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AGOTIMÉ A RAINHA DO MARANHÃO Esboço de um romance que jamais escreverei Dino de Alcântara Foi pra terra da magia Do folclore e tradição Um bouquet de poesia A Casa das Minas É o orgulho desse chão! (Déo, Caruso, Cleber e Osmar, Samba da Beija-Flor, 2001) PRÓLOGO Mário de Andrade afirma no início de sua narrativa Vestida de Preto que “tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade”. O leitor certamente ao ver o nome tão afamado de Agotimé no título deve percorrer as magras frases deste texto, imaginando que vai encontrar uma série de relatos sobre sua vida, sua missão, seus feitos, seu valor, etc. ou julgar que vai ler uma novela sobre a saga da grande mulher da família real africana. No entanto, a trajetória da rainha destronada de Daomé será contada em flashes, com intuito de instigar os leitores para que resgatem, com novas leituras, a vida dessa grande mulher que, como Castro Alves diria, deixou seu nome gravado no panteão da história. Este texto seria, provavelmente, classificado por Clodoaldo Freitas, o autor de O Palácio das Lágrimas, como um “esquisso de um romance”. Talvez Jomar Moraes o classificasse como “Apontamentos para o romance A Saga de Agotimé”. José Neres, possivelmente, lerá como traços de uma crônica histórica. Raimundo Paiaco diria que é uma história. Eu o batizo como esboço de um romance. Resta ainda dizer que esta é uma obra de ficção, porém qualquer semelhança com nomes, fatos ou pessoas da vida real NÃO terá sido, como costuma mentir uma emissora de tevê, mera coincidência.

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Page 1: Esboço de um romance que jamais escreverei Dino de Alcântara · de seres humanos, Francisco, para que trouxesse ao Brasil. Com ela vieram muitos membros da família real ligada

AGOTIMÉ A RAINHA DO MARANHÃO

Esboço de um romance que jamais escreverei

Dino de Alcântara

Foi pra terra da magia

Do folclore e tradição

Um bouquet de poesia

A Casa das Minas

É o orgulho desse chão!

(Déo, Caruso, Cleber e Osmar,

Samba da Beija-Flor, 2001)

PRÓLOGO

Mário de Andrade afirma no início de sua narrativa Vestida de Preto que “tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade”. O leitor certamente ao ver o nome tão afamado de Agotimé no título deve percorrer as magras frases deste texto, imaginando que vai encontrar uma série de relatos sobre sua vida, sua missão, seus feitos, seu valor, etc. ou julgar que vai ler uma novela sobre a saga da grande mulher da família real africana. No entanto, a trajetória da rainha destronada de Daomé será contada em flashes, com intuito de instigar os leitores para que resgatem, com novas leituras, a vida dessa grande mulher que, como Castro Alves diria, deixou seu nome gravado no panteão da história. Este texto seria, provavelmente, classificado por Clodoaldo Freitas, o autor de O Palácio das Lágrimas, como um “esquisso de um romance”. Talvez Jomar Moraes o classificasse como “Apontamentos para o romance A Saga de Agotimé”. José Neres, possivelmente, lerá como traços de uma crônica histórica. Raimundo Paiaco diria que é uma história. Eu o batizo como esboço de um romance. Resta ainda dizer que esta é uma obra de ficção, porém qualquer semelhança com nomes, fatos ou pessoas da vida real NÃO terá sido, como costuma mentir uma emissora de tevê, mera coincidência.

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COSTA DA ÁFRICA No ano de 1485, o capitão da Nau Tejo, a mando do

monarca D. João II, ancorou na costa da África. Uma praia de cenário idílico. Pedras ao fundo, vento balançando as folhas das árvores. Estavam atrás de água e comida.

Os marinheiros portugueses encontraram mais que isso. Descobriram uma tribo bem organizada. Com o chefe tribal, o capitão luso fez os primeiros de muitos contatos e negociações, com trocas de facas e outros objetos.

Detalhe: Nau portuguesa do Século XVI.

Detalhe: Costa da África.

Detalhe: praia de Alcântara. Cenário idílico,

como as praias de Daomé.

