PROBLEMA DE PESQUISA .............................................................................................. 8

2.1 Objetivos gerais .................................................................................................................... 8

2.2 Objetivos específicos ............................................................................................................ 8

3 METODOLOGIA .................................................................................................................. 9

4 ESTUDO INICIAL ................................................................................................................ 9

4.1 Discussões conceituais ....................................................................................................... 10

4.2 Aproximações cartográficas ............................................................................................... 24

4.2.1 Contexto Nacional ........................................................................................................... 24

4.2.2 Mapa IBGE ...................................................................................................................... 30

4.2.3 Mapa EIA/RIMA ............................................................................................................. 32

4.2.4 Reflexões ......................................................................................................................... 34

5 DISCURSOS CONFLITANTES ........................................................................................ 36

5.1 Discurso oficial – RIMA .................................................................................................... 37

5.2 Discurso não-oficial – Dossiê de Belo Monte .................................................................... 60

5.3 Reflexões ............................................................................................................................ 72

6 ANÁLISE DA CARTOGRAFIA OFICIAL – EIA .......................................................... 81

6.1 Desterritorializações e Reterritorializações ........................................................................ 82

6.1.1 ADA Rural ....................................................................................................................... 82

6.1.1.1 Reservatório do Xingu .................................................................................................. 83

6.1.1.2 Reservatório dos Canais ............................................................................................... 85

6.1.1.3 Reflexões ...................................................................................................................... 87

6.1.2 ADA Urbana .................................................................................................................... 87

6.1.2.1 Igarapé Altamira ........................................................................................................... 87

6.1.2.2 Igarapé Ambé ............................................................................................................... 89

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6.1.2.3 Igarapé Panelas ............................................................................................................. 92

6.1.2.4 Reflexões ...................................................................................................................... 93

6.2 Modos de Vida ................................................................................................................... 95

6.2.1 Reflexões ....................................................................................................................... 100

6.3 Usos do Rio Xingu ........................................................................................................... 101

6.3.1 Reflexões ....................................................................................................................... 103

7 CARTOGRAFIA DA AUSÊNCIA .................................................................................. 104

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 106

9 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 108

10 GLOSSÁRIO ................................................................................................................... 109

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1 INTRODUÇÃO

A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior hidrelétrica do mundo, foi

construída na bacia do Rio Xingu, próxima ao município de Altamira, no norte do Pará. O

projeto e obra, operados pela Norte Energia S.A., estão inseridos no PAC (Plano de

Aceleração de Crescimento), programa do governo federal lançado em 2007, que visa à

implementação de obras de infraestrutura a fim de alavancar o desenvolvimento nacional

analogamente a planos anteriores no Brasil. Desde o início, encontrou grande oposição por

ambientalistas e comunidades locais, o que suscitou uma série de alterações que resultaram no

projeto atual. Entretanto, houve inúmeros erros e omissões, tanto por parte da empresa Norte

Energia, quanto pelo governo federal, na condução das obrigações socioambientais

relacionadas à Usina, enfatizando o grande descompasso entre a execução da obra e a

realização das ações de mitigação e compensação de impactos na região afetada (ISA, 2015).

Para viabilizar a construção da UHE (Usina Hidrelética) de Belo Monte, foi feita como

premissa uma Avaliação de Impacto Ambiental, medida imposta pelo IBAMA (Instituto

Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), na qual foram elaborados

estudos e avaliações dos impactos ambientais relacionados à implantação da obra na região.

As ações antecipatórias e de compensação dos impactos contidos nesses estudos,

comprometidos com os órgãos ambientais e com os movimentos sociais, foram adaptados ao

cronograma energético imposto pelo governo.

Desde a emissão da primeira licença, foram evidentes os inúmeros problemas na

condução do processo de licenciamento, tais como a insuficiência de estudos sobre a

qualidade da água dos reservatórios e as incertezas quanto às condições ambientais da Volta

Grande do Xingu após o desvio do Rio, uma região de rica biodiversidade, sendo o berço de

inúmeras espécies endêmicas de fauna e flora, além de abrigar diversos povos indígenas. É

clara a falta de consideração pelo tempo necessário para o cumprimento adequado das

condicionantes socioambientais de viabilidade da usina, dado o contexto muito sensível da

região. Este descompasso, portanto, impediu a devida realização das ações antecipatórias de

saúde, educação e saneamento básico, que deveriam preparar a região para receber a obra,

prevenindo e minimizando os impactos. O descompasso, então, só se aprofundou com o

tempo.

Com a nova dinâmica, a região (como os municípios de Altamira, Vitória do Xingu,

Brasil Novo) sofreu uma grande mudança. Houve uma migração de aproximadamente 75 mil

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pessoas atraídas pela obra, aumentando drasticamente a demanda por infraestrutura e serviços

públicos (ISA, 2015). Os investimentos correlatos em infraestrutura de saúde, educação,

saneamento básico e segurança foram bastante insuficientes e inadequados (ISA, 2015).

Devido a este crescimento populacional repentino, os indicadores de violência também

aumentaram, com maiores casos de homicídios, violência contra mulheres e adolescentes,

acidentes de trânsitos, furtos e roubos, além de prostituição e drogradição. Os hospitais

sofreram superlotação na maior parte do tempo, o que interferiu também nas populações

rurais e indígenas que viajaram para o centro da cidade em busca de atendimento médico, sem

condições e com grandes esperas no local. A educação também sofreu sobrecarga, além da

piora dos indicadores de abandono escolar e reprovação, que se agravou com a oferta de

emprego nos canteiros de obras. As estações de tratamento de água e esgoto, por sua vez,

foram concluídas, mas as redes de tubulação não foram ligadas aos domicílios. Com o

barramento do Rio, as águas do reservatório e as subterrâneas foram muito degradadas.

O programa de realocação urbana também foi muito desorganizado, insuficiente e

pouco transparente. As populações das áreas rural e urbana foram obrigadas a sair de forma

rápida e compulsória de suas casas, pressionadas a escolher uma das propostas de

compensação, sem acesso à informação e à assistência jurídica gratuita: reassentamento rural

coletivo ou individual (longe do centro e de qualquer infraestrutura), indenização em dinheiro

(inviabiliza a compra dos caros terrenos devido à nova demanda) e carta de crédito ou

realocação assistida (impraticável para a população majoritariamente analfabeta, com pouco

acesso à informação e em meio ao caos fundiário). Não houve preocupação em procurar

condições similares às antigas para os moradores, desrespeitando e prejudicando agricultores

e comunidades beiradeiras, que sobreviviam à base da pesca, levadas para longe do Rio.

Além disso, a atividade pesqueira tradicional sofreu grandes riscos devido à

construção da Usina, que gerou alterações na turbidez da água, intensas iluminações dos

grandes canteiros, ruídos e vibrações causados por explosões ao redor do local, afastando

peixes e alterando também o aspecto físico do Rio Xingu. O investimento das condicionantes

indígenas, por sua vez, não buscou a mitigação e compensação dos impactos, mas sim o

fornecimento de bens materiais e mesadas, criando um relacionamento de padrão clientelista

entre os povos indígenas e a empresa e colocando em risco a saúde, a segurança alimentar e a

autonomia desses povos, devido à desestruturação social e ao enfraquecimento dos sistemas

de produção de alimentos. Deste modo, a empresa conseguiu somente “acalmar e controlar”

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temporariamente os processos de organização e resistência indígena, mas com efeitos

perversos à saúde e à produtividade desses povos.

Devido à insuficiência de ações efetivas de reforço da fiscalização ambiental na

região, o histórico problema da exploração ilegal de madeira se potencializou de forma

abrupta – pondo em risco também as Terras Indígenas e as Unidades de Conservação do local.

Além disso, houve grande desperdício de madeira extraída dentro do canteiro de obra,

levando o empreendedor a comprar uma enorme quantidade de madeira do mercado regional

e reforçando esta pressão ao incentivar este mercado, majoritariamente ilegal.

Tendo em vista estes grandes equívocos e atrasos nas ações fundamentais para a

garantia de direitos das populações atingidas, é clara a necessidade de revelá-los e comunicá-

los. A ausência do planejamento socioambiental e o descumprimento das regras provindas de

instituições responsáveis são problemas a serem questionados e mudados com urgência nas

grandes obras que acontecem no país.

1.1 Justificativa do trabalho

A pesquisa está inserida no Projeto Contracondutas, que teve origem na denúncia e

flagrante de trabalho análogo ao escravo no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na grande

obra do Terminal 3. O projeto busca, através de pesquisas acadêmicas e jornalísticas e de

atividades didático-pedagógicas, levantar, analisar, problematizar e comunicar o trabalho

análogo ao escravo na indústria da construção civil, incluindo também os ramos da arquitetura

e do planejamento urbano de infraestrutura no país para além do caso específico do Terminal

3.

As linhas de pesquisa do Contracondutas surgiram a partir do compromisso da

Faculdade Escola da Cidade com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado pelo

Ministério Público de Trabalho. Deste modo, a presente pesquisa faz parte da linha geral

“Belo Monte, uma ‘cartografia da ausência’ – os beiradeiros atingidos”.

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2 PROBLEMA DE PESQUISA

A presente pesquisa tem como objeto aprofundar o estudo acerca dos impactos da

construção da usina de Belo Monte, sobretudo em relação às populações autóctones, como

beiradeiros e povos indígenas, à margem das grandes políticas públicas. O estudo vem sendo

realizado com base nas áreas de influência do empreendimento mais impactadas pela Usina de

Belo Monte, no caso o município de Altamira, especialmente buscando entender as

representações cartográficas divulgadas pelos órgãos oficiais – as quais legitimam as políticas

de planejamento que possuem traços desenvolvimentistas de otimização do capital. Estas, por

sua vez, provocam processos de desterritoralização e reterritorizalização destas populações

intencionalmente emudecidas, expropriadas e pouco evidenciadas em favor do avanço

acelerado da modernidade, cujo discurso apela para o imperativo do “progresso” negando os

conflitos já existentes e gerados por esse mesmo sistema.

2.1 Objetivos gerais

O objetivo da pesquisa é, então, a confecção de procedimentos cartográficos e

textuais, que permitam compreender e ressaltar os processos de desterritorialização devido

aos fluxos materiais e imateriais das populações tradicionais e preexistentes impactadas pela

obra. A fim de aprofundar o entendimento sobre estes deslocamentos provindos da instalação

da Hidrelétrica, o estudo e a produção cartográfica buscam analisar, principalmente, as

comunidades beiradeiras ao longo do Rio Xingu e suas atividades socioeconômicas e

culturais, que passaram a sofrer grandes alterações quando expostas a este novo contexto.

2.2 Objetivos específicos

a) compreender de forma mais detalhada os processos gerados pela implantação de políticas

públicas que visam às grandes obras de infraestrutura no país.

b) divulgar as ausências cartográficas e as contra condutas no caso específico da construção

da UHE de Belo Monte.

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c) produção de uma cartografia alternativa que contemple e releve as questões e os impactos

sofridos pelos beiradeiros do Rio Xingu.

3 METODOLOGIA

Para o desenvolvimento do trabalho de pesquisa, foram adotados os seguintes

procedimentos: leitura e discussão de artigos e bibliografia escolhidos entre pesquisadores,

orientadores e colaboradores, a fim de fundamentar o referencial teórico e constituir uma base

conceitual que possibilitasse uma melhor análise cartográfica – iniciada nas etapas

denominadas discussões conceituais e aproximações cartográficas, elaborada em conjunto

com os orientadores e as duas pesquisadoras.

Posteriormente, visando à construção da cartografia não revelada, foram escolhidos

documentos que expressassem leituras “oficiais” e “não oficiais” sobre os impactos da Usina

Hidrelétrica de Belo Monte sobre as populações atingidas, especialmente os beiradeiros. Os

documentos analisados foram o EIA-RIMA da UHE Belo Monte, produzido pela Leme

Engenharia (2006), e o Dossiê de Belo Monte, produzido pelo Instituto Socioambiental

(2015). Por último, foram construídas cartografias das ausências, de acordo com os dados

disponíveis e com o conhecimento produzido.

4 ESTUDO INICIAL

A fim de construir o conhecimento sobre a área de estudos e as variáveis em questão –

os interesses em jogo, as convenções, as perspectivas, o período histórico em que se situa a

construção da UHE de Belo Monte e seu impacto no território –, foram selecionados alguns

autores e fontes bibliográficas (como dissertações, livros e artigos), inicialmente lidos e

discutidos com a ajuda dos professores orientadores e posteriormente sistematizados pelas

pesquisadoras.

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4.1 Discussões conceituais

Inicialmente, foi proposto o aprofundamento da discussão sobre o texto: “Quem

impede o desenvolvimento ‘circular’?: Desenvolvimento e povos autóctones: paradoxos e

alternativas”, de Dominique Perrot, 1991.

A partir deste, é possível analisar o paradoxo da construção da Usina no local em que

foi escolhida. Uma região de alta biodiversidade, demarcada pela coabitação de diversas

populações tradicionais e /ou extrativistas, pela falta de infraestrutura básica e pela violência,

agora impactada pela política de planejamento da infraestrutura energética implementada no

país.

No texto apresentado, Dominique Perrot busca investigar o paradoxo entre

desenvolvimento e povos autóctones. Segundo sua ótica, ambos são conflitantes, se

contradizem. Possuem duas perspectivas diferentes, dois planos de realidade. A ideia de

desenvolvimento enquanto dogma moderno inevitável pode coexistir com a sobrevivência de

povos autóctones no mundo contemporâneo?

A autora inicia a discussão descontruindo o conceito de povo autóctone. Face ao

desenvolvimento insensato em que nos encontramos hoje, pode-se dizer que o planeta está

cada vez menor, mais palpável. Mas também cada vez mais devastado e ameaçado. Deste

modo, a noção de autoctonia ganha uma dimensão mais variável ao se pensar nos seres

humanos que habitam o mesmo e único território disponível, constantemente depredado.

“Não saberíamos, sem deixar o campo da decência, comparar os tipos de pressão a que são

submetidos, por exemplo, os índios da Amazônia, de um lado, com o que sofre o cidadão de

uma grande cidade poluída.” (PERROT, 1991, p.219)

Entretanto, há uma linha tênue entre as vítimas e os beneficiários desse sistema, o que

preocupa mais ainda aos privilegiados da modernidade. Essa aproximação se torna clara

quando se observa que as questões sobre a preservação do mundo enquanto um sistema

complexo autorregulador se aliam às questões emergentes dos povos autóctones, como

populações ribeirinhas, indígenas ou aborígenes. O chamado “desenvolvimento sustentável”

busca responder aos interesses de ambos os lados. Entretanto, as inúmeras intervenções feitas

por quem se preocupa em manter os recursos naturais, ainda em nome do desenvolvimento, só

tornam a sobrevivência dos povos autóctones cada vez mais precária.

A autora evidencia, então, que não há como os povos autóctones sobreviverem,

enquanto povos com culturas e modos de vida específicos, em meio à ideologia do

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desenvolvimento como sistema único e inevitável. Para isso, Perrot cita outros exemplos ao

longo da história em que o lado mais poderoso se apropria do mais fraco – como os

colonizadores e missionários europeus, que exterminavam os povos indígenas ou os forçavam

a se adequar aos seus valores civilizatórios e religiosos em nome do desenvolvimento. O

paradoxo do desenvolvimento se torna evidente ao analisar a noção de progresso a todo custo

e as práticas de expropriação.

Como distinguir, então, o desenvolvimento como bom ou mau? A fim de responder

esse paradoxo, Dominique Perrot inicia um processo de descolonização conceitual, no qual

busca descontruir os dogmas e paradigmas do desenvolvimento, visando compreender a

origem histórica dessa imposição. Desse modo, entende-o como derivado de três pilares

próprios ao Ocidente: Aristóteles, judaico-cristianismo e ideologia iluminista. Segundo essa

ótica, pode-se pensar o desenvolvimento como um processo natural, desejável, linear,

inevitável, irreversível, com um objetivo final. Apesar de haver críticas à noção de progresso

– devido às falhas e problemas consequentes desse sistema –, o desenvolvimento permanece

até os dias atuais como resposta e parâmetro de demarcação do traçado da História.

Entretanto, ao pensar o desenvolvimento no contexto das populações indígenas, o autor

o entende como um conceito não transcultural. Portanto, criado em determinado momento da

história por determinado jogo de forças. A autora caracteriza, então, a natureza de sua relação

“por uma valorização geral das pessoas e recursos naturais através de mecanismos de

mercado” (PERROT, 1991, p. 221), o que somente beneficia as minorias dominantes que cada

vez mais mantêm o dogma do desenvolvimento intacto. Isso ocorre de modo a passar por cima

do maior risco dessa prática, expropriando e destituindo qualquer tipo de capacidade

diferencial, como os povos autóctones. Por outro lado, a autora também compreende o

desenvolvimento como eficaz enquanto transformador de relações sociais e naturais em bens

de mercado e capital financeiro.

Ao pensar em uma possível relação social com povos autóctones, Dominique Perrot

enfatiza a necessidade de uma crítica profunda aos movimentos alternativos de

desenvolvimento. Considerando-o como um conjunto de práticas baseadas em uma visão de

mundo específica e particular, se torna contraditório articular alternativas como

autodesenvolvimento, etnodesenvolvimento e desenvolvimento endógeno, pois se tratam de

diferentes identidades culturais e o próprio conceito de desenvolvimento carrega em si uma

série de aspectos culturais específicos.

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Isso se torna evidente ao analisarmos projetos de ONGs e associações. Apesar de bem

intencionadas, são instituições que projetam e visam ajudar os povos autóctones a se

relacionarem melhor com os próprios conceitos e ideologias da modernidade imposta pela

sociedade ocidental. Em alternativa a isso, há muitas organizações indígenas que,

representando suas comunidades, buscam um profundo conhecimento sociológico das

mudanças políticas e organizacionais das ajudas, a fim de evitar que a intervenção externa

impeça o crescimento e a continuação de sua própria comunidade e cultura.

Ainda decompondo o aspecto das intermediações entre povos autóctones e o

desenvolvimento, proposto por organizações e instituições, Dominique Perrot analisa a

“Declaração sobre o direito ao desenvolvimento”, publicada em 1986 pela ONU (Organização

das Nações Unidas) e composta por uma série de discursos que tratavam o desenvolvimento.

Esta não considera as questões ambientais geradas por meio do desenvolvimento e não

menciona os povos indígenas e suas questões emergentes e tão particulares no contexto

Estado-nação.

Apesar de não nomear os povos autóctones e as minorias, a Declaração cita o direito à

autodeterminação. O discurso se torna contraditório uma vez que não há como equivaler o

direito à autodeterminação e o direito ao desenvolvimento para esses povos, pois seus

princípios da autodeterminação esbarram diretamente com conceitos intrínsecos à concepção

de desenvolvimento. A proclamação, portanto, é um instrumento que encobre as relações de

força, poder e política que impedem os direitos fundamentais e a luta dos povos indígenas e

de outras categorias dominadas.

A versão revisada da Convenção 107 sobre as populações tribais e indígenas, adotada

pelo BIT (Conferência Internacional do Trabalho), por sua vez, trata só dos povos autóctones.

Entretanto, ao contrário do proposto, a participação dos representantes dos povos indígenas na

elaboração do documento se deu de forma muito desigual, marginal, sendo somente

espectadores do processo. Os termos utilizados nas concessões do reconhecimento dos

direitos dos povos autóctones foram prioritariamente “participação” e “consulta”, o que

consequentemente significa a falta de controle e do direito de escolha e recusa sobre projetos

externos impostos ou que afetam direta ou indiretamente essas populações. Desse modo, se

torna claro que estes povos tem o direito de participar ou de serem consultados, mas não

possuem o direito de negar propostas de desenvolvimento ou discernir sobre questões que

envolvam ou afetem suas terras.

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Ao discutir a relação de desenvolvimento com os povos indígenas, Dominique Perrot

considera alguns paradoxos. O primeiro avalia que não é possível desenvolver o que já é

desenvolvido, questionando a relatividade do termo em si para povos com diferentes culturas.

Articula, ainda, que ao recusar o desenvolvimento, o povo reitera seu próprio destino, e não o

estagna ou o retarda, pois recusa a participação dentro de uma relação completamente

assimétrica que visa à conversão das pessoas em partes pequenas e enfraquecidas deste grande

sistema normativo. O segundo profere que toda sociedade, por força de sua reprodução, deve

saber enfrentar mudanças, sendo verdadeiro também às comunidades comunitárias quando

forçadas a entrar em contato com a sociedade moderna. Já o terceiro, descreve as

consequências da ajuda externa dentro de uma sociedade. Quanto mais pobre for a sociedade,

mais o contato se torna desestabilizador e mal absorvido, mesmo que bem intencionado.

Perrot conclui ao entender a dificuldade da sobrevivência dos povos autóctones em

contato com a cultura ocidental. Apesar disso, há recursos e ferramentas das quais os povos

podem se apropriar para facilitar a comunicação entre os lados. As novas formas de

sobrevivência estão, portanto, constantemente ameaçadas em decorrência do avanço acelerado

do desenvolvimento. Nesta lógica, considera o caráter destruidor desse movimento o fato de a

abundância inacabável de uns acarretar na expropriação de outros.

A obra possibilita, portanto, uma maior apreensão sobre as inúmeras controvérsias do

estudo de caso escolhido para a pesquisa de iniciação científica e todas as questões

envolvidas: o projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e seus impactos nas comunidades

ribeirinhas. Visando acelerar o desenvolvimento nacional a qualquer custo, o governo federal,

através do PAC (Plano de Aceleração de Crescimento), aprovou e licenciou uma obra de

grande porte que afeta uma imensurável quantidade de pessoas, mais vulneráveis,

expropriando-as de suas terras, culturas e fontes de recursos naturais.

Deste modo, pode-se observar como os povos autóctones da região de Belo Monte, os

beiradeiros, são diretamente impactados pela instalação dessa nova infraestrutura. Apesar de

habitarem o local, são reduzidos e expropriados em nome do desenvolvimento, sem ao menos

terem poder de veto ou opinião sobre a instalação da usina, que impacta tanto no aspecto da

desapropriação de edificações, quanto do próprio modo de vida da região.

A presente pesquisa, ainda, propõe a análise crítica de cartografias já existentes e a

construção de cartografias experimentais como forma de expressão das análises do objeto de

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estudo. Neste sentido buscou-se aprofundar o conhecimento sobre esta ferramenta de trabalho,

a produção cartográfica, por meio da discussão intensa de dois capítulos da Dissertação de

Mestrado “Cidade do mapa: a produção do espaço de São Paulo através de suas

representações cartográficas” de José Paulo Neves Gouvêa, 2010 (p. 1-70).

A fim de melhor compreender os fundamentos e conceitos que instrumentam a análise

cartográfica, neste caso a de São Paulo, José Paulo Gouvêa busca aprofundar fundamentos

sociais e econômicos e levantar termos utilizados como elementos indispensáveis para a

compreensão da mesma. Introduz, então, a questão por meio de análises e questionamentos da

imagem histórica e socialmente construída dos mapas e como são entendidos hoje: um

registro fiel e real de um espaço em determinado tempo. Diz, ainda, que a sua eficácia como

ferramenta de persuasão se dá através do discurso de transparência que busca convencer o

observador de que se trata de uma realidade.