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DAOMÉ Em 1620, o chefe Uebajá, forte, valente, com um grupo

de mais de 250 homens, submeteu várias tribos que viviam em aldeias próximas. Juntando todas as tribos, o líder fundou o Reino de Daomé, cuja capital passa a se chamar Abomei. Respeitado pelos seus e pelos portugueses, com os quais intensificou o comércio, reinou absoluto por muitos anos.

Detalhe: Mulheres e homens preparados para a guerra.

Detalhe: Mapa do Reino de Daomé, hoje Benin.

Os europeus da Península Ibérica iam a Daomé até

duas vezes por ano em busca de homens e mulheres para a horrenda escravidão humana. Muitos marinheiros acharam isso um pecado, mas os padres de Lisboa diziam sempre que os africanos não possuíam alma, por isso poderiam ser escravizados, inclusive com trabalhos duros. Um sacerdote de Coimbra dizia que os africanos eram mouros, dessa forma, não deveria haver compaixão para com eles.

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No final do século XVII, do Porto de Daomé, saíam milhares de homens, mulheres e crianças amarradas como se fossem grandes felinos, como o leopardo. Embarcavam nos navios e atravessavam o grande oceano em direção ao Brasil. No novo mundo, o inferno da escravidão. Sem família, sem nação, sem liberdade. Só a dor, a morte e as lágrimas como companheiras.

Detalhe: Escravos acorrentados embarcando

num navio negreiro no Porto de Daomé. AS MINAS GERAIS

A partir de 1720, intensificam a extração de ouro e outras pedras preciosas em Minas Gerais. A Coroa Portuguesa pressionou o rei Agajá a capturar mais homens e mulheres. Iniciou-se um dos períodos mais sangrentos na região de Daomé. O rei, com um exército de milhares de homens e mulheres bem armados, ocupou centenas de tribos. Escravizou e os vendeu aos portugueses. O choro e o grito de horror espantavam os leões e as leoas.

Detalhe: Ilustração do Le Petit Journal, 29 de abril de 1892.

A guarda pessoal do rei daomeano era composta por mulheres guerreiras, que os europeus chamavam de “amazonas negras”.

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Detalhe: escravizados nas minas das Gerais.

O MARANHÃO Em 1770, Marquês de Pombal negociou com Tebessú,

que havia se tornado o chefe do Reino de Daomé em 1740, a captura e a venda de pelo menos cem mil homens e mulheres. O Maranhão, com a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, implantou a cultura do algodão, o ouro branco, e necessitava de um número gigantesco de escravizados para limpar o terreno, derrubando árvores imensas e palmeiras imponentes, queimar, plantar, capinar e colher o produto, etc. Para Alcântara, no governo de Joaquim de Melo e Póvoas, “vieram” milhares de seres humanos acorrentados, como se fossem leões e leoas, para o trabalho na lavoura. Numa grande roça de algodão, arroz, milho, para as bandas do Cujupe, de propriedade de um português de nome Manoel, casado com uma “brasileira”, dona Maria Paula, trabalharam mais de 20 homens e 30 mulheres. Na salina do Itapeua, 4 homens se “esgurijaram” muito para tirar sal. Boca da noite, de luar, com a brisa

vinda da maré, os negros faziam cofos para empaneirar a safra. Mogênio contava histórias do tempo que vivia na África.

Detalhe: Ruínas da Igreja em Alcântara,

com o Pelourinho a frente.

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Detalhe: Mulheres e homens escravizados.

Pausa para alimentação.

Detalhe: Quando os franceses, em 1613, contornaram a Ilha do Cajual

(ao centro do mapa), navegando por um braço de mar, hoje conhecido como Igarapé, os índios tupinambás já chamavam de

Cujupe, o que acabou dando nome ao povoado.

Detalhe: Vista do “Igarapé” do Cujupe. Ao fundo, Ilha do Cajual.

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Detalhe: Vista do Cujupe, em 2020.

Mogênio, em noites de Lua cheia, gostava de contar histórias. A ILUMINADA

Durante o reinado de Penglá, em 1775, nasce uma menina de olhar forte. A parteira deu à mãe, dizendo que era uma mulher. Recebeu o nome de Nã Agotimé. Aos dez anos, chamava a atenção de todos pela coragem, altivez, beleza e pelo olhar. Não temia nada. Corria como se fosse um guepardo. AGONGOLO

Em 1789, com a morte de Penglá, Agongolo se torna rei. Casa-se com Melein e com ela tem um filho – Adandozan. Menino de olhar sombrio, como se viesse ao mundo para fazer o mal, despertou desde cedo apreensão nos pais. RAINHA

Em 1791, Agotimé torna-se a segunda esposa de Agongolo. Dessa união, de amor, nasce um filho, Ghézo. Ghézo, desde dois anos, despertou inveja e ira no seu irmão mais velho. Adandozan olhava o irmão com desprezo, por ser Ghézo o preferido do pai. Agotimé tentou conquistar o enteado, mas não conseguiu o afeto, apenas o desprezo.

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Detalhe: Representação de Agotimé no carnaval

da Leandro de Itaquera, São Paulo, 2021. Segundo consta a tradição popular, era uma mulher muito formosa.

MORTE DE AGONGOLO

Agongolo dizia a todos que Ghézo seria seu sucessor no reinado. Não queria o cruel Adandozan. A morte precoce do rei em 1797, porém, mudou os planos de todos. O primogênito de Agongolo, usou de força, traição, vingança, e tomou o poder. Cruel, planejou matar o irmão, mas, com a ajuda da rainha, Ghézo foi retirado do reino e escondido para que novo rei não o encontrasse.

Detalhe: Trono de Adandozan.

VODUM

A rainha Agotimé foi ameaçada pelo enteado e agora novo rei. Teve de se esconder. Ela cultuava o voduns, como religião, desde criança. Com encanto e magia, despertava em muita gente respeito e admiração.

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VINGANÇA Temendo que, de alguma forma, Agotimé, pelo

respeito que despertava em todos, o destronasse para colocar mais tarde o filho, Adandozan fez um pacto com o brasileiro Francisco Félix de Sousa, para que capturasse a rainha. O baiano Francisco, com os homens de Adandozan, caçou a rainha como se ela fosse uma grande felina. Encontraram-na e prenderam-na. Acorrentada, foi levada ao rei, que a acusou de feitiçaria. Entregou-a ao traficante de seres humanos, Francisco, para que trouxesse ao Brasil. Com ela vieram muitos membros da família real ligada à esposa de Agongolo.

Detalhe: Francisco Félix de Sousa, o baiano traficante

de escravos, tornou-se, no governo de Ghézo, um homem muito poderoso e rico.

ESCRAVA Agotimé, presa, acorrentada, foi escravizada. De rainha a escrava. Embarcou no Porto de Daomé, no grande barco, cheio de homens, mulheres e crianças. O choro tomava conta do navio negreiro. A rainha, forte, corajosa, segurou as lágrimas por um longo período. Mas, ao olhar para a sua terra e pensar no filho Ghézo, derramou seus lamentos. Gotas de lágrimas caíram como se fossem orvalhos caindo de um baobá.

Detalhe: Baobá, árvore símbolo de África.

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NO MAR

A pouco mais de 100 quilômetros da costa da África, Agotimé teve uma grande visão, quando estavam no convés do navio para o asseio. Nas águas do oceano Atlântico, sobre as ondas, vinham, seguindo o navio, as divindades de sua religião. Ela teve, nesse momento, a certeza de que não estava sozinha. Os seus voduns a acompanhavam. Durante toda a viagem, a rainha veio pensando na sua vida futura. Como faria para continuar a sua tradição, rever os seus irmãos, reencontrar o seu filho. Tem certeza de que só o seu corpo será escravizado. Sua alma e seu pensamento jamais serão cativos.

Detalhe: A travessia do grande mar,

o oceano Atlântico, de Daomé ao Brasil.

Detalhe: Sobre as ondas do grande mar,

os voduns dão à rainha a certeza de que ela não está sozinha.