Além disso, destaca na produção cartográfica seu ambivalente papel científico e

artístico, que ocorre de forma simultânea e de fácil apreensão. Os mapas, portanto, constroem

uma realidade própria e não são somente a representação de uma já existente. São

instrumentos utilizados por específicos interesses, sendo assim, incapazes de representar a

realidade como um todo – pois, de modo isolado, simbolizam somente determinada visão de

determinado espaço.

Para melhor fundamentar seu caminho conceitual, o autor buscou um maior

aprofundamento em obras de grandes pensadores na área de economia política, como Karl

Marx, e na de produção social do espaço, como Henri Lefebvre. No primeiro capítulo,

Gouvêa expõe termos e conceitos utilizados no campo da cartografia para enfim poder

analisar como os mapas interferem socialmente e como são dirigidos por determinados atores

sociais e seus interesses. Para isso, decompõe primeiramente os conceitos de modo de

produção, produção do espaço e representação para então construir a conceituação de espaço

abstrato.

José Paulo Gouvêa estudou o conceito de modo de produção por meio do estudo da

evolução social e econômica de Marx (presente no livro “Formações Econômicas Pré-

Capitalistas”, 2006), no qual ele discorre sobre a propriedade e sua relação com o trabalho.

Essa relação dá-se no sentido de que o homem, na atividade social de viabilizar sua

subsistência, age sobre a natureza e dela se apropria. A partir dessa nova apropriação das

condições naturais, o homem constrói relações sociais e novas concepções que compõem a

sociedade, sendo essa a base da relação homem-natureza.

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Ainda segundo o texto, Marx percebe um progressivo afastamento entre propriedade e

trabalho, culminando na completa separação: o modo capitalista, somente torna-se viável

quando o homem se afasta de suas condições naturais de produção, o que viabiliza que o

trabalho possa ser moeda de troca livre por dinheiro. Entende, por tanto, cada fase desse

processo de distanciamento como modo de produção. Entretanto, isso não significa que exista

uma ordem cronológica ou de importância. A fim de compreender o conjunto dessas

transformações de modo geral, Marx divide-o em quatro fases, desde a propriedade comunal

direta, até a dos dias atuais. Essa, por sua vez, é caracterizada pelo Capital que se apropria

somente do trabalho, mas não mais do homem, dispensável enquanto condição de produção.

“Seguindo a análise de Marx, percebemos que o modo capitalista é a forma em que o

trabalho vivo mantém uma relação de não-propriedade com a matéria prima, com os

instrumentos de trabalho e com os meios de subsistência, necessários durante o

próprio processo de produção, e acima de tudo, a não-propriedade da terra (MARX,

2006). Na visão de Marx essa é a relação que implica propriedade, produção e modo

de produção.” (GOUVÊA, 2010. p. 36)

Para melhor compreensão deste conceito no campo cartográfico, é necessário um

aprofundamento sobre o espaço e sua produção. Dessa forma, José Paulo Gouvêa parte da

discussão de Henri Lefebvre em “A Produção do Espaço” (1998), na qual o espaço e o tempo

sociais são produtos, para definir a produção do espaço: um conjunto de relações que definem

uma sociedade em sua totalidade, um momento. Define o espaço, então, enquanto produto,

como diferente de outras mercadorias, por não ser passivo ou vazio ou ter a troca e o consumo

como finalidades exclusivas. Além de produto, define-o também como produtor porque

“intervém na produção social, na organização do trabalho, no fluxo, e no estoque de matérias

primas e energia e nas redes de distribuição. É, portanto, produto-produtor” (GOUVÊA, 2010,

p. 37). O espaço, portanto, enquanto produtor, produz o reprodutível, o re-produto, o

reproduzido.

Ainda, analisa o espaço como tendo uma relação com o modo de produção. Considera

importante para a compreensão dessa relação, a periodização feita por Jorge Oseki (em “O

Único e o Homogêneo na Produção do Espaço”, 1996) sobre a história do espaço segundo as

quatro fases do modo de produção de Karl Marx. Conceitua, então, o espaço analógico, o

cosmológico, o simbólico e o perspectivo. Esse último período ocorre na Idade Média,

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quando há uma completa separação entre produção e comércio e a cidade, consequentemente,

detém a maior parte das relações sociais e econômicas. Também surgem os primeiros

instrumentos utilizados para o estudo cartográfico e a perspectiva de Brunelleschi e Alberti,

que transforma a visão de mundo como uma única estrutura espacial, permitindo uma maior

precisão e objetividade nos mapas.

Essa nova concepção de mundo como totalidade foi incrementada também pelo uso do

calendário e o relógio, que gerou um tempo mensurável e universal, criando novas relações

sociais, como a de quantificação do trabalho. Gouvêa entende que tanto o espaço quanto o

tempo, portanto, são suportes para a atividade humana por serem ligados ao modo de

produção.

Ao pensar na produção do espaço a partir do modo capitalista descrito por Marx, já

citado acima, caracteriza o espaço capitalista como hierarquizado, despedaçado e

homogêneo, além de dependente do Estado. Neste período ocorre a criação da maior parte do

objeto de estudo da dissertação: os mapas de São Paulo. Para melhor compreensão desse

espaço, que nomeia como espaço abstrato, Gouvêa aponta primeiro os mapas enquanto

representações, pois mediam a relação entre o espaço e as atividades sociais que ocorrem

nele.

Para fazer essa análise, o autor se apoia na teoria das representações de Henri

Lefebvre, em “La Presencia y La Ausencia”, que aponta que as representações, além de

interpretarem dada realidade, também interferem nela. Segundo a teoria, o representado é

superado pelo representante, deste modo, está ao mesmo tempo ausente e presente na

representação – ao passo em que ausência e presença supõem uma a outra. Como mediação, a

representação ganha poder pela forma dual em que opera: de simular e dissimular, permitir e

impedir, ser falsa e verdadeira simultaneamente.

Ainda segundo Lefebvre, para viabilizar uma análise crítica e, desta forma, não

enganosa sobre as representações, é necessário investigar essa força ambígua das mesmas,

aprofundando também o estudo de suas origens e influências.

Seguindo os pensamentos de Marx e Lefebvre, José Paulo Gouvêa entende que as

representações, assim como a ideologia, apesar de serem diferentes, possibilitam o modo

capitalista e sua consequente forma de exploração. A ideologia, pois é a lógica da dominação

social e política (MARX, 1982). Já a representação, por possibilitar, por exemplo, a

representação quantitativa do trabalho, agora medido pelo tempo de trabalho, reduzindo a

atividade individual que o trabalhador realiza. A quantificação do trabalho é, portanto, uma

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medição e não o trabalho em si. “A representação do trabalho, portanto, coloca-se entre

trabalho e trabalhador, deslocando o representado.” (GOUVÊA, 2010, p. 49).

Os relógios e os mapas são, por sua vez, instrumentos para representações articuladas

e estabelecidas pelo modo de produção capitalista e por sua ideologia. Assim como a medição

do trabalho não é o trabalho, a medição do tempo não é o tempo. O espaço medido, portanto,

não é o espaço vivido (GOUVÊA, 2010). Deste modo, o mapa suporta de forma material e

abstrata o espaço capitalista e sua consequente quantificação. O autor conclui, então, que o

espaço, assim como o tempo, não só representa o conjunto da experiência humana, mas

estrutura, de forma simbólica, o próprio conjunto através das representações – o que

possibilita a forma de dominação e exclusão citada anteriormente.

Para definir o espaço abstrato, Gouvêa cita ainda a análise de Lefebvre que, por sua

vez, divide o espaço social em três classificações que totalizam sua unidade. A primeira

classificação é o espaço físico (ou espaço vivido), composto por uma elaboração dupla: a

representação do espaço (ou espaço concebido), sendo essa a segunda classificação, que

constitui o espaço da cartografia, do conhecimento, da ciência, do progresso, “o espaço

dominante na sociedade, que atualiza e suporta as relações sociais de produção e de

reprodução” (GOUVÊA, 2010, p. 51); e o espaço das representações (ou espaço percebido),

como terceira classificação, regido por simbolismos e pela irregularidade da vida social. O

espaço vivido, então, como objeto representado, é reduzido pelas duas representações, o

espaço concebido e o percebido. Entretanto, segundo Lefebvre, apesar de fragmentado, os três

espaços se conformam enquanto prática espacial.

A partir disso, inicia uma decomposição do espaço desde o da Antiguidade

(denominado espaço absoluto) até o espaço abstrato, a partir do final do século XX;

analisando as diversas transformações sociais, econômicas e políticas, no aspecto das

representações de espaço e tempo e dos modos de produção e reprodução, no consciente e no

inconsciente. Entende que o espaço social absoluto se fragmenta totalmente quando

suplantado, no capitalismo, pelo espaço abstrato. Lefebvre caracteriza-o em três aspectos: o

geométrico, redutível como espaço euclidiano, homogêneo; o ótico, que implica a supremacia

da visão sobre os outros sentidos e do escrever como prática social; e o fálico, como um

objeto cheio, que representa a violência brutal e a força masculina, mas também a do poder

político e repressor.

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Ao discorrer agora sobre a abstração propriamente dita, Lefebvre, segundo Gouvêa,

entende o espaço como o maior instrumento que assegura a manifestação da violência

intrínseca ao uso social da abstração.

“Marx e Engels mostraram, por seu lado, que não podia haver violência ‘pura’ e

absoluta, sem base econômica, sem luta de classes, sem ‘expressão’ da classe

dominante economicamente, pois o Estado não pode se estabelecer sem apelo a

recursos materiais, sem objetivo se repercutindo nas forças produtivas e nas relações

de produção.” (LEFEBVRE, 2006, p. 187)

Deste modo, definido o conceito de espaço abstrato, é ilustrada a realidade e o contexto no

qual se deu a produção do espaço atual, conhecimento necessário para a análise da cartografia

da cidade de São Paulo feita por José Paulo Gouvêa no capítulo segundo de sua dissertação e

também para análise das cartografias da presente pesquisa.

O segundo capítulo, então, inicia-se com uma aproximação da análise da cartografia

em si, com base em autores como Brian Harley e Pierre Bourdieu. Segundo a análise de

Harley em “La Nueva Naturaleza de los Mapas; Ensayos sobre la História de la Cartografía”,

os mapas se assemelham muito a um texto, podendo ser lidos como um, dotados de diversos

significados e simbologias. Por afirmar a falta de neutralidade e cientificidade dos mesmos,

Harley sugere um maior aprofundamento na leitura dos mapas a fim de enxergar essa falta.

Para isso, sugere maior apreensão do: contexto do cartógrafo, uma tarefa difícil pela autoria

múltipla dos mapas, resultado possível de divisão de trabalho; contexto de mapas

contemporâneos da mesma localidade representada e também de outros mapas do próprio

cartógrafo; contexto da sociedade e sua relação do cartógrafo. Portanto, sugere uma

desconstrução do mapa, um olhar para as omissões, a ausência, capazes de revelar diversas

informações ocultas.

Portanto, Harley questiona a neutralidade e cientificidade dos mapas, ao alegar que a

ciência, que se impõe como neutra moral e eticamente, é uma construção do homem. Acusa,

ainda, os mapas contemporâneos de somente parecerem científicos: não necessariamente o

são. Pierre Bourdieu, por sua vez, em “O Poder Simbólico” se aprofunda às ideologias

compreendidas na autoridade científica. Alega que há um poder simbólico na autoridade: as

representações cartográficas, portanto, utilizam desse poder para publicar, oficializar, tornar

público o seu próprio discurso.

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“A ciência, ‘que pretende propor os critérios mais bem alicerçados na realidade, não

deve esquecer que se limita a registrar um estado da luta das classificações, quer dizer,

um estado da relação de forças materiais ou simbólicas entre os que têm interesse num

ou noutro modo de classificação e que, como ela, invocam frequentemente a

autoridade científica para fundamentarem na realidade e na razão a divisão arbitrária

que querem impor.” (BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro:

Bertrand Russel, 2007. p.115)

Ou seja, o Bourdieu revela a arbitrariedade das lutas pelo poder autoral do discurso científico

e seu caráter simbólico, tornando válido o questionamento da autoridade científica apropriada

pelas representações cartográficas.

A dissertação de mestrado possibilita, portanto, uma maior avaliação crítica sobre as

representações cartográficas que de longe parecem homogêneas e transparentes, mas ao se

aproximar a visão se tornam cada vez mais fragmentadas em decorrência da significante

hierarquia presente na sua formação. Deste modo, será possível uma análise cartográfica mais

sensível, pensando desde a origem das forças de produção do espaço, até a autoridade

científica do cartógrafo, seus interesses, crenças e objetivos, e da representação cartográfica

em si, através da utilização de recursos investigativos que permitem a apreensão de fatores

ocultos na própria forma de representação. A produção de cartografias, proposta nesta

pesquisa, será igualmente beneficiada pela compreensão dos processos de criação de uma

representação cartográfica desde o início, evitando possíveis discursos falhos ou omissões,

mas deixando claros os objetivos da representação.

Pretende-se, então, utilizar desses recursos apreendidos para aprofundar de forma

crítica e fundamentada alguns mapas, cartogramas e gráficos que abordam a região da Usina

Hidrelétrica de Belo Monte e suas áreas de influência, como os mapas do EIA-RIMA (2009) e

do IBGE (2005) – além de verificar os aspectos dos fatos representados e investigar as

ausências e os autores e públicos alvos dessas representações cartográficas.

Ainda, a fim de analisar detalhadamente o paradoxo entre o Estado e os povos

autóctones nos processos de desterritorialização decorrentes da implantação da Usina

Hidrelétrica de Belo Monte, buscou-se, na leitura e discussão do artigo “Território e

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multiterritorialidade: um debate” de Rogério Haesbaert (2007), apreender os conceitos e

origens da palavra território e suas derivações.

O debate busca investigar e compreender melhor o conceito de território, de

territorialidade e da noção de “multiterritorialidade”. Rogério Haesbaert nega o “mito” da

desterritorialização, dando uma alternativa conceitual: a multiterritorialidade. Justifica que,

quando há desterritorialização, há consequentemente uma reterritorialização, um movimento

complexo de territorialização, mais múltiplo, que denomina como multiterritorialização.

Entretanto, alega haver, no aspecto social, a desterritorialização quando alguém perde a posse

ou o controle sobre a terra, é destituído, expropriado pelos mais privilegiados. Deste modo,

por implicarem e poderem desdobrar diversas perspectivas políticas, julga necessária uma

discussão acerca desses processos de territorialização.

Para iniciar a discussão, o autor busca explicar a dupla conotação do conceito de

território, que diz respeito ao poder sobre a terra: tanto no sentido de poder político, de

dominação, medo e recurso, quanto no sentido de apropriar-se, mais simbólico, de identidade.

O autor retoma, ainda, alguns conceitos já destrinchados na análise da dissertação de mestrado

de José Paulo Gouvêa, conceitos propostos por Lefebvre e Karl Marx, ao considerar o

primeiro território como “unifuncional”, ligado à reprodução do espaço do modo de

produção capitalista-estatista, em contraposição ao segundo, atrelado ao espaço e ao tempo

vividos, onde há prática, multiplicidade, subjetividade.

Haesbaert retoma o conceito de espaço de Lefebvre e considera-o como semelhante ao

de território, por se tratarem de espaços socialmente construídos. Entretanto, seu foco de

debate é o das relações de poder, dos processos sociais que compõem o espaço. Explica o

território, portanto, como sendo simultaneamente funcional e simbólico, ao passo em que

ambos implicam relações de poder, de controle social, sendo elas, além de políticas,

econômicas e culturais.

Ao pensar no território enquanto recurso, o Haesbaert percebe a mesma dualidade: os

“hegemônicos”, como o autor os denomina, possuem uma necessidade do recurso, do

território; enquanto os “hegemonizados”, ainda segundo a denominação do autor, consideram

o recurso como identidade, como abrigo, como apego.

O autor defende, então, a necessidade de se analisar as diversas definições de

territorialidade, dividindo-as em: territorialidade num sentido mais abstrato, teórico, ou em

um sentido mais ontológico, como controle físico através da materialidade, como controle

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simbólico através da imaterialidade ou como ambos, o que conforma o espaço vivido, já

citado anteriormente.

Essas diferentes conceituações de territorialidade podem corresponder, portanto, a

diferentes conceituações de território. Havendo assim, múltiplas possibilidades dessa relação

expostas no debate, “desde a indistinção até a completa separação entre eles” (HAESBAERT,

2007. p. 26). O autor, como geógrafo, propõe então a concepção de territorialidade como

uma mais ampla que a de território. Ou seja, há territorialidade sem território, mas o inverso

não é plausível. Entretanto, considera necessário o cuidado em notar qual dos sentidos de

territorialidade está se utilizando. Já sobre o território, define: “pode ser concebido a partir

da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações

econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente

cultural” (HAESBAERT, 2004. p. 79).

A fim de entender a multiplicidade territorial do capitalismo e da modernidade, o autor

faz uma distinção de sentidos e valores do território ao longo do tempo: como abrigo físico e

fonte de recursos/meios de produção, como auto identificação de grupos, como forma de

controle e como construção e controle de conexões e fluxos. Sendo o último, uma lógica

típica e empresarial da pós-modernidade.

Diz, ainda sobre essa diversidade territorial no capitalismo atual, que há uma distinção

dual de sentidos, que se relacionam, se mesclam, coexistem. Haesbaert define uma lógica

como a de “território-zona”, como forma de controle político e estatal, tradicional e

uniterritorial, e a outra como uma de “território-rede”, como controle tanto do “território-

zona” quanto de seus fluxos e redes globais. Esse controle, entretanto, pode ser mais efetivo

ou não dependendo de quem o promove e se é mais funcional ou mais simbólico. Deste modo,

essa multiplicidade de territorialidades pode conviver em um mesmo espaço, enquanto

espaço de relações e disputas políticas entre diferentes representações sociais que se

apropriam ou não do espaço.

O autor justifica seu discurso ao relacioná-lo com as ideias de Zambrano sobre

pluralidade de territórios e territórios múltiplos:

“A pluralidade de territórios indica sua multiplicidade: ‘a superfície terrestre como

suporte está sujeita a um processo permanente de organização/diferenciação, processo

central para a reprodução sistêmica. (...)’ Os territórios plurais, além de conceberem a

multiplicidade descrita anteriormente, concebem todo espaço terrestre ocupado por

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distintas representações sobre ele, que tendem a legitimar a jurisdição sobre os

habitantes que nele residem, configurando a série de relações sociais entre as

diferentes percepções de domínio. (...) Os territórios plurais permitem perceber, em

cada unidade do múltiplo, a pluralidade de percepções territoriais estruturadas [a

cotidianidade dos habitantes], estruturando [processo de construção] e estruturantes

[ex.: judiciais, eclesiásticas e algumas guerrilheiras, formadas pela progressiva ação

dos movimentos sociais]. (ZAMBRANO, C. 2001. Territórios plurales, cambio

sociopolítico y globernabilidad cultural. Boletim Goiano de Geografia 21(1). p. 29-

30)

A fim de distinguir multiplicidade territorial de multiterritorialidade, o autor remonta as

origens da palavra para então definir duas concepções: a de multiterritorialidade no sentido

mais amplo, “moderno”, sendo a propriedade da multiplicidade territorial (o encaixe de

territórios) ou a de multiterritorialidade no sentido mais estrito, “contemporâneo”, ao se

pensar na existência de múltiplos territórios e territorialidades, de uma articulação ‘de’ e

‘entre’ territórios-rede.

Segundo ele, baseado nas ideias de Yve Lacoste, a multiterritorialidade

contemporânea é uma transformação constituída de forma quantitativa, pela maior quantidade

e diversidade de territórios e territorialidades, mas também de forma qualitativa, pela maior

acessibilidade e intervenções entre territórios e territorialidades, devido à globalização e a

consequente aproximação virtual, o que fragmenta e conecta os territórios de forma

simultânea. Ao discorrer sobre a multiterritorialidade mais estrita como uma compreensão

inovadora do espaço-tempo, ressaltando a burguesia hegemônica e seu maior acesso a ela,

afirma que:

“A principal novidade é que hoje temos uma diversidade ou um conjunto de opções

muito maior de territórios/territorialidades com os/as quais podemos ‘jogar’, uma

velocidade (ou facilidade, via Internet, por exemplo) muito maior (e mais múltipla) de

acesso e trânsito por essas territorialidades – elas próprias muito mais instáveis e

móveis – e, dependendo de nossa condição social, também muito mais opções para

desfazer e refazer constantemente essa multiterritorialidade.” (HAESBAERT, 2004a.

p. 344)

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Ainda sobre a multiterritorialidade, enquanto possibilidade ou efetivação, diz:

“As implicações políticas desta distinção são importantes, pois sabemos que a

disponibilidade do “recurso” multiterritorial – ou a possibilidade de ativar ou de

vivenciar concomitantemente múltiplos territórios – é estrategicamente muito

relevante na atualidade e, em geral, encontra-se acessível apenas a uma minoria.

Assim, enquanto uma elite globalizada tem a opção de escolher entre os territórios que

melhor lhe aprouver, vivenciando efetivamente uma multiterritorialidade, outros, na

base da pirâmide social, não têm sequer a opção do ‘primeiro’ território, o território

como abrigo, fundamento mínimo de sua reprodução física cotidiana.”

(HAESBAERT, 2004a. p. 360)

Conclui que multiterritorialidade pode se conformar como múltiplos poderes, dominâncias;

como múltiplas identidades, de forma mais simbólica, como apropriações culturais em

espaços híbridos; e múltiplas funções devido à conotação econômica. Deste modo, reconhece

a importância estratégica do espaço enquanto território e ferramenta transformadora da

sociedade.

Portanto, através dos conceitos apreendidos no estudo desse artigo, é possível uma

maior apreensão sobre os processos que ocorreram e ocorrem na região da UHE de Belo

Monte. Os processos de desterritorialização dos povos autóctones, sejam eles beiradeiros ou

povos indígenas – realizados por meio da desapropriação de edificações (como moradias,

comércios, sítios, casas de pesca) e também pela interferência direta no modo de vida e no

uso social do rio – ocorrem ao mesmo tempo em que é rearticulada uma reterritorialização

“compulsória” do mesmo espaço, utilizado agora pela Usina e suas decorrentes infraestruturas

e áreas de alagamento. Estes processos, juntos, configuram multiterritorialidades (ou seja, a

sobreposição de usos e perspectivas diferentes sobre um único território) que ocorre no

entorno do Rio Xingu, onde a minoria hegemônica, tanto de poder econômico quanto político,

prevalece e reduz os povos que anteriormente já habitavam e usufruíam da região.

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4.2 Aproximações cartográficas

Com base nas leituras descritas anteriormente, entende-se que as representações

cartográficas demonstram uma perspectiva e uma intencionalidade, apesar de parecerem

neutras e científicas. Deste modo, busca-se uma primeira aproximação cartográfica a fim de

contextualizar a grande obra de infraestrutura em questão, além de ler e analisar mapas da

região da Usina Hidrelétrica de Belo Monte por meio dos conceitos discutidos.

4.2.1 Contexto Nacional

A lógica do planejamento energético brasileiro pauta-se no aproveitamento do recurso

hídrico, devido à própria geografia do Brasil – constituída por uma malha hídrica vasta,

avaliada com um potencial significativo. Portanto, este potencial

é associado à necessidade de progresso e de geração de energia, configurando-se em um dos

maiores complexos hidrelétricos do mundo.