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NA BAHIA O navio negreiro que trazia Agotimé aportou na Baía

de Todos os Santos em 1798. Levada ao mercado de escravos, foi vendida para um rico dono de terras em Itaparica. Para lá foi e trabalhou duramente. Ganha o nome português de Maria Jesuína. Mais tarde, passa a trabalhar na mineração em outras terras. Olha pela primeira vez o ouro, com uma pepita que encontra. Aquela pedrinha brilhou em seus pensamentos. Pensou no seu povo, nos seus irmãos de sangue, nos irmãos de fé e, sobretudo, no seu filho, que tanto amava.

Detalhe: Bahia. De um lado, salvador; do outro, Itaparica.

MARIA MINEIRA

Na extração do ouro, em Rio de Contas, no sertão da Bahia, para onde foi levada, ganhou o nome de Maria Mineira. Alguns a chamavam de Maria Mineira Naê. Teve contato, na vila, fundada em 1723, após a descoberta de pedras preciosas, com as festas do Divino Espírito Santo. Ficou encantada com o luxo nas cerimônias do festejo. Mesmo escravizada, não conseguiram tolher seus anseios de liberdade. Continuou com seus cultos aos voduns.

Detalhe: Representação de Agotimé.

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A LIBERDADE Trabalhando nas minas, Agotimé conseguiu esconder

algumas pepitas. Mais tarde, quando julgou ser o momento ideal, apresentou as pedras preciosas que havia guardado a um homem que negociava com ouro. Com a venda, comprou sua liberdade. Anos de trabalho mudaram seu rosto, seu porte físico, mas não mudaram o seu caráter, seu valor, sua coragem. Agora estava livre.

Detalhe: Liberdade.

ORIXÁS

Livre, Agotimé consultou os voduns, seus guias espirituais, e descobriu que na Bahia havia centenas de milhares de irmãos africanos, mas não havia nenhum negro da irmandade vudum. Os seus irmãos de fé e os seus parentes de sangue, segundo os orixás revelaram, estavam muito distantes, na cidade de São Luís do Maranhão. AGOTIMÉ NO MARANHÃO

Dois anos depois que a Família Real chegou ao Brasil, Agotimé teve a certeza de que o seu lugar não era mais na Bahia, mas no Maranhão. Não conseguiria atravessar o Atlântico para voltar para casa. Mesmo que conseguisse, seria presa pelo enteado. Então embarcou na Nau Príncipe Regente para São Luís. Chegou à Ilha de São Luís e se encantou com a cidade, com a brisa, com o mar, com as ruas e becos, com as casas. O Maranhão, com o trabalho de seus irmãos, havia se tornado uma grande economia agroexportadora, sobretudo de algodão. No porto, havia um movimento muito grande, devido à quantidade de barcos na entrada da cidade. Vinham de todos os lugares, com gente diferente.

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Detalhe: Agotimé chega ao Maranhão nas primeiras décadas do século XIX.

EM SÃO LUÍS

Logo que chegou a São Luís, observou os negros escravizados. Eram muitos. Com porte físico diferente dos negros da Bahia. Eram mais baixos e entroncados. Livre, com documento, roupas bonitas, sapatos, Agotimé andava pelas ruas da cidade, observando cada detalhe. Todas as ruas levavam aos dois rios que a circundavam. Os pássaros cantavam como se quisessem falar com as pessoas. O céu estrelado era um encanto. Teve certeza de uma coisa: seria sua terra para sempre.

Detalhe: Rua Grande, 70 anos depois da chegada de Agotimé.

A CASA DAS MINAS

Sete anos vivendo em São Luís, já conhecia a história da cidade, o folclore, as lendas, o milagre de Guaxenduba, etc. Morava na Madre de Deus. Lá organizou uma casa em que recebia os seus irmãos de sangue e de fé. Com o tempo, a casa passou a se chamar Casa de Minas. Outros conheciam apenas como casa de Maria Jesuína, o nome que

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ganhou em São Luís. Seu Didi, um preto velho que morava mais afastado, numa casinha de taipa e coberta de palha, costumava dizer que Maria Jesuína tinha se mudado para essa casa em 1818. E que havia iniciado os rituais no dia de Santa Bárbara, em 4 de dezembro.

Detalhe: uma imagem rara de uma reunião de negros,

cultuando sua religião, em São Luís do Maranhão.

RITUAIS DE FÉ

Na Casa das Minas, Agotimé, pôde cultuar, com alguma liberdade, os voduns de sua religião, oriunda de sua terra natal, o Reino de Daomé. A casa, em menos de dez anos, passou a receber cada vez mais visitantes. Agotimé tornou-se uma mulher de respeito e admiração pelo seu povo e até por quem não era de sua terra.

Detalhe: Rituais de fé.

GHÉZO EM DAOMÉ

Ghézo, já crescido, sabendo que sua mãe tinha sido vendida como escrava, jura vingança contra o irmão. Volta à Daomé e se une ao traficante baiano Francisco Félix de Sousa para derrotar o cruel Adandozan. Depois de muitas

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lutas sangrentas, o filho de Agotimé e Agongolo derrota o irmão e toma o poder. Adandozan é preso. Francisco propõe mandá-lo para a Bahia ou para o Maranhão como escravo, uma vez que o odiava, mas o novo rei não permitiu tamanha crueldade com um irmão. Apenas o encarcerou, sem que sofresse as agruras da escravidão. Era o ano de 1818.

Detalhe: Ghézo, Rei de Daomé, em 1818.

À PROCURA DE AGOTIMÉ

Ghézo, o rei de Daomé, tão logo tomou o poder no reino, aprisionando Adandozan, tomou como missão encontrar sua mãe, Nã Agotimé. Convoca Francisco Félix, o mesmo que havia vendido a rainha, para que o brasileiro encontrasse, custasse o que custasse, o paradeiro e a resgatasse do cativeiro. O baiano tomou a missão e despachou para a Bahia um grupo liderado por Dossouyévo com ordens para só voltarem a Daomé com a mãe de Ghézo. COMITIVA DE DAOMÉ NA BAHIA

Dossouyévo e seu grupo buscaram, através de gente conhecedora do tráfico, o destino de Agotimé. Viajaram até o Rio de Contas atrás da rainha, mas encontraram uma cidade em decadência, devido à escassez do ouro nas minas. Voltaram a Salvador e continuaram as buscas. Pela descrição que davam, conseguiram localizar uma mulher que trabalhava como mucama na casa de um homem rico,

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mas não era Agotimé. Uma escrava de ganho contou à comitiva que a mulher que estavam procurando não era mais escrava e certamente estava na Corte. Dossouyévo não acreditou. Um português contou que ela poderia ter voltado à África. Ninguém deu ouvido. A comitiva fracassou nas buscas. Tentou ir à corte, mas desistiu, retornando à Daomé. Agotimé estava na Madre Deus, em São Luís do Maranhão. ADANDOZAN NO CÁRCERE

Adandozan, na prisão, escreveu uma série de cartas a D. João VI, no Brasil, e às autoridades lusitanas, em Portugal, pedindo ajuda para derrotar Ghézo. Dizia ser o rei e um impostor o havia tirado do trono. Não recebeu resposta de nenhuma missiva. Continuou no cárcere, embora dentro do palácio real. O baiano Francisco Félix disse ao rei Ghézo que o matasse, mas o monarca lembrou que há muito tempo era proibido derramar sangue de familiares. INDENPEDÊNCIA DO BRASIL

No Rio de Janeiro, a Princesa Regente Maria Leopoldina Josefa Carolina, usando dos poderes a ela conferidos, assina, em 02 de setembro de 1822, o decreto de Independência do Brasil. Em 12 de outubro, d. Pedro foi aclamado imperador. Ghézo, em Daomé, manda uma carta ao novo imperador, reconhecendo o Brasil como nação livre. O Reino de Daomé foi a primeira nação a reconhecer a independência do Brasil.

Detalhe: 02 de setembro de 1822, a Princesa Regente

assina o decreto de Independência do Brasil.