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FIGURA 1 – Brasil – Hidrografia e Usinas Hidrelétricas

Fonte: Produção própria sobre base cartográfica do IBGE - Mapa Brasil Grandes Regiões [Cartas e Mapas-

Folhas Topográficas]

Esta cartografia busca demonstrar, justamente, este aspecto do desenvolvimento

nacional associado à construção de usinas hidrelétricas. É notável a geração de

energia tanto numa esfera de progresso econômico, como no âmbito social, pois o consumo

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de energia elétrica está intrinsecamente ligado à qualidade de vida social, indispensável na

escala do indivíduo e na institucional. Todavia, através da apreensão anterior, em proporção

regional, a implantação de usinas do porte da Usina Hidrelétrica de Belo Monte tem fortes

desdobramentos e impactos socioambientais. Estas alteram o curso natural dos rios e o

volume de suas vazões e desmatam regiões inteiras nas quais serão construídas e onde se

instalarão seus reservatórios, que alcançam dimensões monumentais. Portanto, resultam, de

forma direta, em um grande impacto sobre o meio físico, biótico e socioeconômico do local

em que serão inseridas. A proporção destes impactos pode ser observada a exemplo da UHE

Belo Monte, que possui um reservatório de 516 km², área maior que a do município de Porto

Alegre – assim, podendo transformar antigos rios em efetivos lagos.

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FIGURA 2 – Brasil – Hidrografia, Usinas Hidrelétricas e Desmatamento

Fonte: Produção própria sobre base cartográfica do IBGE - Mapa Brasil Grandes Regiões [Cartas e Mapas-

Folhas Topográficas]

A questão que envolve a região da Floresta Amazônica e as grandes obras de

infraestrutura contidas no plano de desenvolvimento nacional estabelece em si controvérsias

ao longo da história do país. A partir da década de 1960, a região da Amazônia como um

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todo, passou a ser objeto de um processo de integração nacional. Este processo, através de

projetos de incentivo do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária),

atraiu significativos fluxos migratórios para a região, motivando novas demandas de

infraestrutura para comportar tais populações.

O próprio município de Altamira foi um dos municípios afetados por este plano.

A construção da rodovia Transamazônica, anterior à implantação do AHE (Aproveitamento

Hidrelétrico) Belo Monte, iniciada em 1968, ocasionou impactos semelhantes aos já citados

decorrentes da Usina, como o aumento do fluxo migratório, portanto o inchaço

demográfico; a desestruturação das dinâmicas locais, o que modificou aspectos tradicionais da

região; o desmatamento da área onde foi construída a infraestrutura, além do incentivo ao

desmatamento das localidades no entorno; e a ocupação urbana desordenada, que propiciou

processos de favelização e pauperização social, como no caso das palafitas (ocupações junto

aos igarapés, motivadas por necessidades de subsistência). Justamente estas últimas,

estruturas mais vulneráveis, estão contidas na área levantada pelas Avaliações de Impacto

Ambiental da UHE Belo Monte como a área diretamente afetada pela sua construção.

Com isto, compreende-se também a implantação de rodovias como impulsionadora de

impactos ambientais e sociais de destaque e amplidão similares aos de

usinas hidrelétricas. Estas infraestruturas, portanto, impulsionadas há décadas pelos planos de

desenvolvimento para o país, impactam diretamente no desmatamento. Estes processos se

tornam claros ao se sobrepor a malha rodoviária às manchas de desmatamento configuradas

no território brasileiro.

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FIGURA 3 – Brasil – Rodovias e Desmatamento

Fonte: Produção própria sobre base cartográfica do IBGE - Mapa Brasil Grandes Regiões [Cartas e Mapas-

Folhas Topográficas]

Deste modo, a partir das cartografias aqui explicitadas, infere-se de suma importância

a elaboração de produtos cartográficos para se construir o entendimento crítico acerca dos

processos conflitantes entre desenvolvimento e povos autóctones. As cartografias propostas,

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então, conformam-se em ferramentas elementares para embasamento do debate a respeito

das controvérsias presentes no paradigma do desenvolvimento sustentável e passíveis de

serem empregadas como representações espaciais reveladoras das ausências contidas nos

discursos em questão.

4.2.2 Mapa IBGE

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é o órgão público responsável

por produzir bases técnicas georreferenciadas, de caráter institucional e científico, que

representam e indicam os processos que ocorrem no território brasileiro. Para uma primeira

análise, selecionou-se o mapa político de Belém de 2005, que contém em sua representação a

área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Por ser um mapa político, centra-se

em identificar somente os nomes de cidades e municípios e elementos de infraestrutura

urbana, como as principais rodovias, ferrovias e a rede hídrica, incluindo a indicação da

localização da Usina de Belo Monte, de Terras Indígenas e de localidades rurais. Deste modo,

seu discurso permanece neutro e caracteriza o espaço como homogêneo.

No que diz respeito à representação das Terras Indígenas, não há informações que as

qualifiquem, inclusive, não indicando a localidade da Terra Indígena Arara da Volta do Xingu

que se localiza a margem do rio Xingu a leste da Terra Indígena Paquiçamba.

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FIGURA 4 – Mapa político de Belém - PA

Fonte: IBGE (2005)

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FIGURA 5 – Recorte do “Mapa político de Belém - PA”

Fonte: IBGE (2005)

4.2.3 Mapa EIA/RIMA

Para viabilizar a construção da obra, a Empresa Norte Energia S.A. elaborou estudos

de Avaliação de Impacto Ambiental, medida imposta pelo IBAMA (Instituto Brasileiro de

Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) a empreendimentos de grande potencial

poluidor. Este estudo analisa parte do EIA (Estudo de Impacto Ambiental), que visa avaliar os

impactos ambientais decorrentes da UHE Belo Monte e estabelecer programas de mitigação e

monitoramento dos mesmos.

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A cartografia selecionada representa a ADA (Área Diretamente Afetada) e os imóveis

urbanos afetados em uma parcela do município de Altamira, o maior município da região.

Representa, além dos sistemas viário e hidrográfico, o uso das edificações da área afetada, o

limite do reservatório, a cota 100m (cota prevista de impacto direto) e a APP (Área de

Preservação Permanente).

FIGURA 6 – Área Diretamente Afetada – Imóveis Urbanos Afetados

Fonte: EIA (2008)

Entretanto, observa-se que este mapa só representa as edificações diretamente afetadas

por meio da delimitação da cota 100m, não as diferencia das demais edificações. Ao

representá-las da mesma maneira, por exemplo, uma edificação de uso educacional dentro da

cota 100 e uma fora, a cartografia em questão negligencia o real impacto sofrido pelas

edificações na ADA, neutralizando as diferenças e a ação de remoção involuntária. Além

disso, reduz ainda mais o problema ao representar somente os imóveis afetados, a construção

em si, ocultando as dinâmicas físico-funcionais, ou seja, onde a população reside, como se

utiliza dos equipamentos e se move neste território. Os outros mapas do EIA também não

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apresentam as relações físico-funcionais da população impactada. Portanto, cabe ressaltar

ainda que ao se pensar na população afetada, deveria estar representada no mapa uma parcela

muito maior de edificações, dentre elas também onde residem os beiradeiros além da cota

100m. Como se pode verificar na figura 4 a seguir, o limite físico do impacto real para as

desapropriações, muitas vezes, terão que ser estendidos para além da cota 100m, se

adequando à delimitação final dos lotes ou às ruas que fazem limite com esta cota.

FIGURA 7 – Recorte do mapa “Área Diretamente Afetada – Imóveis Urbanos Afetados”

Fonte: EIA (2008)

4.2.4 Reflexões

Nota-se, portanto, que as duas fontes cartográficas, selecionadas para a análise

representativa do padrão de cartografia oficial, não apresentam os reais impactos decorrentes

da implementação da UHE Belo Monte padronizando os limites de abrangência, as

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diferenciações sociais, deixando invisíveis a desestruturação dos modos de vida e novos

fluxos locais (trabalho, escola, lazer) a que a parcela da população será submetida. Ao

sobrepor informações de ambos os mapas, é possível fazer uma interpretação mais específica

desses processos, dentro da cota 100m, ainda assim, uma representação insuficiente por não

abordar questões que envolvem o encadeamento dos efeitos sociais, pois somente a indicação

do raio dos impactos permite, como dito, estabelecer o grau de interferência nas dinâmicas

que de fato ocorrem no espaço, demonstrando a ausência de informações e a necessidade de

evidência de elementos que deveriam ser representados cartograficamente. Portanto, entende-

se a necessidade de uma cartografia alternativa, que supere o caráter tecnicista e superficial.

FIGURA 8 – Cartografia Alternativa da UHE Belo Monte – Os Beiradeiros

Fonte : Autoria própria, elaborada a partir do mapa do IBGE e do EIA apresentados anteriormente.

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5 DISCURSOS CONFLITANTES

Esta etapa da pesquisa tem como objetivo apresentar duas perspectivas distintas que

configuram uma situação de conflito, ao tratarem dos impactos da Usina Hidrelétrica Belo

Monte. Uma contida na Avaliação de Impacto Ambiental, elaborado pela Leme Engenharia,

que busca caracterizar a área afetada pela implantação da Usina, incluindo o âmbito dos

estudos relacionados à dimensão Socioeconômica, que interessa de perto a esta pesquisa.

O Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental, contidos nesta Avaliação, demonstram

as dimensões e abrangência dos impactos negativos e positivos da implantação da Usina nas

áreas afetadas, em seus aspectos sociais e econômicos e nos meios físico e biótico. A fim de

solucionar, mitigar ou compensar estes impactos, são propostos planos, ações e projetos,

como condicionantes ambientais, para as diversas fases de licenciamento da obra (instalação,

implantação, operação).

Por outro lado, o Dossiê Belo Monte, elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA),

apresenta uma perspectiva mais crítica e atenta aos prejuízos trazidos ao território e à

população local pela implantação da Usina. Este documento visa trazer a público a efetividade

da implementação das condicionantes ambientais como parte do licenciamento da Usina de

Belo Monte. Demonstra claramente que tais medidas revelaram-se, posteriormente, como

insuficientes, desarticuladas e, em alguns casos, não foram cumpridas. Observaram-se

também muitos descompassos entre o compromisso assumido no processo de licenciamento,

o cronograma da obra e a implementação efetiva das medidas de equiparação de danos.

O intuito do presente capítulo é confrontar dois discursos que atualmente mostram-se

conflitantes, a fim de explicitar o debate e as reflexões acerca das lógicas de produção, mais

detidamente das cartografias, gráficos e infográficos elaborados nos dois documentos, e

apontar as divergências atuais entre os documentos produzidos no âmbito do licenciamento

ambiental pela concessionária – EIA/RIMA – e as lacunas e dificuldades para a

implementação dos planos e programas de mitigação, assim como o descumprimento destas

condicionantes ambientais exigidas pelo IBAMA e evidenciadas no Dossiê Belo Monte.

Desta forma, pode-se contribuir para a formação de uma visão mais crítica da produção

cartográfica associada ao licenciamento ambiental de grandes obras no país.

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5.1 Discurso oficial – RIMA

O RIMA – Relatório de Impacto Ambiental do AHE Belo Monte – é o documento que

visa trazer, de forma acessível e sucinta, as informações analisadas no EIA (Estudo de

Impacto Ambiental): informações sobre o empreendimento, sobre a região anterior a

construção da Usina Hidrelétrica e os principais efeitos decorrentes da mesma. A Leme

Engenharia foi a empresa responsável pela realização tanto do EIA, quanto do RIMA. A

Themag, a Intertechne e a Engevix foram as responsáveis pelos estudos das comunidades,

terras e áreas indígenas. O EIA e o RIMA fazem parte do processo de licenciamento para a

Usina ser construída e entrar em funcionamento e, para isto, foram aprovados pelo IBAMA.

O Relatório afirma, inicialmente, que a construção da Usina Hidrelétrica de Belo

Monte é uma decisão muito importante, que precisa ser estudada e avaliada pelo poder

público, pelo órgão ambiental, pelos moradores da região, pelas entidades e pelos

representantes da sociedade civil.

A apresentação do mesmo consiste em ressaltar a necessidade de analisar os efeitos

decorrentes da construção de uma usina hidrelétrica, sendo eles negativos ou positivos – o que

foi feito pelo EIA ao se estudar o meio físico, o meio biótico, o meio socioeconômico e as

comunidades indígenas. Deste modo, o EIA pôde apontar grandes mudanças no projeto inicial

de engenharia presente nos Estudos de Viabilidade de 2002, a fim de construir uma usina que

“possa ser construída e operada com sustentabilidade” (RIMA, 2009, p.7), ao diminuir seus

efeitos negativos e potencializar os positivos.

A Introdução do RIMA consiste na explicação breve do que é uma usina hidrelétrica e

dos processos que precedem e decorrem de sua construção, explicando de forma sucinta as

etapas para uma usina entrar em funcionamento. Apresenta, então, o AHE Belo Monte, que

faz parte dos planos do Governo Federal de produzir mais energia até 2030, representando

5,5% do que o Brasil necessita, com uma capacidade de 11.233,2 MW. Faz parte, também, do

SIN – Sistema Interligado Nacional, que distribui e recebe grande parte da energia elétrica

que percorre o país.

O documento exibe, posteriormente, as mudanças propostas pelo EIA ao Projeto de

Engenharia a fim de diminuir os efeitos negativos: a mudança para a cidade Vitória do Xingu

de 2.500 casas para funcionários das obras (previstas anteriormente para uma vila residencial

próxima ao local da casa de força principal), a construção de 500 casas para funcionários

espalhadas pela cidade de Altamira (prevista anteriormente como uma vila fechada), a

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construção de um canal ao lado da barragem principal para passagem de peixes, a construção

de um mecanismo próximo à barragem principal para travessia de barcos e a definição de um

hidrograma ecológico para o trecho do rio Xingu entre a barragem principal e a casa de força,

para navegação e sobrevivência de peixes e plantas.

Além de citar de forma impessoal e simplista as mudanças propostas, exibidas em

forma de itens, cita da mesma forma as mudanças que já ocorreram durante o processo de

licenciamento do AHE Belo Monte: a redução da área de inundação de 1.225 km² para 516

km², a não-inundação de Terras Indígenas e a construção de apenas uma usina no Rio Xingu.

Descreve, então, um breve histórico de todo o processo, de forma sucinta e esquemática,

assim como os mapas que mostram o reservatório da proposta antiga e o da atual,

naturalizando os impactos na região que o próprio documento revela.

FIGURA 9 – Reservatório do Estudo Anterior (anos 80 e 90)

Fonte: RIMA (2009)

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Mostra, por meio de outro mapa, o local das obras principais da usina: sítio Pimental,

Bela Vista, Belo Monte e região de Canais e Diques, localizados nos municípios de Vitória do

Xingu e de Altamira. Neles, estão localizadas as áreas das construções da barragem principal,

das casas de força principal e complementar, dos reservatórios dos canais e diques e do

Xingu, e dos canais de derivação, além do Trecho de Vazão Reduzida. Este último, por sua

vez, é um trecho de 100 quilômetros do rio Xingu que terá suas águas reduzidas devido ao

desvio para a formação do Reservatório dos Canais. Entretanto, segundo o RIMA, deve ser

mantida uma quantidade mínima de água para a navegação e manutenção da vida aquática

pré-existente no local. Já as Terras Indígenas, não aparecem mais no mapa, estão ausentes.

FIGURA 10 – Como Será o AHE Belo Monte

Fonte: RIMA (2009)

Além disso, discorre sobre as demais infraestruturas necessárias para a construção da

obra, como a implantação ou melhoria de acessos, canteiros de obras, moradias e alojamentos

para trabalhadores e residências para funcionários. O prazo, segundo o documento, para a

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implantação da usina seriam de dez anos: os cinco primeiros destinados à construção das

estruturas da AHE Belo Monte e os cinco últimos, às máquinas responsáveis pela geração

total de energia e funcionamento das casas de força.

Segundo o texto, haveria um treinamento para a formação de trabalhadores

especializados para maior contratação de mão-de-obra local. Estima-se o terceiro ano da

construção como o pico das obras, necessitando de um maior número de funcionários: 18.700.

Deste modo, os trabalhadores migrantes e suas famílias seriam instalados em residências e

alojamentos em Altamira e Vitória do Xingu, além da instalação de mais infraestrutura para

suprir a nova demanda populacional: postos de saúde, escolas, áreas para prática de esporte,

além de uma rede de abastecimento e tratamento de água, esgoto e lixo. Estas novas moradias

são mostradas de forma “romantizada” através de uma representação gráfica, onde há uma

série de casas, todas de mesmo formato, cor e aparência, em um campo verde por onde passa

somente uma rua de terra batida. É visível a falta de veracidade da ilustração, que demonstra

um local imaginário, não definido na prática, sem arquitetura ou entorno em que está inserido.

Os canteiros de obras, de acordo com o RIMA, também seriam equipados de sistema

de abastecimento e tratamento de água e esgoto, sistema de drenagem, controle de incêndios e

sistema para separação de óleos e graxas, a fim de impedir a contaminação do rio e dos

igarapés nos Sítios Belo Monte, Bela Vista, Pimental e nos Canais de Derivação e Diques.

Além disso, também seria fornecido um sistema de energia, de telefonia e de retransmissão de

TV para a região das obras.

A fim de melhorar os acessos e complementar os já existentes pela Rodovia

Transamazônica e pelo Rio Xingu, é proposta também uma melhoria nos travessões e a

criação de um porto próximo ao Sítio Belo Monte, para transporte de materiais, insumos e

equipamentos durante o período das obras.

Para a construção das estruturas principais nos sítios Pimental e Belo Monte, é

necessário o uso e exploração das Áreas de Empréstimo (identificadas nos estudos do EIA),

de pedreiras e de jazidas de areia. A sobra de material teria como finalidade os chamados

bota-foras, grandes aterros definitivos – localizados em áreas escolhidas seguindo critérios

técnicos e ambientais, segundo afirma o RIMA. Além disso, também recebe um incentivo à

produção local de tijolos e madeiras.

No capítulo “Conhecendo a Realidade da Região”, é apresentado o local determinado

para a construção da Usina. Descreve-se a Bacia do rio Xingu como uma área importante para

conservação do meio ambiente, por ser formada por Terras Indígenas e Unidades de

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Conservação, áreas protegidas por lei. Entretanto, há uma ressalva de que a área em questão

não se encontra preservada mesmo antes da implantação do AHE Belo Monte: “Mas, mesmo

bastante protegida, existe desmatamento na bacia do rio Xingu” (RIMA, 2009, p.28). Lista

então, em forma de itens, as causas principais de desmatamento, como o cultivo de soja e de

gado, a extração de madeira e o crescimento da população decorrente das principais estradas

da região. O documento não prevê o possível impacto da construção da Usina nestas áreas

protegidas, apesar de listar os impactos decorrentes de outros agentes da região.

A seguir, apresenta uma caracterização feita de acordo com as áreas de influência da

usina hidrelétrica e seus respectivos impactos estudados pelo EIA. São elas: Área de

Influência Indireta (AII), que sofrem impactos de forma indireta através dos sofridos pelas

áreas vizinhas às obras; Área de Influência Direta (AID), áreas no entorno do AHE Belo

Monte e do reservatório; e a Área Diretamente Afetada (ADA), áreas ocupadas pelas

principais estruturas e infraestruturas, incluindo as áreas dos reservatórios, as Áreas de

Preservação Permanente e o Trecho de Vazão Reduzida. O documento apresenta um estudo

detalhado de cada uma dessas áreas, descrevendo o meio físico, o biótico e o socioeconômico.

“Populações tradicionais ribeirinhas – cerca de 350 famílias – moram nas Reservas

Extrativistas (Resex) do Rio Iriri, do Riozinho do Ânfrísio, Verde para Sempre e do

Médio Xingu, às margens dos rios Xingu, Iriri e Curuá. Essas populações têm seu

modo de vida dependente do rio, de onde tiram seu sustento, utilizando e conservando,

ao mesmo tempo, os recursos naturais dos quais dependem.” (RIMA, 2009, p. 45)

Apesar de ressaltar e caracterizar as populações tradicionais estudadas, baseadas no modo de

vida ribeirinho, os impactos por elas sofridos nas áreas de influência, entretanto, são tratados

de forma apenas informativa, independente de serem negativos ou positivos. Dentre as

ocupações tradicionais presentes no território, há 21 comunidades quilombolas, nos

municípios de Gurupá e Porto de Moz, presentes na Área de Influência Indireta, que não

possuem território demarcado segundo o jurídico (RIMA, 2009). Apesar de citados no RIMA,

não há nenhuma análise ou medida pensada para esta população, que também está situada na

área afetada pela construção da Usina.

A seguir, são apresentadas as Comunidades Indígenas. Divididas em Grupo 1

(composto pelas Terras Indígenas Paquiçamba e Arara da Volta Grande do Xingu e pela Área

Indígena Juruna), fruto de estudos mais detalhados por fazer parte da AID, e Grupo 2

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(composto pelas Terras Indígenas Trincheira Bacajá, Araram Cachoeira Seca, Kararaô,

Koatinemo, Araweté/Igarapé Ipixuna e Apyterewa). A Fundação Nacional do Índio (Funai)

também ressaltou a importância do estudo da população indígena que vive na cidade de

Altamira e nas margens do rio Xingu.

FIGURA 11 – Terras Indígenas Localizadas na Região do AHE Belo Monte

Fonte: Rima (2009)

Ao descrever as Comunidades Indígenas e os impactos sofridos pelas mesmas, o

Relatório ressalta os impactos positivos, ao relatar que as Comunidades se tornam mais

conhecidas devido aos anúncios e discussões gerados pelo AHE Belo Monte, o que torna suas

organizações internas ainda mais fortes. Além disso, propõe diversos programas e planos de

auxílio e ajuda a estas comunidades a fim de diminuir as influências externas e os impactos

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negativos, como o Programa de Comunicação com a População Indígena, o Plano de

Fortalecimento Institucional e de Direitos Indígenas e o Plano de Sustentabilidade Econômica

da População Indígena.

Assim, ressalta os aspectos positivos decorrentes da influência da construção da obra e

cria ações de mitigação para diminuir os impactos, mas não cita os reais impactos negativos a

que estão expostas estas comunidades e suas terras. O trecho “Os Juruna de Paquiçamba

habitam a margem esquerda do rio Xingu, entre o Igarapé Paraíso e Mangueira, na região da

Volta Grande do Xingu onde haverá redução de vazão caso o AHE Belo Monte venha a ser

construído” (RIMA, p. 49) exemplifica um dos casos em que o relatório descreve um impacto

que interfere no modo de vida da população em questão, mas o naturaliza, deixando ausentes

os reais impactos ocasionados.

“Parte destes índios terá que ser reassentada por causa do AHE Belo Monte. Isto

porque habitam as margens dos Igarapés Ambé e Altamira, na cidade de Altamira, e as

margens do rio Xingu, nos trechos que sofrerão os efeitos do Reservatório do Xingu”

(RIMA, 2009, p. 57)

Neste trecho, também é possível observar como as medidas e os planos propostos pelo EIA-

RIMA não abarcam todos os impactos sofridos por esta população, especialmente em relação

à população indígena mais afetada, que reside na cidade de Altamira e não possui seu

território demarcado e protegido como nas TIs, que por sua vez também sofrem os impactos.