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LORD COCHRANE Na noite do dia 28 de julho, nas proximidades do

Convento e Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Lord Cochrane, que desembarcara há pouco em São Luís para resgatar o Maranhão das forças portuguesas, olha uma negra vistosa, com roupas diferentes das escravas que andavam nas ruas da cidade. Olhou para ela e reconheceu que era uma mulher forte, corajosa. Era Maria Jesuína, a Agotimé. O almirante seguiu para o Solar Cesário Veras, para um baile em comemoração à Adesão do Maranhão à Independência do Brasil.

Detalhe: Lord Cochrane.

Detalhe: Solar Cesário Veras, na Rua do Egito, em 2018.

O TRÁFICO DE ESCRAVOS DE DAOMÉ No Reino de Daomé, com Ghézo como rei, o tráfico de escravos continuou em grande escala. Mesmo com a Lei Feijó, em 1831, que proibia o tráfico de escravos da África para o Brasil, os navios chegavam abarrotados de seres humanos acorrentados. Homens e mulheres retirados de suas vidas, de suas culturas, de suas famílias, para viver como se não fossem da raça humana.

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A BALAIADA Em meados de 1838, eclodiu a Balaiada, revolta popular que travou centenas de batalhas no Maranhão, sobretudo nas cidades às margens do rio Itapecuru. Na Casa das Minas, em São Luís, os tambores ecoaram mais forte nesse período de intensas lutas na Província.

Detalhe: Revolta no Maranhão durante o período regencial.

A CASA DAS MINAS E A LIBERDADE Muitos negros que fugiam do cativeiro iam à Casa das Minas em busca da liberdade. Lá encontraram mais que acolhida, água, comida; encontravam um rumo para a liberdade. A própria Agotimé ajudou centenas de homens e mulheres no caminho para se tornarem livres do inferno da escravidão. AGOTIMÉ NO CUJUPE Por volta de 1840, a convite da avó de Paulo Costa, Agotimé, mais conhecida como Maria Jesuína, participou de uma ladainha em homenagem ao Divino Espírito Santo.

Pegou o barco Bela Rosa, de Mestre Brito, no já batizado Cais da Sagração, em homenagem a D. Pedro II, e, com ventos fortes, fez a travessia da baía. Na casa da avó de Paulo Costa, a ladainha foi cantada por Maria Castro, rezadeira das melhores. Agotimé acompanhou a reza em vários trechos, mostrando a todos, com sua voz firme, que entendia também de ladainhas. No dia seguinte, uma mesa farta, com muitos convidados, em que pratos de arroz, feijão, paca no leite de coco, porco assado, torta de camarão, caranguejo no azeite, farinha de mandioca, etc., fizeram os convivas se deliciarem. A antiga rainha contou a

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todos como, em Rio de Contas, na Bahia, se fazia a festa do Divino Espírito Santo. Antes de voltar a São Luís, uma questão lhe intrigou: a influência africana no Cujupe era menor do que imaginava. A influência indígena era muito forte. Conforme Chico Manavó disse em casa de Verdiano, Maria Jesuína era uma mulher distinta, de uma beleza diferente, apesar da idade já avançada.

Detalhe: imagem da canoa Linda Paz do Cujupe. Agotimé viajou num barco semelhante a esse, do Mestre Brito.

Detalhe: Representação do Divino Espírito Santo.

GONÇALVES DIAS Em 01 de março de 1845, desembarca no porto de São Luís um jovem vindo de Portugal. Maria Jesuína assiste ao desembarque e vê o bacharel. Na bagagem, o poema nacionalmente conhecido: Canção do Exílio, que o imperador tanto gostara. Ela apenas exclama ao vê-lo perto: “É um iluminado!”

Detalhe: Gonçalves Dias, o grande poeta maranhense.

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GRUPO MARANHENSE São Luís, a partir dos anos 1840, se destaca no cenário nacional, sobretudo com a publicação de Primeiros Cantos, do jovem poeta de Caxias, em 1846, no Rio de Janeiro. Em pouco tempo, há muita gente se referindo à capital da Província como Atenas Brasileira. A senhora da Casa das Minas acompanha, ainda que de longe, a vida desses grandes nomes das Letras.

Detalhes: Grupo Maranhense. Da Esquerda para a direita: Sete nomes

das Letras: Odorico Mendes, Sotero dos Reis, João Lisboa, Gonçalves Dias, Trajano Galvão, Maria Firmina dos Reis, Sousândrade.

FESTA DO DIVINO EM ALCÂNTARA

As negras da Casa das Minas, influenciadas por Maria Jesuína, começaram a participar com mais frequência das festas do Divino Espírito Santo. No início, iam para as rezas e procissões na Igreja de São João. Depois, a convite de um padre, foram para Alcântara participar dos festejos. Mesmo já idosa, no início dos anos 50, Agotimé, atravessava a baía e subia a ladeira do Jacaré para a famosa erguida do mastro na praça da matriz em Alcântara. Nas procissões, ela acompanhava todo o trajeto. Em casa de Dona Maria da Conceição, era uma convidada especial.

Detalhes: Imagens da Festa do Divino Espírito Santo em Alcântara.

MARIA FIRMINA DOS REIS Maria Jesuína soube que uma professora estava escrevendo um romance sobre os negros. Não sabia bem

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quem era, mas devia ser uma mulher valente para escrever uma história dessas no Maranhão. Apesar de dizer a si mesma que queria conhecer a professora, não a encontrou.

Detalhes: Imagem que representa Maria Firmina dos Reis

e o seu romance, publicado em 1859. DESPEDIDA

Em meados de 1858, com mais de 80 anos, Maria Jesuína, a rainha Agotimé, se despede da vida. Seu corpo recebeu a visita de muita gente, inclusive de quem nunca havia entrado na Casa das Minas, como Dona Maria da Conceição, de Alcântara. Do Cujupe vieram três pessoas. Alexandre de Siriba Seca disse na casa de Boquém que nunca tinha visto um velório com tanta gente. No cortejo até o cemitério da cidade, que havia sido fundado fazia três anos, o governador do Maranhão, João Pedro Dias Vieira, mandou um secretário representá-lo. No cemitério, quando começaram a baixar o caixão no túmulo, o negro Matias, começou a gritar: Agotimé, a rainha do Maranhão. No galho de uma ingazeira, um uirapuru cantava como que saudando a grande viagem da dama. À noite, depois do sepultamento, o Tambor de Choro ecoou, na Casa das Minas, como se o espírito da rainha estivesse ali presente. Menos de um ano depois, Ghézo, em Daomé, se despede da vida. 1915

Em 1915, numa noite bem iluminada de agosto, com ventos fortes vindos da Praia do Jenipapeiro, um negro, ex-escravo, professor do Liceu Maranhense, entra na Casa das Minas. Mãe Andressa está imponente reinando naquele lugar sagrado. Damião se senta e assiste uma nochê dançando. Depois, assiste à dança da Mãe Andressa. Para todos que estão naquela noite na Casa das Minas, há uma

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atmosfera de liberdade no ar. O negro Pantaleão canta: “Viva a África, mãe de todos nós”.

Detalhe: Mãe Andressa já idosa.

Detalhe: Casa das Minas, Madre Deus, São Luís-MA.

Patrimônio Cultural do Brasil.

EPÍLOGO

O nome de Agotimé, ou Maria Jesuína, deve ser celebrado como um dos membros do Panteão Maranhense. Da mesma forma que os escritores, os artistas, os padres,

os governadores, aqueles que construíram a história do Maranhão devem ser imortalizados na nossa memória, e a rainha de Daomé, ou melhor, Rainha do Maranhão, está entre os imortais.

O leitor que conseguiu chegar até aqui deve indagar sobre o futuro do texto. Virará mesmo um romance? O autor (deste esboço) trouxe o barco até aqui, pois que estamos em águas rasas, mas não me arrisco em mares bravios, pois sou apenas um marinheiro de marés brandas. Entrego a cana de leme a algum mestre capaz de governar o barco com sabedoria, experiência e conhecimento para navegar em alto mar.

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Detalhe: romance à espera de um mestre.