O desenvolvimento do documento retoma as informações ditas anteriormente, com

mais detalhes e informações. Assim como foi feito com as populações ribeirinhas, descreve e

caracteriza as Áreas de Influência Direta e Indiretamente Afetada. Diferencia as áreas

ressaltando o que elas abrangem.

Sobre a ADA, há um mapa de localização com os equipamentos da UHE Belo Monte.

Neste, há a representação somente do rio, das estradas principais, travessões e dos

equipamentos decorrentes da construção da obra, como os reservatórios, os diques e canais, as

casas de força e o vertedouro, além do Trecho de Vazão Reduzida. Entretanto, o mapa não

mostra estes elementos em um contexto real, mas sim em um pano de fundo verde.

Ausentando, assim, o real contexto dos sistemas ambientais e das populações impactados

pelos mesmos.

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FIGURA 12 – Área Diretamente Afetada

Fonte: Rima (2009)

FIGURA 13 – Trechos Ambientais - AID

Fonte: Rima (2009)

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Ao iniciar a discrição das áreas, discorre sobre a AID, onde houve estudos

socioeconômicos nos municípios de Altamira, Anapu, Brasil Novo, Senador José Porfírio e

Vitória do Xingu e onde encontram-se as principais estradas da região e os Núcleos de

Referência Rural (locais onde há equipamentos de saúde, educação e lazer utilizados pelos

moradores da região e do entorno). A fim de uma maior compreensão dos impactos nesta

região, o EIA-RIMA a divide em trechos de acordo com o meio ambiente e modo de vida da

população: Trecho do Reservatório do Xingu, do Reservatório dos Canais, de Vazão

Reduzida e de Restituição de Vazão. O mapa acima, em que são mostradas estas divisões,

apresenta as mesmas ausências que o mapa da ADA, apesar de indicar as Terras Indígenas.

Segundo o Relatório, a área urbana da AID, que abriga a maior parte da população

(oitenta por cento), consiste em menos de um por cento do total de sua área de influência

direta, de 13.940 quilômetros de extensão. São apresentadas características de cada área,

como as características dos meios físico e biótico, os usos dos lotes, a presença ou não de

estradas, a composição urbana e rural, as principais atividades das populações residentes e as

localidades que a compõe (como aglomerados, povoados e núcleos de referência rural,

localizados em um mapa similar aos já mostrados nas figuras 4 e 5).

Ao analisar esta caracterização, é possível destacar ainda o caráter asséptico do

discurso do RIMA, como no caso em que o mesmo somente cita o rio como um meio muito

utilizado pela população ribeirinha, sendo em alguns casos a única alternativa de transporte.

Ao enfatizar, em seguida, que as principais atividades econômicas são a criação de gado e a

plantação de cacau e pupunha, o Relatório diminui a importância do rio como modo de vida

da população que vive no entorno – importância, esta, reconhecida em outros momentos do

relatório, apresentando uma contradição no discurso, que pode ser visto no seguinte trecho:

“A pesca é muito importante para quem mora nos imóveis rurais que ficam às margens

do rio Xingu e nas ilhas. Ela tanto pode ser uma atividade para completar a

agricultura, como pode ser a principal atividade econômica de várias pessoas. O rio

também é muito importante para as pessoas irem a outras localidades e até Altamira,

onde vendem os produtos da agropecuária, da pesca e do extrativismo. É também em

Altamira que as pessoas buscam vários serviços, como médicos, bancos e compras em

geral.” (RIMA, 2009, p. 79)

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Este caráter impessoal, discursivo, informativo, reduz os efeitos negativos causados pela

implantação da UHE de Belo Monte, como demonstra o trecho a seguir, onde é apresentada a

desterritorialização de uma vila inteira, informando somente dados quantitativos sobre o local

e ausentando os reais impactos gerados para esta população que terá seu modo de vida

completamente abalado e transferido para outro local:

“A Vila de Santo Antônio será diretamente afetada pela construção do AHE Belo

Monte. Está entre a Transamazônica e o rio Xingu e vai precisar mudar de lugar. São

105 imóveis e 35 famílias que fazem um total de 151 moradores. Os lotes são usados

para a agricultura de subsistência (principalmente o plantio de feijão) e para lazer.”

(RIMA, 2009, p. 69)

Ao iniciar o capítulo seguinte, sobre os Impactos Ambientais, é apresentado como fato as

mudanças provocadas pela implantação da Usina, como mudanças na paisagem, no rio Xingu

e nos Igarapés, na fauna e na flora e na vida das pessoas da região, além dos novos moradores

que chegariam para trabalhar nas obras e compartilhariam do sistema médico, escolar, de

saneamento e de segurança. Cita, ainda, que “muitos imóveis na área rural e na cidade de

Altamira serão atingidos. Por causa disso, muitos moradores terão que morar e trabalhar em

outros lugares” (RIMA, 2009, p. 80). Ao relatar o brusco processo de transformação a ser

enfrentado pela população local, o RIMA o apresenta de maneira mais uma vez naturalizada,

como demonstrado no exemplo anterior. Só que desta vez, reaparece seguido de uma

compensação por impactos positivos como novos empregos na região ou a grande quantidade

de energia gerada para o país.

O mesmo ocorre ao longo deste capítulo inteiro: apresenta-se uma ação decorrente da

implantação do aproveitamento hidrelétrico, a seguir seus impactos negativos, compensados

pelos positivos e por fim os programas e as medidas estabelecidos pelo EIA-RIMA a fim de

“prevenir, diminuir ou compensar os efeitos dos impactos negativos e para aumentar os

benefícios dos impactos positivos” (RIMA, 2009, p. 80). A primeira ação descrita é a dos

estudos de campo que se iniciaram desde 1975, impactando a região com pesquisas, reuniões,

reportagens, visitas técnicas às residências, etc. As expectativas da população em relação aos

possíveis impactos negativos são compensados, no texto, pela expectativa de novos empregos.

A fim de minimizar este impacto, é proposto o Plano de Relacionamento com a População,

dentro do qual há o Programa de Interação Social e Comunicação.

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Também há uma grande geração de expectativa nas populações indígenas, como visto

anteriormente. Neste caso, é proposto um Programa de Comunicação com a População

Indígena, ligado ao Plano de Relacionamento com a População, além do Plano de

Fortalecimento Institucional e Direitos Indígenas e um Plano de Sustentabilidade Econômica

da População Indígena.

Devido à contratação de mão-de-obra prevista para o máximo de 18 mil empregos

diretos e 23 mil indiretos, os impactos analisados pelo documento são o aumento da

população e da ocupação de forma intensa e desordenada do solo, congestionando também os

equipamentos pré-existentes nas cidades e aumentando a drogadição, a violência e a

prostituição. Isto afeta também as populações e áreas indígenas, que sofrem ainda mais com a

pressão sobre suas terras. Para tanto, são propostos os Projetos de Educação Ambiental,

ligados ao Programa de Comunicação com a População Indígena; o Programa de Saúde

Indígena, ligado ao Plano de Saúde Pública; o Plano de Readequação do Serviço de Educação

para a População Indígena; o Plano de Melhoria das Habitações Indígenas; o Programa de

Segurança Territorial das TIs; o Plano de Saneamento Básico para as TIs e o Plano de

Sustentabilidade Econômica da População Indígena, que abrange o Programa de Capacitação

de Mão-de-obra Indígena; além da articulação institucional com Programas do Governo

Federal, a fim de “melhorar as condições de vida das populações indígenas e fazer com que

suas TIs fiquem mais atraentes para elas lá permanecerem” (RIMA, 2009, p. 89)

O Relatório cita ainda aspectos positivos decorrentes do grande fluxo migratório de

trabalhadores, como o aumento do número de trabalhos, o estímulo a novas atividades

produtivas, a regularização fiscal de empresas e a consequentemente o aumento da

arrecadação de impostos. As ações preventivas propostas são: o Plano de Articulação

Institucional, o Programa de Incentivo à Capacitação Profissional e ao Desenvolvimento de

Atividades Produtivas, o Plano de Requalificação Urbana, o Projeto de Acompanhamento e

Monitoramento Social das Comunidades do Entorno da Obra e das Comunidades Anfitriãs e o

Plano de Saúde Pública.

Dentro destes planos e programas, estão incluídas as medidas propostas para a Vila de

Santo Antônio, integralmente desterritorializada. A fim de minimizar os impactos da

transposição desta população, portanto, o EIA propõe a discussão com a população para a

escolha de um novo local, de forma transparente e participativa através do Plano de

Atendimento à População Atingida, além da participação na recomposição dos equipamentos

sociais e econômicos na área rural, dentro do Plano de Atendimento à População Atingida.

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Nas áreas onde serão formados os Reservatórios, na parte rural da ADA, a

implantação da Usina impacta 2.822 pessoas, segundo o RIMA. A aquisição dos imóveis, a

transferência da população para outras áreas e a perda das atividades produtivas locais são os

impactos que seriam compensados ou minimizados pelo Plano de Atendimento à População

Atingida, pelo Programa de Negociação e Aquisição de Terras e Benfeitorias, pelo Programa

de Recomposição de Atividades Produtivas Rurais e pelo Plano de Atendimento à População

Atingida, que contém o Programa de Acompanhamento Social, em que há monitoria e

acompanhamento das populações que tem seu modo de vida interferido.

Já na área considerada urbana pelos estudos em questão, o impacto alcança 16.420

pessoas, que “deverão sair antes do enchimento do reservatório” (RIMA, 2009, p. 93) por

estarem localizados em terrenos abaixo da cota 100. Além dos moradores que serão

desterritorializados, o Relatório reconhece os que moram na vizinhança também como

impactados, por sofrerem grandes mudanças com isto. As medidas propostas também estão

incluídas no Plano de Atendimento à População Atingida, além do Programa de Negociação e

Aquisição de Imóveis e Benfeitorias, o Programa de Recomposição de Atividades Produtivas

Urbanas, o Programa de Acompanhamento Social e o Programa de Intervenção em Altamira,

que faz parte do Plano de Requalificação Urbana, que visa planejar a realocação destas

populações.

Outra ação que interfere na região da obra é a construção de estradas, canteiros e

outras estruturas principais, como alojamentos, linhas de transmissão e etc. Segundo o RIMA,

estas atividades geram impactos como desmatamentos, grandes movimentos de terra

(interferindo diretamente na paisagem), exploração de áreas de empréstimo, de pedreiras e

jazidas de areia, além das novas áreas de bota-fora para descarte de material. Os impactos

positivos decorrem do maior acesso à região, que facilita o transporte de mercadorias para

compra e venda, o acesso aos serviços públicos, além da consequente diminuição do custo do

transporte. A população indígena também é beneficiada pelo melhor acesso para

comercializar, entretanto, também sofre impactos negativos, como a pressão sobre as TIs

decorrente do maior acesso à região, a piora da qualidade do ar e o aumento do nível de

ruídos. Para potencializar os impactos positivos, o RIMA prevê o Plano Ambiental de

Construção, que inclui o Projeto de Segurança e Alerta. Para os negativos, o Plano de

Relacionamento com a População, que abrange o Programa de Interação Social e

Comunicação, o Programa de Educação Ambiental e o Programa de Recuperação de Áreas

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Degradadas, contido no Plano Ambiental de Construção – apesar deste programa, os estudos

preveem que há locais que sofrerão mudanças definitivas na paisagem.

Para a instalação da infraestrutura e a construção das obras principais do AHE Belo

Monte, foram previstos pelos estudos grandes interferências nos meios físicos e bióticos da

região, como a supressão de vegetação e matas ciliares, a produção de poeira e consequente

modificação do ar, o aumento do nível de ruídos, deslizamentos de terras, erosões, a piora da

qualidade da água, a interrupção dos Igarapés do Trecho do Reservatório dos Canais e,

consequentemente, o afastamento de espécies de animais de seus biomas naturais e a extinção

de algumas espécies. Como forma de compensação e diminuição destes impactos, há o

Programa de Recuperação de Áreas Degradadas; os Planos de Conservação dos Ecossistemas

Terrestres e dos Ecossistemas Aquáticos; o Programa de Monitoramento da Estabilidade das

Encostas Marginais e de Processos Erosivos, que faz parte do Plano de Acompanhamento

Geológico/Geotécnico e de Recursos Minerais; o Programa de Monitoramento dos Igarapés

Interceptados pelos Diques e o Programa de Monitoramento Limnológico e da Qualidade da

Água, incluídos no Plano de Gestão de Recursos Hídricos; e o Programa de Conservação e

Manejo de Habitats Aquáticos, incluído no Plano de Conservação dos Ecossistemas

Aquáticos.

Apesar destes impactos negativos que causam influências e interferências diretas no

meio ambiente, o EIA ainda chama atenção para possíveis aspectos positivos, de forma a

compensar os efeitos negativos da obra, como é mostrado no trecho a seguir:

“Os peixes que vivem nesses Igarapés, e que dependem das planícies que serão

inundadas, sofrerão consequências negativas, com o desaparecimento de espécies. Mas

esse impacto poderá ser compensado em parte no futuro, com a inundação dos

Igarapés na margem esquerda para a formação do Reservatório dos Canais, criando

novos ambientes para peixes.” (RIMA, 2009, p. 101)

Ainda devido às obras principais, especificamente no Sítio Pimental, o Relatório prevê

grandes impactos para a população indígena, como a interrupção temporária dos canais do

Rio Xingu e o consequente aumento da velocidade das águas em outros canais livres,

comprometendo a navegação na área do Sítio Pimental e nos arredores, o que dificulta o

acesso a população indígena para outras regiões (onde se encontram equipamentos e serviços

públicos, além de possíveis familiares) e a comercialização de seus produtos também. Além

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disso, a piora da qualidade da água, afeta diretamente a pesca, fonte de subsistência e renda de

grande parte da população indígena e pode afetar a água também utilizada para consumo. A

fim de diminuir todos estes impactos, são propostos o Projeto de Segurança e Alerta, que faz

parte do Plano Ambiental de Construção; o Programa de Comunicação com a População

Indígena; o Programa de Monitoramento da Qualidade das Águas Superficiais e Subterrâneas,

incluído no Plano de Gerenciamento de Recursos Hídricos; o Projeto de Monitoramento da

Pesca, incluído no Plano de Conservação dos Ecossistemas Aquáticos; o Programa de

Garantia de Segurança Alimentar e Nutricional, incluído no Plano de Sustentabilidade

Econômica da População Indígena; o Programa de Abastecimento de Água, que faz parte do

Plano de Saneamento Básico da População Indígena; e os Projetos de Incentivo à Pesca

Sustentável e de Aquicultura de Peixes Ornamentais, incluídos no Plano de Conservação dos

Ecossistemas Aquáticos.

O Núcleo de Referência Rural São Pedro se encontra na mesma região e,

consequentemente, sofre estes mesmos impactos. Portanto, o RIMA propõe o Plano de

Atendimento à População Atingida, responsável pelo reassentamento dos 60 moradores da

região; o Programa de Interação Social e Comunicação, que faz parte do Plano de

Relacionamento com a População, responsável por proporcionar uma escolha consciente da

população sobre a forma de negociação mais adequada para cada um; e o Plano Ambiental de

Construção e o Programa de Acompanhamento Social, incluídos no Plano de Atendimento à

População Atingida, responsáveis por possibilitar o reassentamento dos moradores.

A partir dos estudos realizados, o RIMA prevê que, a partir do quinto ano da obra,

dois terços da população migrante (cerca de 32 mil pessoas) vão embora da região, causando

grandes impactos principalmente nas cidades de Altamira e Vitória do Xingu. Dentre eles, é

prevista a diminuição do número de empregos e consequentemente de renda de parte da

população. Propõe, então, o Plano de Articulação Institucional, o Programa de Incentivo à

Capacitação Profissional e ao Desenvolvimento de Atividades Produtivas, o Plano de

Relacionamento com a População e o Programa de Orientação e Monitoramento da População

Migrante, para preparar e auxiliar as pessoas a encontrarem novos empregos e fontes de

renda, sendo eles dentro ou fora da região da Usina.

Para reaproveitar os equipamentos existentes e que sofrerão diminuição em seu uso,

como serviços sociais, escolares e de saúde, é proposto o Plano de Articulação Institucional.

Também propõe o Programa Federal Territórios da Cidadania, na área rural, responsável pelo

fortalecimento da economia agropecuária. Para a proteção das áreas indígenas e a diminuição

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da pressão nas proximidades das Tis, é proposto o Plano de Segurança Territorial das Terras

Indígenas.

O Estudo de Impacto Ambiental também prevê e analisa os grandes impactos causados

pelo enchimento dos reservatórios sobre a vegetação da região, que afeta tanto o próprio meio

ambiente local, sua fauna e flora, quanto os proprietários e trabalhadores rurais. Segundo o

Relatório, 24% da área total dos reservatórios corresponde às florestas. Além do

desmatamento, há a consequente formação de “ilhas florestais”. Estas alterações também

afetam as populações indígenas, causando um aumento de pressão sobre as TIs vindo da

população rural extrativista, as possíveis perdas culturais, devido à grande alteração da

paisagem, e alteração de meios de subsistência e renda.

Frente a estes impactos, são propostos o Programa de Desmatamento e Limpeza das

Áreas dos Reservatórios, o Projeto de Reestruturação do Extrativismo Vegetal, que faz parte

do Plano de Atendimento à População Atingida, o Plano de Conservação dos Ecossistemas

Terrestres, o Plano de Conservação do Ecossistema Aquático, o Programa de Monitoramento

da Qualidade das Águas, incluído no Plano de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, o

Programa de Proposição de Áreas de Preservação Permanente, o Plano Ambiental de

Conservação e Uso do Entorno dos Reservatórios Artificiais e o Programa de Compensação

Ambiental, que faz parte do Plano de Conservação dos Ecossistemas Terrestres, responsável

pela criação de novas Unidades de Conservação (UCs).

O Relatório reconhece, ainda, que o enchimento dos reservatórios e as mudanças

decorrentes dele na paisagem interferem nas áreas de lazer da população local: muitas das

praias existentes na região serão atingidas. Além de utilizadas como lazer, há muitas

atividades econômicas e infraestruturas no local, como comércios e balneários. Para

minimizar este impacto, é proposto o Plano de Atendimento à População Atingida, através do

Programa de Restituição/Recuperação das Atividades de Turismo e Lazer.

A área dos reservatórios abrange também sítios e patrimônios arqueológicos. O

Relatório propõe, para minimizar e compensar estes impactos, o Plano de Valorização do

Patrimônio, através dos Programas de Prospecção e de Salvamento Arqueológico, e o Plano

de Relacionamento com a População, a fim de diminuir a perda cultural local e regional e

valorizar o patrimônio cultural.

Segundo o RIMA, há jazidas de argila nas planícies de inundação e nos aluviões dos

igarapés Ambé e Panelas que não poderão mais ser exploradas devido ao enchimento do

Reservatório do Xingu. Propõe, então, que a extração passe para uma nova área em Altamira,

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supervisionado pelo Programa de Acompanhamento das Atividades Minerárias dentro do

Plano de Acompanhamento Geológico/Geotécnico e de Recursos Minerais.

É ressaltado, mais uma vez, no documento analisado, o enorme impacto sofrido pelos

peixes e pescadores do Rio Xingu. O barramento do rio e a formação dos reservatórios

interferem muito nas espécies de peixes ali presentes, sendo algumas mais favorecidas e

outras muito prejudicadas, mudando a dinâmica de quem vende ou se alimenta dos peixes do

rio. A solução mais adequada, segundo o Relatório, é um Projeto de Implantação e

Monitoramento de Mecanismo para Transposição de Peixes, responsável pela formação de

um canal que deriva da margem direita do rio, no Sítio Pimental – ao invés da escada de

peixes proposta pelos Estudos de Viabilidade de Engenharia. O RIMA ressalta os benefícios

que podem decorrer disto: os peixes adaptados às novas condições são de maior valor

econômico e de consumo. Apesar disto, propõe o Plano de Conservação dos Ecossistemas

Aquáticos, para monitoramento das espécies de peixes, e o Projeto de Incentivo à Pesca

Sustentável, para auxiliar a adaptação dos pescadores.

Os estudos realizados indicam que os igarapés de Altamira, ao ser formado o

Reservatório do Xingu, sofrerão modificações: o aumento dos níveis das águas (podendo

chegar na cota 100 m nos períodos de cheia) e a diminuição da velocidade das mesmas,

devido ao bloqueio causado pelo reservatório, que impede a circulação das águas. Estas

modificações, somadas à quantidade de esgoto sem tratamento lançada nas águas, causarão a

piora de sua qualidade e, consequentemente, o crescimento de plantas aquáticas que, por sua

vez, prejudicam os peixes e o uso da água (RIMA, 2009, p. 117). São propostos, então, o

Programa de Intervenção em Altamira, dentro do Plano de Requalificação Urbana,

responsável pela implantação da rede de saneamento básico nas áreas mais próximas, e o

Plano de Gestão de Recursos Hídricos, para melhoria da qualidade das águas através da

diminuição de resíduos poluentes, da mudança da população que reside e será transferida

deste local para outro e a criação de áreas verdes nas margens dos igarapés.

O problema da qualidade das águas ocorre também no Reservatório dos Canais,

devido à sua grande profundidade, à formação de poças e áreas alagadas nas laterais do

reservatório, onde as águas ficam mais paradas, ao apodrecimento das vegetações pré-

existentes que serão alagadas e ao crescimento de plantas aquáticas. Além do Plano de Gestão

dos Recursos Hídricos já citado, as medidas propostas estão dentro do Plano Ambiental de

Conservação e Uso do Entorno do Reservatório Artificial, obrigatório para todos os

reservatórios segundo o Conselho Nacional de Meio Ambiente, sendo elas: a retirada da

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vegetação existente, o mantimento de água corrente para renovação da água dentro do

reservatório e o enriquecimento da vegetação das margens através do planto e

reflorestamento.

Já as localidades da ADA, situados próximas aos reservatórios, sofrerão impactos

socioeconômicos, segundo o documento analisado, como: perda de imóveis, benfeitorias,

renda, fontes de subsistência e equipamentos sociais e interrupção de estradas e acessos. Para

minimizar estes impactos e auxiliar a população, é proposto o Plano de Atendimento à

População Atingida, que abrange projetos como o de Recomposição da Infraestrutura Viária,

responsável pela diminuição dos impactos sofridos pela população rural devido à interrupção

dos acessos aos equipamentos sociais e à cidade de Altamira. Dentro desta cidade, diversas

ruas e acessos também serão interrompidos, separando diversos bairros e regiões

anteriormente conectadas. Frente a isto, o RIMA propõe o Programa de Intervenção em

Altamira, dentro do Plano de Requalificação Urbana, responsável por novos acessos.

Os estudos em questão propõem, ainda, que o Projeto de Recomposição da

Infraestrutura Viária construa o máximo possível de acessos terrestres ao Reservatório dos

Canais, a fim de potencializar sua utilização, junto ao Reservatório do Xingu, como uma nova

opção de acesso. Entretanto, relatam também o aumento do “banzeiro” no reservatório –

ondas provocadas pelo vento –, que dificultam a navegação e o acesso entre as localidades

beiradeiras. Propõem, então, o Programa de Monitoramento do Microclima, incluído no Plano

de Gerenciamento de Recursos Hídricos, e o Projeto de Segurança e Alerta, dentro do Plano

Ambiental de Construção, a fim de auxiliar e permitir a readequação das populações

beiradeiras às novas condições de navegação. Em específico à situação da população

indígena, há o Programa de Garantia das Condições de Acessibilidade das Populações

Indígenas a Altamira. O mapa que demonstra este novo acesso apresenta os mesmos

problemas dos já citados anteriormente, omitindo o entorno e a real condição em que está

inserido, além de ausentar também a formação original do rio Xingu.

FIGURA 14 – Novo Trajeto para Navegação nos Reservatórios do Xingu,

dos Canais e nos Canais de Derivação

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Fonte: Rima (2009)

O RIMA cita, ao falar sobre a Etapa de Operação do AHE Belo Monte, um impacto

positivo: o aumento da quantidade de energia a ser gerada e transmitida para o SIN (Sistema

Interligado Nacional), regulada pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) do

Governo Federal, que tem como objetivo distribuir energia elétrica de forma segura e com

custos baixos. Isto ocorrerá através da Subestação Xingu (localizada no mapa a seguir, que

segue o modelo dos mapas anteriores), que levará a energia para o norte do país através do

futuro linhão Tucuruí-Macapá-Manaus e para a ligação Norte-Sul através da ampliação de

linhões a partir da UHE Tucuruí. A Subestação Altamira, já existente, também receberá

energia por meio da construção de um novo linhão, beneficiando também a cidade de

Altamira.

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FIGURA 15 – Interligação do AHE Belo Monte ao SIN

Fonte: Rima (2009)

Segundo os estudos em questão, o aumento de energia proporcionado à cidade de

Altamira e à região de seu entorno, somado à medida compensatória determinada pelo

Governo chamada Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos para fins

de Geração de Energia (CF) (através de recursos financeiros para os locais de terras inundadas

por empreendimentos hidrelétricos para os municípios de Altamira, Vitória do Xingu e Brasil

Novo), impulsionará o desenvolvimento das atividades econômicas, que, por sua vez,

aumentará também a arrecadação de impostos e tributos e, consequentemente, gerará mais

recursos para os municípios da região. Frente a isto, o RIMA propõe o Plano de Articulação

Institucional, a fim viabilizar este impacto e capacitar os municípios a administrar os recursos

gerados.

O Estudo de Impacto Ambiental também analisou, segundo o RIMA de forma

cuidadosa, os impactos gerados pela diminuição do volume das águas no Trecho de Vazão

Reduzida, “para se saber qual deve ser o Hidrograma Ecológico a ser liberado no rio Xingu, a

partir do sítio Pimental, para diminuir os impactos negativos sobre o meio ambiente e os

modos de vida da população” (RIMA, 2009, p.129). Os impactos analisados são: a

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interrupção ou maior dificuldade de navegação nos períodos de seca, que afeta diretamente no

modo de vida da população beiradeira; a perda de ambientes para reprodução, alimentação e

abrigo de espécies de peixes e outros animais; a formação de poças no entorno, que favorece a

criação de mosquitos que transmitem doenças; a piora da qualidade das águas, que favorece o

desenvolvimento de plantas aquáticas; o prejuízo para a pesca e seu papel como fonte de

renda e de subsistência de grande parte da população beiradeira; e o possível aumento da

atividade garimpeira, o que aumenta o conflito com as populações indígenas e a pressão sobre

as TIs.

O Hidrograma Ecológico proposto visa o equilíbrio entre a geração de energia – que é,

segundo o relatório, um projeto estruturante para o país – e a liberação de vazões mínimas

para o Trecho de Vazão Reduzida, a fim de diminuir em alguma escala os impactos citados.

Aliado a ele, é proposto o Plano de Gerenciamento Integrado da Volta Grande do Xingu, que

envolve, dentre outras ações, o Programa de Monitoramento das Condições de

Navegabilidade e das Condições de Vida, o Projeto de Monitoramento da Atividade

Garimpeira, o Projeto de Monitoramento da Largura, Profundidade e Velocidades em Seções

do Trecho de Vazão Reduzida, o Programa de Monitoramento da Qualidade das Águas

Superficiais, o Programa de Monitoramento da Dinâmica das Águas Subterrâneas, e, voltados

para as questões das populações indígenas, o Projeto de Monitoramento do Dispositivo de

Transposição de Embarcações, o Projeto de Monitoramento da Navegabilidade e das

Condições de Escoamento da Produção das TIs e o Projeto de Monitoramento das Condições

de Vida das Populações Indígenas das TIs Paquiçamba, Arara da Volta Grande do Xingu e

Trincheira Bacajá.

No fim deste capítulo, é apresentada uma tabela na qual são categorizados os

principais impactos, o período em que ocorrerão e as correspondentes etapas da construção do

AHE Belo Monte, divididas em Estudos e Projetos, Construção da Infraestrutura, Enchimento

dos Reservatórios e Operação. Deste modo, os impactos são demonstrados, como mencionado

anteriormente, de forma asséptica, neutra, pragmática. São categorizados em alguns grupos,

delimitando o tempo em que ocorrerão – o que traz a ideia de que são finitos, limitados, têm

início, meio e fim. Esta forma de apresentação, em forma de tabela, racionaliza e ausenta os

reais impactos e as possíveis influências e decorrências destes, mesmo que de forma indireta.

FIGURA 16 – Tabela de Impactos Causados pelo AHE Belo Monte

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Fonte: Rima (2009)

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No capítulo seguinte do documento, “Planos, Programas e Projetos Ambientais”, são

reapresentadas as ações propostas através dos estudos e das análises dos impactos. Estas,

segundo o Relatório, são de responsabilidade do empreendedor da obra, em parcerias com o

Governo Federal, o Governo Estadual, as prefeituras municipais, além de ONGs e outras

instituições. Ademais, o empreendedor deve conciliá-las com os planos e programas já

existentes por parte dos Governos Federal, Estadual e Municipal que visam ao

desenvolvimento sustentável da região. Um dos princípios básicos para a realização destas

ações, segundo o EIA, é o Processo de Participação Popular, que propõe que as comunidades

envolvidas conheçam e participem das ações, acompanhando a forma em que são realizadas

pelo empreendedor.

Vale ressaltar que, dentro do Plano de Atendimento à População Atingida, há os

Programas de Negociação e Aquisição de Terras e Benfeitorias nas Áreas Rural e Urbana.

Estes visam ao tratamento das questões que envolvem as transferências obrigatórias das

populações residentes das ADAs, a definição da melhor opção para cada grupo de acordo com

suas especificidades e demandas e a garantia de transparência sobre os direitos da população e

sobre a aplicação de critérios jurídicos e técnicos das indenizações.

Para as comunidades rurais, o EIA propõe formas de aquisição ou indenização, como:

Indenização em Dinheiro, Relocação Assistida (relocação do proprietário em uma área na

região com condições equivalentes às originais, com direito a uma assessoria para apoio

social e jurídico e informações para auxiliar na compra do novo imóvel), Reassentamento em

Áreas Remanescentes (permite a permanência do proprietário nas áreas que sobram após a

desapropriação, desde que atendido à legislação) e Reassentamento Rural (implantado pelo

empreendedor, o reassentamento deve ser um projeto resultado de discussão coletiva, para

pequenos proprietários e posseiros, para trabalhadores ou quem tem posse de minifúndios,

para atingidos que não possuem direito à propriedade ou para quem se encontra em condições

de vulnerabilidade social).

A fim de categorizar e funcionalizar a relação entre os atingidos e as possíveis formas

de indenização, o RIMA apresenta uma nova tabela, que, pelo seu próprio caráter de

apresentação, reduz e ausenta as especificidades de cada morador e a complexidade de suas

desterritorializações e reterritorializações. O mesmo ocorre com a população urbana atingida,

para as quais são oferecidos tratamentos similares aos da população rural, resumidos também

em forma de tabela:

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FIGURA 17 – Tabela de Grupos Atingidos pelo AHE Belo Monte

e Projetos para a Área Rural

Fonte: Rima (2009)

FIGURA 18 – Tabela de Grupos Atingidos pelo AHE Belo Monte

e Projetos para a Área Urbana.

Fonte: Rima (2009)

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Por fim, o RIMA frisa a importância da construção do AHE Belo Monte, tanto para o

desenvolvimento do país devido ao aumento significativo de energia proporcionado para o

SIN (Sistema Interligado Nacional) e a contribuição deste sistema para as regiões Norte,

Nordeste, Sudeste e Sul, quanto para o desenvolvimento da própria região em que será

implantado. Entretanto, ressalta a importância da preparação desta região como um passo

imprescindível para a concessão da obra. Para isto, considera necessário que os planos dos

Governos Estadual e Federal e os propostos pelo EIA-RIMA sejam colocados em prática.

Desta forma, segundo o documento, a região – que já passa por problemas de desmatamento,

de pressão e disputas de terra, de ameaça à pesca tradicional e às espécies de alguns animais e

peixes, além de problemas de falta de infraestrutura, de saneamento básico e de sistemas de

saúde – poderá se fortalecer institucionalmente e alcançar um desenvolvimento econômico

sustentável, através também dos impactos positivos decorrentes da nova usina.

O Relatório de Impacto Ambiental, portanto, apesar de relatar os estudos e as análises

feitas pelo Estudo de Impacto Ambiental sobre os meios físicos, bióticos e socioeconômicos

da região em que será implantada a UHE Belo Monte, demonstra algumas faces da fragilidade

do estudo em questão. Ainda que cumpra a função de tornar acessível o conteúdo do EIA, as

informações contidas no RIMA são demonstradas de forma asséptica, neutra. Esta

neutralidade reduz os impactos negativos sofridos pela população afetada e pelo meio

ambiente da região, sempre acompanhados de ressalvas ou possíveis impactos positivos.

Alguns destes efeitos negativos, por sua vez, além de minimizados, são omitidos, se perdem,

no discurso fragmentado e contraditório do documento. Já os planos e projetos

compensatórios ressaltados pelo mesmo e expostos como imprescindíveis, muitas vezes

genéricos, não ocorreram de fato ou ocorreram somente de forma parcial, como pode ser

compreendido na análise a seguir do Dossiê Belo Monte.

5.2 Discurso não-oficial – Dossiê de Belo Monte

O Dossiê Belo Monte, cujo o subtítulo é “Não há condições para a licença de

operação”, lançado em junho de 2015, consiste em um documento organizado pelo Instituto

Socioambiental (ISA), uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) de

caráter defensivo em relação à luta por direitos sociais e ambientais que tem como foco a

implantação da usina de Belo Monte e sua rede de impactos. O ISA, fundado em 1994, tem

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como objetivo principal a defesa de bens de direito coletivos relativos ao meio ambiente,

patrimônio cultural e direitos humanos pela implantação de programas e projetos que

promovam soluções socioambientais.

O dossiê analisado tem como finalidade trazer a público por meio da produção de

entrevistas e artigos elaborados por especialistas e atores regionais -um debate qualificado e

pautado em constatações materiais acerca do processo de licenciamento da usina de Belo

Monte. Em sua apresentação, o referido Dossiê, de início já explicita o que denomina de

descompasso entre os documentos elaborados e de apoio à empresa concessionária da Usina,

a Norte Energia S.A., onde há a constatação do não cumprimento ou do parcial cumprimento

das condicionantes apresentadas quando da construção de Belo Monte, mesmo já havendo

investimentos monetários nas áreas de impacto direto e indireto em razão da construção da

usina. Estes se apresentaram aplicados de maneira equivocada, insuficiente, além de, em

alguns casos, nem sequer terem saído do papel.

Em 2010 houve a concessão, por meio do IBAMA, da licença prévia de Belo Monte,

que contemplava uma espécie de pacote de medidas de mitigação e compensação, chamadas

de “condicionantes socioambientais de viabilidade da usina”, que previam ações

antecipatórias nos setores da saúde, educação e saneamento básico, a fim de precaver e

reduzir, em certa escala, os impactos sobre estes setores do serviço público. Depois de

finalizadas as obras o dossiê constata atrasos na implementação de infraestruturas necessárias

e previstas nestas ações antecipatórias, que incluem também ações de regularização fundiária

e proteção das Terras indígenas (TI) e das Unidades de Conservação (UC) afetadas, o que

afirmam acarretar uma piora nas condições de qualidade de vida das populações locais e a

perda de recursos naturais fundamentais à manutenção do modo de vida dos povos indígenas

e das comunidades tradicionais da região.

“Desde a emissão da primeira licença, já estava claro que sérios problemas na

condução do processo de licenciamento não estavam satisfatoriamente equacionados.

Por exemplo, a insuficiência de estudos sobre a qualidade da água dos reservatórios e

as incertezas quanto às condições ambientais da volta grande do Xingu após o desvio

do rio, já que se trata de uma região de rica biodiversidade, berço de espécies

endêmicas de fauna e flora, e território tradicionalmente ocupado pelos povos

indígenas Juruna e Arara.” (Dossiê Belo Monte, 2015, p.8)

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No que se refere ao reassentamento da parcela da população tanto de origem da área rural

quanto da urbana, estas são obrigadas a se desterritoralizar, portanto, são deslocadas

impositivamente de suas residências devido à construção da usina , por se encontrarem na

área delimitada para o alagamento que servirá de reservatório (acima da cota 100m). Trata-se

de um processo traumático, que afeta quantitativamente, mais de oito mil famílias, as quais o

empreendimento denomina de “interferidos”, adjetivo inadequado e pouco transparente.

Atualmente, constata-se que cerca de 3000 famílias já foram transferidas e passaram a

residir em novos loteamentos previstos pelo programa de realocação urbana, os

Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC), que não possuem serviços públicos essenciais,

como transporte, saúde e educação. Além disso, mesmo havendo a construção de 220

quilômetros de redes de esgoto e 170 quilômetros de redes de água potável instaladas, as

tubulações que ligariam a rede coleta de esgotos aos domicílios e imóveis comerciais não

estão conectadas, pois os ramais e ligações não foram implantados pelo empreendedor, um

aspecto de descaso e planejamento deficitário sob a responsabilidade da Norte Energia, já que

esta, nas medidas condicionantes socioambientais de viabilidade da usina, assumiu o

compromisso de proporcionar a Altamira os sistemas completos de abastecimento de água, e

de coleta, afastamento e tratamento de esgotos. Existem impasses referentes à gestão destes

sistemas que nem a prefeitura consegue equacionar e sanar.

Ademais, destacam-se questões que envolvem exclusivamente as populações

ribeirinhas, obrigadas a se deslocar das áreas beiradeiras do rio, assentadas em regiões

urbanas, afastadas do rio. Ou seja, é desconsiderada sua identificação social com os rios, sua

ligação de subsistência, seu modo de vida. As propostas de compensação apresentadas pela

Norte Energia em relação a essa população se limitaram a: reassentamento rural coletivo,

reassentamento individual, indenizações em dinheiro e carta de crédito/reassentamento

assistido. Cerca de 75% das famílias contempladas por esta medida escolheram a opção de

indenizações monetárias, 21% a opção de carta de crédito e somente 1,5% o reassentamento

rural coletivo. Estas, como aponta o Dossiê, são soluções limitadas e pouco estruturadas, pois

apontam que os reassentamentos, tanto o rural coletivo, quanto o individual, são distantes da

localidade original das famílias, além de possuir problemas de infraestrutura, localizados

longe de serviços básicos e comércio, as indenizações em dinheiro não foram em valor

suficiente para que conseguisse contemplar a compra de terrenos próximos da antiga moradia

destas famílias, já que os terrenos próximos a margem do rio encareceram justamente pela

implementação da usina, já a carta de crédito argumentam ser impraticável para esta parcela

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da população, já que muitos são analfabetos, com pouco acesso à informação, assistência

especializada.

“Os dados demonstram que a conversão de populações ribeirinhas em populações

exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando, devido à ausência de

opções que assegurem sua manutenção na beira do rio.” (Dossiê Belo Monte, 2015,

p.13)

Além disto, há o registro de não terem sido feitos estudos acerca das populações ribeirinhas

que se encontravam no entorno de Altamira e das comunidades que viviam nas reservas

extrativistas da Terra do Meio. Descreve-se que os pescadores reclamam de impactos

negativos da usina que interferem diretamente na pesca, como em razão das diversas

explosões de dinamite e das luzes fortes dos holofotes do canteiro de obras causaram uma

descaracterização física dos rios, que diminuiu a quantidade de peixes e até relatando uma

possível extinção de determinadas espécies. Também é relatado o aumento dos conflitos por

disputa pelas áreas de pesca restantes.

Outros fatores abordados pelo Dossiê (e estabelecidos pela Fundação Nacional do

Índio - FUNAI) que dizem respeito às medidas de mitigação e compensação e que também

são apresentados como problemáticos e relacionados aos povos indígenas, consistem em 13

ressalvas estabelecidas no Plano Básico Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI) de

responsabilidade do empreendedor e do poder público tendo duração de 35 anos. O dossiê

indica que uma parcela significativa destas medidas ainda não começou a ser implementada e

as que foram implantadas se deram de maneira desordenada. Apresentam que, segundo a

Norte Energia, cerca de R$ 215 milhões já foram repassados para os povos indígenas, porém

foi constatado que este investimento foi utilizado de modo equivocado, para fornecimento de

bens materiais. Descrevem que até março de 2015 foram comprados 578 motores para barco,

322 barcos e voadeiras, 2,1 milhões de litros de gasolina, entre outros, o que reforça um

caráter apaziguante e de certo controle e manipulação dos povos indígenas. Além dos recursos

aplicados anteriormente dentro do período de outubro de 2011 a setembro de 2013, houve

uma espécie de mesada, em torno de R$ 30 mil mensais por cada aldeia, o que demonstra uma

prática de controle por parte do empreendedor e do Estado que afetou diretamente o

andamento da organização e resistência indígena.

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Para ilustrar esse comparativo entre o que foi pactuado oficialmente pela Norte

Energia com as instâncias do governo e como se encontra o andamento dos programas na

realidade, o Dossiê Belo Monte do ISA elaborou uma série de infográficos ilustrando de

forma didática os temas que englobam saneamento básico; remoção compulsória das famílias

e perda do modo de vida ribeirinho; plano emergencial indígena e desestruturação das aldeias;

impactos na pesca não reconhecidos no licenciamento. Eles apresentam estes infográficos de

forma sintética para uma assimilação rápida e resumida sobre os impactos dentro destes

temas, contendo ilustrações simples para um entendimento didático. Uma crítica a ser feita a

este material gráfico, em especifico, poderia ser que ao tornar ilustrativo demais o infográfico,

com o possível intuito positivo em fazer com que qualquer pessoa consiga compreender os

impactos gerados pela UHE Belo Monte, o material, de certa forma, simplifica os processos

provocados. Talvez como apoio, pudesse ser feito, com o mesmo intuito didático, um material

que conseguisse transparecer a emergência e magnitude dos impactos, esmiuçando a

complexidade do assunto sem perder os detalhes. Obviamente, ressalta-se a importância do

Dosssiê, inclusive deste material infográfico, como ferramenta essencial para divulgar e

revelar ao público as complexas dinâmicas impulsionadas pela implantação da usina.

FIGURA 19 – Saneamento básico

Jogo de empurra põe em risco a qualidade da água

Fonte: Dossiê Belo Monte (2015)

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FIGURA 20 – Remoção forçada das famílias e perda do modo de vida ribeirinho

Fonte: Dossiê Belo Monte (2015)

FIGURA 21 – Plano emergencial indígena e desestruturação das aldeias

Fonte: Dossiê Belo Monte (2015)

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FIGURA 22 – Impactos na pesca não reconhecidos no licenciamento

Fonte: Dossiê Belo Monte (2015)

No que diz respeito das consequências do descumprimento destas condicionantes

relacionadas à UHE Belo Monte, há a indicação de impactos negativos em diversos setores

que implicam diretamente na qualidade de vida e segurança das populações afetadas. O

Dossiê descreve diversas destas consequências, como por exemplo, a ocorrência de

sobrecarga dos serviços públicos de saúde. Alega que o atraso na entrega de hospitais

previstos ocasionou numa superlotação dos hospitais locais, inclusive porque há também a

procura por atendimento no centro pela população indígena e tradicional. De acordo com

dados do Hospital Municipal São Rafael entre 2009 e 2014 o número de atendimentos (entre

atendimentos hospitalares, emergenciais e ambulatoriais) teve uma elevação de 101%,

constatando-se ainda, de forma geral nos hospitais locais, a falta de itens básicos, como leitos

para atendimento e internação.

Apresenta uma estimativa de que durante os últimos quatro anos, a quantidade de

acidentes de trânsito por ano em Altamira se elevou em torno de 144%. Segundo dados do

Hospital Regional de Altamira, em 2014, o número de pacientes vítimas de acidente de

trânsito no hospital aumentou 213% em relação a 2013. Além da apuração de que existe um

grande risco de que hospitais entregues pelo empreendedor acabem por serem subutilizados

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ou até mesmo inutilizados, já que há por parte das prefeituras a falta de orçamento para geri-

los. O setor da educação também revela ter sido afetado pela implementação da UHE Belo

Monte. Há a notação de uma queda nos índices de qualidade da educação. Apesar da Norte

Energia informar que os cinco municípios que constam na AID receberam 378 salas de aula,

onde as estruturas já existentes foram ampliadas e reformadas, e novas estruturas foram

construídas como medidas antecipatórias, os dados do Inep, indicam que após o início da

construção de Belo Monte, houve um registro nas zonas urbanas dos municípios da AID uma

sobrecarga de alunos no ensino fundamental. Concomitantemente, há relatos sobre

equipamentos de educação ociosos, que foram construídos, mas não utilizados, como

exemplo, há escolas rurais em Vitória do Xingu desativadas.

Em resumo, de acordo com o levantamento do Dossiê Belo Monte, entende-se que no

âmbito da educação as medidas antevistas para minimizar os impactos na educação foram

inábeis, notando-se a falta de planejamento municipal adequado tanto no quesito de estrutura

física quanto no âmbito social pela ausência de participação e controle público, incluindo a

ausência de articulação das políticas públicas no período da obra que exigisse as obrigações e

programas de responsabilidade da Norte Energia, acrescentando ainda a debilidade da gestão

dos serviços por uma ótica integrada, que contemplasse o corpo docente disponível na região

e os impactos sobre os processos pedagógicos de ensino (Dossiê Belo Monte, 2015).

Das consequências que abarcam o saneamento básico, há a constatação pelo Dossiê

que em Altamira 220 quilômetros de redes de esgoto e 170 quilômetros de redes de água

potável foram instalados e que na somatória de todos os municípios incluídos na AID, cerca

de R$ 485 milhões foram utilizados para a contratação de projetos de saneamento básico.

Entretanto, havia a projeção de que esses projetos não estariam finalizados e funcionando

antes do termino da construção da barragem, o que colocaria em risco a qualidade da água dos

aquíferos subterrâneos e do reservatório do Xingu que atende população.

O impasse consiste na constatação de que as estações de tratamento estão finalizadas,

mas as tubulações não estão conectadas aos domicílios e imóveis comerciais para receberem o

esgoto, já que os ramais e ligações domiciliares não foram implantados pela Norte Energia. A

empresa alega que as ligações domiciliares não estão na alçada de suas obrigações incluídas

no PBA estabelecidas pelo Ibama, e que a responsabilidade estaria a cargo dos moradores ou

do poder público. Alegação que beira a irresponsabilidade, atribuindo à população solucionar

um problema gerado pela própria empreendedora. Foi constatada também certa negligência

nas remoções compulsórias da população reassentada pela UHE Belo Monte. É denunciada a

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ausência de publicidade e transparência na execução do cadastro desta parcela afetada,

resultando na exclusão de parte da população atingida neste processo.