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AGOTIMÉ

Autor?______

E corre da cobrinha verde,

ô ô ô ô

Urubarana,

a a a a

Agotimé é quem pode nos salvar!

Samba-Enredo da

Turma do Quinto – 2001

Intérprete: Gabriel Melônio

O negro canta em dialeto

Lá na casa de Nagô.

Tambor rufou é mina,

O terreiro empoeirou.

1979 – Maranhão: Festas, Lendas,

Mistérios – Haja Deus –

Intérprete: Nicéas Drumont

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Negro faz da força o canto

Canta teu corpo de aço

E vive um Deus no orixá.

Samba-enredo Flor do Samba

1983 - Axé Xangô Axé.

A força e a fé de um

povo guerreiro.

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Detalhes: Imagens da Beija-Flor de Nilópolis, 2001:

A Saga de Agotimé, Maria Mineira Naê. Representação da rainha e da Casa das Minas.

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Detalhe: Sergio Ferretti (1937- 2018), professor do

Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA, foi o maior pesquisador da religião de matriz africana, sobretudo a denominada Mina Jêje, da Casa das Minas.

Na Casa Nagô a luz de Xangô Axé

Mina Jêje um ritual de fé

Chegou de Daomé,

Chegou de Abeokutá

Toda magia do vodun e do orixá.

Samba-enredo Beija-Flor -

2012 - (400 anos de São Luís)

Intérprete:

Neguinho da Beija-Flor

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Dino de Alcântara Dino de Alcântara nasceu nos anos 70 em São Luís do

Maranhão, mas viveu os melhores anos de sua vida no Cujupe (Alcântara). Seu bisavô, João Cavalcante, fugindo da mais terrível seca que assolou o Cariri, no Ceará, em 1877, migrou, como retirante,

para o Maranhão, indo morar nas terras do Cujupe. Seu avó, Manoel Cavalcante, nascido em 1881, depois que a cidade de Alcântara foi abandonada pela antiga nobreza (ver o romance Noite sobre Alcântara, de Josué Montello), comprou, por preços módicos, um pequeno lote de terras às margens do Igarapé do Cujupe e o transformou de um espaço num lugar, conforme definição de Yi-Fu Tuan. Seu pai, Francisco Cavalcante, lutou para que o lugar pudesse

ter melhores condições de moradia para os seus e para os outros. Sua mãe, Alinice Costa Cavalcante, também filha do lugar, lutou até o esgotamento de suas energias para a melhoria de vida dos habitantes do povoado, dando-lhes, em muitos casos, até o nome de batismo.

Como professora, levou o conhecimento a quem não via, senão a escuridão do analfabetismo. Costumava dizer que serão bem-aventurados os que semeiam o conhecimento.

Dino de Alcântara, ao longo de sua infância, ouviu de sua mãe e dos mais velhos, milhares de histórias sobre visagem, bravura, esperteza, lendas, mitos, etc. Essas narrativas estão guardadas nos salões mais nobres de suas memórias.

Sofreu forte influência de muitos autores, sejam eles teóricos (Marx, George Lukács, Antonio Candido, Roberto Schwarz), sejam escritores (como José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Arthur Azevedo, Cruz e Sousa, Maranhão Sobrinho, Humberto de

Campos, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Josué Montello, Stanislaw Ponte-Preta), sejam professores (Alinice, Rita, Márcia, Rosário, Sebastião, Sylvia, Arnoni, João Roberto).

Não resiste a uma boa conversa (sobre literatura, teatro, política, educação, história, língua portuguesa, etc.) com os amigos.

Mesmo com todos os vícios e misérias, o Maranhão tem sido uma terra de magia e feitiços, isto é, lugar do qual não se consegue sair, por se sentir preso, num fanatismo, seja pela culinária, pela beleza de sua natureza, pela cultura, etc.

Atualmente tem se dedicado ao ensino, à pesquisa, à literatura, à escrita de textos (sobretudo minicontos à maneira de

Humberto de Campos e narrativas da chamada “literatura oral”) e à divulgação da Cultura Maranhense, o maior patrimônio de sua terra.