O primeiro processo de cadastramento que ocorreu entre os anos de 2011 e 2012,

notou-se que falhas graves prejudicaram na caracterização das pessoas e núcleos familiares

afetados. Em razão disto, no ano de 2013 foi executado um novo cadastramento por uma nova

empresa contratada a fim de corrigir as falhas anteriores, reconsiderando famílias que

anteriormente não haviam sido contempladas, porém constatou-se que esta situação passada

impactou nessas novas negociações. Este cadastramento, de uma forma geral, deveria refletir

a realidade local e ser utilizado como base para que a construção dos reassentamentos fosse

mais adequada aos modos de vida dessas populações, mas o que aconteceu de fato foi um

distanciamento desta realidade típica amazônica, caracterizando um não reconhecimento

desses beiradeiros em suas novas moradias, que anteriormente habitavam as ilhas sazonais e

margens do rio Xingu, sendo essas novas locações muito distantes do próprio rio e do centro

da cidade, não havendo um cadastro socioeconômico distinto para a parcela que se configura

como pescadores, um agravante em serem deslocados da beira rio.

“Além dos impactos diretos provocados pela instalação da usina, a região experimenta

graves conflitos sociais, já que cada uma das áreas de pesca, tradicionalmente, é

explorada por determinado grupo de pescadores, de modo que a destruição de certas

áreas tem levado os pescadores que ali exerciam suas atividades a migrar para as áreas

já exploradas por outros.” (Dossiê Belo Monte, 2015, p.42)

O Dossiê informa que a Norte Energia não executou o reassentamento considerando que suas

casas beira rio ou as que se localizam nas ilhas sazonais são essenciais para os beiradeiros,

entendendo que essas colocações seriam como “ponto de apoio” e determinantes para sua

subsistência e identidade, utilizando-as como moradia e para pesca e coleta, inclusive como

lazer e ambiente de desenvolvimento da família, pois não foi assegurada pela empreendedora

algo semelhante a uma dupla opção de reassentamento a quem possuía também esta moradia

as margens do rio. Constataram que os que optam pelo reassentamento urbano obtiveram

apenas indenização monetária pela casa da ilha/margem, e os que optaram pelo

reassentamento rural só obtiveram indenização apenas pela casa na cidade. O que configura

num risco de desaparecimento desse modo de vida tradicional e ao desamparo dessa

população, que não tem alternativa de trabalho além da pesca.

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Já os Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC’s), também tiveram sua localização

como decisão exclusiva da Norte Energia, sem comunicação com a população assistida,

desacatando a definição contida no PBA, que estabelecia que os RUC’s se localizassem em

até dois quilômetros de distância dos centros urbanos, o que não ocorreu. Igual situação se

deu na definição do material construtivo, que impede que haja expansão da moradia, e

dimensões das residências, descumprindo medidas anteriores que diziam considerar as

particularidades de cada família, porém o que se deu foi a construção de residências padrão

único, e distantes dos centros urbanos. Outra crítica a apontar neste processo é que as famílias

não puderam escolher em qual reassentamento gostariam de ir, desarticulando vizinhanças,

desagregando comunidades e relações sociais.

Outro fator é de que nos RUC’s, de maneira geral, há a ausência de equipamentos

sociais necessários, constata-se que três Unidades Básicas de Saúde (UBS) foram construídas

pela Norte Energia conjuntamente com a prefeitura de Altamira, porém estas não contemplam

todos reassentamentos, além de faltarem escolas e acesso ao transporte público. Serviços que

de acordo com o PBA, deveriam estar prontos e funcionando integralmente antes da

instalação das famílias.

A exiguidade de transporte público que atende aos RUC’s é um aspecto grave, pois

grande parte dos reassentados está se locomovendo a pé diariamente por muitos quilômetros,

o que os prejudica o acesso a serviços e a oportunidade de trabalho, sendo que em alguns

casos, têm que arcar com o encargo financeiro de utilizarem moto-táxis para chegar ao centro.

Tais fatores impedem também a continuidade da atividade pesqueira, em razão da distância

significativa ao rio Xingu.

Decorrente desses elementos, por pressão de grupos de atingidos, a Norte Energia se

incumbiu em construir um RUC nas margens do rio Xingu, o RUC Pedral, visando a atender

os beiradeiros que se engaram a permanecer na realocação distante e distinta de suas

condições de vida específica. O Dossiê ressalta que ainda que a obra não contemplará toda a

população beiradeira necessária.

Outro aspecto preocupante é da degradação florestal e da intimidação de comunidades

indígenas e ribeirinhas por madeireiros que exercem a exploração ilegal de madeira na região.

O Dossiê alega o descumprimento de um conjunto de ações que visava o controle de extração

de madeira realizado pela própria Norte Energia para a instalação dos canteiros de obra e dos

reservatórios, onde significativa parte da madeira extraída pela obra apodreceu, não sendo

reaproveitadas na construção da usina, como previsto no PBA. Com isto, a Norte Energia

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adquiriu vasta quantidade de madeira de fornecedores externos, cerca de 17 mil m³ até

dezembro de 2012, ação reprovada e que os programas ambientais procuravam evitar, posto

que a madeira comercializada na região, é em suma, ilegal.

O saldo desta situação demonstrou o aumento dos índices de degradação florestal, ou

seja, da exploração ilegal de madeira, na área de influência da obra, agravando a

vulnerabilidade da floresta a queimadas e risco de redução da biodiversidade, além do

aumento de casos de violência contra os moradores das áreas de atuação dos madeireiros, o

que figura em ameaças e cooptação. Como exemplo, o Dossiê traz dados de que na Terra

Indígena Cachoeira Seca, desde o ano de 2014, foram extraídos cerca de 200 mil metros

cúbicos de madeira, o equivalente a 13 caminhões madeireiros cheios.

Sobre as consequências que afetam especificamente os povos indígenas há a

constatação de que as medidas de mitigação foram inadequadas, agravadas pelo fato da usina

estar praticamente construída em sua totalidade e as medidas previstas para proteção dos

territórios indígenas, como regularização fundiária e fiscalização, não terem sido

implementadas, prejudicando a autonomia indígena sob o seu próprio território.

O Dossiê apresenta que em uma nota técnica datado de março de 2015, a Funai

demonstrou que entre 2008 e 2013 houve 193,4 quilômetros quadrados de desmatamento na

região das terras indígenas localizadas na área afetada pela UHE Belo Monte, o que

apresentou um aumento de 16,31% em comparação a dados anteriores. Há também o aumento

do número de queimadas e a abertura de estradas improvisadas e ilegais que facilitam a

invasão nessas terras. Nas terras indígenas Apyterewa, Trincheira Bacajá, Xipaia,

Paquiçamba, Curuaia e Cachoeira Seca houve a incidência de desmatamento ilegal e/ou

extração de madeira ilegal, já nas terras indígenas de Arara, Koatinemo e Ituna/Itatá

constatou-se o aumento de invasões de caçadores e de uma expansão de loteamentos rurais, já

nas terras indígenas Bacajá, Paquiçamba e Arara da Volta Grande houve o crescimento no

número de invasões de pescadores comerciais e nas Terras Indígenas Xipaia e Curuaia e no

entorno da Arara intensificou-se a presença de garimpos ilegais. Situação alarmante e

preocupante que coloca em risco a vida destas comunidades indígenas.

Ainda há as críticas e consequências referentes ao Plano Emergencial recorrido para

apoio as populações indígenas, que ocorreu de maneira desordenada, onde foi cedida uma

espécie de mesada as comunidades, na qual atendia às listas de mercadoria elaborada pelos

indígenas, que incluía bens de consumo, a serem fornecidas pela Norte Energia. Consequência

deste ato, foi a perda da capacidade de produção de alimentos de maneira continua,

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resguardada no parâmetro de segurança alimentar indígena do empreendedor, gerando

complicações no âmbito da saúde e autonomia destes povos, aumentando significativamente

os índices de desnutrição das crianças menores de cinco anos dessas comunidades.

“E, apesar de ser verdade que Belo Monte não alaga nenhuma TI (Terra Indígena),

vale lembrar que a usina praticamente seca o rio Xingu entre as TI’s Arara da Volta

Grande e Paquiçamba, desviando até 80% da vazão hídrica para o reservatório de

geração de energia.” (Dossiê Belo Monte, 2015, p.40)

As medidas de construção de infraestrutura de serviços públicos ainda não foram executadas,

nem estão em prática os projetos produtivos que deveriam assegurar a segurança alimentar e

melhoria nas condições de subsistência e autonomia material dessas populações. Para estas

terras indígenas só estão previstas medidas de monitoramento de impactos.

Por fim, o Dossiê Belo Monte, após apresentar o comparativo entre o que foi

estabelecido oficialmente e legalmente pela Norte Energia com o Governo Federal e local e

como na realidade essas medidas foram realizadas, apresentando as consequências da

execução e ausência desses mecanismos de mitigação e compensação de impactos, busca

apresentar uma espécie de lições apendidas, em própria descrição, onde, em resumo, procura

indicar os problemas institucionais que envolveram a UHE Belo Monte que precisam ser

superados e não mais repetidos, com a premissa evitar qualquer desrespeito às instituições

democráticas, que incluam em seu planejamento o diálogo com a sociedade civil,

considerando o conhecimento das populações atingidas sobre o território a fim de firmar um

comprometimento socioambiental transparente e eficaz, havendo um alto grau de

comprometimento por parte do empreendedor e do Estado, para evitar tragédias e

agravamento de mazelas e vulnerabilidade de populações que se encontram afetadas e à

margem de grandes obras de infraestrutura.

“Quando a usina hidrelétrica (UHE) de Belo Monte foi a leilão, vieram à tona muitos

questionamentos sobre a viabilidade do empreendimento. Uma crítica recorrente era

de que os impactos previstos estavam mal dimensionados e os custos socioambientais,

subestimados, mesmo havendo sido destinados R$ 3,2 bilhões às condicionantes de

mitigação da obra. O planejamento e a construção da UHE foram marcados por

autoritarismo e falta de participação e controle social, expressos em audiências

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públicas de ‘faz de conta’ e na ausência de processos de consulta prévia, livre e

informada.” (Dossiê Belo Monte, 2015, p.56)

O tom do Dossiê além de denunciar os graves impactos gerados pela UHE Belo Monte é de

suscitar uma nova visão de planejamento, que busque o desenvolvimento sustentável. Para tal

conscientização, ao final, o Dossiê compila uma série de artigos denominados “Vozes do

Xingu”, reunidos de forma colaborativa, onde buscam reunir “vozes”, perspectivas diversas,

não consideradas nesses anos de execução da UHE Belo Monte. Esses artigos reúnem textos

de pesquisadores, agentes públicos e representantes de movimentos sociais, que descrevem

desde testemunhos pessoais a relatórios técnicos sobre as consequências decorrentes da

ausência ou ineficácia de como se deram as medidas de mitigação socioambiental realizadas

pela Norte Energia e pelo poder público, buscando traçar a dimensão dos impactos sofridos

pelas populações afetadas pela obra.

5.3 Reflexões

Quando se trata das populações tradicionais, sobretudo as que usufruem e/ou habitam

a margem do rio Xingu, há a relação intrínseca entre essas populações e o rio: uma relação de

dependência física e cultural, ligada a uma questão de subsistência, ao modo de vida, tendo a

pesca como principal fonte de alimento e renda. Configuram-se, assim, como beiradeiros.

População que, segundo Mauro Leonel em seu livro “A morte social dos rios”, se define como

de pescadores artesanais e rurais que residem em vilas e localizações às margens do rio, o que

caracteriza uma parte do modo de vida do interior amazônico. A pesca não é somente uma

profissão, mas uma atividade de sobrevivência e de acesso ao mercado (LEONEL, 1998).

Justamente tais características, segundo é apontado pelo Dossiê Belo Monte, não são levadas

em consideração nas propostas de compensação e mitigação dos impactos apresentados pelo

EIA-RIMA.

A apresentação feita pelo RIMA sobre os beiradeiros se dá de maneira superficial,

neutra. O Relatório indica, em números, quantas pessoas estão dentro do parâmetro

estabelecido de áreas diretamente afetadas (ADAs), inclusive reconhecendo que o rio e a

atividade pesqueira são importantes para esta parcela da população que mora às margens do

Xingu. Porém, ao se tratar de soluções, somente apresenta as que são de âmbito material

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como alternativa ao desalojamento, como as indenizações monetárias, as cartas de crédito e os

reassentamentos urbanos e rurais coletivos. Deste modo, justifica que, em contrapartida a este

impacto, haverá outros investimentos em infraestrutura local, visando a uma futura

necessidade decorrente, justamente, da implantação da usina.

Estes investimentos, por sua vez, são constatados pelo Dossiê Belo Monte como

aplicados de maneira equivocada ou que, em muitos casos, nem sequer foram aplicados na

prática. Um exemplo é o caso da solução ofertada aos beiradeiros, população por muitas vezes

carente de informação, onde muitos são analfabetos, encontrando dificuldades em escolher e

se posicionar frente a essas medidas compensatórias apontadas pelo Dossiê como limitadas,

problemáticas e insuficientes para minimizar os impactos gerados e de fato solucionar os

danos causados pelas suas remoções.

Entende-se que se está frente à paradoxal relação sobre a qual discorre Dominique

Perrot, em seu artigo já mencionado de 2008, ou seja, a relação, na maior parte das vezes

dicotômica, entre desenvolvimento e povos autóctones. No artigo citado, Perrot aponta que o

desenvolvimento se dá “por uma transformação sistemática da natureza e das relações sociais

em bens e serviços para o mercado” (PERROT, 2008, p.221). Assim, ao observar a UHE Belo

Monte, compreende-se que os impactos gerados nas populações autóctones se tornam

minimizados frente a um projeto de escala federal e de grandes proporções em âmbito

nacional, que diretamente movimentará a matriz energética do país e subsequentemente o

setor da economia. Eufemizam-se, assim, os impactos diretos, como no presente caso, onde,

“o desenvolvimento aparece como o empreendimento de destituição e expropriação em

proveito de minorias dominantes” (PERROT, 2008, p.221), afinal já é sabido que grande

parte da geração elétrica da UHE Belo Monte se destinará ao setor industrial.

Este deslocamento forçado de populações que se encontram nos parâmetros da ADA,

provoca processos de “desterritorializações e reterritorializações” que, segundo Rogério

Haesbaert, desconsideram as relações particulares destas populações autóctones com o

espaço, pois são destituídos de suas áreas de moradia, onde já desenvolviam seu cotidiano e

cultura, mas que impositivamente têm que se realocar em outras regiões, sejam elas por

escolha própria possibilitada pela carta de crédito ou determinada pela Norte Energia com os

reassentamentos coletivos.

Em particular, os RUCs (Reassentamentos Urbanos Coletivos) apresentam problemas

significativos. As unidades ofertadas não contemplaram a totalidade de famílias atingidas. A

maior parte das unidades, por sua vez, não teve sua infraestrutura finalizada antes de ser

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ocupada, além de se localizar distante da moradia de origem desta população, longe do rio.

Também não há uma rede de transportes públicos eficiente e eficaz que faça a ligação entre os

RUCs, o centro da cidade e as margens do Rio Xingu. Assim, longe de serviços e de

oportunidades de emprego, há um maior incentivo aos processos informais de criação de

comércios e equipamentos dentro dos reassentamentos, os quais, além de suprirem uma

demanda local de produtos e serviços de necessidade cotidiana, servem como uma alternativa

de renda, mesmo que ínfima. Ainda, a própria estrutura das moradias é padronizada,

homogeneizadora, e não possibilita modificações e ampliação, propiciando a criação de

“puxadinhos” (cômodos anexos no lote construídos de forma improvisada) e estruturas

informais.

FIGURA 23 - Imóveis do reassentamento urbano coletivo (RUC)

Fonte: Autoria de Júlia de Francesco, 2016

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FIGURA 24 - Imóveis do reassentamento urbano coletivo (RUC)

Fonte: Autoria de Júlia de Francesco, 2016

FIGURA 25 - Imóveis do reassentamento urbano coletivo (RUC)

Fonte: Autoria de Júlia de Francesco, 2016

Ao se tratar da população indígena, o RIMA aborda os impactos nas Terras Indígenas

relacionados ao Trecho de Vazão Reduzida do rio, de um aumento de tráfego próximo ao

local dessas comunidades e do aumento de pressão sobre as TIs. O relatório, apesar de listar e

descrever modos de vida e características particulares de cada comunidade, que também estão

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ligadas intrinsecamente com o rio como modo de subsistência ou modo de vida, apresenta

algumas propostas que afirmam servirem de proteção e fortalecimento de suas relações

culturais singulares. Isso se daria por intermédio de ações previstas no Plano de

Sustentabilidade Econômica da População Indígena, que em suma, alicerceado em um

discurso de melhoria da condição de vida indígena, visa à capacitação de mão de obra

indígena, além de programas que abordam temas como segurança alimentar, saneamento

básico, educação que possibilite trocas culturais com demais povos indígenas e melhoria das

habitações. Inclui também um programa de segurança territorial, para, assim, “tornar as terras

indígenas atraentes” para que se permaneçam preservadas e possuam articulações com demais

programas do governo federal, o que resulta na melhoria na própria organização interna de

cada comunidade indígena.

O Dossiê Belo Monte traz a informação de que estas medidas de mitigação e

compensação adotadas para os povos indígenas – reunidas no Plano Básico Ambiental do

Componente Indígena (PBA-CI) de responsabilidade do empreendedor e do poder público,

tendo duração de 35 anos – ainda não foram implementadas, se deram de maneira

desorganizada ou ocorreram por meio de repasse financeiro. Este último foi aplicado de forma

arbitrária para aquisição de bens de consumo e não aplicado em medidas de melhoria

estrutural em longo prazo, gerando uma desarticulação das organizações e resistências

indígenas.

Esse caráter do discurso do EIA em levar melhoria às populações indígenas se

assemelha a uma característica do desenvolvimento abordado por Dominique Perrot, onde o

valor simbólico do indígena em relação ao seu território não é considerado pelos atores

desenvolvimentistas ao interpretarem essas populações como não desenvolvidas. Logo,

justificam as razões de intervenções, investindo em pressupostas necessidades externas as das

suas próprias estruturas sociais. Interpretam a vulnerabilidade dessas sociedades e apontam

como solução a implementação de medidas e metodologias estabelecidas externamente e não

por uma demanda e modo de fazer interno, que na prática cerceiam uma maior autonomia

indígena. Portanto, através destes sincretismos, sutis ou profundos, que se estabelecem nesses

projetos de assistência, a imposição de novas formas de sobrevivência ameaça a dissolução da

identidade tradicional por intermédio do avanço da modernidade que corre a um ritmo

acelerado, descompassado das condições dos povos autóctones.

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“Quando a relação de desenvolvimento visa os povos indígenas, ela se choca com

alguns paradoxos. O primeiro considera que não se pode desenvolver o que já está

desenvolvido. Sem querer negar a grande diversidade de situações e histórias

particulares, podemos adiantar que os povos autóctones se distinguem dos outros

segmentos da sociedade nacional pelo fato de que não são “desenvolvidos” no sentido

comum do termo. Na verdade, as sociedades tradicionais não aderem à noção de lucro

individual infinito. Tais sociedades praticam uma economia da reciprocidade, muitas

vezes mais importante que aquela do comércio de mercado; elas não têm acesso ao

avanço científico do conhecimento, isto é, à reflexividade sistemática e ao

deslocamento cognitivo em seu axioma e produzem uma racionalidade holística do

social, antes que uma racionalidade puramente econômica, para evocar apenas alguns

traços fundamentais que as caracterizam. Ser desenvolvido é ter aceitado de maneira

irreversível a lógica essencialmente transitiva do desenvolvimento. Em compensação,

rejeitar o desenvolvimento é recusar uma relação assimétrica que visa converter as

pessoas em elementos atomizados e enfraquecidos de um vasto movimento

controlador e impessoal. Recusar o desenvolvimento é assumir seu próprio destino e

não estagná-lo ou retardá-lo, como considera a visão mítica de uma história linear

própria do Ocidente.” (PERROT, 2008, p.227)

Essa situação conflituosa entre a UHE Belo Monte e os povos indígenas remete à origem do

projeto, previsto desde o período da ditatura militar, incluso no II Plano Nacional de

Desenvolvimento (BRASIL, 1974). Foi contestado justamente pelos danos ambientais que seu

impacto afetaria sobretudo o próprio rio Xingu, defendido veementemente pelas lideranças

indígenas, principalmente pelos Kayapós e Raonis. Em 1989, no primeiro Encontro de Povos

da Floresta em Altamira, onde um representante do governo foi escalado para defender a

construção da Usina, que na época se chamava Kararaô (grito de guerra dos Kayapós) houve

momentos de tensão entre os atores opostos, onde a índia Tuíra encostou um “facão” no

pescoço do representante da Usina em atitude de reprovação e protesto contra a construção da

mesma.

Mesmo com o recuo que acarretou em um engavetamento do projeto, na modificação

de seu nome em respeito às manifestações indígenas e na alteração do próprio projeto de

implantação (onde a usina e seu reservatório sofreram diminuição em seu tamanho), a UHE

Belo Monte permaneceu dentro dos interesses do planejamento público de desenvolvimento,

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independente do descontentamento de setores da sociedade, principalmente da população

indígena, em relação aos impactos identificados. Leonel, em seu livro, tece críticas acerca da

ética que envolve o processo do planejamento, onde os Estudos de Impacto Ambiental (EIA),

que, em geral, servem somente para fins burocráticos de licenciamento da obra, tendem a

ignorar as interferências que podem acarretar em um redimensionamento das obras em curso

por demandas socioambientais.

“Há no setor a tendência a considerar qualquer estudo como irreversível, e quanto

mais longo e custoso, mais difícil o recuo: uma prática de fato consumada, sustentado

por fortes interesses. Argumenta-se que um estudo prévio custa em média US$ 16

milhões, ou seja, num país pobre, estudou-se a obra, há que executá-la. Com os

projetos semi-aprovados na mão, as construtoras ficam de tocaia nos cofres públicos

para viabilizá-los, quando não os antecipam, comprometendo previamente o

orçamento governamental.” (LEONEL, 1998, p.193)

Aborda também que a implementação de hidrelétricas possui um fator determinante na

escolha do local de sua implantação. São preferidas regiões interioranas, pouco

desenvolvidas, como no caso de Altamira e municípios lindeiros, onde se pode manter um

ritmo de construção acelerado a baixo custo. Além da facilitação de impasses financeiros, que

podem se orientar a privatização ou ainda a manipulações ilícitas do orçamento federal.

Ademais, são obras “promotoras de cidades”, o que atrai uma população externa, que pode se

dar pelo aumento de oferta de trabalho, como no caso da UHE Belo Monte em Altamira.

Neste caso, a oferta chega a ser significativamente maior do que a da área diretamente

atingida, produzindo também mudanças nas áreas não submetidas ao impacto direto do

alagamento: os chamados impactos indiretos, que ainda carecem de estudos mais

aprofundados (LEONEL, 1998). O projeto das vias de borda e parque ao longo do Rio Xingu,

pós alagamento da cota 100m, nunca foram conhecidos pela população atingida ou

interessada.

A fim de minimizar os impactos decorrentes da migração de trabalhadores e beneficiar

a população da região, segundo o RIMA, haveria um treinamento para formação de

trabalhadores especializados para maior contratação local. Ainda assim, é necessário um

grande contingente de trabalhadores de outras regiões, principalmente durante o terceiro ano

da obra (período de maior necessidade de mão-de-obra), como pode ser visto também no

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Dossiê Belo Monte. Deste modo, o repentino crescimento populacional – composto pelos

trabalhadores migrantes e suas famílias – demandam maior infraestrutura, como as previstas

pelo EIA-RIMA: postos de saúde, escolas, áreas para prática de esporte, rede de

abastecimento e tratamento de água, esgoto e lixo, além da construção de alojamentos e

residências.

Estas, entretanto, não foram construídas ou foram construídas parcialmente, como

pode ser visto no documento do ISA. As redes de tratamento de esgoto e água, por exemplo,

estão construídas, mas não foram devidamente ligadas às residências. Além disso, o Dossiê

também apresenta impactos sociais causados pelo inchaço populacional, ausentes nos Estudos

de Impacto Ambiental. Dentre eles, são destacados os casos de violência contra mulheres e

adolescentes, homicídios, acidentes de trânsito, furtos e roubos, prostituição e drogadição, que

aumentaram significativamente após o início da obra da UHE Belo Monte.

O Dossiê, ainda, problematiza o futuro uso destas novas infraestruturas e residências

ao analisar o processo de deslocamento dos trabalhadores da obra, que começam a sair da

região após o período de maior necessidade de mão-de-obra (terceiro ano). Este processo de

esvaziamento e subutilização das infraestruturas também ocorre nos RUCs, onde houve a

construção e criação de serviços e comércios (como visto anteriormente) que perdem grande

parte de seus clientes devido ao retorno das famílias para seus locais de origem ou novos

locais de trabalho. Deste modo, os povos autóctones, além de sofrerem um processo de

desterritorialização como apreendido no artigo de Haesbaert (2007), ainda sofrem danos

diretos ao tentarem recriar seu modo de vida nas novas condições que lhes foram conferidos.

Por ser uma obra pertencente ao PAC (Plano de Aceleração de Crescimento), visa

acelerar o desenvolvimento nacional a qualquer custo. Ou seja, assim como demonstra o texto

de Dominique Perrot, os povos autóctones, mais vulneráveis, são expropriados e reduzidos

em nome desta prática desenvolvimentista. O espaço é visto como necessário somente para

este fim. As dinâmicas já existentes no território não cabem na lógica citada, que cria outras a

partir da implantação da Usina de Belo Monte, exemplificando, assim, o conceito estudado de

multiterritorialidade. Dessa forma, a mesma porção do espaço pode ser utilizada por diversas

camadas das comunidades de diversas maneiras. O mesmo espaço abrange processos de

territorialidade diferentes, contrastantes: o rio como fonte de energia em uma escala nacional,

como forma de produto, ao mesmo tempo em que se busca atender às demandas locais das

populações que vivem à beira.

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“No que diz respeito aos projetos de desenvolvimento que supostamente beneficiariam

as minorias, deveríamos, em geral, partir da hipótese segundo a qual os projetos

correm o risco de serem implantados em detrimento das populações e inverter o fardo

da prova: estabelecer primeiro se o projeto tem condições de cumprir uma função

protetora indispensável e avaliar se o desenvolvimento desejado pela minoria será ou

não impedido por essa intervenção exterior.” (PERROT, 2008, p.224)

Além disso, os impactos decorrentes da obra não abrangem somente os territórios na beira do

rio, dentro da cota 100m, mas também impactam os territórios do entorno ao interferir e

recriar processos como no caso dos Reassentamento Urbanos Coletivos, por exemplo. Neste

caso, as populações beiradeiras sofrem um processo de desterritorialização e posteriormente

de reterritorialização, ao serem reassentados nos RUCs. Já o território onde foram construídos

os reassentamentos sofre igualmente um processo de desterritorialização, ao ser modificado, e

também de reterritorialização, ao receber um novo uso e novos processos. O mesmo acontece

com o território de onde a população beiradeira sai: além de perder a função e a dinâmica que

acontecia antes, criam-se novas, a água invade.

FIGURA 26 – Multiterritorialidade no processo de reassentamento dos beiradeiros

beiradeiros

desterritorialização

RUCs

reterritorialização

descaracterização do território

reterritorialização

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Desta maneira, configura-se uma justaposição de territórios, hierarquicamente

articulados, uma multivariada quantidade de pertencimentos e interpretações do território. Há

um paradoxo entre o espaço usado – conceito de Milton Santos, onde o Estado considera o

valor de uso, portanto econômico, do território de seu domínio, exemplificando a UHE Belo

Monte, onde o rio é visto como potencial hidráulico de um empreendimento que visa o capital

– com o espaço banal, território vivido, local onde se desenvolve o cotidiano destes povos

autóctones, tendo o rio como característica intrínsecamente cultural e de subsistência.

Portanto, perspectivas que se chocam e entram em conflito. Assim, a partir da perspectiva da

multiterritorialidade (HAESBAERT, 2007), uma interpretação que possibilita a compreensão

do encadeamento de processos de maneira crítica, pode-se assimilar com devida profundidade

as múltiplas leituras dos diversos agentes presentes no mesmo território, que configuram

territorialidades distintas, que integram múltiplas especificidades, sejam na esfera econômica,

cultural e política.

6 ANÁLISE DA CARTOGRAFIA OFICIAL – EIA

A partir das os estudos realizados sobre os discursos contidos nas fontes oficiais e não oficiais

sobre o AHE Belo Monte, pôde-se compreender o contraste existente entre ambos. O EIA-

RIMA, realizado pela Leme Engenharia, uma fonte oficial, portanto, apresenta um discurso

neutro, asséptico, como visto anteriormente. Desta forma, apesar de apresentar estudos e

expor características sobre as regiões impactadas pela construção da obra e sobre as

populações afetadas, ainda omite ou reduz a real esfera de impactos a que estão submetidas

estas regiões e populações.

Por meio dos conceitos já estudados na presente pesquisa e com base no entendimento

acerca dos discursos conflitantes, esta etapa da pesquisa busca analisar alguns mapas, imagens

e tabelas presentes no Estudo de Impacto Ambiental. Desta forma, pretende-se elaborar um

pensamento crítico sobre essas figuras, ao desconstruir o discurso analisado anteriormente e

revelar alguns aspectos que o mesmo omite ou esconde.

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6.1 Desterritorializações e Reterritorializações

Através dos conceitos elaborados por Rogério Haesbaert em seu artigo “Território e

multiterritoralidade: um debate”, é possível elaborar assimilações acerca dos fatores inerentes

que relacionam as ações sociais com o espaço ocupado. Busca-se, então, entender a

denominada noção de múltiplas territorialidades, que manifestam-se, segundo o autor, em

uma dupla implicação. Uma que abarca um caráter simbólico, ligado ao espaço vivido, logo,

apropriado, conectado intrinsecamente a identificação cultural estabelecida pelas populações

com certa região, e outra ligada a um caráter de dominação, portanto, regida por relações de

poder político e econômico, associadas às lógicas do capital e da propriedade, identificáveis,

por exemplo, na supremacia da autoridade estatal sobre o espaço de sua jurisdição, que

legitimam obras de infraestrutura como as da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, objeto de

análise.

Nesse sentido, pretende-se, identificar nos estudos levantados – sobretudo nos

produtos cartográficos – elaborados pela concessionária Norte Energia, responsável pela

implantação da obra da UHE Belo Monte, as possíveis correspondências teóricas com os

processos gerados pelo impacto da usina. Onde, em suma, observa-se o encadeamento de

desterritoralizações, ou seja, a perda do território vivido pelo deslocamento forçado

decorrente de forças externas hierarquicamente superiores no âmbito político e/ou econômico.

No caso específico, isto ocorre com as populações levantadas que habitam na Área

Diretamente Afetada pela Usina, condicionadas ao desalojamento compulsório, submetendo-

as a reterritorializações, subsequentes à desterritorialização, e compelindo em novas relações

com um novo território, no caso, região de sua realocação, impactando diretamente nos seus

modos de vida e vínculos anteriores. Deste modo, aspira-se revelar algumas perdas de sujeitos

sociais decorrentes da implantação desta obra de expressivo impacto.

6.1.1 ADA Rural

A Área Diretamente Afetada (ADA) abrange as áreas definidas para construção das

obras principais da UHE Belo Monte, da infraestrutura de apoio e pelos locais de inundação,

como, por exemplo, as casas de força, a barragem, os vertedouros, os reservatórios do Xingu e

do Canal e o Trecho de Vazão Reduzida. Na pesquisa apresentada, as representações

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cartográficas, que buscam mostrar os imóveis presentes nesta área, se valeram da constatação

de 261 imóveis rurais (lotes basicamente constituídos por projetos de assentamento sob

jurisdição do INCRA).

6.1.1.1 Reservatório do Xingu

Os imóveis investigados na margem direita do Rio Xingu correspondem aos seguintes

números: 261 imóveis rurais para a caracterização fundiária, 246 estabelecimentos produtivos

para a caracterização da estrutura produtiva e 155 grupos domésticos, abrangendo um total de

487 pessoas com vistas a obter informações sobre condições de vida da população residente.

Já na margem esquerda do rio, o levantamento apontou, ao se tratar dos imóveis, que 46,20%

do total de imóveis rurais localizados no setor são utilizados para moradia e produção e

38,01% apenas para a produção, num total de 144 imóveis rurais destinados às duas

categorias; entre os demais 2,34% são destinados à produção e lazer e 0,58% ao comércio e

moradia; 1,75% apenas ao lazer e 0,58% a outros usos. A pesquisa também demonstrou que

apenas 7,60% dos proprietários não usam o imóvel rural.

Seguem os produtos cartográficos produzidos pelo EIA que sintetizam tais dados e os

objetivam espacialmente, respectivamente descritos acima, pela identificação e indicação do

lote e a caracterização da situação do imóvel nele encontrado.

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FIGURA 27 – Situação Jurídica dos Imóveis Rurais no

Setor Margem Direita do Reservatório do Xingu

Fonte: EIA (2008)

FIGURA 28 – Situação Jurídica dos Imóveis Rurais no

Setor Margem Esquerda do Reservatório do Xingu

Fonte: EIA (2008)

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Legenda ampliada – Figura 21

Legenda ampliada – Figura 22

6.1.1.2 Reservatório dos Canais

O levantamento sobre os imóveis presentes na área do Reservatório dos Canais

também foi efetuado da mesma maneira dos setores do Reservatório do Xingu. A área total

correspondente ao Reservatório dos Canais compreende-se em um total de 495 imóveis rurais

(lotes basicamente constituídos por projetos de assentamento sob jurisdição do INCRA), que

através da pesquisa socioeconômica e censitária identificou a presença de 495 imóveis rurais

de caracterização fundiária; onde 547 são estabelecimentos produtivos para a caracterização

da estrutura produtiva; 354 identificados como grupos domésticos; e até onde foi possível

averiguar há cerca de 323 proprietários e 370 produtores rurais nesta área. A título de

porcentagem, que se registrou cartograficamente nos mapas anexados abaixo, reconheceu-se

que 62,42% do total obtém posse de escritura e o título definitivo do INCRA, 38,38% possui

a escritura definitiva de sua propriedade, 11,52% obtém documento de compra e venda e

12,32% não possui nenhuma documentação.

Estes dados, como anteriormente, foram representados de forma cartográfica e

conforme a lógica representativa apresentada nas outras regiões: identificam o loteamento e

classificam a situação do imóvel presente.

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FIGURA 29 – Situação Jurídica dos Imóveis Rurais na

Faixa de Domínio das Linhas de Transmissões

Fonte: EIA (2008)

FIGURA 30 – Situação Jurídica dos Imóveis Rurais no

Setor Reservatório dos Canais

Fonte: EIA (2008)

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6.1.1.3 Reflexões

Apesar de saber que durante o programa de reassentamento das famílias serão

realizadas avaliações mais detalhadas das propriedades apresentadas, nota-se, em todos os

casos acima apresentados, uma representação neutra e, de certa forma, de caráter

homogeneizador das diversas condições dos imóveis levantados. Isto ocorre mesmo que haja

a descrição dos imóveis e a indicação deles no espaço de acordo com suas situações

singulares. A cartografia e o texto que os suportam em momento algum se referem às famílias

moradoras destes lotes em si e não há identificação das áreas construídas dentro dos lotes ou

atividades produtivas realizadas, mesmo que em sua maioria. Deste modo, resulta em uma

representação pragmática, neutra, pouco comprometida em configurar e revelar, de forma

explícita, a expropriação dessas áreas pela concessionária durante a construção da UHE Belo

Monte.

A desterritorialização se faz presente nestas cartografias pela ausência nas

representações das mudanças de uso do território, apartado pelos processos sociais e pela

disputa que se dá nestes territórios entre a população local e os interesses do empreendimento.

As cartografias em questão negligenciam o real impacto sofrido pelas edificações na ADA,

neutralizando as diferenças e a ação de remoção involuntária, reduzindo o problema à

representação somente dos lotes afetados e suas condições jurídicas, apoiadas na análise

burocrática feita pelo EIA. Oculta, portanto, as fotos e cadastros, o patrimônio reprodutivo e

não reprodutivo e a população que reside e se utiliza do território – elementos que, para um

entendimento assertivo e mais lídimo, deveriam ser entendidos e representados juntos no

espaço.

6.1.2 ADA Urbana

6.1.2.1 Igarapé Altamira

A região do Igarapé Altamira é a levantada, pelo EIA, como a de maior densidade

populacional dentre as regiões dos Igarapés apresentados. É descrita como localizada em meio

à região central, contendo a urbanização mais antiga da cidade de Altamira. Compreende as

áreas dos bairros Alberto Soares, Aparecida, Brasília, Centro, Jardim Altamira, Sudam I e

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Sudam II, totalizando uma área de 55,30 ha. De acordo com a pesquisa socioeconômica

censitária apresentada no EIA-RIMA, foram constatados 2.002 imóveis, ou seja, cerca de

42,6% do total dos imóveis da ADA Urbana. Dentre estes, 98 foram descritos como

desocupados, representando cerca de 4,9%, e 1.904 ocupados, portanto 95,1%.

Já o levantamento feito acerca das edificações locais constatou 2.831 unidades, sendo

96,70% destas ocupadas, somando 2.737 edificações, e as edificações desocupadas

contabilizaram 94 edificações, figurando 3,32%. Assim, o documento conclui que a

quantificação de edificações e de imóveis apresenta índices de adensamento construtivo

maiores do que as outras zonas da ADA Urbana, formando uma média de 1,4 edificações por

imóvel.

Ao discorrer sobre os tipos de ocupações dos imóveis, destaca-se o uso exclusivo

residencial, levantado como 73,51% do total, posteriormente o uso misto foi contabilizado em

11,38% e o comercial em 3,61%. Foi observado somente 12 imóveis institucionais,

correspondendo a uma escola e 11 imóveis utilizados como igrejas.

Sobre a caracterização da população, observou-se uma maior quantidade de homens

residentes, predominantemente jovens, na faixa entre os zero e quatorze anos, quantificados

em 34,34% do total da população. Foi relatado também que 8,87% da população se

encontrava na faixa etária superior aos 56 anos.

O levantamento acerca do tempo de residência no Igarapé Altamira demonstrou que

80% da população era oriunda da própria cidade de Altamira. Dentre a população residente,

20,7% eram residentes por um período entre dez e vinte anos, 18,4% residiam a menos de um

ano. Sobre os migrantes de outros estados, representavam 7% da população, dos quais 1,8%

proviam do estado do Maranhão.

O apoio cartográfico referente a este levantamento foi sistematizado em uma imagem

de satélite da região, denominada como croqui de localização, destacando a área diretamente

afetada que compreende o setor Igarapé Altamira, onde através de uma mancha que visa

demonstrar a dimensão e abrangência da localidade, são identificados também os limites dos

bairros, contendo as informações das vias urbanas e do curso d’água.

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FIGURA 31 – ADA Urbana - Igarapé Altamira

Fonte: EIA (2008)

6.1.2.2 Igarapé Ambé

A área referente ao Igarapé Ambé foi apresentada pelo EIA como abrangendo 2.29,44

hectares, na qual 43,6% dos imóveis levantados são classificados como ocupados. Dentre os

ocupados, foi quantificado 2.211 destes imóveis como edificações. Entre estes, 2.694 imóveis

configuram-se como próprios dos moradores e os demais na situação de alugados ou cedidos.

Ao total o Igarapé Ambé configura-se como 37,23% da área total dos imóveis levantados na

ADA Urbana, onde a dimensão média dos lotes figura em 197 m².

Segundo as pesquisas do EIA, as edificações cadastradas estimaram o número de

2.503, dos quais 83% apresentam seu uso como residencial e 1,5% como contendo alguma

atividade econômica. Também cadastrou-se a existência de somente uma escola, particular, o

Centro de Ensino Pequeno Cidadão (CEPEC), de 426 edificações vazias e 1.901 edificações

em uso - não conseguindo a pesquisa identificar todos os grupos domésticos diretamente

afetados neste setor - além de 18 edificações destinadas a atividades religiosas.

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Dentre estas edificações, 38% foram identificadas como palafitas e o restante

instaladas no solo. Foi constatado, em suma, queas construções em palafita estão localizadas

em áreas sujeitas a inundação periódica, compreendendo poucos lotes localizados nas áreas

mais altas, como no bairro Boa Esperança. A área média destas edificações estima-se em 28,4

m², analisada como a menor das áreas médias das edificações levantadas na ADA Urbana. O

documento traz a descrição da tipologia básica das edificações, contendo então ambientes

como sala, um ou dois quartos e um corredor que faz ligação com a cozinha.

Sobre as condições sanitárias, foram avaliadas como bastante precárias, 66% das

edificações possuem instalações de uso exclusivo, porém se encontram impróprias no quesito

do saneamento ambiental, porque se caracterizam como fossas rudimentares. Somente três

dessas edificações são atendidas pela rede geral de esgoto sanitário e nove contêm fossas

sépticas.

No que se trata do abastecimento de água, há 69,6% edificações com poços

particulares e 5,7% ligadas à rede geral gerenciada pela Prefeitura. Foi relatado no documento

que não foi possível coletar informações acerca da qualidade da água desses poços, mas é

salientada a possível contaminação ou poluição referente às condições gerais das áreas de

contribuição e a ausência de critério para suas implantações. Constatou-se pelo estudo que em

muitos lotes o despejo do esgoto se dava no próprio Igarapé Ambé, interferindo, portanto, na

qualidade da água, impossibilitando seu uso doméstico, e consequentemente se tornando fator

de contaminação e proliferação de doenças.

Ao tratar da caracterização da população, levantou-se que predomina o número de

jovens com menos de 20 anos, de pessoas nativas de Altamira, destacando também que uma

parcela significativa é oriunda do Maranhão, onde a maioria dos habitantes se encontra

solteira e residente da região entre dez e vinte anos.

Sobre as atividades econômicas predominantes no Igarapé Ambé, contabilizando o

número de 226 edificações levantadas pelo estudo, destacando-se a existência de pequenos

comércios, seguido pelos setores de serviços e de indústrias.

Assim como o apoio cartográfico do Igarapé Altamira, o pertencente ao Igarapé Ambé

também é um croqui de localização, que por meio de uma sobreposição a uma imagem de

satélite por uma mancha que limita a área correspondente, busca ilustrar a localização deste

setor em Altamira, também identificando os limites dos bairros e informações das vias

urbanas e do curso d’água. Além deste, é a única análise contida na ADA Urbana que possui

outro elemento cartográfico, igualmente com uma imagem de satélite como base, que

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identifica espacialmente em sua área, a localização das edificações destinadas a atividades

econômicas, com o intuito de demonstrar a distribuição das mesmas, possibilitando então, a

visualização espacial da disposição das atividades econômicas existentes, apresentando sua

diversidade em constatar pontos de comércio, serviços, indústria e suas variações, traçando os

limites referentes a área do setor de pesquisa Ambé e a que compreende ao reservatório,

exibindo suas justaposições.

FIGURA 32 – ADA Urbana - Igarapé Ambé

Fonte: EIA (2008)

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FIGURA 33 – Distribuição das Edificações Destinadas a Atividades Econômicas

Igarapé Ambé

Fonte: EIA (2008)

6.1.2.3 Igarapé Panelas

A área referente ao Igarapé Panelas compreende 10,93 ha, sendo o menor setor urbano

classificado pelo EIA, com apenas 75 imóveis. Sua foz situa-se no limite da zona urbana de

Altamira e parte de sua zona rural, a noroeste. Esta região é caracterizada, pelo estudo em

questão, pelas grandes áreas vazias não parceladas, contendo algumas propriedades rurais, e

pelo difícil acesso, que ocorre de forma precária.

Entretanto, o EIA considerou, para a pesquisa da área urbana, uma pequena porção da

bacia do Igarapé Panelas, devido à maior ocupação do território e o acesso que ocorre pela

Avenida Tancredo Neves, além de sua importância para a população da região por abranger a

Praia do Page, na margem esquerda do Rio Xingu.

Nesta área, dentre os 75 imóveis citados (de tamanho médio de 166 m²), 64 são classificados

como contendo edificações, correspondente a 86,33%, e 11 como vazios, correspondente a

14,66%. 64 destes imóveis são apresentados pelo estudo como contendo algum tipo de uso,

sendo eles: 57 edificações de uso residencial (90,6%), 64 deles apresentam algum tipo de uso

(77,7%). Predomina o uso exclusivamente residencial em 90,6% dos casos (57 edificações);

em apenas 5 edificações (6,2%) foram detectadas alguma atividade econômica, sendo que em

duas delas o uso é misto (também residencial). Foram registradas 10 edificações vazias

(12,35%). Não foram registrados equipamentos sociais e comunitários na ADA no Igarapé

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Panelas. Quanto à condição de ocupação das edificações, a grande maioria é do próprio

morador (72,83%), sendo restritos os imóveis alugados (8,7%) ou cedidos (6,52%) e

inexistentes a situação de imóvel ocupado.

FIGURA 34 – ADA Urbana - Igarapé Panelas

Fonte: EIA (2008)

6.1.2.4 Reflexões

A partir da apresentação do EIA acerca dos Igarapés contidos na área diretamente

afetada (ADA) da zona urbana, observa-se os mesmos problemas analisados nas

representações cartográficas contidas no ADA Rural, fazendo-se a possível leitura de que há,

inerentemente, a proposição de neutralidade e de homogeneização da multiplicidade espacial,

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tanto em caráter material, relacionado aos imóveis levantados, quanto imaterial,

compreendendo as dinâmicas sociais e a pluralidade da população pertencente à área

averiguada.

Ainda que o estudo contenha os dados quantitativos inferidos por meio das pesquisas

censitárias, da variedade populacional em seus diferentes âmbitos e também dos diferentes

usos dos imóveis, estes dados não transparecem na cartografia elaborada, a não ser na

representação das atividades econômicas presentes no Igarapé Ambé, que mesmo de maneira

plana, traz um panorama de distribuição espacial da variedade dessas atividades,

possibilitando ao observador compreender, de certa maneira, a disposição associada às

dinâmicas deste compartimento, aspecto não utilizado na representação de outras temáticas,

nem dos outros igarapés.

Observa-se que apesar de se tratar de áreas urbanas com dinâmicas físico-funcionais

preexistentes, estas são emudecidas. O discurso apresentado no estudo e nas representações

cartográficas elaboradas, mesmo se tratando de croquis, esconde sua importância, valor ou

realidade, bem como os impactos gerados com a supressão de ruas, escolas, postos de saúde,

comércios e demais moradias entre um Igarapé e outro, como se não houvesse nenhuma

relação entre eles.

Portanto, a ausência emerge nas representações superficiais que não contém em seu

conteúdo a indicação dos resultados obtidos pelas pesquisas a campo, não contemplando a

desterritorialização a que foi submetida a cidade e a população e que requer uma indicação

mais profunda e detalhada cartograficamente, para assim haver confluência entre os dados

levantados e como estes se dão espacialmente. Afinal, as relações e dinâmicas sociais são

imanentes ao espaço, sempre e só podem existir coexistindo com este espaço.

O conteúdo apresentado neste momento ainda não aponta as soluções para o

reassentamento das famílias. Nota-se de extrema necessidade que, conjuntamente à exposição

do produto da pesquisa, após descrever suas condições levantadas, fosse feita alguma

consideração sobre o reassentamento dos desterritoralizados e sobre as novas formulações

urbanas frente à desestruturação dessas áreas. O que se observa, ao contrário, é a ausência de

compromisso e a carência de quaisquer definições mais claras e capazes de demonstrar as

medidas de compensação para os impactos sofridos.

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6.2 Modos de Vida

A cientista política Marie-Dominique Perrot em seu artigo “Quem impede o

desenvolvimento “circular”?”, explicita a relação intrínseca entre o espaço e os traços

culturais da população identificada como autóctone a certa região, portanto há especificidades

inerentes que configuram o espaço, além de materiais, como imateriais e simbólicas,

englobando tanto relações de subsistência desses povos, como possibilitando a preservação e

as expressões culturais dos mesmos. Deste modo, pode-se compreender que a população

beiradeira será afetada em seu modo de vida, impactando suas dinâmicas relacionais

geográficas, em suma, a maneira com que vivenciam o espaço e como se estabelecem no

território.

Tanto no estudo referente à ADA rural quanto no da ADA urbana, são ressaltadas as

atividades de lazer da população, sendo estas fatores de expressão das atividades tradicionais

dos habitantes locais, que se desdobram em práticas culturais e de características locais. Nas

tabelas utilizadas como síntese dos levantamentos contidos no ADA acerca das atividades de

lazer, da ADA rural e da ADA urbana, respectivamente apresentadas a seguir, demonstram-se

quantitativamente aspectos típicos da população tradicional ao evidenciar a penetração social

das religiões de matriz cristã, indicadas pela quantidade de respostas que relacionam sua

atividade de lazer a ir à igreja, assim como, o expressivo número que frisa a importância do

rio Xingu na caracterização do modo de vida singular da população beiradeira, por meio das

respostas associadas a tomar banho de rio e à pesca. É possível, então, observar a relevância

do rio, mesmo obtendo posições mais baixas na zona urbana, nos dois setores contemplados

pela ADA.

FIGURA 35 – ADA Rural - Atividades de Lazer - Setor Santo Antônio

Fonte: EIA (2008)

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FIGURA 36 – ADA Rural - Atividades de Lazer - Setor Santo

Fonte: EIA (2008)

FIGURA 37 – ADA Urbana - Tipos de Atividades de Lazer dos Grupos Domésticos

Fonte: EIA (2008)

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Independentemente do conhecimento do Dossiê Belo Monte e das ocorrências pós-

obras da UHE Belo Monte, este levantamento, por si só, já coloca em dúvida a manutenção do

modo de vida da população diretamente afetada UHE de Belo Monte. Seguramente o

processo de desterritorialização dessa população com a expropriação da região onde habita e a

demolição das estruturas urbanas de referência, afetou a possibilidade de manutenção destas

mesmas práticas sociais, tanto pela população que foi realocada para longe das imediações do

rio Xingu ou da igreja que se habituou a frequentar, quanto pela população limítrofe, que

também tem sua dinâmica social e espacial interferida devido à perda destes territórios.

Somente no estudo referente à ADA rural foi utilizada a linguagem cartográfica para

explicitar a localização dos estabelecimentos de comércio e serviços na região diretamente

afetada. Estas representações, que compreendem a margem esquerda e direita do rio Xingu, as

ilhas e o local da implantação do reservatório dos canais da Usina, trazem em seu conteúdo a

locação dos postos de saúde, igrejas, escolas, comércios e cemitérios contidos nesta zona,

possibilitando visualizar como estes estavam dispostos espacialmente, porém mantém ausente

a percepção da abrangência destes estabelecimentos, inclusive exterior à Área Diretamente

Afetada, desta maneira, não sanando as dúvidas acerca da sua desterritorialização, aspecto

principal dos impactos do projeto.

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FIGURA 38 – Equipamentos e Comércio no Setor Margem Esquerda

do Reservatório do Xingu

Fonte: EIA (2008)

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FIGURA 39 – Equipamentos e Comércio no Setor Margem Direita

do Reservatório do Xingu

Fonte: EIA (2008)

FIGURA 40 – Equipamentos e Comércio no Setor Ilhas

do Reservatório do Xingu

Fonte: EIA (2008)

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FIGURA 41 – Equipamentos e Comércio no Setor Reservatório dos Canais

Fonte: EIA (2008)

6.2.1 Reflexões

Assim como as demais peças cartográficas contidas no estudo das áreas diretamente

afetadas, os elementos representados são apresentados de uma maneira inexpressiva em

relação aos deslocamentos destes equipamentos, não ilustrando, ou sequer propondo, as

possibilidades acerca de novas implantações destes estabelecimentos ou das medidas de

compensação e mitigação praticáveis frente a este processo de desterritorialização, portanto,

indicando eventuais reterritorializações. Além disto, ao observar o número de entrevistados

acerca das atividades de lazer, nota-se um número bastante pequeno de moradores

consultados, não compreendendo, assim, a totalidade quantitativa da população total,

possibilitando o questionamento sobre as proporções obtidas.

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Desta maneira, pode-se analisar que o empreendimento da UHE Belo Monte acarretará

mudanças significativas no modo de vida da região, já que compreende áreas de expressiva

dimensão territorial e de populações ligadas profundamente com o espaço que lhes é

particular, sobretudo, pela conexão considerável com o rio Xingu, ou seja um processo

compulsório de desterritorialização. Tais fatores carecem de transparência nestes

documentos, suscitando a interpretação de que as forças que regem projetos

desenvolvimentistas encontram justificativa e legitimação para suas intervenções na

pauperização de populações autóctones. Desta forma, isentam seus impactos adjetivados

‘como inevitáveis’, conferindo-lhes pressupostas necessidades atribuídas ao projeto, mesmo

que estas sejam distintas das identificadas e urgentes para as populações afetadas.

6.3 Usos do Rio Xingu

A partir da fundamentação teórica contida no livro “A morte social dos rios” do

cientista político e social Mauro Leonel, exibe-se a intrínseca relação com o rio presente nas

populações beiradeiras, assim, contendo em suas práticas culturais e cotidianas a presença do

rio como fator de destaque que permeia as relações sociais de tais populações. Portanto, deve-

se sublinhar, ao analisar populações beiradeiras, como as enquadradas nas áreas diretamente

afetadas pela usina hidrelétrica de Belo Monte, os processos sociais em que o rio Xingu

demonstra-se como essencial e determinante.

A partir dos levantamentos sobre os usos do rio Xingu, tanto no âmbito da ADA rural,

quanto da ADA urbana, o rio explicitado nas atividades de lazer como pesca e local de banho

é atribuído a um dos principais elementos deste contexto, de evidente importância para a

compreensão do modo de vida tradicional.

Em suma, a pesca é constatada pelos levantamentos na ADA, em três formas

substanciais, como constatado na qualidade de subsistência, praticada de maneira tradicional,

configurando-se como uma atividade para renda complementar e subsistência familiar, sendo

identificada mais notadamente no setor rural. O segundo desdobramento da pesca identificado

é como atividade exclusivamente comercial, dada de formas artesanais, voltada para a venda

nos mercados. E por fim, há a prática da pesca voltada para o âmbito esportivo, encarada

como atividade de lazer, tanto praticada pelos moradores locais, como também uma atividade

turística.

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O modo representativo, utilizado para explicitar tais usos do rio nas duas zonas da

ADA, foi sistematizado por meio de tabelas. As pesquisas foram realizadas junto à população

local e resultaram em dados estatísticos que conformaram uma quantificação média acerca

dos usos referentes ao rio Xingu. Tais tabelas são apresentadas a seguir e referem-se,

respectivamente, à ADA rural e à ADA urbana.

FIGURA 42 – Finalidade da Atividade da Pesca – Setor Santo Antônio

Fonte: EIA (2008)

FIGURA 43 – Usos do Rio Xingu – Setor Santo Antônio

Fonte: EIA (2008)

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FIGURA 44 – Alternativas de Uso dos Igarapés e do Rio Xingu

Mais Utilizadas pelos Moradores

Fonte: EIA (2008)

6.3.1 Reflexões

Equivalente à análise apresentada acerca do número de entrevistados no âmbito do

modo de vida local, no quesito dos usos do rio, a quantificação de moradores consultados

também se apresenta como pequeno, suscitando indagações se as proporções médias

auferidas, de fato, englobam a totalidade da população impactada.

É importante salientar o fato de entre os principais usos levantados, estar contido a

utilização do rio Xingu como transporte, aspecto negligenciado no conteúdo dos estudos da

ADA, como também nas medidas de mitigação e compensação firmadas pela empreendedora.

Este impacto é um ponto excepcional, já que o funcionamento do AHE Belo Monte altera o

curso e o volume do rio e afeta diretamente aqueles que o utilizam, além de ao deslocar as

populações impactadas, poder inviabilizar que essas utilizem o rio como transporte, já que

podem ser realocadas para longe de seu leito.

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Por fim, outro ponto a ser levantado é a respeito de não haver nenhuma análise

cartográfica que referencie e represente as atividades que o rio exerce socialmente. Assim,

não é possível uma perspectiva espacial do local onde estas ocorrem, tolhendo uma

compreensão relacional de como as mudanças físicas do rio afetam diretamente essas

atividades, destacadas pelo próprio levantamento como significantes para a população local.

Portanto, ausenta-se da alçada do empreendedor uma análise especializada dos conflitos

diretamente vinculados ao fator de interesse principal da Usina: o recurso hídrico, que

também se configura como primordial para as dinâmicas sociais locais já existentes.

7 CARTOGRAFIA DA AUSÊNCIA

Com base nas análises anteriores, nota-se que as ausências das cartografias oficiais são

de suma importância para o entendimento dos processos desencadeados pela implantação da

Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Como pôde ser observado nas reflexões predecessoras, as

informações acerca dos impactos ocasionados pela implantação da Usina são demonstrados a

público de maneira desconectada, sem que se possa observar e compreender, em uma escala

adequada e relacional, os devidos impactos. Deste modo, ocultam-se elementos fundamentais

de modo intencional no discurso das fontes oficiais, demonstrados em suas cartografias.

Portanto, faz-se necessário revelar as ausências e articulá-las aos aspectos já expostos.

Substancialmente, o espaço se torna o elemento essencial para a assimilação dos

processos sociais, sendo ele próprio um produto social e também um elemento de interação

com a sociedade. Deste modo, partindo do princípio apreendido na presente pesquisa, do

espaço enquanto produto-produtor (GOUVÊA, 2010), torna-se mais clara a apreensão da rede

complexa de processos que se dão sob o mesmo. Com isto, considera-se indispensável a

representação dos fenômenos e processos em material cartográfico, pois, desta maneira, é

possível visualizar a dimensão e a correlação de aspectos que, a um primeiro momento,

podem parecer ou fazerem-se parecer estarem apartados.

Um ponto observável nos produtos cartográficos elaborados pela Leme Engenharia,

contidos no EIA-RIMA, é a divisão em recortes das representações

cartográficas em pequenas regiões, mesmo que estas retratem um mesmo tema. Sabe-se que

quanto menor a escala da representação cartográfica, mais aproximada e possivelmente

mais detalhada se torna o produto que se gera. Porém, no caso das cartografias referentes

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no levantamento da ADA rural e da ADA urbana, não há uma cartografia de maior escala que

contemple toda a região afetada e, que consequentemente, apresente os locais presumidos

para realocação da população removida. Deste modo, proporcionam uma interpretação

fragmentada do processo de desterritorialização e reterritorialização acometido à população

local. Logo, não proporcionam uma definição precisa do deslocamento da população, muito

menos de suas perdas tanto de valor material, como imaterial, como as relações simbólicas e

afetivas com o lugar, as mudanças de modos de vida, etc.

Assim, em um primeiro momento, faz-se necessária uma cartografia que revele as

dimensões contidas neste processo de reassentamento em um único produto, desvelando as

relações entre a implantação destes reassentamentos com a cidade e a relação entre eles com a

localidade de origem da população desterritoralizada e consequentemente com o rio Xingu.

FIGURA 45 – Desterritorialização dos beiradeiros - Altamira

Fonte: Produção própria sobre base cartográfica do IBGE (Mapa urbano digital - Contagem

da população – folhas 01-01; 01-02; 02-01; 02-02. 2007)

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A proposição cartográfica acima busca explorar e dar passos iniciais a um estudo de

representação cartográfica que estruture espacialmente os elementos possíveis de serem

cartografados em um único material, sem que este se torne poluído ou impossibilite a sua

apreensão. Visa, ainda, à representação da rede de impactos de forma objetiva, ao revelar

elementos relacionais e suas consequências. Deste modo, torna-se possível a realização de

constatações críticas, despindo-se da premissa e do discurso de neutralidade que a cartografia

oficial é imbuída.

No mapa acima, pretende-se demonstrar a distância espacial entre a localidade de

origem da população desterritoralizada e a região prevista para sua reterritorialização. Pela

identificação das vias estruturantes da região, confere-se a falta de conectividade dos

reassentamentos propostos com a cidade em si e, portanto, com a localidade de origem desta

população. Consequentemente, é visível, também, a distância destes com o rio Xingu, o

que reforça um ponto fundamental denunciado pelo Dossiê Belo Monte: a perda do modo de

vida ribeirinho, condição também levantada pelo EIA como característica intrínseca da

região e ausente na concepção da implantação dos reassentamentos coletivos.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, percebe-se que a cartografia da ausência se faz além de uma possível

produção cartográfica, como um modo de perspectivar a interpretação cartográfica,

compreendendo a importância de assimilar os contextos e processos que envolvem o mapa a

ser analisado. Compreender quais são as intencionalidades e finalidades presentes e ocultas na

cartografia e como tais elementos se articulam se demonstra como um ponto crucial para uma

análise mais profunda e crítica, um movimento dialético.

Com a presente pesquisa, foi possível observar de forma mais concreta a maneira

como a autoridade se infere ao mapa pelas instâncias oficiais que detêm suas produções. A

etapa de garimpagem das bases cartográficas oficiais para utilização como estudo frente às

elaboradas pela concessionária Norte Energia se mostraram árduas de encontrar, pois há

poucos produtos cartográficos disponíveis e utilizáveis para a análise que a presente pesquisa

se propôs a elaborar. Deste modo, fica evidente que informações cartográficas elaboradas por

órgãos estatais se encontram, atualmente, disponibilizados aos civis de maneira dificultosa,

principalmente ao se tratar de regiões não metropolitanas e com pouco destaque na conjuntura

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nacional. No caso de Altamira, o objeto principal da pesquisa, mesmo sendo uma região

historicamente marcada por intervenções de infraestrutura que tiveram grande destaque (como

a implantação da rodovia Transamazônica e da UHE Belo Monte), é um município

abandonado por investimentos de ordem social voltados à população, em que as informações

cartográficas encontradas disponíveis se demonstraram insuficientes.

Em suma, os produtos que serviram de base para análise aqui desejada, se resumiram

às elaboradas pela Norte Energia, a qual intencionalidade do representável se pauta no

licenciamento da Usina. Portanto, de desígnio já explícito, distinto da problemática exposta

por órgãos de defesa ao meio ambiente e à parcela social vulnerável, que é o caso do ISA,

abordado anteriormente na análise do Dossiê Belo Monte, documento de denúncia às

inviabilidades inerentes a implantação da Usina.

Todavia, a percepção de que o essencial está na ótica da ausência e não

necessariamente de um produto que a represente, pois, a interpretação das representações

cartográficas disponíveis, independentemente de seu tema, contém em si a ambiguidade das

presenças e das omissões, sendo estas inevitáveis, “não sendo nem verdadeira nem falsas, mas

verdadeiras e falsas ao mesmo tempo, pois são respostas a necessidades concretas, ao mesmo

tempo que dissimulam objetivos reais” (GOUVÊA, 2010, p. 45). Portanto, mesmo não

havendo cartografias que se contrapõem, os imperativos de autoridade se explicitam no oculto

e cabe ao olhar crítico revelá-las e questioná-las frente à compreensão dos processos

contextuais e ao que se declara manifesto de maneira nítida.

Os processos aqui salientados de impacto à população beiradeira das áreas afetadas

pela UHE Belo Monte se dão para avante a implantação da Usina. Tanto no que se trata das

consequências que influenciarão o desenvolvimento local e o modo de vida da população (a

reassentada e também a que permaneceu em sua localidade), quanto por se tratar de uma

lógica intervencionista estatal de desenvolvimento, que tende, historicamente, a repetir os

mesmos processos de exploração territorial e desarticulação a comunidades tradicionais e

vulneráveis.

.

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9 REFERÊNCIAS

GOUVÊA, José Paulo Neves. A cidade do mapa: a produção do espaço de São Paulo através

de sua produção cartográfica. Dissertação de Mestrado – capítulos Introdução, 1 e 2.

FAU/USP. São Paulo, 2010.

HAESBAERT, Rogério. Dos Múltiplos Territórios à Multiterritorialidade. Universidade

Federal Fluminense, Rio de Janeiro: GEOgraphia - Ano IX - No 17 – 2007.

ISA – INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. PROGRAMA XINGU. Dossiê Belo Monte. Não

há condições para a Licença de Operação. São Paulo, Junho 2015.

LEONEL, Mauro. A Morte Social dos Rios. Conflito, natureza e cultura na Amazónia. São

Paulo: Ed. Perspectiva, FAPESP, 1998.

PERROT, Dominique. Quem impede o desenvolvimento "circular"? Tradutora: Ligia Romão.

São Paulo: Cadernos de Campo, NAU, n.17 p219-232, 2008, Ciências Sociais/USP.

Traduzido de “Les empêcheurs de développer em rond”, Ethnies. Droits de h’homme et

peuples autochtones, nº13, La fiction et la feinte. Développpmente et peuples autochtones.

Survivel International France , 1991.

SANTOS, Milton. O retorno do territorio. En: OSAL : Observatorio Social de América

Latina. Ano 6 no. 16, Jun. 2005.

VELÁSQUEZ, Cristina; VILLAS BOAS, André; SCHWARTZMAN, Stephen. Desafio para

a gestão ambiental integrada em território de fronteira agrícola no oeste do Pará. RAP Rio de

Janeiro 40(6):1.061-75, Nov. /Dez. 2006.

Figura 39: ALTAMIRA. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapa do Município

de Altamira do Estado do Pará, [Contagem da população – Mapa Urbano Digital]. Folhas 01-

01; 01-02; 02-01; 02-02. 2007.

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Figura 40; 41; 42: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapa Brasil Grandes

Regiões, [Cartas e Mapas - Folhas Topográficas].

10 GLOSSÁRIO

Beiradeiro: População que usufrui e/ou habita à margem de um rio, no caso o rio Xingu,

afetada pela UHE Belo Monte.

Desenvolvimento: Política pública que visa o avanço crescimento econômico, social e

político de um país, região, município. (LEONEL,1998)

Desterritorialização: Perda do território apropriado e vivido; deslocamento forçado

decorrente de processos de forças externas hierarquicamente superiores no âmbito político

e/ou econômico.

Espaço: É a porção da superfície terrestre onde as atividades humanas acontecem; lugar onde

atua as sociedades servindo para seu desenvolvimento e exploração e extração de recursos

naturais.

Espaço capitalista: Espaço organizado sob o modo de produção capitalista. Podendo ser

caracterizado como “espaço homogêneo, fragmentado, hierarquizado”

Homogêneo por se tratar de um espaço urbanizado, de modo que em uma grande escala pode

ser observado como unidade; fragmentado porque está ligado ao caráter econômico, pois é

passível de ser geometrizado, logo vendido e consumido em lotes; e hierarquizado pela

separação funcional e de valor de uso que se atribui a determinado espaço, ligado a níveis de

poder econômico e político, observável na segregação entre centro e periferia.

Espaço produto-produtor: Conceito atribuído à relação do espaço com a sociedade, onde a

sociedade não somente interfere no espaço através de seu modo de produção, mas o espaço é

entendido também como agente interativo, não pelo viés de ser fato dado da natureza.

Forças produtivas: Combinação de força de trabalho com os meios de produção, utilizada

para transformação da natureza; segundo teoria marxista.

Modo de produção: Relação entre propriedade e trabalho relacionada à determinada

sociedade.

Multiterritorialização : Sobreposição lógica de territórios, hierarquicamente earticulados,

"encaixados"; Vivência concomitante de diversos territórios em uma mesma porção do

espaço.

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Povo Autóctone: Se refere a povos que são naturais de uma dada região, contextualizado na

pesquisa, diz respeito aos povos indígenas e populações tradicionais beiradeiras a região

impactada pela UHE Belo Monte.

Produção do espaço: Produto decorrente das interações e apropriações do espaço por uma

sociedade, modificando-o de acordo com seus imperativos econômicos e políticos, em dado

momento histórico.

Propriedade: Apropriação das condições naturais; Pertencimento ou direito legal de possuir

algo; Porção considerável de terra pertencente a um dono.

Relações de produção: Relação que o ser humano estabelece com o trabalho e a distribuição

através do processo de produção e reprodução; segundo teoria marxista.

Representação do espaço: Espaço concebido, segundo Lefebvre; que constitui o espaço da

cartografia, do conhecimento, da ciência, do progresso.

Reterritorialização: Processo decorrente e/ou subsequente a desterritorialização; implica em

uma relação com um novo território ou com uma mudança significativa do mesmo, afetando o

modo de vida dos afetados pelo processo.

Ribeirinho: Aquele que habita as margens do rio ou o usufrui em seu modo de vida, podendo

ou não possuir a atividade pesqueira como profissão ou para subsistência. De acordo com

Mauro Leonel, ribeirinho é um modo de vida do interior amazônico que pratica a pesca

artesanal, sendo ele rural, com moradia em vilas e colocações nas margens dos rios, seu

acesso à renda monetária e ao mercado é menor do que a do pescador especializado.

Territorialidade: Incorporação das relações econômicas, culturais e políticas que se dão no

território, está ligada ao modo de utilização, organização e significação do espaço por

determinada sociedade/comunidade.

Território: Espaço delimitado com o qual se tem uma relação de poder, este podendo ser

político e/ou representativo; portanto dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um sentido

multi-escalar e multi-dimensional, configurando a conceituação de multiterritorialidade.

Valor de troca: Deriva da relação de dominação que se tem com o território, relacionado ao

conceito de propriedade; pertence a noção de território funcional.

Valor de uso: Deriva da relação de apropriação que se tem com o território, relacionado a

identificação cultural e de vivência que se desenvolve com o território, pertence a noção de

ser composto por marcas do “vivido”.